uma viagem pelos quadrinhos
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Artigo acadêmico apresentado à disciplina Leituras Críticas de Histórias em Quadrinhos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).TRANSCRIPT
UMA VIAGEM
PELOS
QUADRINHOS
Sarah Kelly Mattos Piasentin
Leituras Críticas de Histórias em Quadrinhos (vespertino) - Unifesp
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UMA VIAGEM PELOS QUADRINHOS
Sarah Kelly Mattos Piasentin
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Leituras Críticas de Histórias em Quadrinhos (vespertino)
RESUMO
Este artigo tem como objetivo evidenciar a intertextualidade contida na história em
quadrinhos Terapia, webcomic brasileira publicada semanalmente no site Petisco.org por
Marina Kurcis, Rob Gordon e Mario Cau. O efeito dialógico obtido pela emulação de
diferentes estilos homenageia famosos nomes dos quadrinhos, como Winsor McCay e Will
Eisner. O trabalho de análise toma como base os conceitos de Aristóteles (1986), Cirne (2000)
e Fiorin (2006). A metodologia faz-se por meio de análise estrutural e estética do corpus e
comparação com os originais, a fim de mostrar que existe a intertextualidade na obra.
PALAVRAS-CHAVE: intertextualidade; webcomics; Terapia
PRA COMEÇO DE CONVERSA...
A webcomic Terapia é uma das séries publicadas pelo site Petisco.org. A história, que
existe apenas em formato digital – daí a denominação webcomic – foi lançada em 30 de maio
de 2011 e ainda está em processo de produção. Uma página é publicada a cada quarta-feira,
aos moldes dos suplementos semanais que eram encartados nos jornais no começo do século
XX nos Estados Unidos da América. Terapia foi vencedora do troféu HQ Mix de 2011 e é
uma das indicadas para o prêmio de 2012, na categoria Web Quadrinhos.
A história tem três autores: a psicóloga Marina Kurcis e o publicitário Rob Gordon
escrevem os roteiros, que são desenhados pelo quadrinista Mario Cau. Terapia tem como
personagem principal um rapaz que gosta muito de música, principalmente de Blues. O jovem
mora com os pais e um irmão, tem um emprego, uma namorada e faz um curso de graduação
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em uma faculdade particular. A personagem faz terapia, e muitas das cenas acontecem no
consultório, com diálogos entre o terapeuta e ele.
Figura – O rapaz anônimo de Terapia, em uma de suas sessões
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2011, p. 4
No dia 06 de março de 2013 teve início o capítulo 7 da história, um arco que foca
personagens mais velhas, como o pai do garoto e o psicólogo. A proposta do capítulo é
mostrá-los ainda jovens, com suas carreiras em formação, namoradas, vestibular e todo o
leque de conflitos que é associado à transição da adolescência para o início da fase adulta da
vida. A mesma fase em que se encontra a personagem principal da história.
“Vamos voltar no tempo e contar, nas próximas semanas, algumas histórias
que aconteceram há muito tempo no universo de Terapia. [...]
Entretanto, vamos contar essas pequenas histórias de forma diferente. Além
de olharmos para o passado dos personagens que criamos, olharemos
também para o passado das histórias em quadrinhos.” (CAU, 2013. extraído
de Petisco.org/terapia, postagem de 06/03/13)
Assim, a equipe de Terapia começou a apropriar-se de formas, retículas, cores – ou a
falta delas – de diferentes vertentes do chamado “cânone dos quadrinhos”. O primeiro
homenageado, por exemplo foi um dos autores que ensinou ao público o sentido de leitura de
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uma narrativa sequencial. Winsor McCay colocava números nos quadros para que os leitores
acompanhassem a história sem se perder.
Figura – Quadros numerados no topo, tal como os de “Little Nemo in the Slumberland” (McCay)
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 79
O efeito de destaque obtido neste trecho em específico (o capítulo 7 da história) se dá
pela quebra na linha de narração que vinha sendo desenvolvida até o capítulo anterior. A
associação deste flashback no enredo com a retomada de vários momentos das histórias em
quadrinhos cria a intertextualidade, que pode ser apreciada tanto por leitores habituais e
entendedores de quadrinhos quanto por leitores eventuais, uma vez que os autores/estilos
emulados são bastante conhecidos e já foram revisitados em outros momentos, por outros
desenhistas em outras obras e suportes.
DETERMINANDO PONTOS DE VISTA
Primeiramente definamos o que é um cânone. A origem do termo remonta aos livros
religiosos, cujo teor pode ser considerado de orientação divina. A versão utilizada aqui é a do
dicionário Silveira Bueno, a de cânone como modelo, regra, decisão. O cânone dos
quadrinhos seria, então, um conjunto de bons trabalhos a serem considerados como espelho.
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O segundo conceito a ser definido é o de imitação. Segundo Aristóteles, a imitação é
inerente ao homem, que aprende por meio deste artifício e se delicia ao reconhecer
características do imitado na imitação. No entanto, o deleite depende de um repertório
adquirido previamente, “Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum
prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer
outra causa da mesma espécie”. (ARISTÓTELES, 1986, p. 445)
Todo ramo de atividade artística tem seus precursores e personalidades de destaque.
No caso das histórias em quadrinhos não é diferente. Quando não havia modelos ou regras a
seguir, desenhistas como George Harriman e Winsor McCay fizeram muito sucesso ao
publicar suas primeiras histórias em jornais norte-americanos. Juntamente com outros autores,
consolidaram características que hoje representam os quadrinhos: “[...] uma particular
narrativa gráfico-visual, com cortes espácio-temporais que a impulsionam e a alimentam
semioticamente”. (CIRNE, 2000, p. 70). Artistas como estes depois de algum tempo
A intertextualidade, definida por FIORIN (2006) pode ser entendida como uma
conversa, um diálogo entre dois ou mais textos. Acontece quando notamos partes de textos ou
textos inteiros em outros textos. Este recurso é utilizado para chamar outras vozes ao texto e
enriquecer a construção do discurso pretendido pelo autor.
Há autores que se inspiram no cânone dos quadrinhos para fazer homenagens ou para
fazer uma intervenção e adicionar sua marca sobre os caminhos já trilhados por seus
precursores. Como evidencia Moacy Cirne (2000, p. 45): “[...] não buscamos o novo pelo
novo. Só o novo que nasce do velho nos interessa”. Tal qual uma borboleta saindo do casulo,
novos trabalhos surgem para metamorfosear tudo aquilo que até então se tinha produzido.
O problema de pesquisa deste artigo é evidenciar a intertextualidade presente na
história Terapia, tendo como motivo principal a produção de um arco em que se volta no
tempo dentro do universo da narrativa para contar fatos vividos anteriormente por algumas
personagens, a partir de uma viagem no tempo real, por diversos autores e escolas já bastante
conhecidas do universo dos quadrinhos.
O corpus foi delimitado tomando como base as páginas 79 e 81 por representarem
diferentes experiências de emulação do estilo de alguns autores de histórias em quadrinhos
facilmente reconhecidos pelos leitores eventuais e habituais deste gênero. A intertextualidade
causa o efeito de deleite do leitor, para além de prestar a homenagem pretendida pelos
autores.
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A análise estética e estrutural do corpus levou em conta as definições teóricas acima
apresentadas, teorias discutidas em sala de aula na disciplina Análises Críticas de Histórias
em Quadrinhos e depoimentos dos autores a respeito dos processos de produção da história,
publicados no site Petisco e na página dedicada ao quadrinho no Facebook.
É importante ressaltar que mesmo antes deste capítulo os autores já inseriam tais
referências na história:
Figura – Quadro de Terapia com reprodução da capa do livro “Blues” (Robert Crumb)
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 8
Figura – Quadro de Terapia com reprodução da capa do livro “Blues” (Robert Crumb)
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 9
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Novos olhares sobre o passado
Todas as páginas analisadas no corpus deste artigo pertencem ao sétimo capítulo da
história. Na postagem que abre o capítulo, Mário Cau dá uma dica de como será a abordagem
deste arco em específico e incita os leitores a buscar nas páginas as referências intertextuais –
chamadas na internet de easter-eggs – relacionadas ao tema. A brincadeira é estar atento e
descobrir todas as surpresas inseridas pelos autores na história:
Assim, cada página terá um estilo visual e narrativo diferente da anterior, e
homenageará um estilo – ou algum autor renomado – da história das HQs,
desde o início do século 20. Além disso, ainda colocaremos em cada página
pelo menos uma referência a algum elemento dos quadrinhos da época (ou
escola) em questão. Será que você conseguirá encontrar todos?
[...] Esperamos que vocês gostem desta viagem ao passado!
(CAU, 2013. extraído de Petisco.org/terapia, postagem de 06/03/13)
A primeira página a ser analisada é a de número 79, publicada no site de Terapia em
06 de março de 2013. A referência que mais chama a atenção já foi citada, que é a questão da
numeração dos quadros, marca intertextual que remete a uma das histórias mais famosas de
Winsor McCay (1869-1934), Little Nemo in Slumberland.
Figura – Little Nemo in Slumberland – 14/07/1907
Fonte: http://www.comicstriplibrary.org/display/363 (acesso em 24/04/13)
Nemo era um garotinho que vivia grandes aventuras em mundos oníricos, muitas
vezes na companhia da personagem Flip, que estava sempre com um cachimbo na boca. As
histórias não eram exatamente sonhos, eram na verdade pesadelos; já que Nemo passava
muitas vezes por apuros e situações perigosas na terra dos sonhos, na Lua, em Marte ou onde
quer que estivesse. Mas, sempre ao final da página, o garoto acordava sobressaltado, porque
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caíra da cama ou então com a voz de alguma outra personagem que não aparecia no
enquadramento da cena.
Na página de Terapia é possível identificar entre os alunos do terapeuta, no quadro 4,
as personagens Nemo (de pijama azul) e Flip (de macacão amarelo e chapéu) logo em
primeiro plano, e outra personagem chamada Impie, na primeira fileira à esquerda. Os prédios
são feitos de livros – a história começa em um ambiente escolar – e o nome da escola é
referência ao criador do primeiro cartum brasileiro (Nhô Quim, criado em 1869 por Angelo
Agostini).
Figura – Referências a McCay e Angelo Agostini
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 79
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A segunda página a ser analisada é a de número 81, que dialoga brilhantemente com o
universo das histórias em quadrinhos do americano Will Eisner (1917-2005). Eisner era filho
de imigrantes judeus, e as temáticas de seu povo e da Segunda Guerra Mundial também eram
contempladas em suas histórias. Ele tinha um estilo muito característico. Seus desenhos eram
bastante detalhados e as cenas extrapolavam os limites de cada quadro, expandindo as
possibilidades de aproveitamento do espaço da página e criando uma marca pessoal.
Figura – Will Eisner, o professor
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 81
Will Eisner não foi o responsável por cunhar o termo graphic novel (novela gráfica),
mas ajudou a popularizá-lo. Este termo reúne elementos que dialogam com a arte e com a
literatura, ajudando a derrubar pré-conceitos de que quadrinhos são feitos apenas para
crianças, que não podem ter qualidade etc.
Em 1978 ele queria publicar seu livro “Um contrato com Deus e outras histórias” por
uma editora menor, não especializada em quadrinhos – diferente das gigantes Marvel, DC
Comics e outras. Para conseguir sua edição, Eisner justificou ao editor que sua história não
era simplesmente um quadrinho (comic, termo depreciado junto ao mercado editorial). Ao
vender suas histórias como graphic novels, editadas em formato livro, Eisner atingiu um
público que não estava habituado a ler quadrinhos e conseguiu levar as narrativas gráfico-
sequenciais também às estantes das livrarias.
Rob Gordon revelou, dias depois de publicar a página, que estava bastante satisfeito
com a emulação dos traços de Eisner e a reconstrução de seu universo:
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O prazer que tive ao escrever essa página, junto com a Marina Kurcis
Gonzales, foi absurdo. Não existe outro termo para descrever: eu terminei de
escrever a página totalmente apaixonado por ela. Ainda estou.
[...] Obrigado ao Mario Cau, por conseguir traduzir, tudo o que escrevemos,
em traços que trouxeram Eisner de volta à vida.
[...] E muito obrigado, Will Eisner. Sem você, dificilmente estaríamos
fazendo quadrinhos hoje. Pois, sem você, quadrinhos seriam uma obra de
arte marginalizada e para crianças. (GORDON, 2013. extraído de
Facebook.com/terapiahq, postagem de 20/03/13)
Abaixo, duas das cenas replicadas na página 81. Note-se que a intertextualidade pode
ser construída tanto nas referências ao nome quanto na recriação de cenas inteiras, como neste
caso:
Figura – Quadro de Nova York: a vida na grande cidade (Eisner)
Fonte: http://papirodigital.com/quadrinhos/nova-iorque-de-will-eisner/
Figura – Quadro de Terapia, com o psicólogo jovem ao centro
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU. Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 81
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Figura – Capa de New York: a grande
cidade (Eisner)
Fonte: Google images
Figura – Quadro final da página
Fonte: KURCIS; GORDON; CAU.
Terapia. Petisco Webcomics, 2013, p. 81
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Outra história famosa de Eisner foi “The Spirit”, cuja personagem principal era um
detetive mascarado de nome Denny Colt que combatia o crime em Central City. Em um dos
quadros da página de Terapia é possível ver um jornal amassado na rua com a manchete
“Denny Colt assassinado”. Para além disso,há também o título, que mescla-se à fumaça que
sai da chaminé e perpassa toda a página, constituindo mais uma referência ao estilo de Will
Eisner.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intertextualidade é um recurso bastante usado no mundo das artes. A criação com
base em modelos já consagrados não é uma estratégia nova, e não parece dar sinais de deixar
de ser assim no futuro. É imprescindível saber identificar uma referência de uma simples
cópia. A intertextualidade e a interdiscursividade são utilizadas para acionar os repertórios dos
leitores e causar uma aproximação entre o discurso que está sendo produzido e o discurso que
está sendo retomado.
Dependendo de sua bagagem cultural e intelectual, por vezes o leitor não consegue
definir exatamente qual é a referência intertextual presente naquilo que ele lê. No entanto, a
supracitada sensação de deleite descrita por Aristóteles é inconfundível.
Ao interligar textos, fazendo-os dialogar entre si, os autores de Terapia alcançaram o
propósito de fazer um jogo entre as várias histórias: a dos quadrinhos, a do universo de
Terapia e a da vida real. Um novo estilo é criado, permeado por intrínsecas formas de
intertextualidade e referências estéticas, reinventando o que já foi consagrado e traçando
perspectivas e possibilidades para diferentes abordagens no futuro.
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REFERÊNCIAS
Livros:
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986
BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa. Ed. rev. e atual. por
Helena Bonito C. Pereira, Rena Signer. São Paulo: FTD: LISA, 1996.
CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petrópolis: Vozes, 2000
FIORIN, José Luiz. Intertextualidade e interdiscursividade. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: Outros
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
Websites:
http://www.comicstriplibrary.org/display/363 (acesso em 24/04/13)
http://www.facebook.com/terapiahq (acesso em 27/04/2013)
http://papirodigital.com/quadrinhos/nova-iorque-de-will-eisner/
KURCIS, Marina; GORDON, Rob, CAU, Mario. Terapia. Petisco Webcomics, 2011-3.
Disponível em: http://petisco.org/terapia (acesso em 24/04/2013)