uma princesa de marte

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    Edgar Rice

    BurroughsUma Princesa

    de MarteTraduo Ricardo Giassetti

    ALEPH

    2010

    Para meu f i lho Jack

    Prefcio

    AO LEITOR DESTE TRABALHOAo oferecer a voc o estranho manuscrito doCapito Carter em forma de livro, acredito quealgumas poucas palavras relativas a essamarcante personalidade sejam de interesse.Minha primeira lembrana do Capito Cartervem de sua estada de alguns meses na casa demeu pai, na Virgnia, imediatamente antes do

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    comeo da Guerra Civil. Na poca, eu era umacriana de uns cinco anos, mas continuo melembrando bem do homem alto, atltico,moreno, de rosto brilhante, a quem eu cha-

    mava de Tio Jack.Ele parecia estar sempre sorrindo, e entravanas brincadeiras das crianas com a mesmacamaradagem sincera que demonstravaqueles passatempos aos quais os homens emulheres de sua idade se dedicavam. Ou,ento, ele se sentava por uma hora inteiraentretendo minha velha av com histrias desua vida estranha e perigosa inundo afora.Todos o amavam, e nossos escravos prati-camente veneravam o cho no qual ele pisava.Ele era um esplndido exemplo demasculinidade, chegando a quase um metro e

    noventa de altura, de ombros largos e quadrilestreito, com o porte de um lutador bemtreinado. Suas feies eram regulares e bemdefinidas, seu cabelo preto cortado rente,enquanto seus olhos eram de um cinza-ao,refletindo uma personalidade forte e leal,

    cheia de fulgor e iniciativa. Seus modos eramperfeitos e sua cortesia era a mesma de umtpico cavalheiro do sul da mais alta estirpe.Seu estilo ao cavalgar, especialmente na caa raposa, maravilhava e impressionava,mesmo naquele recanto de magnficoscavaleiros. Ouvi com freqncia meu pai

    adverti-lo quanto a sua ousadia desenfreada,mas ele apenas ria e dizia que a queda que o

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    mataria seria causada por um cavalo queainda no havia nascido.Quando a guerra comeou, ele partiu e no ovi novamente pelos prximos quinze ou

    dezesseis anos. Quando retornou, foi semaviso, e fiquei bastante surpreso ao perceberque ele no havia envelhecido sequer umsegundo, que suas feies no haviammudado. Quando estava na companhia deoutros, ele era o mesmo camarada genial efeliz que conhecamos h tempos; masquando ficava a ss com seus pensamentos,eu o via sentar-se por horas a fio, olhando onada, seu rosto assumindo um ar de esperamelanclica e completa desolao. E noite,ele se sentava olhando para o cu;procurando o qu, eu no sabia at ler este

    manuscrito anos depois.Ele nos disse que havia prospectado eminerado no Arizona durante uma parte dotempo desde a guerra, e que havia sido bem-sucedido era evidente dada a quantiailimitada de dinheiro que possua. Quanto aos

    detalhes de sua vida durante esses anos, eleera reticente. Na verdade, ele no falavasobre isso, em absoluto.Ele ficou conosco por cerca de um ano eento foi para Nova York, onde haviaadquirido um recanto s margens do Hudson.Passei a visit-lo uma vez por ano quando

    viajava para Nova York - onde, na poca, meupai e eu comprvamos suprimentos paraabastecer nossa rede de lojas de

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    departamentos no Estado da Virgnia. OCapito Carter tinha uma pequena, mas belacasa em uma escarpa debruada sobre o rio.E em uma das minhas ltimas visitas, no

    inverno de 1885, observei que ele estavamuito ocupado escrevendo, presumo agora,este manuscrito.Ele me pediu na poca que, caso algoacontecesse a ele, eu me encarregasse deseus bens. Deu-me uma cpia da chave paraum compartimento do cofre que ficava emseu estdio, dizendo que ali eu encontrariaseu testamento, alm de algumas instruespessoais s quais me fez prometer obedecercom absoluto rigor.Depois que me retirei para dormir, pude v-lode minha janela, em p sob o luar e na beira

    do penhasco sobre o Hudson com os braospara o alto, como que em um apelo. Penseique estivesse rezando, apesar de nunca terimaginado que ele fosse um homem religioso,no sentido estrito da palavra.Vrios meses depois de retornar para casa

    aps minha ltima visita - creio que por voltado dia 1 de maro de 1886 -, recebi umtelegrama dele me pedindo que voltasseimediatamente. Sempre fui seu favorito entrea gerao mais nova dos Carters, ento meapressei em cumprir seu pedido.Desembarquei na pequena estao a cerca de

    um quilmetro e meio de suas terras namanh de 4 de maro de 1886. E quando pediao cocheiro que me levasse at o Capito

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    Carter, ele respondeu que, caso eu fossealgum amigo do Capito, teria notcias muitoruins a dar. O Capito fora encontrado mortopelo vigia de uma propriedade vizinha logo

    aps o amanhecer daquele dia.Por alguma razo suas palavras no mesurpreenderam, mas apressei-me para o localo mais rpido possvel para poder cuidar docorpo e dos servios.Encontrei o vigia que o havia descoberto juntoa um policial local e a vrios cidadosreunidos em seu pequeno estdio. O vigiarelatou os poucos detalhes ligados ao corpoque, segundo ele, ainda estava quentequando o achou. Estava deitado, disse ele,estirado na neve, na direo da escarpa, comos braos abertos sobre sua cabea. Quando

    ele me mostrou o lugar, lembrei-me de queera o mesmo ponto onde eu o havia vistonaquelas outras noites, com seus braos parao alto, suplicando aos cus.No havia marcas de violncia em seu corpo,e com a ajuda de um mdico local os

    investigadores chegaram concluso de quea causa da morte fora um ataque cardaco.Sozinho no estdio, abri o cofre e retirei ocontedo da gaveta onde ele havia dito queeu encontraria as minhas instrues. Eram,em parte, realmente peculiares, mas as seguicom mxima dedicao at os ltimos

    detalhes.Ele me orientava a levar seu corpo para aVirgnia sem embalsam-lo, e que fosse

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    colocado em um caixo aberto dentro de umatumba que ele mesmo havia construdopreviamente. A tumba, como eu saberiaposteriormente, era muito bem ventilada. As

    instrues me obrigavam a supervisionarpessoalmente os servios, tal como forapedido, mesmo que em sigilo, se necessrio.Sua propriedade foi mantida de tal forma queeu recebesse os lucros durante vinte e cincoanos, aps os quais o imvel se tornaria meu.Suas prximas instrues eram relacionadas aeste manuscrito, que eu deveria manterlacrado e em segredo, do modo como o haviaencontrado, por onze anos. E no deveriadivulgar seu contedo antes que vinte e umanos se passassem de sua morte.Um detalhe estranho sobre a tumba na qual

    seu corpo ainda repousa: a pesada porta,equipada com uma nica grande fechadurafolheada a ouro, s pode ser aberta de dentro

    para fora.Sinceramente,Edgar Rice Burroughs

    Captulo 01NAS COLINAS DO ARIZONA

    Sou um homem muito velho. O quanto, eu nosei. possvel que eu tenha cem anos, talvezmais, mas no posso calcular porque nuncaenvelheci como os outros, ou sequer lembrode minha infncia. Por mais que tente me

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    lembrar, sempre fui um homem, um homemde uns trinta anos. Minha aparncia hoje amesma de quarenta anos atrs, talvez mais;mesmo assim, sinto que no viverei para

    sempre, que algum dia morrerei a verdadeiramorte da qual no h ressurreio. No seipor que eu deveria temer a morte. Eu, quemorri duas vezes e continuo vivo. Mascontinuo tendo o mesmo medo de algumque, como voc, nunca morreu antes. E porcausa desse terror pela morte que, acredito,continuo to convencido de minhamortalidade.Por causa dessa convico, decidi escrever ahistria dos perodos interessantes da minhavida e morte. No posso explicar talfenmeno, mas apenas registrar aqui, com as

    palavras de um simples soldado, a crnica dosestranhos eventos que se abateram sobremim durante os dez anos em que meucadver descansou em segredo em umacaverna do Arizona.Nunca contei esta histria antes e homem

    algum deve ler este manuscrito antes que eutenha partido para a eternidade. Sei que, demaneira geral, a mente humana noacreditar no que no pode captar, e tambmno pretendo ser ridicularizado pelo pblico,pelos oradores e pela imprensa, serapregoado como um grande mentiroso

    quando no estou dizendo nada alm da puraverdade que algum dia a cincia comprovar. provvel que as informaes que arrecadei

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    sobre Marte e o conhecimento que transcrevonestas crnicas ajudem em um primeiroentendimento dos mistrios de nosso planetaparente. Mistrios para voc, no mais para

    mim.Meu nome John Carter, mais conhecidocomo Capito Jack Carter, da Virgnia. No finalda Guerra Civil minhas posses somavammuitas centenas de milhares de dlares(confederados) e o posto de capitocomissionado da cavalaria de um exrcito queno mais existia. Eu era o servo de um Estadoque havia evaporado junto com as esperanasdo Sul. Sem a quem responder, sem dinheiroe com meus meios de sobrevivncia e defesaperdidos, decidi partir para o sudoeste etentar recuperar minhas riquezas buscando

    por ouro.Passei quase um ano prospectando nacompanhia de outro oficial confederado, oCapito James K. Powell, de Richmond.Tivemos muita sorte quando, no final doinverno de 1865, aps muito esforo e

    privao, localizamos o mais notvel veio deouro que nem nossos sonhos mais deliranteshaviam ousado. Powell, engenheiro de minaspor formao, afirmou que havamosdescoberto mais de um milho de dlares domineral a serem extrados em meros trsmeses.

    Nossos equipamentos eram to rsticos quedecidimos que um de ns voltaria civilizao, compraria o maquinrio ne-

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    cessrio e retornaria com um nmerosuficiente de homens aptos para trabalhar namina.Por Powell conhecer melhor a regio e

    tambm ser familiarizado com osrequerimentos tcnicos para minerao,decidimos que ele seria a melhor escolha parafazer a viagem. Concordamos que seria eu adefender nossa posse na remota possibilidadede um explorador errante tentar tom-la.No dia 3 de maro de 1866, Powell e euamarramos suas provises em dois de nossosburros e nos despedimos quando montou nocavalo e comeou a descer a colina nadireo do vale, rumo primeira etapa de suaviagem.A manh da partida de Powell estava clara e

    bela, assim como quase todas as manhs noArizona. Eu podia v-lo e a seus animais emsua rota montanha abaixo. Durante toda amanh, eu os avistava no topo de algumaencosta ou planalto. Vi Powell pela ltima vezpor volta das trs da tarde, quando ele

    adentrou as sombras das montanhas do outrolado do vale.Cerca de meia hora depois, ao olharcasualmente sobre o vale, notei, surpreso,trs pequenos pontos perto do mesmo lugaronde havia visto meu amigo e seus doisanimais de carga pela ltima vez. No sou

    dado a me preocupar toa, mas quanto maistentava acreditar que tudo estava bem comPowell - que aqueles pontos que vi em sua

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    trilha eram antlopes ou cavalos selvagens -,menos conseguia me convencer.Desde que entramos no territrio, noavistamos sequer um ndio hostil. E, tambm,

    nos tornamos extremamente descuidados.Costumvamos ridicularizar as histrias queouvimos sobre os inmeros assaltantes quepatrulhavam as trilhas, cobrando seu pedgiona forma de vidas e tortura a qualquer grupode brancos que aparecesse em seu caminho.Eu sabia que Powell estava bem armado e,alm disso, tinha experincia em enfrentarndios. Mas eu tambm havia sobrevivido elutado anos a fio entre os sioux no Norte esabia que suas chances seriam pequenascontra um grupo de astuciosos apaches emseu encalo. Finalmente, no pude mais

    suportar o suspense e, armado com meus doisrevlveres Colt e uma carabina, ajustei doiscintos de cartuchos sobre mim, montei emmeu cavalo arreado e desci pela mesma trilhade Powell.Assim que cheguei plancie, incitei meu

    cavalo a meia-marcha, quando era praticvel,at que perto do crepsculo encontrei o pontoonde outros rastros se juntavam aos dePowell. Eram rastros de pneis desferrados,trs deles, e vieram a galope.Segui as pegadas rapidamente at aescurido total, sendo forado a esperar a lua

    nascente, tempo em que tive a oportunidadede especular se minha perseguio era sbia. provvel que eu tenha cogitado perigos

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    impossveis como alguma dona de casapreocupada e que, quando eu alcanassePowell, daramos gargalhadas de meusofrimento. Porm, no sou inclinado a

    sensibilidade. Seguir o chamado do dever,onde quer que me leve, sempre foi umaespcie de fetiche durante toda a minha vida,o que deve ser o motivo das honras recebidaspor mim por trs repblicas, condecoraes ea amizade de um velho e poderoso imperadore outros tantos reis menores a servio dosquais minha espada se manchou de vermelhomuitas vezes.Por volta das nove horas, a lua estavasuficientemente clara para que euprosseguisse meu caminho sem maioresdificuldades em rastrear a trilha a passos

    largos e, em alguns pontos, a trote ligeiro. Porvolta da meia-noite alcancei o poo ondePowell deveria acampar. Cheguei ao localcautelosamente, mas estava deserto e semsinais recentes de acampamento.Fiquei surpreso ao ver que os rastros dos

    perseguidores - pois agora sabia querealmente o eram - continuaram seguindoPowell aps uma breve parada no poo. Emantinham a mesma velocidade que a dele.Eu estava convencido de que osperseguidores eram apaches e que queriamcapturar Powell vivo pelo prazer maquiavlico

    da tortura. Aticei meu cavalo adiante, emgalope ainda mais perigoso, na esperana de

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    alcan-los antes que os covardes oatacassem.Outras conjeturas foram subitamentesuspensas pelo som ao longe de dois tiros

    minha frente. Eu sabia que Powell precisavade mim naquele derradeiro momento e,imediatamente, esporei meu cavalo subindo omais rpido possvel pela trilha estreita edifcil montanha acima.Eu havia percorrido cerca de um quilmetro emeio ou mais sem ouvir outros sons quando atrilha subitamente desembocou em umapequena clareira perto do topo do caminho.Eu havia passado por um desfiladeiro alto eestreito antes de chegar clareira, e a visocom a qual me deparei encheu meus olhos deconfuso e terror.

    A pequena extenso de terra plana estavabranca de tantas tendas, e haviaprovavelmente cinqenta guerreiros ndiosamontoados em volta de um objeto no centrodo acampamento. Sua ateno estava tofixada no objeto em questo que sequer me

    notaram, e eu poderia ter facilmente recuadopara as sombras do desfiladeiro e escapadoem perfeita segurana. O fato de essepensamento no ter me ocorrido at o diaseguinte anula qualquer direito de reclamarherosmo de minha parte, coisa que anarrao deste episdio poderia fazer cair

    sobre mim.No acho que eu seja feito do material queso construdos os heris porque, em todas as

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    vezes que meus atos voluntrios mecolocaram face a face com a morte, no melembro de nenhuma em que pensei em outraalternativa at algumas horas depois. Minha

    mente evidentemente constituda de formaa me forar ao chamado do dever sem queseja preciso um cansativo processo mental.Mas, de qualquer maneira, nunca mearrependi por no ter a covardia como opo.Sendo assim, eu estava certo de que Powellera o centro da ateno, mas se pensei ou agiprimeiro, no sei. No mesmo instante em quea cena se desdobrou diante de mim, eu jhavia sacado meus revlveres e estavadisparando contra o exrcito de guerreirosinimigos, atirando rpido e gritando a plenospulmes. Sozinho, eu no poderia ter

    escolhido melhor ttica, uma vez que osvermelhos, convencidos pela surpresa de quenada menos que todo um regimento estavasobre eles, correram em todas as direes embusca de seus arcos, flechas e rifles.A sensao que essa fuga desabalada me

    apresentou foi de apreenso e raiva. Sob osraios claros do luar do Arizona, jazia Powell,seu corpo crispado pelas flechas hostis dosndios. Eu estava completamente convencidode que ele j estava morto, mas mesmo assimsalvaria seu corpo da mutilao pelas mosdos apaches to rpido quanto o salvaria de

    uma morte certa.Cavalguei para perto dele e desci da sela.Segurando-o pelo cinturo de cartuchos,

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    coloquei-o nas costas de minha debilitadamontaria. Um breve olhar para trs meconvenceu de que retornar pelo mesmocaminho por onde tinha vindo seria mais

    perigoso do que continuar atravs do plat.Ento, esporando meu pobre animal, acelereina direo da abertura da passagem que euconseguia distinguir do outro lado da plancie.A essa altura os ndios j haviam descobertoque eu estava sozinho e fui perseguido porimprecaes, flechas e tiros de rifles. Comoapenas imprecaes so fceis de se mirarsob a luz da lua, e em razo de estaremirritados com o modo sbito com que chegueie de eu ser um alvo em movimento, conseguime salvar de vrios projteis mortais inimigosat alcanar as sombras dos picos ao redor

    antes que meus perseguidores pudessem seorganizar.Meu animal cavalgava praticamente sem serguiado porque eu sabia que, provavelmente,eu tinha menos noo da localizao da trilhapara a passagem do que ele. Assim, ocorreu

    que ele adentrou um desfiladeiro que levavaao topo das montanhas e no passagempela qual eu ansiava me levar ao vale e segurana. provvel, porm, que eu devaminha vida a este fato e s marcantesexperincias e aventuras que recaram sobremim pelos prximos dez anos.

    O primeiro aviso de que eu estava na trilhaerrada veio quando ouvi os gritos dosperseguidores selvagens rapidamente se tor-

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    nando mais e mais distantes do meu ladoesquerdo.Eu sabia que eles haviam passado pelaesquerda da formao de rochas pontudas na

    beira do plat, direita da qual meu cavalohavia nos carregado, a mim e o corpo dePowell.Interrompi meu avano em um pequenopromontrio plano com vista para a trilhaabaixo e esquerda, e vi o grupo deselvagens perseguidores desaparecendo emuma rea prxima ao pico vizinho.Eu sabia que os ndios logo descobririam queestavam na trilha errada e que a busca pormim seria retomada na direo correta assimque localizassem minhas pegadas.Eu havia percorrido apenas uma pequena

    distncia quando o que pareceu ser umaexcelente trilha abriu-se perto da face de umalto penhasco. A trilha era plana, bastanteampla e seguia para cima na direo em queeu desejava seguir. O penhasco erguia-se porcentenas de metros minha direita e,

    minha esquerda, havia uma queda similar equase perpendicular para o fundo de umaravina rochosa.Segui por essa trilha por talvez uns cemmetros quando uma curva acentuada para adireita levou-me at a boca de uma grandecaverna. A abertura tinha aproximadamente

    um metro e vinte de altura e cerca de outrometro de largura. Ali acabava a trilha.

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    J era manh e, com a costumeira ausnciade alvorada - uma surpreendentecaracterstica do Arizona o dia havia surgidoquase sem aviso.

    Desmontei, estendi Powell no cho, mas umexame mais detalhado no revelou a menorcentelha de vida. Verti gua de meu cantil porentre seus lbios mortos, banhei sua face eesfreguei suas mos, tentei reanim-loincessantemente por quase uma hora, mesmosabendo que ele j estava morto.Eu tinha muito apreo por Powell, que era umhomem completo em todos os aspectos, umrefinado cavalheiro sulista, um amigo leal everdadeiro, e foi com um sentimento do maisprofundo pesar que finalmente desisti deminhas grosseiras tentativas de ressuscit-lo.

    Deixando o corpo de Powell depositado naborda, rastejei para o interior da caverna paraum reconhecimento do terreno.Encontrei uma grande cmara compossivelmente trinta metros de dimetro edez ou doze metros de altura, um piso liso e

    bastante desgastado, e muitas outrasevidncias de que a caverna havia, em algumperodo remoto, sido habitada. O fundo dacaverna estava to perdido na densaescurido que no pude distinguir se haviaaberturas para outros aposentos ou no.Enquanto continuava meu exame, comecei a

    ser tomado por uma agradvel sonolncia, aqual atribu fadiga de minha longa e rduacavalgada e excitao da luta e da

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    perseguio. Senti-me relativamente seguroem minha posio atual, j que sabia que umhomem s seria capaz de defender a trilhapara a caverna contra todo um exrcito.

    Logo fiquei to sonolento que quase no puderesistir ao forte desejo de me jogar no choda caverna para descansar por algunsmomentos, mas eu sabia que esta no erauma opo, j que significaria a morte certanas mos de meus amigos de pele vermelha,que poderiam atacar a qualquer momento.Com esforo, comecei a me dirigir para aabertura da caverna apenas para cambalear,como que embriagado, contra uma paredelateral, e da deslizar de bruos para o cho.

    Captulo 02

    A FUGA DA MORTE

    Uma sensao de deliciosa languidez seabateu sobre mim, meus msculos relaxarame estava a ponto de me entregar ao desejo dedormir quando o som de cavalos se

    aproximando chegou aos meus ouvidos.Tentei me erguer, mas fiquei horrorizado emdescobrir que meus msculos se recusavam aresponder aos meus comandos. Eu continuavacompletamente desperto, mas incapaz demover um msculo sequer, como se tivesseme transformado em pedra. Foi ento, pelaprimeira vez, que notei um leve vaporpreenchendo a caverna. Era extremamente

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    tnue e s podia ser notado contra a aberturaque levava luz do dia. Tambm chegou sminhas narinas um odor ligeiramente acre, epude apenas supor que eu havia sido abatido

    por algum gs venenoso. Mas, como mantinhaa conscincia e ainda assim estavaincapacitado de me mover, era algo que noconseguia compreender.Eu havia me deitado voltado para a aberturada caverna, de onde podia ver um pequenotrecho da trilha que se encontrava entre acaverna e a curva do penhasco ao redor doqual a trilha passava. O barulho de cavalos seaproximando havia cessado e julguei que osndios estivessem rastejando furtivamente emminha direo ao longo da pequena salinciaque levava minha tumba em vida. Lembro-

    me de ter desejado que acabassem comigorapidamente, j que no tinha nenhum apreoespecial pela idia das incontveis coisas quepoderiam fazer comigo caso lhes aprouvesse.No precisei esperar muito at que um somfurtivo me informasse de sua proximidade e,

    em seguida, um rosto encoberto por umchapu e com listras pintadas esticou-secuidadosamente prximo da borda dopenhasco. E olhos selvagens encontraram osmeus. Tinha certeza de que ele podia me verna mortia luz da caverna, uma vez que todaa luz do sol nascente projetava-se sobre mim

    pela abertura.O ndio, em vez de se aproximar,simplesmente parou e encarou-me. Seus

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    olhos saltando das rbitas e seu queixo cado.E ento outro rosto selvagem apareceu, e umterceiro e um quarto e um quinto, erguendoseus pescoos sobre os ombros dos

    companheiros que no ousavam ultrapassar aestreita fenda. Cada rosto constitua umaimagem de assombro e medo, mas por qualrazo no pude atinar, nem vim a descobrirantes que se passassem dez anos. Eraaparente que havia mais guerreiros por trsdos que me observavam, j que os primeirostransmitiam palavras sussurrantes para osque se encontravam para trs.De repente, um lamento baixo, pormdistinto, foi emitido nas profundezas dacaverna atrs de mim. Quando os ndios oouviram, viraram-se e correram aterrorizados,

    assolados pelo pnico. To furiosos foramseus esforos em escapar do ser invisvelatrs de mim que um dos guerreiros foiimpetuosamente arremessado do penhascopara as rochas abaixo. Seus gritosdesesperados ecoaram pelo desfiladeiro por

    um curto perodo de tempo, e mais uma veztudo ficou em silncio.O som que os havia aterrorizado no serepetiu, mas foi suficiente para que eucomeasse a especular a respeito do possvelhorror oculto nas sombras s minhas costas.O medo um sentimento relativo, de modo

    que s posso medir minhas impressesnaquele momento por meio das situaes deperigo que vivi em perodos anteriores

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    quele, ou por meio das experincias quepassei desde ento; mas posso afirmar semnenhuma vergonha que, se as sensaes quesuportei durante os minutos seguintes foram

    de medo, que Deus ajude o covarde, pois acovardia , sem sombra de dvidas, suaprpria punio.Estar paralisado de costas para um perigo tohorrvel e desconhecido, de cujo som osferozes guerreiros apaches fogemdesenfreadamente como um rebanho deovelhas fugiria de uma matilha de lobos, meparece a ltima palavra em situaes apa-vorantes para um homem que sempre esteveacostumado a lutar por sua vida com todas asforas de sua poderosa constituio.Diversas vezes pensei ter ouvido sons dbeis

    atrs de mim, como se algum estivesse semovendo com cuidado, mas finalmente atesses sons cessaram e fui deixado s, paracontemplar minha prpria situao. Podiaapenas conjeturar vagamente a causa deminha paralisia e minha nica esperana era

    a de que passasse de forma to repentinaquanto se abateu sobre mim.No final da tarde, meu cavalo, que ficaraparado com as rdeas soltas diante dacaverna, comeou a descer lentamente a tri-lha - evidentemente em busca de comida egua -, e fiquei s com o misterioso e

    desconhecido companheiro e com o corposem vida de meu amigo, que, dentro de meu

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    campo de viso, jazia na salincia em que ohavia colocado no incio da manh.De l at possivelmente a meia-noite, tudoera silncio, o silncio da morte. Ento,

    repentinamente, o pavoroso lamento damanh abateu-se sobre meus alarmadosouvidos, e novamente das sombras escurasveio o som de algo se movendo e um fracomurmrio, como o de folhas mortas. O choquepara o meu j extenuado sistema nervoso foiterrvel ao extremo e, com um esforo sobre-humano, esforcei-me para quebrar meusterrveis grilhes. Foi um esforo da mente,da vontade, dos nervos; no muscular, poisno era capaz de mover nem meu dedomnimo, mas no menos poderoso apesar detudo. E ento algo cedeu, houve uma

    momentnea sensao de nusea, um barulhoagudo como o estalar de um fio de ao, e mepus em p de costas contra a parede dacaverna, encarando meu inimigodesconhecido.A luz da lua inundou a caverna e, diante de

    mim, estava meu prprio corpo, na mesmaposio em que esteve deitado durante todasaquelas horas, com os olhos encarando aborda externa e as mos pousadasfrouxamente sobre o cho. Primeiro observeimeu corpo sem vida sobre o cho da cavernae, em seguida, olhei para mim mesmo em

    total perplexidade, pois ali eu jazia vestido, e,todavia, estava em p, nu como no momentode meu nascimento.

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    A transio foi to repentina e to inesperadaque por um momento me esqueci de tudo,exceto minha estranha metamorfose. Meuprimeiro pensamento foi: "Ento isso a

    morte! Realmente passei para sempre paraaquela outra vida!" Mas no podia acreditarnisso, uma vez que sentia meu coraobatendo contra minhas costelas em virtude dovigor de meu esforo em me libertar do torporque me havia acometido. Minha respiraosaa em arfadas rpidas e curtas, um suor friosaa de cada poro de meu corpo e a antigaprtica do belisco revelou o fato de que euno era nada alm de um espectro.Minha ateno foi nova e repentinamentechamada de volta para os meus arredores poruma repetio do estranho lamento vindo das

    profundezas da caverna.Minhas armas estavam atadas ao meu corposem vida que, por alguma razo insondvel,me era impossvel toc-lo. Minha carabinaestava em seu coldre, amarrada minha sela,e como meu cavalo havia fugido, fui deixado

    sem meios de defesa. Minha nica alternativaparecia ser a fuga, e minha deciso secristalizou com a recorrncia do rudo daquiloque agora parecia, na escurido da caverna epara minha imaginao distorcida, estarrastejando furtivamente em minha direo.Incapaz de resistir por mais tempo tentao

    de fugir daquele lugar terrvel, puleirapidamente atravs da abertura para a luzdas estrelas de uma noite clara do Arizona. O

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    ar fresco e revigorante das montanhas fora dacaverna agiu como um tnico imediato e sentiuma vivacidade e coragem renovadas fluindoatravs de meu corpo. Parando na

    extremidade da abertura, repreendi-me peloque, agora, parecia ser uma apreensototalmente injustificada. Conjeturei que haviapermanecido deitado e indefeso durantemuitas horas dentro da caverna, que nada mehavia molestado, e meu bom senso, quandocapaz de seguir um raciocnio claro e lgico,convenceu-me de que os rudos que ouvideveriam ser resultado de causas puramentenaturais e inofensivas. Provavelmente, aconfigurao da caverna era tal que uma levebrisa poderia causar os sons que ouvi.Decidi investigar, mas primeiro ergui a cabea

    para encher meus pulmes com o puro erevigorante ar noturno das montanhas.Ao fazer isso, vi estendendo-se muito abaixode mim a bela vista do desfiladeiro rochoso euma plancie pontilhada de cactos,transformada pela luz do luar em um milagre

    de doce esplendor e impressionante encanto.Poucas maravilhas no oeste so maisinspiradoras que as belezas de uma paisagembanhada pelo luar no Arizona. As montanhasprateadas na distncia, as estranhas luzes esombras sobre as encostas escarpadas, osriachos e os detalhes inusitados dos rgidos e

    belos cactos formam uma imagem ao mesmotempo mgica e inspiradora, como seestivssemos captando pela primeira vez o

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    vislumbre de algum mundo morto eesquecido, to diferente de qualquer outrorecanto sobre a terra.Assim, parado em meditao, desviei meu

    olhar da paisagem para os cus, no qual umamirade de estrelas formava uma abbadapara as maravilhas da cena terrestre. Minhaateno foi rapidamente desviada por umagrande estrela vermelha prxima do horizontedistante. Ao mir-la, senti uma esmagadorafascinao - era Marte, o deus da guerra que,para mim, homem lutador, sempre teve opoder de irresistvel seduo. Ao olhar paraele naquela longnqua noite, o astro pareciame chamar atravs do inconcebvel vazio,seduzindo-me, atraindo-me como o m atraiuma partcula de ferro.

    Meu desejo ultrapassava qualquer obstculo.Fechei os olhos, estiquei meus braos emdireo ao deus de minha vocao e senti-meatrado, com a rapidez do pensamento,atravs da incomensurvel imensido doespao. Houve um instante de frio extremo e

    absoluta escurido.Captulo 03

    MINHA CHEGADA A MARTE

    Abri meus olhos para uma estranha e bizarrapaisagem. Sabia que estava em Marte e nemuma vez questionei minha sanidade ou seestava acordado. No estava dormindo, no

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    havia necessidade de me beliscar dessa vez.Minha conscincia disse claramente que euestava em Marte da mesma forma que suamente lhe diz que voc est na Terra. Voc

    no questiona o fato, e eu no o questionei.Eu estava deitado de bruos sobre uma camaamarelada, forrada com uma vegetaoparecida com musgo que se esticava ao meuredor em todas as direes por interminveisquilmetros. Eu parecia estar deitado numvale profundo e circular, ao longo da bordaexterna, cujas irregularidades das colinasbaixas pude distinguir.Era meio-dia, o sol brilhava com toda forasobre mim e o calor era intenso sobre meucorpo nu, ainda que no mais forte do queteria sido em condies similares em um

    deserto do Arizona.Aqui e ali havia leves afloramentos de pedrascom quartzo que cintilavam luz do sol. Umpouco minha esquerda, talvez a uns cemmetros, havia uma construo baixa emurada, com cerca um metro e meio de

    altura. No havia gua ou outra vegetao avista que no o musgo e, como estava comsede, resolvi fazer uma pequena explorao.Ao dar impulso com meus ps tive minhaprimeira surpresa marciana. O esforo, que naTerra teria me colocado em p, me fez subircerca de trs metros no ar marciano. No

    entanto, pousei suavemente no solo, semchoque ou batida dignos de nota. Nessemomento teve incio uma srie de evolues

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    que mesmo na poca pareceram ridculas aoextremo. Descobri que deveria aprender aandar novamente, uma vez que o esforomuscular que me fazia caminhar de maneira

    fcil e segura na Terra me pregava umaestranha pea em Marte.Em vez de avanar de forma digna eequilibrada, minhas tentativas de caminharresultaram em uma variedade de saltos queme arremessavam para longe do cho cercade meio metro a cada passo e terminavamcomigo de cara ou de costas no cho a cadadois ou trs saltos. Meus msculos,perfeitamente ajustados e acostumados fora da gravidade na Terra, brincavam deforma maldosa em minha primeira tentativade me ajustar gravidade e presso

    atmosfrica menores de Marte.Contudo, eu estava determinado a explorar aestrutura baixa que constitua a nicaevidncia de habitao vista, de forma queme deparei por acaso com o plano singular dereverter ao primeiro princpio da locomoo,

    engatinhar. Sai-me suficientemente bemnisso, e em instantes havia atingido o murobaixo e circular da estrutura.A construo parecia no ter portas ou janelasna lateral mais prxima a mim, mas como omuro tinha pouco mais de um metro dealtura, me coloquei cuidadosamente em p e

    olhei sobre a parede para a viso maisestranha que jamais havia visto.

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    O teto da estrutura era feito de vidro slidocom cerca de dez centmetros de espessura e,abaixo dele, havia vrias centenas de grandesovos perfeitamente redondos e brancos como

    neve. Eles eram quase uniformes emtamanho, com cerca de sessenta centmetrosde altura e um pouco menos de dimetro.Cinco ou seis ovos j haviam chocado, e asgrotescas caricaturas que se sentavampiscando sob a luz do sol foram suficientespara me fazer duvidar de minha sanidade.Pareciam ser constitudas principalmente deuma cabea, corpo pequeno e esqueltico,pescoo comprido e seis pernas, ou, comoaprendi mais tarde, duas pernas e doisbraos, com um par de membrosintermedirios que podiam ser utilizados

    como braos ou pernas, de acordo com avontade. Os olhos estavam posicionados empontos extremos das laterais da cabea, umpouco acima do centro, e se projetavam de talforma que poderiam olhar para a frente oupara trs de forma independente um do outro,

    permitindo assim que o estranho animalolhasse em qualquer direo, ou em duasdirees ao mesmo tempo, sem anecessidade de virar a cabea.As orelhas, um pouco acima dos olhos eprximas uma da outra, eram como pequenasantenas cncavas projetando-se no mais do

    que uma polegada nesses jovens espcimes.Seus narizes no passavam de fendas

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    longitudinais no meio de suas faces, entresuas bocas e orelhas.No havia penas em seus corpos, queapresentavam um leve tom amarelo-

    esverdeado. Nos adultos, como viria aaprender logo, essa cor escurece at chegar aum verde-oliva e mais escura nos machosque nas fmeas. Alm disso, as cabeas dosadultos no so to desproporcionais aoscorpos como no caso dos jovens.As ris eram vermelho-sangue, como nosalbinos, enquanto a pupila era escura. Oglobo ocular em si era bastante branco, assimcomo os dentes. Esses ltimos atribuam umaaparncia feroz a uma fisionomia que j seriaapavorante e terrvel, uma vez que ospontiagudos caninos faziam uma curva para

    cima, terminando perto de onde os olhos dosseres humanos se localizam. O branco dosdentes no se parecia com o do marfim, mascom a mais branca e brilhante porcelana.Contra o fundo escuro de suas peles cor deoliva, seus caninos se sobressaam de forma

    impressionante, fazendo com que essasarmas tivessem uma aparncia formidvel.Notei a maioria desses detalhes mais tarde, jque tive pouco tempo para especular sobre asmaravilhas de minha nova descoberta. Eutinha observado que os ovos estavam emprocesso de ecloso e, enquanto fiquei

    assistindo aos abominveis pequenosmonstros quebrarem as cascas, deixei de

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    notar a aproximao de cerca de vintemarcianos adultos s minhas costas.Vieram atravs do musgo macio e abafadoque cobre praticamente toda a superfcie de

    Marte, com exceo das reas congeladas nosplos e das regies cultivadas dispersas, epoderiam ter-me capturado com facilidade,porm suas intenes eram bem maissinistras. Foi o barulho dos apetrechos doguerreiro mais frente que me chamou aateno.Minha vida estava por um fio, e muitas vezesme admiro ter escapado to facilmente. Casoo rifle do lder desse grupo no balanasse deseu coldre ao lado da sela, de tal modo quebatia a coronha contra a sua grande lana demetal, eu teria sido morto sem imaginar

    sequer que a morte estava prxima. Mas opequeno som fez com que eu me virasse e ali,sobre mim, a menos de dez passos dedistncia do meu peito, estava a ponta dagrande lana de doze metros de comprimentocom a extremidade revestida de metal

    reluzente, mantida baixa na lateral de umaverso montada dos pequenos demnios queeu observava.Quo fracos e inofensivos eles pareciamagora, ao lado dessas enormes e terrveisencarnaes do dio, da vingana e da morte.O prprio homem, pois assim posso o chamar,

    tinha pelo menos quatro metros e meio dealtura e, na Terra, teria pesado em torno decento e oitenta quilos. Estava sentado em sua

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    montaria como ns nos sentamos em umcavalo, segurando o torso do animal com seusmembros inferiores, enquanto as mos deseus dois braos direitos seguravam sua

    imensa lana ao lado de sua montaria. Seusdois braos esquerdos estavam estendidoslateralmente para ajudar a preservar seuequilbrio, a coisa por ele montada noapresentava estribo ou rdeas de qualquerespcie para conduo.E sua montaria! Como podem palavrashumanas descrev-la! Atingia trs metros naaltura do ombro, tinha quatro pernas de cadalado, um rabo achatado e largo - maior naponta que na raiz, o qual mantinha reto epara trs enquanto corria -, e uma bocaescancarada que dividia sua cabea do

    focinho at o pescoo longo e volumoso.Como seu mestre, era totalmente desprovidode cabelo, mas possua uma cor de ardsiaescura, sendo extremamente liso e brilhante.Sua barriga era branca, e suas pernasmudavam da cor de ardsia de seus ombros e

    quadris para um amarelo vivo nos ps. Os psem si eram fortemente acolchoados e semunhas, fato este que tambm contribuiu parasua aproximao silenciosa e que, assimcomo a multiplicidade de pernas, constitui umtrao caracterstico da fauna de Marte.Apenas o tipo mais evoludo de homem e um

    outro animal, o nico mamfero existente emMarte, possuem unhas bem formadas, e no

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    existe absolutamente nenhum animal comcasco l.Seguindo esse primeiro atacante demonacoenfileiravam-se dezenove outros, similares em

    todos os aspectos mas, como aprendi maistarde, apresentando caractersticas que lhesso peculiares, exatamente como no h doisde ns idnticos, embora sejamos todosforjados em um molde semelhante. Essaimagem ou, melhor dizendo, pesadelomaterializado, que descrevi detalhadamente,causou-me apenas uma impresso terrvel eimediata conforme girei para me deparar comela.Desarmado e desnudo como estava, aprimeira lei da natureza manifestou-se nanica soluo possvel para meu problema

    imediato, que era sair da rea de alcance daponta da lana posicionada para o ataque.Conseqentemente, dei um salto bastantemundano, e ao mesmo tempo sobre-humano,para atingir o topo da incubadora marciana,pois determinei que se tratava desse tipo de

    estrutura.Meu esforo foi coroado com um sucesso queme chocou no menos do que pareceusurpreender os guerreiros marcianos. Fuielevado dez metros no ar e aterrissei a cercade trinta metros de meus perseguidores, dolado oposto da estrutura.

    Desci no musgo macio de forma fcil e semproblemas, e, virando-me, vi meus inimigosalinharem-se ao longo da parede adiante.

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    Alguns me inspecionavam com expressesque, posteriormente, descobri serem deextrema surpresa, e os outros estavamevidentemente satisfeitos por eu no ter

    molestado sua prole.Estavam conversando em tom baixo,gesticulando e apontando em minha direo.Sua descoberta de que eu no havia ma-chucado os pequenos marcianos e que estavadesarmado deve ter feito com que meencarassem com menos ferocidade. Mas,como descobri depois, o que mais pesou ameu favor foi a demonstrao de minhashabilidades em saltar obstculos.Embora os marcianos sejam imensos, seusossos so muito grandes e sua musculatura desenvolvida apenas na proporo da

    gravidade que devem suportar. O resultado que eles so infinitamente menos geis emenos poderosos, em proporo seu peso,que um homem terrestre, e duvido quequalquer um deles, caso fosse de repentetransportado para a Terra, conseguisse erguer

    o prprio peso do cho - de fato, estouconvencido de que seriam incapazes de faz-lo.Meu feito era to maravilhoso em Marte comoo teria sido na Terra e, assim, abandonando odesejo de me aniquilar, passaram a meencarar como uma magnfica descoberta a ser

    capturada e exibida entre seus companheiros.A vantagem que minha inesperada agilidademe proporcionou permitiu que eu formulasse

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    planos para o futuro imediato e que notassecom mais ateno a aparncia dos guerreiros,pois em minha mente no pude desassociaressa gente dos guerreiros que, apenas um dia

    antes, haviam me perseguido.Notei que cada um deles estava armado comvrias outras armas alm da enorme lanaque descrevi. A arma que fez com que medecidisse contra uma tentativa de fuga porvo foi a que evidentemente correspondia aalgum tipo de rifle e em cujo manuseio senti,por alguma razo, serem eles bastanteeficientes.Esses rifles eram de um metal branco comcoronha de madeira que, aprendi mais tarde,ser de uma planta muito leve e imensamentedura, muito apreciada em Marte e

    completamente desconhecida para ns,habitantes da Terra. O metal do cano era umaliga composta principalmente por alumnio eao, que aprenderam a temperar at atingiruma dureza que excede em muito a dureza doao com que estamos familiarizados. O peso

    desses rifles comparativamente leve e, comos projteis explosivos de rdio de baixocalibre que utilizam - e o grande comprimentodo cano - so extremamente mortais adistncias que seriam inconcebveis na Terra.O raio de alcance efetivo terico desse rifle de quase quinhentos metros, mas o melhor

    que podem realmente fazer em servioquando equipados com seus localizadores

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    sem fio e miras de um pouco mais detrezentos metros.Isso foi mais que suficiente para me imbuir degrande respeito pelas armas de fogo

    marcianas, e alguma fora teleptica deve terme advertido contra uma tentativa de fugaem plena luz do dia bem debaixo dos focinhosde vinte destas mquinas da morte.Os marcianos, depois de conversarem poralgum tempo, viraram-se e partiram nadireo de onde vieram, deixando um de seushomens sozinho ao lado da construo.Quando j haviam se afastado cerca deduzentos metros, se detiveram e, virandosuas montarias em nossa direo, sentaram-se e ficaram observando o guerreiro paradoao lado da construo.

    O guerreiro em questo era aquele cuja lanaquase havia me perfurado e eraevidentemente o lder do grupo, j que noteique eles pareceram ter tomado suas posiesatuais segundo suas ordens. Quando suabrigada estancou, ele desmontou, jogou sua

    lana ao cho, baixou seus braos pequenos edeu a volta na extremidade da incubadoravindo em minha direo, completamentedesarmado e to desnudo quanto eu, comexceo dos ornamentos amarrados em suacabea, membros e peito.Quando estava a cerca de quinze metros de

    mim, ele retirou um enorme bracelete demetal e, segurando-a em minha direo napalma aberta de sua mo, dirigiu-se a mim

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    com uma voz clara e ressonante, mas em umidioma que, desnecessrio dizer, no pudeentender. Ele permaneceu parado como queesperando uma resposta, estirando suas

    orelhas em forma de antenas e mantendoseus olhos de aparncia estranha fixos naminha direo.Como o silncio se tornou incmodo, decidiarriscar um pouco de conversa de minhaparte, j que acreditei que ele estivessefazendo uma proposta de paz. O baixar desuas armas e a retirada de sua tropa antes deseu avano em minha direo teriamsignificado uma misso pacfica em qualquerlugar na Terra, ento, por que no em Marte?Colocando minha mo sobre meu corao, fizuma reverncia ao marciano e expliquei que,

    embora no tivesse entendido seu idioma,suas aes demonstravam a paz e amizadeque, no momento atual, me eram mais carasao corao. Claro que daria no mesmo se eufosse um riacho murmurante, dado oentendimento que meu discurso causou na

    criatura, mas ele compreendeu a ao queimediatamente se seguiu s minhas palavras.Esticando minha mo em sua direo, avanceie tomei o bracelete de sua palma aberta,prendendo-o sobre meu brao acima docotovelo. Sorri para ele e fiquei esperando.Sua boca larga estendeu-se em um sorriso de

    resposta e, prendendo um de seus braosintermedirios no meu, ele se virou e dirigiu-se para sua montaria. Ao mesmo tempo,

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    gesticulou aos seus seguidores queavanassem. Eles comearam a caminhar emnossa direo em uma corrida selvagem, masforam detidos por um sinal dele.

    Evidentemente ele temeu que eu, caso meassustasse novamente, desta vez saltassetotalmente para fora de seu alcance.Ele trocou algumas palavras com seushomens, gesticulou para mim que montassena garupa de um deles e, em seguida, montouem seu animal. O indivduo escolhido baixouduas ou trs mos e me colocou atrs de si,na lustrosa traseira de sua montaria, onde mesegurei da melhor forma possvel pelas faixase correias que prendiam as armas eornamentos do marciano.Assim, toda a procisso se virou e galopou na

    direo da cadeia de colinas ao longe.

    Captulo 04UM PRISIONEIRO

    Havamos percorrido talvez dez milhas

    quando o terreno comeou a se elevar deforma muito rpida. Ns estvamos, como vim saber depois, nos aproximando da margemde um dos mares de Marte, todos mortos hmuito tempo, no fundo do qual ocorreu meuencontro com os marcianos.Em pouco tempo chegamos aos ps dasmontanhas e, depois de atravessar umaestreita ravina, samos em um vale aberto, na

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    extremidade remota do qual havia umplanalto, sobre o qual contemplei umaenorme cidade. Galopamos em sua direo,entrando atravs do que parecia ser uma

    estrada abandonada que levava para fora dacidade, mas chegava apenas at a borda doplanalto, onde acabava abruptamente em umlance de escada de degraus amplos.Mediante atenta observao notei, conformepassava pelos edifcios, que eles estavamdesertos e, embora no estivessem muitodeteriorados, tinham a aparncia de noserem ocupados h anos, possivelmente heras. Na direo do centro da cidade haviauma grande praa, onde nela e nos edifciosimediatamente ao seu redor estavamacampadas algo em torno de novecentas a

    mil criaturas da mesma raa de meuscaptores, pois assim passara a consider-los,apesar da maneira suave com que fuiaprisionado.Com exceo de seus ornamentos, todosestavam nus. As mulheres apresentavam uma

    aparncia um pouco diferente da dos homens,exceto pelo fato de que suas presas erammuito maiores em relao sua altura, emalguns casos curvando-se quase at asorelhas posicionadas no alto da cabea. Oscorpos eram menores e mais claros, e osdedos de seus ps ostentavam unhas

    rudimentares, totalmente ausentes entre osmachos. A altura das fmeas adultas variavaentre trs e trs metros e meio.

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    As crianas eram de cor mais clara, mais claraat que as mulheres, e todos pareciamidnticos meus olhos, a no ser pelo fato deque alguns eram mais altos do que outros. Por

    serem mais velhos, presumi.No vi sinais de idade avanada entre eles,nem havia qualquer diferena notvel em suaaparncia desde a maturidade, cerca dequarenta anos, at aproximadamente os milanos, quando voluntariamente saem em sualtima e estranha peregrinao at o rio Iss, oqual nenhum marciano vivo sabe aonde vai ede onde nenhum marciano jamais voltou; casoretornasse depois de embarcar uma vez emsuas frias e escuras guas, no teriapermisso de viver.Estima-se que apenas um marciano em mil

    morre de doena ou enfermidade, e que porvolta de vinte fazem a peregrinao vo-luntria. Os outros novecentos e setenta enove morrem de forma violenta em duelos,caadas, na aviao e na guerra. Mas talvez amaior perda de vidas ocorra, de longe,

    durante a infncia, quando um vasto nmerode pequenos marcianos cai vtima dosgrandes macacos albinos de Marte.A expectativa mdia de vida de um marcianoaps a idade madura de cerca de trezentosanos, mas esse nmero seria prximo damarca dos mil anos, no fossem os vrios

    caminhos que levam a uma morte violenta.Devido aos escassos recursos do planeta, evi-dentemente tornou-se necessrio

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    contrabalanar a crescente longevidadedecorrente de suas notveis habilidades emmedicina e cirurgia, de modo que a vidahumana em Marte passou a ser considerada

    de forma leviana, como evidenciado por seusperigosos esportes e guerras quase contnuasentre as diversas comunidades.H outras causas naturais que contribuempara a tendncia de diminuio da populao,mas nada colabora de forma mais intensapara esse fim do que o fato de nunca ummarciano, macho ou fmea, estarvoluntariamente desprovido de uma arma dedestruio.Ao nos aproximarmos da praa e minhapresena ser descoberta, fomosimediatamente rodeados por centenas de

    criaturas que pareciam ansiosas em me puxarde meu assento atrs de meu guarda. Umapalavra do lder do grupo calou seu clamor etrotamos atravs da praa at a entrada doedifcio mais magnfico que olhos mortais jpuderam vislumbrar.

    O edifcio era baixo, mas cobria uma enormerea. Havia sido construdo em mrmorebranco reluzente incrustado com pedrasdouradas e brilhantes que ofuscavam ecintilavam sob a luz do sol. A entradaprincipal tinha cerca de trinta metros delargura e projetava-se do edifcio formando

    uma enorme abbada sobre o hall de entrada.No havia escadarias, somente uma leverampa para o primeiro andar do edifcio se

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    abria para uma enorme cmara rodeada porgalerias.No piso dessa cmara, repleta de mesas ecadeiras altamente trabalhadas, estavam

    reunidos cerca de quarenta ou cinqentamarcianos machos ao redor dos degraus deuma tribuna. Na plataforma, perfeitamenteagachado, encontrava-se um enormeguerreiro pesadamente carregado comparamentos metlicos, penas de cores alegrese adornos belamente elaborados em couroengenhosamente cravejados de pedraspreciosas. De seus ombros pendia uma capacurta de pele branca alinhada revestida comseda escarlate brilhante.O que mais me impressionou em relao assemblia e ao hall no qual estavam

    reunidos foi o fato de as criaturas serem to-talmente desproporcionais em relao smesas, cadeiras e outros mveis, quepossuam um tamanho adequado ao dos sereshumanos como eu; em contrapartida, agrande quantidade de marcianos mal permitia

    que eles se espremessem nas cadeiras nemdeixava espao para suas longas pernas sobas mesas. Assim, ficou evidente que haviamais cidados em Marte alm das selvagens egrotescas criaturas nas mos das quais euhavia cado, mas as provas de extremaantigidade exibidas em toda a minha volta

    indicavam que essas construes deveriamter pertencido a alguma raa h muito extintae esquecida na vaga antigidade de Marte.

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    Nosso grupo havia parado na entrada doedifcio e, a um sinal do lder, fui colocado nocho. Novamente travando seu brao no meu,seguimos para a cmara de audincias. Havia

    algumas formalidades a serem observadas aoabordar seu superior. Meu captor caminhou apassos largos na direo da tribuna, os outrosse afastavam para que ele avanasse. O lderprincipal se levantou e pronunciou o nome demeu acompanhante que, por sua vez, parou erepetiu o nome do governante, seguido porseu ttulo.Naquele momento, essa cerimnia e aspalavras proferidas nada significavam paramim, mas posteriormente vim saber queesta era a saudao costumeira entremarcianos verdes. Caso fossem estranhos

    entre si e, portanto, incapazes de sesaudarem, teriam trocado presentessilenciosamente se suas misses fossem depaz - do contrrio, teriam trocado tiros outerminado as apresentaes com algumaoutra de suas diversas armas.

    Meu captor, cujo nome era Tars Tarkas, eravirtualmente o vice-lder da comunidade e umhomem de grandes habilidades comoestadista e guerreiro. Evidentemente, eleexplicou em poucas palavras os incidentesligados sua expedio, incluindo minhacaptura e, quando terminou, seu lder

    despendeu alguma ateno a mim.Respondi em nosso bom e velho ingls apenaspara convenc-lo de que nenhum de ns

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    poderia entender o outro, mas notei que,quando sorri levemente durante a concluso,ele fez o mesmo. Esse episdio e a ocorrnciade um feito similar durante minha primeira

    conversa com Tars Tarkas convenceu-me deque ao menos tnhamos alguma coisa emcomum: a capacidade de sorrir. Mas euaprenderia que o sorriso marciano meramente mecnico e que a risada marciana algo que faz com que homens fortes fiquembrancos de horror.A idia de humor entre os homens verdes deMarte amplamente divergente das nossasconcepes de estmulo da alegria. A agoniada morte de um outro ser provoca, para essasestranhas criaturas, a mais louca hilaridade,enquanto a principal forma da mais simples

    diverso matar seus prisioneiros de guerrade formas diversas e horripilantes.Os guerreiros reunidos examinaram-me comateno, sentindo meus msculos e a texturade minha pele. Ento o principal lderevidentemente expressou o desejo de ver

    minha apresentao e, gesticulando para queeu o seguisse, entrou com Tars Tarkas napraa a cu aberto.At agora, eu no havia feito nenhumatentativa de caminhar, desde meu primeirosinal de fracasso, exceto ao agarrarfirmemente o brao de Tars Tarkas, de forma

    que agora ia pulando e esvoaando entre asmesas e cadeiras como um gafanhotomonstruoso. Depois de me machucar

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    seriamente, para grande diverso dosmarcianos, novamente recorri ao engatinhar,mas isso no estava de acordo com seusplanos, pois fui rudemente colocado em p

    por um sujeito enorme que riu com o maispuro entusiasmo de minha desgraa.Ao me colocar em p violentamente, seu rostose inclinou prximo ao meu e fiz a nica coisaque um cavalheiro pode fazer sobcircunstncias de brutalidade, grosseria efalta de considerao para com os direitos deum estranho. Enfiei meu punho diretamenteem sua mandbula e ele caiu como um boi noabate. Enquanto ele caa ao cho, volteiminhas costas na direo da mesa maisprxima, esperando ser subjugado pelavingana de seus companheiros; estava,

    porm, determinado a proporcionar-lhes umaluta to boa quanto possvel, dadas aschances desiguais, antes de abrir mo daminha vida.No entanto, meus medos foram infundados,pois outros marcianos, em princpio mudos de

    espanto, finalmente romperam em umselvagem estrondo de risadas e aplausos. Noreconheci os aplausos como tal, mas,posteriormente, quando tomei conhecimentode seus costumes, aprendi que haviaconquistado o que eles raramente concedem,uma manifestao de aprovao.

    O sujeito que atingi permaneceu onde caiu enenhum de seus companheiros se aproximoudele. Tars Tarkas avanou em minha direo,

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    estendendo um de seus braos, e assimprosseguimos at a praa sem maiscontratempos. claro que eu no conhecia arazo para termos sado para o exterior, mas

    logo vim saber. Primeiro, eles repetiram apalavra "sak" inmeras vezes, e ento TarsTarkas deu vrios pulos, repetindo a mesmapalavra antes de cada salto. Virando-se paramim, disse "sak"! Entendi o que queriam e,recompondo-me, "sakei" com toimpressionante sucesso que me afastei bonsquarenta e cinco metros e, dessa vez, noperdi meu equilbrio e pousei em p sem cair.Ento, voltei para o pequeno grupo deguerreiros com saltos fceis de sete ou oitometros.Minha exibio foi testemunhada por vrias

    centenas de marcianos comuns e elesimediatamente exigiram uma repetio, que older ordenou que eu fizesse. Mas eu estavacom fome e sede e decidi naquela hora queminha nica forma de salvao seria exigirconsiderao dessas criaturas que,

    evidentemente, no concederiam de formavoluntria. Portanto, ignorei os repetidoscomandos para "sakar" e cada vez que erampronunciados, gesticulava em direo minhaboca e esfregava meu estmago.Tars Tarkas e o lder trocaram algumaspalavras e o ltimo, chamando uma jovem

    fmea entre a multido, lhe passou algumasinstrues e gesticulou para que eu aacompanhasse. Agarrei seu brao estendido e

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    juntos cruzamos a praa em direo de umgrande prdio no lado mais afastado.Minha acompanhante tinha cerca de doismetros e meio de altura, tendo acabado de

    chegar maturidade, mas ainda sem teratingido o mximo de sua altura. Ela era deuma cor verde-oliva claro, com couro liso elustroso. Seu nome, soube mais tarde, eraSola, e ela fazia parte da comitiva de TarsTarkas. Ela me conduziu at uma espaosacmara em um dos edifcios na frente dapraa, o que, pela confuso de sedas e pelessobre o cho, entendi ser o dormitrio devrios dos nativos.O quarto era bem iluminado por vrias janelasamplas e estava belamente decorado compinturas murais e mosaicos, mas sobre todos

    eles parecia repousar aquele indefinvel toquede antigidade que me convenceu de que osarquitetos e construtores dessas criaesassombrosas nada tinham em comum com osrudes meio brutos que agora os ocupavam.Sola indicou que eu sentasse sobre uma pilha

    de sedas prxima ao centro da sala e,virando-se, fez um peculiar som sibilante,como se sinalizasse para algum no aposentoao lado. Em resposta ao seu chamado, tiveminha primeira viso de uma nova maravilhamarciana que sacolejou sobre suas dez pernascurtas e agachou-se diante da garota como

    um filhote obediente. A coisa tinha o tamanhode um pnei shetland, mas sua cabeaostentava uma ligeira semelhana com a

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    cabea de um sapo, exceto que asmandbulas eram equipadas com trs fileirasde presas longas e afiadas.

    Captulo 05ENGANANDO MEU CO DE GUARDA

    Sola encarou os olhos perversos do bruto,murmurou uma palavra ou duas de comando,apontou para mim e saiu do aposento. Tudo

    que pude fazer foi considerar o que aquelamonstruosidade de aparncia feroz poderiafazer quando deixado a ss com um pedaorelativamente tenro de carne. Mas meus me-dos no tinham fundamento, pois a fera,depois de me inspecionar de forma intensapor um momento, cruzou a sala at a nica

    sada que levava rua e deitou-seatravessado na soleira.Essa foi minha primeira experincia com umco de guarda marciano, mas no estavadestinada a ser a ltima. Esse companheirome protegeria cuidadosamente durante o

    tempo em que permaneceria cativo entreesses homens verdes; duas vezes salvouminha vida e nunca se afastou de mimvoluntariamente por um momento sequer.Enquanto Sola estava fora, aproveitei paraexaminar mais detalhadamente o quarto noqual estava preso. As pinturas nos muraisretratavam cenas de rara e estonteantebeleza. Montanhas, rios, lagos, oceanos,

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    pradarias, rvores e flores, estradasserpenteantes, jardins beijados pelo sol -cenas que poderiam retratar vistas terrestres,exceto pela colorao da vegetao. O

    trabalho tinha evidentemente sido executadopela mo de um mestre, to sutil era aatmosfera, to perfeita a tcnica. Ainda as-sim, em nenhum lugar havia a representaode um animal vivo, homem ou bicho, pelaqual eu pudesse conjeturar a aparnciadesses outros e talvez extintos cidados deMarte.Enquanto permitia que minha imaginaocorresse amotinada em loucas conjeturassobre a possvel explicao para as estranhasanomalias que at agora tinha encontrado emMarte, Sola retornou com comida e bebida.

    Ela as depositou no cho ao meu lado e,sentando-se a uma curta distncia, meencarou atentamente. A comida consistia emquase meio quilo de alguma substncia slidacom consistncia de queijo e sem muito gos-to, enquanto o lquido era aparentemente

    leite de algum animal. No era desagradvelao paladar, embora levemente cido, e empouco tempo aprendi a valoriz-loenormemente. Ele provinha, como descobrimais tarde, no de um animal - uma vez queexistia apenas um mamfero em Marte e essemamfero era, sem dvida, bastante raro -,

    mas de uma grande planta que cresce pra-ticamente sem gua, mas parece destilar seuabundante estoque de leite a partir dos

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    produtos do solo, da umidade do ar e dosraios do sol. Uma nica planta dessa espciepode fornecer oito ou dez litros de leite pordia.

    Depois de comer senti-me bastanterevigorado, mas, sentindo a necessidade dedescansar, me estirei sobre as sedas e logodormi. Devo ter dormido vrias horas, poisestava escuro quando acordei e sentia muitofrio. Notei que algum havia jogado uma pelesobre mim, mas ela estava parcialmente malcolocada e no escuro no consegui arrum-la.Subitamente, uma mo se esticou e puxou acoberta para cima de mim, adicionando outralogo em seguida.Presumi que minha zelosa guardi fosse Sola,e no estava errado. Apenas essa garota,

    entre todos os marcianos verdes com os quaistive contato, revelou caractersticas desimpatia, gentileza e afeio. Sua ateno sminhas necessidades fsicas foi infalvel e seucuidado solcito me poupou muito sofrimentoe provaes.

    Como eu aprenderia, as noites marcianas soextremamente frias, e como praticamente noh crepsculo ou aurora, as mudanas detemperatura so sbitas e muitodesconfortveis, como as transies entre aluz do dia e a escurido. As noites so ilumi-nadas por uma luz brilhante ou so ento

    muito escuras, pois se nenhuma das duas luasde Marte calha de estar no cu, a escuridoresultante quase total, j que a falta de

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    atmosfera ou, melhor dizendo, a escassaatmosfera no consegue difundir a luz dasestrelas de forma muito ampla. Por outrolado, se ambas as luas esto no cu noite, a

    superfcie do solo vivamente iluminada.As duas luas de Marte se encontram muitomais perto do planeta do que a nossa lua estda Terra. A lua mais prxima est a cerca deoito mil quilmetros de distncia, enquanto amais afastada est a pouco mais de vinte dedois mil quilmetros de distncia, emcomparao aos mais de quatrocentos milquilmetros que nos separam da nossa lua. Alua mais prxima de Marte completa suaevoluo ao redor do planeta em pouco maisde sete horas e meia, de forma que pode servista atravessando o cu como um gigantesco

    meteoro duas ou trs vezes por noite,revelando todas as suas fases a cadapassagem pelos cus.A lua mais distante gira em torno de Marteem cerca de trinta e uma horas e quinzeminutos, e, com seu satlite irmo, torna a

    paisagem noturna uma cena de estranha eesplndida grandeza. E bom que a naturezatenha iluminado a noite marciana de formato graciosa e abundante, pois os homensverdes de Marte, sendo uma raa nmadesem grande desenvolvimento intelectual,possuem apenas meios primitivos de

    iluminao artificial, dependendoprincipalmente de tochas, um tipo de vela e

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    uma lmpada a leo que gera gs e queimasem pavio.Esse ltimo dispositivo produz uma luz brancabrilhante de longo alcance, mas como o leo

    natural exigido para aliment-la s pode serobtido atravs da minerao em um dosvrios locais remotos e longnquos, utilizadapoucas vezes por essas criaturas cujo nicopensamento o hoje e cujo dio ao trabalhomanual os tm mantido em um estadosemibrbaro por incontveis eras.Depois que Sola arrumou minhas cobertas,dormi novamente, acordando apenas quandoj era dia. Os outros ocupantes do quarto,cinco no total, eram todas mulheres e aindaestavam dormindo, amontoadas com umadiversificada gama de sedas e peles.

    Atravessado na soleira, permanecia esticadoo primitivo guardio insone, na mesmaposio em que o havia visto no dia anterior.Aparentemente, ele no havia movido ummsculo. Seus olhos estavam diretamentefixados em mim e comecei a me perguntar

    exatamente o que me aconteceria caso eutentasse fugir.Sempre estive propenso a buscar aventuras ea investigar e experimentar em situaes emque homens mais sbios teriam deixado aoacaso. Ocorria-me agora que a maneira maiscerta de descobrir qual seria exatamente a

    atitude dessa fera em relao a mim eratentar sair do aposento. Estava bastanteseguro em minha crena de que poderia

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    escapar caso fosse perseguido pelo animal seestivesse fora do prdio, pois comeava aficar bastante orgulhoso de minhashabilidades como saltador. Alm disso, pude

    deduzir, pelo comprimento diminuto de suaspernas, que o animal em questo no era umsaltador e, provavelmente, nem corredor.Assim, devagar e com cuidado, me coloqueiem p, apenas para ver se meu observadorfazia o mesmo. Cautelosamente, avancei emsua direo, descobrindo que me movendoem uma marcha arrastada era capaz deconservar meu equilbrio e fazer um pro-gresso razoavelmente rpido. Conforme meaproximei do animal, ele cautelosamente seafastou de mim e, quando cheguei ao ex-terior, ele se moveu para o lado para permitir

    minha passagem. Ele ento se postou atrsde mim e seguiu-me a uma distncia de cercade dez passos conforme eu avanava pela ruadeserta.Evidentemente sua misso era apenas meproteger, pensei, mas quando atingi o limite

    da cidade, ele subitamente pulou a minhafrente, produzindo sons estranhos e expondosuas horrendas e ferozes presas. Pensandoem me divertir um pouco s suas custas, corriem sua direo e, quando estava quase emcima dele, saltei no ar, aterrissando muitoalm e afastando-me da cidade. Ele se virou e

    disparou em minha direo com a velocidademais pavorosa que j havia visto. Haviapensado que suas pernas fossem um

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    obstculo para a rapidez, mas se ele estivessecorrendo com galgos ingleses, esses ltimosteriam parecido to lentos quando umcapacho. Como eu viria saber, esse era o

    animal mais veloz de Marte e, devido suainteligncia, lealdade e ferocidade, era usadona caa, na guerra e como protetor doshomens marcianos.Rapidamente percebi que teria dificuldade emescapar das presas da fera em um percursoreto, de modo que respondi sua disparadavoltando por onde tinha vindo e saltandosobre ele quando estava quase mealcanando. Essa manobra me deu umavantagem considervel e fui capaz de chegar cidade bastante a sua frente. Como elevinha uivando atrs de mim, pulei para uma

    janela a cerca de dez metros do cho nafrente de um dos prdios com vista para ovale.Agarrando o peitoril, me icei e sentei semolhar para o interior do edifcio e fitei para odesconsertado animal abaixo de mim. Porm

    minha exultao foi curta. Mal havia mesentado em segurana sobre o peitoril quandouma mo enorme me agarrou por trs pelopescoo e me arrastou violentamente para ointerior da sala. Ali, fui jogado de costas e viem p a minha frente uma colossal criatura-macaco, branca e sem pelos, exceto por uma

    enorme rajada de cabelos espetados sobresua cabea.

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    Captulo 06UMA LUTA QUE CONQUISTOU

    AMIGOS

    A coisa, que se parecia mais com o homemterrestre do que os marcianos que eu haviavisto, me prendeu no cho com um pgigante, enquanto matraqueava e gesticulavapara alguma criatura que respondia atrs demim. Esse outro, que evidentemente era seu

    companheiro, logo veio em nossa direo,segurando uma pesada clava de pedra com aqual evidentemente tencionava me partir acabea.As criaturas mediam entre trs e quatrometros de altura em posio ereta e tinham,como os marcianos verdes, um conjuntointermedirio de braos ou pernas a meiocaminho entre seus membros superiores einferiores. Seus olhos eram bem juntos e noprotuberantes, suas orelhas ficavam no altoda cabea, enquanto seus focinhos e denteseram assombrosamente parecidos com os de

    nossos gorilas africanos. No geral, eles noeram desagradveis quando observados emcomparao aos marcianos verdes.A clava balanou em um arco que acaboucompletando-se sobre meu rosto enquanto euolhava para cima. Foi quando um raio de

    horror cheio de pernas se jogou atravs daporta com carga total sobre o peito de meuexecutor. Com um guincho de medo, o

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    macaco que me segurava saltou pela janelaaberta, mas seu companheiro entrou em umaintensa luta mortal com meu protetor, queno era nada menos que minha fiel coisa de

    guarda. No conseguia me obrigar a chamaruma criatura to hedionda de cachorro.Fiquei em p o mais rpido que consegui e,apoiando-me contra a parede, testemunheiuma batalha que poucos seres tiveram aoportunidade de presenciar. A fora, agilidadee ferocidade cega dessas duas criaturas notm paralelos conhecidos na Terra. Minha ferateve uma vantagem em sua primeirainvestida, enterrando suas poderosas presasprofundamente no peito de seu adversrio,mas os grandes braos e patas do macaco,aliados a msculos que transcendem em

    muito os dos homens marcianos que haviavisto, havia agarrado a garganta de meuguardio e lentamente o sufocava, dobrandopara trs sua cabea e pescoo sobre seucorpo. Por um momento, esperei ver oprimeiro cair sem foras com seu pescoo

    quebrado.Ao fazer isso, o macaco estava despedaandotoda a parte frontal de seu peito, que estavapreso no aperto de alicate das poderosasmandbulas. Para a frente e para trs os doisrolavam no cho, nenhum deles emitindo umsom de medo ou dor. Naquele momento vi os

    olhos de minha fera saltarem totalmente parafora de suas rbitas e o sangue fluir de suasnarinas. Era evidente que ele estava

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    perdendo as foras, mas o mesmo ocorriacom o macaco, cujos esforosmomentaneamente diminuram.Subitamente voltei a mim e, com o estranho

    instinto que sempre parece me chamar aodever, agarrei a clava e, brandindo-a comtodas as foras de meus braos humanos,golpeei em cheio a cabea do macaco,esmagando seu crnio como se fosse a cascade um ovo.Mal eu acabara de desferir o golpe quando fuiconfrontado por um novo perigo. Ocompanheiro do macaco, recuperado de seuprimeiro choque de terror, havia voltado cena do encontro por dentro do edifcio. Eu ovislumbrei um pouco antes de ele atingir aporta e devo confessar que sua viso, agora

    rugindo ao perceber seu companheiro semvida estirado no cho, e espumando pelaboca, no auge de sua fria, me encheu deterrveis pressentimentos.Sempre estou disposto a ficar e lutar quandoas chances no esto esmagadoramente

    contra mim, mas nesse caso no antecipeinem glria nem lucro em empregar minharelativamente insignificante fora contra osmsculos de ao e a ferocidade brutal desseenfurecido habitante de um planetadesconhecido. Na realidade, o nico resultadode um encontro como esse, at onde eu podia

    prever, parecia ser a morte sbita.Eu estava em p perto da janela e sabia que,uma vez na rua, poderia ganhar a praa e a

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    segurana antes que a criatura pudesse medominar. Ao menos havia uma chance desegurana na fuga contra a morte quase certacaso eu ficasse e lutasse, no importando

    com que desespero. verdade que eu segurava a clava, mas queserventia ela teria contra quatro enormesbraos? Mesmo que eu conseguisse quebrarum deles com meu primeiro golpe, poisimaginei que o macaco tentaria repelir obasto, ele poderia me alcanar e aniquilarcom os outros antes que eu pudesse merecuperar para desferir um segundo ataque.No instante em que esses pensamentos mepassaram pela cabea eu havia me viradopara alcanar a janela, mas a viso da formade meu outrora guardio fez sumir no ar

    todos os pensamentos de fuga. Ele estavadeitado arfando sobre o piso do aposento comseus grandes olhos fincados em mim no queparecia ser um lamentvel apelo porproteo. Eu no seria capaz de suportaraquele olhar nem, pensando bem, abandonar

    meu salvador sem ao menos lutar por eletanto quanto ele havia lutado por mim.Sem mais demora, portanto, me virei paraenfrentar o ataque do enfurecido macacomacho. Ele agora estava muito perto de mimpara que a clava tivesse qualquer utilidadeefetiva; portanto, simplesmente joguei-a com

    a maior fora possvel contra seu corpanzilque avanava. 0 instrumento o atingiu logoabaixo dos joelhos, produzindo um uivo de dor

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    e fria e, assim, desequilibrando-o e fazendocom que se lanasse sobre mim com toda afora, com os braos completamente abertospara amortecer sua queda.

    Novamente, como no dia anterior, recorri atticas terrestres e, golpeando meu punhodireito com toda a fora contra seu queixo,enfiei um golpe de esquerda no fundo de seuestmago. O efeito foi maravilhoso. Depois dedar um pequeno passo para o lado, aps osegundo golpe, ele se ajoelhou e caiu no chonocauteado pela dor e resfolegando. Saltandosobre seu corpo prostrado, apanhei a clava edei cabo do monstro antes que pudesse selevantar.Quando eu desferia o golpe, uma risada baixasoou atrs de mim e, virando-me, vi Tars

    Tarkas, Sola e outros trs ou quatro em p naporta do aposento. Quando meus olhosencontraram os deles fui, pela segunda vez, odestinatrio de seus aplausos, reservadoscom tanto zelo.Minha ausncia havia sido notada por Sola ao

    acordar e ela rapidamente informou a TarsTarkas, que imediatamente saiu a minhaprocura com um punhado de guerreiros. Ao seaproximarem dos limites da cidade,testemunharam as aes do macaco machoquando este disparou na direo do edifcio,espumando de raiva.

    Eles o seguiram prontamente, pensando serpouco provvel que suas aes pudessem seruma pista de meu paradeiro, e assistiram

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    nossa breve, porm, decisiva batalha. Esseencontro, juntamente com meu ajuste decontas com o guerreiro marciano no diaanterior e meus feitos na arte do salto,

    colocaram-me em uma posio privilegiada aseus olhos. Evidentemente desprovidos detodos os nobres sentimentos de amizade,amor ou afeto, essas pessoas veneram comfervor a destreza fsica e a bravura, e nada bom o bastante para o objeto de suaadorao contanto que este mantenha sua po-sio por meio de repetidos exemplos depercia, fora e coragem.Sola, que havia acompanhado o grupo debuscas por vontade prpria, foi a nica entreos marcianos cuja face no havia secontorcido em risadas enquanto eu lutava por

    minha vida. Ela, ao contrrio, manteve-sesria com aparente solicitude e, assim que deicabo do monstro, correu para mim ecuidadosamente examinou meu corpo procura de possveis ferimentos oumachucados. Satisfeita por eu ter sado ileso,

    sorriu silenciosamente e, pegando em minhamo, comeou a caminhar na direo da portado aposento.Tars Tarkas e os outros guerreiros haviamentrado e estavam parados diante da fera -agora rapidamente recuperada - que haviasalvado minha vida e cuja vida eu, em troca,

    havia salvado. Eles pareciam perdidos emuma discusso e, finalmente, um delesdirigiu-se a mim, mas lembrando meu

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    desconhecimento de sua lngua, voltou-senovamente para Tars Tarkas que, com umapalavra e gesto, deu alguma ordem aocompanheiro e virou-se para nos seguir para

    fora.Havia algo de ameaador em suas atitudespara com a minha fera e hesitei em sair atsaber do resultado. Foi uma idia muito boa,pois o guerreiro sacou uma pistola deaparncia demonaca de seu coldre e estava aponto de dar fim criatura quando saltei paraa frente e ergui seu brao. A bala atingiu obatente de madeira da janela e explodiu,atravessando por completo a madeira e aalvenaria.Ento, me ajoelhei ao lado daquele ser deaspecto temvel e, colocando-o em p,

    gesticulei para que me seguisse. Os olharesde surpresa que minhas aes provocaramnos marcianos foram absurdos. Eles eramincapazes de entender, exceto de umamaneira dbil e infantil, atributos comogratido e compaixo. O guerreiro cuja arma

    eu havia empurrado lanou um olharinquisitivo para Tars Tarkas, mas este ltimogesticulou para que eu fosse deixado a meuprprio gosto. Assim, voltamos para a praacom minha grande fera seguindo meuscalcanhares e Sola me segurando firmementepelo brao.

    Agora eu tinha pelo menos dois amigos emMarte; uma jovem mulher que cuidava demim com solicitude maternal e uma fera

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    muda que, como mais tarde viria saber,carregava em sua feia e pobre carcaa maisamor, mais lealdade, mais gratido do que sepoderia encontrar em toda a populao de

    cinco milhes de marcianos verdes quevagavam pelas cidades desertas e pelos leitosdos mares mortos de Marte.

    Captulo 07CRIANDO FILHOS EM MARTE

    Depois de um caf da manh, que foi umarplica exata da refeio do dia anterior e umindcio de praticamente toda refeio que seseguiu enquanto estive com os homensverdes de Marte, Sola me acompanhou at apraa, onde encontrei toda a comunidade

    engajada em cuidar ou ajudar a arrear asenormes feras mastodnticas s grandescarruagens de trs rodas. Havia cerca deduzentos e cinqenta desses veculos, cadaqual puxado por um nico animal, sendo quequalquer um deles, pela aparncia, poderia

    facilmente puxar todo o comboio, mesmo quetotalmente carregado.As carruagens eram grandes, confortveis ericamente decoradas. Em cada uma estavasentada uma fmea marciana carregada deornamentos de metal, com jias, sedas epeles. Sobre os dorsos de cada uma dasbestas que puxavam as carruagens ficavaempoleirado um jovem condutor marciano.

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    Como os animais sobre os quais os guerreirosestavam montados, os pesados animais decarga no utilizavam cabresto ou sela, poiseram totalmente guiados por meios

    telepticos.Esse poder maravilhosamente desenvolvidoem todos os marcianos, sendo responsvelem grande parte pela simplicidade de seuidioma e pelas relativamente poucas palavrastrocadas, mesmo em longas conversas. alinguagem universal de Marte, por meio daqual as formas de vida mais e menosdesenvolvidas desse mundo de paradoxos socapazes de se comunicar em um grau maiorou menor, dependendo da esfera intelectualdas espcies e do desenvolvimento doindivduo.

    Conforme a procisso assumia a linha demarcha em uma fila nica, Sola me arrastoupara uma das carruagens vazias e acompa-nhamos a procisso na direo do pontoatravs do qual eu havia entrado na cidade nodia anterior. Na cabeceira da caravana caval-

    gavam algo em torno de duzentos guerreiros,cinco de cada lado, e um nmero semelhanteacompanhava a traseira, enquanto vinte ecinco ou trinta batedores nos flanqueavam emambos os lados.Todos, homens, mulheres e crianas - menoseu -, estavam pesadamente armados, e na

    traseira de cada carruagem trotava um co decaa marciano, minha prpria fera seguia deperto a nossa. Na verdade, a fiel criatura

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    nunca me abandonou voluntariamentedurante os dez anos que estive em Marte.Nosso caminho passava atravs do pequenovale antes da cidade, pelas colinas at o

    fundo do mar morto, que cruzei em minhajornada da incubadora at a praa. Aincubadora, como ficou provado, era o pontofinal de nossa jornada nesse dia e, como todaa procisso disparou em um galopeenlouquecido assim que atingiu o espaoplano do fundo do mar, logo nosso objetivoestava em nosso campo de viso.Ao atingir seu destino, as carruagens foramestacionadas com preciso militar nos quatrolados da estrutura e metade dos guerreiros,comandados pelo enorme lder, desmontou eavanou em sua direo. Pude ver Tars Tarkas

    explicando algo para o lder principal cujonome, alis, era, at onde pude traduzir parao ingls, Lorquas Ptomel, jed; sendo jed seuttulo.Logo fui informado sobre o objeto de suaconversa j que, chamando Sola, Tars Tarkas

    gesticulou para que ela me levasse at ele.Nessa ocasio, eu j havia dominado asdificuldades de andar sob condiesmarcianas e, respondendo rapidamente aoseu comando, avancei para o lado daincubadora no qual estavam os guerreiros.Ao chegar ao seu lado, um breve olhar

    mostrou-me que todos, exceto alguns poucos,haviam chocado, e a incubadora estavarealmente cheia com os pequenos e

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    horrendos demnios. Sua altura variava entrenoventa e cento e vinte centmetros, e semoviam sem descanso pela estrutura comoque procurando por comida.

    Quando parei sua frente, Tars Tarkasapontou para a incubadora e disse "sak". Vique ele queria que eu repetisse minhaapresentao do dia anterior para instruode Lorquas Ptomel e, j que devo confessarque minha proeza me proporcionou umbocado de satisfao, atendi rapidamente,saltando sobre as carruagens estacionadas nolado mais afastado da incubadora. Quandoretornei, Lorquas Ptomel rosnou algo emminha direo e, voltando-se para seusguerreiros, emitiu algumas palavras decomando relativas incubadora. Eles no

    prestaram mais ateno em mim e me foiconcedida permisso para permanecer perto eassistir s suas operaes, que consistiam emproduzir uma abertura na parede daincubadora grande o suficiente para permitira sada dos jovens marcianos.

    Em ambos os lados dessa abertura asmulheres e os marcianos mais jovens, fmease machos, formavam duas filas, slidas comoparedes, que passavam por entre ascarruagens e cobriam grande parte daplancie. Os pequenos marcianos, selvagenscomo gazelas, corriam entre essas filas

    seguindo por toda a extenso do corredor,onde eram capturados um por vez pelasmulheres e crianas mais velhas. O ltimo da

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    fila apanhava o primeiro pequeno a atingir ofinal da passagem; quem estivesse suafrente capturava o segundo e assim pordiante, at que todas as pequenas criaturas

    tivessem sado da incubadora e sido pegaspor algum jovem ou fmea. Conformepegavam as crianas, as fmeas saam da filae voltavam para suas respectivas carruagens,ao passo que aqueles que caram nas mosdos homens jovens eram posteriormenteentregues a alguma mulher.Eu vi que a cerimnia, se que poderia serdigna desse nome, estava acabada e,procurando por Sola, a encontrei em nossacarruagem com uma criaturinha horrendaapertada em seus braos.O trabalho de criar jovens marcianos verdes

    consiste apenas em ensin-los a falar e autilizar as armas de guerra que lhes soentregues desde o primeiro ano de sua vida.Sados dos ovos nos quais repousaram porcinco anos, seu perodo de incubao, davamo primeiro passo no mundo perfeitamente de-

    senvolvidos, exceto pelo tamanho. Noconheceriam suas mes, que, por sua vez,teriam dificuldade em apontar os pais comqualquer grau de preciso; eles so ascrianas da comunidade e sua educao recaisobre as fmeas que por acaso os capturaramconforme saam da incubadora.

    Suas mes adotivas no podem sequer ter umovo na incubadora, como era o caso de Sola -que ainda no havia comeado a botar -, at

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    menos de um ano antes de se tornar a meda prole de outra mulher. Mas isso poucoconta entre os marcianos verdes, j que amorentre pais e filhos lhes to desconhecido

    quanto comum entre ns. Acredito que essehorrvel sistema, que vem sendo levadoadiante h eras, a causa direta da perda detodos os sentimentos refinados e instintoshumanitrios superiores entre essas pobrescriaturas. Desde o nascimento, no conhecemo amor paternal ou maternal, no sabem osignificado da palavra lar. So ensinados quedevero suportar o sofrimento da vida at quepossam demonstrar, por meio de seu fsico eferocidade, que esto aptos a sobreviver. Aose mostrarem deformados ou imperfeitos emqualquer instncia, so imediatamente

    eliminados. E no devem derramar sequeruma lgrima pelas cruis provaes s quaissero submetidos desde a mais tenra infncia.No estou querendo dizer que os marcianosadultos sejam desnecessria ouintencionalmente cruis aos mais jovens, mas

    em sua dura e impiedosa luta pelasobrevivncia neste planeta em curso demorte, os recursos naturais se reduziram a talponto que manter qualquer vida adicionalsignifica um tributo a mais comunidade quea sustenta.Por meio de seleo cuidadosa, do suporte

    apenas aos espcimes mais preparados decada espcie e, com previso quase

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    sobrenatural, regulam a taxa de nascimentospara apenas contrabalanar as mortes.Cada fmea adulta marciana deposita cercade treze ovos por ano. Aqueles que atingem o

    tamanho, peso e que sejam aprovados emtestes especficos de gravidade, soescondidos nos recnditos de alguma grutasubterrnea onde a temperatura baixademais para a incubao. Todo ano essesovos so cuidadosamente examinados por umconselho de vinte lderes, e todos, exceto cemdos mais perfeitos, so destrudos entre aproduo de um ano inteiro. Ao final de cincoanos, foram escolhidos quinhentos ovos dosmais perfeitos entre milhares de ovosbotados. Estes, ento, so colocados emincubadoras praticamente vcuo para serem

    chocados pelos raios do sol durante outroscinco anos. A ecloso que testemunhamoshoje foi um bom exemplo desse evento.Menos de um por cento dos ovos eclode noespao de dois dias. Se os ovos atrasadoseclodiram, nada se sabe do destino desses

    pequenos. Eles no so queridos porque seusdescendentes podem herdar e transmitir atendncia de incubao prolongada e assimdesorganizar o sistema que tem se mantidopor eras, permitindo que os marcianos adultoscalculem o tempo adequado para retornarems incubadoras, com preciso de horas.

    As incubadoras so construdas nos maisremotos rinces, onde h pouca ou nenhumachance de serem descobertas por outras

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    tribos. O resultado de tal catstrofesignificaria a ausncia de crianas nacomunidade por outros cinco anos.Posteriormente eu presenciaria os resultados

    da descoberta de uma incubadora alheia.A comunidade dos marcianos verdes da qualmeu grupo fazia parte era composta por trintamil almas. Eles cruzaram uma imensaextenso de terras ridas e semi-ridas entreas latitudes oitenta e quarenta graus sul, e sedirigiram para leste e oeste por dois outrosterrenos enormes cultivados. Seu quartel-general repousa no canto sudoeste dessaregio, prximo ao cruzamento de dois doschamados canais marcianos.Como a incubadora fica localizada nolongnquo norte de seu prprio territrio, em

    uma rea supostamente desabitada e erma,tnhamos nossa frente uma tremendajornada da qual eu, obviamente, no fazia amenor idia.Aps nosso retorno cidade fantasma, passeivrios dias relativamente ocioso. No dia

    seguinte ao nosso retorno, todos os guerreiroshaviam cavalgado para longe e ainda nohaviam voltado at pouco antes do cair danoite. Como depois aprendi, eles haviam idos grutas subterrneas onde os ovos eramguardados e os haviam transportado para aincubadora - a qual eles novamente lacraram

    com novas paredes por outros cinco anos eque, com bastante probabilidade, no seriamvisitadas novamente durante esse perodo.

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    As grutas nas quais escondiam os ovos atque estivessem prontos para incubaoestavam localizadas h muitos quilmetros aosul da incubadora e seriam visitadas

    anualmente pelo conselho de vinte lderes. Oporqu de no construrem suas grutas eincubadoras perto de suas cidades sempre foium mistrio para mim e, como muitos outrosmistrios marcianos, continuaro semresposta para os costumes e o raciocnioterrqueos.As tarefas de Sola agora haviam dobrado,uma vez que estava encarregada de cuidar dojovem marciano e de mim, mas nenhum dens requeria muita ateno. Ambosestvamos praticamente no mesmo nvel deeducao quanto aos costumes marcianos e

    Sola ficou responsvel por treinar os doisjuntos.Seu prmio consistia em um macho muitoforte e fisicamente perfeito, com cerca de ummetro e trinta de altura. Ele tambm aprendiarpido e nos divertimos