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UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: DA EXCLUSÃO TOTAL À INCLUSÃO Rosiney Vaz de Melo Almeida 223 Mestranda da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão Dulceria Tartuci 224 Docente da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão Agencia de Financiamento: Fapeg Grupo de Pesquisa: Neppein RESUMO Este trabalho é parte de uma pesquisa em desenvolvimento no âmbito do Mestrado em Educação e tem como objetivo compreender os conceitos e valores ligados à pessoa com deficiência intelectual, inseridos em contextos históricos e culturais distintos. Neste intento, a metodologia utilizada, na produção desse estudo, se efetivou a partir da realização de um levantamento bibliográfico de trabalhos e autores que discutem o conceito de deficiência intelectual em uma perspectiva de superação dos estigmas que a envolvem, tendo em vista os propósitos educacionais orientados pelas diretrizes políticas respaldadas na ideologia presente nas discussões sobre a educação para todos. As reflexões apresentadas aportam-se no referencial teórico da abordagem histórico-cultural, tendo os conceitos que regem a vida das pessoas como resultados dos sentidos produzidos social e historicamente na relação semiótica do indivíduo como o meio em que vive. Portanto, a forma como a deficiência intelectual é traduzida nos dias atuais, no meio escolar, torna evidente a relações existenciais vividas entre pessoas com deficiência e sem deficiência ao longo da história constitutiva do ser humano. A partir da discussão realizada, as considerações finais apontam a demanda pela ressignificação de práticas e conceitos acerca das pessoas com deficiência intelectual, como um sujeito ativo que pode participar na construção de sua própria história de vida com autonomia e independência, com equidade de direitos. Formar uma nova consciência, acerca da deficiência intelectual, é o maior desafio da sociedade inclusiva, pois requer a superação de ideias e valores construídos historicamente por muitos anos e impregnados de preconceitos que criam barreiras para o pleno desenvolvimento do deficiente intelectual. PALAVRAS-CHAVES: Deficiência Intelectual. Exclusão. Inclusão. 223Pedagoga, aluna da 4ª turma do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Goiás-Regional de Catalão – [email protected] 224Profa. Dra. Da Universidade Federal de Goiás – [email protected] 674 III EHECO – CatalãoGO, Agosto de 2015

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UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: DA

EXCLUSÃO TOTAL À INCLUSÃO

Rosiney Vaz de Melo Almeida223 Mestranda da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão

Dulceria Tartuci224

Docente da Universidade Federal de Goiás – Regional CatalãoAgencia de Financiamento: Fapeg

Grupo de Pesquisa: NeppeinRESUMO

Este trabalho é parte de uma pesquisa em desenvolvimento no âmbito do Mestrado emEducação e tem como objetivo compreender os conceitos e valores ligados à pessoa comdeficiência intelectual, inseridos em contextos históricos e culturais distintos. Neste intento, ametodologia utilizada, na produção desse estudo, se efetivou a partir da realização de umlevantamento bibliográfico de trabalhos e autores que discutem o conceito de deficiênciaintelectual em uma perspectiva de superação dos estigmas que a envolvem, tendo em vista ospropósitos educacionais orientados pelas diretrizes políticas respaldadas na ideologia presentenas discussões sobre a educação para todos. As reflexões apresentadas aportam-se noreferencial teórico da abordagem histórico-cultural, tendo os conceitos que regem a vida daspessoas como resultados dos sentidos produzidos social e historicamente na relação semióticado indivíduo como o meio em que vive. Portanto, a forma como a deficiência intelectual étraduzida nos dias atuais, no meio escolar, torna evidente a relações existenciais vividas entrepessoas com deficiência e sem deficiência ao longo da história constitutiva do ser humano. Apartir da discussão realizada, as considerações finais apontam a demanda pela ressignificaçãode práticas e conceitos acerca das pessoas com deficiência intelectual, como um sujeito ativoque pode participar na construção de sua própria história de vida com autonomia eindependência, com equidade de direitos. Formar uma nova consciência, acerca da deficiênciaintelectual, é o maior desafio da sociedade inclusiva, pois requer a superação de ideias evalores construídos historicamente por muitos anos e impregnados de preconceitos que criambarreiras para o pleno desenvolvimento do deficiente intelectual.

PALAVRAS-CHAVES: Deficiência Intelectual. Exclusão. Inclusão.

223Pedagoga, aluna da 4ª turma do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Goiás-Regional de Catalão – [email protected]

224Profa. Dra. Da Universidade Federal de Goiás – [email protected]

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INTRODUÇÃO

Paulo Freire dizia que o caminho se faz caminhando e é desta forma que as

discussões acerca da construção do conceito de deficiência intelectual, no contexto da escola

inclusiva, se constitui neste texto frente às transformações ocorridas no campo educacional,

no que se refere a proposta de educação para todos que orienta as políticas de inclusão no

Brasil.

Nesta perspectiva, Dechichi (2008) aponta que as transformações sociais vivenciadas

no Brasil, nos últimos tempos, têm suscitado debates e polêmicas em diversos setores, dentre

os quais o educacional, e neste contexto “a escola tem sido chamada à responsabilidade no

desempenho de seu papel fundamental na formação do aluno como cidadão político e social,

que deve estar preparado para a inserção participativa em seu contexto cultural, político e

econômico” (DECHICHI, 2008, p. 161) no qual está inserido.

Os desafios vivenciados pelas escolas para atender à demanda atual do cenário

educacional brasileiro, recoberto pela diversidade de seus participantes, são muitos e

representam a fragilidade do sistema em estar preparado receber esta população na nova

realidade do ensino brasileiro permeado pela proposta da educação inclusiva. Entre os quais

encontra-se a educação de alunos com deficiência intelectual inseridos nas salas de aula

comum, no ensino regular, desafiando as escolas a buscarem caminhos e meios para

transformar o acesso destes às unidades de ensino em oportunidades de aprendizagem.

Desta forma, buscar um conceito, uma definição, para identificar uma pessoa com

deficiência intelectual, bem como o tratamento a ela designado, é uma tarefa árdua que está

imbricada dos vários significados dados ao termo ao longo da história da humanidade, e que

sofre alterações mediante as condições sócio históricas em que são produzidos tais sentidos.

Bakhtin, citado por Dias e Lopes de Oliveira (2013, 170), afirma que “toda palavra, em sua

dimensão semiótica, é um signo produtor de ideologia e como tal ultrapassa sua estrutura

significante interferindo de modo determinante na constituição semiótica da realidade”.

Portanto, o discurso que dá significado ao conceito de deficiência intelectual é perpassado

pela forma de perceber o mundo e as pessoas em um determinado espaço social e cultural e

vai definindo as formas de interação entre os indivíduos e construindo sentidos acerca do que

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considerado é normal ou anormal para uma determinada sociedade, em uma determinada

época. Porém, não se restringindo ao tempo e espaço em que foi produzido e

No intuito de construir esta historicidade vários trabalhos, pesquisas e livros foram

produzidos e podem ser consultados por todos que desejam se aprofundar na história da

deficiência intelectual, tais como Barroco (2007), Jannuzzi (2012), Mazzota (2011), Mendes

(1995), Pletsch (2014) e Dechichi (2008). Neste trabalho, pretende-se contextualizar os

diferentes sentidos atribuídos a deficiência intelectual, tendo como referência os autores

citados, e as reflexões de Vygotski(1997), no intuito de compreender os conceitos e valores

atrelados à pessoa com deficiência intelectual, inseridos em contextos históricos e culturais

distintos. Tendo em vista a visão estigmatizante que acompanha as discussões sobre o

desenvolvimento e as possibilidades de escolarização deste público alvo da educação especial.

Este tema, será abordado a partir das diferentes fases pelas quais passou a educação

especial ao longo da história da humanidade, sendo ao mesmo tempo por ela construída e

reconstruída e se manifestando na forma de exclusão total, segregação, integração e

normalização, e inclusão da pessoa com deficiência.

1. Dos Primórdios da História a Era Cristã – Fase da Exclusão Total

A história da humanidade, que antecede a era cristã, foi marcada por dois diferentes

tratamentos dado a deficiência. Um que era pautado na tolerância e aceitação manifestadas

pelos homens mais primitivos e tribos diversas em que a anormalidade era muitas vezes bem

vinda, uma vez que representava o habitar de maus espíritos e tornava possível a normalidade

dos demais, por isso, segundo Barroco (2007) as pessoas com deficiência nestes locais e

momento histórico eram intocáveis embora quem decidia sobre a continuidade da vida do

nascido na condição de deficiente fosse o pai ou a parteira.

O outro no menosprezo e extermínio do incapacitado. Esta situação, mais próxima da

conhecida civilização atual, esteve presente em diferentes momentos da história como

garantia da manutenção do padrão humano tido como aceitável em determinada cultura. Por

exemplo, em comunidades espartanas onde o culto ao corpo, ao belo, ao forte era norteador da

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concepção de homem, que deveria ser um grande guerreiro, aquele que nascia franzino, com

alguma deficiência era exterminado, jogado literalmente em um precipício, largado a própria

sorte.

Até os dias atuais, em tribos indígenas do Brasil, que conservam ritos culturais mais

primitivos, conforme reportagem exibida pelo Fantástico, na edição do dia sete de dezembro

de 2014, a prática de eliminação do recém-nascido com algum tipo de deficiência ainda

acontece em pelos menos 13 etnias indígenas do Brasil, principalmente nas tribos isoladas,

como os suruwahas, ianomâmis e kamaiurás. Cada etnia tem uma crença que leva a mãe a

matar o bebê recém-nascido, praticando o infanticídio, e neste, caso amparado pela

Constituição Federal brasileira (1988) em seu Art.215. diz:

“O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso àsfontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão dasmanifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturaspopulares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes doprocesso civilizatório nacional [...] Art. 231. São reconhecidos aos índios suaorganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos origináriossobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,proteger e fazer respeitar todos os seus bens (BRASIL, 2010, p.43;47).

Portanto, o direito a diversidade cultural é legítimo, uma vez que representa uma

forma de preservação da cultura de vida desta população. Situação, esta, que gera

controversas, pois há quem defenda o direito da preservação cultural destes povos, e quem se

posiciona contra o infanticídio por considerar esta prática ultrapassada e primitiva defendendo

a erradicação da mesma. Esta reportagem ainda mostra que

Criança com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou fruto de adultériopodem ser vistos como amaldiçoados dependendo da tribo e acabam sendoenvenenados, enterrados ou abandonados na selva. Uma tradição comum antesmesmo de o homem branco chegar por lá, mas que fica geralmente escondida nomeio da floresta. (Reportagem exibida no Fantástico em 7/12/2014).

Esta prática cultural de algumas tribos indígenas brasileiras só veio à tona, no cenário

nacional, porque aumentou as estatísticas da violência no Brasil. Neste sentido, Barroco

(2007, p. 124) afirma que “fica evidenciado que a aceitação ou não da pessoa com deficiência,

ou com males “incapacitantes” à vida relaciona-se diretamente ao modo como esta é

garantida” e por isso podem ser significadas de formas diferentes dependendo do contexto em

que se insere.

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Em várias outras civilizações, como a Grega, Ateniense, Romana a deficiência era tida

como castigo, magia, feitiçaria, glória, como forma de pedir esmola, e era acometida por

diferentes fatores que iam deste a mutilação até causas congênitas e quando não extirpada no

nascimento do indivíduo este era submetido a tratamento sub-humanos que quase sempre o

leva a morte. Nesta fase, segundo Dechichi (2008, p. 163), “ocorrida em um período anterior

ao da era cristã, as práticas de abandono ou extermínio das pessoas que tinham qualquer tipo

de deficiência eram atitudes legitimadas nas sociedades, de uma forma geral”.

Assim o tratamento dado ao deficiente estava em conformidade com o modo de

sobrevivência das diferentes sociedades e com as condições de cuidados com a vida própria

de cada época. Deste modo, até o início da Era Cristã a pessoa com deficiência foi concebida

como coisa, destituída de qualquer traço humano o que reforça, segundo Vygotski (1997), que

a deficiência é antes uma condição histórica-social que biológica.

2. Era Cristã – Fase da Segregação Social

Na fase da segregação social, iniciada na Idade Média, entre os séculos IV e XV,

conhecida como a idade das trevas, quando tudo era explicado a partir de uma concepção

transcendental, fundamentada em uma visão teológica para explicar os fatos relacionados aos

acontecimentos da vida em sociedade, a forma de visualizar a deficiência modifica-se

sutilmente.

Nesta época, a economia da sociedade era ruralista com formação de feudos, e a

sociedade estava organizada em três divisões: nobreza, clero, e servos. Neste cenário o

cristianismo é expandido e a pessoa com deficiência passa a ser tratada como filha de Deus

predominando a visão teológica, moral e supersticiosa sobre a deficiência. A deficiência

intelectual e o desenvolvimento humano eram vistos como algo pré-formado, sem qualquer

relação com o contexto social e embora não se admitisse o extermínio e a violência do

deficiente, pois estes fora elevado ao status de “humano” proveniente de Deus, os cuidados

para com ele, conforme salienta Pletsch (2009) refletiam a ambivalência entre

caridade/castigos para uns e segregação/proteção para outros. De acordo com a referida autora

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os cuidados eram oferecidos em asilos e conventos, que ofereciam alimentação e proteção.

Aos que apresentavam um comportamento considerado herege pela Igreja eram vitimados

pela Santa Inquisição para purificação de seus pecados.

Este período é caracterizado pelo atendimento em instituições assistenciais com fins

filantrópicos ou religiosos. Não se observa até aqui a preocupação com a educação destas

pessoas. O atendimento ainda estava centrado apenas na manutenção da alma do indivíduo,

sem preocupação com os aspectos biológicos ou sociais.

No final da idade Média as cidades são fortalecidas com crise dos feudos, diminui a

invasão barbara, surge a burguesia, aumenta os marginalizados e a visão teológica da

organização das relações sociais começam a ser questionadas, e uma mudança paradigmática,

com o surgimento da burguesia e que tem no iluminismo sua força vão, de acordo com

Barroco (2007) paulatinamente construindo uma cultura de defesa da humanidade da pessoa

com deficiência. É a fase da integração que se anuncia.

3. Idade Moderna e Contemporânea - Fase da Integração

Entre os séculos XIV e XVI os povos são instigados pelo florescer de uma novaforma produtiva que vai se impondo e, ao mesmo tempo, pelo renascimento nasartes e nas ciências, com a retomada dos autores e de produções clássicas. Buscava-se ou estabelecia-se, enfim, o reconhecimento do valor do “homem terreno” e da suahumanidade. Um novo homem começa, então, a ser formado[...]. Homem quecomeça a fazer “transição entre o foco” do mundo celestial ao mundo terreno; dodireito divino ao contrato social; das leis clericais de condenação da usura às leis demercado, da aura da providência e caridades divinas ao mundo do trabalhoassalariado e dominado pelas responsabilidades pessoais; dos dogmas religiosos àsregularidades da ciência, do bem ao estado de direito. (BARROCO, 2007, p. 130)

O Século XVI foi considerado um marco na educação especial, muitas descobertas

foram feitas, e a primeira escola para o ensino da criança surda acontece neste período.

Porém, o maior avanço considerado é o olhar para os indivíduos na condição de deficientes e

reconhecer a necessidade de atendê-los educacionalmente, assemelhando-se ao que ocorria

com os demais indivíduos afortunados, economicamente e fisicamente (BARROCO, 2007).

Neste novo momento histórico a concepção da deficiência ganha contornos de uma

concepção médico-científica, que vai superando a visão religiosa da deficiência e assume uma

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concepção organicista e localizacionista desta. Esta concepção foi fortemente criticada por

Vygotski (1997) , por centrar apenas no sujeito a causa de sua deficiência sem considerar as

influências que meio social tem sobre ela, uma vez que, neste período o meio era considerado

um ambiente neutro e até mesmo uma influência negativa ao desenvolvimento da pessoa com

deficiência intelectual (PLETSCH, 2009). Essa concepção da deficiência influenciou a

abertura de vários espaços destinados ao atendimento da criança que diverge da maioria, indo

dos asilos até as escolas especiais, também foco de crítica por parte de Vygotski (1997), pois

na sua compreensão elas encerram

o seu educando – a criança cega, ‘surdamuda’ o ‘retardada mental’ – em um estreitocírculo de coletividade escolar, em que cria um micromundo isolado e fechado, ondeestá acomodado e adaptado a deficiência da criança, tudo está centrado nainsuficiência física e não o introduz em uma vida autentica. Nossa escola especial,em lugar de tirar a criança de um mundo isolado, geralmente desenvolve nelahábitos que o conduzem a um isolamento ainda maior e acentuam seu separatismo(VYGOTSKI, 1997, p. 59)

Nesta fase a deficiência intelectual ainda era muito confundida com a doença mental,

e a criança que recebia o diagnóstico de retardo mental, mesmo que leve, ao ser restituída ao

espaço da educação geral trazia consigo o estigma de incapaz, produzido pelos testes de nível

cognitivo a que eram submentidas.

Embora tenha ocorrido grandes mudanças, em relação ao atendimento da pessoa

incapaz, é somente após o século XVIII, que surge a compreensão de que o deficiente poderia

conviver socialmente com pessoas ditas “normais” tendo o mesmo direito que estas. Mendes

(2006) aponta que a fase da integração, que consistia na ideia de que a criança deveria ser

educada até os limites de sua capacidade, alicerçou-se em uma base moral, em fundamentos

racionais das práticas integradoras e em uma base empírica dos achados da pesquisa

educacional. Esta fase promove uma ação de reflexão e repúdio ao ensino segregado

oferecido em instituições de ensino especial, escolas e classes sociais.

A educação ofertada nestes ambientes que reforça a visão marginalizante da criança

na condição de deficiente é fonte de análise para Vygotski (1997), pois a proposta pedagógica

destas instituições era pautada em um diagnóstico clínico, ou seja, médico-terapêutico, que

apresentava a deficiência intelectual a partir determinações puramente negativas e assim o

nível do ensino era pontuado pelo que o indivíduo não sabia fazer e desta forma era ao

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máximo reduzido, para estar no nível de desenvolvimento da criança. Este movimento pela

integração da pessoa com deficiência surgiu em decorrência de três fatores: o advento das

duas guerras mundiais, o fortalecimento do movimento pelos Direitos Humanos e o avanço

científico.

A partir do século XX a visão médica que embasava o diagnóstico sobre o

desenvolvimento da pessoa com deficiência começa a mudar e surge os testes classificatórios

da capacidade mental, o mais conhecido é a escala de Binet, também criticado por Vygotski

(1997), pois continua a centrar no sujeito a responsabilidade pela sua deficiência. Porém,

Plestch (2009) destaca que a partir de Binet, o estudo científico da deficiência intelectual

ganhou espaço, promovendo discussões entorno de aspectos que levam em consideração a

inter-relação entre aspectos biológicos, sociais e educacionais, surgindo a concepção

interacionista de desenvolvimento humano, que culmina com o movimento mundial baseado

no princípio de normalização, que tinha como base legal a obrigatoriedade do poder público

quanto à oferta de oportunidades educacionais para as pessoas com deficiência, a instituição

da matrícula compulsória nas escolas comuns e de diretrizes para a colocação em serviços

especializados segundo o princípio de restrição ou segregação mínima possível. Este

movimento dá início, na década de 1990 ao debate sobre a educação inclusiva.

4. Década de 1990: Fase Educação Inclusiva

Dechichi (2008) aponta que a Inclusão escolar surgiu contextualizada pelos eventos e

transformações sociais que vinham ocorrendo ao longo da história da educação especial,

respondendo ao anseio do meio social que sugere, diante das mudanças, a busca de novas

formas de assegurar a presença e participação na comunidade das pessoas com deficiência,

bem como a promoção de habilidades, da imagem social, da autonomia, e do empoderamento

dessas pessoas (MENDES, 2006).

Embora Vygotski (1997), embora não tenha feito parte do movimento da inclusão,

sua compreensão em relação ao ensino compartilhado entre educação especial e a educação

geral, traz luz a esta fase caracterizada pela educação inclusiva, pois ele considerava que a

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parceria entre a educação da pessoa deficiente e da pessoa sem deficiência poderia vencer a

anti-sociabilidade provocada pelo conceito negativo atribuído ao ensino nas escolas especiais

e constituído socialmente, que ainda mantem o conceito negativa acerca da deficiência. Para

ele a educação, primeiro teria uma função social para a pessoa com deficiência ou não e

colocaria em movimento o desenvolvimento estagnado, numa perspectiva dialética, pois tanto

é preciso educar o deficiente para viver e sociedade, quanto o não deficiente. Só assim seria

possível a construção de uma escola e uma sociedade inclusiva.

Nesta proposta de inclusão a conceito de deficiência intelectual foi muitas vezes

questionado, desde o princípio da normalização, em busca de um termo menos estigmatizante,

e que apontasse para as possibilidades educacionais da criança na condição de deficiente

intelectual, e superasse a perspectiva negativa que os termos anteriormente utilizados ao longo

da história da humanidade em uma tentativa de responder aos anseios de cada época como:

idiota, retardo mental, imbecil, entre outros. E assim, nos dias atuais, a deficiência intelectual,

compreendida a partir de fatores socioculturais é definida como “uma incapacidade

caracterizada por limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento

adaptativo e está expresso nas habilidades práticas, sociais, e conceituais, originando-se antes

dos dezoito anos de idade” (AAMR, 2006).

As tentativas de conceituar a deficiência intelectual representam a mudança na

ideologia da sociedade atual que busca a qualidade e a participação ativa na vida social, o

ingresso no mercado de trabalho que requer cada vez mais mão de obra qualificada, e os

movimentos em favor dos direitos sociais e de educação para todos, no qual se alicerça a

práticas voltadas para a educação inclusiva. Nesta perspectiva, a

mudança na concepção de classificação e definição da deficiência mental propostapela AAMR foi importante, ao passar de uma concepção puramente quantitativa,com base em testes psicométricos (QI), para uma concepção que valoriza o meiosocial onde se vive. Isto orienta novas práticas para o desenvolvimento das pessoascom deficiência mental, especialmente as que apresentam necessidades maisacentuadas, o que pode contribuir para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.(PLETSCH, 2009, p. 117)

A inclusão representa um avanço em relação à integração e implica em uma

reestruturação do sistema de ensino, que em vez de focalizar a deficiência da pessoa, enfatiza

o ensino, a escola e as condições de aprendizagem, bem como aos recursos e apoios que

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poderão possibilitar o sucesso escolar deste público, aponta Jannuzzi (2012) ao destacar a

visão otimista da educação como salvadora da pátria, presente nesta concepção de ensino

voltada ao atendimento educacional epecializado. Mais recentemente, mediante, diversas

reflexões a escola é colocada como mediadora na transformação da sociedade, pois a mesma é

uma estrutura organizacional social, que faz parte da sociedade. Assim em

Educação especial há a defesa da inserção e da qualidade de ensino dos deficientescomo influenciadores nesse processo de transformação social, na medida em que otorna consciente dos condicionamentos necessários à transformação social. [...]Nessa perspectiva, os recursos são enfatizados como possibilitadores daparticipação, da apreensão dos conhecimentos necessários ao tempo ao lugar, aoexercício da cidadania (idem, p. 162).

Nesta fase, em que a perspectiva da educação inclusiva, faz parte do contexto escolar

e do atual sistema de ensino, é notável a presença das considerações de Vygotski (1997) em

relação ao desenvolvimento humano da pessoa com deficiência e sua defesa em prol da

participação ativa desta minoria populacional no destino da sociedade, presente nas diretrizes

que orientam a educação especial, pois segundo ele a criança com deficiência não cria uma

espécie particular de homem e o que decide seu destino não é a deficiência em si, mas sim

suas consequências sociais, e sua realização sócio psicológico.

Assim, este breve pensar dos fatos históricos que instituíram culturalmente as

diferentes abordagens em torno da deficiência em si nada significam se não forem postos em

relação entre si e com desenvolvimento humano, a partir do contexto em que forma gerados,

permitindo que os indivíduos não se percam no tempo e no espaço. “Ignorá-los, incorre em se

abrir mão das referências da memória histórica, e termina por provocar o afastamento daquilo

que especificamente humano, isto é, a consciência do processo que leva o homem a ser o que

é” (BARROCO, 2007, p.247).

É nesta perspectiva que a deficiência intelectual é significada atualmente pela

Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimento (AADID, 2010) como a

“incapacidade caracterizada por limitações significativas no funcionamento intelectual e no

comportamento adaptativo e está expresso nas habilidades práticas, sociais e conceituais,

originando-se antes dos dezoito anos de idade”. Este conceito norteiam as diretrizes da

educação inclusiva, na atualidade, e tenta diminuir a visão estigmatizante da pessoa com

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deficiência intelectual construído historicamente e ainda muito presente na realidade da

sociedade atual e a escola representa um espaço de transformação e ressignificação da

deficiência.

Considerações Finais

Embora abordado de forma geral, espera-se que os apontamentos sobre a construção

histórica e cultural do conceito de deficiência intelectual possa colaborar com a compreensão

do processo educacional da pessoa com deficiente intelectual, haja vista que não se discute

mais se é possível a sua educabilidade, mas como se construindo no contexto da escola

inclusiva, que embora represente uma discussão relativamente nova, seu princípios estão

fundados na concepção de um novo, para uma sociedade nova, em que todos podem e tem o

direito de ser e de estar, e para isto apropriar-se dos conhecimentos culturalmente produzidos

é garantir seu processo de humanização, a sua educação.

As reflexões apontam a existência de um longo caminho a ser percorrido, pela

sociedade e pela educação, em uma proposta de inclusão, para que a pessoa deficiente seja

tratada como um sujeito ativo participar na construção de sua própria história de vida com

autonomia e independência, em equidade de direitos em relação a pessoa sem deficiência.

Formar uma nova consciência, acerca da deficiência intelectual, é o maior desafio da

sociedade inclusiva, pois requer a superação de ideias e valores construídos historicamente

por muitos anos e impregnados de preconceitos que criam barreiras para o seu pleno

desenvolvimento.

Referências

BARROCO, Sonia Mari Shima. A Educação do Novo Homem Soviético e a Psicologia de L. S. Vygotski: Implicações e Contribuições para a Psicologia e a Educação Atuais. Araraquara, 2007. p. 414.

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DECHICHI, Cláudia. Deficiência Intelectual – aspectos do atendimento educacional escolar.In: Inclusão Escolar e Educação Especial – teoria e prática na diversidade. Org.DECHICHI, Cláudia; SILVA, Lázara Cristina & Colaboradores. Uberlândia: EDUFU, 2008.

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