universidade federal de uberlÂndia raquel … · educação especial e inclusiva. ... cne conselho...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA RAQUEL MAGNÓLIA FERREIRA RANZATTI A EDUCAÇÃO INCLUSIVA NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE UBERLÂNDIA: DOS ANOS 90 À PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI UBERLÂNDIA 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

RAQUEL MAGNLIA FERREIRA RANZATTI

A EDUCAO INCLUSIVA NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE UBERLNDIA:

DOS ANOS 90 PRIMEIRA DCADA DO SCULO XXI

UBERLNDIA

2018

RAQUEL MAGNLIA FERREIRA RANZATTI

A EDUCAO INCLUSIVA NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE UBERLNDIA:

DOS ANOS 90 DO SCULO XX PRIMEIRA DCADA DO SCULO XXI

Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado

em Educao, da Universidade Federal de

Uberlndia, como exigncia para obteno do ttulo

de Mestre em Educao.

rea de Concentrao: Histria e Historiografia da

Educao.

Orientador: Prof. Dr. Mrcio Danelon.

UBERLNDIA

2018

2

RAQUEL MAGNLIA FERREIRA RANZATTI

A EDUCAO INCLUSIVA NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE UBERLNDIA:

DOS ANOS 90 PRIMEIRA DCADA DO SCULO XXI

Dissertao aprovada para a obteno do ttulo de

Mestre no Programa de Ps-Graduao em

Educao da Universidade Federal de Uberlndia

(MG) pela banca examinadora formada por:

Uberlndia, 22 de agosto de 2018.

Dedico este trabalho ao autor da minha vida, Deus, meu esposo e filhos queridos e aqueles

que acreditam que pesquisar ir alm do que est pronto e acabado.

2

AGRADECIMENTOS

Agradecer, para mim, por mais que represente uma ao de oferecer graas, um ato

de reconhecimento e de recompensa.

Reconhecimento e recompensa pela oportunidade buscada em Deus, o autor do meu

direcionamento!

Reconhecimento e recompensa por ter esposo e filhos que confiaram em mim, deram-

me amor e suporte nas horas mais delicadas dos meus desafios!

Reconhecimento e recompensa por ter familiares que acreditaram no meu desejo de

ser pesquisadora!

Reconhecimento e recompensa por ter na figura do meu orientador, Professor Dr.

Mrcio Danelon, exemplos de ateno, presteza, colaborao e carinho para comigo e para a

minha pesquisa!

Reconhecimento e recompensa por conhecer professores do PPGED que colaboraram

diretamente para o meu balizamento investigativo!

Reconhecimento e recompensa por ter colegas que estiveram durante a minha jornada

como ouvintes da expressividade oral das alegrias, anseios, angstias e aflies!

Reconhecimento e recompensa a Michel Foucault, que dialogou comigo atravs de

suas obras e me oportunizou embrenhar pela pesquisa e viv-la com fervor, numa relao de

sentimentos de raiva-amor, cansao-descanso, tristeza-alegria, desespero-vontade, apatia-

paixo, desinteresse-interesse, conhecimento-desconhecimento, alm de muitas outras formas

de viver e expressar o que tenho de to precioso que o acreditar!

Reconhecimento e recompensa pela Universidade Federal de Uberlndia, que atravs

do Programa de Ps-Graduao em Educao, novamente me acolheu e me proporcionou um

momento especial, de ser novamente aluna desta instituio!

Por fim, por causa do reconhecimento e da recompensa do que foi citado, deixo aqui

meus agradecimentos e o desejo de sempre estar em contato com a investigao.

RESUMO

Esta dissertao se ocupa com a seguinte problemtica: como se configurou a Educao

Inclusiva nas escolas municipais de Uberlndia entre os anos de 1990 at a primeira dcada

do sculo XXI? Visto que o objetivo foi o de compreender e refletir a Educao Especial na

perspectiva inclusiva, a partir da formao dos saberes e de prticas de discursos que se

constituram para atender a arte de governar neoliberal instaurada, procurou-se desenvolver o

trabalho dirigindo-se olhos observadores s entrelinhas e descontinuidades da historiografia.

Para tanto, como abordagem para nossa investigao, foi utilizada a vertente de lupa

observadora das ferramentas de Michel Foucault, tratando-se o objeto a partir das

sinuosidades que ainda no haviam sido exploradas. Escolheu-se organizar o trabalho em

sees enumeradas. Em uma primeira seo, a introduo trouxe a colaborao do memorial

de pesquisador para ilustrar como o tema instigou pesquisa e, ainda o caminho que foi

proposto para efetivar a mesma. Na seo II, Um Olhar sobre a Educao Inclusiva Luz da

filosofia de Foucault, contou-se com os escritos de Michel Foucault e pesquisadores que se

alinham ao seu pensamento para a reflexo de como a governamentalidade e a arte de

governar liberal e neoliberal se interligam norma, normalizao e proposta de Educao

Inclusiva. Na seo III, Das Prticas da Educao Inclusiva: da Excluso Incluso, de

forma descritiva apresentou-se como os discursos dos saberes produzidos socialmente para a

efetivao de algumas prticas de excluso, segregao e integrao colaboraram para que

houvesse nos anos de 1990 uma construo de discursos da Educao Inclusiva. Por fim, na

seo IV, intitulada A Educao Inclusiva no Municpio de Uberlndia: da implantao

Implementao, com alguns dos documentos orientadores das legislaes a nvel mundial,

que nortearam as polticas pblicas federal e estadual e as prticas de aes de Educao

Inclusiva no municpio, percebeu-se o quanto a trajetria dos discursos do municpio

colaboraram para que as subjetivaes que nortearam o controle dos corpos no espao escolar

acontecessem e como os sujeitos tornaram-se subjetivados e objetivados pelos saberes e

mudanas histricas das prticas discursivas e no discursivas.

Palavras-chave: Governamentalidade. Educao Especial e Inclusiva. Discurso.

ABSTRACT

In this research we bring the following problematic: how to set up the inclusive education in

municipal schools of Uberlndia: the years of 1990 to the first decade of the 21st century? As

our goal was to understand and reflect the special education in inclusive perspective from the

formation of knowledge and practices of discourses that constituted to meet recapitulated

liberal statesmanship, we seek to develop our work from eyes of observers and the

discontinuities between historiography. For this, we brought our research approach the

magnifying side observer who walks with Michel Foucault treating our object from the

sinuosidades that had not yet been explored. Choose organize work into sections listed. In a

first section, the introduction brought the memorial researcher collaboration to illustrate how

the subject in research and also instigated the way that we set out to commit the same. In

section II, "a look at the inclusive education in the light of Foucault's philosophy", we have

writings of Michel Foucault and researchers that align to your thought for reflection on how

to Work and the art of governing Liberal and Neoliberal if joining the norm, standardisation

and proposal for inclusive education. In section III "The practices of inclusive education: from

exclusion to inclusion" in descriptive form present as the discourses of knowledge produced

socially for putting some practices of exclusion, segregation and integration collaborated for

the years 90 1 construction of discourses of inclusive education. And, finally, in section IV, entitled "inclusive education in the municipality of Uberlndia

deployment implementation" with some of the guidance documents of legislation worldwide,

which guided public policy the federal and State level and the practice of Inclusive education in the municipality were able to realize how much the trajectory of the municipality

contributed to the subjetivaes that guided the control the bodies in the school space to

happen and how the subject became subjetivados and lemmatized by knowledge and

historical changes of discursive and non- discursive

Keywords: Governamentality. Special Education/Inclusive. Speech.

11

LISTA DE ILUSTRAES

Fotografia 1 Organograma do Ensino Pelas Diferenas (EPD) 85

Fotografia 2 Quadro tabela de alunos atendidos pelo EA em 1994 87

Fotografia 3 Quadro de distribuio de aulas EA 2000 89

Fotografia 4 Termo de compromisso EA 89

Fotografia 5 Relatrio de atendimentos e visitas EA 90

Fotografia 6 Ata de visita de coordenador EA 91

Fotografia 7 Termo de advertncia EA 91

Fotografia 8 Modelo de quadro com dados dos profissionais que

atuam no Atendimento Educacional Especializado

(AEE)

100

Fotografia 9 Modelo de quadro com dados dos alunos atendidos pelo

Atendimento Educacional Especializado (AEE) em

2010

101

Fotografia 10 Projeto Atendimento as Dificuldades/Desenvolvimento

da Aprendizagem (ADA) maro de 2007

103

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADA Atendimento s Dificuldades e/ou Desenvolvimento de Aprendizagem

AEE Atendimento Educacional Especializado

AH Altas Habilidades

CAS Comisso de Assuntos Sociais

CEB Cmara de Educao Bsica

CEMEPE Centro Municipal de Estudos e Projetos Julieta Diniz

CNE Conselho Nacional de Educao

DF Deficincia Fsica

DI Deficincia Intelectual

DMU Deficincia Mltipla

DV Deficincia Visual - Baixa Viso

EA Ensino Alternativo

ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

EPD Ensino Pelas Diferenas/Educao Pelas Diferenas

FUNDEB Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica

PBLEA Programa Bsico Legal Ensino Alternativo

PEAC Plano de Ensino de Acompanhamento Coletivo

PEAI Plano de Ensino de Acompanhamento Individual

INES Instituto Nacional de Educao de Surdos

MEC Ministrio da Educao

NADH Ncleo de Apoio s Diferenas Humanas

PDE Programa de Desenvolvimento Educacional

PIP Plano de Interveno Pedaggico

PS Pessoa com Surdez

S Superdotao

TDA Transtorno e Dficit de Ateno

TDAH Transtorno e Dficit de Ateno e Hiperatividade

TGD Transtorno Global de Desenvolvimento

SUMRIO

SEO I

INTRODUO.................................................................................................................

11 1.1 Delineando a pesquisa com uma lupa investigadora............................................ 15

1.2 A trajetria da investigao................................................................................... 20

SEO II

UM OLHAR SOBRE A EDUCAO INCLUSIVA LUZ DA FILOSOFIA DE

FOUCAULT......................................................................................................................

24

2.1 O discurso da Incluso e a Governamentalidade.................................................. 26

2.2 O discurso da Incluso e a Norma e Normalidade............................................... 34

SEO III

DAS PRTICAS DA EDUCAO INCLUSIVA DA EXCLUSO INCLUSO....

40

3.1 Da Prtica de Excluso, Segregao, Integrao Incluso................................. 42 SEO IV

EDUCAO INCLUSIVA NO MUNICPIO DE UBERLNDIA: DA

IMPLANTAO IMPLEMENTAO.......................................................................

71

4.1 Documentos Regulamentadores e a Educao Inclusiva...................................... 72

4.2 Documentos Regulamentadores da Educao Inclusiva no Municpio de

Uberlndia............................................................................................................

80

4.3 As Aes da Educao Inclusiva no Municpio de Uberlndia Dos anos 90 at

A Primeira Dcada do Sculo XXI...........................................................

82

4.3.1 O Projeto Ensino Pelas Diferenas (EPD) ........................................................ 83

4.3.2 O Ensino Alternativo (EA) e o Programa Bsico Legal Ensino Alternativo

(PBLEA) ........................................................................................................

86

4.3.3 O Ncleo de Apoio as Diferenas Humanas (NADH) ................................... 93

4.3.4 O Atendimento Educacional Especializado (AEE) .......................................... 96

4.3.5 O Atendimento as Dificuldades de Aprendizagem/O Atendimento ao

Desenvolvimento da Aprendizagem (ADA) ..................................................

101

4.3.6 O Plano de Interveno Pedaggico (PIP) .......................................................... 105

CONCLUSO...................................................................................................................

110

REFERNCIAS................................................................................................................

117

ANEXOS ..........................................................................................................................

127

11

SEO I - INTRODUO

Tendo-se em vista que a recordao no um mero recorte do passado, mas algo

alinhado imaginao e composio do que somos, a memria dos anos de 1990 do sculo

XX pode ser considerada como um marco das reflexes mundiais para os discursos que se

referem queles que se encontravam margem, os excludos socialmente, os que no tinham

seus direitos humanos, sua cidadania e sua participao nos diferentes espaos sociais.

Para tanto, as legislaes internacionais foram sinalizando para que as polticas

pblicas dos diferentes pases repensassem as formas de insero desses sujeitos no contexto

social. Um dos mecanismos, a Educao Inclusiva, foi proposta como um possvel caminho

para a conduo dos sujeitos.

No auge destas discusses, apresento um memorial da minha insero na rede

municipal de ensino de Uberlndia, que nos ajudar a perceber o porqu da escolha da

temtica desta pesquisa. Em meados dos anos de 1990, atuava na rede de ensino regular e

comum como professora de vinte e seis alunos, dentre eles, seis alunos considerados

deficientes estavam regularmente matriculados. poca a proposta apresentada era de

consider-los como includos nesse sistema educacional. Num primeiro momento, passei a

refletir sobre o porqu de estes sujeitos serem inseridos no contexto da escola do ensino

regular, pois at ento no havia me deparado com a situao de exercer a docncia com

alunos deficientes no contexto escolar. Curiosa sobre como seria conviver com os mesmos, j

que estavam comeando a ser percebidos socialmente, busquei estratgias para colaborar com

a relao deles e o conhecimento que lhes era ofertado no ensino regular. Deparei-me com

diversidade de discursos e propostas de aes, apresentadas pelo municpio, para que eles se

ajustassem a um padro de normalidade ao qual os demais j estavam.

Ao tomar conhecimento de que as estratgias propostas deveriam ser efetivadas no

cotidiano, passei a exercer minhas atribuies sempre observando os diferentes discursos que

eram propostos para os diferentes atendimentos do referido pblico. Aps este perodo, nos

anos 2000 e na primeira dcada do sculo XXI, passando a atuar como pedagoga e

participando de formaes ou convivendo com profissionais do meu cotidiano, aconteceu uma

situao curiosa que me desafiou a refletir sobre certa amnsia histrica.1 Parecia-me que

todos os discursos dos anos 90 do sculo XX sobre a Educao Especial e Inclusiva e as

1 Amnsia Histrica termo criado por mim ao considerar um possvel esquecimento da identidade do que

poderia ter se constitudo a histria da Educao Especial do municpio, os discursos e todos os paradigmas que

existiram na ocasio.

12

prticas constituidoras das mesmas tivessem se descontextualizado do atual momento

histrico.

Em contrapartida, tambm havia discursos reforando que o atendimento ao aluno

pblico da Educao Especial precisaria acontecer e as aes deveriam ser efetivadas para que

pessoas com deficincia fossem inseridas na escola. Alm disso, deparei-me com discursos

empregados nos documentos oficiais e no oficiais, principalmente sobre o modo de inserir os

sujeitos na Educao Inclusiva do municpio.

Compreendendo que os discursos j esto conosco desde o nosso nascimento, atravs

de suas derivaes e do mundo da linguagem, no podemos tom-los como algo que se

consolida apenas por meio de lutas ou sistemas de dominao, mas sim naquilo que queremos

lutar e nos empoderarmos constantemente. Trazendo o modo de pesquisar de Foucault sobre o

tema dos discursos2, na obra A Ordem do Discurso, ficamos instigados a estudar como os

discursos advindos das polticas propostas pelo governo interferiam diretamente para que

ocorressem modos de subjetivaes, a fim de garantir que os sujeitos da Educao Especial

fossem inseridos nas instituies escolares.

O objetivo, ao problematizar a gnese do movimento da Educao Especial no

municpio, foi o de compreender se as rupturas ocorridas foram a cada governo que se

instaurava no municpio ou se os desnveis e as instabilidades foram maneiras prprias de

determinado contexto, que foram sendo transformados em discursos para atender

necessidade da arte de governar neoliberal.

Visto que no perodo entre os idos de 1990 at a primeira dcada do sculo XXI, em

Uberlndia, a Educao Especial na perspectiva de Educao Inclusiva se instaurou como

alvo de discusses e debates atendendo ao proposto em todas as esferas - mundial, nacional,

estadual, - ficamos intrigados com a histria de como se deu a construo desta verdade e os

diferentes caminhos, nas diferentes pocas, para se chegar a ela.

Partimos da ideia de investigar como esta metamorfose discursiva3 foi se

modificando em torno da organizao no municpio e como os sujeitos foram se tornando

subjetivados e objetivados, nas instituies escolares, pelas aes que existiram. Ento,

2 Segundo MUCHAIL, Tannus; Salma. Foucault, simplesmente. So Paulo: Loyola, 2004, o termo discurso nas

obras de Foucault tomado em sua positividade como fatos , e trata-se de buscar no sua origem ou seu

sentido secreto, mas as condies de sua emergncia, as regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento,

suas mudanas, seu desaparecimento, em determinada poca, assim como as novas regras que presidem a

formao de novos discursos em outra poca (p. 11). 3 Metamorfose discursiva uma categoria empregada por mim para referir as constantes transformaes de

discursos.

13

questionamos: qual a origem da educao especial e inclusiva e sua refrao4 no municpio

de Uberlndia? Como se deu a gnese da trajetria histrica da Educao Especial no

municpio no recorte temporal dos anos 90 do sculo passado at a primeira dcada do sculo

XXI? Considerando-se que no objetivamos pensar a histria como uma simples busca do

passado, com conceitos de um tempo linear, fomos em busca das amarras, das entrelinhas e

das descontinuidades dos diferentes discursos e das prticas existentes.

Para tanto, houve necessidade de buscar suporte basilar em algumas reflexes

apresentadas nos estudos de Foucault e as categorias empregadas por esse filsofo-historiador

e suas ferramentas para as nossas reflexes sobre a Educao Especial na perspectiva de

Educao Inclusiva. Apesar do autor no abordar especificamente estudos sobre a educao

em geral e a educao especial de forma particular, os seus apontamentos nos subsidiaram

para que a pesquisa investigativa e o movimento histrico da trajetria ao qual pretende-se

tratar aqui tivesse uma conexo sobre o que vem a ser o sujeito e o controle que o cerca.

Nesse contexto, assinalam-se nos estudos de Foucault, os desdobramentos das

dimenses por ele tratados no contexto da dimenso da arqueologia, os saberes e a

constituio dos sujeitos e seus discursos, ainda a dimenso da genealogia, o governo dos

corpos, como a biopoltica, o biopoder, a arte de governar liberal e neoliberal, as

subjetivaes e a dimenso da tica, o sujeito e a subjetividade de si mesmo.

Para o problema inicialmente proposto, organizamos o trabalho nas seguintes sees:

uma primeira com a introduo e seus tpicos - o delineamento da pesquisa com uma lupa

investigadora trazendo a lente que observa os detalhes do objeto de estudo, a partir da

colaborao da maneira de investigar de Michel Foucault numa intertextualidade com os

documentos histricos utilizados nessa investigao. Contou-se tambm com a trajetria da

investigao, que possibilitou apresentar o caminho traado para o trabalho de cada seo, as

obras que contriburam para a pesquisa, como tambm os documentos legais e as

descontinuidades observadas em alguns documentos.

A seo II, intitulada Um olhar sobre a Educao Inclusiva luz da filosofia de

Foucault, com as contribuies dos escritos de Michel Foucault sobre a arte de governar

liberal e neoliberal e sua ligao com a norma e normalizao, oportunizou-nos podermos

refletir como estas categorias poderiam intervir para que repensssemos os conceitos de

Educao Especial e Inclusiva. Os estudos dos manuscritos tais como Microfsica do Poder,

4 A refrao da luz um fenmeno ptico que ocorre quando a luz sofre mudana do meio de propagao, ou

seja, do meio de incidncia para o meio de refrao, onde h variao de velocidade da propagao. Fonte:

https://www.todamateria.com.br/refracao-da-luz/. Acesso em: 10/07/2017

https://www.todamateria.com.br/refracao-da-luz/

14

Nascimento da Biopolitica, Segurana, Territrio e Populao, Os Anormais colaboraram

efetivamente para esta reflexo.

A seo III, intitulada Das Prticas da Educao Inclusiva: da Excluso Incluso,

props-se descrever como os discursos dos saberes produzidos socialmente efetivaram

algumas prticas de excluso, segregao e integrao de diferentes perodos histricos, e

quais as contribuies que tais discurso deram para a formao de novos discursos e saberes

advindos da conexo dos mesmos com a produo de prticas discursivas no contexto da

Educao Inclusiva. Para tanto foram usadas as seguintes referncias de Foucault: Os

Anormais, Microfsica do Poder e Histria da Loucura. Procurou-se fazer tambm uma

intertextualidade com Cnthia Greive Veiga e sua obra Histria da Educao, para

compreender como o contexto histrico abordado dialogava com a temtica exposta.

A seo IV, A Educao Inclusiva no Municpio de Uberlndia da implantao

Implementao, abordou alguns documentos orientadores das legislaes internacionais e

que nortearam as polticas pblicas no Brasil, mais especificamente os registros de

documentos encontrados em arquivos que abordam a Educao Especial na perspectiva da

Educao Inclusiva, no contexto municipal, para compreendermos como os sujeitos foram

sendo visualizados pela arte de governar neoliberal. Alinhado ao que foi dito, fizemos uma

reflexo sobre como as subjetivaes assinaladas nestes documentos puderam colaborar para

nortear o controle dos corpos, tambm como os seres tornaram -se subjetivados e objetivados.

Para diferenciar as legislaes, documentos que foram implantados, de outros

documentos compreendidos como aes e propostas, que foram implementados, utilizaremos

o termo implantar5 no sentido de iniciar e

promover o desenvolvimento de (algo ou de si mesmo); estabelecer(-e), fixar(-se) e o termo

implementar6 quando nos referirmos a pr em execuo, pr em prtica (plano, programa ou

projeto); realizar.

Estes termos nos ajudaram a estabelecer uma interligao do discurso empregado nos

documentos legais com as aes que nortearam a insero da Educao Inclusiva no

municpio: o pblico-alvo, o perfil dos profissionais e o campo de atuao destes documentos.

Organizamos a trajetria destes documentos da seguinte forma: os documentos mundiais e

federais e suas implantaes, os documentos municipais e suas implantaes, os documentos

municipais e suas implementaes.

5Sobre este conceito, ver dicionrio HOUAISS. In https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-

2/html/index.php#3. Acesso em: 21 jan. 2018. 6 Sobre este conceito, ver dicionrio HOUAISS. In: https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-

2/html/index.php#3. Acesso em: 21 jan. 2018.

https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#3https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#3https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#3https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-2/html/index.php#3

15

Para a culminncia de nossa pesquisa, optamos, na concluso, por trazer o que

consideramos relevante sobre a gnese da Educao Especial na perspectiva Inclusiva do

municpio.

1.1 Delineando a pesquisa com uma lupa investigadora

Sabe-se que um instrumento como a lupa tem uma grande importncia para quem

precisa utiliz-la. Enquanto instrumento ptico munido de uma lente com capacidade de

criar imagens ampliadas. utilizada para observar com mais facilidade pequenos objetos e

alguns detalhes ou superfcies. Incrementa a capacidade de observar detalhes do objeto,

aumentando a resoluo. Mas isso s possvel se o objeto que sofreu o aumento de

resoluo for colocado entre o seu foco principal (F) e o centro ptico (O).

Por caminhar numa perspectiva de pesquisa voltada para a histria da educao e

historiografia7, como algo que no pode se dar de forma nica e verdadeira, utilizamo-nos da

metfora da lupa como uma simbologia para demarcar este trabalho, propondo que a mesma

atravesse a maneira pela qual Michel Foucault se apropriou para problematizar os documentos

histricos em inter-relao com os textos aos quais dialogava. Le Goff (1996), ao fazer

referncia a Foucault, afirma que na histria o filsofo possui um lugar excepcional por trs

razes:

Primeiro, porque um dos maiores historiadores novos. Historiador da loucura, da

clnica, do mundo do crcere, da sexualidade, introduziu alguns dos novos objetos

provocadores da histria e ps em evidncia uma das grandes viragens da histria

ocidental, entre o fim da Idade Mdia e o sculo XIX: a segregao dos desviados.

Em seguida, porque fez o diagnstico mais perspicaz sobre esta renovao de

histria, em quatro pontos: o questionador dos documentos, a noo de

descontinuidade, o tema e a possibilidade de uma histria em diferentes sries,

novos mtodos: problemas metodolgicos. E, finalmente, Foucault prope uma

filosofia original da histria ligada prtica e metodologia da disciplina histrica

(LE GOFF, 1996, p. 103-104).

Ao problematizar, no definimos o objeto como algo pronto e acabado, solucionado.

Fizemos um exerccio reflexivo deixando o que poderia ser um ponto esttico para ser sempre

pensado nas diferentes situaes e contextos. Para tanto, voltamos ao conceito que Foucault

trouxe para esta maneira de pesquisar, quando afirmou que a problematizao o conjunto

7 Historiografia pode ser compreendida com o significado de registro escrito da histria. A arte de escrever e

registrar os eventos do passado. Fonte: https://www.suapesquisa.com/o_que_e/historiografia.htm . No livro

Fontes Histricas de PINSKY, Carla Bassanezi (organizadora) traz o significado de historiografia, no sculo

XIX, como comparao de documentos para reconstituir os acontecimentos passados, encadeados numa

correlao de causas e consequncias. Fins do sculo XIX, voltados para os registros da histria poltica e no

sculo XX, ampliada para outras reas e fontes de estudo (2014, p. 10-15).

https://www.suapesquisa.com/o_que_e/historiografia.htm

16

das prticas discursivas ou no discursivas que faz qualquer coisa entrar no jogo do

verdadeiro e do falso e a constitui como objeto para o pensamento. Seguindo esta proposio:

A histria do pensamento se interessa, portanto, por objetos, regras de ao ou

modos de relao de si, na medida em que ela os problematiza: ela se interroga sobre

sua forma historicamente singular e sobre a maneira pela qual eles apresentaram

numa dada poca um certo tipo de resposta a um certo tipo de problema (REVEL,

2005, p. 70).

Esta possvel definio serve para situar a histria do pensamento de forma distinta da

histria das ideias, que se volta para as representaes e comportamentos, como tambm da

histria das mentalidades, que analisa as atitudes e os esquemas de comportamento. Com o

foco na histria do pensamento, preocupamo-nos com a maneira que os problemas se

constituram, como se estruturou a Educao Especial na perspectiva de Educao Inclusiva

no municpio e quais estratgias foram criadas, alm das diversificadas respostas apresentadas

para resolver uma mesma dificuldade sobre este assunto.

Esse esforo de problematizao no quis demonstrar de maneira alguma o objeto de

estudo com verdades relativas. O que se pretendeu neste trabalho foi justamente fazer a

histria das relaes que o pensamento mantm com a verdade, a histria do pensamento,

uma vez que ela pensamento sobre a verdade (REVEL, 2005, p. 72).

Por isso o uso metafrico da lupa, pois ela perpassa o pensamento de Foucault

propondo ampliar o olhar sobre os preconceitos, sobre o que estava encoberto.

Vocs podem continuar a explicar a histria como sempre o fizeram: somente,

ateno: se observarem, com exatido, despojando os esboos, verificando que

existem mais coisas que devem ser explicadas do que vocs pensavam; existem

contornos bizarros que no eram percebidos (VEYNE, 2014, p. 252).

Em congruncia com o pensamento de Foucault, enquanto pesquisadores, fizemos o

papel de argumentadores no modo de questionar os documentos. Relativa investigao,

contamos como e quando ele quando trouxe o deslocamento8 e o descontnuo apresentados na

8 Sobre o deslocamento e descontnuo e o modo que o pesquisador sugeriu como investigativo, ler a obra A

Arqueologia do Saber de Michel Foucault. A descontinuidade era o estigma da disperso temporal que o

historiador se encarregava de suprimir da histria. Ela se tornou, agora, um dos elementos fundamentais da

anlise histrica, onde aparece com um triplo papel. Constitui, de incio, uma operao deliberada do historiador

(e no mais o que recebe involuntariamente do material que deve tratar), pois ele deve, pelo menos a ttulo de

hiptese sistemtica, distinguir os nveis possveis da anlise, os mtodos que so adequados a cada um, e as

periodizaes que lhe convm. tambm o resultado de sua descrio (e no mais o que se deve eliminar sob o

efeito de uma anlise), pois o historiador se dispe a descobrir os limites de um processo, o ponto de inflexo de

uma curva, a inverso de um movimento regulador, os limites de uma oscilao, o limiar de um funcionamento,

o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular. Ela , enfim, o conceito que o trabalho no

17

sua obra Arqueologia do Saber como referncias para a no neutralidade quando em contato

com o objeto de estudo.

Neste sentido, ao investigar os documentos, devemos trat-los de forma detalhada,

conforme o olhar de uma lupa que amplia os preconceitos, o encoberto.

Foucault no revela um discurso misterioso, diferente daquele que todos ns temos

ouvido: unicamente, ele nos convida a observarmos com exatido, o que dito. Ora,

essa observao prova que a zona do que dito apresenta preconceitos, reticencias,

salincias e reentrncias inesperadas de que os locutores no esto de maneira

nenhuma consciente (VEYNE, 2014, p. 252).

Partindo deste pensamento, o documento, de um registro inerte, passa a ser analisado

nas unidades, nos conjuntos, nas sries e nas relaes. Nisso convergimos com Veiga-Neto

(2007), quando afirma:

O que importa para Foucault ler o texto no seu volume de externalidade

(monumental) e no na sua linearidade e internalidade (documental): trata-se de uma

anlise [que toma] os discursos na dimenso de sua exterioridade. [...]isso no

significa que no temos de conhecer, pelo menos minimamente, a gramtica do texto

sob anlise. [...] preciso decifrar seus smbolos, entrar na sua lgica, conhecer sua

gramtica, para aprender os significados que entre ns e eles circulam, no momento

em que lemos tais textos (VEIGA- NETO, 2007, p. 104).

Para tanto, tivemos que trabalhar com a leitura monumental evitando o reducionismo,

o qual observamos apenas nos elementos lgicos e formais. Por outro lado, tambm no nos

restringimos apenas ao texto como algo j acabado, visvel e apreendido por aquele que o l.

Consideramos o texto menos pelo que o compe por dentro e mais pelos contatos de

superfcie que o cercam. Desse modo, a verdade sobre o objeto a ser pesquisado vai sendo

mapeada.

Alm desta busca pela verdade mapeada pela pesquisa monumental, ao pensar a

Educao Especial na perspectiva de Educao Inclusiva, temos o foco tambm nas relaes

de controle e poder9, que acontecem de forma simultnea e nas mincias.

deixa de especificar (em lugar de negligenci-lo como uma lacuna uniforme e indiferente entre duas figuras

positivas) (FOUCAULT, 2008, p. 9-10). 9 Sobre o termo poder ler a obra: em defesa da sociedade de Michel Foucault. O autor utiliza o economismo

para descrever a teoria de poder, porm, amplia o conhecimento do mesmo quando apresenta o poder da teoria

jurdica clssica, como um direito do qual se seria possuidor como de um bem, em consequncia, transferir ou

alienar, total ou parcial, mediante um ato jurdico ou um ato fundador de direito, da ordem da cesso ou do

contrato. De outra forma, o poder constitui-se numa relao de feixe com as relaes econmicas. No se d,

nem se troca, ele no manuteno e reconduo das relaes econmicas. Ele se exerce e s existe em ato,

numa relao de fora (p.17-19). No captulo IX, O sujeito e o poder da obra: genealogia da tica, subjetividade

e sexualidade, ditos e escritos, Foucault explicita como se exerce o poder. Primeiro o que se exerce sobre as

coisas e o que d a capacidade de modific-las, utiliz-las, consumi-las ou destru-las. Ele o que coloca em

jogo relaes entre os indivduos. As relaes de poder se exercem por meio da produo e da troca de signos. O

18

Como diria Foucault, para existir poder, a represso inadequada para sinalizar este

encadeamento. Portanto, quando falamos de poder temos apresentado a todo o momento ao

e reao constante.

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito simplesmente que ele

no pesa s como uma fora que diz no, mas que de fato ele permeia, produz

coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se consider-lo como

uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma

instncia negativa que tem por funo reprimir (FOUCAULT, 2017, p. 45).

Mas, ao nos remetermos tanto ao poder, quanto ao controle, estamos tratando de

situaes simultneas decorridas por discursos que esto implicados por procedimentos

externos e internos. Para compreender o sentido dos discursos, nos remetemos a Foucault e

obra Aula inaugural no College de France, em 2 de dezembro de 1970, na qual ele assinala

alguns procedimentos na produo do discurso: os procedimentos externos10, com os sistemas

de excluso, que colocam em jogo o poder e o desejo. E nele, a interdio, que no se pode

falar de tudo, no se tem o direito de dizer tudo; tambm a separao e a rejeio, nas quais os

discursos no circulam idnticos. E a oposio verdadeira e falsa, como um tipo de separao

que rege nossa vontade de saber, que tem o sistema histrico institucionalmente criado para

elucid-la. Alm destes, os procedimentos internos, que por si s j exercem o controle

atravs de textos jurdicos, religiosos e literrios, cuja funo permanece e no se cessa de

variar historicamente.

Tramitando em nossa pesquisa, os discursos no so resultados apenas de um conjunto

de palavras que representam o mundo. Antes, formam sistematicamente os objetos dos quais

se falam (FOUCAULT, 2008, p. 56). Neste sentido, importante lembrar que nos discursos

esto envolvidas prticas discursivas, enunciados e o arquivo. As prticas discursivas,

seguindo o pensamento de Veiga-Neto (2007), como sendo todo um conjunto de enunciados

que formam o substrato inteligvel para as aes, graas ao seu duplo carter de judicativo e

veridicativo.11 atravs destas aes que constitumos o mundo, compreendendo-o e falando

sobre o mesmo.

Ainda sobre o enunciado, buscou-se em Foucault (2008), uma possvel definio, pois

ele afirma que:

poder s se exerce sobre sujeitos livres, e enquanto so livres. Individuais ou coletivos que tm diante de si um

campo de possibilidade em que vrias condutas, vrias reaes e diversos modos de comportamento podem

apresentar-se (p. 126-140). 10 Para maiores esclarecimentos sobre os procedimentos internos e externos, ver a obra de Foucault, A ordem do

discurso. 11 Esta citao est no livro de VEIGA-NETO (2007) que se refere obra de FLYNN, Thomas. Foucaults

mapping of history. In: GUITTING, Gary (ed.). The Cambridge companion to Foucault. Cambridge: Cambridge

University Press.

19

Os enunciados so sempre mais raros, mais rarefeitos, do que os atos de fala

cotidianos: os enunciados no so como o ar que respiramos, uma transparncia

infinita; mas sim coisas que se transmitem e se conservam, que tm um valor, e das

quais procuramos nos apropriar, que repetimos e reproduzimos e transformamos

(FOUCAULT, 2008, p. 138-139).

Eles tornam-se raros de sentidos e so aceitos e sancionados na rede discursiva, ou

pelo contedo de verdade a que se propem, ou pela funo daquele que o praticou ou pela

instituio que o acolhe. Contudo, quando apresentamos o papel do pesquisador, a

problematizao, os discursos como uma proposta investigativa, na anlise de documentos,

no podemos desmerecer a importncia do arquivo.

O arquivo todo um conjunto de regras que, num dado perodo histrico e numa

dada sociedade, determina ou condiciona tanto aquilo que pode ser dito em termos

de seus contedos, seus limites e suas formas de se manifestar, quanto tudo o que

vale lembrar, conservar e reativar (FOUCAULT, 2008, p.147).

E assim, pode-se considerar de extrema relevncia o arquivo como um elemento para

o prolongamento da pesquisa, principalmente quando o temos como algo que no isolado,

mas como um conjunto de discursos que, num determinado momento histrico, est

sancionado pelo contedo de verdade que lhe atribudo. Mas como nos utilizamos destes

elementos do discurso em nossa pesquisa? Na trajetria da investigao trouxemos a maneira

que propusemos abordar os diferentes tipos de pesquisa e como os discursos poderiam ser

percebidos nas diferentes sees.

1.2 A trajetria da investigao

Ao tratar a pesquisa e seu delineamento nos propusemos desenhar os caminhos que

trilhamos para a nossa investigao. Atuar na instituio escolar e se deparar com certas

descontinuidades no modo de compreender historicamente a Educao Especial na

perspectiva de Educao Inclusiva no municpio, facilitou a deciso de optar por uma

investigao encaminhada para a historiografia. Entendemos que esta forma de pesquisar,

conforme j utilizada na metfora da lupa, traz um olhar especial que pina os vieses da

histria.

Para ns mais do que simplesmente descrever a histria e linearmente o que vimos

nos arquivos e registros advindos de um determinado momento histrico e,

consequentemente, buscar fontes documentais que inseridas em um espao arquitetnico se

do apenas em paredes e papis. Fomos motivados por pesquisar os detalhes que

20

movimentaram os sujeitos a vivenciarem um determinado perodo histrico e como seus

discursos e os relatos descritos no contexto escolar marcaram os registros.

Para isto, o objeto foco de nosso estudo, seguindo o perfil de historiografia nas

abordagens na seo II Um Olhar sobre a Educao Inclusiva Luz da Filosofia de

Foucault e na seo III Das Prticas da Educao Inclusiva: Da Excluso Incluso,

constou da pesquisa bibliogrfica como proposta de estudo. Fundamentada nos

conhecimentos j produzidos a respeito do tema, propusemos fazer uma releitura do tema

pesquisado utilizando-nos de fontes primrias das literaturas escritas por Foucault e algumas

categorias empregadas por este autor para subsidiar a nossa reflexo sobre como os saberes e

o poder formaram os discursos modernos e contemporneos na governamentalidade e na arte

de governar liberal e neoliberal.

Nesse contexto, utilizamo-nos de outras fontes, as secundrias, numa intertextualidade

quando estas trouxeram literaturas escritas por pesquisadores que perpassam pelas referncias

tericas de Foucault em dilogo com a Educao Especial e Inclusiva. Alm destas,

colaboraram tambm publicaes de dissertaes e teses de pesquisadores do municpio que

destacaram seus estudos voltados para a Educao Inclusiva e o emprego deste termo no

municpio.

Na seo IV, A Educao Inclusiva no Municpio de Uberlndia: da implantao

Implementao fomos a campo, trabalhando com a pesquisa documental e recorrendo a

informaes nos arquivos do Poder Legislativo: legislaes e atas que sinalizassem fatores da

Educao Inclusiva do municpio, dos anos 90 do sculo XX primeira dcada do sculo

XXI.

Na visita Cmara Municipal de Uberlndia houve a necessidade da carta de

apresentao da pesquisa para a formalizao. Assim que autorizado, o diretor administrativo

e a secretria da instituio prontificaram-se com a investigao. Houve disponibilizao de

computador e impresso dos documentos. Porm, a forma de estruturao das legislaes, as

votaes dos termos das mesmas encontravam-se no arquivo pblico municipal.

Alm disso, pesquisamos documentos internacionais e nacionais pela internet,

declaraes mundiais, que nortearam e orientaram os encaminhamentos das polticas pblicas

dos pases, tambm decretos, leis e resolues federais, que vieram a regulamentar o

funcionamento efetivo dos encaminhamentos mundiais. Por fim, analisamos os registros

legais para subsidiar as aes que estariam se exercendo no municpio, colaborando para as

observaes do recorte histrico a ser explorado.

21

Em novembro de 2016, aps autorizao da Secretaria de Educao de Uberlndia

(SME), visitamos o arquivo do Centro Municipal de Estudos e Projetos Julieta Diniz

(CEMEPE). Nele foram observados registros de dados histricos como relatrios e planilhas.

As pastas encontravam-se organizadas em caixas de arquivos, por perodos anuais e assuntos.

Tudo numa classificao que possibilitou facilidade para o manuseio dos documentos.

Como a pesquisa neste tipo de fonte demanda pacincia e tempo, foram necessrias

quatro visitas de um perodo de uma manh completa para que fosse possvel levantarmos a

documentao que nos interessava. Em uma dessas visitas, deparamo-nos com um documento

dos anos de 1990 que nos fez olh-lo com ateno. O projeto intitulado Ensino Pelas

Diferenas (EPD) caminhava, em algumas escolas municipais, concomitantemente ao

Programa Bsico Legal - Ensino Alternativo (PBLEA). Isto porque ao ingressar no servio

pblico municipal houve convivncia com ambos e estes tinham alunos da educao especial,

porm, com focos diferentes.

Para organizar a disposio dos documentos trazidos como suporte para a pesquisa,

optamos por categoriz-los da seguinte maneira: da ordem do discurso de implantao para os

documentos regulamentadores: algumas leis, decretos, resolues que trazem subsdio para as

regras, normas, para sua efetivao. Correlacionando esta definio ao conceito de

regulamentao empregado por Santos (2010), temos:

Da ordem da regulamentao, das normas disciplinares (deve ser feitos, os materiais

referentes as legislaes que trazem implcita certa obrigatoriedade, uma imposio).

So documentos oficiais que se caracterizam por formar um conjunto de disposies

governamentais que contm normas para execuo de uma lei, decreto, etc.

SANTOS, 2010, p. 33).

Citando alguns documentos e legislaes produzidos nas esferas mundial, federal e

municipal, como parte da concretude dos discursos jurdicos que vieram colaborar com a

proposta de Educao Inclusiva no municpio, temos:

Da esfera mundial, citamos:

Declarao Mundial de Educao para Todos, Jomtien, Tailndia, 1990.

Declarao de Salamanca sobre Princpios, Polticas e Prticas na rea das

Necessidades Educativas Especiais, 1994.

Decreto n 3956 de Guatemala: Eliminao de Todas as Formas de Discriminao

contra as Pessoas Portadoras de Deficincia, 2001.

22

Declarao Internacional de Montreal sobre Incluso, 2001.

Da esfera federal, citamos:

Constituio Federal, 1988.

Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), 1990.

Lei de Diretrizes e Bases LDB 9394/96.

Diretrizes nacionais para a educao especial na Educao Bsica, 2001.

Decreto legislativo n 186, de 09 /07/ 2008: aprova o texto da Conveno sobre os

Direitos das Pessoas com Deficincia.

Poltica Nacional de Educao Especial na perspectiva da Educao Inclusiva, 2008.

Resoluo n 4 de 02/10/2009: institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento

Educacional Especializado na Educao Bsica, modalidade Educao Especial.

Marcos Polticos e Legais da Educao Especial na Perspectiva de Educao

Inclusiva, 2010.

Da esfera municipal, citamos:

Lei complementar 157 de 07/11/1996: cria o ncleo de assessoria e pesquisa sobre

educao para a pessoa portadora de deficincia.

Lei complementar 186 de 28/05/1998: cria o sistema municipal de ensino, estrutura a

organizao administrativa e tcnico-pedaggica da Secretaria Municipal de

Educao.

Lei n 8376 de 20/11/2003: cria o Campus Municipal de Educao.

Decreto n 9753 de 28 de dezembro de 2004.

Lei n 432 de 19/10/2006: das Polticas Sociais Pblicas.

Lei n 10549 de 17/08/2010: dispe sobre o Campus Municipal de Educao e revoga

a lei n 8376 de 23/07/2003.

Instruo normativa n 003/2008: regulamenta normas e critrios referentes a pessoal,

utilizados pela secretaria municipal de educao a partir de 2008 (EPD).

Instruo normativa n 001/2011: dispe sobre o funcionamento da Educao Especial

na rede municipal de Uberlndia.

Lei n 10.913 de 29/09/2011: institui o Projeto de Interveno Pedaggica nas escolas

municipais de ensino fundamental de Uberlndia (PIP).

23

Alm destes, alguns documentos do municpio vieram como proposta de

implementao destes discursos regulamentadores. Neste sentido, o conjunto de relatrios,

quadros, horrios, projetos educacionais, programas educacionais, Projetos Polticos

Pedaggicos, regimentos escolares, seguem uma regulao, daquilo considerado como

execuo do que foi legislado. Nestes documentos foi possvel perceber o discurso que

conceituou a Educao Especial no municpio e a lgica inscrita de regular as condutas a

posterior, ou seja, colocar as regras do jogo em funcionamento, fazendo com que as pessoas

sejam seduzidas e conduzidas por essas regras (SANTOS, 2010, p. 34).

Da ordem de regulao/implementao no municpio, citamos:

Histrico programa bsico legal: Ensino Alternativo, 1996-2005.

Histrico NADH, 2006-2009.

Carta de Princpios da Escola Cidad 2003.

Regimento e PPPs (1990-2000) com programas e pblico-alvo da educao inclusiva.

Tabelas com pblico-alvo de atendimento da educao especial, 1990-2000.

Relatrios de registro de acompanhamento da educao especial.

Projeto de Interveno Pedaggica (PIP), 2011.

Sabemos que nem todas as legislaes e documentos foram elencados aqui. Os

selecionados foram os que mais nos despertaram ateno pela maneira que instauraram os

diferentes discursos que perpassaram os momentos histricos e a constituio de

subjetividades a partir deles.

24

SEO II - UM OLHAR SOBRE A EDUCAO INCLUSIVA LUZ DA

FILOSOFIA DE FOUCAULT

Nesta seo trazemos os seguintes questionamentos: como relacionar o pensamento de

Foucault e suas ferramentas, enquanto categorias para explicar a Educao Especial na

perspectiva de Educao Inclusiva? Se Foucault no explorou a educao e nem mesmo a

temtica da Educao Especial, por que ento abordar esse autor como referencial terico

para tratar da gnese da Educao Especial do municpio na perspectiva da Incluso, numa

abordagem da historiografia?

Primeiramente, para discorrermos sobre estes questionamentos tivemos de realizar um

exerccio reflexivo que envolveu mais que formular conceitos e verdades absolutas, fomos

buscar no vis observador de uma lupa ferramentas de Foucault que nos ajudaram a analisar

como se deram as microrrelaes e o sujeito humano no movimento das relaes de produo

e de poder do caminho externo para o interno e do interno para o externo. Essas relaes se

pronunciaram no que podemos considerar de Foucault como artes de governar.12

Mas creio que o que notvel que, a partir do sculo XVI e em todo esse perodo

que vai, grosso modo, do meado do sculo XVI ao fim do sculo XVIII, vemos

desenvolver-se, florescer toda uma considervel srie de tratados que j no se

oferecem exatamente como conselhos ao prncipe, mas que entre o conselho ao

prncipe e o tratado de cincia poltica se apresentam como artes de governar

(FOUCAULT, 2008, p. 118).

Estas artes de governar, do conselho ao prncipe, da soberania, da disciplina e da

segurana e do tratado da cincia poltica colaboraram para que se formassem os discursos

que constituem a Educao Inclusiva em 1990, da qual estamos tratando aqui. Elas trazem em

seu contexto discursos que foram se pronunciando para que houvesse o controle tanto dos

sujeitos, como dos corpos. Nada de forma isolada e desconectada, tudo numa relao de total

12 Sobre artes de governar nos remetemos obra Segurana, territrio e populao e s aulas proferidas por

Michel Foucault, em especial A aula de 1 de fevereiro de 1978. Nela Foucault trabalha com o problema do

governo no sculo XVI, o problema especfico do governo do Estado e um governo que encontra seu fim nas

coisas a dirigir, o problema da populao, fator essencial do desbloqueio da arte de governar (p. 116-146).

Veiga-Neto (2002), no captulo intitulado Coisas de governo... da obra: Imagens de Foucault e Deleuze

ressonncias nietzschianas, refere-se arte de governar baseado no modo de analisar de Foucault, como sendo o

conjunto de saberes que estatui uma racionalidade prpria, particular ao Estado que s conseguiu desbloquear-se

quando mudaram as condies econmicas e demogrficas da Europa e, por isso mesmo, articulou-se o conceito

moderno de populao e, na esteira deste, o conceito moderno de economia (p. 18).

25

envolvimento, no qual o sujeito ao mesmo tempo em que faz o controle de si, torna-se

controlado na populao pelo Estado.13

Ao fazermos um exerccio reflexivo das maneiras destas artes do Estado e trazendo

um pouco da nossa compreenso dos discursos do senso comum, vivenciados no exerccio da

nossa atividade durante o tempo que estamos no municpio, deparamo-nos com a

caracterizao da educao como um meio de transformao e, como tal, um local

proporcionador de trocas e interaes. Enquanto agente transformador, vamos assistindo a

discursos capazes de estabelecer conceitos que vo interferindo nas maneiras de agir e pensar

dos indivduos que neles se constituem. De uma forma mais erudita trazemos a citao de

Santos e Paulino (2008):

Acreditamos que est na educao, sem dvida, a principal ferramenta para a

transformao social verdadeira que tanto almejamos. Nos dias de hoje as

desigualdades sociais e o desrespeito s diferenas so banalizados em nosso

cotidiano, e a escola, sem dvida, reflete e reproduz estas relaes (SANTOS e

PAULINO, 2008, p. 11).

Diante do exposto, nesta afirmao, a educao se concretiza como transformadora

quando apresenta em suas aes o estabelecimento de elementos que estimulam propsitos de

incluso. Com o intuito de extirpar as desigualdades, como tambm as diferenas, o espao

escolar se projeta no tempo e na arquitetura que o constitui tornando a Educao Especial

como parte da instituio. E esta se efetiva nas prticas discursivas, do que o sujeito diz e nas

prticas no discursivas, do que o sujeito faz. Neste sentido, so estabelecidos para a

Educao Especial conceitos que se afirmam como verdades, com significado que vem

colaborar para as prticas no discursivas se consolidarem. Mazzotta (2011), refere-se

trajetria da Educao Especial no Brasil, trazendo o que seria uma configurao da Educao

Especial:

[...] educao especial definida como a modalidade de ensino que se caracteriza

por um conjunto de recursos e servios educacionais especiais organizados para

apoiar, suplementar e, em alguns casos, substituir os servios educacionais comuns,

de modo a garantir a educao formal dos educandos que apresentam necessidades

educacionais muito diferentes das da maioria das crianas e jovens (MAZZOTTA,

2011, p. 11).

13 Trazemos o conceito de Estado da obra de Foucault: Segurana, territrio e populao, na aula de 22 de

maro de 1978, como sendo num primeiro momento, uma arte absolutamente especfica de governar, uma arte

que tinha sua prpria razo, sua prpria racionalidade. Com o aparecimento de uma ideia reguladora de

raciocinar, calcular, enfim a poltica, que instigou o modo de pensar o poder, se concretizando em uma razo

governamental do Estado. este Estado que seguindo esta ideia, vem como princpio de inteligibilidade de uma

realidade j dada, de um conjunto institucional j estabelecido. Ele quem deve estar no fim da operao de

racionalizao da arte de governar. Quero dizer que o Estado essencialmente e antes de mais nada, a ideia

reguladora dessa forma de pensamento, dessa forma de reflexo, dessa forma de clculo, dessa forma de

interveno que se chama poltica (p. 385).

26

Enquanto modalidade de ensino, a abordagem traz intrnseca que este um caminho

para atingir o modo de ser de determinados indivduos que precisam se adequar ao grupo dos

considerados normais. Neste caso, estamos falando que a Educao Especial est diretamente

alinhada regulamentao na lei. Esta normatizao assume um papel de segurana, de

dispositivo da arte de governar neoliberal que vem a formalizar os discursos, objetivando o

sujeito e at mesmo classificando-o.

Ainda num exerccio reflexivo da nossa vivncia prtica na educao no municpio,

vivenciamos discursos que encaminham a Educao Especial apenas como um vis fora da

perspectiva da Educao Inclusiva. Ou seja, o pblico que constitui a Educao Especial deve

estar excludo do ensino regular e comum. Porm, diante deste tipo de discurso de extirpar o

sujeito do contexto geral, - isso prprio do pensamento de uma arte de governar neoliberal -,

o prprio sujeito da Educao Especial torna-se visvel, pois para haver a visualizao da sua

existncia sempre haver a projeo da incluso no emparelhamento com a excluso.

Para esta arte, no h o sujeito considerado favorvel ou desmerecido. No cenrio da

educao, os diferentes discursos voltados para a Educao Especial e sua perspectiva para a

Educao Inclusiva tornam variados os numerosos grupos impostos por um poder que se

oportuniza das microrrelaes para se efetivar. Traz em si a objetivao dos seres humanos

como sujeitos em um determinado tempo histrico, num estabelecimento de relaes de poder

que se exercem para alm de conceitos pr-determinados.

Pensar assim, remete-nos a considerar a gnese da histria da Educao Especial e

Inclusiva a partir do aspecto de que os processos de objetivao e subjetivao constituem nos

discursos individuais e coletivos o nexo social, no qual o sujeito o alvo e est

intrinsicamente relacionado ao poder. Ao invs de simplesmente partir de uma hierarquia de

poder, para justificar um conceito, compreendemos que nas relaes de poder se enrazam o

conjunto da rede social como prticas de aes governamentalizadoras. Com isso, quando as

instituies estatais utilizam a estratgia da Educao Especial e Inclusiva, mecanismos so

criados para tornar os indivduos e os sujeitos como corpos dceis e teis. Do modo de pensar

de Foucault, estamos falando de uma governamentalidade que elabora, racionaliza e centraliza

o poder.

2.1 O Discurso14 da Incluso e a Governamentalidade

14 Trazemos ainda outra forma de compreender o termo discurso a partir da obra de Foucault: A ordem do

discurso (1996) como sendo um jogo de escritura, de leitura e de troca que pem em jogo os signos (p. 46). A

produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de

27

Incluso conjunto de prticas que subjetivam os indivduos de forma que eles

passem a olhar para si e para o outro, sem necessariamente ter como referncia

fronteiras que delimitam o lugar do normal e do anormal, do includo e do excludo,

do empregado e do desempregado, etc, tambm uma condio de entendimento

das prticas educacionais diludas na populao (LOPES e HATTGE, 2009, p. 107).

Ao trazer a Educao Especial e o termo Incluso para nossa pesquisa e tentar

compreend-la na gnese do municpio de Uberlndia, vamos analisando o sujeito que agora

falamos no patamar de docilidade e utilidade do poder. Na oportunidade trazemos uma

maneira de pensar sobre o que se formou nas concepes recentes dos discursos que se

inseriram desde a modernidade. O homem que se projetava num aspecto individual passa a se

tornar sujeito numa coletividade, objetivado, recebendo uma classificao enquanto parte de

uma espcie. Neste sentido, os que fazem parte do chamado pblico da Educao Especial na

modernidade e contemporaneidade tornam-se visveis e recebem variados nomes: sindrmico,

deficiente, monstro, psicopata, surdo, cego, aleijado, rebelde, pouco inteligente. Mas, para que

servem essas classificaes?

A escola, enquanto instituio que vem como um mecanismo que acolhe delimitaes

e ao mesmo tempo articula dispositivos disciplinares e de segurana para atender a esta arte

de governar liberal e neoliberal, remete-nos ao projeto iluminista de escolarizao nico-

igualitria, universal e obrigatrio, que ao mesmo tempo em que apregoava estas categorias,

trazia intrnseca a domesticao da diferena, desigualdade e excluso.

Projetando nosso pensamento a partir do modo de pensar de Foucault (2008), vemos o

sujeito da Educao Especial na perspectiva de Incluso inserido no que o autor definiu como

governamentalidade. Este termo emprestado e nos ajuda a compreender melhor como se d

a ao de controlar os corpos. Sobre o conceito governamentalidade, o autor afirma que:

[...] governamentalidade o conjunto constitudo pelas instituies, os

procedimentos, anlises e reflexes, os clculos e tticas que permitem exercer esta

forma bem especfica, embora muito complexa, de poder que tem como alvo

principal a populao, por principal forma de saber a economia poltica e por

instrumento tcnico essencial os dispositivos de segurana.

Em segundo lugar, por governamentalidade entendo a tendncia, a linha que fora

que, em todo o Ocidente, e desde muito, para a preeminncia desse tipo de poder

que podemos chamar de governo sobre todos os outros soberania, disciplina- e

que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma srie de saberes.

Enfim, por governamentalidade, creio que deveria entender o processo, ou antes, o

resultado do processo pelo qual o Estado de justia da Idade Mdia que nos sculos

procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio,

esquivar sua pesada e terrvel materialidade (p. 8-9).

Outro autor, Baptista (2006), na obra Incluso e escolarizao- mltiplas perspectivas, utilizando-se do

embasamento em Foucault, interpreta o discurso como aquele que forma sujeitos e os objetos de que fala,

inscritos em formas regulamentadas de poder, e est sujeito a mltiplas coeres (p. 35).

28

XV e XVI se tornou o Estado Administrativo, viu-se pouco a pouco

Governamentalizado (FOUCAULT, 2008, p. 143-144).

Esta governamentalidade s se estreitou com as coisas relativas ao Estado a partir do

momento que as relaes de poder foram sendo racionalizadas e centralizadas sob a cautela

dessa instituio. Ao sair do modelo anterior, da arte de soberania e encaminhar-se para uma

cincia poltica em torno do nascimento da economia, vemos o poder ser tratado de forma

diferenciada. Ele foi se concretizando tanto no aspecto poltico, como tambm no aspecto

geral e social. Passou a ser visto enquanto prtica, exerccio multifacetado e concretude do

cotidiano. Com o foco em um alvo, um objetivo dinamizado nas relaes que tm o sujeito

vinculado s relaes sociais constantemente numa construo e desconstruo.

Porm, reafirmamos que a principal meta tornar o homem til e dcil, pelo controle

e pela dependncia, ou ligado sua prpria identidade pela dependncia ou pelo

conhecimento de si. Entendendo que neste raciocnio o poder no se estabeleceu apenas de

baixo para cima, numa linha vertical, percebemos, de acordo com Foucault, trs formas em

que se estabelecem as lutas: as que se opem dominao, as que denunciam as formas de

explorao separando o que o indivduo produz dele mesmo e, ainda, as que combatem tudo o

que liga o indivduo a ele mesmo, garantindo sua submisso aos outros.

Sabendo que estes trs movimentos se caracterizam como uma resistncia relao de

poder, em contraposio a eles v-se a governamentalidade se desenvolver, no que Foucault

apresentou como biopoder15 e biopoltica. O que antes cabia teoria clssica da arte da

soberania, em meados do sculo XVI, o direito de fazer morrer ou deixar viver como

atributo fundamental, no sculo XVII e XVIII passa a se modificar e constituir-se numa nova

abordagem, na disciplina. Aqui o problema da vida passa a ser primordial. Portanto, o direito

de fazer viver e de deixar morrer apresenta contornos bem definidos. Neste perodo, impera

o controle dos corpos, mais precisamente do corpo individual, pois eles precisam ser treinados

para atender tanto o campo do pensamento poltico como o da economia.

A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa

multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,

treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se

instala se dirige multiplicidade dos homens, no na medida em que eles se

resumem em corpos, massa na medida em que ela forma, ao contrrio, uma massa

global, afetada por processo de conjunto que so prprios da vida, que so processos

com o nascimento, a morte, a produo, a doena, etc. (FOUCAULT, 1999, p. 289).

15 Biopoder um termo empregado por Foucault na obra Segurana, territrio e populao, na aula de 11 de

janeiro de 1978, como sendo o conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que na espcie humana constitui suas

caractersticas biolgicas fundamentais far parte de uma estratgia poltica, numa estratgia geral de poder,

como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do sculo XVIII, voltaram a levar em conta o fato

biolgico fundamental de que o ser humano constitui uma espcie humana (p. 3).

29

apenas no final do sculo XVIII, no qual se acreditava ser perceptvel s tecnologias

de poder saindo do homem-corpo para o homem-espcie que vemos se instaurar uma nova

tecnologia, a da espcie sobre a vida, a biopoltica e, com ela, o controle da espcie pela

tecnologia do poder, o biopoder. Quando trazemos estes dois conceitos de forma interligada

ao sentido do pblico da Educao Especial, percebemos que os indivduos que antes estavam

na invisibilidade, a partir do sculo XVI passam a serem situados no centro das atenes e

tornam-se visveis para a arte de governar que se instaurava.

Na aula de 17 de maro de 1976, Em defesa da sociedade, Foucault traz em destaque

a relao da organizao do biopoder. Nele, discorre como tecnologias de poder sobre a vida

foram afirmando o poder disciplinar, com mecanismos de tcnicas disciplinares: sistema de

vigilncia, de hierarquias, de inspees, de escrituraes e de relatrios, nos quais o corpo

individualizado produziria resultados individualizantes, ora se estruturando numa tecnologia

regulamentar da vida, que se dava na multiplicidade dos homens, na populao, medida que

eles vo se resumindo em corpos, numa massa global, nos quais os mecanismos de controle j

no so os mesmos utilizados anteriormente, mas sim com a insero dos dispositivos de

segurana.

Isto no quer dizer que o poder disciplinar se desfez e o de segurana se comps. No

contexto de modernidade, por volta dos sculos XVII e XVIII, o que prevaleceu mais

efetivamente foi o sujeito que antes estava visualizado no individual. Mas isto no bastava,

pois havia a necessidade de garantir mais e mais indivduos. A espcie e a populao seriam o

foco principal. Para garantir a existncia deste modo de governar, concretiza-se o biopoder

como um movimento para assegurar que os corpos treinados, mesmo aqueles que antes

estavam excludos e segregados, de uma forma individualizante, tambm sejam capazes de

produzir.

Portanto, a partir do sculo XIX, disciplinar as condutas individuais das pessoas com

deficincia, dos pobres ou de outros excludos em instituies familiares e hospitais j no

bastava, necessitava-se sim de implantar um gerenciamento para a vida destes que estavam

marginalizados.16 O meio para assegurar o controle deste pblico seria a biopoltica. Nesta

trajetria de gerir a vida da populao, na qual ningum poderia estar fora do limite

estabelecido, Revel nos ajuda a compreender o emprego deste termo de Foucault:

16 Empregamos o termo marginalizado no sentido dos que se encontram margem da sociedade e no possuem

os mesmo direitos e acessos a sade, alimentao, moradia e educao que os outros.

30

O termo biopoltico a designa simplesmente a maneira pela qual o poder se

transforma entre o final do sculo XVIII e o comeo do sculo XIX, a fim de

governar no apenas os indivduos, atravs de certo nmero de procedimentos

disciplinares, mas tambm o conjunto de seres vivos constitudos em populaes [...]

(REVEL, 2006, p. 57).

Mas, para tornar a efetivao deste controle de condutas mais proeminente, outros

procedimentos diferenciados daqueles empregados no controle apenas dos sujeitos individuais

so criados. A partir do sculo XVIII so inseridos os primeiros alvos de controle dessa massa

populacional por meio de dois saberes: o da estatstica e o do controle demogrfico. Eles

colaboram para a implementao dos mapeamentos da natalidade, da morbidade, dos efeitos

dos meios, das incapacidades biolgicas. nesse contexto que acontece o surgimento dos

estudos voltados para os que apresentavam algum tipo de caracterstica considerada como

deformidade gentica.

Na sequncia, outros mecanismos regulamentadores se constituram para o controle

das cidades: a reestruturao espacial, a arquitetura das mesmas e a valorizao da medicina.

Os estudos e a criao de legislaes que regulamentariam construes de locais de

atendimento s pessoas com deficincia, como tambm a constituio dos saberes da

medicina e as possibilidades de classificaes desta populao trouxeram a norma que vai

circulando entre o disciplinar e o regulamentador como complementar regra jurdica

aplicada tanto ao indivduo quanto populao.

Nesta relao de biopoder e biopoltica importante destaque se d tambm ao papel do

Estado e de sua gnese. Nas prticas de governamentalidade, das quais Foucault assinala, a

populao o objeto. Ela pode ser compreendida como um corpo mltiplo, de inmeras

cabeas que tm tantos problemas polticos, como problemas cientficos e biolgicos. Para

lidar com ela vem a economia como o saber mais importante e os dispositivos de segurana

como controle e mecanismos17 bsicos da biopoltica. Para ilustrar, citamos: mapeamento de

fenmenos da natalidade e morbidade, dos acidentes, controle das endemias e das anomalias.

disso que a biopoltica vai extrair e definir o seu campo de poder.

Neste movimento, alguns mecanismos foram considerados estratgicos nas anlises de

Foucault em sua obra: segurana, territrio e populao. Em sobreposio ao modelo

arcaico18, da pastoral crist, se efetivam os dispositivos para controlar os corpos atravs do

17 Na aula de 11 de janeiro de 1978, Segurana, territrio e populao, o termo mecanismo apresenta-se alinhado

ao poder. Ele exposto como sendo um conjunto e procedimentos, que tem como funo o papel de manter o

poder (p. 4-5). 18 Sobre a ideia do governo dos homens e da sobreposio das artes de governar, ver a obra de Foucault (2008):

Segurana, territrio e populao e Aula de 8 de fevereiro de 1978.

31

diplomtico-militar, das tticas de guerra e da insero da polcia19, enquanto Artes de

Governar.

Compreendendo-se que em todos os momentos histricos destacados pelo estudioso

existiram procedimentos para governar, com estes foram surgindo adaptaes para as

adequaes das distintas artes de governar de cada perodo. De maneira explicativa, a pastoral

das almas, em que o governo poltico especificamente se configurava nos homens, constitui-

se na primeira arte de governar no perodo da Idade Clssica, que representada pela Razo

de Estado.

Encaminhando-se para o advento do liberalismo, a prxima arte de governar foi se

instaurando no sculo XVIII e aps o conflito das guerras mundiais, foi se firmando uma

terceira, num contexto contemporneo, o neoliberalismo.

Na primeira arte de governar, o Estado assumiu um papel de existir, porm efetivando-

se sorrateiramente, j a razo de Estado tornava-se uma prtica, apresentada como um dado

que foi se construindo e edificando-se at tornar o Estado slido e permanente. Para no ser

destituda, esta arte de governar, estabeleceu regras, normas e racionalizao na maneira de

agir. O governante, que atuava de forma soberana, respeitando as leis divinas, morais, naturais

no assegurava em nenhum momento o zelo pelos seus sditos. E aqui, a pessoa com

deficincia nem era percebida como indivduo ou sujeito de uma espcie. Ela estava

margem de uma sociedade que se limitava extenso de pequenos vilarejos e colnias.

Durante a modernidade, ainda em busca de um movimento de manuteno do

equilbrio entre os Estados soberanos e para garantir a manuteno da pluralidade dos

Estados, o mercantilismo se instaura - para alm de doutrina econmica - como uma maneira

de organizao da produo e dos circuitos comerciais, a polcia cuida do controle dos sditos

ininterruptamente e o aparelho diplomtico-militar como mantenedor desta harmonia.

Visto que se tratavam de limitaes externas, os Estados foram em alguns momentos

perdendo os seus direitos como legitimados. Neste ponto vo se estabelecendo novos

momentos de adaptaes e surgem novas formas de configuraes desses Estados. No pice

de limitao interna da arte de governar soberana, uma segunda arte de governar foi se

estabelecendo e, junto a esta regulao interna de racionalidade governamental, comea a se

instaurar o liberalismo.

Datado em meados do sculo XVIII, o liberalismo se garantiu a partir de cinco

aspectos complementares. O primeiro referia-se ao direito das fronteiras. Se anteriormente o

19 Sobre estes conjuntos tecnolgicos ver a obra de Foucault Segurana, territrio e populao nas aulas de 22

de maro de 1978, 29 de maro de 1978 e 05 de abril de 1978.

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pas era destitudo de seus direitos caso violasse algum acordo, nesta ocasio no ficava como

ilegtimo. Num segundo aspecto deveria seguir um traado uniforme em relao aos outros

pases. Um terceiro aspecto referia-se a respeitar os limites de direitos da natureza prescritos

por Deus, segundo os interesses da razo governamental. No quarto aspecto, a demarcao do

que vinha ser conveniente a cada sdito fazer ou no. E, por ltimo, a deciso geral de

governar os homens.

Neste momento da arte de governar importante papel deu-se aos fisiocratas que, para

atenderem o controle proposto por esta arte de governar, direcionavam os ditames do que se

deveria demarcar como verdadeiro ou no. A governamentalidade neste caso ditaria o que

seria feito, ocupando-se minimamente com o interesse de todos. O interesse permitido para

uma minoria, porm todos devem ser teis lgica desta razo de Estado mnimo.

Portanto, o mercado passou a ser o lugar de trocas, o poder pblico indexou-se a um

princpio de utilidade e os Estados tornaram-se equilbrios internacionais a partir da liberdade

de mercado, no qual o preo o natural, o enriquecimento tornar-se-ia mtuo, no caso dos

proveitos recprocos e correlatados, em blocos. Seguindo este modelo europeu que foi

inserido, surgiram as chamadas consequncias que se estabeleceram como cultura poltica do

perigo, no sculo XIX, por exemplo campanhas de doena e higiene, da sexualidade, medo da

degenerao do indivduo e da famlia. Aqueles indivduos que estavam apagados e

margem, passam a ter visualidade e a assumirem um papel que no poderia incorrer em perigo

para a sociedade.

A doena mental aqui passa a ser enfatizada e os loucos, os deficientes e todos os

indivduos que traziam riscos e medo populao precisavam ser destacados, percebidos para

serem controlados. Neste sentido, as instituies, enquanto local de confinamento disciplinar,

atenderam a este pblico assumindo um papel de relevncia para o governo e autogoverno dos

indivduos. A escola, seguindo este pensamento, personificou-se como espao de aplicao de

estratgias e tticas para a afirmao desta arte tanto na forma individualizante, como no

controle dos sujeitos que se inserem nela.

Com o avano e modulao do liberalismo, consequncias foram relacionadas

extenso e amplificao desta arte de governar: o controle, a coero e a presso sobre os

indivduos e suas particularidades eram insuficientes. O ponto de saturao que garantiria que

os mecanismos produzissem a liberdade trouxe uma potencializao desta maneira de gerir

os corpos para um problema de ordem econmica, chamado de crise do liberalismo e

capitalismo. Este pice foi se reestruturando numa nova verso de anlise.

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Uma nova configurao de governamentalidade estruturou-se inicialmente por meio

de americanos e alemes, uma nova arte de governar, a neoliberal, analisada e compreendida

entre os anos 30 a 60 do sculo XX. A questo central desta era a de resolver as crises

apontadas pelo liberalismo clssico e o favorecimento das liberdades intervencionistas. A

liberdade destacada como controle tinha como principal balizamento o conflito entre naes e

passava por situaes de ameaas ou intervenes tmidas.

Com o ps-guerra mundial, a Alemanha precisava se restabelecer enquanto pas. No

pensamento dos ordoliberais alemes, os monoplios deveriam ser elevados como caminhos

para interferir na concorrncia. Para eles, o que valeria era a concorrncia livre e inteira como

forma organizadora do mercado. J as aes aconteceriam de duas maneiras: (1) com aes

reguladoras de estabilidade de preos para o controle de inflao, poltica de crdito, criao

de taxas de desconto, comrcio exterior para reduo de saldo e, ainda, (2) com aes

ordenadoras, com o mercado enquanto regulador econmico que se utilizaria de uma

moldura para modificar as bases materiais, culturais, tcnicas, jurdicas.

A poltica social, enquanto redistribuio de renda e bem-estar comum, no seria

utilizada por eles como contrapeso, mas as desigualdades na poltica social privatizada

serviriam para a concretude de equilbrio. Como exemplos: os salrios altos e salrios baixos,

preos altos e baixos servem para ilustrar este pensamento.

No caso norte-americano, o neoliberalismo se configurou por trs principais

elementos: a poltica keynesiana desenvolvida a partir de 1933-1934; os pactos sociais de

guerra; os projetos de intervencionismo social nos quais solicitavam s pessoas que dessem

suas vidas para formar a estabilizao e a organizao econmica do pas e a criao dos

programas sobre a pobreza, a educao e a segregao.

Dentro desta concepo, consolida-se a composio: a teoria do capital humano, o

clculo econmico e a gesto da vida. O interesse no capital humano percebido na insero da

anlise econmica num aspecto no inexplorado, como tambm na relao desta para atender

a anlise econmica.

Consequentemente, a competncia do trabalhador seguindo esta lgica se daria na

garantia de sua utilidade para atender ao mercado e a competncia do mesmo no estaria

dissociada de sua renda. O homem, fruto desta arte produzindo algo que vai ser a sua prpria

satisfao de consumo, torna-se percebido como consumidor e produtor.

Portanto, com vistas a atender esta governamentalidade neoliberal so inseridos alguns

mecanismos: as instituies de sade, as instituies que cuidam da higiene pblica, a criao

de vacinas, a institucionalizao de leis por exemplo, aquelas criadas para o atendimento de

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pessoas com deficincia e instituies escolares e suas adaptaes, como garantia para que a

lgica de novas tecnologias de governo de sujeio e subjetivao se efetivassem.

Nesta configurao, critrios se estabelecem para que os indivduos em dispositivos

disciplinares e os sujeitos em dispositivos de segurana se enquadrem em uma ordem de

norma e normalidade que desde o perodo anterior modernidade j se alicerava no interior

do discurso do cdigo jurdico-legal, que de forma normativa estabelecia as penalidades

queles que no se enquadrassem no padro proposto. Mas, como observar esta norma e

normalizao para aqueles que deixaram de ser considerados beiral20 da Incluso?

2.2 O discurso da Incluso e a Norma e a Normalidade

Ao iniciar esta abordagem importante ressaltar que segundo Foucault (1999):

A arte de punir, no regime do poder disciplinar, no visa nem a expiao, nem

mesmo exatamente a represso. Pe em funcionamento cinco operaes bem

distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um

conjunto, que ao mesmo tempo campo de comparao, espao e diferenciao e

princpio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivduos em relao uns aos outros

e em funo dessa regra de conjunto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar

em termos de valores as capacidades, o nvel, a natureza dos indivduos. Enfim

traar o limite que definir a diferena em relao a todas as diferenas, a fronteira

externa do anormal (a classe vergonhosa da Escola Militar). A penalidade perptua

que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituies

disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeneiza, exclui. Em uma

palavra, ela normaliza (FOUCAULT, 1999, p. 152-153).

Este fragmento do texto de Vigiar e Punir de Foucault nos d subsdio para traar

reflexes a respeito do questionamento que fizemos ao finalizar o tpico anterior: como

observar a norma e a normalizao para aqueles que deixaram de ser considerados beiral da

Incluso?

Alguns termos apresentados por Foucault, tais como: desempenho, comportamento,

diferena, comparao, princpios e regras nos fazem pensar sobre como as artes de governar

apresentadas no tpico anterior nos remeteram a elaborar mecanismos de conteno atravs

das normalidades. Temos do pensamento do filsofo um vis para considerar a efetivao das

diferenas num sentido de que elas no podem fugir do controle do proposto pela

governamentalidade neoliberal.

20 O termo beiral foi empregado como uma metfora para explicar os que so marginalizados, os que ficam na

parte mais distante. Tomamos este termo da engenharia ou da construo civil que o utiliza com o significado de

uma parte da extremidade mais baixa de uma gua do telhado ou simplesmente a beira do telhado.