uma nova edição de confissões de minas, de carlos drummond de andrade
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Tradutor, ensaísta e crítico literário, o inglês John Gledson é profundo conhecedor da literatura brasileira. Seus estudos sobre Machado de Assis são referência no mundo inteiro, assim como seu olhar sobre a obra de Drummond. O livro “Poesia e Poética de Carlos Drummond de Andrade” (Duas Cidades, 1981) trouxe uma leitura original para os poemas do mestre de Itabira. Entre seus escritos sobre o poeta, selecionamos um bem recente, que comenta o livro “Confissões de Minas”, que a Cosac Naify acaba de lançar, juntamente com “Passeios na Ilha”.TRANSCRIPT
Uma nova edição de Confissões de Minas, de
Carlos Drummond de Andrade
Por John Gledson
Confissões de Minas é a primeira coletânea de prosa que Drummond publicou;
apareceu em 1944, pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado
Novo. Agora, foi republicada na sua forma original, pela primeira vez desde 1944:
sempre apareceu como parte da Obra completa da Editora Nova Aguilar, mas foi
sofrendo vários cortes, alguns sancionados pelo próprio poeta, que já no começo
removeu duas narrativas para Contos de aprendiz. A mais recente Prosa seleta
omite vários ítens, entre eles uma seção inteira, “Caderno de notas”. Esta nova e
benvindíssima edição vem acompanhada de quatro resenhas do tempo, de
Antonio Candido, Sérgio Milliet, Lauro Escorel e Mário da Silva Brito – todas de
uma qualidade invejável, mostrando o enorme respeito que se tinha pelo poeta já,
antes da publicação de A rosa do povo. Há também dois ensaios críticos, de
João Adolfo Hansen e Milton Ohata, e 23 páginas de material bibliográfico,
sobretudo sobre a história da publicação das múltiplas peças de que o livro se
compõe. O livro é um avanço esplêndido no nosso conhecimento e
compreensão do poeta, cuja prosa – “a linguagem de todos os instantes”, como
ele mesmo diz – fica à altura de qualquer prosa da época (ou de outras épocas),
fato sublinhado já por Antonio Candido no seu ensaio.
Para mim, a releitura foi um reencontro com um velho amigo, mas com a
(possível) vantagem de uma distância maior, a esperança de entender melhor, e o
fascínio de velhos problemas, que podem, quem sabe, encontrar novas soluções.
Drummond seria o primeiro a questionar meu entusiasmo, com a consciência
profunda que tinha das perdas e ganhos que o tempo traz – “amar, depois de
perder” – e a sua insistência, já em 1944, que “Hoje não escreveria quase nada
do que aí se contém”. Mas, sobretudo, podemos entender melhor o processo de
composição do livro, feito de ensaios, “quase histórias”, e apontamentos
publicados aqui e ali, em Minas e no Rio de Janeiro, entre 1925 e 1944, e assim
compreender melhor o “tempo” que, o poeta insiste, é ou deve ser a substância
do livro. Confrontando a crescente descrença dos leitores numa literatura “que
se faz à margem do tempo ou contra ele – seja por incapacidade de apreensão,
covardia ou cálculo”, a voz do poeta será precária – “sou eu, o poeta precário /
que fez de Fulana um mito” – mas por isso mesmo é (e continua sendo) viva.
Confissões de Minas contém dois ensaios que são, sem dúvida, a melhor
introdução ao poeta e à sua poesia. São opostos diametrais. Primeiro, “Suas
cartas” (publicado em duas partes em 1944 na Folha Carioca), o artigo
extraordinário sobre a correspondência de Mário de Andrade com Drummond
nos anos 20, com as suas citações generosas das próprias cartas, na época
completamente desconhecidas. Imagina-se o efeito que deve ter tido, sobretudo
depois do “terrível exame de consciência que foi a conferência [de Mário] sobre
o movimento modernista”, em 1942. Tenho até a impressão que o artigo talvez
seja uma espécie de resposta a essa “insatisfação por não ter feito tudo e até
mais que do que tudo”: quase uma retificação histórica. Agora, nosso
conhecimento aumentou. Podemos ler, por exemplo, a comovida reação do
próprio Mário – “Vibrei tanto que fiquei impossibilitado muito tempo de qualquer
espécie de atividade, até ler” – na edição que Drummond fez das cartas, A lição
do amigo, e em Carlos e Mário, a edição da correspondência de ambos, editado
e fartamente anotado por Silviano Santiago.
Seu oposto polar talvez seja “Vila de utopia”, publicado em Belo Horizonte em
1933. É o primeiro encontro pleno com Itabira-do-Mato-Dentro, com a lembrança
da cidade natal. É, já, nitidamente, um encontro com uma perda: “Haverá uma
terceira e diversa Itabira? Meu Deus, como me doeria responder sim à pergunta,
e confessar que em 1933 o antigo menino da Rua Municipal foi encontrar a sua
cidade habitada por um pelotão de velhos, que nada poderiam dizer, e por um
exército de rapazes e meninas, para os quais não tinha nenhuma mensagem.”
Isto em 1933: o artigo foi escrito para celebrar o centenário da elevação da
cidade a vila. Devo confessar que quando primeiro li o artigo, há muitos anos,
quase nem notei o detalhe, subjugado pela visão da cidade “utópica”, emperrado
no tempo: “a cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica.” É um efeito
que o artigo procura, mas já com uma profunda ironia. Está cheio da tensão entre
passado, presente, e, sobretudo, futuro – o futuro que traria, nas palavras de “A
montanha pulverizada”, de Menino antigo (1973), o “trem-monstro de 5
locomotivas / -- o trem maior do mundo, tomem nota”, e o desaparecimento total
da montanha enorme e “eterna”, o Pico do Cauê, toda feita de hematita pura, e
que agora é um enorme buraco na terra. No livro, Drummond informa, numa nota
brevíssima, meramente fatual, que o artigo é de 1933. Não era para menos: em
1944, a Companhia do Vale do Rio Doce já fora fundada, e Itabira era o foco de
uma polêmica acerca da exploração das jazidas minerais nacionais, no contexto
da Guerra, e dos Acordos de Washington. “Confidência do itabirano” – “Itabira é
apenas um retrato na parede / mas como dói!” – foi publicado pela primeira vez
em 1939, num cenário completamente mudado; não há leitura possível deste
famoso poema sem conhecimento do novo simbolismo da cidade. “Vila de
utopia”, seis anos antes, já explorava esta paisagem da perda: “eu também sou
filho da mineração, e tenho os olhos vacilantes quando saio da escura galeria
para o dia claro.”
Entre “Vila de utopia” e “Suas cartas”, 1933 e 1944, o mundo mudou. No
prefácio (sem título), Drummond distorce ligeiramente os fatos para sublinhar a
natureza da mudança – “Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato
(derrotado) a presidente de república e termina em 1943, com o mundo
submetido a um processo de transformação pelo fogo” (duas das peças do livro
datam dos anos 20); mas, “nesta fase integralmente política da humanidade”
(frase de “Suas cartas”), é um desliz perdoável, e provavelmente intencional.
Confissões de Minas acompanha a mudança mais radical da carreira do poeta:
de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, de funcionário estadual a alto
funcionário federal, de um cinismo autocrítico e angustiado ao engajamento e ao
entusiasmo políticos, da fama local à fama autenticamente nacional – em suma,
de Brejo das Almas, de 1934, a Sentimento do mundo, de 1940, e José, de
1942, já numa edição de toda a sua poesia, publicada pela José Olympio, a
primeira editora a custear a publicação de seus livros, como sublinha o próprio
Drummond na “Cronologia” da edição Aguilar. De fato, como nos informa
Vinícius Dantas numa nota à sua edição de “Plataforma de uma geração” de
Antonio Candido, muitos dos poemas de A rosa do povo, publicado em 1945, já
circulavam numa forma semi-clandestina.
Claro que Drummond tinha uma alta consciência desta mudança, durante o
próprio processo – a auto-análise começou cedo, e acompanhou-o ao longo da
carreira e da vida. Confissões de Minas contém dois exemplos cruciais. O
primeiro é a famosa “Autobiografia para um revista”, publicada, esta edição nos
informa, em 1938, na Revista Acadêmica, e novamente, atualizada, em 1941,
desta vez num número dedicado a Drummond; o próprio poeta disse da revista,
editada por Murilo Miranda, que “refletiu o que a inteligência brasileira tinha de
mais vivo, na criação literária e artística, e na crítica social”. Esta “Autobiografia”
estabeleceu os parâmetros da visão do poeta, que perduram até hoje – as
origens burguesas em Itabira, a expulsão do colégio dos jesuítas em Nova
Friburgo (“Perdi a Fé. Perdi tempo”), o poeta tímido, gauche, auto-crítico, que
“não se julga substancialmente e permanentemente poeta”, e, claro, o autor do
escandaloso “No meio do caminho”, “que serve até hoje [1938] para dividir no
Brasil as pessoas em duas categorias mentais”. Em Confissões, ele situa esta
peça no centro da importante seção “Na rua, com os homens”, logo antes de
“Suas cartas”, que deve ter tido um grande efeito sobre a reputação do amigo
também.
Logo a seguir vem “Estive em casa de Candinho”, mera crônica talvez, mas que
nos apresenta ao mundo artístico e intelectual para a qual Drummond entrou
quando emigrou para o Rio em 1934, e que descreve uma festa na casa de
Candido Portinari, com uma “imensa macarronada”. Apareceu num número da
mesma Revista Acadêmica, dedicado ao pintor, em 1940, e cuja capa essa nova
edição reproduz. “Ah, é Drummond”, diz o anfitrião quando entra, detalhe que
sublinha, muito levemente, a (des-)importância do poeta neste mundo. Por mais
que este “homem de frágeis omelettes” fique na sombra, “calado e gauche” ao
lado de figuras como Bandeira, Mário ou Murilo Mendes, ele é parte integral de
um mundo que não é mais mineiro, e até começa a ultrapassar os limites
nacionais. Muitos detalhes, inclusive a presença de um misterioso “M. Offaire” (o
adido cultural francês?) estabelecem esta atmosfera de abertura. O mesmo
acontece com os artigos restantes de “Na rua, com os homens” – sobre Antonio
Simões dos Reis, García Lorca, François Mauriac, José Boadella, e William
Berrien. Difícil imaginar um elenco mais heterogêneo – um bibliógrafo brasileiro,
um poeta espanhol morto e famoso, um romancista francês e católico, outro
poeta espanhol vivo e desconhecido, e um professor americano, empregado da
Divisão Cultural da Fundação Rockefeller. Esta heterogeneidade talvez fosse
proposital. A “timidez” ou “humildade” de Drummond foi muitas vezes um jeito de
afirmar a sua própria independência e de esquivar categorizações fáceis; é
possível, por exemplo, ser de esquerda e apreciar a simpatia e a companhia de
um representativo da política da “boa vizinhança”.
A segunda tentativa de “autobiografia”, ou de aproximação à crise dos anos 30, é
“Um escritor nasce e morre”, publicado em 1939, na Revista do Brasil, e
removido para Contos de aprendiz em 1951. Relendo-o agora no seu contexto
original, acho que foi uma decisão infeliz – os editores têm toda a razão ao
restaurar a integridade do livro. Este tem uma unidade e uma ordem reais, se
bem que relativas – como um móbile, na expressão feliz de Milton Ohata, em que
as partes se refletem, se contrabalançam de várias maneiras: parece que
Drummond, já no fim da vida, tinha planos de restaurar o livro. “Um escritor nasce
e morre” conta a crise dos anos 30 como se tivesse sido um evento apenas
“literário”, num sentido comicamente estrito. O poeta, ao “nascer” na aula de D.
Emerenciana Barbosa, em Turmalinas, compara-se a outro Barbosa, “um homem
pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e era
inteligentíssimo.” Esse poeta agora morreu – “Dou minha palavra que morri,
estou morto, bem morto”. “Renasceu”, é claro,mas fora do texto, para a vida, e
para outro tipo de contacto com a realidade.
Um dos fascínios desta nova edição é que permite, ou incentiva, uma nova
apreciação da fase mineira do poeta – não é por acaso que o livro se intitule
Confissões de Minas. Salta aos olhos uma preocupação com a morte e o
fechamento nos ensaios e apontamentos escritos antes da mudança (que
podemos datar no fim de 1934). Nas palavras de “A voz pelo telefone”, da última
seção, “Caderno de notas”, e publicado em 1932: “Mas nós estávamos em
Minas Gerais, Brasil, país de caminhos fechados, país irremediável...” Os três
ensaios que abrem “Na rua, com os homens” são homenagens, lembranças de
três mineiros que morreram jovens, Alberto Campos, irmão mais novo de Milton
Campos, Ascânio Lopes, do grupo da Verde de Cataguases, e João Guimarães,
da mesma família de Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimaraens, e João
Alphonsus. Mas cuidado: a mesma empatia com um lugar provinciano, católico,
paralítico, reaparece em 1942, no ensaio – introdução a uma tradução de
Thérèse Desqueyroux – sobre Mauriac.
É um processo complexo que, na sua totalidade, resta por estudar. Para a outra
crise famosa, a que levou de A rosa do povo para Claro enigma, temos o
excelente livro de Vagner Camilo, Da rosa do povo à rosa das trevas (2002).
Lentamente, estamos juntando as peças para esta outra história. Temos as
edições das cartas de Mário e Drummond, a Bibliografia comentada de Fernando
Py, que chegou até 1934, e o Inventário do arquivo do poeta, estes ambos
publicados pela Casa de Rui Barbosa. Temos até uma primeira tentativa de
biografia, a de José Maria Cançado (Os sapatos de Orfeu), que não será ideal,
mas tem detalhes inesquecíveis: a imagem, por exemplo, do poeta, nos seus
primeiros anos cariocas, perambulando aos fins de semana com a filha Maria
Julieta pelo Cemitério São João Batista, ou pelas favelas atrás de Copacabana
(morte e vida, novamente...).
O processo fascina, em boa parte pelos seus muitos níveis. Vamos do assunto
controvertido do poeta de esquerda, funcionário do Estado Novo, até os
constantes poéticos que subjazem as mudanças “de superfície” (mas que no
entanto foram inteiramente reais, não só “literários”, como fica patente nas cartas
do período que conhecemos). No seu ensaio no fim da edição, João Adolfo
Hansen argumenta que este poeta da passagem nunca abandona uma poética
da negatividade – outra forma da precariedade tão importante em A rosa do
povo, e que explica a presença clara de Mallarmé mesmo no livro “engajado” de
1945. Escolhe para provar o seu argumento “O livro inútil”, de “Caderno de
notas”, apontamento curto, fascinante, publicado em 1935, no que imaginamos
seria o momento mesmo da crise, o seu auge (ou o seu nadir). A grande virtude
deste artigo (e diria que um sine qua non de toda apreciação plena da obra
drummondiana) é que recusa-se a dividir o poeta em dois, o engajado e o esteta,
que inexistem em estado puro. O desafio é, e continua sendo, poder transitar
entre este nível de profundidade e/ou abstração, e a história, a vida diária, em
comum, em que o poeta tanto insiste. Qualquer história destes anos terá que
reconciliar os vários Drummonds presentes aqui em Confissões de Minas, nas
cartas, na vida pública e privada, e sobretudo na poesia (“a linguagem de certos
instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência”). Sobretudo,
tentará entender um fenômeno que Antonio Candido já apontava, na “Plataforma
de uma geração”, de 1943: “Carlos Drummond representa essa coisa invejável
que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa
riqueza progressiva e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo.” O
Tempo, novamente.