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UMA NOVA CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO: A TRANSDISCIPLINARIDADE Pedro Duro FDUNL N.º1 - 2000

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UMA NOVA CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO:

A TRANSDISCIPLINARIDADE

Pedro Duro FDUNL N.º1 - 2000

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 1/ 00

UMA NOVA CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO:

A TRANSDISCIPLINARIDADE

(Trabalho realizado no âmbito do 2.º Programa de Doutoramento e Mestrado da

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa)

Pedro Duro

© autor Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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Exórdio

No final do século XX, o vertiginoso avanço da ciência obriga o Homem, mais

uma vez, a questionar-se sobre o seu discurso científico. Obriga-o a repensar os

caminhos que trilha, tentando perceber o seu próprio contexto, tentando caminhar, de

olhos bem abertos, rumo ao encontro de si mesmo.

O investigador jurídico é chamado a intervir em toda a actividade humana, nem

sempre a compreendendo, nem sempre sendo compreendido. Por isso, tem de se

reenquadrar num contexto científico, também ele em mutação constante, também ele

em processo de reenquadramento.

As palavras que se seguem constituem não mais do que um pensamento em voz

alta, uma reflexão sobre a ciência e sobre a contextualização do Direito. Por isso,

evitar-se-ão descrições exaustivas sobre a história da ciência em geral ou sobre a

história do pensamento jurídico em particular. Todas as referências servirão, apenas,

de pretexto para a reflexão que não se quer necessariamente original, mas quer-se

ousada, correndo riscos metodológicos e assumindo um percurso próprio.

O autor destas linhas assume-se como aprendiz e segue, de perto, o percurso

traçado por Boaventura de Sousa Santos, na sua obra Um discurso sobre as ciências

(1995). Não deixa, no entanto, de o fazer de uma forma característica, para a qual se

chama à atenção. Começa o discurso in medias res, caracterizando a evolução do

pensamento científico, em geral, e do pensamento jurídico, em particular. Nessa

primeira análise, enumera as principais críticas que se fazem ao paradigma científico

da modernidade, anunciando apologeticamente a pós-modernidade. Ou seja, começa

com um discurso imetódico, de quem absorve a "ideia da moda", defendendo-a como

sua. Mais não faz do que uma reflexão aproximativa.

Seguidamente, isola um exemplo concreto e mantém a sua apologética do novo

paradigma, adaptando o pensamento dos seus cultores, recriando-se na tarefa de

contextualizar o Direito, face ao novo discurso. Adaptação que prossegue, reflectindo

sobre o papel da teoria e da dogmática no Direito e procurando encontrar um método

seguro para o trabalho do investigador jurídico.

É esta tarefa que lhe coloca as primeiras dificuldades. O autor arrisca a crítica

ao paradigma da pós-modernidade, reequilibrando-o e adaptando-o, de forma a

aproveitar a sua mais-valia epistemológica, mas sem se deixar inebriar numa euforia

apologética que lhe retire a coerência metodológica.

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O texto que se segue é, obviamente, apologético. Constitui, obviamente, a

defesa da transdisciplinaridade. Mas, delimita-lhe o âmbito, define-a, insere-a num

contexto metodológico, não aceitando uma ruptura radical e sem benefícios, face à

metodologia moderna.

O autor, no seu estilo ensaístico, prescinde da caracterizar teorias, de reproduzir

pensadores. Escreve pressupondo conhecimentos e reflectindo sobre eles, não se

refugiando na exaustão descritiva.

O seu discurso é, sobretudo, um caminho; um caminho atribulado de quem se

confronta com um pensamento novo, se deixa encantar por ele, aprofunda-o e

reconstrói-o. É, também, a assunção de um risco, porque reflexão pessoal sobre a

reflexão de outros que percorreram caminhos muito mais longos.

É um ensaio sobre a metodologia e a perspectivação, que se redigiu ao estilo do

paradigma proposto pelo autor: a aproximação do senso comum, o tratamento

sistemático (do qual não prescinde), a desconstrução e o regresso à globalidade.

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A mudança de paradigma científico: o papel do Direito

«Considerações de carácter ético, político ou económico não são assuntos dos

juristas, enquanto tais».1 Era assim que Windscheid, em 1884, falava do Direito,

consagrando-se como um clássico do positivismo científico. O Direito, segundo esta

corrente, seria o resultado da dedução axiomática do sistema e dos conceitos, mas

construir-se-ia, também, através do recurso a argumentos de autoridade ou a processos

"tópicos", a partir de normas carreadas pela tradição. Ou seja, a dedução partiria dos

conceitos racionalmente descobertos, a indução e a analogia partiriam das "teorias e

tradições comprovadas" (utilizando a terminologia do art.º 1, II, do Código Civil suíço

(ZGB)).

É deste ponto, como se terá adiantado no exórdio, que iremos partir à descoberta

da transdisciplinaridade, que passa por reconstruir os paradigmas científicos,

repensando a Ciência Jurídica com a mesma humildade com que as outras ciências se

deixaram repensar. Na verdade, o Direito, de uma forma ou de outra, tem sido vivido

metodologicamente como uma ciência e ontologicamente como uma transcendência.

Ou seja, a necessidade prática de garantir a universalidade e abstracção da regra

impuseram a necessidade teórica de fazer transcender o Direito, distanciando-o da

diversidade da imanência, do caos da realidade.

Como em todas as ciências, houve a necessidade de arrumar os significados em

significantes uniformes, em mediações linguísticas que permitissem ao Homem ter

um discurso sobre a realidade. Simplesmente, toda a mediação linguística é

interpretação, é perspectivação, é comunicação do sujeito com o objecto: é criação. O

significante (a palavra, o símbolo, o teorema, a equação) é necessariamente criação

sobre um objecto que nunca se conhece mas que se cria na constante aproximação do

sujeito que quer criar de uma forma cada vez mais coerente e (isto será mais

discutível) mais próxima do objecto.

A consciência desta impossibilidade de ontologização do objecto, implica a

descoberta de um novo paradigma científico; de um paradigma que não incorpore2 no

seu discurso qualquer forma de dogmatismo ou de autoridade.

1 Die Aufgaben d. Rechtswiss., em «Ges. Reden u. Abh.» (1904), apud Wieacker, Franz, 1993, p.

492. 2 Falamos em incorporar (in corpore) porque não se trata apenas da inclusão na descrição de um

modelo, mas da contaminação e caracterização desse modelo.

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O objecto é necessariamente contextualizado, necessariamente lido,

necessariamente subjectivado. E só pode existir para nós enquanto existir através de

nós. É esta a postura, simultaneamente humilde e ambiciosa, que caracteriza o novo

paradigma científico – válido para as ciências naturais e fruto de uma revolução

científica que terá começado com a mecânica quântica de Einstein; válido para as

ciências sociais que tardiamente seguiram as ciências naturais em busca de um

método seguro e tardiamente se aperceberam do carácter autofágico do método até

então adoptado.

Na verdade, as ciências naturais, logo no séc. XVI, adoptam um modelo de

racionalidade totalitário, segundo o qual só seria ciência o que seguisse os seus

padrões metodológicos e epistemológicos. Este paradigma baseava-se nas ideias de

que "conhecer é quantificar" e "conhecer é classificar". Só o que se pudesse

quantificar e medir com rigor seria relevante (o que aconteceria com as leis da

natureza, dada a sua regularidade e simplicidade); só seria possível conhecer a

dimensão confusa e acidental da realidade, dividindo-a, classificando-a, de modo a

quantificá-la, a significá-la, a mediatizá-la linguisticamente.

Os pontos de partida são necessariamente arbitrários, inevitavelmente

apriorísticos, fatalmente infundados. São bases linguísticas que fundam um sistema

metodológico que permita melhor perceber a realidade. Serão, provavelmente, apenas

símbolos que permitem construir outros símbolos sobre si mesmos. Por isso, o centro

deste paradigma está no "classificar", no arrumar no espectro conceptual humano que

está limitado à sua subjectividade, à sua linguagem. Traduz-se, simplifica-se, reduz-se

a complexidade para a limitação linguística, classificando, expurgando a realidade de

si própria para a enquadrar, destruindo-a ontologicamente e construindo-a

simbolicamente. Sobre esta construção, reconstrói-se, dando expressão máxima ao

símbolo: quantifica-se.

Um paradigma como este confere solidez metológica porque está construído

em sistema fechado. Torna-se possível a exaustão da linguagem, do símbolo. Torna-se

possível perspectivar até aos limites da linguagem humana. Já não se tornará possível

reconstruir a própria linguagem, relativizando o símbolo. Um paradigma

classificatório, necessariamente dogmático e tópico, dá segurança ao discurso, mas

não permite saltos epistemológicos, porque está fechado sobre si mesmo, é um

discurso de si próprio.

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A mesma segurança metodológica procurou Durkheim para as ciências

humanas, tentando reduzir os factos sociais às suas dimensões externas, observáveis e

mensuráveis. Procuram-se regularidades comportamentais e não testemunhos

pessoais. Quer-se classificar para tentar compreender globalmente, para poder

explicar uniformemente. Mais uma vez, o império do símbolo.

Mas, se nas ciências naturais foi preciso a mecânica quântica para que o

cientista se apercebesse de que a realidade está para além da linguagem, assumindo-se

que aquela é definida, não verificada, é lida, não ontologizável, nas ciências humanas

facilmente nos apercebemos de que a História pode tornar inútil qualquer forma de

classificação. A natureza subjectiva dos fenómenos sociais não permite que nos

façamos artificialmente sujeito-objecto para lermos a nossa realidade da mesma forma

que lemos a realidade cuja interpretação depende só da nossa mediação. Os

fenómenos sociais são culturalmente determinados e historicamente condicionados:

não são, por isso, passíveis de universalização. Além do mais, como os seres humanos

modificam o seu comportamento, à medida que o vão conhecendo, as ciências sociais

não podem produzir previsões fiáveis. Ou seja, nem o império do símbolo permite

tranquilidade na dedução, uma vez que a confrontação empírica a desacreditará com

frequência.

No Direito, o percurso metodológico é historicamente semelhante, mas de

análise, provavelmente, mais complexa. Complexidade que resulta de uma vocação

holística não assumida (vocação essa que hoje se assume para toda a ciência) e duma

reflexão epistemológica em espiral que permitiu o alargamento dos círculos, mas não

tem permitido romper com um paradigma escravo do símbolo.

Tornando mais lhano o discurso – para que também nós não nos sintamos

escravos do símbolo –, passemos a uma breve caracterização da Ciência do Direito,

evitando, no entanto, o excurso descritivo pelas diversas escolas do pensamento

jurídico (v.g., jusracionalismos, positivismos, naturalismos, utilitarismos e teorias

neo-aristotélicas ou neokantianas da justiça).

Recordando o óbvio: o Direito nasce da necessidade de organização social.

Existe Direito porque o Homem vive em comunidades, relaciona-se com indivíduos

que podem ter interesses conflituantes, confronta-se com a diversidade. A insegurança

da "lei do mais forte" – que, rigorosamente, não é uma "lei", em sentido jurídico, é

uma verificação e, por isso, apenas uma "lei" no sentido que as ciências naturais dão à

palavra –, obriga o Homem a procurar homogeneizações de comportamentos,

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definição de critérios de relacionamento, evitando o perigo do conflito, escudando o

indivíduo na segurança da regra. Segurança essa que é garantida pela colectividade,

porque útil a cada indivíduo que constitui a mesma.

O Direito surge como busca de consensos. Simplesmente, essa busca sempre foi

"minada" por argumentos externos, nomeadamente, formas de manifestação da "lei do

mais forte", força essa que poderia advir da capacidade física de quem queria impor as

suas regras ou do temor que a religião pudesse gerar. Foram-se criando preconceitos

de cultura e moralidade que moldaram, também, o próprio Direito, perpetuando-se no

tempo e esquecendo-se do Homem e dos seus consensos.

Cristalizaram-se "teorias e tradições comprovadas", criaram-se regras e foi-se

construindo o Direito em hermenêuticas fechadas. Os argumentos de autoridade e o

império da dedução fizeram do Direito dogmática, cujo apogeu se reconhece no

positivismo científico. Deixou-se de pensar a vida na sua globalidade: esqueceu-se a

filosofia. Perdeu-se o ponto de partida (o homem-relação): não se despertou para a

sociologia.

O Direito evolui sob a sombra do construtivismo, refugiando-se em conceitos,

sejam eles conceitos puros, conceitos-interesses ou conceitos-valores. O conceito

aparece construído sobre a realidade, enformando-a, e não a partir dela, recriando-se.

A sua proveniência múltipla obriga-o a afastar-se da realidade, sob pena de se ver

infirmado por ela. Na verdade, o Direito, acaba por surgir como um fruto dos

consensos, da autoridade (da força, do domínio dos meios de produção ou da

superstição) e da moral (esta também com proveniências diversas, sendo a mais

relevante a autoridade religiosa). Para se manter coerente, para se auto-sustentar,

precisa de ter o estatuto de ciência, precisa de um discurso, de uma hermenêutica, sem

as contrariedades da infirmação sociológica, apenas com o refúgio da consistência

valorativa e a válvula de escape da equidade – essa eterna desconhecida, esse Direito

que não é Direito, ou, talvez o único que o é.

Será, provavelmente, o Direito a ciência que maiores dificuldades defronta para

manter a coerência interna. Será, provavelmente, essa a razão que levou os cientistas

do Direito a construir um discurso fechado, um discurso sobre um discurso. Na

verdade, não se trata "apenas" de descrever, de definir a complexidade da Natureza

para dela tomar partido, nem tão pouco de "radiografar" a Sociedade. Para o Direito, o

discurso é sempre intervenção: à teoria segue-se a dogmática, à dogmática segue-se a

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regra, à regra segue-se o comando. A Ciência do Direito é o discurso da Justiça, da

legiferação e da aplicação da norma. Nenhum destes fenómenos está desligado.

É preciso conhecer o Homem em toda a sua complexidade, com a prudência de

uma ciência que se quer actuante. Por isso, o Direito não se pode descobrir dentro de

si como discurso, como transcendência, mas fora de si: faz-se Direito a partir do

Mundo e para o Mundo. E se isto é verdade quanto aos conteúdos que enformam a

Ciência Jurídica, também o é quanto ao método, quanto ao próprio discurso científico.

É tempo do Direito se abrir ao discurso omnicompreensivo da filosofia

(macrocosmos) e ao discurso explicativo da sociologia (microcosmos). Citando

Boaventura de Sousa Santos: «(…) o direito, que reduziu a complexidade da vida à

secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da

prudência perdida (…)» (1995, p. 46).

Voltamos, então, à busca dos consensos.

O Direito abre-se à interdisciplinaridade, porque a vertigem da História assim o

obriga. Já não é possível construir uma ciência sobre a Justiça, fechada sobre si

mesma. Com efeito, se pensarmos que a vida do Homem é, todos os dias e cada vez

mais intensamente, confrontada com ameaças novas (o exemplo mais paradigmático é

o do Ambiente), temos de reconhecer que só uma Ciência Jurídica aberta a essas

novas realidades, estará à altura de cumprir a sua função reguladora e conformadora

da vida em sociedade. Só se encontram princípios e extraem regras de uma realidade

que se conhece. Ora, se o Direito não está vocacionado para a descoberta da realidade,

só tem razão de ser enquanto conformador de uma realidade conhecida.

É importante conhecer o impacto das ciências naturais na vida do Homem, uma

vez que são elas que, hoje, condicionam toda a actividade humana. Dependemos delas

em quase tudo. Tudo se define em laboratório: o que comemos, como comemos; onde

vivemos, como vivemos; em que nos deslocamos, como nos deslocamos…

É importante radiografar o modo como o Homem se relaciona: os seus conflitos,

os seus dramas, as suas necessidades, os seus costumes, as suas limitações, as suas

ambições.

Só conhecendo tudo isto se poderá procurar a harmonia social. Só conhecendo

tudo isto se poderão encontrar os grandes princípios que regem o comportamento

humano e pelos quais ele se quer reger. Só conhecendo tudo isto se encontrarão as

regras mais adequadas para cada categoria de situações.

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A complexidade das matérias sobre as quais o Direito se debruça obriga o

investigador jurídico a conhecer outras ciências sem as quais não lhe seria possível

construir um discurso ou uma ciência jurídica verdadeira, adequada à realidade. Por

essa razão, o jurista deverá ser o mais ecléctico dos cientistas, uma vez que trabalha

com uma ciência horizontal. Assim, o jurista que se dedique ao Direito dos Valores

Mobiliários não poderá deixar de ter noções mínimas de economia e não poderá

deixar de se socorrer do contributo de economistas para apreender a complexidade

contratual e operacional que caracteriza este ramo específico do Direito. Também não

se poderá falar em responsabilidade médica se não se compreender o alcance da

actividade exercida por estes profissionais. Nem se poderá falar em Direito da

Informática se não se conhecer conceitos como o de software, ou sem nunca se ter

"navegado" na Internet, sem se saber o que é um link, ou qual o alcance da ubiquidade

na "Rede".

O investigador jurídico corre, muitas vezes, o risco de achar que um

conhecimento superficial da realidade lhe basta para a compreender. Simplesmente, a

crescente complexidade das áreas sobre as quais o Direito tem de intervir (v.g., a já

citada economia, a biotecnologia e o ambiente), obriga o investigador jurídico a

familiarizar-se com as outras ciências, usando-as como ciências auxiliares do Direito.

Fica aberto o caminho para a interdisciplinaridade, apresentando-se o Direito, mais do

que como contribuinte, como beneficiário. Será este o primeiro passo para o

investigador jurídico ultrapassar a "secura da dogmática" reconstruindo-a em fluxos

contínuos, adaptando-a à vertigem da realidade que só pode ser conhecida por outras

ciências que não o Direito.

Mas o problema não se coloca só relativamente aos conteúdos. Põe-se também

quanto ao próprio discurso, quanto aos topoi e quanto aos símbolos utilizados. A

linguagem ganha dimensão universal, e expressões, normalmente características das

ciências naturais, começam a fazer parte do discurso linguístico das ciências humanas

e vice-versa. Na verdade, falar em "cosmovisão", no "carácter elíptico de uma

argumentação" ou no "ciclo de vida de uma norma", significa importar, primeiro

sobre a forma de metáfora e, depois, assumindo-se como vocabulário próprio,

significantes característicos das ciências naturais, para o Direito. Mas o mesmo poderá

acontecer em sentido inverso, descrevendo-se a Natureza através de metáforas da

vida. Um novo discurso abre-nos os horizontes para novos conceitos, enriquecendo o

lastro anquilosado e poeirento da filosofia antiga, da dogmática jurídica para a

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eternidade. Evoluir significa também recriar a linguagem sem perder o rigor,

enriquecer os conceitos, aproveitando toda a dimensão do conhecimento humano. A

simplicidade não é inimiga do rigor. A complexidade não é sinónimo de saber; pode,

sim, ser o refúgio dos inseguros. Por isso, uma revolução na investigação jurídica

implica repensar conteúdos e reconstruir dogmáticas, à luz da realidade tal como ela é

conhecida pelos diversos ramos do conhecimento. Mas, implica, também, uma

alteração na linguagem, necessariamente um enriquecimento carreado por outras

experiências científicas.

Desenha-se, assim, a verdadeira vocação holística do Direito: um Direito que

não se basta a si mesmo, enformando toda a realidade sem a conhecer; um Direito que

só o é verdadeiramente quando se conforma com a realidade que o constitui.

Mas, se a interdisciplinaridade permite dar um passo importantíssimo para que o

investigador jurídico possa ir mais longe na sua tarefa de busca de consensos, de

busca de harmonia social, por vezes, aparecem questões que, pela sua complexidade,

especificidade e novidade, não se enquadram nas divisões clássicas das ciências, nem

se bastam com a comunicação interdisciplinar das mesmas.

Na verdade, falar em interdisciplinaridade é falar de disciplinas autónomas que

comunicam entre si, aproveitando as sinergias criadas; é falar em realidades distintas

que se assumem enquanto tais e que estabelecem relações nesse pressuposto. Ora,

como diz Boaventura de Sousa Santos, «[a] fragmentação pós-moderna não é

disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos

progridem ao encontro uns dos outros» (1995, p. 47). Ficam, assim, abertas as portas

para a transdisciplinaridade, redimensionando-se o Direito, redimensionando-se toda a

ciência.

A transdisciplinaridade aparece, na pós-modernidade, como uma nova forma de

enquadrar a ciência. Sem prejuízo de manter a investigação científica disciplinar,

enriquecendo-a pelo recurso à interdisciplinaridade, parte-se para o tratamento de

novos temas que se apresentam como caracteristicamente transversais, ocupando, em

diversos aspectos da sua análise, espaços reservados a diversas disciplinas e não se

enquadrando nem prescindindo inteiramente de nenhuma delas. Não se trata de criar

novas disciplinas, porque não se trata de preencher espaços vazios. Trata-se, sim, de

individualizar temas que só existem enquanto tais, conglobando conhecimentos de

várias disciplinas e que só podem ser analisados de forma integrada.

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A transdisciplinaridade pode ser, assim, entendida de duas formas. Por um lado,

aparece-nos como um paradigma científico em que o tratamento disciplinar perde

autonomia valorando-se, apenas, o tratamento de conjuntos de problemas: a disciplina

é substituída pelo tema. Por outro, aparece-nos como consequência de um paradigma

científico aberto, que se enriquece na segurança e coerência da investigação

intradisciplinar, se expande na diversidade interdisciplinar e na novidade

transdisciplinar. Ou seja, este segundo entendimento da transdisciplinaridade não

elimina a investigação disciplinar. Não acaba com as Faculdades de Direito ou com as

Faculdades de Ciências. Não elimina os cursos de Medicina, de História, de Filosofia

ou de Matemática. Permite apenas concluir que a investigação disciplinar não é o

único caminho, que a interdisciplinaridade é a única forma de enriquecer a

investigação disciplinar e que a transdisciplinaridade pode surgir como inevitável,

face a novas situações temáticas, não podendo, no entanto existir sem a consistência

disciplinar. Ilustrando: um economista, um gestor, um matemático ou um jurista terão

sempre de recorrer à interdisciplinaridade ou, quiçá, à transdisciplinaridade para

conhecer globalmente os mercados de valores mobiliários. Mas, dificilmente, alguém

que não tenha formação em nenhuma desta áreas poderá compreender

verdadeiramente as complexidades próprias de tudo o que se relaciona com valores

mobiliários, porque não tem "ferramentas" disciplinares para o fazer.

Um caso concreto: a Bioética

Um dos temas que consideramos paradigmáticos de transdisciplinaridade é o da

Bioética: trata-se de um tema que se dedica à compreensão social, ética e jurídica da

investigação biológica e da utilização da mesma, com vista à criação de regras para o

seu funcionamento, de forma a garantir, simultaneamente, a preservação do Homem e

da sua dignidade.

Comecemos por analisar esta definição, necessariamente limitadora, de

Bioética, de modo a percebermos em que medida é que podemos estar em presença de

um tema transdisciplinar.

Em primeiro lugar, refere-se a análise sociológica do impacto de uma

determinada investigação (a investigação biológica). Tenta-se saber em que medida é

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que a sociedade – e os seus equilíbrios – é afectada pela investigação biológica.

Procura-se descortinar se o impacto na sociedade, enquanto corpo articulado e

interdependente, é relevante ou não, positivo ou negativo. Essa análise, depende,

obviamente, de importantes conhecimentos na área da Sociologia.

Na mesma definição, faz-se um excurso à esfera individual, através da

referência à compreensão ética. Procura-se aqui o lastro histórico-cultural, filosófico e

religioso que define o Homem enquanto indivíduo. Procuram-se comandos interiores

de "dever ser", comuns a uma determinada cultura e prevalecentes num determinado

contexto histórico e geográfico. Quer-se, também aqui, perspectivar a investigação

biológica do prisma da Moral, reconhecendo-se que conceitos como o de valor e de

bem devem acompanhar o Homem em toda a sua actuação.

A compreensão jurídica aparece nesta definição de uma forma quase incidental,

mas a sua relevância é enorme, uma vez que esta é necessariamente influenciada pelas

outras formas de compreensão, aproveitado-as e dando-lhes a relevância devida.

Tenta-se descortinar o que é de tal forma essencial para o equilíbrio individual e

social que carece de tutela jurídica. Procura-se estabelecer um conjunto de regras que

permitam, com o máximo de extensão possível, ao indivíduo manter-se íntegro

enquanto ser moral e enquanto ser social.

Uma análise, ainda que superficial, da definição adiantada, permite concluir que

o centro da mesma não está nos modos de compreensão, na adjectivação utilizada

(social, ética e jurídica), mas na actividade exercida, na actividade que se quer

compreender: a investigação biológica e a utilização da mesma. Por isso, o

investigador que se centre na compreensão jurídica da investigação biológica terá de,

necessariamente, conhecer os contornos da mesma, perceber os seus métodos, fins e

consequências. As especificidades são tantas e tão variadas que não é possível

encontrar soluções jurídicas para estas matérias, sem um conhecimento rigoroso de

todas as implicações da investigação biológica.

Neste final de século, a tarefa do jurista torna-se especialmente árdua, porque

não basta o construtivismo jurídico, é cada vez mais necessário adquirir

conhecimentos nas matérias objecto do Direito.

Assim, por exemplo, quando se fala em clonagem é necessário conhecer a

técnica, de modo a perceber os seu contornos e os seus fins. Não basta dizer que é

uma técnica da qual resulta a replicação de seres vivos, nomeadamente, humanos.

Porque depende da forma como essa replicação se processa e dos objectivos da

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mesma a análise que se possa fazer sobre a necessidade de tutela jurídica. Poderão ser

diferentes as soluções que encontremos para os casos em que a clonagem de embriões

humanos é feita com fins terapêuticos, com fins militares ou para obviar a uma

catástrofe nuclear ou química que impeça a reprodução da espécie.

O próprio processo de clonagem, em si, tem de ser compreendido, uma vez que

não é indiferente, recorrer, em certos casos, à clonagem, à cultura de células ou ao

aproveitamento de embriões excedentários. Não poderá, assim, o jurista proceder a

uma análise rigorosa da clonagem e das suas implicações, sem o recurso a

conhecimentos próprios das ciências naturais, porque é sobre elas e o seu impacto

que, neste caso, recai a reflexão jurídica.

Finalmente, na definição adiantada, referem-se dois objectivos da Bioética:

procura-se a preservação do Homem e a protecção da sua dignidade. Tenta-se, em

primeiro lugar, saber até que ponto certa investigação biológica põe em risco ou não a

preservação do Homem enquanto espécie. Ou seja, embora se possam reconhecer os

benefícios imediatos de certa investigação biológica, pode chegar-se à conclusão que,

em determinados casos, a longo prazo, poderá ser colocada em risco a preservação da

humanidade.

Mas, não interessa apenas que o Homem se preserve enquanto ser vivo. É

preciso que se mantenha enquanto Homem, não alienando a sua dignidade, não se

descaracterizando, não se reduzindo enquanto indivíduo e enquanto ser social. Ora o

cerne dessa dignidade só se descobre quando se pensa a existência e a humanidade de

uma forma global ("quem somos, de onde vimos, para onde vamos"…). É pelo

recurso à Filosofia que se reflecte sobre a dignidade da pessoa humana. Não é o

Direito, enquanto tal, que nos permite aferir essa dignidade. Não são as constituições

que a definem. O Direito limita-se a cristalizar uma consciência colectiva – ou uma

consciência de elite…– sobre a dignidade e sobre os direitos, liberdades e garantias

que a asseguram. Mas não se constitui como reflexão sobre a sua existência ou sobre

as suas características. Limita-se a construir uma forma de tutela. Cabe-lhe apenas

garantir o respeito por essa dignidade intuída, descoberta ou racionalizada.

A dignidade da pessoa humana descortina-se na reflexão cultural e filosófica,

não sem a contaminação religiosa e ético-religiosa – também ela cultural e também

ela filosófica (em que sofia é sinónimo de theos, em que o discurso sobre a sabedoria

é o discurso sobre a omniscência e, por isso, sobre o Omnisciente).

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É deste conceito (ou, se preferirmos, desta consciência) de dignidade da pessoa

humana, por exemplo, que se retiram axiologias importantíssimas para o Direito,

grande parte delas com consagração constitucional e com relevância penal,

incorporando o conceito de Bem Jurídico – núcleo axiológico fundamental merecedor

de tutela penal.

Como nos podemos aperceber, nesta brevíssima e superficial reflexão sobre a

Bioética, estamos perante um tema que não se pode enquadrar, isoladamente, em

nenhumas das disciplinas clássicas, não se apresenta como disciplina autónoma, uma

vez que não vem preencher nenhum espaço vazio, mas aparece como uma matéria

transversal que beneficia dos contributos de diversas disciplinas científicas e que

depende inteiramente delas. Surge, no entanto, como matéria específica, com

objectivos científicos determinados, com uma sistemática própria e com um modelo

metodológico novo. Tal como o Direito e, ao contrário de muitas disciplinas das

chamadas ciências naturais (e mesmo das ciências humanas), a Bioética orienta-se

pelos seus fins de garantia e tutela, não tendo quaisquer preocupações descritivas de

descoberta.

É esta linha de orientação que define o seu modelo metodológico. Na verdade, a

análise começa pela colocação de uma pergunta fundamental: deve considerar-se

determinada investigação/intervenção biológica lícita (moral, deontológica e

juridicamente)?

Para responder a esta pergunta, o investigador começará por tentar caracterizar a

investigação/intervenção em análise: processo e consequências (falamos ainda de

consequências biológicas, impacto natural). Seguidamente, tentará saber qual o

impacto social de tal investigação e só depois se deverá dedicar à análise filosófica e

cultural (impacto sobre o indivíduo enquanto tal) e à compreensão jurídica do

problema. Na verdade, a compreensão jurídica resulta de toda a análise anterior, só

sendo possível aferir da necessidade de tutela depois de ser ter trilhado todo o

caminho que atrás de descreveu.

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A transdisciplinaridade e a sua repercussão na teoria e

dogmática jurídica

A transdisciplinaridade implica uma revolução metodológica, mas também uma

revolução conceptual. A reflexão jurídica deixa de fazer sentido como introspecção. O

Direito reposiciona-se e a arrogância do investigador jurídico tem de se refrear. Deixa,

também, de fazer sentido, neste contexto, falar em ciências auxiliares do Direito, em

termos absolutos. Todas as ciências são simultaneamente auxiliares e nucleares. O

Direito deixa de se assumir como centro, passando a situar-se no lugar que lhe

pertence: articular a realidade social, optimizando-a. Tudo lhe é dado pelas outras

ciências. E é com base nelas que o Direito se desenvolve.

Isto não significa, naturalmente, que o Direito desapareça como disciplina ou se

descaracterize como método. Significa, sim, uma revalorização do Direito. A Ciência

Jurídica é, como já se afirmou, uma ciência de objectivos, é, por natureza, criadora.

Mas nada cria a partir de si mesma; apenas cria pela sua lógica própria. Os fins do

Direito definem-no como método e lógica, mas não o definem como conteúdo. Este

advém do Mundo e o Mundo é lido por outras ciências. Sendo o Direito, o Direito dos

Homens, o Direito do Mundo, não se pode deixar de reconhecer a centralidade do

Mundo e a acessoriedade do Direito.

Um dos riscos de doutrinas como o positivismo científico era o de transformar

artificialmente o Direito em centro do discurso da ciência. Fechar a dogmática sobre

si mesma e fazer da teoria dogmática. Se era verdade que, historicamente, os

princípios se descobriam indutivamente, num processo de abstracção a partir da

realidade, também é certo que rapidamente se cristalizavam, não se construindo novos

refluxos indutivos e transformando a teoria em dogmática. A abstracção não aparecia

como a busca do princípio: era, também ela, construção de si própria – a decadência

da teoria enquanto processo evolutivo de descoberta da verdade.

A dogmática tem de ser uma dogmática aberta, porque a teoria em que aquela se

alicerça também o é. O Direito deixa de existir como sistema interno e passa a

consagrar-se como sistema aberto. Não basta a articulação lógico-dedutiva dos

axiomas. Não basta a descoberta silogística de subprincípios, ou a consagração de

normas como projecção de valores. É preciso descobrir e actualizar, no incessante

fluir da vida, a constância do princípio, sem o retirar, por necessidade de abstracção,

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dessa mesma vida. Mas também é preciso saber porque é que se busca o princípio,

porque é que se constrói a norma. Os fins do Direito definem-no como método e

caracterizam-no como ciência. O seu reposicionamento no espectro científico

enriquecem-no como Vida.

Não se descaracteriza, assim, o Direito científica e metodologicamente. Apenas

de revaloriza e aperfeiçoa. Aliás, o Direito já tem sido repensado desta forma nas

novas doutrinas da Justiça e na jurisprudência das valorações. Procura-se um Direito

mais próximo da realidade social, mais atento à vertigem do tempo e aos novos

desafios valorativos que se colocam perante o avanço tecnológico.

O investigador jurídico começa a assumir-se não como um técnico que

aproveita os magros contributos das outras ciências para a construção do seu sistema,

mas como alguém que perspectiva um determinado tema dando o seu contributo

disciplinar. A transdisciplinaridade implica pensar o Direito como parte de um todo e

não como um todo que se socorre das partes.

Por isso se trata de um salto epistemológico importantíssimo face à

interdisciplinaridade. O Direito passa a ser pensado como uma perspectiva científica

de um tema, o tema passa a ser visto como um problema complexo cuja "resolução"

depende do contributo de uma pluralidade de ciências e o papel do investigador

jurídico ganha uma nova dimensão.

Missão do investigador jurídico num contexto transdisciplinar

Na segunda sessão do Seminário de Investigação Jurídica3 dizia-se que a

investigação visa constituir um saber que seja partilhável com os destinatários da

mesma, sendo certo que, mediatamente, os destinatários serão toda a comunidade

jurídica. Mas a verdade é que os verdadeiros destinatários mediatos da investigação

jurídica são todos os membros da comunidade.

Se é certo que um texto científico, fruto de uma investigação especializada,

relativo a uma matéria cujo tratamento envolve um elevado grau de complexidade,

será, em princípio, mais perceptível por cientistas habituados a lidar com os símbolos

e significantes próprios dessa área científica, também é verdade que se, o Direito não

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se sensocomunizar, todo o caminho trilhado pelo investigador jurídico poderá revelar-

se inútil.

Ao longo desta reflexão fui denunciando que, tal como Boaventura de Sousa

Santos, também eu entendo que "nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma,

racional; só a configuração de todas elas é racional" (1995, p. 55). Urge, por isso, o

diálogo com outras forma de conhecimento, nomeadamente o senso comum, agora em

reabilitação pela ciência pós-moderna. Na verdade, é o senso comum que nos permite

fugir ao espartilho disciplinar. O senso comum vê global e imetodicamente, mas pode

ser enriquecido e ampliado através do conhecimento científico.

O investigador jurídico terá de adoptar uma nova linguagem que denuncie e

ateste os seus conhecimentos nos diversos domínios do saber, que abra o discurso –

pelo menos – a toda a comunidade científica, de modo a que as obras jurídicas passem

a ser perspectivas e compreensões jurídicas da realidade e não construções da mesma.

Assim, o investigador jurídico que se aventure na análise de um tema cujo

carácter transdisciplinar seja evidente terá de ecletizar-se, terá de aventurar-se no

conhecimento global do tema que se propõe analisar de um ponto de vista jurídico,

terá de ter a coragem e a humildade de expor as linhas fundamentais de tratamento

desse tema nas outras ciências, sob pena do seu discurso não ter outra sustentação que

não seja a imaginação do autor, a intuição de quem não compreendeu a realidade e se

arriscou a enformá-la (ou deformá-la) no Direito.

A transdisciplinaridade exige que o investigador jurídico não se limite ao estudo

aturado de todas as obras jurídicas que existem sobre uma determinada matéria. Ter-

se-á de ir mais longe. Ter-se-á de procurar analisar todas as vertentes de uma

determinada matéria. Esse trabalho poderá implicar deslocação a laboratórios e

orientação de cientistas de outras disciplinas, mas só assim se poderá aprender um

pouco mais sobre a nossa maneira de estar no Mundo.

O investigador jurídico terá de estar sempre consciente de que a perspectiva que

o move é a de uma ciência normativa, mas não se pode esquecer que a normatividade

existe sempre por referência. Ser-se normativo é ser-se normativo de alguma coisa.

Por isso, o Direito, é, por maioria de razão, a ciência mais dependente das outras

ciências. Será, tendencialmente, parte de uma investigação transdisciplinar.

3 Referimo-nos à sessão de 12 de Março de 1999, na Faculdade de Direito da Universidade

Nova de Lisboa.

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A transdisciplinaridade como fenómeno da pós-modernidade

Chegamos, agora, a um outro nível de transdisciplinaridade. Nas páginas

anteriores, tem-se referido a transdisciplinaridade como um fenómeno particular, fruto

do surgimento de temas que se diluem de tal forma em todo – ou grande parte – do

espectro científico que são, por natureza, temas transdisciplinares. Na verdade, há

temas que não podem esperar por uma revolução metodológica, ou por uma teoria

sobre um novo paradigma, porque constituem, em si mesmos, frutos e motores dessa

revolução.

O surgimento desses temas denuncia um fenómeno global no espectro

científico. Denuncia, como já se adiantou, uma autêntica revolução metodológica,

uma revolução que estabelece a ruptura com a modernidade (esta iniciada, no séc.

XVI, como paradigma quantificativo e classificatório, como se explicou atrás).

A modernidade definiu-se como uma forma de racionalidade científica

totalitária e exclusiva. Excluia o senso comum e os estudos humanísticos (entre os

quais, os estudos jurídicos) do conhecimento científico, por considerar que estes não

se pautavam pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

A lógica da investigação passa a reger-se pela matemática e todo o

conhecimento se torna causal. No séc. XVIII, o determinismo mecanicista domina

toda a ciência, incluindo as ciências humanas que, para se afirmarem enquanto

ciências, aderem ao modelo totalitário das ciências naturais. Mais do que se conhecer

o real, procura-se dominá-lo e transformá-lo.

Ora, esse paradigma entrou em crise. Na microfísica, por exemplo, concluiu-se

não ser impossível medir um objecto sem interferir nele. Toda a medição é

intervenção e, por isso, alteração. O Homem evita as contradições de resultados

porque define critérios de medição, determina a simultaneidade, enforma a realidade.

A própria matemática revela-se, sobretudo, como uma forma de linguagem,

perdendo o estatuto de panaceia da ciência. Alguns investigadores demonstraram que

a lógica matemática pode levar a proposições indecidíveis, simultaneamente

indemonstráveis e irrefutáveis.

Na química, na biologia e na física, se refuta o determinismo, a ordem e a

estabilidade, dando-se lugar à imprevisibilidade, à evolução, à desordem, à

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criatividade, à interpenetração e ao acidente. O caos impõe-se como um fluxo instável

de equilíbrios que se geram na espontaneidade e que se desenvolvem aleatoriamente.

A reversibilidade deixa de fazer sentido, porque a evolução é assistémica, fruto da

criação na instabilidade. Por isso, a História pode desenvolver-se a diferentes

velocidades, consoante os desequilíbrios criados. Várias são as teorias que, sobretudo

na década de 80, desenvolvem este paradigma de auto-organização que erradica

determinismos e que ridiculariza visões estanques e classificatórias da História e das

ciências.

Reconhece que as ciências, enquanto disciplinas isoladas, carecem de

racionalidade e, por isso, a existência deve ser contemplada globalmente. A

racionalidade está no todo e só o todo é cognoscível, porque toda a existência se recria

e se auto-influencia. O conhecimento ganha, assim, vocação transdisciplinar.

Advinha-se, inevitavelmente, uma perplexidade quando se reflecte sobre este

novo paradigma. Se é verdade que as ciências, neste final de século, assumem que na

existência não há mecânicas, nem determinações, mas, apenas, tendências, também é

verdade que, face a este novo paradigma, o investigador pode ficar manietado.

Na verdade, o Homem não é omnisciente e a sua racionalidade não permite uma

consciência simultânea do caos e, muito menos, a compreensão deste. Se os cientistas

hoje reconhecem que medir é intervir e que a realidade apenas pode ser definida, não

se pode deixar de pensar que, de outra forma, não seria possível ao Homem

compreender a existência. Definir, classificar e quantificar são processos de uma

razão limitada que enforma a realidade na sua cosmovisão. E o Homem é, por

natureza, limitado, porque, se assim não fosse, não faria sentido um discurso sobre as

ciências, nem faria sentido este ensaio. O único discurso seria a constância na

existência. O Homem nada conheceria (enquanto acto de descoberta): o conhecimento

seria ele.

Se o Homem fosse, ele mesmo, consciência e constância na existência, todos e

cada Homem seriam consciência da totalidade; não haveria discurso, nem

investigador, nem ciência. Mas nada disto acontece, por isso, não é possível ter

consciência do caos. É, no entanto, possível intui-lo, por oposição às definições da

nossa razão. Desta forma, a ciência pode entrar numa crise mais profunda do que

aquela que nos trouxe o paradigma da modernidade. Como a existência é,

designadamente, desordem, criatividade e acidente (curiosamente, três substantivos

que se definem por oposição a conceitos de estabilidade que, linguisticamente, é

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assumida como característica da existência…), não será possível classificá-la,

delimitá-la, defini-la. Estas operações são modificação da existência, são

subjectivação do não subjectivável. Só a pan-imanência é existência e é verdade. O

conhecimento não faz sentido, porque é limitação, porque é redução duma realidade

não redutível, porque o todo não se reduz, o caos não se delimita. Assim, o

conhecimento humano é não-conhecimento e a ciência, tal como ela própria se

sonhou, nunca existiu.

Dito isto, estas reflexões terminariam aqui, por serem não-reflexões, apenas

introspecção, apenas (des)conhecimento de mim mesmo.

Mas não poderia terminar aqui, sob pena de cair no vício lógico de Zenão,

deixando-me fulminar pelo conceito de Infinito quando uma seta atingisse o meu

peito, ultrapassando as minhas reflexões sobre o não-espaço ou sobre a não-

distância…

A verdade é que um novo paradigma para a ciência de nada serve, se não

permitir ao Homem conhecer um pouco mais da realidade. O paradigma da pós-

modernidade não pode constituir-se como ruptura metodológica, deve, sim, assumir-

se como ruptura epistemológica – utilizando a palavra em sentido próprio,

etimológico, e não no sentido bachelardiano adoptado por Boaventura de Sousa

Santos. Tornou-se evidente, face ao estado actual da ciência, que a desordem e a

interpenetração são as principais características da existência. A ciência conclui que

as classificações que o Homem tem feito mais não são do que aproximações ao real.

Para que essas aproximações não bloqueiem na limitação das classificações humanas,

é necessário um novo discurso sobre as ciências que permita fazer uma leitura aberta e

interpenetrante de toda a realidade. Mas também é preciso aceitar a natureza humana.

O conhecimento é humano, é necessariamente subjectivado. Têm de se aceitar,

metologicamente, os caminhos da subjectivação. As ciências, enquanto disciplinas,

enquanto sistemas com coerência interna, devem manter-se como pontos de partida

para o conhecimento global.

A transdisciplinaridade não pode surgir como característica totalitária de toda a

ciência, sob pena de não ser possível ao investigador tratar um tema com

profundidade, por desconhecimento de certas áreas do saber. Ainda que

artificialmente, o conhecimento deve manter-se seccionado por disciplinas, para

permitir um estudo sistemático, dentro dos parâmetros da limitação humana. Só

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depois de exploradas essas disciplinas é que há condições para o salto epistemológico,

rumo à globalidade.

A História prova que só a modernidade permitiu que os investigadores deste

final de século se rendessem ao paradigma da auto-organização. Não teria sido

possível ao Homem começar pela aproximação global da realidade, se, antes, não a

tivesse classificado, adaptado à sua capacidade de perspectivação.

A transdisciplinaridade é o espelho epistemológico da realidade, mas a

disciplinaridade e a interdisciplinaridade são os percursos lógicos da humanidade.

Por isso, a transdisciplinaridade não pode surgir como paradigma metodológico

primário, mas como tentativa de aproximação mais fiável à realidade. Tentativa que

se terá de apoiar, necessariamente, nos modos de perspectivação do Homem.

Tentativa que abre as disciplinas e os sistemas, permitindo que se interpenetrem e se

enriqueçam, mas não esquece que o ponto de partida é o Homem, tal como ele pode

conhecer, e o ponto de chegada é a realidade cujo conhecimento global não está ao

nosso alcance, mas é, agora, o nosso objectivo.

Pode-se, assim, dizer que a transdisciplinaridade é o fenómeno característico da

pós-modernidade, enquanto superação da disciplinaridade estanque, mas não

enquanto aniquilação da disciplinaridade assumida como método simplificador do

conhecimento, adaptador da realidade à natureza da consciência humana.

Haverá lugar para a investigação jurídica dogmática, mas aberta e enriquecida

na interdisciplinaridade. Haverá lugar para uma perspectivação jurídica de temas que

são mais transdisciplinares do que os outros.

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Conclusão

O investigador jurídico não poderá fechar-se num Direito fora do Mundo. O

Direito existe de e para o Mundo. É a busca de consensos em todos os aspectos da

vida.

Só o investigador consciente de que o Direito não é uma transcendência

estranha à realidade, poderá abrir-se ao contributo das ciências, enriquecendo a

Ciência Jurídica.

A transdisciplinaridade surge como característica de novos temas que não se

enquadram em nenhuma disciplina, nem ocupam nenhum espaço vazio no espectro

das ciências. É, na verdade, uma pluridisciplinaridade: várias disciplinas ao serviço de

um tema. A investigação científica assume-se como global, tendo como único

objectivo a resolução de um problema. A investigação jurídica assume-se como

perspectivação e como contributo para o cumprimento desse objectivo.

A transdisciplinaridade surge, também e sobretudo, como fenómeno da pós-

modernidade, mas não pode ser um fenómeno totalitário, levado às últimas

consequências. A ruptura da pós-modernidade (dupla ruptura, na terminologia de

Boaventura de Sousa Santos) não arrasta a metodologia disciplinar, imprescindível e

artificial apoio do limitado entendimento humano. Apenas a enriquece, abrindo-a à

interpenetração. A ruptura é essencialmente epistemológica (mais uma vez, em

sentido próprio, já que Boaventura de Sousa Santos fala em ruptura epistemológica no

mais abrangente sentido bachelardiano), enquanto revolução do discurso sobre a

ciência, enquanto reconstrução de uma teoria da ciência. Supera-se a disciplinaridade

estanque, mas não se aniquila a disciplinaridade assumida como método simplificador

do conhecimento, adaptador da realidade à natureza da consciência humana.

O Direito recontextualiza-se no novo espectro da ciência, enriquecendo-se

metodologicamente, sem se descaracterizar enquanto estrutura, enquanto disciplina.

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Nota bibliográfica

Para uma melhor contextualização da polémica enunciada neste ensaio, indica-

se alguma bibliografia fundamental, seguida mais de perto pelo autor.

– LATOUR, Bruno, Nous n'avons jamais été modernes: essai d'anthropologie symétrique, La Découverte/Poche, Paris, 1997.

– SANTOS, Boaventura de Sousa, – Introdução a uma ciência pós-moderna, Edições

Afrontamento, 3.ª edição, Porto, 1993 (1.ª edição: 1989);

– Um discurso sobre as ciências, Edições Afrontamento, 7.ª edição, Porto, 1995 (1.ª edição: 1987).

– VOEGELIN, Eric, A natureza do direito e outros textos jurídicos, Direito e Ciência Jurídica, Vega, Lisboa 1998.

– WIEACKER, Franz, História do Direito Privado Moderno, (tradução do original alemão intitulado Privatrechtsgeschichte der neuzet unter besonderer berücksichtigung der deutschen entwicklung, 2.ª edição revista, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1967), 2.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993.