uma leitura turÍstica da formaÇÃo da vila sequeira …

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195 UMA LEITURA TURÍSTICA DA FORMAÇÃO DA VILA SEQUEIRA ATRAVÉS DA IMPRENSA DO SÉCULO XIX RAMOS, Érica Souza 1 RESUMO Este trabalho realiza uma leitura histórica pela ótica do turismo sobre a formação da estação balneária Vila Sequeira, a qual foi inaugurada no ano de 1890, na costa oceâ- nica da cidade do Rio Grande-RS, hoje conhecida como balneário ou praia do Cassino. Este balneário a princípio foi planejado para banhos terapêuticos de mar e aos poucos transformou-se em um espaço de lazer, entretenimento e ócio. Servem de fonte para esta pesquisa recortes de jornais rio-grandinos, que circularam entre 1890-1895, os mesmos fazem parte do banco de dados: Os primórdios do turismo na praia do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário”. Do ponto de vista metodológico, este estudo centra- se na perspectiva de uma abordagem qualitativa. PALAVRAS-CHAVE: História, Turismo, Balneário, Imprensa. RESUMEN Este trabajo realiza una lectura histórica a través de la óptica del tursimo bajo la for- mación de la estación balnearia Vila Sequeira que fue inaugurada en 1890, en la costa oceánica de la ciudad de Rio Grande-RS, hoy conocida como balneario la Playa de Cassino. Este balneario al principio fue planeado para baños terapéuticos de mar y en seguida se ha transformado en un espacio de ocio y entretenimiento. Fueron utilizados como fuentes para esta pesquisa los periódicos rio-grandinos que circularon entre 1890 y 1895, los quales forman parte del banco de datos: Los inicios del turismo en la playa de Cassino: Vila Sequeira y la génesis del balneario. Desde el punto de vista metodoló- gico, este estudio se centra en la perspectiva de un enfoque cualitativo. PALABRAS-CLAVE: Historia, Turismo, Casa de Baños, Prensa. INTRODUÇÃO Nos fins do século XVIII e durante todo o XIX, desenvolvem-se na Europa as primeiras estações balneárias com fins terapêuticos 2 . As prescrições médicas da cura através dos banhos de mar faziam com que os balneários começassem a ser valorizados no 1 Bacharela em Turismo pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG [email protected]. 2 A importância dos banhos para a saúde faz com que novos espaços sejam moldados para tal prática; surgem as estâncias termais, os sanatórios, as casas de banho e os balneários. O desenvolvimento das estações balneárias, no século XIX, por todo o mundo, deve-se aos seus pioneiros, “[...] os ingleses, que foram, igualmente, os precursores na criação das estruturas balneárias, incorporadas, posteriormente, por alemães e franceses”. (SCHOSSLER, 2010, p. 67)

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UMA LEITURA TURÍSTICA DA FORMAÇÃO DA VILA SEQUEIRA ATRAVÉS DA IMPRENSA

DO SÉCULO XIX

RAMOS, Érica Souza1

RESUMO Este trabalho realiza uma leitura histórica pela ótica do turismo sobre a formação da estação balneária Vila Sequeira, a qual foi inaugurada no ano de 1890, na costa oceâ-nica da cidade do Rio Grande-RS, hoje conhecida como balneário ou praia do Cassino. Este balneário a princípio foi planejado para banhos terapêuticos de mar e aos poucos transformou-se em um espaço de lazer, entretenimento e ócio. Servem de fonte para esta pesquisa recortes de jornais rio-grandinos, que circularam entre 1890-1895, os mesmos fazem parte do banco de dados: “Os primórdios do turismo na praia do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário”. Do ponto de vista metodológico, este estudo centra-se na perspectiva de uma abordagem qualitativa. PALAVRAS-ChAVE: História, Turismo, Balneário, Imprensa.

RESUMEN Este trabajo realiza una lectura histórica a través de la óptica del tursimo bajo la for-mación de la estación balnearia Vila Sequeira que fue inaugurada en 1890, en la costa oceánica de la ciudad de Rio Grande-RS, hoy conocida como balneario la Playa de Cassino. Este balneario al principio fue planeado para baños terapéuticos de mar y en seguida se ha transformado en un espacio de ocio y entretenimiento. Fueron utilizados como fuentes para esta pesquisa los periódicos rio-grandinos que circularon entre 1890 y 1895, los quales forman parte del banco de datos: Los inicios del turismo en la playa de Cassino: Vila Sequeira y la génesis del balneario. Desde el punto de vista metodoló-gico, este estudio se centra en la perspectiva de un enfoque cualitativo. PALAbRAS-CLAVE: Historia, Turismo, Casa de Baños, Prensa.

INTRODUÇÃO Nos fins do século XVIII e durante todo o XIX, desenvolvem-se na Europa as

primeiras estações balneárias com fins terapêuticos2. As prescrições médicas da cura através dos banhos de mar faziam com que os balneários começassem a ser valorizados no

1 Bacharela em Turismo pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG [email protected]. 2 A importância dos banhos para a saúde faz com que novos espaços sejam moldados para tal prática; surgem as estâncias termais, os sanatórios, as casas de banho e os balneários. O desenvolvimento das estações balneárias, no século XIX, por todo o mundo, deve-se aos seus pioneiros, “[...] os ingleses, que foram, igualmente, os precursores na criação das estruturas balneárias, incorporadas, posteriormente, por alemães e franceses”. (SCHOSSLER, 2010, p. 67)

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cotidiano das sociedades. É o caso dos ingleses, em plena era vitoriana, que tomaram gosto pelas estações balneárias.

No Brasil as estações balneárias marítimas, embora um pouco mais tarde do que no continente europeu, começam a fazer parte do imaginário da sociedade e a se desenvolver no final do século XIX. Esses espaços acabam tendo muita procura em função das propriedades curativas que as águas marinhas e toda a atmosfera costeira proporcionavam aos banhistas.

No sul do Brasil, a cidade do Rio Grande, em 26 de janeiro de 1890, foi pioneira ao inaugurar a Estação Balneária Vila Sequeira, planejada para receber as pessoas que a procuravam e, além de representar, para a sociedade rio-grandense, a introdução dos balneários na rotina dos gaúchos. A estação contava com certa infraestrutura: “[...] transporte via ferroviária de Rio Grande até as proximidades do mar; camarotes, barracas para trocas de roupas; restaurante; água potável; luz e hotel, o qual se tornou o centro das atividades da vida social de quem frequentava a estação balneária” (O Bisturi, Março, 1890).

O Hotel Cassino cuja denominação deve-se ao fato de ter sediado salas de jogos, realizava bailes e jantares, sendo que a procura pelos banhos terapêuticos constituía a motivação principal que levava o público a se hospedar no hotel; com o passar do tempo, no entanto, outras atividades foram sendo incorporadas, consolidando o balneário como uma atividade turística local.

A Estação Vila Sequeira, após sua inauguração, passa a receber um público variado, oriundo de diferentes partes do Rio Grande do Sul, mas principalmente os rio-grandinos, que assimilaram a prática do banho como um hábito local. O fluxo de pessoas que acorria em direção ao balneário justifica-se, naquele período, pela evolução dos meios de transporte e pela construção de ferrovias, que interligavam as cidades mais próximas: Bagé e Pelotas.

Pode-se perceber que a sociedade vai se apropriando da estação balneária, pois, ao longo do tempo, forja sua identidade como espaço de banho e lazer, marcando profundamente todas as estruturas da comunidade local. Tendo em vista que o fluxo de pessoas começa a aumentar, surge, então, a necessidade de um lugar para se hospedarem e de uma infraestrutura mínima para atender às demandas, tais como equipamentos turísticos para usufruírem após o banho, enquanto aguardam o trem para retornarem aos seus lugares de origem, da mesma forma que a hospedagem torna-se importante lugar para realizarem suas refeições e exercerem sua sociabilidade.

Reportar ao processo de constituição do balneário Vila Sequeira através da imprensa do século XIX foi o principal escopo desse trabalho. No entanto, entender a construção desse balneário pela ótica do turismólogo é o objetivo central. Para atingir os objetivos específicos lançou-se algumas ideias norteadoras a partir das seguintes questões: - Compreender e contextualizar como se desenvolveu historicamente a busca pelos banhos de mar; - Identificar quais foram às estruturas de lazer e entretenimento oferecidas ao público; - Analisar a estrutura

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do Hotel Cassino, para compreender como funcionava o espaço de sociabilidade; - Investigar o processo de organização do transporte ferroviário para o balneário; - Averiguar quem era o público frequentador da estação balneária Vila Sequeira.

A FORMAÇÃO DOS bALNEÁRIOS E O TERMALISMO

Os balneários marítimos, durante os séculos XVIII e XIX, desenvolveram-se a partir do discurso da cura, segundo o qual os banhos poderiam dar conta de todos os males: “A praia era mais um lugar ‘de cura’ do que ‘de prazer’. (Urry, 2001, p.35) A implementação de intervalos mais prolongados de tempo livre (férias) e a melhoria nos meios de transportes favorecem o crescimento e a consolidação dos balneários marítimos; de fato, esses são absorvidos pela sociedade daquele período.

Inicialmente, é de suma relevância compreender como se desenvolveram as estações balneares, o movimento mais marcante foi o termalismo, que gerou um fluxo razoável de pessoas aos balneários, convertendo esses espaços em lugar de descanso e prazer, principalmente para o tratamento de enfermidades. (Rejowski, 2002) Não podemos esquecer que é ainda no século XIX que o discurso terapêutico torna-se dominante, e a ideia de progresso e de higiene são forças norteadoras de medidas de saneamento; para tanto, uma série de práticas inserem-se em um contexto de modernidade. (Boyer, 2003)

Cabe esclarecer, neste momento, o fenômeno da vilegiatura, que muito tem em comum com o termalismo, caracterizando-se por um deslocamento para um determinado lugar fora de sua residência habitual, por determinado espaço de tempo. Camargo elucida que:

Trata-se da denominação de um fenômeno social, na maior parte das vezes associado, ao menos no passado, às viagens de citadinos ordinariamente durante o verão, para determinadas localidades, inicialmente do campo, em recreio e sem outras finalidades que impliquem qualquer atividade rentável sob o ponto de vista econômico. [...] Todavia, o termo Villa com o mesmo sentido de casa de campo, nomeia construção requintada circundada por jardins, fora ou nas proximidades da cidade, ou villegiatura, que é o período originalmente passado na Villa [...]. (2007, p. 181)

O que evidencia a aproximação do fenômeno do termalismo e da vilegiatura é que também se davam na estação de verão, embora algumas termas também fossem utilizadas no inverno; a saída da rotina urbana das cidades, a contemplação e o recreio foram fundamentais para que se estabelecessem tais métodos de cuidados com a saúde. Mas, cada um desses movimentos ocorrem separadamente, e a villegiatura precede o termalismo,

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ambos são considerados fenômenos europeus, que logo se internacionalizaram, embora o ápice seja “[...] na esteira do capitalismo industrial”. (Camargo, 2007, p. 189)

No antigo Império Romano, as estâncias termais já existiam desde 25 a.C.; as romanas tinham o apelo salutar e recreativo, enquanto as que surgiram séculos depois, informa Camargo, eram “[...] casas de banho públicas usuais nas cidades europeias tinham finalidades precípuas de higiene pessoal, nada têm a ver com seu cotidiano e os desdobramentos dispostos como categoria de tempo linear” (2007, p. 203). O ressurgimento do termalismo no século XVII se dá em razão da mudança de pensamento, própria do período; é o que comenta Mirian Rejowski:

[...] iniciou uma mudança na mentalidade dos europeus em relação aos ba-nhos. Reis e rainhas, chefes de Estado, cardeais e a alta nobreza passaram a frequentar as estâncias hidrominerais para o tratamento de enfermidades alia-do, em alguns casos, ao sentimento religioso e, posteriormente, aos prazeres. (2002, p. 47)

Com o passar do tempo, os frequentadores se deslocavam para as estações com a finalidade de também buscarem o lazer “[...] para usufruir dos esquemas de entretenimento que eram oferecidos” (PIRES, 2002, p.4). Então, nesse processo, observa-se que surge a importância de receber essas pessoas e hospedá-los, Rejowski destaca que em meados do século XVIII,

[...] alguns nobres já tinham aproveitado certas fontes em suas propriedades, preparando-as para receber turistas. Ofereciam a eles alojamento e refei-ções durante sua estada, posteriormente complementadas por atividades que aliavam tratamento com entretenimento (teatros, bibliotecas, jogos etc). Tais atividades surgiram para preencher o tempo ocioso dos usuários, uma vez que se dedicavam ao tratamento por períodos de 15 a 25 minutos diários. (2002, p. 47)

O público que frequentava os referidos espaços inicialmente era formado por indivíduos que compunham a elite da sociedade. Mario Jorge Pires ressalta que nesses séculos:

[...] tanto as termas quanto as estâncias estavam restritas a um número redu-zido de frequentadores. Ambas recebiam grupos de interessados, é verdade, na sua cura, e, ao mesmo tempo, em afirmar seus status imitando a Família

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Real, que para elas se dirigia com grande aparato, conferindo prestígio a essas localidades. Somente com a era da ferrovia é que as termas e estâncias conseguiram superar, magnificamente, sua experiência anterior em atrair visitantes. (2002, p.4)

Segundo Marc Boyer, ainda no início do século XX, esse incipiente turismo era uma atividade predominantemente pertencente à classe rica; mas com a ascensão de novas camadas da sociedade, outro público começa a frequentar os espaços em questão, gerando um choque cultural que, segundo o autor,

A difusão chocava-se, durante muito tempo, contra um “barreira cultural”; os fabricantes empresários cuja vida era dedicada “ao enriquecimento pelo trabalho e pela poupança” (frase de Guizot) contentavam-se em enviar suas mulheres e filhos para os tratamentos ou para casas de campo, sem nunca tirar suas próprias férias. A difusão do turismo no mundo do trabalho – a burguesia inicialmente, seguida pela pequena burguesia e em seguida pelos operários (2003, p. 34).

Essa difusão foi facilitada pelos meios de comunicação, a exemplo dos jornais, trazendo seus elogios aos lugares turísticos e incitando as pessoas a se deslocarem para conferir as atrações, o que acabava gerando o crescimento do público frequentador. A partir disso, a possibilidade de um intercâmbio cultural entre as pessoas é evidente, tornando tais lugares motivacionalmente propícios para sua procura.

O fenômeno do banho terapêutico alcança o Brasil, mesmo que tardiamente, e as estações de banho, principalmente as marítimas, surgem e conquistam tanto a elite brasileira, quanto os menos abastados. Os discursos de cura e higienização, por sua vez, seguem os discursos europeus e ingleses.

O Brasil, a partir do final do século XIX, foi estimulado pelos modismos europeus a cuidar do corpo, sendo contagiado também pelas práticas de jogos recreativos e esportes ao ar livre. (ENKE, 2011, p.2) Assim, tanto os banhos de água doce quanto os de água salgada são explorados pelos hotéis, tendo em vista o movimento de pessoas que se dirigiam a tais lugares.

Os poucos banhos de água doce existentes eram, curiosamente, explorados também por hotéis que, dessa maneira procuravam oferecer um atrativo a mais para seus hóspedes. Em 1859, na relação de serviços prestados no Rio de Janeiro constavam cinco “banhos públicos”, dois dos quais em hotéis: os “Banhos da Saúde”, no Hotel Pharoux da Rua Fresca e os “Banhos de Dreux”, no Hotel Ravot. (PIRES, 2002, p. 61)

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O turismo nessa época estava se desenvolvendo em duas temporadas: inverno e verão. No verão é que a atividade se destacava em decorrência do maior fluxo de pessoas e por ter mais tempo de duração. Os balneários marítimos se tornam referência, consolidando-se no século XIX, em função da talassoterapia, que estava centrada no tratamento com água salgada e gelada. Na Inglaterra, França e Espanha, os banhos de mar atingem o seu auge. Esses novos hábitos sociais passaram a fazer parte da vida das pessoas.

O termalismo, o montanhismo e o paisagismo se completavam; para Boyer, é necessário lembrar que os mesmos geram certo movimento de pessoas, contribuindo para posterior configuração do que viria a ser o turismo de massa:

[...] as grandes etapas que levaram das invenções elitistas do fim do século 18 ao turismo de massa contemporâneo frequentemente apresentado como uma grande migração estival de citadinos, fora das cidades, rumo ao cam-po – ou ao mar – ou às montanhas regeneradoras. Os turistas de massa eram percebidos então como consumidores da Natureza, devoradores de paisagens. (BOYER, 2003, p. 55)

Explica Camargo (2007) que, à medida que os cuidados com o corpo e o lazer começaram a tornar-se complementares, a estada nas estações balneárias passou a ser padrão de dualidade pela função curismo-turismo. Soma-se a tudo isso a busca por status nas estações de cura, já que elas também são “[...] pretextos para o convívio com a presença dos indivíduos noticiados e conhecidos por todos” (CAMARGO, 2002, p. 177).

No caso do Brasil, a burguesia estava sob forte influência dos hábitos da corte instalada no Rio de Janeiro e dos costumes europeus; daí que o incremento desses espaços com esquemas de lazer, paralelos aos banhos, diversificou a oferta de serviços e uma enorme clientela surgiu em torno das estações balneárias. Mas cabe salientar que tal influência não é predominante durante todo o século XIX, conforme destaca Camargo:

Se a monarquia no Brasil ditou costumes e modas desde a chegada do prínci-pe em 1808, em 1870, quando, além de outras coisas, se começou a falar em república, gradativamente a família imperial deixou de ser modelo para so-ciedade brasileira. Consideração que é relevante para construir uma história do turismo no Brasil. (2007, p. 191)

A mão da família real no desenvolvimento das estâncias termais e balneários marítimos no Brasil viabilizou que essas práticas fossem absorvidas pela sociedade local e, mesmo que depois o prestígio real não era mais tão norteador, os hábitos já tinham sido absorvidos pela burguesia brasileira, fazendo com que os balneários continuassem a se desenvolver, rumo à democratização de acesso, ou seja, começassem a se tornar mais

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populares, perdendo o ar imperial que tinham antes. Pode-se concluir que o discurso da cura e da higienização contribuiu para a consolidação de balneários marítimos e, com o passar do tempo, para a de destinos turísticos.

Compreende-se que os meios de transportes urbanos, como o trem, contribuíram para a popularização dos banhos de mar e de outros lazeres, como os jogos. Com a construção das primeiras linhas de estrada de ferro, novas localidades entraram para o rol das estâncias termais e balneárias; um bom exemplo é Petrópolis, no Rio de Janeiro, que passou a se destacar nos veraneios, por consequência da construção da estrada de ferro Rio-Petrópolis, em 1860. (REJOWSKI, 2002).

Da mesma forma ocorreu com a estação balneária Vila Sequeira, na cidade do Rio Grande/RS, cuja inauguração da linha férrea Rio Grande-Bagé aumentou o fluxo turístico entre as duas cidades. Os proprietários da Companhia Carris Urbanos, ao perceberem isso, estenderam a ferrovia até a costa oceânica3 e construíram a estação de banho, possibilitando, assim, o deslocamento dos rio-grandinos e dos visitantes das cidades próximas, o que permitiu a afirmação do balneário no final do século XIX como espaço de banho.

METODOLOGIA

Do ponto de vista metodológico esta pesquisa esteve embasada em fontes bibliográficas, e principalmente no Banco de dados “Os primórdios do turismo na praia do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário”, estudo que foi realizado pela Secretária de Turismo, Esporte e Lazer de Rio Grande em parceria com a Biblioteca Rio-grandense, este possui um acervo de jornais do final do século XIX, onde circularam matérias sobre a constituição do balneário e todo seu universo, além de conter um documento relativo ao Hotel Cassino e o Guia de Banhista. Portanto, a pesquisa por caracterizar-se como documental, assumiu um caráter historiográfico e analítico, com base em uma abordagem qualitativa.

Ao situar o objeto desta pesquisa, a principal pergunta que passou a orientar essa discussão foi: Qual a importância histórica do balneário Vila Sequeira para o turismo? Diante de tal problematização o presente estudo direcionou-se a desvendar a gênese do balneário no período entre 1890 e 18954, através de leituras de jornais do século XIX reunidos no banco de dados: “Os primórdios do turismo na praia do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário”, tendo como viés crítico as perspectivas da área do turismo.

O uso da imprensa é um importante suporte documental para a realização de estudos que objetivem resgatar a história das sociedades. Nesse sentido, os jornais assumem um papel fundamental para quem deseja pesquisar os primórdios do turismo. Em relação aos jornais como fonte de estudo, Francisco das Neves Alves, afirma que:

3 O termo costa oceânica referencia o estreito geográfico litorâneo. 4 Período que compreende os recortes de jornais do banco de dados.

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Uma das mais significativas fontes que tem servido às reconstruções históri-cas de caráter regional tem sido a imprensa. Idiossincrasias, peculiaridades, identidades, inserções e exclusões, entre vários outros processos de cada uma das regiões nacionais (províncias ou estados), tornam-se marcadamente evi-denciados em estudos entabulados a partir das informações/opiniões contidas na imprensa. (2003, p. 123)

Valorizar e investigar um determinado evento, especialmente através da imprensa, significa dar visibilidade histórica e cultural à comunidade retratada, uma forma de interpretar a organização social da mesma, seus costumes e hábitos. Dessa forma, o estudo sobre a estação balneária surgida no final do século XIX possibilita aprofundar-se na constituição do referido espaço como proposta turística, bem como o entendimento de como este se caracterizou, além de apontar o espaço de sociabilidade da elite local e das práticas relacionadas à cura, ao lazer e ao entretenimento.

A ESTAÇÃO bALNEÁRIA VILA SEQUEIRA NA IMPRENSA DO SÉCU-LO XIX

Em 1890 foi inaugurada a Estação Balneária Vila Sequeira5, na cidade do Rio

Grande. A estação de banhos foi idealizada pela Companhia Carris Urbanos de Rio Grande, também responsável pela realização do transporte para a costa; a empresa estava sob a gerência de Antonio Candido de Sequeira6. Em sua primeira temporada de banhos, muitas pessoas passaram a procurar a Estação, para a prática dos banhos de mar, conquistando grande prestígio entre a sociedade local.

A Estação Balneária Vila Sequeira foi fundada em um período de grandes influências europeias e de modernização no Brasil. Em meio a esse processo, um elemento foi determinante para a construção do balneário: o prolongamento da ferrovia, ligando a cidade à costa oceânica, na época conhecida como Costa da Mangueira7

5 Atualmente, Balneário do Cassino ou Praia do Cassino, localiza-se na Costa Oceânica da cidade de Rio Grande-RS. 6 Villa Sequeira. bisturi. Rio Grande, s/nº, 23 nov. 1890. 7 Em relação à denominação Mangueira, comenta Enke que: “[...] era o nome de uma extensa área do município do Rio Grande, que chegava ao mar e na época tinha categoria de Distrito. Sua denominação deve-se ao fato de que naquela época o gado era deixado para descansar nas áreas das árvores mangueiras existentes ao longo deste caminho”. (2013, p. 80)

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Figura 1: Casas para as famílias de frente para o mar.

(Fonte: “os primórdios do turismo do cassino: vila sequeira e a gênese do balneário”)

Ao longo da década de noventa do século XIX, deu-se o processo de desenvolvimento do balneário Vila Sequeira. Em pouco tempo, momentos de ócio e as atividades de lazer são somados aos banhos. Nesse sentido, Rebecca Enke explica, a respeito da formação da Estação:

A valorização do ócio e do lazer e o hábito de gozar as férias junto ao mar fizeram com que empresários dotassem as estâncias balneares de vários espaços sociais, como hotéis, pousadas, restaurantes, clubes e salas de teatro. Na Villa Siqueira não foi diferente, a proposta de construção de um balneário com características europeias foi elaborada e o empreendimento passou a ser executado. (ENKE, 2013, p.83)

No final do século XIX, a estação estava sendo planejada como um espaço para receber as pessoas que procuravam o balneário. Observa-se intensas propagandas, nos jornais, a fim de seduzir o público, a partir da cura e do bem-estar propiciados pelos banhos de mar. As motivações salutares serviram como elementos primordiais para a introdução dos balneários na vida cotidiana da sociedade. Aponta Enke (2013): “Com a instalação do Balneário novos hábitos passaram a fazer parte da rotina do rio-grandino e o ir a banhos foi um deles”.

A INFRAESTRUTURA bALNEÁRIA A estação começa a contar com certa infraestrutura8 turística para atender os banhistas,

composta por camarotes de banho, barracas com rodas, um restaurante, hotel, comércio, casas

8 Segundo Beni, existe distinção entre a infraestrutura geral e a específica (turística), a geral serve o turismo incidentalmente. A infraes-trutura geral é formada por vias de acesso, transportes, sistemas de comunicação, distribuição de energia, de água etc. Sendo assim, os vi-sitantes utilizam os serviços disponíveis para a população. Já a infraestrutura específica implica a implantação de equipamentos receptivos, abrangendo alojamentos e outras instalações turístico-recreativas. (Beni, 2003)

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para alugar. Passa a contar ainda com serviços básicos, tais como: fornecimento de luz à base de querosene; água potável, a qual era transportada em vagões-tanque; leiteria e lavanderia. Pode-se constatar, por meio das matérias publicadas nos jornais da época, que o responsável pela transformação espacial do balneário é, sem sombra de dúvida, a linha férrea.

O chalé erguido na costa para ser sede de um restaurante possuía uma arquitetura singular: era propriamente adaptado ao meio, todo em alvenaria de tijolo e rodeado por uma varanda de três metros, que servia para a colocação das mesas para refeições, passando a compor a paisagem local.

Figura 2: Chalés e restaurante à beira-mar.

(Fonte: “Os primórdios do turismo do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário)

A inauguração do restaurante foi anunciada pelo Echo do Sul do dia 4 de fevereiro de 1891: “Inaugurou-se o restaurant do René Pascal, mas a inauguração foi provisoria, por que René pensa em uma festa official, com todos os requisitos do bom gosto”. (Fev. 1891) O restaurante passa a fazer parte do cotidiano do balneário. No anúncio, a expressão “requisitos do bom gosto” denota a preocupação do proprietário do estabelecimento de apresentar um serviço à altura da alta classe da época. Todos esses elementos que passam a fazer parte da costa oceânica formam, em seu conjunto, o que, nos dias de hoje, pode-se considerar uma infraestrutura turística9.

A entrada da estação se dava pela estrada de ferro, para a qual os esforços na direção de vencer o terreno arenoso e conter o estrago do gado foram incessantes, sendo

9 Segundo Beni, a infraestrutura turística é o “[...] conjunto de edificações, de instalações e serviços indispensáveis ao desenvolvimento da atividade turística. Compreendem os meios de hospedagem, serviços de alimentação, de entretenimento, de agenciamento, de informa-ção e outros”. (2003, p. 331)

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necessário, em vários pontos, aramar. O projeto de organização da estação balneária previa a arborização de muitas áreas, onde foram plantados eucaliptos e acácias; na costa já se encontravam árvores do período indígena, como os cedros marítimos. (O BISTURI, 1890)

O jornal recém-mencionado, da mesma data, descreve a paisagem e a localização da estação balneária, dizendo que: “A nordeste se avistava a povoação da Barra e o farol, a sudeste a paisagem era formada por uma praia lisa, onde as areias eram duras e resistentes à roda de veículos”. Na sequência, informa o jornal: “[...] em frente o mar e seu horizonte onde o céu e o mar se confundem”. Ainda no mesmo jornal, são apresentadas as vantagens que os banhistas tinham ao frequentar a estação, pois podiam usufruir de uma infraestrutura composta por “[...] cem camarotes para homens e outros tantos para as senhoras de primeira classe; 40 camarotes para a segunda classe, 50 barracas sobre rodas; além de um restaurante a la carte, leitaria e rouparia”. (O BISTURI, 1890)

Figura 3: Camarotes para banhistas:

(Fonte: “Os primórdios do turismo do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário)

Segundo o jornal O Bisturi, os camarotes eram considerados elegantes, construídos em madeira de lei, sobre estacas, com portas, vidraças, xadrez, bancos, cabides e espelhos. O restaurante possuía amplas varandas cobertas, sendo servidas as refeições sem aglomerações. Já o Hotel Cassino possuía 136 quartos, oito lojas, salão de jantar, banheiros; ainda contava com quarenta casas mobiliadas para famílias regulares, com sala de campo e cozinha. As casas eram entregues com toda a mobília necessária, contando inclusive com serviços de limpeza e iluminação.

A infraestrutura balneária que se formou na estação permitiu que em pouco tempo o local se tornasse um espaço de sociabilidade das camadas mais altas da sociedade, as quais vinham em busca das propriedades terapêuticas da água do mar:

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[...] A Villa Sequeira vai ser, por tanto, em prazo muito curto, um bairro de gran-de importância pela reunião da roda elegante que irá aos banhos. Inaugurados os salões de concerto e habitadas todas as casas em construção, este anno a esta-ção balnear terá todos os requintes do bom gosto, e isto para fallar simplesmente na utilidade, na hygiene dos banhos d’agua do mar. (ECHO DO SUL, 1890)

Portanto, são as propriedades curativas da água salgada que atraem o crescente fluxo de pessoas em direção à estação. Consequentemente, o novo espaço começa a demandar uma infraestrutura voltada ao referido público. Esse cenário passa a configurar o que se chama de curismo-turismo, e a cura torna-se o principal fator motivacional para a chegada de excursionistas na estação em busca dos banhos.

O bANhO E A CURAO ato de tomar banho10 nas águas salgadas do mar, para as pessoas que acreditavam em

suas propriedades terapêuticas, torna-se um meio importante para obter a cura. Eram receitadas as águas em alguns casos para o uso interno, dependendo da conveniência da administração ou por uma indicação especial; a água poderia ser aplicada das mais diversas formas. Para Van-Merris, médico que dirigia o hospital militar de Dunkerque, na França, “Os meios mais simples, mais universalmente seguidos são os melhores, diz Van-Merris, para se obterem todos effeitos da balneotherapia marítima”. (DIARIO DO RIO GRANDE, 1890)

Na prática dos banhos marítimos, surgem muitas orientações para que sejam obtidos seus efeitos terapêuticos, gerando inicialmente um padrão de comportamento entre os banhistas. Antes do banho, era recomendado que se preparasse o corpo com uma boa noite de sono e um farto café da manhã; enquanto isso, os raios de sol iam aquecendo o ar e a água para que, após a digestão, o banhista estivesse pronto para se deleitar nas águas do mar. Para iniciar o banho, o indivíduo deveria se despir e adentrar a água; a indicação era de manter o corpo em constante movimento, para que assim o banhista não sentisse frio, ao mesmo tempo que estaria se exercitando. Observa-se que o banho está dividido em três momentos: antes, durante e depois, sendo que o término é descrito da seguinte maneira:

[...] O banho deve terminar antes do segundo calafrio e, no caso em que este surprehenda o banhista, logo em seguida a elle. A diligencia no vestir é requerida também, dispensando-se o enxugar, cui-dado que se usa nos outros banhos, porque as particulas salinas da agua, seccando-se na pelle, como que prolongam a sua acção. Esta gymnastica a que se submette o organismo, que tem por fim promover uma reação enérgica começa na ingestão de refeição e termina no passeio ao longo da praia em plena atmosphera marítima. [...] (DIARIO DO RIO GRANDE, 1890)

10 Para Schossler, “Ir às curas em águas termais ou marinhas pode ser um discurso ainda reproduzido nos dias atuais”. (2010, p. 1)

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Acreditava-se tanto nas propriedades da água marinha, de tal forma que esta se diferenciava dos outros tipos de banhos, como os de água doce. Na estação, a partir da compreensão das propriedades higiênicas e terapêuticas do mar, a afluência de banhistas se dirigindo à costa é crescente. Os banhos passam a ser uma prática muito procurada, reconhecida pela sociedade como revigoradora: “[...] Está reconhecida a utilidade dos banhos, como um reparador das forças vitaes. Faz redobrar o apetite, reparar as forças, enriquecer o sangue e robustecer o organismo [...]”. (O BISTURI,1890)

Havia recomendações para que não se excedesse o número máximo de banhos por dia. Devia-se tomar um banho por dia; caso não houvesse o vigor esperado, mas sim a fadiga e a fraqueza, devia-se suspender temporariamente os banhos e recomeçar somente logo após a recuperação, prescreve Van-Merris. Esses discursos utilizados pela medicina durante o século XIX tiveram grande importância no processo de construção das estações balneárias, influenciando as práticas e as atividades exercidas na orla marítima e regendo o modismo gerado em torno dos balneários. Dessa forma, o discurso do médico, reproduzido nos jornais rio-grandinos da época, traduzia o quanto a influência europeia estava presente na estação.

O tratamento terapêutico proporcionado pelo contato com toda a atmosfera marítima também era recomendado para as crianças, em uma coluna do jornal Diario do Rio Grande, de onde foram retirados fragmentos da crônica escrita por Arthur Toscano, na qual se pode perceber o apelo deste a respeito das vantagens de ir à estação para o desenvolvimento psíquico e físico das crianças, principalmente se referindo às crianças que vivem nas cidades:

A Estação Balnear e as creanças[...] São de causar dó as estatísticas mortuarias dos ultimos tempos, nas tres principaes cidades do Estado, no que concerne á mortalidade das creanças. A ceifa tem sido enorme, principamente, por que, há muito tempo, não tínha-mos visto tomar o incremento, que agora tomaram, a coqueluche, a entero-colite, as febres de máo caracter, dysenteria, etc. Veem-se chegar aqui as creanças anêmicas, cahindo aos pedaços, os olhos embaciados, birrentas, sem apetite, enroupadas como bonecas, e que parecem que vão deixar a vida de um momento para outro. Em poucos dias, sem uso ou com uso muito moderado de medicamentos, eíl-os que recuperam as lindas cores de outr’ora, que se avigoram, que retornam á an-tiga alegria e são um motivo de contentamento sadio e não um espectaculo con-tinuo de miséria, próprio para desafiar a compaixão de todos. [...] (Jan. 1894)

O vestuário era mais leve do que o utilizado nas cidades, sendo usadas camisolas brancas feitas de chita; tocas e calçados eram dispensados, mantendo as crianças em contato com o ambiente; algumas pessoas, na contramão, afirmavam que isso não passava de uma judiaria. Mas obviamente após o primeiro impacto das crianças com o mar, o difícil era retirá-las da beira da água, onde brincavam com a areia. Além disso, a alimentação era outro aspecto que sofria influências com a prática do banho de mar, pois o apetite delas era

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estimulado, tendo em vista que haviam gastado as suas energias em meio aos banhos e às brincadeiras à beira-mar.

Portanto, a alimentação se diferenciava da que era dada nas cidades: era comum ver as crianças serem alimentadas com leite, pão com manteiga e carne, em vez de água e chás. Sendo assim, “[...] onde as crianças menos ficavam era em casa, tendo o seu lugar habitual nas areias, á sombra, se divertindo com outras crianças e substituindo os chás pelo leite puro da vaca”. (DIARIO DO RIO GRANDE, 1894) A passagem citada faz com que seja possível compreender o quanto às vivências proporcionadas na estação balneária propiciavam uma melhor qualidade de vida para quem a frequentasse, não importa que crianças ou adultos; os ares marítimos e os banhos em momentos de enfermidades representavam a cura das moléstias das cidades.

Nesse sentido, havia uma demanda de pessoas em busca das propriedades curativas e terapêuticas do mar, formando, assim, uma cultura balneária, na qual os hábitos e os costumes ligados aos banhos de mar foram se arraigando no dia a dia da sociedade. Diante dessas possibilidades terapêuticas, algumas famílias acabaram por construir residências próprias para a permanência durante a temporada de verão na estação; outras passaram a alugar casas, enquanto outras ainda realizavam excursões, passando o dia e retornando no último horário do trem. Tinha ainda as famílias que pernoitavam nas acomodações oferecidas pelo Hotel Cassino. Todo esse contingente de pessoas permanecia na estação, motivado pelos mesmos atrativos: o mar e sua atmosfera.

OS bANhISTAS

Figura 4: Vista da praia de banhos

(Fonte: “Os Primórdios do Turismo do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário”)

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Com o desenvolvimento da estação, algumas famílias da cidade e de outras partes do estado começam a erguer chalés no balneário, os quais passam a dar uma nova configuração à Vila Sequeira. Os proprietários eram destacadas famílias da sociedade local e das cidades de Pelotas e de Porto Alegre, entre outras.

Ao longo da linha de trem que corta a estação, formou-se o que se pode considerar um eixo central do balneário; nela é que começaram a construir-se casas para a temporada na Vila Sequeira. As construções eram chalés11, os quais mantinham uma arquitetura diferenciada e muitas levavam o nome de seus proprietários. Atualmente, no balneário, alguns chalés foram preservados e ainda estão presentes na paisagem.

Observa-se através do registro da imprensa que algumas pessoas pretendiam construir casas para uso próprio ou para alugar. Em 1890 já havia sido construído perto do Cassino um chalé de propriedade do Sr. José Soares Vianna; também estava quase concluída a obra do chalé dos herdeiros do Visconde de São José do Norte. Outra edificação então existente no balneário é a do Sr. Merck, o qual construiu uma casa no campo a três ou quatro quilômetros da costa; vizinho a essa residência, estava o chalé do Dr. Afonso, erguido ‘com gosto norte-americano’. O Sr. Manoel Joaquim Estrella é outro que edificou um prédio onde funcionava a aula pública, no qual trabalhava como professor. (DIARIO DO RIO GRANDE, dez. 1890)

No ano de 1891, o Diario do Rio Grande, edição de dezembro, trazia a notícia de que o Sr. Fernando Luiz Osório vinha de Pelotas para desfrutar dos banhos de mar na Vila Sequeira. O público oriundo das cidades de Pelotas e Porto Alegre era mais expressivo, comprovando a estação como uma grande referência no estado.

Ainda no Diario do Rio Grande, de 18 de março de 1890, era informado que no dia anterior foram até a estação 279 pessoas. Outro dado interessante estampado no mesmo jornal, porém na edição do dia 22 de dezembro de 1891, explicava que as estimativas de público previstas na temporada que ora se iniciava, já haviam praticamente triplicado, sendo constatada a presença de seiscentos excursionistas se dirigindo à estação.

Assim, com o passar do tempo, é crescente o número de banhistas da cidade e de fora. As propriedades curativas dos banhos12 de mar eram o principal motivo de as pessoas se dirigirem à estação; todavia, o incremento de outros atrativos possibilitava que o público se sentisse motivado a frequentar o balneário. Entre esses incrementos dedicado ao lazer, estavam os jogos no cassino, instalado no interior do Hotel Cassino.

11 Informa Pereira que: “Todas as residências possuíam belos e ornamentados jardins aos cuidados de chacareiros de origem portuguesa, nos quais mostravam traços de sua tradição”. (2005, p. 63) 12 Explica Schossler que: “O imperativo salutar, o lugar de lazer e prudência, abriu espaço para uma forma de apreciação popular e lúdica, [...] tornando a orla um lugar onde se possa repousar durante as férias”. (2010, p. 10)

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hOTEL CASSINO VOLTADO PARA O ENTRETENIMENTO

No nome dado ao hotel pode-se perceber o quanto o cassino era destaque no estabelecimento; aliás, tal notoriedade imprimiu o nome do balneário definitivamente. O Hotel Cassino caracterizava-se como um espaço onde era possível realizar uma gama de atividades de lazer e entretenimento. O jogo da roleta era muito prestigiado, da mesma forma que os bailes realizados em seu interior. Desse modo, tais atividades passam a compor as experiências a serem vividas pelos banhistas e excursionistas que se dirigiam à estação. As informações relativas às atividades do hotel também aparecem no jornal O Bisturi:

[...] Finalmente o Cassino da Villa Sequeira gosa de um exellente salão de visitas, com plano para dança e outro para concertos vocaes e intrumentaes. O salão de jogo, terá bilhares, bagatella. Jogos de dominó, xadrez e mesas para jogo de vaza; sala de leitura e fumantes. (Nov. 1890)

Como pode-se ver na citação acima, a imprensa ao apresentar os salões do hotel informa quais jogos eram oferecidos no salão de jogos: bilhares, bagatela, jogos de dominó, xadrez e jogo de vaza. À medida que iam sendo construídas as dependências do hotel, a imprensa noticiava. O Diario do Rio Grande, em 27 de janeiro de 1891, mencionava que, em frente ao Cassino, estavam sendo construídas vinte casas e que boa parte do hotel estava concluída.

Vae adiantada a construção dos três salões destinados, um para visitas e representações theatraes: outro para jogos e o terceiro para leitura.

Têm mais dois metros de largura do que o salão de jantar e terão todos três, de comprimento, o duplo do mesmo salão.

Devem estar promptos talvez até os meiados de Fevereiro.

Figura 5: Fachada do Hotel Cassino.

(Fonte: “Os Primórdios do turismo do Cassino: Vila Sequeira e a gênese do balneário”)

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Nos salões do Hotel Cassino tornam-se comum bailes e concertos musicais, os quais visavam proporcionar momentos de lazer e entretenimento na estação, movimentando a vida social da elite na época. Na véspera do Natal de 1893, é anunciado que haverá em um dos salões do Hotel Cassino uma banda musical tocando à tarde, além de outras diversões como, por exemplo, a dança, proporcionando diversão para toda a família. (DIARIO DO RIO GRANDE, 1893)

A organização de espetáculos vocais, bailes, jantares e apresentações teatrais contribuiu para que o Hotel Cassino se tornasse um importante espaço de entretenimento, lazer e sociabilidade. Conforme artigo publicado pelo Diario do Rio Grande, em março de 1894, fora realizado no hotel um concerto musical, com uma orquestra composta por músicos amadores de ambos os sexos, tocando tangos e boleros. No mesmo artigo, era noticiada a apresentação de uma peça teatral; a nota descrevia os detalhes do palco, explicava que havia pano de fundo com efeitos visuais e que todo o universo que envolvia a estação estava desenhado no pano: os camarotes para banho; o cassino; o restaurante; o mar, com peixes e mariscos. Nesse sentido, o Hotel Cassino consolida-se como um espaço alavancador do balneário Vila Sequeira.

CONCLUSÃO Conclui-se que a estação contava, no final do século XIX, com certa infraestrutura,

que oferecia, além das finalidades curativas do banho de mar e dos atrativos naturais, atividades de lazer. Dessa forma, evidenciou-se que, a partir da construção da Vila Sequeira, progressivamente foram muitas as inovações introduzidas no balneário, tudo visando atrair a elite rio-grandina e de fora da cidade. Pode-se dizer que o cotidiano da praia passou a ganhar evidência e inteligibilidade pelo conjunto de equipamentos que ali foram construídos historicamente, por isso, considera-se que a estação foi construída para fins turísticos.

Assim, o trabalho aqui apresentado procurou compreender a formação do patrimônio histórico-cultural da Vila Sequeira através dos relatos dos periódicos que circularam entre 1890-1895, sem esgotar o assunto, mas, antes, permitindo compreender a riqueza do material trabalhado, além de diagnosticar que o estudo do balneário Vila Sequeira é um campo de investigação aberto a futuras pesquisas.

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URRY, John. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 2001.