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Capítulo I HISTÓRIA DA ÁFRICA E A ESCRAVIDÃO AFRICANA

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Capítulo IHISTÓRIA DA ÁFRICA

E A ESCRAVIDÃO AFRICANA

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A história do negro brasileiro não teve início com o tráfico deescravos. É uma história bem mais antiga, anterior à escravidãonas Américas, à vida de cativo no Brasil. Trata-se de uma saga quese cruza com a aventura dos navegadores europeus, principalmenteos portugueses, e com a formação do Brasil como país. Conhecera história da África é fundamental para entender como foi possí-vel que milhões de homens, mulheres e crianças fossem aprisio-nados e trazidos nos porões de navios destinados às Américas.Por isso, para compreendermos a trajetória dos negros brasileirosé preciso saber como e por que o continente africano se tornou omaior centro de dispersão populacional do mundo moderno.

Quando, no século XV, os europeus desembarcaram na Áfri-ca eles se deram conta de que estavam diante de modos de vidabem distintos dos seus. Entre os africanos a organização social eeconômica girava em torno de vínculos de parentesco em famíliasextensas, da coabitação de vários povos num mesmo território, daexploração tributária de um povo por outro. A vinculação porparentesco a um grupo era uma das mais recorrentes formas de sedefinir a identidade de alguém. Isto quer dizer que o lugar socialdas pessoas era dado pelo seu grau de parentesco em relação aopatriarca ou à matriarca da linhagem familiar. Nessas sociedades acoesão dependia, em grande parte, da preservação da memóriados antepassados, da reverência e privilégios reservados aos maisvelhos e da partilha da mesma fé religiosa.

Na África havia impérios poderosos como o Mali, reinosbem consolidados como o Kongo (que não deve ser confundido

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com o atual país Congo), mas também pequenas aldeias agrupa-das por laços de descendência ou linhagem. Ainda havia os gru-pos nômades de comerciantes, agricultores e pastores que se des-locavam sempre que as condições climáticas ou as oportunidadesde negócios assim os obrigassem. Mesmo porque o continenteafricano caracterizava-se pela desproporção entre o enorme terri-tório e o pequeno contingente populacional. Entretanto, a expan-são de reinos, a migração de grupos, o trânsito de caravanas demercadores, a disputa pelo acesso aos rios, o controle sobre estra-das ou rotas podiam implicar em guerra e subjugação de um povoa outro.

Escravidão doméstica

Nesses confrontos era comum que os vitoriosos fizessem algunsescravos dentre os membros de um vilarejo vencido em luta ar-mada. Era a chamada escravidão doméstica, que consistia em apri-sionar alguém para utilizar sua força de trabalho, em geral, na agri-cultura de pequena escala, familiar. Se a terra era abundante, masrareava mão-de-obra, esse tipo de escravidão servia para aumen-tar o número de pessoas a serem empregadas no sustento de umafamília ou grupo. Afinal, a terra de nada valia sem que se tivessegente empregada no cultivo de alimentos. Os escravos eram pou-cos por unidade familiar, mas a posse deles assegurava poder eprestígio para seus senhores, já que representavam a capacidadede auto-sustentação da linhagem. Não por acaso, nesse tipo decativeiro se preferia mulheres e crianças. A fertilidade das mulhe-res garantia a ampliação do grupo. Daí que era legítimo as escravasse tornarem concubinas e terem filhos com os seus senhores.

Seguindo a mesma lógica, a incorporação dos escravos nafamília se dava de modo gradativo: os filhos de cativos, quandonascidos na casa do senhor, não podiam ser vendidos e seus des-cendentes iam, de geração em geração, perdendo a condição ser-vil e sendo assimilados à linhagem. Assim o grupo podia crescercom o nascimento de escravos, fortalecendo as relações de paren-tesco e aumentando o número de subordinados ao senhor. A in-tegração dos cativos também explica a predileção pela escraviza-

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ção de crianças, visto que elas mais facilmente assimilavam regrase constituíam vínculos com a família do seu senhor.

Não era só na guerra que se corria o risco de ser escraviza-do. Em muitas sociedades africanas, o cativeiro era a punição paraquem fosse condenado por roubo, assassinato, feitiçaria e, às ve-zes, adultério. A penhora, o rapto individual, a troca e a compraeram outras maneiras de se tornar escravo. As pessoas podiam serpenhoradas como garantia para o pagamento de dívidas. Nestasituação, caso seus parentes saldassem o débito, extinguia-se ocativeiro. Tais formas de aquisição de cativos foram mais ou me-nos comuns em diferentes períodos e lugares da África. O rapto eo ataque a vilas se tornaram mais freqüentes quando o tráfico deescravos tomou grandes proporções.

Em algumas sociedades, a exemplo do povo Sena deMoçambique, a escravidão também era uma estratégia de sobrevi-vência quando a fome e a seca se faziam desastrosas. A venda outroca de um indivíduo da comunidade podia garantir a sobrevi-vência do grupo, inclusive de quem era escravizado. A troca dealguém por comida era uma forma de evitar a extinção do grupo.Certamente estamos falando de um recurso extremo, porque serescravo naquelas sociedades tão fortemente estruturadas por la-ços de parentesco significava ser exilado, torna-se um estrangeiro,muitas vezes tendo que professar outra fé, se comunicar em outroidioma, estar alheio às suas tradições. Sentenciar alguém à escravi-dão era acima de tudo desenraizá-lo e desonrá-lo.

Desde que os árabes ocuparam o Egito e o norte da África,entre o fim do século VII e metade do século VIII, a escravidãodoméstica, de pequena escala, passou a conviver com o comérciomais intenso de escravos. A escravidão africana foi transformadasignificativamente com a ofensiva dos muçulmanos. Os árabes or-ganizaram e desenvolveram o tráfico de escravos como empreen-dimento comercial de grande escala na África. Não se tratava maisde alguns poucos cativos, mas de centenas deles a serem trocadose vendidos, tanto dentro da própria África quanto no mundo ára-be e, posteriormente, no tráfico transatlântico para as Américas,inclusive para o Brasil.

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A escravidão islâmica

Com a expansão islâmica a história da África ganhou novos ru-mos. Desde os fins do século VIII, os árabes, partindo da regiãodo Golfo Pérsico e da Arábia, disseminaram o islamismo pela for-ça da palavra, dos acordos comerciais e, principalmente, das ar-mas. Eram as guerras santas, as jihad, destinadas a islamizar popu-lações, converter líderes políticos e escravizar os “infiéis”, ou seja,quem se recusasse a professar a fé em Alá. Um dos primeirospovos a se converter ao islamismo, na África do Norte, foi o povoberbere. As cáfilas, como ficaram conhecidas as grandes carava-nas que percorriam o Saara, eram formadas principalmente porberberes islamizados. Foi assim, seguindo a trilha desses comerci-antes, que o islamismo ganhou adeptos na região sudanesa, nasavana africana ao sul do deserto do Saara.

A adoção do camelo como principal meio de transporte foidecisiva na expansão do islamismo na África, porque possibilitouaos berberes percorrer grandes distâncias e suportar as duras con-dições da vida no deserto. As caravanas pareciam cidades em mar-cha. Guias, soldados, mercadores e centenas de camelos e escra-vos percorriam as trilhas à mercê da pouca água disponível nospoços, do clima ameno dos oásis e da resistência dos animais.

Transitar no deserto era, além de exaustivo, uma peripéciaperigosa: corria-se o risco de enfrentar tempestades de areia, de seperder entre dunas ou de sofrer ataques de assaltantes. Eram lon-gas viagens por rotas que, no século IX, ligavam Marrocos, Argé-lia, Líbia, Tunísia e o Egito às margens dos rios Senegal e Níger,ao sul da Mauritânia e ao lago Chade. Já na metade daquele séculoos escravos eram os principais produtos dos caravaneiros do Saara,que por ali transportaram cerca de 300 mil pessoas.

As cáfilas rumavam do Norte da África para as savanassudanesas carregadas de espadas, tecidos, cavalos, cobre, contasde vidro e pedra, conchas, perfumes e, principalmente, sal. Noretorno, depois de meses, traziam ouro, peles, marfim e, cada vezmais, escravos. Calcula-se que, entre 650 e 1800, esse tráficotransaariano de escravos vitimou cerca de 7 milhões de pessoas,sendo que 20 por cento delas morreram no deserto.

Um terço do território do continente africano é ocupa-do pelo deserto do Saara. São 8,6 milhões de km2. OSaara estende-se do litoral atlântico da África ao MarVermelho. Nessa parte árida, porém, se localiza umadas regiões mais férteis do globo: a faixa de terra ba-nhada pelo rio Nilo.

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Rotas comerciais através do deserto de Saara.

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Durante a viagem, os caravaneiros muçulmanos acampavamnas fronteiras das cidades ou aldeias sudanesas e não deixavam decumprir os seus rituais religiosos. Rezavam cinco vezes ao dia, mastambém adivinhavam chuva, confeccionavam amuletos, previam ofuturo, administravam remédios aos doentes locais e, é claro, faziamnegócios. Tudo sempre de acordo com os preceitos islâmicos. Nes-sa interação, o Islã dos mercadores ia encontrando ora uma maiorreceptividade, ora a firme resistência das populações sudanesas adep-tas de crenças tradicionais. Em muitos lugares a fé em Alá e o cultoaos ancestrais conviveram, noutros a conversão ficou restrita aosoberano e à aristocracia, enquanto as pessoas comuns continua-vam a professar as crenças herdadas dos antepassados. Mas tam-bém se viu a conversão de populações inteiras, fosse para escapardo risco do cativeiro, já que apenas os infiéis podiam ser escraviza-dos, fosse por sincera convicção religiosa.

O Corão não condenava o cativeiro. Para os seguidores doprofeta Maomé, a escravização era uma espécie de missão religio-sa. O infiel, ao ser escravizado, “ganhava” a oportunidade da con-versão e, depois de devidamente instruído nos preceitos islâmicos,tinha direito a voltar a ser livre. Entretanto, não bastava se conver-ter para ter direito a alforria. Havia razões bem mais comerciais ebem menos altruístas a justificar o crescimento do número deescravos no mundo muçulmano. Primeiro, porque uma vez escra-vizado o indivíduo nem sempre dispunha de tempo e condiçõespara ser educado de acordo com as leis islâmicas, e segundo, por-que o trabalhador escravo era fundamental para a viabilidade docomércio dos mercadores muçulmanos.

A intensificação do comércio de longa distância exigia oaumento do número de cativos. Além de produto de troca, o es-cravo era o carregador nas exaustivas viagens. Estava a seu encar-go o transporte das barras de sal, dos fardos de tecidos, dos cestosde tâmaras, das armas, dos objetos de cobre. Na outra ponta dasrotas comerciais a procura por escravos só aumentava. Quantomais escravos eram capturados outros tantos eram necessários parapreencher várias ocupações no mundo árabe. Podiam serconcubinas, agricultores, artesãos, funcionários encarregados daburocracia, domésticas, tecelões, ceramistas. Mas era principalmen-

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te como soldados que os cativos passavam a ser indispensáveis.A conquista de territórios e o domínio de líderes locais dispos-tos a interpretar à sua maneira a lei islâmica, requeriam mais emais soldados. Assim, à medida que aumentavam os territóriossubmetidos aos muçulmanos, crescia a necessidade de controlá-los, bem como de realizar novas conquistas.

Todo o mundo árabe foi se revelando um bom mercadopara os cativos trazidos não só da África, mas também da Índia,China, Sudeste da Ásia e Europa Ocidental. Viam-se, por isso,pessoas capturadas em diversos lugares nos mercados de escravosdo mundo muçulmano. Mas foi a África negra quem mais abaste-ceu os mercados de escravos, principalmente depois da ocupaçãodo Egito e do Norte da África pelos árabes. Ainda no século IX, ocalifado de Bagdá chegou a contar com 45 mil escravos negrostrazidos pelos comerciantes berberes. A partir do século X, o nú-mero de escravos provenientes da África subsaariana excedia emmuito o de turcos e eslavos. E essa tendência só se acentuou aolongo do tempo, tanto que no século XVIII aproximadamente715 mil pessoas foram capturadas na África negra e escravizadasno Egito, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos. Esse tráfico voraz degente de cor preta explica a presença de negros nas populaçõesárabes.

Desse modo, a escravidão doméstica africana foi dando lu-gar à escravização em larga escala. A partir do século XV, com apresença européia na costa da África, esse processo ganhou di-mensão intercontinental e fez da África a principal região expor-tadora de mão-de-obra do mundo moderno. Todas as grandesnações européias de então se envolveram no tráfico e disputaramacirradamente sua fatia nesse lucrativo negócio. Holandeses, fran-ceses, ingleses, espanhóis e, principalmente, portugueses lança-ram-se na conquista dos mercados africanos.

A escravidão cristã

A procura por especiarias e ouro guiava os navegadores portugue-ses. Das riquezas africanas eles tinham notícias desde 1415, quan-do conquistaram Ceuta, importante centro comercial no extremo

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norte da África. Contava-se que no interior do continente haviacidades de ouro e rios que transbordavam pedras preciosas. Des-de então, os barcos lusitanos tomaram a direção dos ventos quepudessem levá-los à costa africana, onde chegaram em meados doséculo XV.

E foi grande o assombro dos africanos que viviam emArguim — região do atual Senegal ao sul do Cabo Branco —, aonotarem que barcos enormes e estranhos se aproximavam da cos-ta. Embora já estivessem acostumados com a presença estrangei-ra dos árabes, a visão dos europeus e de embarcação tão grandedeve ter-lhes causado estranheza. Havia homens brancos na Áfri-ca, mas não como aqueles; existiam grandes barcos usados para otransporte de pessoas e mercadorias, mas nenhum com as dimen-sões das caravelas.

Os portugueses, desde que principiaram as grandes navega-ções, compreenderam a importância de ter intérpretes na tripula-ção. Os tripulantes mauritanos, os marujos mouros, malaios e in-dianos eram tão necessários numa viagem quanto os conhecedo-res da direção dos ventos, das correntes marinhas, da posição dasestrelas e do litoral africano. É certo que os primeiros encontrosentre portugueses e africanos não foram amistosos. Flechas enve-nenadas de um lado e mosquetes de outro fizeram algumas baixas,entretanto, coube aos tradutores dos portugueses estabelecer con-tatos amistosos com a gente da terra. E, ali, nas proximidades dorio Senegal tratava-se de gente e terras que faziam parte do impé-rio jalofo.

Logo, os europeus mostraram interesse em conseguir ouro,já os reis jalofos queriam os produtos que costumavam adquirircom os caravaneiros do deserto: armas, tecidos, manufaturas doMarrocos e do Egito, contas de vidro de Veneza e, sobretudo,bons cavalos já equipados para a montaria, fundamentais para ven-cer guerras e ostentar poder e riqueza. Os portugueses não conse-guiram o ouro tão desejado, mas zarparam abastecidos de escra-vos, como faziam os mercadores do Saara. Realizados os primei-ros negócios, a curiosidade acerca do destino dos cativos embar-cados tomou conta dos africanos.

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As principais regiões africanas envolvidas no tráfico transatlântico de escravos

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Mali e Songai

No século XVI dois grandiosos impérios rivalizavam noNorte da África ocidental, Mali e o Songai. O impérioMali reunia, já no século XIII, vários povos que deviamobediência e tributos ao mansa, também conhecidocomo makinke (senhor da terra e da chuva) dos man-dingas. O domínio mali se estendia do deserto à savanaafricana, e do litoral atlântico ao interior do continenteo que lhe garantia controlar a extração de ouro e osportos caravaneiros. Com a decadência do império Malidos mandingas, o Songai foi se estruturando como oúltimo grande Estado mercantil do Sudão ocidental.Assim como os mandingas, os songais consolidaramseu poder estreitando os vínculos com o centro religio-so muçulmano, Meca. A estrutura administrativa do rei-no de Songai era bastante complexa: o território eradividido em quatro vice-reinos, havia um sistema regu-lar de arrecadação de impostos, prevalecia o sistemade pesos e medidas árabe e um exército que chegou acontar com cerca de cinqüenta mil escravos. O suces-so do comércio dos portugueses no litoral contribuiupara a decadência do império songai, mais voltado parao comércio transaariano.

Já sabemos que o comércio de escravos na África existiaantes da chegada dos europeus. Ali mesmo nas proximidades dorio Senegal, os reis jalofos há muito participavam do comérciotransaariano fornecendo escravos, ouro, malagueta, plumas e pe-les de animais. Mas então as coisas mudaram de rumo. O embar-que dos cativos, naquele barco assombrosamente grande, trouxeinquietação aos africanos. Havia, por exemplo, uma crença entreos africanos de que os europeus eram ferozes canibais, capazes dedevorar a carne negra e guardar o sangue para tingir tecidos oupreparar vinho.

Desconfiados de que os europeus podiam prejudicar seusnegócios, nada lhes foi facilitado. Nenhum chefe político fran-queou-lhes o acesso às zonas auríferas no interior da África, nemos comerciantes os introduziram nas rotas transaarianas. Mas oseuropeus persistiram. Arguim foi escolhida para servir deentreposto comercial. Lá, construíram a primeira feitoria portu-guesa fortificada na África em 1445, para onde pretendiam desvi-ar o comércio transaariano.

A persistência portuguesa foi bem recompensada. Aos pou-cos, foram sendo vencidas desconfianças, combinados preçossatisfatórios, e foram crescendo os negócios com os africanos queviviam nas proximidades do rio Gâmbia, gente do poderoso Im-pério do Mali. Tanto que, por volta de 1460, tinham com eles boasrelações comerciais. Mas o principal objetivo dos portugueses, queera se apropriar do comércio transaariano, ainda não havia sidoalcançado. Tão pouco tiveram acesso às minas de ouro, como so-nhavam.

A Costa do Ouro

Ao longo dos séculos XVI e XVII, novas perspectivas de negóci-os surgiram para os portugueses com o comércio de cabotagemrealizado entre portos não muito distantes, na região conhecidacomo Costa do Ouro. Para que mercadorias valiosas, como nozde cola (semente com propriedades medicinais, que mastigada re-fresca a boca, reduz o cansaço, a fome e a sede), obtivessem bonspreços era preciso percorrer longas distâncias. Entre o produtor e

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Castelo de São Jorge da Mina

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o consumidor final havia uma série de intermediários, o que en-carecia os produtos, embora garantisse a vitalidade do comérciointerno africano. Os portugueses se deram conta do funciona-mento dessa rede e do valor do escravo como moeda de troca.Passaram então a comprar africanos para vender a outros africa-nos, beneficiando-se da velocidade das caravelas no transporteao longo da costa.

Ao sucesso comercial dos portugueses passou acorresponder o infortúnio do continente africano. No litoral, avenda de escravos passou a determinar a prosperidade e a forçamilitar de uns e a miséria de outros grupos africanos. O comérciocom os europeus reforçou o poder de chefes dispostos a guerrearcontra povos inimigos com o único intuito de fazê-los cativos. Apresença portuguesa redimensionou a vida de populações litorâ-neas que, até então, não tinham poder econômico e político signi-ficativo e que passaram a ter na captura de cativos uma atividadecorriqueira, sistemática. A guerra produzia o cativo e o comérciodistribuía o escravo. O leitor deve estar lembrado que antes dessainvestida comercial lusitana os grandes negócios da economia afri-cana aconteciam no interior e no norte da África, dependiam daresistência dos camelos e da habilidade dos caravaneiros do Saara.

Para os portugueses, com a prosperidade dos negócios, eraurgente o estabelecimento de mais feitorias no litoral africano,fortalezas muradas e protegidas com canhões que desencorajassema aproximação de outros europeus e abrigassem mercadorias, in-clusive escravos. O castelo de São Jorge da Mina foi a mais impor-tante delas. Em 1482, onde hoje é a República de Gana, foi erguidaa sólida construção feita de pedra e cal, do mesmo modo que asedificações européias. A imponência do forte deixava evidenteque os portugueses tinham planos ambiciosos, que pretendiampermanecer por muito tempo na região, e os fantes (ou fantis) eacãs (ou akans) — moradores locais —, temerosos, tentaraminviabilizar ou pelo menos adiar a construção. Dificultaram a con-cessão da terra, cobraram altos tributos, restringiram o acesso aágua potável e, ainda, atacaram os homens ocupados com a obra.

Apesar dos contratempos, ao final de oito anos a fortalezaestava pronta, tendo dois fossos, altas torres e potentes canhões

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prontos para atacar invasores e abrigar com segurança até mil ca-tivos. Mas a fortaleza não se mostrou tão segura. Em 1637, a Com-panhia Holandesa das Índias Ocidentais a tomou de assalto, vi-sando controlar o comércio negreiro da região para abastecer Per-nambuco, sob o seu domínio desde 1630. Naquela época, a eco-nomia pernambucana, baseada nos engenhos de açúcar, era gran-de consumidora de escravos africanos.

Enquanto dominaram o castelo, os portugueses atraíram paraa vizinhança outros astutos negociantes, os mandingas, que com-pravam dos lusitanos escravos e tudo mais que pudessem reven-der aos caravaneiros do deserto. Formava-se, assim, uma rede co-mercial que incluía os portugueses, mas também ampliava os lu-cros dos comerciantes africanos. Por outro lado, a fortaleza facili-tava o deslocamento dos moradores do forte ao longo do litoral,através da navegação de cabotagem, o que propiciava a negocia-ção direta com os reinos mais ao sul.

Os europeus levavam sal para uns, arroz, tecidos de lã e pa-nos de algodão para outros e, em contrapartida, recebiam ouro eescravos, que, por sua vez, eram trocados por outros produtos, aexemplo da pimenta. Estima-se que, entre 1500 e 1535, os portu-gueses levaram para o castelo de São Jorge entre dez e doze milescravos. Muitos deles foram entregues pelos mandingas, e mui-tos outros adquiridos no Golfo do Benim, onde as caravelas por-tuguesas passaram a navegar com mais freqüência a partir do finaldo século XV. Em 1479, por exemplo, numa só viagem quatro-centos cativos vindo do Golfo do Benim foram trocados por ourono castelo de São Jorge.

A Costa dos Escravos

Antes de os portugueses começarem a comercializar no Golfo doBenim não havia grandes reinos africanos em regiões florestais. Aexuberante floresta tropical dificultava a penetração comercialnessas terras. O reino do Benim foi uma exceção. Nos últimosanos do século XV, uma expedição portuguesa foi à capital doreino e lá se deparou com uma grande cidade com ruas largas ecompridas e muitas casas. Mas, não há dúvidas de que a expansão

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desse reino foi acelerada com a sua incorporação ao comércionegreiro nos séculos XVI e XVII.

No Benim o controle comercial era do rei que comprava evendia sal, peixe seco, noz de cola, couros, tecidos e cobre. Cientes deque o monopólio sobre o comércio garantia ao rei do Benim umaconsiderável força política, os portugueses tentaram convertê-lo aocatolicismo. Era uma forma de aproximar aquele reino africano dolusitano. Mas, ao rei do Benim não interessava ter compromissos ex-clusivamente com Portugal, já que outros europeus também cobiça-vam integrar-se ao esquema comercial do lugar. Franceses, ingleses eholandeses também lhes propuseram acordos mercantis. A atitudedo rei do Benim deixa claro que os termos desses acordos comerciaisnão dependiam apenas da habilidade dos europeus, também estavama mercê dos interesses dos diferentes povos africanos.

Por isso, não se pode entender a prosperidade do tráfico deescravos sem levar em consideração a combinação de interesses entreeuropeus e africanos. É bem verdade que as nações européias tenta-ram manter o controle sobre as regiões produtoras de escravos, mas otráfico africano era um negócio complexo e envolvia a participação ecooperação de uma cadeia extensa de participantes especializados,que incluía chefes políticos, grandes e pequenos comerciantes africa-nos. Há estimativas de que 75 por cento das pessoas vendidas nasAméricas foram vítimas de guerras entre povos africanos.

A avidez por escravos reorganizou de tal maneira o mapapolítico africano que alguns reinos experimentaram o apogeu nosséculos XVII e XVIII graças ao tráfico negreiro. Foi o caso dosreinos de Daomé, Sadra, Achanti e Oió. Até o século XVI, Oióera apenas uma cidade-estado iorubana que tinha na agricultura ena tecelagem as suas principais atividades. Dedicava-se especial-mente à fabricação de tecidos, os famosos panos-da-costa queviriam a ser tão apreciados pelos negros na Bahia. Mas as ativida-des agrícolas e artesanais perderam importância diante do tráfico.No final do século XVI, as cidades iorubanas participavam tãoativamente desse comércio que a região do golfo de Benim pas-sou a ser conhecida como Costa dos Escravos.

Formou-se ali um mercado bastante competitivo. Entre osvendedores de escravos, principalmente os iorubás e daomeanos

Por falarem variações do mesmo idioma, adorarem aalguns deuses em comum, compartilharem a mesmaorigem mítica e ocuparem o mesmo território (entre osudoeste da Nigéria e o sudeste da república de Benim)vários reinos, a exemplo de Queto, Egba, Oió e Ijexá,passaram a ser denominados pelos missionários euro-peus de iorubás. Até o século XIX, o termo só se referiaao povo de Oió. Oió subjugou vários outros reinosiorubanos, além de vizinhos como o Daomé, Nupe eBorgu. O poderoso reino de Oió entrou em colapso apartir do final do século XVIII, devido a conflitos inter-nos e externos. A sua capital foi parcialmente destruídae abandonada por volta de 1830.

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Esculturas em bronze do Benim

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competiam pelas mercadorias européias. Entre os compradores,a concorrência não era menos acirrada. Nos portos da Costa dosEscravos, ingleses, holandeses, franceses, portugueses e brasilei-ros abarrotavam os navios de gente destinada a ser “exportada”para as Américas. De fato, nenhuma grande nação européia ficoufora deste que era o negócio internacional mais rentável da época.Os africanos escravizados, moradores de pequenas aldeias cadavez mais distantes do litoral, eram vítimas de assaltos e guerras.

Presas pelo pescoço umas às outras, essas pessoas eram le-vadas para os mercados onde aguardavam os compradores, às ve-zes por meses. Eram então trocadas, no século XVIII, principal-mente pelo fumo de rolo produzido na Bahia, produto muito pro-curado naquela região e que garantia a primazia dos brasileiros.Mas o sucesso comercial não impediu que o reino iorubá corresserisco. Com a expansão do reino vizinho, o Daomé, vários territó-rios subordinados a Oió passaram a ser saqueados e a ter os seushabitantes escravizados. Desse modo, de implacáveis caçadoresde escravos, os iorubás foram transformados eles mesmos em ca-tivos, principalmente a partir do final do século XVIII.

O reino do Daomé foi fortemente centralizado e se desen-volveu a partir de 1700 com o próprio tráfico atlântico. Como eraimprescindível a um reino tão intimamente dependente do co-mércio de escravos, ali se concentrava um poderoso exército ar-mado de mosquetes, encarregado de ampliar as fronteiras e captu-rar escravos, inclusive, no final do século XVIII, entre as popula-ções sob o domínio do reino de Oió. O tráfico era tão fundamen-tal para o reino de Daomé que em 1750, 1795 e 1805 foram envi-ados embaixadores daomeanos à Bahia com a incumbência defirmar acordos de monopólio comercial para o envio de cativos.Como veremos no próximo capítulo, os negócios entre as elitesdo Daomé e os proprietários baianos garantiram a regularidadedo tráfico de escravos para o Brasil. Nesta mesma época, os por-tugueses já negociavam com os povos da África centro–ocidental,e com eles estabeleceram vínculos políticos e religiosos mais es-treitos e negócios bem lucrativos, como veremos a seguir.

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Kongo – Angola

Era 1483, quando o navegador Diogo Cão, procurando conhecermelhor a costa africana, chegou à foz do rio Zaire, onde estavaestabelecido o poderoso reino do Kongo. Rapidamente se espa-lhou entre os habitantes locais a notícia de que barcos enormes,que mais pareciam pássaros gigantescos, estavam nas proximida-des do reino. A novidade vinda do mar trouxe inquietação. Naregião do Kongo-Angola pensava-se que os europeus vinham deoutro mundo, que eram seres sobrenaturais. Acreditava-se que entreo mundo dos vivos e dos mortos havia uma linha divisória, aCalunga. Daí que quando alguém morria o seu espírito atravessavaa fronteira entre a vida e a morte navegando numa zona transitó-ria que seria o oceano. Para eles, os homens brancos que desem-barcaram com Diogo Cão podiam ser espíritos de antepassadosvoltando para casa.

A recepção aos portugueses foi calorosa. O mani-sônio (oumani Nsoyo), governante da província litorânea do reino, os aco-lheu festivamente. Os navegantes também se mostraram entusi-asmados e curiosos. Queriam conhecer o rei, para quem traziampresentes. Com tal fim foram enviados alguns mensageiros à ci-dade real, Mbanza Kongo. O rei, o manicongo, deve ter ficadobastante surpreendido com a presença daqueles brancos que di-ziam ter cruzado o oceano. Talvez por isso, ao invés de mandá-los de volta a seus navios, os manteve em seu palácio.

Assim, os mensageiros tiveram a oportunidade de saber queo reino do Kongo era uma estrutura político-administrativa bemcomplexa e centralizada. A autoridade máxima era o manicongo,escolhido por um conselho de nobres que ocupavam os cargos desecretários reais, administradores provinciais, coletores de impos-tos, juízes e oficiais militares. Já a economia estava assentada naatividade agrícola e pastoril, embora houvesse grandes mercadosregionais para o comércio de sal e produtos de ferro, nos quais amoeda usada era um tipo de concha da região da ilha de Luanda,cuja coleta era monopólio real.

Ao perceber que os mensageiros enviados ao rei tardavam avoltar, Diogo Cão resolveu tomar quatro reféns e levá-los diante

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do rei de Portugal, com a promessa de trazê-los de volta depoisde algumas luas. Assim foi feito. Quando retornaram para oKongo os quatro africanos estavam vestidos como europeus efalando português. Se os mensageiros que ficaram na cidade realdo Kongo tinham muito para contar a Diogo Cão, não erampoucas as novidades que os raptados relataram ao manicongo.Haviam visto muitos outros barcos enormes, armas e riquezasque podiam assegurar o poderio de quem as possuísse.

Ambicioso, o manicongo Nzinga avaliou que era funda-mental firmar acordos com aqueles viajantes e, em 1489, enviounuma das caravelas de Diogo Cão vários presentes e uma embai-xada ao rei português, d. João II. O objetivo dos embaixadores eraclaro: solicitar autorização para que rapazes do reino africano pu-dessem ser educados na Europa, conseguir que padres católicosfossem enviados ao Kongo, assim como mestres no ofício da car-pintaria, pedraria e agricultura. O rei português não tardou a aten-der aos pedidos. Uma aliança com outro soberano tão poderoso edisposto a se converter ao catolicismo parecia a oportunidade idealpara fincar os pés naquela região da África.

Por sua vez, o rei do Kongo visava apropriar-se dos conhe-cimentos, técnicas e até hábitos e costumes europeus que pudes-sem fortalecer ainda mais o seu reino. O manicongo, uma de suasesposas e um filho foram batizados numa igreja de pedra e cal quemandou erguer em 1491. Daquele dia em diante ao rei do Kongofoi dado o nome de d. João I, a sua mulher, Leonor, e ao seu filho,Afonso. É certo que houve quem se negasse a aderir ao catolicis-mo, dentre eles, um outro filho do rei, Mpanzu a Kitima, mas estefoi vencido por Afonso na disputa pela sucessão do trono. Vitóriafacilitada pela ajuda militar portuguesa na forma de cavalos e ar-mas.

Além de propagar o catolicismo, d. Afonso sempre semostrava interessado em aproximar o Kongo de Portugal tam-bém por meio dos costumes, língua, ensino e conhecimentotecnológico. Contudo, ao fim de décadas de negociação, os portu-gueses não tinham honrado o compromisso de ensinar aoscongueses como se construir grandes barcos a vela, tão poucomoinhos e veículos de roda. As novidades ficaram restritas ao

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Captura de escravos na África, segundo imaginada por artista norteamericano.

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cultivo do milho, da mandioca, batata-doce e amendoim vindosda América. Em contrapartida, além do auxílio militar, sempreque necessário d. Afonso contou com os portugueses paraincrementar o comércio do cobre, trocado por mercadorias euro-péias que, por sua vez, eram repartidas entre os chefes de distritosdo reino. Esses chefes faziam o mesmo com os líderes das aldeias,que por sua vez também dividiam com os cabeças de grupos fa-miliares. Desse modo estava assegurada uma rede de lealdade ca-paz de sustentar o poder do rei, que governou entre 1506 e 1543.

Mas, aos poucos, o controle dos negócios foi escapandodas mãos reais. Burlando a sua vigilância, administradores provin-ciais começaram a negociar com os portugueses sem qualquer in-termediação. Ironicamente, quanto mais as elites do Kongo dese-javam os produtos europeus, como queria d. Afonso, mais riscocorria o seu reinado. Nas últimas décadas do século XVI, começa-va a ruir um dos mais estáveis reinados da África centro-ocidental.Já a demanda por produtos europeus crescia de tal modo que co-bre e peles já não eram suficientes para saldar as dívidas com oscomerciantes portugueses.

Até então a escravidão no Kongo era do tipo doméstico,embora nas cidades fosse comum que um número significativo deprisioneiros de guerra estivesse a serviço da nobreza. Mas, aos pou-cos, os cativos passaram a ser usados como meio de conversão damoeda local para a portuguesa, sem o intermédio da nobreza e dorei. No decorrer do século XVII, mais e mais escravos foram envol-vidos nas transações entre chefes políticos e mercadores africanoscom os portugueses, que os aceitavam de bom grado. Multiplica-ram-se na região as guerras com o único fim de capturar mais pes-soas a serem embarcadas nos navios portugueses.

Ao mesmo tempo, os portugueses intensificavam o comér-cio de escravos com Ndongo (Angola), vizinhos e vassalos doKongo, sem a intermediação de d. Afonso. Eles imaginavam queencontrariam, naquelas terras, minas de prata. A pretensãocolonialista já era evidente em 1575, quando as terras diante dailha de Luanda foram consideradas uma capitania portuguesa. Logoos moradores do lugar entenderam que, ao construírem casas, igrejae fortificações, os portugueses visavam se fixar na região, e reagi-

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ram. A cada investida portuguesa para o interior do continentecorrespondiam ataques de hábeis chefes políticos, a exemplo darainha Jinga (ou Nzinga). No mais, ainda existiam outros inimigosbem poderosos: as febres, a escassez de comida, os insetos, a esti-agem e a frustração diante da inexistência de prata e ouro nasproximidades.

Os portugueses concluiriam, então, que a empreitada con-quistadora não valia a pena e resolveram concentrar suas forçasno comércio de escravos, atividade que seguramente lhes rendiamuito lucro e menos trabalho, pois eram os próprios moradoresde Luanda que se lançavam à caça de cativos. Luanda rapidamentese tornou uma grande feira de comércio de gente. Angola, desdefins do século XVI até a primeira metade do século XVIII, foi omaior fornecedor de escravos para as Américas portuguesa e es-panhola. Entre 1575 e 1591 foram embarcados da região de An-gola mais de 52 mil africanos para o Brasil.

A África Oriental

A busca dos portugueses por riquezas e rotas comerciais fazia comque eles rondassem incessantemente toda a costa africana. Semdúvida, foi na África ocidental que a presença portuguesa foi maisevidente. Mas eles também se aventuraram, no século XV, na cos-ta africana banhada pelo oceano Índico, onde se impressionaramcom a semelhança daqueles portos, ruas e casas com as que exis-tiam em Portugal e Espanha. Eles se deslumbraram diante dasconstruções com vários andares e terraços, que lhes eram tão fa-miliares. No porto de Mombaça, o movimento incessante dosbarcos transportando ouro, prata, pérolas, seda, vidros, especiari-as os deixaria ainda mais fascinados.

Sofala, Moçambique, Zanzibar e outras cidades-estado esta-vam na fronteira do mundo islâmico. Eram cidades integradas àsredes comerciais do oceano Índico, controladas pelos muçulma-nos que, apesar do encantamento dos portugueses, não viam osrecém-chegados com bons olhos. A presença de estranhos nãoera bem vinda, e disso os portugueses logo souberam, haja vista ahostilidade com que foram recebidos. Entretanto, no século XVI,

Jinga ou Nzinga Mbandi (1581-1663) foi a rainha quedurante treze anos lutou contra os portugueses emAngola. Em 1621, a rainha Jinga de Mutamba, seguidapor uma vistosa comitiva, propôs uma aliança aos por-tugueses. Em troca da paz aceitou certas condições,inclusive a conversão ao catolicismo. Ela foi batizadacom o nome de Dona Ana de Souza, na igreja matrizde Luanda, em 1622, mas não aceitou pagar tributoscomo exigiam os lusitanos. No ano seguinte, empreen-deu outra guerra contra os portugueses e mandou umaembaixada ao Papa Alexandre VII pedindo o reconhe-cimento do seu reino. Esquecendo o padroado, o papaenviou-lhe uma carta com orientações para que seureino fosse cristão, junto com vários missionárioscapuchinhos italianos. Mas a rainha foi derrotada à fren-te de suas tropas, e suas duas irmãs, as princesasCambe e Funge, foram levadas para Luanda e batizadascom os nomes de Bárbara e Engrácia. Quando, em1641, os holandeses saíram do norte do Brasil e ocu-param Luanda, Jinga aliou-se a eles contra os portu-gueses. Mas em 1648, Salvador Correa de Sá retomouLuanda dos holandeses, com uma armada saída doRio de Janeiro. A rainha Jinga morreu em 17 de de-zembro de 1663, quando teria cerca de 80 anos. Amemória dos cortejos e lutas das suas tropas continuapresente nos congados brasileiros.

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algumas dezenas de portugueses já haviam se embrenhado nointerior da região combatendo os mouros, resistindo a doenças,negociando com os reis africanos, pregando a fé cristã e instalan-do feitorias, onde era considerável o número de escravos empre-gados na lavoura e na criação de animais.

Mas era o ouro, a prata e o marfim que mais os incentivavama permanecer num território dominado por muçulmanos. Forammuitos os embates entre portugueses e mouros pelo controle dosprincipais centros comerciais — Quiloa, Mombaça, Massapa,Melinde e Moçambique. Essas disputas desestabilizaram redes co-merciais milenares. A cobrança de tributos, os saques, incêndios eas rebeliões contra os lusitanos, além das investidas dos holandesese ingleses, ameaçavam a prosperidade da atividade mercantil.

Os portugueses tentaram manter a hegemonia na regiãoconstruindo fortificações. Ergueram uma na ilha de Moçambique,que era a capital dos estabelecimentos portugueses na África Ori-ental, e em 1593 foi edificada em Mombaça a maior delas, a forta-leza de Jesus. Esta fortaleza sofreu ataques de grupos muçulma-nos, foi cenário para revolta de escravos e abrigou aliados políti-cos, e embora tivesse sido mantida sob o controle dos portugue-ses, isto não lhes garantiu as riquezas que almejavam: ouro e prataem grande quantidade. Como se via na parte ocidental da África,foi com escravos que os aventureiros portugueses, holandeses eingleses conseguiram acumular fortuna.

A saga dos africanos seguia seu curso: por um lado, elesbuscavam integrar-se com lucro no circuito comercial atlântico,por outro, viviam a trágica experiência da escravização em massa.Não há dúvidas de que os comerciantes africanos eram os elosmais fracos nesse circuito, pois viviam permanentemente na de-pendência do grande traficante europeu ou brasileiro. Os negóci-os do tráfico movimentaram a economia numa dimensão global,mas as suas conseqüências foram brutais para as sociedades afri-canas.

Além dos incalculáveis sofrimentos causados pela separaçãoforçada de indivíduos de suas comunidades e famílias, aquele co-mércio promoveu o esvaziamento demográfico de muitas regiõesda África. Ao privar as comunidades de indivíduos adultos, o trá-

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fico transplantava às Américas algo muito necessário na África:o trabalho do africano. No mais, a presença dos europeus nocontinente africano representou tanto a integração da África ne-gra ao grande circuito comercial do Atlântico, quanto determi-nou os rumos das sociedades do Novo Mundo, que incluía a re-gião que veio a se tornar o Brasil.

EXERCÍCIOS:

1. Comente a seguinte afirmativa: a escravidão domés-tica consistia em aprisionar alguém para utilizar asua força de trabalho na agricultura de pequena es-cala.

2. Analise de que maneira a expansão islâmicaredimensionou a escravidão na África.

3. Comente as relações comercias entre portugueses eafricanos do reino do Kongo.

Bibliografia:

COSTA E SILVA, Alberto. A manilha e o limbambo – a África e a escravidão de 1500a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, 2002.

REIS, João José. “Notas sobre a escravidão na África pré-colonial”. Estudos Afro-asiáticos, nº 14 (1987), pp. 5-21.

THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

VAINFAS, Ronaldo e SOUZA, Marina de Mello e. “Catolização e poder no tem-po do tráfico: o reino do Congo da conversão corada ao movimento Antoniano,séculos XV-XVIII”. Tempo, nº 6 (dez de 1998), pp. 95-118.

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