uma doença no espaço público. a aids em seis jornais

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Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais Franceses* CLAUDINE HERZLICH E JANINE PIERRET ** Desde sua irrupção em 1981, a AIOS representou mais do que uma nova doença. Rapidamente, ela preocupou não só os atingidos ou ameaçados, mas o conjunto da sociedade. Mobilizando, além dos médicos e pesquisadores, os artistas e os políticos, a AIOS nos mostra a extensão que uma doença pode tomar no "espaço público".! Ela coloca em evidência de maneira brilhante a articulação do biológico, do político e do social. Além disso, o aparecimento da AIOS restabeleceu uma temática que acreditávamos esquecida: a da doença-cataclisma coletivo, da epidemia que ameaça toda a sociedade. De fato, é fácil mostrar que tanto por sua difusão quanto por seus meios de contaminação, a AIOS é diferente, sobretudo no seu início, das pestes de antigamente. Muito rapidamente, no entanto, a partir de uma interrogação científica sobre doentes cujo número era muito limitado, desenvolveu-se um discurso no qual se exprime o sentimento de uma ameaça extrema, de um risco global que pesa sobre toda a coletividade, questionando nossos modos de vida e nossos valores. É, portanto, a emergência do que se * Tradução do original "Une Maladie dans I'espace publico Le SIDA dans six quotidiens français" feita por Claudia Corbisier, psicanalista. ** Socióloga, CERMES - Centre de Recherche Médecine Maladie et Sciences Sociales. I HABERMAS, J. L'espace public, Paris , Payot, 1986.

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Page 1: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico a AIDS em Seis Jornais Franceses

CLAUDINE HERZLICH E JANINE PIERRET

Desde sua irrupccedilatildeo em 1981 a AIOS representou mais do que uma nova doenccedila Rapidamente ela preocupou natildeo soacute os atingidos ou ameaccedilados mas o conjunto da sociedade Mobilizando aleacutem dos meacutedicos e pesquisadores os artistas e os poliacuteticos a AIOS nos mostra a extensatildeo que uma doenccedila pode tomar no espaccedilo puacuteblico Ela coloca em evidecircncia de maneira brilhante a articulaccedilatildeo do bioloacutegico do poliacutetico e do social

Aleacutem disso o aparecimento da AIOS restabeleceu uma temaacutetica que acreditaacutevamos esquecida a da doenccedila-cataclisma coletivo da epidemia que ameaccedila toda a sociedade De fato eacute faacutecil mostrar que tanto por sua difusatildeo quanto por seus meios de contaminaccedilatildeo a AIOS eacute diferente sobretudo no seu iniacutecio das pestes de antigamente Muito rapidamente no entanto a partir de uma interrogaccedilatildeo cientiacutefica sobre doentes cujo nuacutemero era muito limitado desenvolveu-se um discurso no qual se exprime o sentimento de uma ameaccedila extrema de um risco global que pesa sobre toda a coletividade questionando nossos modos de vida e nossos valores Eacute portanto a emergecircncia do que se

Traduccedilatildeo do original Une Maladie dans Iespace publico Le SIDA dans six quotidiens franccedilais feita por Claudia Corbisier psicanalista

Socioacuteloga CERMES - Centre de Recherche Meacutedecine Maladie et Sciences Sociales I HABERMAS J Lespace public Paris Payot 1986

8 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1992

chama comumente o fenocircmeno social da AIDS que desejamos analisar neste artigo

Esta questatildeo remete a uma interrogaccedilatildeo mais geral que diz respeito agrave construccedilatildeo social da realidade O homem da rua escrevem Peter Berger e Thomas Luckman habitualmente natildeo se preocupa com o que eacute real para ele e com o que conhece a natildeo ser que esbarre em algum tipo de problema Daacute como certa a sua realidade e seu conhecimento O socioacutelogo natildeo pode fazer o mesmo quanto mais natildeo seja por causa do conhecimento sistemaacutetico do fato de que os homens da rua tomam diferentes realidades como certas quando se passa de uma realidade a outra2 No caso da AIDS natildeo eacute a diversidade do que eacute tomado como real que chama nossa atenccedilatildeo mas a proacutepria elaboraccedilatildeo sob nossos olhos e num tempo curto de uma nova realidade que cristaliza emoccedilotildees intensagt e que polariza as relaccedilotildees sociais Ela foi construiacuteda pelo saber cientiacutefico em desenvolvimento e quagte simultaneamente diante da opiniatildeo Talvez nunca tenhamos assistido quando surge um novo fenocircmeno a tamanhas interferecircncias e a retroaccedilotildees tatildeo evidentes entre o conhecimento cientiacutefico e o conhecimento comum

Esta construccedilatildeo foi de iniacutecio obra das comunicaccedilotildees Foi a imprensa que em sentido estrito fez existir a AIDS para o conjunto da sociedade Ainda hoje esta afecccedilatildeo soacute constitui um dado de experiecircncia para um nuacutemero limitado de indiviacuteduos Durante muito tempo ela soacute disse respeito a centenas depois a alguns milhares vivendo em lugares afastados uns dos outros ela se tornou no entanto um dos elementos proeminentes de nossa sociedade conhecida e comentada por todos O cagto da AIDS torna evidente o papel desempenhado pela comunicaccedilatildeo de massa na produccedilatildeo do real Os acontecimentos sociais escreve Eliseo Veron natildeo satildeo objetos que se poderiam encontrar prontos em algum lugar na realidade e dos quais a miacutedia nos faria conhecer as propriedades e os avatares a posteriori com maior ou menor fidelidade Eles soacute existem na medida em que satildeo moldados pela miacutedia3 No caso da AIDS esta moldagem teve dois altpectos a imprensa anunciou o aparecimento de um novo fenocircmeno no campo da patologia progressivamente desenhou seus contornos e sobretushydo operou a passagem das informaccedilotildees sobre a doenccedila do domiacutenio meacutedico e cientiacutefico para o registro onde a sociedade estaacute implicada Problema esshypeciacutefico a AIDS deixa de ser tratada como um problema setorial sua anaacutelise implica doravante o esclarecimento dos mecanismos fundamentais do funcioshy

2 BERGER P LUCKMAN T La construction sociaLe de La reacutealiteacute Paris Meridiens Klincksieck 1986 p 8-9[A construccedilatildeo sociaL da realidade PetroacutepolisVozes 1973]

3 VERON E Construire L eacuteveacutenement Paris Ed de Minuit 1981 p 7-ft Grifo nnlt_n

9 Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

namento social A noccedilatildeo de fenocircmeno social AIOS categoria utilizada pelo discurso jornaliacutestico remete portanto agrave maneira pela qual a miacutedia identifica e classifica os acontecimentos a que se refere Em segundo lugar a imprensa fez com que a AIDS circulasse entre diversos grupos sociais que pouco a pouco se consideraram afetados e se mobilizaram ela polarizou as relaccedilotildees que se teciam a seu respeito Atraveacutes dela a doenccedila tornou-se objeto de tomadas de posiccedilatildeo de enfrentamentos de clivagens coletivas Por aiacute a opiniatildeo ~ esta categoria imprecisa que existe inicialmente na representaccedilatildeo que se faz dela - represhysentou constantemente um papel no cenaacuterio da AIOS

Noacutes escolhemos estudar a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS a partir de artigos publicados nos seis jornais (diaacuterios) franceses Le Figaro LHumashyniteacute Libeacuteration Le Matin Le Monde Le Quotidien de Paris de janeiro de 1982 a julho de 1986 Nossa anaacutelise se funda nos 412 artigos ou dossiecircs4 publicados nesses seis jornais durante esse periacuteodo Nossaescolharecaiu nesses jornais por vaacuterias razotildees A difusatildeo deles ainda que desigual5 eacute em todos os ca~os nacional todos cobrem de maneira regular a informaccedilatildeo meacutedica tratada por um jornalista especializado algumas vezes meacutedico6 ainda que apenas um deles seja explicitamente ligado a um partido poliacutetico eles represhysentam a maior parte da~ posiccedilotildees reconheciacuteveis no tabuleiro poliacutetico francecircs O periacuteodo estaacute delimitado de um lado pela primeira publicaccedilatildeo de um artigo sobre a doenccedila na grande imprensa na Franccedila e de outro pelo segundo coloacutequio internacional sobre a AIDS em Paris de 23 a 25 de junho de 1986

4 Levantamos sistematicamente os diferentes artigos publicados nos seis jornais diaacuterios utilizando como unidade o dia da publicaccedilatildeo Quer dizer que vaacuterios artigos publicados no mesmo dia como dossiecirc contam como uma publicaccedilatildeo Em compensaccedilatildeo artigos em seacuterie publicados em vaacuterios dias satildeo contados como cada um correspondendo a uma publicaccedilatildeo

5 A tiragem indicada em cada um dos jornais com exceccedilatildeo do Figaro que forneceu a informaccedilatildeo pelo telefone daacute uma ideacuteia disso o Figaro teve uma tiragem de 557452 exemplares por dia em meacutedia no ano de 1986 Noacutes damos uma ideacuteia da tiragem dos outros cinco em 1987 LHumaniteacute 170000 Libeacuteration 230000 Le Matin 105000 Le Monde 500000 Le Quotidien de Paris 120000

6 Somente o Figaro tem uma seccedilatildeo cotidiana intitulada a vida cientiacutefica Ciecircncia~ shyMedicina-Teacutecnica que ocupa geralmente uma paacutegina do jornal Jornalistas especializados e alguns meacutedicos se responsabilizam por essa seccedilatildeo O Monde dedica uma seccedilatildeo quinzenal de uma paacutegina ou duas agraves vezes mais agrave Ciecircncias e Medicina agraves terccedilas-feiras Nos outros dias os artigos Medicina ficam numa seccedilatildeo abaixo da parte do jornal intitulado Socieshydade Jornalistas especializados e meacutedicos acompanham esses problema~ Os outros quatro jornais natildeo tecircm uma seccedilatildeo especial mas publicam frequumlentemente artigos meacutedicos assinados por jornalistas mais ou menolt especializados

10 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

No entanto nosso trabalho natildeo tem como objetivo a comparaccedilatildeo sisshytemaacutetica do tratamento da AIDS em cada um desses jornais Isso adveacutem em parte da dificuldade de dominar o conjunto de fatores que abrangem os diversos aspectos do discurso que estudamos Em particular a imprensa escrita e audiovisual forma sistema cada miacutedia tem uma posiccedilatildeo especiacutefica remetendo a uma estrateacutegia de redaccedilatildeo proacutepria ela mesma determinada por imperativos econocircmicos organizacionais teacutecnicos e tambeacutem por normas sociais e funcioshynamentos ideoloacutegicos Eacutedaiacute que decorre o tratamento dado a um acontecimento por cada jornal O ideal seria que a anaacutelise comparativa da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS por cada jornal contivesse o estudo preliminar do conjunto daqueles problemas de produccedilatildeo7 e de seus efeitos na retoacuterica proacutepria a cada um deles Mede-se imediatamente o peso e a dificuldade da empreitada no contexto de um primeiro trabalho Um outro problema era igualmente inabordaacutevel nesse momento o dos efeitos do discurso da imprensa nos leitores Enfim diante da importacircncia da miacutedia na presente circunstacircncia somos tentados a fazer julgamentos a avaliar a qualidade da informaccedilatildeo dada e a legitimidade das interpretaccedilotildees Isto parece se impor ainda mais a propoacutesito da AIDS pois a proacutepria imprensa jaacute se questionou a esse respeito em diversas ocasiotildees Noacutes acreditamos no entanto que antes de qualquer tentativa de avaliaccedilatildeo - aliaacutes extremamente complexa - importa inicialmente que se reconheccedila o papel fundamental da comunicaccedilatildeo de massa o de criar um acontecimento na consciecircncia dos atores sociais e mais amplamente o de cristalizar as relaccedilotildees que se instauram a seu respeito Neste plano nossa anaacutelise constitui um primeiro balizamento que se funda num dos elementos essenciais do fenocircmeno estudado sua dimensatildeo temporal Consideramos que a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS termina no final do periacuteodo 1982-1986 A partir do veratildeo de 1986 a AIDS eacute um dos elementos da vida social cujos contornos estatildeo fixados sejam quais forem os desenvolvimentos posteriores Trata-se portanto de um periacuteodo limitado mas suficientemente longo para que se possa marcar as fases e tentar analisar suas caracteriacutesticas Convidamos o leitor portanto para acompanhar no tempo as etapa e os mecanismos da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS a demarcar as posturas enunciativas e as mobilishyzaccedilotildees coletivas que a ele estatildeo associadas

7 VERON E op cit p 8

II Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

Um misteacuterio meacutedico

Seis meses no miacutenimo teriam se passado antes que os jornais franceses falassem de uma seacuterie de artigos publicados no New England Journal of Medicine uma das maiores revistas cientificas internacionais dedicados aos fenocircmenos misteriosos localizados nos Estados Unidos durante a primavera de 19818 Cacircncer misterioso nos homossexuais americanos se interroga Libeacuteration em 6 de janeiro de 1982 no mesmo dia Le Quotidien de Paris trata de O estranho mal que ataca os homossexuais Le Monde de 17 de janeiro dedica sua paacutegina Medicina ao titulo Por que os cacircnceres

Algumas centenas de homens jovens em sua maioria homossexuais satildeo atingidos por infecccedilotildees diversas cujos agentes podem ser viacuterus (viacuterus do herpes citomegaloviacuterus) cogumelos (Candida albicans) ou parasitas (Pneushymocystiscarinii) Em certos casos os doentes tecircm um tumor bastante raro entatildeo o sarcoma de Kaposi Todos esses doentes tecircm no entanto um sinal comum imediatamente assinalado Seu sistema imunoloacutegico ( ) estaacute profundamente degradado e em certos casos totalmente paralisado escreve o jornalista do Le Monde Por isso assinala ele tambeacutem patologias habitualmente benignas puderam tornar-se excepcionalmente graves

Em marccedilo de 1982 La Recherche publicaccedilatildeo mensal de divulgaccedilatildeo cientiacutefica publica um artigo com um tema bastante parecido com o tiacutetulo A pneumonia dos homossexuais Depois o silecircncio se instala durante um ano na imprensa francesa Ao todo oito artigos foram publicados em quatro dos jornais estudados sendo que nenhum foi publicado por Le Matin nem por L Humaniteacute dejaneiro de 1982 ateacute abril de 1983 Nessa data o conjunto dejornais analisados retoma de maneira regular a publicaccedilatildeo de artigos

Como eacute que tal afecccedilatildeo - natildeo se fala ainda de AIDS - de manifestaccedilotildees difusas e que soacute atinge um nuacutemero limitado de indiviacuteduos dispersos em vaacuterias cidades americanas foi localizada O trabalho meacutedico as observaccedilotildees das equipes hospitalares que tratam dos doentes natildeo satildeo suficientes para localizaacuteshyla Ela eacute identificada como fato novo grave e misterioso atraveacutes da coleta rotineira de informaccedilotildees sistemaacuteticas pelo Centro de Coleta de Dados de Atlanta nos Estados Unidos A primeira hipoacutetese feita a propoacutesito da imushynodepressatildeo se funda na coleta de informaccedilotildees indiretas O puacuteblico seraacute informado disto atraveacutes de um primeiro artigo do Figaro em marccedilo de 1983 O Center for Disease ContraI observou um consumo anormal de lomidina medishycamento utilizado no tratamento das pneumocistoses que satildeo uma das mashy

8 New England Journal of Medecine 1981305 1425-1531

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nifestaccedilotildees OpOrtunistas da doenccedila Diversas teacutecnicas materiais simples em seu princiacutepio como recenseamento visualizaccedilatildeo inscriccedilatildeo- alista o graacutefico o quadro - esti veram nos diz Jack Goody9 entre os meios mais eficazes para o desenvolvimento do espiacuterito cientiacutefico Os fatos com os quais a ciecircncia se preocupa natildeo satildeo imediatamente visiacuteveis A construccedilatildeo de indicadores e de meios de registro eacute necessaacuteria escreve Bruno Latour para que sejam percebishydos por exemplo os dados essenciais da economia francesa ou o aparecimento de uma patologia No caso da AIOS pode-se ficar impressionado com a forccedila destes procedimentos de inscriccedilatildeo da vigilacircncia epidemioloacutegica e com a rapidez com a qual eles fazem surgir um fenocircmeno novo que pode ser visto pesquisando imediatamente a informaccedilatildeo que vai validar sua realidade A raacutepida pesquisa desencadeada pelo Centro de Atlanta fixa rapidamente os contornos do problema nuacutemero e tipos de doentes atingidos agentes implicashydos nas diversas infecccedilotildees e sobretudo a existecircncia de uma grave imushynodepressatildeo

Aliaacute em 1981 e 1982 os que de modo concreto vecircem essa nova afecccedilatildeo satildeo ainda muito raros O artigo de marccedilo de 1982 publicado na Recherche assinala que os meacutedicos da Califoacuternia e de Nova York que se interessam pela doenccedila satildeo quase mais numerosos do que os proacuteprios doentes Uns e outros continuam sendo pouco numerosos Quanto agrave difusatildeo de informashyccedilatildeo a imprensa francesa fica silenciosa durante muito tempo Em compensashyccedilatildeo desde os primeiros artigos a gravidade do fenocircmeno eacute percebida os que vecircem - os primeiros meacutedicos em contato com os primeiros doentes (citamshyse rapidamente os nomes dos doutores Leibowitch do hospital Raymond Poincareacute e Rozenbaum do hospital Claude Bernard) - consideram que eacute grave e os jornalistas que anunciam a nova doenccedila transmitem esta ideacuteia Poreacutem mais ainda eles exprimem o caraacuteter brutal do aparecimento da doenshyccedilaIO e seu aspecto misterioso incompreensiacutevel e inexplicaacutevel para os coshynhecimentos do momento O Centro americano C) natildeo havia conhecido um alerta como este nem encontrado um problema tatildeo misterioso desde o caso da doenccedila do legionaacuterio escreve Le Monde em janeiro de 1982 Os primeiros artigos natildeo deixam de mencionar esses outros misteacuterios meacutedicos que foram em 1976 a doenccedila do legionaacuterio nos USA e em 1980 as intoxicaccedilotildees que aconteceram na Espanha por causa da ingestatildeo de oacuteleos enlatados

9 GODOY J La raison graphique Paris Ed de Minuit 1979 e B Latour Les veus de lesprit Culture technique nordm 14 1985 p 4 - 29

10 La Recherche marccedilo 1982 p 393

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 13

o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 2: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

8 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1992

chama comumente o fenocircmeno social da AIDS que desejamos analisar neste artigo

Esta questatildeo remete a uma interrogaccedilatildeo mais geral que diz respeito agrave construccedilatildeo social da realidade O homem da rua escrevem Peter Berger e Thomas Luckman habitualmente natildeo se preocupa com o que eacute real para ele e com o que conhece a natildeo ser que esbarre em algum tipo de problema Daacute como certa a sua realidade e seu conhecimento O socioacutelogo natildeo pode fazer o mesmo quanto mais natildeo seja por causa do conhecimento sistemaacutetico do fato de que os homens da rua tomam diferentes realidades como certas quando se passa de uma realidade a outra2 No caso da AIDS natildeo eacute a diversidade do que eacute tomado como real que chama nossa atenccedilatildeo mas a proacutepria elaboraccedilatildeo sob nossos olhos e num tempo curto de uma nova realidade que cristaliza emoccedilotildees intensagt e que polariza as relaccedilotildees sociais Ela foi construiacuteda pelo saber cientiacutefico em desenvolvimento e quagte simultaneamente diante da opiniatildeo Talvez nunca tenhamos assistido quando surge um novo fenocircmeno a tamanhas interferecircncias e a retroaccedilotildees tatildeo evidentes entre o conhecimento cientiacutefico e o conhecimento comum

Esta construccedilatildeo foi de iniacutecio obra das comunicaccedilotildees Foi a imprensa que em sentido estrito fez existir a AIDS para o conjunto da sociedade Ainda hoje esta afecccedilatildeo soacute constitui um dado de experiecircncia para um nuacutemero limitado de indiviacuteduos Durante muito tempo ela soacute disse respeito a centenas depois a alguns milhares vivendo em lugares afastados uns dos outros ela se tornou no entanto um dos elementos proeminentes de nossa sociedade conhecida e comentada por todos O cagto da AIDS torna evidente o papel desempenhado pela comunicaccedilatildeo de massa na produccedilatildeo do real Os acontecimentos sociais escreve Eliseo Veron natildeo satildeo objetos que se poderiam encontrar prontos em algum lugar na realidade e dos quais a miacutedia nos faria conhecer as propriedades e os avatares a posteriori com maior ou menor fidelidade Eles soacute existem na medida em que satildeo moldados pela miacutedia3 No caso da AIDS esta moldagem teve dois altpectos a imprensa anunciou o aparecimento de um novo fenocircmeno no campo da patologia progressivamente desenhou seus contornos e sobretushydo operou a passagem das informaccedilotildees sobre a doenccedila do domiacutenio meacutedico e cientiacutefico para o registro onde a sociedade estaacute implicada Problema esshypeciacutefico a AIDS deixa de ser tratada como um problema setorial sua anaacutelise implica doravante o esclarecimento dos mecanismos fundamentais do funcioshy

2 BERGER P LUCKMAN T La construction sociaLe de La reacutealiteacute Paris Meridiens Klincksieck 1986 p 8-9[A construccedilatildeo sociaL da realidade PetroacutepolisVozes 1973]

3 VERON E Construire L eacuteveacutenement Paris Ed de Minuit 1981 p 7-ft Grifo nnlt_n

9 Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

namento social A noccedilatildeo de fenocircmeno social AIOS categoria utilizada pelo discurso jornaliacutestico remete portanto agrave maneira pela qual a miacutedia identifica e classifica os acontecimentos a que se refere Em segundo lugar a imprensa fez com que a AIDS circulasse entre diversos grupos sociais que pouco a pouco se consideraram afetados e se mobilizaram ela polarizou as relaccedilotildees que se teciam a seu respeito Atraveacutes dela a doenccedila tornou-se objeto de tomadas de posiccedilatildeo de enfrentamentos de clivagens coletivas Por aiacute a opiniatildeo ~ esta categoria imprecisa que existe inicialmente na representaccedilatildeo que se faz dela - represhysentou constantemente um papel no cenaacuterio da AIOS

Noacutes escolhemos estudar a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS a partir de artigos publicados nos seis jornais (diaacuterios) franceses Le Figaro LHumashyniteacute Libeacuteration Le Matin Le Monde Le Quotidien de Paris de janeiro de 1982 a julho de 1986 Nossa anaacutelise se funda nos 412 artigos ou dossiecircs4 publicados nesses seis jornais durante esse periacuteodo Nossaescolharecaiu nesses jornais por vaacuterias razotildees A difusatildeo deles ainda que desigual5 eacute em todos os ca~os nacional todos cobrem de maneira regular a informaccedilatildeo meacutedica tratada por um jornalista especializado algumas vezes meacutedico6 ainda que apenas um deles seja explicitamente ligado a um partido poliacutetico eles represhysentam a maior parte da~ posiccedilotildees reconheciacuteveis no tabuleiro poliacutetico francecircs O periacuteodo estaacute delimitado de um lado pela primeira publicaccedilatildeo de um artigo sobre a doenccedila na grande imprensa na Franccedila e de outro pelo segundo coloacutequio internacional sobre a AIDS em Paris de 23 a 25 de junho de 1986

4 Levantamos sistematicamente os diferentes artigos publicados nos seis jornais diaacuterios utilizando como unidade o dia da publicaccedilatildeo Quer dizer que vaacuterios artigos publicados no mesmo dia como dossiecirc contam como uma publicaccedilatildeo Em compensaccedilatildeo artigos em seacuterie publicados em vaacuterios dias satildeo contados como cada um correspondendo a uma publicaccedilatildeo

5 A tiragem indicada em cada um dos jornais com exceccedilatildeo do Figaro que forneceu a informaccedilatildeo pelo telefone daacute uma ideacuteia disso o Figaro teve uma tiragem de 557452 exemplares por dia em meacutedia no ano de 1986 Noacutes damos uma ideacuteia da tiragem dos outros cinco em 1987 LHumaniteacute 170000 Libeacuteration 230000 Le Matin 105000 Le Monde 500000 Le Quotidien de Paris 120000

6 Somente o Figaro tem uma seccedilatildeo cotidiana intitulada a vida cientiacutefica Ciecircncia~ shyMedicina-Teacutecnica que ocupa geralmente uma paacutegina do jornal Jornalistas especializados e alguns meacutedicos se responsabilizam por essa seccedilatildeo O Monde dedica uma seccedilatildeo quinzenal de uma paacutegina ou duas agraves vezes mais agrave Ciecircncias e Medicina agraves terccedilas-feiras Nos outros dias os artigos Medicina ficam numa seccedilatildeo abaixo da parte do jornal intitulado Socieshydade Jornalistas especializados e meacutedicos acompanham esses problema~ Os outros quatro jornais natildeo tecircm uma seccedilatildeo especial mas publicam frequumlentemente artigos meacutedicos assinados por jornalistas mais ou menolt especializados

10 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

No entanto nosso trabalho natildeo tem como objetivo a comparaccedilatildeo sisshytemaacutetica do tratamento da AIDS em cada um desses jornais Isso adveacutem em parte da dificuldade de dominar o conjunto de fatores que abrangem os diversos aspectos do discurso que estudamos Em particular a imprensa escrita e audiovisual forma sistema cada miacutedia tem uma posiccedilatildeo especiacutefica remetendo a uma estrateacutegia de redaccedilatildeo proacutepria ela mesma determinada por imperativos econocircmicos organizacionais teacutecnicos e tambeacutem por normas sociais e funcioshynamentos ideoloacutegicos Eacutedaiacute que decorre o tratamento dado a um acontecimento por cada jornal O ideal seria que a anaacutelise comparativa da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS por cada jornal contivesse o estudo preliminar do conjunto daqueles problemas de produccedilatildeo7 e de seus efeitos na retoacuterica proacutepria a cada um deles Mede-se imediatamente o peso e a dificuldade da empreitada no contexto de um primeiro trabalho Um outro problema era igualmente inabordaacutevel nesse momento o dos efeitos do discurso da imprensa nos leitores Enfim diante da importacircncia da miacutedia na presente circunstacircncia somos tentados a fazer julgamentos a avaliar a qualidade da informaccedilatildeo dada e a legitimidade das interpretaccedilotildees Isto parece se impor ainda mais a propoacutesito da AIDS pois a proacutepria imprensa jaacute se questionou a esse respeito em diversas ocasiotildees Noacutes acreditamos no entanto que antes de qualquer tentativa de avaliaccedilatildeo - aliaacutes extremamente complexa - importa inicialmente que se reconheccedila o papel fundamental da comunicaccedilatildeo de massa o de criar um acontecimento na consciecircncia dos atores sociais e mais amplamente o de cristalizar as relaccedilotildees que se instauram a seu respeito Neste plano nossa anaacutelise constitui um primeiro balizamento que se funda num dos elementos essenciais do fenocircmeno estudado sua dimensatildeo temporal Consideramos que a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS termina no final do periacuteodo 1982-1986 A partir do veratildeo de 1986 a AIDS eacute um dos elementos da vida social cujos contornos estatildeo fixados sejam quais forem os desenvolvimentos posteriores Trata-se portanto de um periacuteodo limitado mas suficientemente longo para que se possa marcar as fases e tentar analisar suas caracteriacutesticas Convidamos o leitor portanto para acompanhar no tempo as etapa e os mecanismos da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS a demarcar as posturas enunciativas e as mobilishyzaccedilotildees coletivas que a ele estatildeo associadas

7 VERON E op cit p 8

II Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

Um misteacuterio meacutedico

Seis meses no miacutenimo teriam se passado antes que os jornais franceses falassem de uma seacuterie de artigos publicados no New England Journal of Medicine uma das maiores revistas cientificas internacionais dedicados aos fenocircmenos misteriosos localizados nos Estados Unidos durante a primavera de 19818 Cacircncer misterioso nos homossexuais americanos se interroga Libeacuteration em 6 de janeiro de 1982 no mesmo dia Le Quotidien de Paris trata de O estranho mal que ataca os homossexuais Le Monde de 17 de janeiro dedica sua paacutegina Medicina ao titulo Por que os cacircnceres

Algumas centenas de homens jovens em sua maioria homossexuais satildeo atingidos por infecccedilotildees diversas cujos agentes podem ser viacuterus (viacuterus do herpes citomegaloviacuterus) cogumelos (Candida albicans) ou parasitas (Pneushymocystiscarinii) Em certos casos os doentes tecircm um tumor bastante raro entatildeo o sarcoma de Kaposi Todos esses doentes tecircm no entanto um sinal comum imediatamente assinalado Seu sistema imunoloacutegico ( ) estaacute profundamente degradado e em certos casos totalmente paralisado escreve o jornalista do Le Monde Por isso assinala ele tambeacutem patologias habitualmente benignas puderam tornar-se excepcionalmente graves

Em marccedilo de 1982 La Recherche publicaccedilatildeo mensal de divulgaccedilatildeo cientiacutefica publica um artigo com um tema bastante parecido com o tiacutetulo A pneumonia dos homossexuais Depois o silecircncio se instala durante um ano na imprensa francesa Ao todo oito artigos foram publicados em quatro dos jornais estudados sendo que nenhum foi publicado por Le Matin nem por L Humaniteacute dejaneiro de 1982 ateacute abril de 1983 Nessa data o conjunto dejornais analisados retoma de maneira regular a publicaccedilatildeo de artigos

Como eacute que tal afecccedilatildeo - natildeo se fala ainda de AIDS - de manifestaccedilotildees difusas e que soacute atinge um nuacutemero limitado de indiviacuteduos dispersos em vaacuterias cidades americanas foi localizada O trabalho meacutedico as observaccedilotildees das equipes hospitalares que tratam dos doentes natildeo satildeo suficientes para localizaacuteshyla Ela eacute identificada como fato novo grave e misterioso atraveacutes da coleta rotineira de informaccedilotildees sistemaacuteticas pelo Centro de Coleta de Dados de Atlanta nos Estados Unidos A primeira hipoacutetese feita a propoacutesito da imushynodepressatildeo se funda na coleta de informaccedilotildees indiretas O puacuteblico seraacute informado disto atraveacutes de um primeiro artigo do Figaro em marccedilo de 1983 O Center for Disease ContraI observou um consumo anormal de lomidina medishycamento utilizado no tratamento das pneumocistoses que satildeo uma das mashy

8 New England Journal of Medecine 1981305 1425-1531

12 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

nifestaccedilotildees OpOrtunistas da doenccedila Diversas teacutecnicas materiais simples em seu princiacutepio como recenseamento visualizaccedilatildeo inscriccedilatildeo- alista o graacutefico o quadro - esti veram nos diz Jack Goody9 entre os meios mais eficazes para o desenvolvimento do espiacuterito cientiacutefico Os fatos com os quais a ciecircncia se preocupa natildeo satildeo imediatamente visiacuteveis A construccedilatildeo de indicadores e de meios de registro eacute necessaacuteria escreve Bruno Latour para que sejam percebishydos por exemplo os dados essenciais da economia francesa ou o aparecimento de uma patologia No caso da AIOS pode-se ficar impressionado com a forccedila destes procedimentos de inscriccedilatildeo da vigilacircncia epidemioloacutegica e com a rapidez com a qual eles fazem surgir um fenocircmeno novo que pode ser visto pesquisando imediatamente a informaccedilatildeo que vai validar sua realidade A raacutepida pesquisa desencadeada pelo Centro de Atlanta fixa rapidamente os contornos do problema nuacutemero e tipos de doentes atingidos agentes implicashydos nas diversas infecccedilotildees e sobretudo a existecircncia de uma grave imushynodepressatildeo

Aliaacute em 1981 e 1982 os que de modo concreto vecircem essa nova afecccedilatildeo satildeo ainda muito raros O artigo de marccedilo de 1982 publicado na Recherche assinala que os meacutedicos da Califoacuternia e de Nova York que se interessam pela doenccedila satildeo quase mais numerosos do que os proacuteprios doentes Uns e outros continuam sendo pouco numerosos Quanto agrave difusatildeo de informashyccedilatildeo a imprensa francesa fica silenciosa durante muito tempo Em compensashyccedilatildeo desde os primeiros artigos a gravidade do fenocircmeno eacute percebida os que vecircem - os primeiros meacutedicos em contato com os primeiros doentes (citamshyse rapidamente os nomes dos doutores Leibowitch do hospital Raymond Poincareacute e Rozenbaum do hospital Claude Bernard) - consideram que eacute grave e os jornalistas que anunciam a nova doenccedila transmitem esta ideacuteia Poreacutem mais ainda eles exprimem o caraacuteter brutal do aparecimento da doenshyccedilaIO e seu aspecto misterioso incompreensiacutevel e inexplicaacutevel para os coshynhecimentos do momento O Centro americano C) natildeo havia conhecido um alerta como este nem encontrado um problema tatildeo misterioso desde o caso da doenccedila do legionaacuterio escreve Le Monde em janeiro de 1982 Os primeiros artigos natildeo deixam de mencionar esses outros misteacuterios meacutedicos que foram em 1976 a doenccedila do legionaacuterio nos USA e em 1980 as intoxicaccedilotildees que aconteceram na Espanha por causa da ingestatildeo de oacuteleos enlatados

9 GODOY J La raison graphique Paris Ed de Minuit 1979 e B Latour Les veus de lesprit Culture technique nordm 14 1985 p 4 - 29

10 La Recherche marccedilo 1982 p 393

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 13

o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

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32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

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sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 3: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

9 Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

namento social A noccedilatildeo de fenocircmeno social AIOS categoria utilizada pelo discurso jornaliacutestico remete portanto agrave maneira pela qual a miacutedia identifica e classifica os acontecimentos a que se refere Em segundo lugar a imprensa fez com que a AIDS circulasse entre diversos grupos sociais que pouco a pouco se consideraram afetados e se mobilizaram ela polarizou as relaccedilotildees que se teciam a seu respeito Atraveacutes dela a doenccedila tornou-se objeto de tomadas de posiccedilatildeo de enfrentamentos de clivagens coletivas Por aiacute a opiniatildeo ~ esta categoria imprecisa que existe inicialmente na representaccedilatildeo que se faz dela - represhysentou constantemente um papel no cenaacuterio da AIOS

Noacutes escolhemos estudar a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS a partir de artigos publicados nos seis jornais (diaacuterios) franceses Le Figaro LHumashyniteacute Libeacuteration Le Matin Le Monde Le Quotidien de Paris de janeiro de 1982 a julho de 1986 Nossa anaacutelise se funda nos 412 artigos ou dossiecircs4 publicados nesses seis jornais durante esse periacuteodo Nossaescolharecaiu nesses jornais por vaacuterias razotildees A difusatildeo deles ainda que desigual5 eacute em todos os ca~os nacional todos cobrem de maneira regular a informaccedilatildeo meacutedica tratada por um jornalista especializado algumas vezes meacutedico6 ainda que apenas um deles seja explicitamente ligado a um partido poliacutetico eles represhysentam a maior parte da~ posiccedilotildees reconheciacuteveis no tabuleiro poliacutetico francecircs O periacuteodo estaacute delimitado de um lado pela primeira publicaccedilatildeo de um artigo sobre a doenccedila na grande imprensa na Franccedila e de outro pelo segundo coloacutequio internacional sobre a AIDS em Paris de 23 a 25 de junho de 1986

4 Levantamos sistematicamente os diferentes artigos publicados nos seis jornais diaacuterios utilizando como unidade o dia da publicaccedilatildeo Quer dizer que vaacuterios artigos publicados no mesmo dia como dossiecirc contam como uma publicaccedilatildeo Em compensaccedilatildeo artigos em seacuterie publicados em vaacuterios dias satildeo contados como cada um correspondendo a uma publicaccedilatildeo

5 A tiragem indicada em cada um dos jornais com exceccedilatildeo do Figaro que forneceu a informaccedilatildeo pelo telefone daacute uma ideacuteia disso o Figaro teve uma tiragem de 557452 exemplares por dia em meacutedia no ano de 1986 Noacutes damos uma ideacuteia da tiragem dos outros cinco em 1987 LHumaniteacute 170000 Libeacuteration 230000 Le Matin 105000 Le Monde 500000 Le Quotidien de Paris 120000

6 Somente o Figaro tem uma seccedilatildeo cotidiana intitulada a vida cientiacutefica Ciecircncia~ shyMedicina-Teacutecnica que ocupa geralmente uma paacutegina do jornal Jornalistas especializados e alguns meacutedicos se responsabilizam por essa seccedilatildeo O Monde dedica uma seccedilatildeo quinzenal de uma paacutegina ou duas agraves vezes mais agrave Ciecircncias e Medicina agraves terccedilas-feiras Nos outros dias os artigos Medicina ficam numa seccedilatildeo abaixo da parte do jornal intitulado Socieshydade Jornalistas especializados e meacutedicos acompanham esses problema~ Os outros quatro jornais natildeo tecircm uma seccedilatildeo especial mas publicam frequumlentemente artigos meacutedicos assinados por jornalistas mais ou menolt especializados

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No entanto nosso trabalho natildeo tem como objetivo a comparaccedilatildeo sisshytemaacutetica do tratamento da AIDS em cada um desses jornais Isso adveacutem em parte da dificuldade de dominar o conjunto de fatores que abrangem os diversos aspectos do discurso que estudamos Em particular a imprensa escrita e audiovisual forma sistema cada miacutedia tem uma posiccedilatildeo especiacutefica remetendo a uma estrateacutegia de redaccedilatildeo proacutepria ela mesma determinada por imperativos econocircmicos organizacionais teacutecnicos e tambeacutem por normas sociais e funcioshynamentos ideoloacutegicos Eacutedaiacute que decorre o tratamento dado a um acontecimento por cada jornal O ideal seria que a anaacutelise comparativa da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS por cada jornal contivesse o estudo preliminar do conjunto daqueles problemas de produccedilatildeo7 e de seus efeitos na retoacuterica proacutepria a cada um deles Mede-se imediatamente o peso e a dificuldade da empreitada no contexto de um primeiro trabalho Um outro problema era igualmente inabordaacutevel nesse momento o dos efeitos do discurso da imprensa nos leitores Enfim diante da importacircncia da miacutedia na presente circunstacircncia somos tentados a fazer julgamentos a avaliar a qualidade da informaccedilatildeo dada e a legitimidade das interpretaccedilotildees Isto parece se impor ainda mais a propoacutesito da AIDS pois a proacutepria imprensa jaacute se questionou a esse respeito em diversas ocasiotildees Noacutes acreditamos no entanto que antes de qualquer tentativa de avaliaccedilatildeo - aliaacutes extremamente complexa - importa inicialmente que se reconheccedila o papel fundamental da comunicaccedilatildeo de massa o de criar um acontecimento na consciecircncia dos atores sociais e mais amplamente o de cristalizar as relaccedilotildees que se instauram a seu respeito Neste plano nossa anaacutelise constitui um primeiro balizamento que se funda num dos elementos essenciais do fenocircmeno estudado sua dimensatildeo temporal Consideramos que a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS termina no final do periacuteodo 1982-1986 A partir do veratildeo de 1986 a AIDS eacute um dos elementos da vida social cujos contornos estatildeo fixados sejam quais forem os desenvolvimentos posteriores Trata-se portanto de um periacuteodo limitado mas suficientemente longo para que se possa marcar as fases e tentar analisar suas caracteriacutesticas Convidamos o leitor portanto para acompanhar no tempo as etapa e os mecanismos da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS a demarcar as posturas enunciativas e as mobilishyzaccedilotildees coletivas que a ele estatildeo associadas

7 VERON E op cit p 8

II Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

Um misteacuterio meacutedico

Seis meses no miacutenimo teriam se passado antes que os jornais franceses falassem de uma seacuterie de artigos publicados no New England Journal of Medicine uma das maiores revistas cientificas internacionais dedicados aos fenocircmenos misteriosos localizados nos Estados Unidos durante a primavera de 19818 Cacircncer misterioso nos homossexuais americanos se interroga Libeacuteration em 6 de janeiro de 1982 no mesmo dia Le Quotidien de Paris trata de O estranho mal que ataca os homossexuais Le Monde de 17 de janeiro dedica sua paacutegina Medicina ao titulo Por que os cacircnceres

Algumas centenas de homens jovens em sua maioria homossexuais satildeo atingidos por infecccedilotildees diversas cujos agentes podem ser viacuterus (viacuterus do herpes citomegaloviacuterus) cogumelos (Candida albicans) ou parasitas (Pneushymocystiscarinii) Em certos casos os doentes tecircm um tumor bastante raro entatildeo o sarcoma de Kaposi Todos esses doentes tecircm no entanto um sinal comum imediatamente assinalado Seu sistema imunoloacutegico ( ) estaacute profundamente degradado e em certos casos totalmente paralisado escreve o jornalista do Le Monde Por isso assinala ele tambeacutem patologias habitualmente benignas puderam tornar-se excepcionalmente graves

Em marccedilo de 1982 La Recherche publicaccedilatildeo mensal de divulgaccedilatildeo cientiacutefica publica um artigo com um tema bastante parecido com o tiacutetulo A pneumonia dos homossexuais Depois o silecircncio se instala durante um ano na imprensa francesa Ao todo oito artigos foram publicados em quatro dos jornais estudados sendo que nenhum foi publicado por Le Matin nem por L Humaniteacute dejaneiro de 1982 ateacute abril de 1983 Nessa data o conjunto dejornais analisados retoma de maneira regular a publicaccedilatildeo de artigos

Como eacute que tal afecccedilatildeo - natildeo se fala ainda de AIDS - de manifestaccedilotildees difusas e que soacute atinge um nuacutemero limitado de indiviacuteduos dispersos em vaacuterias cidades americanas foi localizada O trabalho meacutedico as observaccedilotildees das equipes hospitalares que tratam dos doentes natildeo satildeo suficientes para localizaacuteshyla Ela eacute identificada como fato novo grave e misterioso atraveacutes da coleta rotineira de informaccedilotildees sistemaacuteticas pelo Centro de Coleta de Dados de Atlanta nos Estados Unidos A primeira hipoacutetese feita a propoacutesito da imushynodepressatildeo se funda na coleta de informaccedilotildees indiretas O puacuteblico seraacute informado disto atraveacutes de um primeiro artigo do Figaro em marccedilo de 1983 O Center for Disease ContraI observou um consumo anormal de lomidina medishycamento utilizado no tratamento das pneumocistoses que satildeo uma das mashy

8 New England Journal of Medecine 1981305 1425-1531

12 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

nifestaccedilotildees OpOrtunistas da doenccedila Diversas teacutecnicas materiais simples em seu princiacutepio como recenseamento visualizaccedilatildeo inscriccedilatildeo- alista o graacutefico o quadro - esti veram nos diz Jack Goody9 entre os meios mais eficazes para o desenvolvimento do espiacuterito cientiacutefico Os fatos com os quais a ciecircncia se preocupa natildeo satildeo imediatamente visiacuteveis A construccedilatildeo de indicadores e de meios de registro eacute necessaacuteria escreve Bruno Latour para que sejam percebishydos por exemplo os dados essenciais da economia francesa ou o aparecimento de uma patologia No caso da AIOS pode-se ficar impressionado com a forccedila destes procedimentos de inscriccedilatildeo da vigilacircncia epidemioloacutegica e com a rapidez com a qual eles fazem surgir um fenocircmeno novo que pode ser visto pesquisando imediatamente a informaccedilatildeo que vai validar sua realidade A raacutepida pesquisa desencadeada pelo Centro de Atlanta fixa rapidamente os contornos do problema nuacutemero e tipos de doentes atingidos agentes implicashydos nas diversas infecccedilotildees e sobretudo a existecircncia de uma grave imushynodepressatildeo

Aliaacute em 1981 e 1982 os que de modo concreto vecircem essa nova afecccedilatildeo satildeo ainda muito raros O artigo de marccedilo de 1982 publicado na Recherche assinala que os meacutedicos da Califoacuternia e de Nova York que se interessam pela doenccedila satildeo quase mais numerosos do que os proacuteprios doentes Uns e outros continuam sendo pouco numerosos Quanto agrave difusatildeo de informashyccedilatildeo a imprensa francesa fica silenciosa durante muito tempo Em compensashyccedilatildeo desde os primeiros artigos a gravidade do fenocircmeno eacute percebida os que vecircem - os primeiros meacutedicos em contato com os primeiros doentes (citamshyse rapidamente os nomes dos doutores Leibowitch do hospital Raymond Poincareacute e Rozenbaum do hospital Claude Bernard) - consideram que eacute grave e os jornalistas que anunciam a nova doenccedila transmitem esta ideacuteia Poreacutem mais ainda eles exprimem o caraacuteter brutal do aparecimento da doenshyccedilaIO e seu aspecto misterioso incompreensiacutevel e inexplicaacutevel para os coshynhecimentos do momento O Centro americano C) natildeo havia conhecido um alerta como este nem encontrado um problema tatildeo misterioso desde o caso da doenccedila do legionaacuterio escreve Le Monde em janeiro de 1982 Os primeiros artigos natildeo deixam de mencionar esses outros misteacuterios meacutedicos que foram em 1976 a doenccedila do legionaacuterio nos USA e em 1980 as intoxicaccedilotildees que aconteceram na Espanha por causa da ingestatildeo de oacuteleos enlatados

9 GODOY J La raison graphique Paris Ed de Minuit 1979 e B Latour Les veus de lesprit Culture technique nordm 14 1985 p 4 - 29

10 La Recherche marccedilo 1982 p 393

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 13

o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

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16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

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De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 4: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

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No entanto nosso trabalho natildeo tem como objetivo a comparaccedilatildeo sisshytemaacutetica do tratamento da AIDS em cada um desses jornais Isso adveacutem em parte da dificuldade de dominar o conjunto de fatores que abrangem os diversos aspectos do discurso que estudamos Em particular a imprensa escrita e audiovisual forma sistema cada miacutedia tem uma posiccedilatildeo especiacutefica remetendo a uma estrateacutegia de redaccedilatildeo proacutepria ela mesma determinada por imperativos econocircmicos organizacionais teacutecnicos e tambeacutem por normas sociais e funcioshynamentos ideoloacutegicos Eacutedaiacute que decorre o tratamento dado a um acontecimento por cada jornal O ideal seria que a anaacutelise comparativa da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS por cada jornal contivesse o estudo preliminar do conjunto daqueles problemas de produccedilatildeo7 e de seus efeitos na retoacuterica proacutepria a cada um deles Mede-se imediatamente o peso e a dificuldade da empreitada no contexto de um primeiro trabalho Um outro problema era igualmente inabordaacutevel nesse momento o dos efeitos do discurso da imprensa nos leitores Enfim diante da importacircncia da miacutedia na presente circunstacircncia somos tentados a fazer julgamentos a avaliar a qualidade da informaccedilatildeo dada e a legitimidade das interpretaccedilotildees Isto parece se impor ainda mais a propoacutesito da AIDS pois a proacutepria imprensa jaacute se questionou a esse respeito em diversas ocasiotildees Noacutes acreditamos no entanto que antes de qualquer tentativa de avaliaccedilatildeo - aliaacutes extremamente complexa - importa inicialmente que se reconheccedila o papel fundamental da comunicaccedilatildeo de massa o de criar um acontecimento na consciecircncia dos atores sociais e mais amplamente o de cristalizar as relaccedilotildees que se instauram a seu respeito Neste plano nossa anaacutelise constitui um primeiro balizamento que se funda num dos elementos essenciais do fenocircmeno estudado sua dimensatildeo temporal Consideramos que a construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS termina no final do periacuteodo 1982-1986 A partir do veratildeo de 1986 a AIDS eacute um dos elementos da vida social cujos contornos estatildeo fixados sejam quais forem os desenvolvimentos posteriores Trata-se portanto de um periacuteodo limitado mas suficientemente longo para que se possa marcar as fases e tentar analisar suas caracteriacutesticas Convidamos o leitor portanto para acompanhar no tempo as etapa e os mecanismos da construccedilatildeo do fenocircmeno social AIDS a demarcar as posturas enunciativas e as mobilishyzaccedilotildees coletivas que a ele estatildeo associadas

7 VERON E op cit p 8

II Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

Um misteacuterio meacutedico

Seis meses no miacutenimo teriam se passado antes que os jornais franceses falassem de uma seacuterie de artigos publicados no New England Journal of Medicine uma das maiores revistas cientificas internacionais dedicados aos fenocircmenos misteriosos localizados nos Estados Unidos durante a primavera de 19818 Cacircncer misterioso nos homossexuais americanos se interroga Libeacuteration em 6 de janeiro de 1982 no mesmo dia Le Quotidien de Paris trata de O estranho mal que ataca os homossexuais Le Monde de 17 de janeiro dedica sua paacutegina Medicina ao titulo Por que os cacircnceres

Algumas centenas de homens jovens em sua maioria homossexuais satildeo atingidos por infecccedilotildees diversas cujos agentes podem ser viacuterus (viacuterus do herpes citomegaloviacuterus) cogumelos (Candida albicans) ou parasitas (Pneushymocystiscarinii) Em certos casos os doentes tecircm um tumor bastante raro entatildeo o sarcoma de Kaposi Todos esses doentes tecircm no entanto um sinal comum imediatamente assinalado Seu sistema imunoloacutegico ( ) estaacute profundamente degradado e em certos casos totalmente paralisado escreve o jornalista do Le Monde Por isso assinala ele tambeacutem patologias habitualmente benignas puderam tornar-se excepcionalmente graves

Em marccedilo de 1982 La Recherche publicaccedilatildeo mensal de divulgaccedilatildeo cientiacutefica publica um artigo com um tema bastante parecido com o tiacutetulo A pneumonia dos homossexuais Depois o silecircncio se instala durante um ano na imprensa francesa Ao todo oito artigos foram publicados em quatro dos jornais estudados sendo que nenhum foi publicado por Le Matin nem por L Humaniteacute dejaneiro de 1982 ateacute abril de 1983 Nessa data o conjunto dejornais analisados retoma de maneira regular a publicaccedilatildeo de artigos

Como eacute que tal afecccedilatildeo - natildeo se fala ainda de AIDS - de manifestaccedilotildees difusas e que soacute atinge um nuacutemero limitado de indiviacuteduos dispersos em vaacuterias cidades americanas foi localizada O trabalho meacutedico as observaccedilotildees das equipes hospitalares que tratam dos doentes natildeo satildeo suficientes para localizaacuteshyla Ela eacute identificada como fato novo grave e misterioso atraveacutes da coleta rotineira de informaccedilotildees sistemaacuteticas pelo Centro de Coleta de Dados de Atlanta nos Estados Unidos A primeira hipoacutetese feita a propoacutesito da imushynodepressatildeo se funda na coleta de informaccedilotildees indiretas O puacuteblico seraacute informado disto atraveacutes de um primeiro artigo do Figaro em marccedilo de 1983 O Center for Disease ContraI observou um consumo anormal de lomidina medishycamento utilizado no tratamento das pneumocistoses que satildeo uma das mashy

8 New England Journal of Medecine 1981305 1425-1531

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nifestaccedilotildees OpOrtunistas da doenccedila Diversas teacutecnicas materiais simples em seu princiacutepio como recenseamento visualizaccedilatildeo inscriccedilatildeo- alista o graacutefico o quadro - esti veram nos diz Jack Goody9 entre os meios mais eficazes para o desenvolvimento do espiacuterito cientiacutefico Os fatos com os quais a ciecircncia se preocupa natildeo satildeo imediatamente visiacuteveis A construccedilatildeo de indicadores e de meios de registro eacute necessaacuteria escreve Bruno Latour para que sejam percebishydos por exemplo os dados essenciais da economia francesa ou o aparecimento de uma patologia No caso da AIOS pode-se ficar impressionado com a forccedila destes procedimentos de inscriccedilatildeo da vigilacircncia epidemioloacutegica e com a rapidez com a qual eles fazem surgir um fenocircmeno novo que pode ser visto pesquisando imediatamente a informaccedilatildeo que vai validar sua realidade A raacutepida pesquisa desencadeada pelo Centro de Atlanta fixa rapidamente os contornos do problema nuacutemero e tipos de doentes atingidos agentes implicashydos nas diversas infecccedilotildees e sobretudo a existecircncia de uma grave imushynodepressatildeo

Aliaacute em 1981 e 1982 os que de modo concreto vecircem essa nova afecccedilatildeo satildeo ainda muito raros O artigo de marccedilo de 1982 publicado na Recherche assinala que os meacutedicos da Califoacuternia e de Nova York que se interessam pela doenccedila satildeo quase mais numerosos do que os proacuteprios doentes Uns e outros continuam sendo pouco numerosos Quanto agrave difusatildeo de informashyccedilatildeo a imprensa francesa fica silenciosa durante muito tempo Em compensashyccedilatildeo desde os primeiros artigos a gravidade do fenocircmeno eacute percebida os que vecircem - os primeiros meacutedicos em contato com os primeiros doentes (citamshyse rapidamente os nomes dos doutores Leibowitch do hospital Raymond Poincareacute e Rozenbaum do hospital Claude Bernard) - consideram que eacute grave e os jornalistas que anunciam a nova doenccedila transmitem esta ideacuteia Poreacutem mais ainda eles exprimem o caraacuteter brutal do aparecimento da doenshyccedilaIO e seu aspecto misterioso incompreensiacutevel e inexplicaacutevel para os coshynhecimentos do momento O Centro americano C) natildeo havia conhecido um alerta como este nem encontrado um problema tatildeo misterioso desde o caso da doenccedila do legionaacuterio escreve Le Monde em janeiro de 1982 Os primeiros artigos natildeo deixam de mencionar esses outros misteacuterios meacutedicos que foram em 1976 a doenccedila do legionaacuterio nos USA e em 1980 as intoxicaccedilotildees que aconteceram na Espanha por causa da ingestatildeo de oacuteleos enlatados

9 GODOY J La raison graphique Paris Ed de Minuit 1979 e B Latour Les veus de lesprit Culture technique nordm 14 1985 p 4 - 29

10 La Recherche marccedilo 1982 p 393

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 13

o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

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32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 5: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

II Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico

Um misteacuterio meacutedico

Seis meses no miacutenimo teriam se passado antes que os jornais franceses falassem de uma seacuterie de artigos publicados no New England Journal of Medicine uma das maiores revistas cientificas internacionais dedicados aos fenocircmenos misteriosos localizados nos Estados Unidos durante a primavera de 19818 Cacircncer misterioso nos homossexuais americanos se interroga Libeacuteration em 6 de janeiro de 1982 no mesmo dia Le Quotidien de Paris trata de O estranho mal que ataca os homossexuais Le Monde de 17 de janeiro dedica sua paacutegina Medicina ao titulo Por que os cacircnceres

Algumas centenas de homens jovens em sua maioria homossexuais satildeo atingidos por infecccedilotildees diversas cujos agentes podem ser viacuterus (viacuterus do herpes citomegaloviacuterus) cogumelos (Candida albicans) ou parasitas (Pneushymocystiscarinii) Em certos casos os doentes tecircm um tumor bastante raro entatildeo o sarcoma de Kaposi Todos esses doentes tecircm no entanto um sinal comum imediatamente assinalado Seu sistema imunoloacutegico ( ) estaacute profundamente degradado e em certos casos totalmente paralisado escreve o jornalista do Le Monde Por isso assinala ele tambeacutem patologias habitualmente benignas puderam tornar-se excepcionalmente graves

Em marccedilo de 1982 La Recherche publicaccedilatildeo mensal de divulgaccedilatildeo cientiacutefica publica um artigo com um tema bastante parecido com o tiacutetulo A pneumonia dos homossexuais Depois o silecircncio se instala durante um ano na imprensa francesa Ao todo oito artigos foram publicados em quatro dos jornais estudados sendo que nenhum foi publicado por Le Matin nem por L Humaniteacute dejaneiro de 1982 ateacute abril de 1983 Nessa data o conjunto dejornais analisados retoma de maneira regular a publicaccedilatildeo de artigos

Como eacute que tal afecccedilatildeo - natildeo se fala ainda de AIDS - de manifestaccedilotildees difusas e que soacute atinge um nuacutemero limitado de indiviacuteduos dispersos em vaacuterias cidades americanas foi localizada O trabalho meacutedico as observaccedilotildees das equipes hospitalares que tratam dos doentes natildeo satildeo suficientes para localizaacuteshyla Ela eacute identificada como fato novo grave e misterioso atraveacutes da coleta rotineira de informaccedilotildees sistemaacuteticas pelo Centro de Coleta de Dados de Atlanta nos Estados Unidos A primeira hipoacutetese feita a propoacutesito da imushynodepressatildeo se funda na coleta de informaccedilotildees indiretas O puacuteblico seraacute informado disto atraveacutes de um primeiro artigo do Figaro em marccedilo de 1983 O Center for Disease ContraI observou um consumo anormal de lomidina medishycamento utilizado no tratamento das pneumocistoses que satildeo uma das mashy

8 New England Journal of Medecine 1981305 1425-1531

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nifestaccedilotildees OpOrtunistas da doenccedila Diversas teacutecnicas materiais simples em seu princiacutepio como recenseamento visualizaccedilatildeo inscriccedilatildeo- alista o graacutefico o quadro - esti veram nos diz Jack Goody9 entre os meios mais eficazes para o desenvolvimento do espiacuterito cientiacutefico Os fatos com os quais a ciecircncia se preocupa natildeo satildeo imediatamente visiacuteveis A construccedilatildeo de indicadores e de meios de registro eacute necessaacuteria escreve Bruno Latour para que sejam percebishydos por exemplo os dados essenciais da economia francesa ou o aparecimento de uma patologia No caso da AIOS pode-se ficar impressionado com a forccedila destes procedimentos de inscriccedilatildeo da vigilacircncia epidemioloacutegica e com a rapidez com a qual eles fazem surgir um fenocircmeno novo que pode ser visto pesquisando imediatamente a informaccedilatildeo que vai validar sua realidade A raacutepida pesquisa desencadeada pelo Centro de Atlanta fixa rapidamente os contornos do problema nuacutemero e tipos de doentes atingidos agentes implicashydos nas diversas infecccedilotildees e sobretudo a existecircncia de uma grave imushynodepressatildeo

Aliaacute em 1981 e 1982 os que de modo concreto vecircem essa nova afecccedilatildeo satildeo ainda muito raros O artigo de marccedilo de 1982 publicado na Recherche assinala que os meacutedicos da Califoacuternia e de Nova York que se interessam pela doenccedila satildeo quase mais numerosos do que os proacuteprios doentes Uns e outros continuam sendo pouco numerosos Quanto agrave difusatildeo de informashyccedilatildeo a imprensa francesa fica silenciosa durante muito tempo Em compensashyccedilatildeo desde os primeiros artigos a gravidade do fenocircmeno eacute percebida os que vecircem - os primeiros meacutedicos em contato com os primeiros doentes (citamshyse rapidamente os nomes dos doutores Leibowitch do hospital Raymond Poincareacute e Rozenbaum do hospital Claude Bernard) - consideram que eacute grave e os jornalistas que anunciam a nova doenccedila transmitem esta ideacuteia Poreacutem mais ainda eles exprimem o caraacuteter brutal do aparecimento da doenshyccedilaIO e seu aspecto misterioso incompreensiacutevel e inexplicaacutevel para os coshynhecimentos do momento O Centro americano C) natildeo havia conhecido um alerta como este nem encontrado um problema tatildeo misterioso desde o caso da doenccedila do legionaacuterio escreve Le Monde em janeiro de 1982 Os primeiros artigos natildeo deixam de mencionar esses outros misteacuterios meacutedicos que foram em 1976 a doenccedila do legionaacuterio nos USA e em 1980 as intoxicaccedilotildees que aconteceram na Espanha por causa da ingestatildeo de oacuteleos enlatados

9 GODOY J La raison graphique Paris Ed de Minuit 1979 e B Latour Les veus de lesprit Culture technique nordm 14 1985 p 4 - 29

10 La Recherche marccedilo 1982 p 393

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 13

o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

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16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

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pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 6: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

12 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

nifestaccedilotildees OpOrtunistas da doenccedila Diversas teacutecnicas materiais simples em seu princiacutepio como recenseamento visualizaccedilatildeo inscriccedilatildeo- alista o graacutefico o quadro - esti veram nos diz Jack Goody9 entre os meios mais eficazes para o desenvolvimento do espiacuterito cientiacutefico Os fatos com os quais a ciecircncia se preocupa natildeo satildeo imediatamente visiacuteveis A construccedilatildeo de indicadores e de meios de registro eacute necessaacuteria escreve Bruno Latour para que sejam percebishydos por exemplo os dados essenciais da economia francesa ou o aparecimento de uma patologia No caso da AIOS pode-se ficar impressionado com a forccedila destes procedimentos de inscriccedilatildeo da vigilacircncia epidemioloacutegica e com a rapidez com a qual eles fazem surgir um fenocircmeno novo que pode ser visto pesquisando imediatamente a informaccedilatildeo que vai validar sua realidade A raacutepida pesquisa desencadeada pelo Centro de Atlanta fixa rapidamente os contornos do problema nuacutemero e tipos de doentes atingidos agentes implicashydos nas diversas infecccedilotildees e sobretudo a existecircncia de uma grave imushynodepressatildeo

Aliaacute em 1981 e 1982 os que de modo concreto vecircem essa nova afecccedilatildeo satildeo ainda muito raros O artigo de marccedilo de 1982 publicado na Recherche assinala que os meacutedicos da Califoacuternia e de Nova York que se interessam pela doenccedila satildeo quase mais numerosos do que os proacuteprios doentes Uns e outros continuam sendo pouco numerosos Quanto agrave difusatildeo de informashyccedilatildeo a imprensa francesa fica silenciosa durante muito tempo Em compensashyccedilatildeo desde os primeiros artigos a gravidade do fenocircmeno eacute percebida os que vecircem - os primeiros meacutedicos em contato com os primeiros doentes (citamshyse rapidamente os nomes dos doutores Leibowitch do hospital Raymond Poincareacute e Rozenbaum do hospital Claude Bernard) - consideram que eacute grave e os jornalistas que anunciam a nova doenccedila transmitem esta ideacuteia Poreacutem mais ainda eles exprimem o caraacuteter brutal do aparecimento da doenshyccedilaIO e seu aspecto misterioso incompreensiacutevel e inexplicaacutevel para os coshynhecimentos do momento O Centro americano C) natildeo havia conhecido um alerta como este nem encontrado um problema tatildeo misterioso desde o caso da doenccedila do legionaacuterio escreve Le Monde em janeiro de 1982 Os primeiros artigos natildeo deixam de mencionar esses outros misteacuterios meacutedicos que foram em 1976 a doenccedila do legionaacuterio nos USA e em 1980 as intoxicaccedilotildees que aconteceram na Espanha por causa da ingestatildeo de oacuteleos enlatados

9 GODOY J La raison graphique Paris Ed de Minuit 1979 e B Latour Les veus de lesprit Culture technique nordm 14 1985 p 4 - 29

10 La Recherche marccedilo 1982 p 393

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o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

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o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

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32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 7: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 13

o discurso que se enuncia durante essa primeira sequumlecircncia eacute de incerteza de ignoracircncia e mesmo de estupor diante de um fenocircmeno percebido como acidente inexplicaacutevel que vem interromper o curso normal das coisas Natildeo se sabe ainda se veio para durar Em maio de 1983 quando a primeiras descoshybertas ganham ares de certeza as trocas e os consensos que se instalam na comunidade cientiacutefica resultam numa pri meira estabilizaccedilatildeo do fenocircmeno Ateacute entatildeo os escritos jornaliacutesticos registram as interrogaccedilotildees meacutedicas situanl-se na ordem da di vulgaccedilatildeo exprimindo as hipoacuteteses dos pesquisadores e as questotildees que eles se colocam nas revistas cientiacuteficas A diversidade da hipoacuteteses evocadas apenas reforccedila o sentimento de ignoracircncia

N esse periacuteodo os meacutedicos e os pesquisadores satildeo portanto os verdadeiros locutores sujeitos - reais ou impliacutecitos - de todos os enunciados emitidos pela imprensa Natildeo obstante testemunham apenas sua ignoracircncia A nova doenccedila eacute primeiro um misteacuterio meacutedico Embora o Monde tenha desde o iniacutecio mencionado os problemas que ela pode criar para a sauacutede puacuteblica ela natildeo eacute ainda fenocircmeno de sociedade e atrai poucas interpretaccedilotildees relativas agraves suas dimensotildees culturais sociais ou eacuteticas

Na mesma eacutepoca poreacutem tais comentaacuterios circulam a propoacutesito de uma outra afecccedilatildeo sexualmente transmissiacutevel o herpes genital Em marccedilo de 1983 Libeacuteration publica uma seacuterie dedicada agraves doenccedila sexualmente transmissiacuteveis (DST) A psicose do herpes ocupa um lugar ainda maior que o cacircncer gay que no entanto eacute tratado pela primeira vez com uma certa importacircncia A associaccedilatildeo do herpes com o sexo eacute sublinhada os temas do contaacutegio e do pacircnico os da puniccedilatildeo divina da rejeiccedilatildeo dos doentes e da moralizaccedilatildeo das praacuteticas sexuais satildeo evocados a propoacutesito da epidemia do herpes Tudo se passa como se o herpes genital tivesse servido de fenocircmeno precursor para a AIDS Nos Estados Unidos sobretudoaherpes foi motivo de debates e de movimenshytos coletivos muito divididos mas que natildeo chegaram a atingir a intensidade daqueles provocados em seguida pela AIDS No entanto a seu respeito se articulam os diversos elementos da configuraccedilatildeo simboacutelica da forma forte que por ocasiatildeo da AIDS seraacute rapidamente e facilmente reatualizada sexuashylidade contaacutegio puniccedilatildeo e medo

Mas no curso do primeiro semestre de 1983 eacute atraveacutes de outros mecashynismos que a nova doenccedila passa pouco a pouco da categoria de misteacuterio meacutedico para a de objeto bem identificado mesmo que permaneccedila inexplicada atraveacutes inicialmente dos nomes que se lhe atribui Se o nome permite localizar e identificar sobretudo cristaliza uma imagem da doenccedila e ateacute conflitos entre grupos As questotildees satildeo entatildeo quem nomeia e o que se nomei~)

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 8: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

14 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 11992

o mesmo problema apareceraacute alguns anos mais tarde quando chegar a hora de designar o viacuterus No iniacutecio e ateacute julho de 1983 todos os termos empregados fazem referecircncia ao grupo mais frequumlentemente associado agrave doenshyccedila os homossexuais pneumonia dos homossexuais cacircncer dos homosshysexuais ou cacircncer gay e mais amplamente siacutendrome dos homossexuais ou siacutendrome gay No entanto no mesmo momento em que muitos artigos utilizam essas denominaccedilotildees assinalam que ela eacute improacutepria a imprensa relata desde 1982 que os homossexuais natildeo satildeo os uacutenicos atingidos mas tambeacutem os drogados o povo do Haiti e ateacute as crianccedilas Tambeacutem se diz rapidamente que natildeo se trata de um cacircncer Apesar dos esforccedilos de objetivaccedilatildeo que traduzem estas precisotildees a associaccedilatildeo pregnante no plano simboacutelico e no plano social a levam embora

Em contrapartida a partir de marccedilo de 1983 vaacuterios jornais nacionais comeccedilam a utilizar o termo meacutedico AIDS (Acquired Immunodeficiency Synshydrome) que seraacute traduzido mais tarde por Siacutendrome de Imunodeficiecircncia Adquirida ou AIDS I1 Essas denominaccedilotildees atuais satildeo menos eloquumlentes mas tecircm a vantagem de corresponder agrave realidade meacutedica e bioloacutegica escreve Le Figaro em 22 de marccedilo de 1983 Mesmo assim esta neutralizaccedilatildeo pela denominaccedilatildeo cientiacutefica soacute acontece lentamente de marccedilo ajulho de 1983 todos os artigos (por volta de trinta dos quais muito publicados na primeira paacutegina dos diferentes jornais) tornaratildeo sinocircnimos AIDS siacutendrome homossexual ou cacircncer gay Em seguida o vocaacutebulo AIDS se impotildee definitivamente mas a neutralizaccedilatildeo eacute precaacuteria eacute nele que se articulam doravante as conotaccedilotildees negativas que o seu uso havia descartado num primeiro momento A AIDSshye por aiacute pode-se explicar sua construccedilatildeo enquanto fenocircmeno social - se tornaraacute o siacutembolo de todas as ameaccedilas e de todos os opoacutebrios o alvo de todos os anaacutetemas Natildeo se falaraacuteem dezembro de 1986 de AIDS mental

No curso do mesmo periacuteodo o segundo mecanismo pelo qual a AIDS incorpora uma realidade natildeo mais bioloacutegica mas epidemioloacutegica eacute a enumeshyraccedilatildeo Os primeiros nuacutemeros circulam referindo-se agraves viacutetimas e aos mortos Libeacuteration os recapitula desde seu artigo de fevereiro de 1982 159 casos nos Estados Unidos em novembro de 1981 em seguida 57 novos doentes nos dois meses anteriores ao artigo ou seja 216 casos dos quais 88 mortos Nos dois primeiros artigos publicados na Franccedila em 6 de janeiro de 1982 falava-se de um caso francecircs A partir de fevereiro registram-se cinco casos e alguns meacutedicos franceses comeccedilam a acionar dispositivos com o objetivo de precisar

11 Em francecircs Syndrome dImuno-Deacuteficience Acquise ou SIDA

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

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marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

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incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

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32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 9: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 15

a situaccedilatildeo Alguns meacutedicos motivados por suas especialidades improvisaram uma espeacutecie de centro de coordenaccedilatildeo informal o que permite a circulaccedilatildeo das primeiras informaccedilotildees escreve Libeacuteration de 6 de fevereiro de 1982

Em seguida enquanto os artigos se multiplicam a publicaccedilatildeo frequumlente de dados numeacutericos coloca em evidecircncia a extensatildeo do fenocircmeno Cada vez mais frequumlentemente os cotidianos nacionais constroem seus artigos em torno de tais enumeraccedilotildees produzidas pela CAC de Atlanta pela Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (OMS) pelo Ministeacuterio da Sauacutede francecircs A realidade mencionada natildeo eacute sempre a mesma evocando aacutereas geograacuteficas diferentes (os Estados Unidos a Franccedila o mundo inteiro) agraves vezes com grande imprecisatildeo P fala-se agraves vezes no nuacutemero de casos agraves vezes no nuacutemero de mortos agraves vezes na situaccedilatildeo atual agraves vezes nas projeccedilotildees mais ou menos a longo prazo Sinal da importacircncia q4e lhe eacute dada estas indicaccedilotildees aparecem frequumlentementes nos tiacutetulos dos artigos Em Nova York 350 pessoas jaacute estatildeo mortas 24000 casos estatildeo previstos para 1985 daacute em tiacutetulo Le Matin em 18119 de junho de 1983 AIDS nos USA o mileacutesimo morto eacute para o mecircs de outubro escreve Le Quotidien de Paris em 10 de setembro de 1983 Paralelamente agrave sua extensatildeo numeacuterica coloca-se em evidecircncia a difusatildeo geograacutefica da doenccedila primeiro os Estados Unidos depois 18 paiacuteses satildeo atingidos em agosto de 1983 enquanto as Caraiacutebas e a Aacutefrica comeccedilam a ocupar o centro das preocupaccedilotildees

A partir desses dois tipos de informaccedilotildees - o aumento do nuacutemero de casos e a extensatildeo geograacutefica - o crescimento da doenccedila torna-se um dos pontos focais das preocupaccedilotildees O nuacutemero absoluto de pessoas atingidas importa pouco em dezembro de 1983 o nuacutemero mais elevado fornecido pela OMS eacute de 4000 casos no mundo Mas o crescimento natildeo permite somente que se estabeleccedilaaimportacircnciado fenocircmeno em si estabelece o caraacuteter irreversiacutevel daquilo que ateacute entatildeo podia ser apenas um acidente fadado a desaparecer O acidente dura13 Aleacutem disso o crescimento impotildee por si soacute a imagem de um fenocircmeno de alto risco dificilmente controlaacutevel Naquilo que diz respeito agrave vida bioloacutegica eacute quase inevitaacutevel que a ele se associe qualquer que seja o mecanismo de difusatildeo a noccedilatildeo de epidemia14 que constitui entatildeo o uacutenico

12 Por exemplo Liberaacutetion - no seu dossiecirc de 19 e 20 de marccedilo de 1983 - cita a cifra de 4693 casos recenseados no final de 1982 nos EUA entre os quais 278 mcprtes e 44 casos de AIOS na Franccedila dos quais 15 estatildeo mortos Na mesma paacutegina num espaccedilo intitulado Pequena carta geopoliacutetica do deacuteficit imunitaacuterio lecirc-se Final de 1982 mais de 800 casos estatildeo recenseados nos EUA e uns vinte em Paris

13 Retomamos alguns aspectos da anaacutelise de P Roqueplo Les pluies acides cOnsidereacutees comme un accident du risque Paris CEMS 1986 relatoacuterio mimeografado 35 p~

14 LITTREacute daacute a seguinte definiccedilatildeo de epidemia Doenccedila contagiosa ou natildeo Que ataca um

X Ir bull I

-

16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 10: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

X Ir bull I

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16 PHYSIS - Revista de Sauacutede Co1etiva Vol 2 Numero 1 1992

modelo inteligiacutevel do acontecimento Com base nisso as infonnaccedilotildees passam a misturar continuamente a avaliaccedilatildeo do estado atual da doenccedila com a antecishypaccedilatildeo daquilo que ela pode tornar-se O campo de propagaccedilatildeo da AIDS pode ser enorme escreve Le Figaro em 8 de maio de 1983 As previsotildees se faratildeo cada vez mais impressionantes O anuacutencio em setembro pelo Quotidien de Paris do mileacutesimo morto no mecircs seguinte pode parecer uma previsatildeo limitada mas seu impacto simboacutelico eacute certo Em 14 de outubro Le Monde traz uma brincadeira do doutor Rozenbaum que escreve o jornalista fala da inquietashyccedilatildeo que a doenccedila suscita se a epidemia continuasse nesse ritmo a humanidade acabaria por volta de 1995

Portanto a AIDS eacute percebida no plano temporal segundo uma grade dupla cada uma conteacutem um paradoxo Acidente imprevisiacutevel que dura enquanshyto eacute da natureza de um acidente natildeo durar Fenoacutemeno ainda reduzido em relaccedilatildeo ao nuacutemero de problemas de sauacutede que afetam diversas populaccedilotildees no entanto apreendido na antecipaccedilatildeo de um crescimento potencialmente ilimitado ele pode causar uma cataacutestrofe universal Um novo registro da temporalidade impotildee-se entatildeo o da urgecircncia Diante de um fenoacutemeno que natildeo paacutera de crescer de um perigo que parece estender-se indefinidamente eacute preciso fazer alguma coisa Enquanto ainda se permanece no estupor do acidente e na ignoracircncia dos primeiros momentos eacute preciso agir sem saber exatamente em que bases se apoiar

A construccedilatildeo de um fenocircmeno social

Do iniacutecio de maio de 1983 ao fim de maio de 1984 delimitamos uma sequumlecircncia por dois acontecimentos cientiacuteficos (os primeiros artigos publicados naScience sobre aorigem viroacuteticadadoenccedilae o anuacutencio oficial da identificaccedilatildeo de um viacuterus pelo secretaacuterio da Sauacutede dos EUA) O saber sobre a doenccedila cresce consideravelmente Paralelamente o nuacutemero de artigos publicados pelos seis cotidianos diminui 83 artigos satildeo publicados em 13 meses 15Autores e tipos se diversificam artigos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica mas tambeacutem artigos econoacuteshymicos reportagens pesquisas entrevistas opiniotildees

grande nuacutemero de pessoas A epidemiologia moderna a define como A ocorrecircncia numa comunidade ou regiatildeo de casos de uma doenccedila

15 Todos os jornais falaram disso e 83 artigos seratildeo publicados durante o veratildeo de 1983 quando aconteceraacute o crescimento poderoso do fenocircmeno Sete manchetes ou primeiras paacuteginas seratildeo dedicadas a AIDS nesse periacuteodo (3 para o Monde 2 para Liberaacutetion e 2 para o Matin)

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 11: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

middot 1 -J

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 17

Assistimos nesse periacuteodo agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS que se elabora em vaacuterios planos cientiacutefico econocircmico e enfim moral e cultural Eacute doravante para o grande puacuteblico e natildeo somente para os meacutedicos e os pesquisadores por intermeacutedio da imprensa e de seus procedimentos esshypeciacuteficos de escrita que a AIOS se inscreve como uma realidade cujos diversos aspectos atraem sucessiva ou simultaneamente a atenccedilatildeo e se tornam o centro16 dos debates e dos conflitos nos quais estaacute implicado um nuacutemero cada vez maior de indiviacuteduos e de grupos Os diferentes jornais participam disso de maneiras diversas Le Monde Libeacuteration e Le Matin satildeo os mais ativos pela diversidade de seus artigos e de seus comentaristas Le Monde interveacutem em trecircs planos enquanto que Le Matin e Libeacuteration dedicam-se mais aos aspectos culturais e sociais Le Figaro Le Quotidien de Paris e sobretudo LHumaniteacute intervecircm mais raramente em relaccedilatildeo aos acontecimentos mais importantes

Tudo se funda nos avanccedilos do conhecimento cientiacutefico No caso da AIOS a pesquisa provavelmente mais que em qualquer outra ocasiatildeo teve valor de acontecimento17 Eacute pelo trabalho dos elementos de informaccedilatildeo que ela fornece e a diversidade dos investimentos simboacutelicos que daiacute decorrem pela evidenciaccedilatildeo das polecircmicas coletivas as vezes nacionais que se cristalizam a seu respeito que a AIDS torna-se algo diferente de um simples misteacuterio meacutedico e diferente tambeacutem de uma simples doenccedila ainda que grave

A AIOS e as descobertas cientiacuteficas que a circunscrevem permitem de iniacutecio a elaboraccedilatildeo de uma imagem diferente da habitual da comunidade cientiacutefica a de pensadores desinteressados mantendo relaccedilotildees intelectuais Em sua anaacutelise da divulgaccedilatildeo cientiacutefica18 Philippe Roqueplo mostrou que esta incluiacutea duas operaccedilotildees distintas procurar restituir de maneira que pareccedila significativa um saber que os cientistas tecircm como objetivo Mas para legitimar o conteuacutedo do conhecimento transmitido a divulgaccedilatildeo mostra ao puacuteblico o espetaacuteculo dos laboratoacuterios e dos cientistas em accedilatildeo Em relaccedilatildeo agrave AIDS mais raacutepido do que nunca esse espetaacuteculo eacute o de uma luta que incide sobre dois viacuterus e cinde a comunidade cientiacutefica opondo duas equipes ainda por cima coloca em confronto atraveacutes delas dois paiacuteses com seus interesses e suas poliacuteticas cientiacuteficas e econocircmicas

16 Nota da tradudora deviennent enjeu a traduccedilatildeo literal de enjeu seria aposta Optei por centro por achar que nesse contexto aposta natildeo faria sentido

17 ROQUEPLO P Le partage du savoir Science culture vulgarization Editions du Seuil 1974 p 32 - 34

18 ROQUEPLO P op cito p 20 - 22

18 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 12: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

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De fato se os diversos cotidianos falam dos progressos do conhecimento difundindo regularmente os resultados publicados pelas revistas cientiacuteficas internacionais - Le Monde se refere sempre a isso de forma expliacutecita - ou as discussotildees durante os encontros de pesquisadores muito rapidamente essa restituiccedilatildeo de um saber que estaacute se constituindo eacute tambeacutem a de controveacutersias atraveacutes das quais a imagem de um mundo cientifico guerreando em torno da AIDS toma aos poucos tanta importacircncia quanto as proacuteprias informaccedilotildees

No dia 5 de maio de 1983 Le Monde eLe Matin publicam resultados das equipes americanas (professores Gallo e Essex) e francesas (professor Montashygnier) que soacute seratildeo publicadas quinze dias mais tarde numa seacuterie de cinco diferentes artigos pela revista Science 19 Eles colocam emmiddot evidecircncia uma famiacutelia de viacuterus na AIDS Esses viacuterus dizem estariam proacuteximos daquele identificado alguns anos antes pelo professor Gallo em certas formas humanas de leucemia e chamado HTLV Pelos dois artigos nada se pode prever a respeito da polecircmica que se seguiraacute Mas no dia 17 de maio Libeacuteration dedica pela primeira vez sua manchete agrave AIDS Um viacuterus isolado pelos pesquisadores franceses Pouco a pouco - por ocasiatildeo por exemplo de um congresso de imunologia em Kioto no fim de agosto de 1983 Le Matin de 27 de agosto escreveA AIDS estaacute na berlinda - os jornais explicitam a diferenccedila dos dois viacuterus HTLVeLAV20 insistem na rivalidade entre as equipes francesa e americana e no desequiliacutebrio dos meios financeiros colocados em accedilatildeo nos dois paiacuteses

Mas o anuacutencio feito pela senhora Heckler secretaacuteria Sauacutede dos EUA em final de abril de 1984 da descoberta do HTLV3 como causa provaacutevel da doenccedila faz com que a imprensa francesa se posicione de maneira diferenciada L Humaniteacute publica pela primeira vez vaacuterios artigos sobre a doenccedila Le Matin Le Quotidien de Paris e Le Monde mostram com estardalhaccedilo a briga dos viacuterus As manchetes de primeira paacutegina dos cotidianos satildeo eloquumlentes Le Matin AIDS viacuterus US contra viacuterus francecircs Le Quotidien de Paris eacute ainda mais polecircmico e introduz a dimensatildeo poliacutetica numa briga cientiacutefica que se tornou explicitamente franco-americana AIDS Reagan recupera o viacuterus

francecircs

19 Science 20 de maio 1983 v 220 nordm 4599 20 Trata-se do Human T Cell Leukemia Virus ou HTLV e do Lymphadenopathy Acquired

Virus ou LA V nome dado pelos franceses ao viacuterus A imprensa usa o nome pela primeira vez em agosto de 1983 A partir do veratildeo de 1986 a denominaccedilatildeo neutra HIV se imporaacute como compromisso aceitaacutevel para as duas partes

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

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A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

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Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

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tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

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numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

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mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

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incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

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32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

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sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 13: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

I U ma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 19

Nessa ocasiatildeo os cientistas tomam a palavra na imprensa cotidiana e

exprimem seus pontos de vista Esse eacute o sentido da longa entrevista de Jean-Paul Leacutevy publicada em Le Monde dos dias 13 e 14 de maio de 1984 dedicada agraves

relaccedilotildees cientiacuteficas franco-americanas agrave organizaccedilatildeo da pesquisa e agraves suas ligaccedilotildees com a induacutestria no donuacutenio da AIDS Ela recebe o tiacutetulo de A guerra das ciecircncias estaacute declarada Para os pesquisadores a escolha de dirigir-se agrave opiniatildeo puacuteblica eacute provavelmente sinal da importacircncia das polecircmicas ligadas ao problema A panoacuteplia discursiva21 utilizada pelo jornal ~ extensatildeo da entrevista tiacutetulo fotografia editorial assinado - mostra que ele concorda com essa perspectiva Dando a oportunidade aos pesquisadores de exprimir suas preocupaccedilotildees diante da opiniatildeo puacuteblica ele substitui sua vontade de influenciar aqueles de quem dependem a organizaccedilatildeo e o financiamento da pesquisa

Mas a luta cientiacutefica franco-americana natildeo tem como uacutenico motor o prestiacutegio intelectual Le Figaro do dia 25 de abril de 1984 lembra que a dimensatildeo essencial da luta eacute econocircmica O futuro diraacute quem se GaBo ou Montagnier seraacute considerado como o vencedor dessa corrida na qual a aposta seraacute talvez o precircmio Nobel e certamente traraacute benefiacutecios substanciais Os royalties seratildeo pagos em doacutelares ou em francos conclui o jornalista Isto natildeo eacute uma novidade Um ano antes e antes mesmo da briga dos viacuterus o puacuteblico teve conhecimento da briga das patentes Paralelamente agrave sua colocaccedilatildeo em forma cientiacutefica e a cristalizaccedilatildeo de uma visatildeo conflitiva nos meios de pesquishysadores eacute tambeacutem no plano econocircmico que se construiu o fenocircmeno social AIDS atraveacutes da viva polecircmica que aconteceu entre maio e julho de 1983 em torno da fabricaccedilatildeo da vacina contra a hepatite B pelo Institut Pasteur Producshytion ou IPP22 debate incide sobre os riscos de disseminaccedilatildeo da AIDS por intermeacutedio de produtos sanguiacuteneos importados dos Estados Unidos para a fabricaccedilatildeo dessa vacina Situa-se no contexto de uma luta feroz empreendida entre o IPP e a firma americana Merck Sharp e Dohme (ou MSD) que fabrica uma vacina que faz concorrecircncia Quem ganharaacute os mercados constituiacutedos pelos paiacuteses desenvolvidos e em desenvolvimento As questotildees ou acusaccedilotildees dirigidas agrave IPP natildeo poderatildeo comprometer sua posiccedilatildeo comercial Durante alguns dias a polecircmica provocaraacute rivais inicialmente entre a nuacutediae o Instituto Sobretvdo Libeacuteration atraveacutes de vaacuterios artigos ou dossiecircs com tiacutetulos provoshycadores (O Instituto Pasteur doente do cacircncer gay na manchete de 27 de

21 VERON E op dt 22 Sob a denominaccedilatildeo de Instituto Pasteur estatildeo agrupados uma firma industrial o Instituto

Pasteur Produccedilatildeo e um organismo de pesquisa o Instituto Pasteur Fundaccedilatildeo Todos os jornais analisados falaram desse problema vinte vezes em algumas semanas

20 PHYSIS - Revista de Sauacutede Caletiva VaI 2 Nuacutemero I lCJn

junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

22 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

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sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

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junho) denuncia as negligecircncias e os riscos corridos segundo ele pelo Instituto Depois os jornais se oporatildeo uns aos outros LHumaniteacute por exemplo escreve em 7 de julho Certos jornais dirigiram deliberadamente seus ataques contra o produto francecircs

A partir dessa data os problemas das recaiacutedas econocircmicas da doenccedila das estrateacutegias de despistamento das futuras vacinas e da conquista dos mercados faratildeo parte do registro informativo sobre a AIDS23 Paralelamente todos os jornais estudados - mesmo tomando distacircncia do Libeacuteration em particular com suas manchetes explosivas - deploraram a falta de respostas do Instituto Pasteur Produccedilatildeo Quando o professor Franccedilois Jacob presidente do Conselho de Administraccedilatildeo da Fundaccedilatildeo Instituto Pasteur denuncia durante uma entrevista agrave imprensa a utilizaccedilatildeo do sensacionalismo aliada agrave uma vontade de prejudicar a pesquisa francesa ele recebe a objeccedilatildeo do Le Matin de middot8 de julho eacute precisamente a falta de informaccedilatildeo que contribuiu para aumentar este caso Pouco a pouco enquanto as polecircmicas se ampliam e se diversificam as relaccedilotildees entre pesquisadores e jornalistas se transformam Estes uacuteltimos deixam o terreno da difusatildeo do saber para adotar um papel mais ativo e investigativo sustentando os meios cientiacuteficos em sua buscade recursos financeiros eles querem no entanto continuar as pesquisas e abrir os dossiecircs Um rompimento se configura entre atores que pararam de ser uns as fontes e os outros os mediadores

Mas a doenccedila se constroacutei em outros planos Em 27 de abril de 1982 Libeacuteration publica um artigo que se refere ao recente congresso da Associaccedilatildeo dos Meacutedicos Gays o texto foi dedicado ao estranho mal que ataca os homosshysexuais O debate foi difiacutecil e o doutor Leibowitch convidado para o congresshyso ficou sob a suspeiccedilatildeo da assistecircncia quando afirmou a propoacutesito das praacuteticas homossexuais que esse modo de vida era um seacuterio fator de risco deste caso exemplar de doenccedila multifatorial moderna O termo fator de risco empregashydo pela primeira vez a propoacutesito da AIDS aparece entre aspas A partir de maio de 1983 em compensaccedilatildeo os grupos indiviacuteduos pessoas populaccedilotildees e categorias de risco se banalizam nos diversos jornais

Com essas noccedilotildees fazendo referecircncia agraves pessoas suscetiacuteveis de serem atingidas pela doenccedila o discurso sobre a AIOS adquire uma dimensatildeo cultural e moral Esta rapidamente ocupa o lugar central na temaacutetica associada agrave doenccedila A partir do veratildeo de 1983 a AIDS deixa definitivamente de ser um

23 Pode-se observar que no periacuteodo recente - fora do contexto deste estudo - as aposta~ econocircmicas e as rivalidades entre equipes cientiacuteficas sobretudo na Africa satildeo relativamente ocultadas na imprensa cotidiana

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 21

simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

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A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 15: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

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simples misteacuterio meacutedico O discurso que circula natildeo a torna apenas objeto de lutas cientiacuteficas e econocircmicas nunca antes presenciadas ela vai aparecer como motor de mudanccedilas radicais no modo de vida e nos valores do fim do seacuteculo XX em particular no que diz respeito agrave liberdade sexual Desde o fim do veratildeo de 1983 esta rede de significaccedilotildees estaacute fixada

Tambeacutem nesse plano tudo eacute decorrente do registro cientiacutefico o da epidemiologia ateacute entatildeo ignorada pelo grande puacuteblico com a AIDS ela chega ao conhecimento comum Eacute dela que vem as noccedilotildees de risco fator de risco e populaccedilatildeo de risco sobre as quais junto com os nuacutemeros se faz a antecipaccedilatildeo do crescimento Mas o discurso que se elabora nessas bases eacute complexo Desde suas primeira~ menccedilotildees o termo epidemiologia vem sem duacutevida reforccedilar por proximidade linguumliacutestita a configuraccedilatildeo CDgnitiva de epidemia referida nestes artigos Simultaneamente no entanto as diversas denominaccedilotildees de grupos pessoas ou populaccedilotildees de risco significam que os indiviacuteduos natildeo satildeo iguais diante da doenccedila

Essas noccedilotildees correspondem a um estado recente do desenvolvimento da epidemiologia Em sua origem esta esteve centrada nas epidemias a disciplina se definia atraveacutes do estudo das doenccedilas transmissiacuteveis causadas por um agente especiacutefico diretamente observaacutevel num certo meio e atingindo certos hospedeiros 24 Mas em seguida transpocircs-se este modelo inicial probabiliacutestico para se estudar as doenccedilas natildeo transmissiacuteveis e as afecccedilotildees crocircnicas com causas complexas Nesta evoluccedilatildeo a noccedilatildeo de causa daacute lugar agravequelas que satildeo mais difiacuteceis de serem apreendidas tais como risco e de fatar de risco que soacute significam uma ligaccedilatildeo estatiacutestica entre dois fenocircmenos Escrevendo sobre a AIDS os jornais franceses passam com frequumlecircncia de uma noccedilatildeo a outra A definiccedilatildeo precisa deste grupo ( de risco) estaacute por ser dada escreve por exemplo Le Monde do dia 18 de maio de 1983 como prevenir uma doenccedila de que natildeo se conhece a causa interroga-se ele um mecircs mais tarde no dia 16 de junho Mas utilizando um termo ou outro a imagem que se i mpotildee eacute a de uma afecccedilatildeo que atinge grupos bem especiacuteficos e numerosos artigos acoplam agrave noccedilatildeo probabiliacutestica de grupo de risco outras globalizantes como comunidade homossexual ou modo de vida homossexual consideradas como realidades homogecircneas25 Comunidade e modo de vida dos homossexuais aparecem entatildeo intrinsecamente ligadas agrave doenccedila numa relaccedilatildeo do tipo causal

24 GOLDBERG M Cet obscUf objet de Ieacutepideacutemiologie Sciences Sociales et Santeacute nordm 1 dezembro de 1982 p 61

25 O artigo de M Pollacke M A Schiltz Identiteacute sociale et gestion dun risque de santeacute Ies hOll1osexueIs face au Sida Actes de la Recherche en Scienreccedil Sociales nordm 68 junho de

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A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

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Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

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tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

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numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

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mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

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incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

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32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

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natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

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sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 16: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

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A essa manipulaccedilatildeo ambiacutegua da causalidade se superpotildeem duas conshycepccedilotildees sobre a transmissatildeo da doenccedila e a ela tambeacutem se juntam dois sentidos diferentes A concepccedilatildeo de uma afecccedilatildeo cuja transmissatildeo passa por mecanisshymos especiacuteficos e eacute limitada aos homossexuais se associa a ideacuteia de uma maldiccedilatildeo - eacute assim que se exprime por exemplo Le Matin de 21 de junho ou Le Quotidien de Paris do dia 28 Simultaneamente no entanto a doenccedila eacute

encarada como uma epidemia dotada de uma contagiosidade de extensatildeo indefinida A AIDS passa aser a proacutepria cataacutestrofe que pode matar num futuro mais ou menos longiacutenquo populaccedilotildees cada vez maiores

Nessaperspectiva os homossexuais satildeo viacutetimas ou responsaacuteveis Viacutetimas ou responsaacuteveis de quecirc O que eacute que estaacute colocado em questatildeo na AIDS Ao redor dessas questotildees desde a origem de uma maldiccedilatildeo e sobretudo da resshyponsabilidade por uma cataacutestrofe futura que atingiria outros aleacutem deles se configura o espaccedilo no qual pode surgir um discurso moral No entanto as noccedilotildees e os fatos nos quais ele se apoacuteia permanecem ambiacuteguas durante muito tempo Jaacute assinalamos que os jornais rapidamente enumeraram outras categoshymiddotrias de risco aleacutem dos homossexuais A ambiguumlidade na enunciaccedilatildeo dos mecanismos da transmissatildeo levaram no entanto a fazer da homossexualidade - cacircncer gay ou siacutendrome homossexual - o uacutenico conteuacutedo explicativo da doenccedila de uma maneira singularmente paradoxal Assim Le Figaro dos dias 7 e 8 de maio de 1983 escreve que a siacutendrome gay seria causada por um viacuterus transmissiacutevel por simples contato jaacute que segundo o jornal os contatos sexuais natildeo satildeo responsaacuteveis pela doenccedila que sentido atribuir ao termo siacutendrome gay O artigo natildeo coloca a questatildeo mas desemboca na evocaccedilatildeo do crescimento potencial da doenccedila Dez dias mais tarde em 17 de maio a mesma preocupaccedilatildeo aparece numa expressatildeo usada pelo Libeacuteration no meio de um denso dossiecirc a de indiviacuteduos com alta transmissibilidade A noccedilatildeo de grupo de risco funciona entatildeo em dois planos risco de contrair a doenccedila mas sobretudo risco de transmiti-la o que preocupa bem mais os jornais De fato Libeacuteration associa com o tiacutetulo o cacircncer gay natildeo eacute sectaacuterio a ideacuteia de uma doenccedila de origem tipicamente homossexual a uma ameaccedila muito mais extensa lesse caso e noutros funciona um mesmo esquema de imputaccedilatildeo de resshyponsabilidade que liga dois modelos possiacuteveis de transmissatildeo a partir da maldiccedilatildeo que atinge um grupo minoritaacuterio especiacutefico uma cataacutestrofe bem maior pode acontecer

1987 mostra bem a pluralidade dos meIacuteDs sociais aos quais pertencem os homossexuais assim como a diversidade de modos de vida pelas quais eles gerem sua identidade

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 17: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 23

Mas na primavera de 1983 o discurso moral natildeo se limita agraves diversas operaccedilotildees pelas quais se associa um grupo minoritaacuterio os homossexuais ao risco bioloacutegico Estes suas comunidades e seus modos de vida satildeo apreshysentados atraveacutes de uma seacuterie de reportagens que concretizam a noccedilatildeo de grupo de risco pela descriccedilatildeo da realidade social que supostamente seria a deles Por este vieacutes a informaccedilatildeo sobre a doenccedila se diversifica No iniacutecio a reportagem eacute um gecircnero formalmente distinto do artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica dominante ateacute entatildeo A AIDS deixa de ser tratada apenas na rubrica meacutedica e se torna no sentido dado a este termo na imprensa um fato de sociedade Paralelamente os locutores se multiplicam Novos jornalistas intervecircm repoacutershyteres ou correspondentes no estrangeiro Aleacutem disto as reportagens satildeo acomshypanhadas de entrevistas e de pontos de vista de personalidades as mais variadas Um nuacutemero cada vez maior de pessoas interveacutem e eacute mobilizado pela nova doenccedila

Nem todos os jornais ana1isados participam dessa explosatildeo daAIDS fora do domiacutenio cientiacutefico natildeo se acha nenhum artigo deste tipo nas duas pontas do leque poliacutetico nem no Figaro nem no Humaniteacute A primeira reportagem aparece no Libeacuteration dos dias 19 e 20 de marccedilo de 1983 Os mais extensos aparecem no Le Matin do dia 17 ao dia 21 de junho com fotos manchetes na primeira paacutegina e entrevistas26 Estas reportagens satildeo feitas segundo um mesmo modelo Em primeiro lugar descrevem paralelamente agrave extensatildeo do mal o estado de psicose de paranoacuteia e as diferentes formas de pacircnico que invadiram inicialmente os meios gays americanos e que em seguidaa1canshyccedilaram o conjunto da populaccedilatildeo A anaacutelise prossegue em duas direccedilotildees a da rejeiccedilatildeo e estigmatizaccedilatildeo das viacutetimas pela sociedade normal e a da organizashyccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos homossexuais decididos a lutar A imagem que aparece eacute ade um combate combatecontraadoenccedila mas tambeacutem combate entre grupos e posiccedilotildees morais Libeacuteration do dia 17 de maio anuncia que a Ameacuterica entrou em periacuteodo de guerra contra um inimigo endoacutegeno as bichas Quanto aos homossexuais os jornais mostram que estatildeo traumatizados pelo mal mas tambeacutem pegando seu d6stino com as matildeos A homossexualidade e as posiccedilotildees morais que suscita estatildeo precisamente emjogo Le Matin e Libeacuteration sobretudo mas tambeacutem Le Monde e o Quotidien de Paris registram com aprovaccedilatildeo que diante da doenccedila os homossexuais americanos comeccedilam a mudar de estilo de vida e mais precisamente de praacuteticas sexuais Relatam

26 Pode-se observar que tambeacutem eacute no iniacutecio do veratildeo de 83 que aparecem os primeiros artigos publicados por revistas como Le Point LExpress Le Nouvel Observateur Cf A Yveinat AIDS o novo regime da epidemia DEA de Ciecircncias Sociais EHESS-ENS 1986-1987

24 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 18: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

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tambeacutem favoravelmente a indignaccedilatildeo dos gays diante das mensagens moralishyzadoras

Essas reportagens mostram a realidade do outro lado do Atlacircntico Signishyficam tambeacutem a ocasiatildeo de comentar a interpretaccedilatildeo dominante do mal o castigo divino que como ocorreu com certas doenccedilas de antigamente abateshyse sobre os culpados e reforccedilaaideacuteiada maldiccedilatildeo Algunsjornais em particular os de esquerda como Le Matin e Libeacuteration sublinham que como a proacutepria doenccedila a interpretaccedilatildeo preventiva se desenvolveu nos Estados Unidos Eles a inscrevem numa realidade anglo-saxoacutenica puritana numa situaccedilatildeo poliacutetica marcada pelo reaganismo num momento cultural de a ordem moral que se espalha nos Estados Unidos desde o inicio dos anos 80 Nos Estados Unidos os novos puritanos proclamam que a AIDS eacute umajusta puniccedilatildeo lecirc-se no Le Matin de 21 de junho de 1983

Pode-se questionar o sentido dessas reportagens Trata-se somente de informar um grande puacuteblico sobre uma realidade duplamente outra - amerishycana e homossexual - e de inscrever no plano da vida cotidiana a oposiccedilatildeo Franccedila-Estados Unidos que se desenha no plano cientiacutefico nesse mesmo moshymento Numerosos artigos se diferenciam explicitamente dos aspectos mais moralizadores e irracionais das reaccedilotildees do outro lado do Atlacircntico Mas os jornais se situam tambeacutem numa perspectiva pedagoacutegica e segundo eles a situaccedilatildeo americana deve fazer pensar os homossexuais franceses a quem eles sugerem que mudem o estilo de vida No dia 20 de junho Le Matin publica uacutema entrevista de um jornalista homossexual americano Avise aos gays franceses que natildeo se recusem a enfrentar a doenccedila

Seja pelos meacutedicos com entrevistas ou pelos jornalistas a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica eacute acompanhada geralmente pelo desejo de respeitar a vida privada dos indiviacuteduos implicados Seraacute que a AIDS representa hoje uma ameaccedila tal que seja preciso por razotildees meacutedicas e cientiacuteficas pesquisar a vida particular dos doadores de sangue - pergunta por exemplo Le Monde do dia 16 de junho Mas pode isto anular certas foacutermulas estranhamente ambiacuteguas como por exemplo a manchete Os paacuterias se mobilizam dada a um artigo do doutor Guy de Theacute de conteuacutedo cientiacutefico e publicado em Le Monde dos dias 26 e 27 de fevereiro de 1984

Aleacutem disso os enunciados de conteuacutedo informativo ou pragmaacutetico estatildeo constantemente imbricados com aqueles onde circula ligada agrave extensatildeo da doenccedila a enunciaccedilatildeo das anguacutestias do pacircnico das rejeiccedilotildees e das interpreshytaccedilotildees punitivas Ataques histeacutericos dos novos pregadores americanos fanshytasmas do homem da rua denegaccedilotildees ou coacutelera dos homossexuais que transshyformam em acusaccedilotildees as rejeiccedilotildees de que satildeo objeto satildeo tnl7irlm pelos jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 19: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 25

numa configuraccedilatildeo confusa onde cada um parece projetar no outro tanto a responsabilidade pelo mal quanto pelos enunciados estigmatizantes No iniacutecio do veratildeo de 1983 a nova doenccedila torna-se a ocasiatildeo para cada um - inclusive para os jornalistas franceses que condenam a situaccedilatildeo americana - de elaborar as clivagens as oposiccedilotildees de construir do outro uma imagem negativa e de proclamaacute-lo culpado A informaccedilatildeo sobre a AIOS eacute dominada por um discurso de acusaccedilatildeo da rejeiccedilatildeo do erro eacute um discurso sobre o outro e sobre a ameaccedila que representa Eacute tambeacutem um discurso do outro frequumlentemente natildeo assumido por aquele que o enuncia satildeo os outros que se exprimem assim subentende-se quando se fala de castigo de Oeus ou quando compara-se a AIOS com a peste N esta hipoteacutetica palavra de todos cada um quaisquer que sej am suas posiccedilotildees se sente implicado

Um passo a mais pode ser dado Com ele a doenccedila alcanccedila como disse Susan Sontag a propoacutesito do cacircncer a categoria de metaacutefora27 A viso puniccedilatildeo maldiccedilatildeo a doenccedila torna-se objeto da construccedilatildeo de um sentido que se impotildee como evidecircncia mesmo que se queira recusaacute-la Aleacutem disso ela exprime uma ameaccedila que natildeo diz respeito apenas aos homossexuais mas se estende a todos os indiviacuteduos que natildeo atinge somente os corpos mas tambeacutem a cultura e os valores do fim do seacuteculo XIX Com a AIOS tudo vai mudar Estatildeo implicadas a sexualidade e a vida de todos Isso que aparece na descriccedilatildeo de Nova York publicada pelo Le Matin nas reportagens de junho de 1983 a cidade inteira estaacute chocada a doenccedila tornou-se segundo o artigo a obsessatildeo de todos os meios daacute agrave cidade um novo rosto transforma os modos de vida de seus habitantes os quais abandonam - tanto os hetero quanto os homosshysexuais - seus lugares e seus haacutebitos prazerosos A AIOS escreve o autor da reportagem estaacute em vias de dominar Nova York Um ano mais tarde para Libeacuteration de 26 de abril de 1984 a revoluccedilatildeo sexual estaacute nas lixeiras da histoacuteria [ ] natildeo haacute um soacute aspecto do leque ideoloacutegico que natildeo esteja sujeito agraves transformaccedilotildees Condenaccedilatildeo bioloacutegica dos corpos que se crecircem liberados a AIOS natildeo eacute somente a causa do abandono dos comportamentos de risco mas tem como sentido uma reversatildeo dos valores tornando manifesta a necessidade deles

Noacutes assistimos entatildeo ao nascimento de um metadiscurso que natildeo se dirige mais agrave proacutepria doenccedila mas agraves reaccedilotildees queela suscita aos discursos que gerou eacute o que a imprensa comeccedila a chamar de efeito-AIOS28 Este adotem-se ou natildeo suas interpretaccedilotildees morais eacute entatildeo enunciado como marcando eacutepoca

27 SONTAG S La maadie comme meacutetaphore Paris Le Seuil 1980 28 Liberaacutetion 1011 de setembro de 1983

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 20: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

26 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero I 1992

marcando uma etapa na histoacuteria da medicina tanto por seu impacto quanto por sua efetiva gravidade A AIDS nos faz revisar nosso olhar histoacuterico em relaccedilatildeo agrave medicina eacute o tiacutetulo dado agraveuma entrevista do doutor Leibowitch no Libeacuteration dos dias 1011 de setembro de 1983 onde ele se esforccedila em promover uma apreensatildeo global da doenccedila O mesmo tom eacute dado pelo Monde no primeiro dia do ano de 1984 onde se lecirc O ano de 1983 ficaraacute marcado na histoacuteria da medicina pelo aparecimento de uma doenccedila nova estranha e mortiacutefera e pelo misteacuterio que obstinadamente envolve as suas causas 1983 tornou-se o ano da AIDS

o entusiasmo uma doenccedila no espaccedilo puacuteblico

Eacute na primavera de 1984 que se atinge um primeiro niacutevel na construccedilatildeo da AIDS como fenocircmeno social Seraacute esta a razatildeo pela qual a produccedilatildeo de artigos diminui 29 Em abril de 1985 a primeira conferecircncia internacional sobre a doenccedila em Atlanta (Georgia) onde se encontram dois mil pesquisadores vindos de trinta paiacuteses manifesta ao contraacuterio O aumento do interesse que o conjunto da comunidade cientifica e meacutedica dedica agrave AIDS Os artigos que tratam do assunto focalizam a extensatildeo do fenocircmeno e a possibilidade de sua generalizaccedilatildeo Da maneira como os avanccedilos no conhecimento do mal permitishyram evidenciar sujeitos portadores de anticorpos antiviacuterus da AIDS Le Figaro os designaraacute desde abril de 1984 como portadores sadios A partir da primavera de 1985 este termo sinocircnimo na imprensa da noccedilatildeo bioloacutegica de seropositividade vai servir de suporte a um entusiasmo discursivo sem precedentes O ritmo da publicaccedilatildeo de artigos se acelera Todos os jornais nacionais e regionais diaacuterios quinzenais e mensais se interessam pela AIDSO partir dessa data noacutes assistimos para aleacutem de sua construccedilatildeo em fenocircmeno social agrave entrada da doenccedila na vida coletiva A AIDS cria um novo espaccedilo para o debate puacuteblico e torna-se uma causa que transcende o caso individual dos doentes ou o destino dos grupos particulares Passa a colocar em jogo o interesse coletivo Em torno dela intervecircm e mobilizam-se muitos grupos e as mais di versas instituiccedilotildees Nesta ocasiatildeo o papel da imprensa torna-se cada vez

29 Durante um periacuteodo de dez meses somente 47 artigos seratildeo publicados pelos seis jornais diaacuterios

30 Neste periacuteodo que dura 15 meses de abril de 1985 a junho de 1986 274 artigos satildeo publicados seja dois terccedilos daqueles que noacutes recenseamos O mesmo fenocircmeno observa-se nas publicaccedilotildees semanais Le Point Le Nouvel Observateur LExpress publicam 23 artigos ou dossiecircs durante este periacuteodoCf A Yvernat op cito

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 21: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 27

mais importante ela natildeo eacutesomente o lugar onde se exprimem as opiniotildees eacute participante do debate e frequumlentemente um de seus ganchos Em funccedilatildeo dela se organizam o discurso e a accedilatildeo

Essa nova dinacircmica eacute de iniacutecio marcada pelo acesso da AIDS ao registro do poliacutetico Com efeito a difusatildeo do mal atraveacutes da possibilidade de contamishynaccedilatildeo pelo sangue coloca o problema da despistagem sistemaacutetica dos doadores de sangue e leva durante o veratildeo de 1985 agrave definiccedilatildeo e agrave adoccedilatildeo de uma estrateacutegia de luta contra a doenccedila O Comitecirc Consultativo Nacional de Eacutetica grupos de experts e o primeiro-ministro em pessoa intervecircm neste problema A imprensa toma posiccedilatildeo questionando emitindo julgamentos sobre as medidas adotadas e sua colocaccedilatildeo em praacutetica A decisatildeo governamental da despistagem obrigatoacuteria para todos os doadores de sangue a partir de l Q de agosto de 1985 significa que a AIDS natildeo eacute mais apenas um problema particular dos doentes ou um problema profissional dos meacutedicos o Estado deve se encarregar dele e a AIOS natildeo deixaraacute mais de ser objeto da atenccedilatildeo dos poliacuteticos O momento no qual essa decisatildeo eacute tomada natildeo eacute indiferente trecircs anos e meio depois da descoberta dos primeiros casos franceses quando se cristalizou para a opishyniatildeo o fenocircmeno social AIOS e a possibilidade de generalizaccedilatildeo da doenccedila passou a dominar as preocupaccedilotildees

Essa entrada da doenccedila no espaccedilo puacuteblico3 tambeacutem se manifesta atraveacutes das relaccedilotildees que as instacircncias poliacuteticas mantecircm por intermeacutedio da imprensa com uma opiniatildeo puacuteblica claramente informada sobre a evoluccedilatildeo da doenccedila A importacircncia das medidas tomadas pode ser entatildeo atribuiacuteda tanto pelos efeitos veiculados pela miacutedia quanto pelos efeitos de seus mecanismos efeti vos A imprensa passa a ser o alvo das intervenccedilotildees dos diferentes atares progressivamente mobilizados pela doenccedila Declaraccedilotildees tomadas de posiccedilatildeo accedilotildees diversas tecircm sempre como fim pelo menos parcial as repercussotildees que provocam namiacutedia A AIDS eacute a primeira doenccedila da miacutedia escreveLe Figaro em 30 de outubro de 1985 no momento em que se anuncia a tentativa de tratamento de alguns doentes com a ciclosporina no hospital Laennec A entrevista coletiva organizada nessa data conjuntamente pelos meacutedicos do hospital e o Ministeacuterio da Sauacutede eacute uma notaacutevel ilustraccedilatildeo desse fato Em toda a histoacuteria da AIDS na Franccedila o anuacutencio desse tratamento eacute o acontecimento que obteve maior cobertura da imprensa Os seis jornais estudados trataram do assunto 22 vezes entre 30 de outubro e 15 de novembro No entanto no mesmo momento em que eles cobrem extensamehte este hipoteacutetico sucesso cientiacutefico

31 HABERMAS l op ccedilit

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

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comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 22: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

2R PHYSIS - Revista de Sauacutede Cohgttiva Vol 2 Nuacutemero L 1992

incorporadu pelos poliacuteticos os seis jornais - nota-se aqui mn consenso do Figaro a L Humaniteacute - procuram manter reserva Eles expressam seu mal-esshytar tanto diante da puhlicidade sem precedentes dada a procedimento meacutedico

experimentaccedilatildeo quanto agrave ambiacutegua que se estabeleceu entre poliacuteticos e pesquisadores Os jornalistas que tinham ouvido um sermatildeo de Franccedilois Jacob em julho de 1983 chamam a atenccedilatildeo dos pesquisadores para al regras de funcionamento comunidade cientiacutefica em outuhro de 1985 Aleacutem disto sentindo-se doravante prisioneiros do efeito AIDS que contrihuiacuteram para criar os jornais tentam escapar alsi m a forccedila terriacutevel da perturbaccedilatildeo AIDS escreve Liheacuteration do dia 3] de outuhro Ela natildeo soacute fa7 explodir as defesas imUluacutetaacuterias como tambeacutem provoca o recuo da miacutedia e o sangue frio dos meacutedicos do ministeacuterio dos Negoacutedos Sociais A imprensa eshoccedila aqui uma interrogaccedilatildeo sobre sua proacutepria legitinuacutedade e sobre os limites que deve ter na informaccedilatildeo

Menos ambiacuteguo o papel da miacutedia eacute tambeacutem central No fim de julho de 1985 os jornais anunciam a chegada na Franccedila do ator Rock Hudson para se submeter tratamento r~nquanto Franccedila silencia sohre identidade de seus doentes e de seus mortos Rock Hudson toma-se a figura exemplar da AIDS Rock Hudson eacute o primeiro rosto vi vo da AIDS existiria cntatildeo a AIOS antes

Rock Hudson e AIDS depois de Rock lIudson escreveraacute Libeacuteration no dia 3 de outubro anunciando sua morte Natildeo eacute a primeira vez que a medicina produ doentes-vedetes os primeiros que se submeteram a transplantes ele coraccedilatildeo foram um exemplo disto Mais recentemente a evoluccedilatildeo meacutedica de Barney Clark que receheu um coraccedilatildeo artificial foi abundantemente coberta pela imprensa internacional32 Mas em todos esses casos eacute a medicina que simultaneamente colocada como vedete e colocada em questatildeo No iniacutecio os doentes aparecem como objeto por ocasiatildeo de proezas meacutedicas No caso de Rock Hudson as coisas satildeo diferentes sahe-se e diz-se que ele vai morrer Diz-se tambeacutem que eacute homossexual Suadoenccedila e sua morte proacutexima constituem

primeiro conteuacutedo de sua mensagem mas sua celehridade permite que elas se msociem agrave sua homossexualidade e agrave necessidade do seu reconhecimento pela sociedade O anuacutencio da doenccedila toma entatildeo uma dimensatildeo poliacutetica que

-_ __ ~---

32 FOX RC It s the sarne but different A sociological perspective on the case of the Utah Artificial Healf em M IV Shaw (ed)After Barney Clark Uniacuteversiacutety ofTexas Press 1984 p 67~90 e J Swazey J C Watkins RC Fox Assessing the artificia heart the cliacutenica muratoIIacuteum nvisiteu em InfenUtiOwl Journal ofTecJlllology Assessment in liealrh Care 1986 v 3 llordm 2 p 387-410

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 23: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 29

natildeo escapa aos jornais Rock Hudson militante anti-AIDS agrave sua revelia escreve por exemplo Le Matin do dia 1 Q de agosto de 1985

Com a apariccedilatildeo do ator na cena da doenccedila esta adquire outras conotaccedilotildees aleacutem de maldiccedilatildeo e anguacutestia as de lucidez coragem e solidariedade Os meios artiacutesticos envolvendo vedetes famosas como Liz Taylor nos Estados Unidos e Line Renaud na Franccedila se mobilizaram para apoiar os doentes A imprensa apoacuteia o engajamento desses novos militantes atraveacutes da cobertura publicitaacuteria que lhes oferece Mas estes natildeo estariam indiferentes agrave repercussatildeo de que satildeo alvo na ocasiatildeo de sua accedilatildeo em favor dos doentes

Durante o veratildeo de 1985 a intensificaccedilatildeo da mobilizaccedilatildeo cientiacutefica a intervenccedilatildeo poliacutetica e os movimentos de solidariedade expressam uma orienshytaccedilatildeo em direccedilatildeo ao controle da situaccedilatildeo criada pela doenccedila Paradoxalmente no entanto esta eacute acompanhada por um aumento do medo A utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo serve de suporte a movimentos de desvario de pacircnico agraves vezes em diferentes grupos Geralmente os jornais utilizam essa noccedilatildeo sem precisatildeo Agraves vezes satildeo dadas explicaccedilotildees eles enfatizam ou a presenccedila do viacuterus ou os anticorpos antiviacuterus desenvolvidos pelos portadores satildeos Insistem ora na sauacutede preservada dos indiviacuteduos ora no risco de transmissatildeo Aacutes vezes acontecem deslizamentos que satildeo tiacutepicos suscitadores de emoccedilatildeo Nos dias 2728 de julho Le Quotidien de Paris escreve O nuacutemero de portadores satildeos ou seja de pessoas que foram contaminadas pelo viacuterus mas que natildeo estatildeo doentes - ou que ainda natildeo estatildeo - eacute consideravelmente alto no dia 2 de agosto intitula assim seu artigo Doaccedilatildeo de sangue que fazer com os presushymidos portadores de AIDS Em todos os caltos atraveacutes dessa noccedilatildeo ou de equivalentes enuncia-se aideacuteiade uma generalizaccedilatildeo do mal assim como ade um perigo que aumenta por continuar escondido Ela suscita entatildeo tentaccedilotildees de etiquetagem de estigmatizaccedilatildeo e diversos estados de pacircnico

Numa tal atmosfera a doenccedila estaacute menos em questatildeo que os medos que desencadeia A dramatizaccedilatildeo se acentua e os jornais se situam cada vez mais no registro de um meta-discurso que trata das reaccedilotildees emocionais desencadeashydas pela doenccedila Em todos os casos a informaccedilatildeo produz o efeito inverso daquele que eacute procurado A colocaccedilatildeo em evidecircncia de casos de indi viacuteduos que tiveram contato com o viacuterus provoca explosotildees de terror Estas satildeo relatadas pelos jornais que afirmam no entanto querer acalmar os espiacuteritos AIDS das crianccedilas Alto laacute com a psicose AIDS na escola o lobo natildeo estaacute no redil das ovelhas escrevem por exemplo Le Quotidien de Paris e Libeacuteration de 13 de setembro Mas cada uma dessas informaccedilotildees preocupa e provoca novas reaccedilotildees os carcereiros das prisotildees e os pais dos alunos testemunham sobre a contaminaccedilatildeo que eacute doravante a do medo Assim cria-se uma situaccedilatildeo parashy

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 24: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

30 PHYSIS mdash Revista de Sande Coletiva Vol 2 Numero 1 1QQ2

doxal proacutexima daquela descrita por Gregory Bateson33 como o duplo viacutenculo A partir do veratildeo de 1985 a AIDS se torna uma mateacuteria quase cotidiana explicitamente dominada pela preocupaccedilatildeo de informar para desdramatizar Mas o desenvolvimento do medo eacute paralelo ao da informaccedilatildeo

No fim de 1985 e durante todo o ano de 1986 o crescimento da doenccedila continua A AIDS se impotildee cada vez mais como um dos problemas mais agudos uma das maiores preocupaccedilotildees do futuro Declarada ldquocausa nacionalrdquo em 1987 objeto de legislaccedilotildees em diferentes paiacuteses ponto de passagem quase obrigatoacuterio das declaraccedilotildees poliacuteticas tornou-se tambeacutem um dos reveladores mais sensiacuteveis das clivagens e dos conflitos ideoloacutegicos fundamentais O afrontamento das duas orientaccedilotildees contraditoacuterias mdash controle e solidariedade ou excitaccedilatildeo passional mdash tambeacutem continua Tanto no plano individual quanto no coletivo a questatildeo se torna ldquocomo se pode viver com a AIDSrdquo

Conclusatildeo

Bem antes da AIDS jaacute se sabia que a doenccedila e a medicina satildeo passiacuteveis de investimento no plano simboacutelico e satildeo igualmente objeto de uma construccedilatildeo de sentido e de elaboraccedilatildeo de um saber34 Desse ponto de vista a AIDS parece constituir para o pesquisador em ciecircncias sociais um caso exemplar demais Diante dele todos os que trataram da doenccedila viraram espontaneamente hisshytoriadores ou socioacutelogos Eacute preciso ao contraacuterio interrogar essa evidecircncia e se afastar da tentaccedilatildeo do discurso do sentido Tambeacutem natildeo eacute suficiente mostrar que a nova doenccedila estaacute longe de corresponder agrave realidade da doenccedila-cataclisma que antigamente ameaccedilava a sociedade inteira35 e que muitas vezes pensa-se que ressuscita Eacute preciso tentar esclarecer os caminhos e as etapas atraveacutes dos quais esta realidade se construiu Foi o que quisemos fazer No final desta anaacutelise podemos sublinhar diversos aspectos desses caminhos

Para compreender o desencadeamento da abundante retoacuterica que fez com que a AIDS se construiacutesse como ldquofenocircmeno socialrdquo tem-se frequumlentemente atribuiacutedo o principal papel agrave proacutepria natureza dos grupos mais atingidos e aos mecanismos da transmissatildeo Foi constituiacutedo entatildeo o discurso doravante esshytereotipado sobre ldquoo sexo o sangue e a morterdquo Eacute evidente que esses elementos

33 BATESON G Steps to an ecology o f mind Ballantine Books New York 1972 p 202-21234 AUGEacute M HERZLICH C Le sens du mal Anthropologie histoire sociologie de la

maladie Paris Editions des Archives Contemporaines 198435 HERZLICH C PIERRET J Malades d rsquohier malades d rsquoaujourdrsquohui De la mort collective

au devoir de gueacuterison Paris Payot 1984

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 25: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 31

forneceram os principais materiais para a construccedilatildeo que se fazia mas no que diz respeito ao desencadeamento do discurso sobre a AIDS outro ponto deve ser sublinhado pelo menos no iniacutecio da doenccedila se encontra entre as pessoas atingidas grande nuacutemero de membros da classe meacutedia culta intelectuais artistas membros de grupos sociais proacuteximos da miacutedia e dos quais esta costuma falar A AIDS foi uma doenccedila da miacutedia tambeacutem porque diz respeito ao seu mundo e aos meios que a circundam

Outros aspectos tambeacutem desempenharam um papel essencial De iniacutecio o crescimento contiacutenuo da doenccedila Seu caraacuteter intrinsecamente inquietante natildeo eacute o uacutenico em questatildeo nos casos em que os fenocircmenos bioloacutegicos estatildeo implicados a associaccedilatildeo da noccedilatildeo de crescimento com a de epidemia reacende imediatamente a temaacutetica do desastre universal e ilimitado Aleacutem disso o crescimento de um fenocircmeno que se manifesta atraveacutes de nuacutemeros sempre mais altos presta-se por si soacute agrave informaccedilatildeo Noacutes pudemos constatar este fato esta informaccedilatildeo pode a cada instante apoiar-se num nuacutemero sempre crescente de viacutetimas a ser anunciado Esta caracteriacutestica do fenocircmeno no plano temporal cada publicaccedilatildeo de nuacutemeros associada a um novo acontecimento sua adequashyccedilatildeo agraves exigecircncias da informaccedilatildeo - ter alguma coisa de novo a dizer - teve um papel importante

Nesse contexto de inquietude que exige resvosta os anuacutencios da extensatildeo do fenocircmeno a distacircncia entre os progressos do conhecimento e a quase ausecircncia de possibilidade de accedilatildeo criam um vazio um espaccedilo angustiante que os discursos e os fantasmas tentam preencher Aleacutem do mais ficou rapidamente claro que a uacutenica modalidade possiacutevel de accedilatildeo era a da prevenccedilatildeo Ora o discurso e a accedilatildeo preventiva situam-se no campo das praacuteticas sociais Assim a modificaccedilatildeo das condutas sexuais foi o primeiro remeacutedio pensado contra a extensatildeo da doenccedila Mas a perspectiva de sauacutede puacuteblica exige tambeacutem que se pressuponha como reais as entidades sociais sobre as quais age e que apoacuteiam sua accedilatildeo Para os meacutedicos - persuadidos da necessidade de os homossexuais grupo de risco mudarem seus comportamentos - eacute importante acreditar na existecircncia de uma comunidade capaz de assumir essas mudanccedilas O discurso visa a reforccedilar sua existecircncia sua capacidade de mobilizaccedilatildeo por aiacute mesmo ele consolida a configuraccedilatildeo cognitiva que faz da AIDS a siacutendrome gay e que provoca nos outros fantasmas anguacutestias e estigmatizaccedilotildees

Mas eacute igualmente fascinante constatar que diante do desconhecido da nova doenccedila a elaboraccedilatildeo de sentido esteve rigorosamente intrincada com a progressatildeo do saber Os artigos que relatam os primeiros trabalhos sobre o viacuterus aparecem em maio de 1983 eacute o fim do discurso da ignoracircncia Na mesma data satildeo publicadas as primeiras reportagens mostrando os grupos de risco JS

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 26: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

32 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva Vol 2 Nuacutemero 1 1992

comunidades homossexuais americanas atingidas pela maldiccedilatildeo A cada etapa do processo de construccedilatildeo da AIOS como fenocircmeno social uma noccedilatildeo ou um fato cientiacutefico satildeo objeto de um trabalho de sentido ou de sua repercussatildeo Gerald Holton36 mostrou brilhantemente que a Histoacuteria das Ciecircncias natildeo deve ficar cega quanto ao papel da imaginaccedilatildeo na criaccedilatildeo cientiacutefica As preconshycepccedilotildees fundamentais ricas de evocaccedilotildees mobilisadoras que ele chama as Themata tecircm uma funccedilatildeo essencial no desenvolvimento das teorias os conceitos tem uma componente temaacutetica O caso da AIOS mostra o quanto esta pode ser importante em outro plano o da construccedilatildeo de uma realidade social a partir de fatos ou de noccedilotildees cientiacuteficas Noccedilotildees como as de grupo de risco ou portador sadio satildeo como diz Philippe Roqueplo culturalmente habitaacuteveis37 e propiciam uma multiplicidade de elaboraccedilotildees no plano social

A assimilaccedilatildeo entre AIOS e cacircncer peste siacutefilis e lepra merece ser examinada Constituiu-se o que pode se chamar um sistema de metaacuteforas a AIDS foi identificada a todas estas afecccedilotildees que cada uma num ou noutro momento da histoacuteria teve valor de metaacutefora Ela condensa todos Mas durante a sua construccedilatildeo foi preferencialmente aproximada das mais antigas das que satildeo para noacutes as mais estranhas as mais distantes Os primeiros artigos publicashydos em 1981-1982 aproximavam-na sobretudo do cacircncer protoacutetipo da doenccedila moderna Em seguida foi assimilada a doenccedilas desaparecidas no Ocidente totalmente distantes de nossa experiecircncia agrave peste mais frequumlentemente A assimilaccedilatildeo a esta doenccedila eacute mais frequumlente que agrave siacutefilis menos longiacutenqua da qual ela estaacute no entanto mais proacutexima A AIDS eacute assimilada portanto ao ressurgimento de uma realidade totalmente desaparecida Mas apesar de pareshycer despertar lembranccedilas de um passado abolido a AIDS aponta de fato pelo contraacuterio para a intensidade de nosso esquecimento As eflidemias soacute desapashyreceram muito recentemente das sociedades industriais e estatildeo presentes nos paiacuteses do Terceiro Mundo

O discurso sobre a AIOS eacute sempre um discurso sobre o outro o mais longe possiacutevel de noacutes o mais estranho possiacutevel Ele funcionou atraveacutes da elaboraccedilatildeo de clivagens sempre renovadas entre cada um e o outro O fenocircmeno natildeo eacute novo em todas as epidemias os estrangeiros sempre foram acusados Em compensaccedilatildeo a AIDS eacute particularmente ilustrativa da possibilidade de articushylaccedilatildeo dessas clivagens entre o bioloacutegico e o social entre marcaccedilatildeo bioloacutegica atraveacutes da utilizaccedilatildeo da noccedilatildeo de portador satildeo por exemplo e estigmatizaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os grupos sociais Neste aspecto natildeo surpreende a maneira

36 HOLTON G Linvention scientifique themata et interpreacutetation Paris PUF 1982 37 ROQUEPLOop cit p 91-92

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 27: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 33

pela qual durante 1987 a AIDS serviu de suporte para o reaparecimento de um discurso de extrema direita no qual predominavam os temas racistas e a vontade de exclusatildeo

Esse discurso sobre o outro tambeacutem eacute um discurso imputado ao outro O sujeito enunciador natildeo aparece Noacutes nos encontramos aprisionados agrave nossa revelia numa palavra do outro que se tornou agrave revelia de cada um palavra de todos A partir daiacute o discurso parece se formar se alimentar e se reproduzir em si proacutepio Noacutes sublinhamos a importacircncia deste tipo de funcionamento discurshysivo na construccedilatildeo do fenocircmeno social da AIDS por aiacute constitui-se o efeito de metaacutefora a adequaccedilatildeo percebida como imediata entre mal bioloacutegico e mal social Natildeo podemos deixar de perguntar entatildeo quais podem ser seus efeitos junto agravequeles que esti veram ausentes de nossa anaacutelise os doentes Natildeo coshynhecemos resposta para esta questatildeo e nossa anaacutelise natildeo pode fornececirc-la Mas natildeo podemos deixar de levar em conta as observaccedilotildees de Susan Sontag sobre o problemaacutetico aparelho da metaacutefora A atitude mais honesta que se pode ter junto agrave doenccedila ela escreve a maneira mais honesta de estar doente consiste em depuraacute-la da metaacutefora em resistir agrave contaminaccedilatildeo que a acompashynha38 Pode-se perguntar no entanto sobre a possibilidade de os doentes escaparem a esta palavra do outro a experiecircncia da doenccedila constitui sempre como diz Ronald Frankenberg39 uma confrontaccedilatildeo com as metaacuteforas produshyzidas e impostas pela sociedade O que os doentes entendem quando um se que natildeo se pode situar com precisatildeo mas que parece vir de todos os lugares fala para eles e deles em termos de sangue sexo morte calamidade e de castigo

Muacuteltiplas questotildees se colocam em relaccedilatildeo a outros grupos sociais atinshygidos de maneira diversa mas todos suscetiacuteveis de entrar no rol das clivagens sociais e ideoloacutegicas e nos turbilhotildees emocionais do fenocircmeno social AIOS Essas questotildees lembram os papeacuteis e as responsabilidades dos jornais que noacutes ~requumlentemente vimos nessa ocasiatildeo pegos em sua proacutepria armadilha captushyrados no efeito-AIDS que eles criaram incapazes de se livrar dele assim como do que poderia se chamar de as contradiccedilotildees de um discurso de crise Poderia ter sido diferente Eacute preciso refletir sobre o efeito enganadorligado agrave construccedilatildeo do fenocircmeno social AIOS criado pela imprensa Esta foi de cara uma doenccedila construiacuteda diante da opiniatildeo e pelo menos aparentemente por ela Os jornais

38 SONTAG S op cit p 9 39 FRANKENBERG R Sickness as cultural perfonnance drama trajectory and pilgrimage

root metaphors and the makillg social of disease Intemational Joumal ofHealth Services 1986 voI 16 nordm IV 603-26

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 28: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

34 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva VaI 2 Nuacutemero 1 1992

sempre acreditaram que estavam nos informando sobre o impacto social da doenccedila estavam reproduzindo as reaccedilotildees coletivas aela mas estas reaccedilotildees natildeo eram exteriores ao discurso articulado pela proacutepria imprensa de fato sabemos pouca coisa a respeito das relaccedilotildees que unem a produccedilatildeo do discurso e os seus efeitos nos receptores A propoacutesito da AIDS diversas pesquisas muito reshycentes40 mostram sua complexidade seu caraacuteter natildeo linear suas discordacircncias Isto natildeo pode deixar de levantar numerosas questotildees sobre o futuro jaacute que se impotildee a ideacuteia da generalizaccedilatildeo possiacutevel da doenccedila qual seraacute a evoluccedilatildeo das atitudes coletivas dos diferentes grupos sociais Ateacute aqui diante das tentativas de exploraccedilatildeo nas quais a AIDS representa o papel de catalisador de todas as vontades de exclusatildeo o poder poliacutetico optou por reagir fazendo um apelo ao controle das situaccedilotildees graccedilas agrave responsabilidade e a solidariedade Ateacute que ponto esta mensagem seraacute escutada

Seraacute que essa mensagem natildeo pode tambeacutem ter consequumlecircncias imprevisshytas Apesar da extensatildeo da doenccedila o perigo permanece desigual Como os indiviacuteduos mais ameaccedilados vatildeo reagir ao discurso da generalizaccedilatildeo que pode fazecirc-los passar para um segundo plano Pode-se perguntar tambeacutem se ao longo do tempo depois da intensa preocupaccedilatildeo natildeo se produziraacute um desinteresse e uma nova forma de rejeiccedilatildeo por uma doenccedila que - perceber-se-aacute pouco a pouco - atinge mais particularmente natildeo mais os artistas e os membros da classe meacutedia mas sim os habitantes dos continentes mais deserdados e nos paiacuteses industrializados os indiviacuteduos menos aptos a gerir no cotidiano o risco de contaminaccedilatildeo da doenccedila A AIDS pode entatildeo se transformar num outro tipo de metaacutefora a da morte inevitaacutevel daqueles que natildeo estatildeo armados para viver Noacutes sabemos que eacute impossiacutevel que o mal bioloacutegico deixe de se integrar nas configuraccedilotildees simboacutelicas Diante da AIDS no entanto deseja-se que uma doenccedila permaneccedila apenas uma doenccedila

RESUMO

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico A AIDS em seis jornais franceses

Pressupondo que a AIDS coloca novaI1lente na cena social a temaacutetica da doenccedila como cataclisma e onde se articulou de maneira inextrincaacutevel as

40 Cf por exemplo L Temoshok D M Sweet e J Zich A three city comparison ofthe public s knowledge and attitudes about AIDS Psychology and Health VoI 1 nordm 1 V K Governshyment Health Education Campaign on AIOS ibidem 61-72

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 29: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais

Uma Doenccedila no Espaccedilo Puacuteblico 35

dimensotildees bioloacutegica poliacutetica e social os autores procuram delinear como se construiu a representaccedilatildeo deste fenocircmeno ineacutedito natradiccedilatildeo ocidental no qual assistimos as muacuteltiplas interferecircncias e retedaccedilotildees entre conhecimento cientiacuteshyfico e conhecimento comum Para isso a AIDS eacute analisada no espaccedilo puacuteblico atraveacutes da leitura criacutetica de jornal franceses

ABSTRACT

A Disease within a PublicSpace AIDS in six French newspapers

AIDS has placed the issue of disease as cataclysm back on the social scneario where the biological politicaI and social dimensions are inextricably interwoven This article is an effort to outline the construction of the represhysentation ofthis phenomenon previously unknown multiple interferences and retranslations between scientific and common knowledge With this in rnind AIDS is analyzed as approached within a public space that is through a criticaI reading of French newspapers

RESUME

Une maladie exposeacutee en public le SIDA dans six journaux franccedilais

Les auteurs de cet article avancent une hypothese selon laquelle le SIDA ramene sur la scene sociale la theacutematique de la maladie-cataclysme au sein de laquelle les dimensions biologique politique et sociale sarticulent de faccedilon inextricable Ils sefforcent de retracer la faccedilon dont a eacuteteacute construite la repreacuteshysentation de ce pheacutenomene ineacutedit dans la tradition occidentale A travers lui nous observons les multiples interfeacuterences et relations qui unissent la connaisshysance scientifique et la connaissance ordinaire Cest pourquoi le SIDA est ici analyseacute dans le contexte de lespace public par le biais dune lecture critique de plusieurs journaux franccedilais

Page 30: Uma Doença no Espaço Público. a AIDS em Seis Jornais