uma década de avanços desenha o futuro

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Junho 2004 FICÇÃO & CIÊNCIA MILLÔR FERNANDES MOACYR SCLIAR NELSON DE OLIVEIRA RUY CASTRO JOSÉ CASTELLO HELOISA SEIXAS MARCELO GLEISER Ciência e Tecnologia FAPESP PRODUÇÃO CIENTíFICA

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Pesquisa FAPESP - Ed. 100

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Page 1: Uma década de avanços desenha o futuro

Junho 2004 • N°

FICÇÃO & CIÊNCIA

MILLÔR FERNANDES MOACYR SCLIAR NELSON DE OLIVEIRA RUY CASTRO JOSÉ CASTELLO HELOISA SEIXAS MARCELO GLEISER

Ciência e Tecnologia

FAPESP

PRODUÇÃO CIENTíFICA

Page 2: Uma década de avanços desenha o futuro

Cratera de 55 quilômetros de diâmetro em Marte, fotografada pela sonda européia Mars Express. As estrias indicam intensa movimentação tectônica no passado.

A IMAGEM DO MÊS

PESQUISA FAPESP 100 • JUNHO DE 2004 • 3

Page 3: Uma década de avanços desenha o futuro

I www. revistapesqu is a. fapesp. br

28 CAPA Pesquisa nacional se profissionaliza, incorpora o trabalho em grupo e melhora sua posição no mundo

12 ENTREVISTA

Roberto Salmeron quer projetas nacionais para ciência brasileira

4 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

REPORTAGENS

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

34 FINANCIAMENTO

Construção do Soar nos Andes cria um modelo de avaliação de projetas de grande porte

38 ENTREVISTA

Fernando Reinach explica mudanças no modo de fazer ciência no Brasil

48 DIVULGAÇÃO

Mídia amplia espaço dedicado a ciência, tecnologia e inovação

54 POPULARIZAÇÃO

Pesquisadores usam novas linguagens para levar a ciência ao público

CIÊNCIA

82 EPIDEMIOLOGIA

Desde os tempos de Adolpho Lutz país mantém pioneirismo na pesquisa de doenças tropicais

87 Testes comprovam ação de plantas contra malária

Page 4: Uma década de avanços desenha o futuro

REPORTAGENS

90 VIROLOGIA Um subtipo do vírus da Aids se espalha e altera o perfil da epidemia no Brasil

92 GENÉTICA

Trechos de RNA antes vistos como inúteis são essenciais na produção de proteínas

94 MEDICINA

Por que o placebo, às vezes, funciona

1 02 ZOOLOGIA

Medusas fixas formam nova classe de animais marinhos

1 06 ASTROFÍSICA

Brasileiros descobrem berçários de estrelas fora das galáxias

108 USP 70 ANOS

As soluções tecnológicas criadas pela Escola Politécnica

TECNOLOGIA

122 MICROELETRÔNICA

Os caminhos trilhados no Brasil na área de semicondutores

128 TELECOMUNICAÇÕES

Nova fase para a pesquisa em Internet e na telefonia

134 BIOQUÍMICA Parceria cria analgésico 600 vezes mais potente que morfina

138 AGRONOMIA Pesquisadores estudam propriedades protetoras do cogumelo-do-sol

142 PATENTES Projetas financiados pela Fapemig chegam à indústria

146 ENGENHARIA NAVAL Novo projeto de plataforma marítima está disponível para a Petrobras

HUMANIDADES

150 HISTÓRIA

Pintor Frans Post ganha seu espaço junto aos mestres flamengos

15 6 ARTES PLÁSTICAS

Cooperação entre institutos revelará aos Estados Unidos textos sobre as vanguardas do século 20

160 CINEMA

Tese relembra o trabalho de jovens que faziam filmes no Recife

164 EDUCAÇÃO

Ensino das filhas de D. Pedro II foi pioneiro no século 19

IMAGENS EM DESTAQUE

66 Algumas das melhores fotos de Pesquisa FAPESP

ARTIGOS

CARLOS VOGT ................. 60

JOSÉ FERNANDO PEREZ ......... 61

MARCELO LEITE ............... 62

FICÇÃO

MILLÔR FERNANDES ........... 20

MOACYR SCLIAR ............... 46

NELSON DE OLIVEIRA .......... 64

RUY CASTRO .................. 76

JOSÉ CASTELLO .............. 100

HELOISA SEIXAS .............. 116

MARCELO GLEISER ............ 132

SEÇÕES

IMAGEM DO MÊS ................ 3

CARTAS ....................... 6

CARTA DO EDITOR ............... 9

MEMÓRIA .................... 10

O P A TJRtJf.OT A" JOR. ALLlTTE AR!O, POLiTICO,

ME.RCA . TIL, il< ,.

)) o RIO DE JA~íF.IRO .

ESTRATÉGIAS ................. 22

LABORATÓRIO ................. 78

SCIELO EM NOTÍCIAS .......... 114

LINHA DE PRODUÇÃO .......... 118

CLASSIFICADOS .............. 168

LIVROS ...................... 169

Capa: Hélio de Almeida Foto: Eduardo Cesar Tratamento de imagem: José Roberto Medda

PESQUISA FAPESP 100 ·JUNHO DE 2004 • 5

Page 5: Uma década de avanços desenha o futuro

~ z

Ciência e Tecnologia no Brasil

.

D O que a ciência brasileira produz você encontra aqui.

~ ,..,.., ~ ~

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução sem perder nenhum movimento.

Números atrasados

Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: [email protected]

Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, S P 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: [email protected]• ~. · · •.• , ..

Site da revista . .~

No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na integra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

Para anunciar Ligue para: Nominal Propaganda e Representação: tel. 5573-3095

6 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

~ CARTAS [email protected]

Francisco Landi

Compartilho com toda a equipe FAPESP a grande dor pela morte de Francisco Romeu Landi, que abre uma enorme lacuna no gerenciamen­to das atividades científicas e tecno­lógicas do nosso país. A Bahia será sempre grata à enorme contribuição e apoio de Landi, quando da criação da nossa Fundação de Amparo à Pes­quisa da Bahia (Fapesb).

Câncer

C LEILZA ANDRADE

Salvador, BA

A reportagem "Câncer, esperanças divididas" (edição no 99) traz informa­ções interessantes. No entanto houve tanta ênfase na questão do tratamento que o leitor mais afastado dessa área de conhecimento pode não perceber que medidas preventivas, mais do que terapêuticas, é que vão nos levar a maiores vitórias contra o câncer, a mé­dio e longo prazos. Claro que, para os pacientes que lutam contra a doença, o que importa no momento é o seu tratamento eficaz. Mas houvesse agi­gantesca verba destinada à pesquisa do câncer nas últimas décadas sido aplicada, mesmo que parcialmente, às medidas de intervenção (ambien­tal, antitabagismo, antiinfecciosa, die­tética etc. ) e às campanhas de esclare­cimento, seria menor o atual número de famílias assoladas por este sofrimen­to. Conseqüentemente, teríamos com certeza evitado a sensação, apontada pela reportagem, de "esperanças divi­didas" quanto ao sucesso na luta con­tra o câncer. No mais, quando o texto se refere a "ratos", deve estar aludindo a animais de experimentação em ge­ral; na oncologia experimental são também muito utilizados os camun­dongos e, menos freqüentemente, outras espécies de animais. Por exemplo, ratos e camundongos são as espécies de escolha em ensaios de identificação de cancerígenos quími-

cos ambientais, que podem significar risco para a espécie humana. Embora existam limites para a extrapolação dos fenômenos biológicos desses roe­dores para nossa espécie, é muito for­te a afirmação de que "o rato é um péssimo modelo animal para se estu­dar o câncer". Finalmente, deve ser comentado que há muito tempo que a metaplasia intestinal é universal­mente considerada uma condição com risco aumentado para o câncer gástrico. Assim, não cabe afirmar, como a reportagem faz na página 50, que uma equipe do Hospital A. C. Ca­margo "viu que ... a metaplasia in­testinal pode ser um fator que pre­dispõe à ocorrência de câncer de estômago". O indisputável mérito daquela equipe é a proposta de iden­tificar molecularmente os pacientes cujas metaplasias intestinais têm maiores riscos de malignização.

)OÃO LAURO V. DE C AMARGO

Faculdade de Medicina/Unesp Botucatu, SP

Alzheimer

Lendo a reportagem "Lembranças preservadas" (edição no 98), pude ob­servar que há vários outros tipos de remédio para Alzheimer e também já havia visto uma reportagem na TV sobre a pesquisa, mas pensei que era na Europa, agora fico muito contente em saber que a pesquisa é feita aqui no Brasil. Por favor, me indiquem um meio para entrar em conta to com es­ses doutores pesquisadores.

MARCOS ANTON IO PI NTO

São Paulo, SP

Cem anos da Esalq

Gostaria antes de tudo de parabe­nizá-los pelo excelente trabalho de divulgação do conhecimento cien­tífico. Li o artigo "Terra prometida" (edição no 98), com emoção e orgu­lho, tanto pelas realizações e impacto na nossa cultura das pesquisas reali-

Page 6: Uma década de avanços desenha o futuro

~ Trop1Net.org

A conexão entre as doenças tropicais e seus pesquisadores. Se você faz parte da comunidade médica e

científica e tem interesse em compartilhar

experiências e informações sobre as doenças

tropicais, já existe um espaço virtual que pode

transformar esta conexão em mais um passo

para solucionar o problema. TropiNet™ é uma

rede que pode conectar pesquisadores de todo

Brasil envolvidos com o tema. Uma proposta de

responsabilidade social da Novartis que valoriza

o trabalho de profissionais como você.

Acesse o site www.tropinet.org

l_l) NOVARTIS

Page 7: Uma década de avanços desenha o futuro

• Pesqu1sa FAPESP

CA RLOS VOGT PRESIDENTE

PAU LO EDUARDO OE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR AOILSON AVANSI OE ABR EU, CARLOS HENRIQU E OE BRITO

CRUZ, CARLOS VOGT, CEL SO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI,

NI LSON O IAS VI EIRA JUNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO

BRENTANI, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

JOAQU IM J. OE CAMARGO ENG LER DIRETORAOMINISTRATIVO

EO!RETORPRES!DENTEIINTERINOl

JOSÉ FERNAN DO PEREZ OIRETORCIENTIFICO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL

LU IZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS ICOOROEOAOORCIEO!IFICOI, EDGAR OUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA

COU TINHO, FRANC ISCO ROM EU LANOI, JOAQU IM J. DE CAMARGO ENG LER, JOSÉ FERNANDO PEREZ,

LUIZ EUGÉNIO ARAUJO OE MORAES MEL LO, PAULA MONTERO, WALTER COLLI

DlRETORA DE REDAÇÀO MARILUCE MOURA

EDITOR-CHEFE NELOSON MARCOLIN

EDITORA S~NIOR MARIA OA GRAÇA MASCARENHAS

OlRETOR OE ARTE HÉLIO OE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CJtNCIAl, CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZ IQU E (P<ILITICAC&T), HE ITOR SHIMI ZU (VERSÃOON-liND, MA RCOS DE OLI VEI RA (TECNOLOGIA)

EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA

EOJTORES·ASSISTENTES DJNORA H ER ENO, RICARDO ZORZ ETTO

CHEFE DE ARTE TÂN IA MARIA DOS SANTOS

OIAGRAMAÇÀO JOS É ROBERTO MEOOA, MAYUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ANA MARIA FERRAZ, CA RLOS VOGT, CAROL LEFRÉVE, EDUARDO GERAQU E ION-LINEI, FABR ICIO MARQU ES,

FRANCI SCO BICUDO, GERMANA BARATA, GRAÇA CALDAS, HELOISA SEIXAS, JOANA MONTE LEON E, JOSÉ CASTE LLO,

JOSÉ FE RNANDO PEREZ, LAURABEATRIZ, LUCRECIA ZAPPI,

MAL~~w ~2~2~~~g~~~::-~m ~m~~~~'-JÀ~~~ ~t~~~LO MILL0R FERNAN DES, MOACYR SCLIAR, NELSON OE OLIVEIRA,

SAMU EL ANTENOR, SI RIO J. B. CANÇAOO, R~ NATA SARAIVA, RUY CASTRO, THIAGO ROM ERO WN·LINE}, TANIA MARQU ES,

TH EREZA OE ALM EI DA, YURI VASCONCELOS E WANOA JORGE ASSINATURAS

TELETARGET TEL.llll3038-1434 - FAX: llll3038-141B

e-mail: [email protected] APOIO DE MARKETING

SINGULAR ARQUI TETURA DE MI OlA [email protected]

PUBLICIDADE TEL: 111) 3838-4008

e-mail : [email protected] (PAULA JLIADJS) PRE·IMPRESSÃO

GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO

PLURAL EDITORA E GRÀFICA TIRAGEM: 4S.OOO EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃO OINAP

CIRCULAÇÃO EATENOIMENTOAOJORNALEIRO LMX (ALESSANORA MACHADO)

TEL: 111) 3BóS-4949 [email protected]

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

FAPESP RUA PIO XI, N'1.500, CEP OS4b8-901

ALTO DA LAPA - SÃO PAU LO- SP TE L. 111) 3B3B-4000 - FAX: llll 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br [email protected]

NÚMEROS ATRASADOS TE L. 1111 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

E PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL DU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PREVIA AUTORIZAÇÃO

IOAPuP FUNDAÇÃO OE AMPARO À PESQUISA 00 ESTADO OE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CitNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONOMICO E TURISMO

GOVERNO 00 ESTADO DE SÃO PAULO

1r' 8 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

zadas pela Escola Superior de Agri­cultura Luiz de Queiras (Esalq) como pelo motivo pessoal de meu filho ter concluído recentemente seu curso de agronomia nessa centenária escola. Notei a ênfase do artigo na tecnolo­gia (hard) de ponta e de suas contri­buições para a agroind ústria

o de piados de pássaros que não são vistos em quadro. Fazem parte doam­biente, do campo, mas estão no espa­ço off, fora dos limites de quadro. A voz onipresente está over, pois nada indica que o narrador esteja no campo. É importante dizer que se trata de erro

muito comum, inclusive entre

em nosso país. Senti falta, en­tretanto, de in­formações so-

EMPRESA QUE APóiA A PESQUISA BRASILEIRA

profissionais da área.

bre as pesquisas relacionadas com o desenvol­vimento de ou­tro tipo de tec­nologia, aquela voltada para a preservação do

M ARCONE BAH IA

São Paulo, SP

Dinossauros

Inicialmen­te parabenizo­os pelo excelen­te trabalho de divulgação cien-

ambiente hu­mano e físico, para projetas relacionados

lJ) NOVARTIS tífica desempe­nhado pela re­vista Pesquisa

com o desen-volvimento co-munitário, para a agricultura auto -sustentá-vel etc. numa perspectiva de distribuição mais igualitária de renda. Sei de belíssimos projetas desenvolvidos nessa área e agradeço aos pesquisadores que for­maram meu filho. Novamente agra­deço pela oportunidade de obter in­formações sobre o desenvolvimento da pesquisa em nosso país.

H ELOISA SZYMANSKI

PEPG em Psicologia da Educação/PUC-SP

São Paulo, SP

Documentários

Excelente a matéria de Carlos Haag sobre a interessantíssima pes­quisa que traz um pouco de luz aos aparentemente inofensivos documen­tários da natureza ("Eu vi um Brasil na TV'; edição no 99). No entanto o jornalista cometeu um pequeno des­lize ao escrever "narração em ojf", quando o correto seria over. O som off desses documentários é, por exemplo,

Trop1Net:org

FAPESP. Com relação à nota "Dinos sauro nas dunas", pu­blicada na edi­ção no 99, na seção Laborató-

rio, quero acrescentar que a desco­berta das pegadas fósseis em arenitos do antigo Deserto Caiuá, no extremo oeste de São Paulo, só foi possível graças ao trabalho de cooperação en­tre instituições. Gostaria de destacar a participação dos geólogos Adalberto Azevedo e Alessandra Siqueira, da Divisão de Geologia do IPT, assim como do eng. Luiz R. da Silva (Cesp), na nota mencionados como pesqui­sadores de São Paulo. Não poderia deixar de registrar o pronto apoio re­cebido do eng. Isaac Alves ( Cesp, U.H.E. Sérgio Motta/Primavera), por ocasião dos trabalhos de campo.

LUIZ A LBERTO F ERNANDES

Departamento de Geologia/UFPR Curitiba, PR

Cartas para esta revista devem ser enviadas para

o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181

ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,

CEP 05468-901. As cartas poderão ser

resumidas por motivo de espaço e clareza.

págir mo c COllS!

Page 8: Uma década de avanços desenha o futuro

CARTA DO EDITOR

Uma obra coletiva, feita com prazer

Sempre lembro: entrei na sala do diretor presidente com aquela feia peça na mão, nível um pouco abaixo do esco- lar, e disse-lhe que se ela circulasse iria causar mais danos

que benefícios à imagem da FAPESP. Àquilo, melhor seria con- tinuar sem nada. Ele perguntou o que eu sugeria. Respondi que precisávamos urgentemente jogar fora os exemplares daquele perfeito exemplo de como não fazer um house organ, enquan- to tentávamos preparar uma outra versão do informativo, muito simples, modesta mesmo, mas que não fizesse vergonha à instituição. Ele respondeu que assim faríamos.

A peça que me deixara espantada por seu primarismo não fora elaborada por jornalista, publicitário ou por pesquisador com bom conhecimento da FAPESP. Fora feita por alguém que simplesmente não era do ramo e se comprometera a fazê-la. Havia zero de estrutura de comunicação na instituição. Tanto que eu fora contratada para assessorar a área com uma car- ga de trabalho de apenas dez horas semanais, porque julga- va-se então que isso bastaria para responder às necessidades de comunicação social da FAPESP.

Alguns dias depois da conversa com o então diretor pre- sidente, Nelson de Jesus Parada, estava pronto o Notícias FA- PESP número 1. Estávamos em agosto de 1995. Não podía- mos então sequer sonhar que aquele modesto boletim de quatro páginas, impresso em duas cores, em papel off-set, com tiragem de mil exemplares, era a verdadeira origem da revista Pesquisa FAPESP. A partir daí foram necessários mui- to sonho, determinação e o trabalho de muita gente, para que dele nascesse esta revista que chega à edição número 100, numa série que inclui as 46 edições de Notícias FAPESP.

Em 1997 a FAPESP admitiu a contratação de uma segun- da jornalista. Preparava-se o lançamento do Programa de Ino- vação Tecnológica em Pequenas Empresas, o PIPE, gestava-se o primeiro projeto genoma - a Diretoria Científica da FA- PESP era uma usina de projetos e programas. Veio Graça Mas- carenhas, com a tarefa de dar o máximo de sua competência para o aperfeiçoamento do Notícias FAPESP. No ano seguin- te, vieram, primeiro, Marina Madeira, para melhorar a orga- nização dos eventos, e em seguida outro jornalista, Fernando Cunha, que logo deixou patente seu talento para dinamizar a assessoria de imprensa.

Em fins de 1998, depois de enormes problemas para aper- feiçoar o Notícias FAPESP, procurei Hélio de Almeida em seu movimentado escritório de design. E ali nasceu quase imediatamente, além da amizade, uma parceria de trabalho sem a qual Pesquisa FAPESP não seria esta a revista que é. Foi dele a capa do boletim número 39, de janeiro/fevereiro de,A/, 1999, com 24 páginas e tiragem de 16 mil exemplares -ea^ partir dali conspiraríamos sem parar para transformar Notí- )f^ cias FAPESP numa revista de divulgação científica à altura da \ > FAPESP e do porte da produção científica paulista. íw>-

Em outubro de 1999, a revista foi enfim lançada, com 44 páginas e um encarte especial de oito páginas sobre jornalis- mo científico, com tiragem de 22 mil exemplares. Tínhamos conseguido a adesão entusiasmada do diretor científico José

Fernando Perez para essa idéia, além de convencer o então di- retor presidente, Francisco Romeu Landi, a quem o setor de comunicação estava subordinado, de que estava mais do que na hora de darmos esse passo. O diretor administrativo Joa- quim J. de Camargo Engler concordou inteiramente com a mudança, e os três passavam a formar o conselho editorial da revista. Tudo foi feito sob as bênçãos do Conselho Superior, presidido por Carlos Henrique de Brito Cruz. Hoje presidi- do por Carlos Vogt, o Conselho continua a apoiar firmemen- te o trabalho da revista.

Com Hélio, hoje nosso diretor de Arte, veio Tânia Maria dos Santos, atual chefe de Arte, com sua extraordinária compe- tência. Aos poucos montamos um time de profissionais ta- lentosos. Carlos Fioravanti e Marcos de Oliveira, colaborado- res habituais, tornaram-se respectivamente editor de Ciência e de Tecnologia. Carlos Haag veio como editor de Humanida- des. Eduardo César e Miguel Boyayan, também antigos cola- boradores, passaram a fotógrafos fixos. Em 2000, Cláudia Izi- que começou a editar Política. E, como às vezes a crise de uns é mesmo a boa oportunidade de outros, graças aos imensos problemas no campo das novas mídias, que em 2000 desem- pregou brilhantes jornalistas, ainda nesse ano conseguimos ampliar a equipe com Neldson Marcolin, atual editor-chefe da revista e Marcos Pivetta, editor especial. Em 2001, Dinorah Ereno tornou-se editora assistente de Tecnologia e, em 2002, foi a vez de Ricardo Zorzetto vir como editor assistente de Ciência. José Roberto Medda e Luciana Facchini, substituída por Mayu- mi Okuyama, completaram a equipe de Arte. No suporte ad- ministrativo, de secretaria e acervo fotográfico, há o trabalho importante de Paula Iliadis, Andressa Matias e André Serradas.

Para além dessa bela redação, enquanto a revista crescia, demandava o trabalho de muito mais gente, impossível de nomear. E demandava também um novo modelo de organi- zação. Foi assim que ao ser preparada para ganhar o mercado, a partir de março de 2002, a revista transformou-se em pro- jeto especial, vinculado à Diretoria Científica da FAPESP, coordenado pelo filósofo Luiz Henrique Lopes dos Santos e viabilizado administrativamente por um convênio com o Ins- tituto Uniemp. A gerência de comunicação, agora sob a res- ponsabilidade de Graça Mascarenhas e com uma equipe de 11 pessoas, permaneceu vinculada ao diretor presidente.

Feito o percurso que nos levou a esta edição número 100, está claro que pode parecer mais difícil produzir uma revis- ta de cunho jornalístico, e voltada para o mercado, dentro de uma instituição pública do que em uma empresa de comu- nicação. Mas é muito improvável que em qualquer empresa uma publicação tenha, sem altos custos adicionais, um con- curso tão intenso e valioso de trabalho especializado e de alto nível, entusiasmado, como aquele com que Pesquisa FAPESP conta. Esta revista é, de fato, fruto de um amplo trabalho co- letivo, desempenhado com muito prazer. E é com essa carga que ela é levada a cada leitor.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 9

Page 9: Uma década de avanços desenha o futuro

MEMóRIA

Primórdios da divulgação

científica

Um dos primeiros periódicos do país, de 1813, já trazia notícias e comentários sobre estudos e invenções

NELDSON MARCOLIN

Reportagens e comentários sobre ciência são tão antigos, no Brasil, quanto a própria imprensa. O modo de se divulgar e discutir o saber

científico era, obviamente, diferente de hoje. Um belo exemplo dessa forma primeva de divulgação científica ganhará as livrarias este ano. A Biblioteca Nacional digitalizou, a pedido da Casa de Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, todas as 18 edições da revista O Patriota, publicação que circulou na então capital federal por dois anos, em 1813e 1814. Uma de suas principais características era o grande espaço dedicado às ciências com artigos estrangeiros, principalmente franceses, embora houvesse a preocupação de incentivar a publicação de textos de autores nacionais. Os artigos tinham um caráter enciclopédico, divididos por tema: matemática, navegação e hidrografia, hidráulica, botânica e agricultura, química, medicina e mineralogia (que incluía as observações meteorológicas). Mensal no primeiro ano e bimensal no segundo, a publicação trazia também assuntos como

O FA.T1IOTÍ JORNAL LITTERÁRTO, POLíTÍCü»

MERC A N TIL, %e.

RIO DE JANEIRO.

Ai ,{.-, Eu desta gloria siJica contente, Que a «("«'..; terra amei , e ei minha gente.

Feire

JANEIRO.

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ioteca Naci

R I O D E~JÃ~N&W<3r~"i

NÀ I.VfpRESSI íiG í A. í 8 i 3.

Com LjetKçq,

' na Loja a'; Paulo Mir/in , j na rua da Quitanda , ti." ;\4., pzr Üçx ./.. mesn.,- Laja f* fa:; u jubseripçáe a -l^qç» por semestre*

■ ■

Editado por Araújo Guimarães, revista durou dois anos

V-.- ■•' i trafifiwt ■ . -- . Luiz Ho

priraèh o carvão ile marlcira, 1;

ijÁpill i, tjuc o limpe de algum.'

ouc se suppgc ser Je qualidade fu

Idéia era dar espaço para textos de "conhecimento útil"

viagens, política, poesia e a descrição dos diferentes povos do Império português. "Essa miscelânea temática é significativa da cultura da época e demonstra o peso que adquiriam os temas científicos no ambiente do Iluminismo tardio luso-brasileiro", observa Lorelai Kury, pesquisadora de história da ciência da Casa de Oswaldo Cruz

e organizadora do livro de ensaios e do CD-ROM, com toda a edição fac-similar, que serão lançados este ano numa parceria da Editora Fiocruz com a Biblioteca Nacional. O Patriota foi o primeiro periódico a conter textos de difusão científica publicado no Rio. Seu editor era o baiano Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, também responsável pela Gazeta do

10 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESHUISA FAPESP 100

Page 10: Uma década de avanços desenha o futuro

í *•)

íNDICE GERAL DO PATRIOTA.

.-O friwiro »." tmrti a Saitcri/fSt, o urtmáa a Numtra, s Urttxrp a Pagina.

X Ntroducçgo - í, j, j,jr_

SCUNCJ A S.

Mniksma!:

Indagação do polia DO vo- lume cn;re todo: (U igual super- fície, por Jo*c Saturnina da ■ . tá Pereiro. -----.-.--- i, t. j.

Reflexfies sobre asjltrrol t di i i i I 58, Coníínuaçüo - - - - II, j. >i,

Noticia sobre Cak; Negro , por Joaquim José da Silva ... j, ti. j%t

KsHexõcs sobre ss. viagens 1 raii celebres navegadores , &C Joaquim Benta da Fonceca - - ■ II. 1. 17. Continuação -.-,-.--->■-- II. t. 12. dito .__.-.-------. .'!. 3. 16. dito - - . — k ... ...... - II. i. 11). dito ..... ... Ji. ,5. 14.

Methodo, que se seguio no traba- lho Hydregraphico da planta do Rio de janeiro, por Diogo Jor- ge de Brito ......---- S. 1. 45-

índice de 0 Patriota: material tinha caráter enciclopédico

Estas duas ilustrações acompanham artigo sobre inovações em alambiques fabricados na Escócia

Rio de Janeiro. Conforme afirma Nelson Werneck Sodré em sua consagrada obra História da imprensa no Brasil (editora Martins Fontes), a Gazeta foi o primeiro jornal brasileiro, embora outros pesquisadores considerem o Correio Braziliense como o pioneiro. Criado em setembro de 1808, sob os auspícios da Corte já instalada no Rio, a Gazeta tinha quatro páginas e era semanal no início e trissemanal depois. As únicas preocupações presentes no periódico eram noticiar o que se passava na Europa e agradar a família real - nada havia, portanto, sobre ciência. O Correio foi fundado poucos meses antes, em junho de 1808,

em Londres, por Hipólito da Costa. "Mas é discutível a sua inserção na imprensa brasileira, menos pelo fato de ser feito no exterior, o que aconteceu muitas vezes, do que pelo fato de não ter surgido e se mantido por força de condições internas, mas de condições externas", argumenta em seu livro Sodré. O Correio era mensal e tinha uma seção chamada Literatura e Ciências, dedicada em boa parte das vezes às discussões sobre a universidade francesa. Já os textos de O Patriota, alguns deles ilustrados, tinham a preocupação de trazer o que era chamado de "conhecimento útil" para os leitores nos moldes do enciclopedismo europeu.

yy

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 11

Page 11: Uma década de avanços desenha o futuro

ENTREVISTA: ROBERTO SALMERON

Um físico dealta energia

NELDSON MARCOLIN

tempo parece não ter muita impor- tância para o físico Roberto Salme- ron, a julgar pela maneira como ele o ignora. Sua rotina é de estourar qualquer agenda, esteja ele no Bra-

sil ou na França. As atividades mais comuns incluem conferências, palestras e cursos, partici- pação em comissões oficiais, apoio a físicos brasi- leiros em colaborações internacionais, aconselha- mento de estudantes brasileiros no exterior, interpretações de experiências alheias, análises da política científica brasileira, artigos e, mais recen- temente, planos para escrever livros. Quando so- bra tempo, ele também gosta de pintar. Talvez toda essa energia causasse menos espanto se a pes- soa em questão não estivesse com 82 anos e não morasse do outro lado do Atlântico, em Paris.

Paulistano, Salmeron é filho de operários com origem na Espanha. Realizou o desejo dos pais ao se formar em engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), nos fins dos anos 1940, mas logo migrou para física, vencido por um fascínio que o acompanhava havia anos. Foi o último assistente brasileiro do mitológico professor italiano Gleb Wataghin, que formou e encantou uma espetacular geração de físicos bra- sileiros. Depois da volta de Wataghin para a Itá- lia, Salmeron completou sua formação em física na Universidade do Brasil (atual UFRJ), no Rio, e foi trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1950. Depois passou pela

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Universidade de Manchester, na Inglaterra, pelo Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Escola Politécnica de Paris, na qual se aposentou.

Durante sua estadia na UnB, Salmeron viveu um período tão fértil de idéias e inovações quan- to frustrante. O golpe militar de 1964 interrom- peu uma experiência importante para o ensino superior do país e forçou a saída do físico para o exterior, por não conseguir trabalho no país. "Foi o período mais difícil da minha vida", lembrou ele.

Nessa itinerância, Salmeron trans- formou-se num raro caso em que a referência profissio nal, de físico respeitado internacionalmente, uniu-se à referência ética e política de um profissional in- teressado em con- tribuir para uma pesquisa e um ensi- no melhores - que, fatalmente, tornarão seu país melhor. Radi- cado em Paris há mais de 30 anos, hoje Salmeron faz um trabalho de aproximação entre a Politéc- nica de Paris, a USP e a UFRJ com o objetivo de co- laborar com amigos e colegas que trabalham para melhorar a formação dos engenheiros brasileiros.

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Salmeron em São Paulo: plena atividade no Brasil e na França

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Durante a longa entrevista que con- cedeu, demonstrou preocupação com a constante falta de estrutura de financia- mento e planejamento dos projetos cien- tíficos feitos em colaborações interna- cionais. Revelou, por exemplo, que o Brasil perdeu projetos dentro do CERN para países como Paquistão. E criticou a falta de grandes programas científicos que gerem impacto no exterior. Tudo sempre com grande entusiasmo.

■ O senhor está aposentado, tem 82 anos, mas nesta vinda ao Brasil tem a agenda cheia em várias cidades do país. O que senhor tanto faz por aqui? — Venho mais freqüentemente a São Paulo, São Carlos, Rio e Brasília, mas sempre há outras coisas para fazer em outros estados. Estive há poucos meses em Fortaleza, num congresso, e devo ir a Belém, fazer umas palestras.

■ Isso significa que o senhor continua em plena atividade no Brasil e na França? — Continuo. Na França, evidentemen- te, não faço mais experiências. Parei de- pois que me aposentei, aos 70 anos. Na parte de física, continuo interessado na interpretação dos resultados das expe- riências feitas sobre um assunto no qual trabalhei durante 15 anos, à procura do plasma de quark-glúon. Embora não faça experiências, conheço os resultados dos trabalhos feitos na Europa e nos Es- tados Unidos, e me interesso pelas inter- pretações. O grupo que eu coordenava antes de me aposentar continua a expe- riência que eu tinha começado lá no CERN, pensa que descobriu o plasma de quark-glúon. Mas eu não acredito.

■ Por quê? — O problema do plasma é complexo. É preciso fazer a colisão de dois núcleos de átomos, de preferência pesados. Por exemplo: chumbo contra chumbo, urâ- nio contra urânio. Fazemos isso para deixar as partículas num estado de ener- gia muito elevado. Dessa colisão de nú- cleos, se o fenômeno existir, os prótons e os nêutrons devem se dissociar era quarks e glúons. Como é que podemos saber que existe esse fenômeno? Anali- sando as partículas que saem da coli- são. Há certas partículas que, se o plas- ma existir, têm de ser produzidas com certa probabilidade e têm de sair com certas propriedades de energia. Agora, esse é um processo nuclear extrema-

mente complexo. Então, suponhamos que a gente estude uma certa partícula de nome A. Há outros processos nu- cleares que também produzem essa partícula A. Não é só o plasma. Quer dizer que para sabermos se essa partí- cula foi produzida pelo plasma temos de excluir todos os outros processos possíveis. Fiz um modelo teórico sim- ples pelo qual demonstro que certas partículas que são características do plasma também são produzidas com as mesmas propriedades em processos nu- cleares clássicos que não têm nada a ver com o plasma. Então não precisamos do plasma para explicar a sua produção.

■ E por que exatamente o senhor não acredita que o seu antigo grupo tenha descoberto a partícula quark-glúon? — Porque há mais de uma interpreta- ção para o fenômeno. Um fenômeno só pode ser considerado novo se não houver nenhuma outra interpretação possível. Mas se for explicado por um processo clássico, conhecido, não pre- cisamos dele.

■ Essa atividade de análise de experiên- cias o senhor faz em Paris. Quando o se- nhor vem para cá, faz o quê? — Coisas bem diferentes. Por exemplo, nesta viagem. O Ministério da Ciência e Tecnologia criou uma comissão para escolher o novo diretor do CBPF. Fa- zem parte dessa comissão Carlos Hen- rique de Brito Cruz, reitor da Unicamp, José Roberto Leite, diretor de Desenvol- vimento Científico e Tecnológico do CNPq, Fernando Zawislak, da UFRGS, Marco Antônio Raupp, diretor do La- boratório Nacional de Computação Científica, e eu. Vim aqui agora porque temos quatro candidatos e vamos en- trevistá-los.

■ Em quais projetos mais o senhor está envolvido no Brasil? — Eu faço uma coisa que me interes- sa muito, que é trabalhar pelo ensino. Sou físico aposentado na Escola Po- litécnica de Paris, a École Polytechni- que, uma das mais importantes do mundo e certamente a mais importan- te da França, junto com a École Nor- mal Supérieure. Consegui um convê- nio da École Polytechnique com a USP dos campi de São Paulo e de São Carlos, e com a UFRJ. Por esse convê- nio, as duas universidades brasileiras

têm o direito de mandar para a Poly- technique estudantes de graduação. Eles estudam dois anos e meio na Polytech- nique e recebem o título de engenhei- ro lá. Ficam com dois diplomas, o bra- sileiro e o francês. É ótimo, é o nível mais alto que existe no mundo em cur- sos de graduação.

■ Como o senhor trabalhou por esses con- vênios? — A Politécnica de Paris se abriu para muitos países. Na América Latina cola- bora agora com o Brasil, o Chile e o México. Na Europa com a Alemanha, a Polônia, a Suécia, a Rússia, a Romênia. Na Ásia com a China, a Coréia do Sul, o Vietnã... Como sou brasileiro, conver- saram para ver se eu estava interessado em ajudar no contato com universida- des brasileiras. Como fui da USP e te- nho contato constante também com a UFRJ, tratei de fazer essa aproximação.

■ Como funciona o convênio? — Os professores brasileiros selecio- nam alunos de engenharia, física, ma- temática, química, que se apresentam. Digamos uns 30, entre 70 ou 80.0 pri- meiro critério é ser bom em matemáti- ca. Depois da seleção brasileira, vem uma comissão de professores da Poly- technique entrevistar esses alunos. E mais uma vez selecionam um certo nú- mero. No dia 2 de abril deste ano tive um prazer imenso porque a primeira turma da USP, que foi para lá em 2002, se formou. Foram 11 alunos, da Escola Politécnica de São Paulo, da Escola de Engenharia de São Carlos e dos Institu- tos de Física e de Matemática dos dois campi. Já há duas outras turmas lá, com 14 estudantes cada uma. Este ano sele- cionaram 11 da USP e três da UFRJ por- que no Rio ainda se apresentaram pou- cos candidatos. O meu objetivo com isso é contribuir para elevar o nível do ensi- no das escolas de engenharia aqui.

■ Quem paga para eles ficarem em Paris? — É a Polytechnique. E a coisa bonita na França é que todo mundo tem o mesmo direito, não há discriminação. Os estudantes franceses têm uma bolsa de cerca de 1.300 euros por mês (é mais ou menos R$ 5 mil). Os estrangeiros também. Com esse dinheiro eles pagam o alojamento, a cantina, os estudos, e sobra quase 400 euros por mês para ci- nema, metrô, roupa etc.

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■ Como era seu trabalho na École Poly- technique de Paris? — De vez em quando dava cursos em assuntos relacionados com o meu tema de trabalho, mas a minha atividade principal era pesquisar e dirigir grupos de pesquisa. Além de físico, sou enge- nheiro. Eu me formei antes na Politéc- nica da USP e foi durante o curso de en- genharia que comecei a gostar da física, que eu ensinava em cursinhos e colé- gios, como muitos jovens fazem hoje. Minha família era pobre e eu tinha de ganhar para mim, mas também para ajudar a família.

■ Isso não era tão comum há 60, 70 anos, não é? Alguém que sai de uma família humilde, consegue freqüentar bons colé- gios públicos, chega à universidade e tem uma progressão como o senhor teve, tão forte dentro da universidade. — Tive uma sorte imensa na minha vida. A minha família era de operários, mas, parece incrível, todos com interes- se cultural. Todos liam muito, eram tre- mendamente politizados. Eu era garoto quando houve a guerra na Espanha. Liam jornais todos os dias, e eu ouvia diariamente discussões sobre o que es- tava acontecendo. Eu tenho a memória desse tempo com meu pai e meus tios; eram contra o general Franco, contra o fascismo, e solidários com a República espanhola. Como estudei engenharia? Desde pequeno eu ouvia meu pai, meu avô - pai da minha mãe - dizendo "o Roberto vai ser engenheiro, não vai ser operário". Estudar engenharia tornou- se coisa óbvia, nunca pensei em fazer outra coisa. Mas durante o curso de en- genharia eu tive um excelente professor de física na Escola Politécnica, que se chamava Luiz Cintra do Prado. Foi um dos melhores professores de física que eu vi em minha carreira, em todos os países em que vivi. Eu gostava desse curso, gostava daquela lógica da física. Depois, quando me formei, o professor Cintra do Prado convidou-me para ser seu assistente. Foi isso que abriu minha carreira universitária. Trabalhei como assistente dele e, ao mesmo tempo, du- rante um ano, uma vez na vida, traba- lhei como engenheiro, logo depois de formado, no Instituto de Eletrotécnica da USP. Mas, como eu gostava de física, quando era aluno da Politécnica de vez em quando ia assistir aos cursos do pro- fessor Gleb Wataghin na Faculdade de

é Em 2 de abril deste ano formou-se a primeira turma da USP que estudou na Escola Politécnica de Paris

Filosofia. Um dia fui conversar com ele, e daí então passei a trabalhar em raios cósmicos.

■ Gleb Wataghin aceitou o senhor assim, imediatamente? — Imediatamente. Pedi minha demissão no Instituto de Eletro- técnica e aceitei uma bolsa na Faculdade de Filosofia, Ciên- cias e Letras, que era muito menor do que o meu salário anterior. O professor Watag- hin era um homem delicioso, de um humanismo extraor- dinário, sabe? Ele tratava todas as pessoas de senhor ou senho- ra. O mais jovem estudante que fosse conversar com ele, ele tra- tava de senhor. Na nossa pri- meira conversa ele me pergun- tou: "O senhor tem consciência de que, como engenheiro, pode se tor- nar um homem muito rico no seu país?". Eu respondi: "Tenho, profes- sor". Ele: "E o senhor quer ser físico?". Respondi: "Quero tentar". Ele ficou pensando uns minutos e disse: "O se- nhor é casado?". Eu: "Sou noivo". Ele: "E ela sabe, está de acordo?" Eu: "Sabe, professor, e concorda". Ele conversou comigo como se estivesse me preparan- do para uma catástrofe. Foi muito en- graçado. No fim, disse entusiasmado: "Então vamos falar de física".

■ Foi aí que o senhor entrou para o mun- do da física de partículas? — Foi. As experiências do laboratório do professor Wataghin eram todas fei- tas com contadores Geiger, importa- dos, que chegavam, em boa parte, que- brados. Ele sugeriu que eu construísse esses contadores em grande número aqui. Ele era muito entusiasmado com raios cósmicos. E me dizia que dali a al- guns anos eu iria para a Europa trabalhar em raios cósmicos nos laboratórios nos Alpes, numa paisagem maravilhosa de

neve que não existe aqui no Brasil. Dizia que o pôr-do-sol nos Alpes era um es- petáculo e de noite eu veria a Via Láctea com milhares de estrelas. Não só isso: lá na Europa, ele falava, havia muitas con- ferências, e eu iria conhecer o (Albert) Einstein, o (Adrien) Dirac, o (Enrico) Fermi, o (Niels) Bohr, o (Wolfgang) Pauli... "O senhor vai ver como é que esses homens pensam, como é que eles se exprimem, é uma coisa maravilhosa", me dizia o professor Wataghin. Aí ele parou e disse: "Como físico, a gente não fica rico, mas se diverte muito".

■ E o senhor confirmou isso? — Confirmei. Eu acho que a minha vida toda eu fui pago para me divertir.

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Desde aquela época até hoje eu faço a física com o mesmo prazer, com a mes- ma determinação.

■ O senhor conheceu esse pessoal citado pelo Wataghin? — Não todos. O Einstein e o Fermi morreram mais ou menos naquele pe- ríodo, entre 1954 e 1955. Os outros to- dos eu conheci.

■ Por que o senhor decidiu sair da USP e ir para o Rio de Janeiro? — Fui o último jovem brasileiro orien- tado pelo professor Wataghin. Ele ficou na USP por 16 anos e decidiu voltar pa- ra a Itália. Quando partiu, ficou um vá- cuo na Faculdade de Filosofia. Quer di- zer, havia físicos que já eram eminentes naquela época, como o Mario Schen- berg, o Marcello Damy, o Oscar Sala, o Paulus Pompéia, o Abrão de Moraes, todos excelentes. Mas a personalidade do Wataghin, ali, fazia falta. Decidi ir para o recém-fundado CBPF, a convite do César Lattes, onde fiquei três anos.

■ E saiu do CBPF por quê? — Eu era um jovem de esquerda e todo mundo sabia disso, não ocultava nada. Mas nunca fui ligado a nenhum partido político e não tinha atividade política. Nem tinha tempo para isso. Aí houve um incidente. Nós, os físicos do CBPF, visitamos o Arsenal da Mari- nha, no Rio, onde havia laboratórios de física muito bem montados. Passa- mos lá muitas horas e almoçamos com os oficiais. O almirante Álvaro Alber- to, então presidente do CNPq, partici- pou da visita e durante o almoço, por acaso, eu me sentei ao lado dele. Fo- mos fotografados, e as fotos aparece- ram na revista da Marinha. Eu soube depois que o chefe da Polícia do Rio telefonou para o almirante dizendo que eu era de esquerda. O almirante ficou furioso... comigo. Tanto que eu nunca tive uma bolsa do CNPq.

■ O senhor chegou a pleitear bolsa? — Eu encontrei, por acaso, o professor Costa Ribeiro, do Rio de Janeiro, que era do conselho do CNPq. Eu contei que estava querendo ir para a Inglater- ra com uma bolsa e ele me aconselhou a não pedir nada naquele momento. Era um sinal, não é? Até que ele foi mu- ito amigo. Teria sido pior ter uma bolsa recusada.

■ O almirante ficou bravo com o senhor apenas por causa do episódio da foto- grafia? — Não é incrível? Logo depois tive a prova da raiva que ele ficou de mim. O César Lattes queria obter um síncro- tron para o Rio de Janeiro, idêntico àquele com o qual ele tinha feito um trabalho importantíssimo em Berkeley, quando produziu o méson-pi artificial- mente. Então foram para o CBPF en- genheiros e físicos da Universidade de Chicago, que passaram uns tempos no Rio para projetar o síncrotron. Num certo momento eles ficaram num pré- dio do CBPF. O almirante Álvaro Al- berto deu ordem para me impedirem de entrar no edifício onde os america- nos trabalhavam. Eu achei aquilo ridí- culo e inaceitável, e decidi cair fora. Se- ria uma imoralidade que eu faria comigo mesmo se aceitasse aquela con- dição. Decidi então me demitir do CBPF. Na mesma época eu soube que a Unesco estava oferecendo bolsas de es- tudo para o exterior. Solicitei uma delas para mim e a obtive. Fui fazer meu doutorado na Universidade de Man- chester. Isso foi em 1953.

■ Em raios cósmicos? — Sim, em raios cósmicos. Escolhi Man- chester porque sabia que lá ficava o laboratório de raios cósmicos mais im- portante do mundo. E sabia que Pa- trick Blackett, o professor diretor do la- boratório, prêmio Nobel de Física, era o papa do assunto. Aprendi depois que ele era também um grande líder cientí- fico, o melhor administrador de ciência que conheci na minha vida. Vou lhe dar um exemplo da tremenda visão que ele tinha. Durante a Segunda Grande Guer- ra, os ingleses se alistaram nas forças armadas para combater. Isso incluía os universitários e, naturalmente, as uni- versidades ficaram quase vazias. Blac- kett disse: "Não é possível continuar as- sim, porque a guerra vai acabar um dia, então nós temos de pensar em preparar jovens para depois da guerra". E reco- mendou que um grande número de do- centes voltasse para a universidade.

■ Isso foi feito? — Sim. Muitos universitários foram chamados de volta, mas trabalhavam no que se chamava defesa civil. Quer dizer: quando havia bombardeio eles trabalhavam como bombeiro, como as-

sistente de enfermeiro, essas coisas. Mas os cursos não pararam.

■ Foi o Blackett quem o indicou para o CERN? — Foi. Quando estava escrevendo a minha tese e ia voltar para o Brasil, Blackett me chamou e perguntou se eu gostaria de ficar mais tempo na Europa e trabalhar no CERN. Eu nem sabia o que era o CERN, que tinha acabado de ser criado. Ele disse que me faria bem passar mais um ano ou dois na Europa. Fui para Genebra, conversei com o di- retor do CERN e terminei contratado por um ano. Agora o CERN estava no começo. Nem existia, na verdade. Nós trabalhávamos em barracões de madei- ra emprestados pelo aeroporto de Ge- nebra. Quando fui para lá éramos me- nos de dez físicos experimentais - eu fui um dos dez primeiros físicos experi- mentais contratados pelo CERN. Não havia nada.

■ Quanto tempo o senhor ficou lá? — Era para ficar um ano. Acabei fican- do o segundo ano, o terceiro, aí me de- ram um contrato permanente. Eu po- deria ter me aposentado lá se quisesse. Na primeira fase fiquei oito anos em Genebra.

■ O primeiro acelerador ficou pronto depois de quanto tempo? — O menor em três anos e meio - um recorde. O outro, maior, com o qual eu trabalhei, demorou cinco anos. Era na época o maior acelerador do mundo. Hoje está em construção um grande acelerador de prótons - o Large Ha- dron Collider (LHC). Acontece que os prótons passam por uma associação de aceleradores, vários deles antes de che- garem ao LHC.

■ O LHC vai ficar exatamente no lugar do Large Electron Position (LEP), o ace- lerador de elétrons que foi desativado? — Exatamente. É o mesmo túnel, de 27 quilômetros de circunferência. Mas é uma outra máquina, porque as con- dições para o acelerador de elétrons são muito diferentes das condições para o acelerador de prótons.

■ Voltou para o Brasil direto do CERN para a UnB. Quem o convidou? — No fundo, não houve convite for- mal. Eu participava de grupos de dis-

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cussões sobre a criação da universidade com amigos interessados em melhorar o ensino superior. Agora, o homem que idealizou a es- trutura da UnB foi Anísio Teixeira, o maior educador que o Brasil já teve. Ele já tinha pensado nessa nova estrutura para a antiga Universidade do Brasil no Rio, hoje UFRJ, muito an- tes de se pensar na UnB. Ele queria introduzir essa es- trutura de institutos e fa- culdades, como há hoje em todas as universidades bra- sileiras, quando a Universi- dade do Brasil se mudasse para a cidade universitária lá na Ilha do Fundão. Mas em Brasília começa- mos antes.

■ Antes da UnB não era assim? — Não, não era. A originalidade da UnB foi essa. A estrutura que é adotada hoje na USP, na UFRJ, em todas as uni- versidades, começou em Brasília, em 1962. Mas foi apenas uma das inova- ções, a de fazer institutos centrais e fa- culdades. De haver, por exemplo, um Instituto de Física, onde são dadas as aulas para os estudantes de engenharia, todos os ramos da engenharia, física, química, matemática, medicina, biologia, assim por diante. Isso não havia antes de Brasília. Em 1970 houve a reforma universitária, onde isso foi utilizado. Até 1970, a Escola Politécnica da USP tinha um departamento de matemática e a Faculdade de Filosofia tinha outro. Ou- tra novidade importantíssima de Brasí- lia é que nós mudamos a estrutura da carreira universitária. Até aquela época havia em cada disciplina o catedrático e os assistentes. Fomos nós que introdu- zimos uma carreira universitária em que o jovem começava com o título de as- sistente depois de ter a tese obrigatória para começar a carreira. O docente ti- nha de passar pelos postos de profes- sor-assistente, professor-associado e professor titular; e em cada uma delas vários graus: professor assistente de ní- vel 1,2,3, titular 1,2,3 e assim por dian- te. Fomos nós que terminamos com a carreira de catedrático e assistente. Foi uma grande inovação. E na reforma universitária, em 1970, isso foi introdu- zido para todo o Brasil.

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■ Por que ficou a imagem de que o Darcy Ribeiro foi grande idealizador da UnB? — Ele teve uma influência enorme para que a universidade existisse, mas não a idealizou. O Darcy trabalhava com o Anísio Teixeira, que dirigia o Instituto Nacional de Estudos Peda- gógicos (Inep) do Ministério da Educa- ção. Foi com o Anísio que o Darcy aprendeu o que era universidade. O Anísio idealizou e lançou o projeto no tempo da construção de Brasília. O Darcy se entusiasmou e então traba- lhou muito. O Anísio percebeu que se- riam precisos especialistas para dizer como é que a universidade deve ser den- tro da área deles, em medicina, enge- nharia, biologia, química etc. E quan- do ele lançou essa idéia o Darcy se juntou a ele e começaram a criar gru- pos de conselheiros. Um dia me es- creveram fazendo o convite para par- ticipar de um dos grupos como conselheiro. Vim várias vezes de Gene- bra para essas discussões. No fim, de- pois de muito trabalhar como conse- lheiro, acabei decidindo ir para Brasília como se fosse uma coisa natural do meu trabalho, sem ter recebido um convite formal. Tudo ia muito bem quando veio o golpe militar. Foi dra- mático. Eu estava em Brasília havia poucos meses e não tinha pedido licen- ça no CERN. Simplesmente me demiti porque pensei que nunca mais iria sair do Brasil. Comecei a trabalhar em Bra- sília no dia 2 de janeiro de 1964. E o golpe foi dia 31 de março, ou melhor, no dia Io de abril. Aí começou um pe- ríodo muito duro, a universidade foi muito perseguida.

■ Quanto tempo o senhor agüentou? — Dois anos, até o fim de 1965. Agora, foi um período extraordinário porque em Brasília havia grande entusiasmo. O Darcy Ribeiro foi reitor da Universi- dade de Brasília por poucos meses. A universidade foi criada pelo Tuscelino, mas a lei foi promulgada pelo João Goulart. Como o Anísio organizou o sistema escolar de Brasília e conhecia tudo sobre o ensino na cidade, o Jusce- lino queria que ele fosse o reitor. Mas ele não quis porque a família morava no Rio e não queria se mudar. Foi aí que ele sugeriu que o Darcy fosse o rei- tor. O Anísio ficaria como vice para poder prestigiar o Darcy. E o Darcy, com aquela energia extraordinária, trabalhava doidamente. O João Gou- lart acabou gostando tanto do Darcy que o convidou para ser ministro da Educação e, logo depois, chefe da Casa Civil. O Anísio, como era vice-reitor, passou a ser o reitor. Isso foi em 1963. Foi nessa época que cheguei à UnB.

mEpor que esse entusiasmo todo não foi suficiente para impedir que os 223 pro- fessores se demitissem em 1965? — Porque era impossível ficar. A idéia de demissão foi amadurecendo em ca- da um de nós individualmente. Qual- quer coisa que acontecesse na universi- dade o serviço secreto do Exército sabia um quarto de hora depois. Se houvesse uma discussão de estudantes no corre- dor a polícia sabia 15 minutos depois. Chegava a esse ponto. Nossas aulas eram gravadas e levadas para a polícia. Trabalhávamos intensamente, era um entusiasmo como nunca vi em nenhum

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outro lugar. Os professores e estudantes trabalhavam em condições tão difíceis e deficientes que, às vezes, me dava pe- na. Mas os estudantes não reclamavam, compreendiam. Era uma atmosfera muito construtiva.

■ Mesmo com o golpe. — Mesmo depois do golpe. Todos, pro- fessores e estudantes, tinham cons- ciência de que estavam fazendo algo de novo. Então, em Brasília, a parte de perseguição militar era constante. Se houvesse um seminário no anfiteatro, havia gente da polícia lá. Havia poli- ciais inscritos como estudantes. Não é possível você trabalhar sabendo que o seu colega do departamento do lado foi demitido ou preso, você não pode ficar tranqüilo. Eu tinha muito contato com os militares, procurando explicar a eles o que se fazia. Às vezes me convidavam para tomar um cafezinho à noite para se queixarem da universidade. Assim era o ambiente. Como vê, a demissão era inevitável.

■ A solução foi voltar para Genebra. — Quando eu me demiti fiquei cinco ou seis meses desempregado e era mi- nha mulher, Sônia, quem sustentava a família, como psicanalista. O diretor- geral do CERN, Victor Weisskopf, sou- be o que acontecia na UnB. Certo dia apareceu lá em casa um secretário da embaixada francesa dizendo que tinha uma carta do professor Weisskopf para ser entregue para mim, pessoalmente, em mãos. Era um contrato, já assinado pelo Weisskopf, para eu voltar para o CERN. Ainda fiquei com essa carta três meses, antes de me decidir a ir.

■ Por quê? — Porque eu não queria sair do Brasil. Eu ainda tentei conseguir trabalho em universidades do Rio, de Minas e da Bahia, mas não houve interesse das rei- torias, certamente por conta do clima po- lítico. Então acabei voltando para Ge- nebra. Psicologicamente foi o período mais difícil da minha vida. Foi muito duro. No CERN, o Weisskopf me deu o mesmo posto vitalício que eu tinha an- tes, que era bastante alto. Então fiquei mais um ano e meio no CERN. Nessa época eu também recebi convites para ir para as universidades de Oxford, na Inglaterra, de Columbia, em Nova York, de Trieste, na Itália, e para a Esco-

la Politécnica de Paris. Poderíamos fi- car em Genebra até eu me aposentar. A vida lá era muito boa, a educação dos filhos de alto nível, a universidade exce- lente. Mas, depois de muitas discussões com minha mulher, concluímos: "Se nós tivermos de educar os filhos fora do Brasil vamos para Paris, porque lá as crianças vão se desenvolver num am- biente intelectual único no mundo". Embora a física em Paris seja do mais alto nível internacional, fomos para Pa- ris por causa dos filhos, não por causa da física. Física de alto nível eu também tinha no CERN.

■ Como o senhor vê a física no Brasil nos dias de hoje? — A física, como todas as ciências, pro- grediu muito no Brasil, especialmente nos últimos 30 anos. Temos muitos fí- sicos bem formados, muito competen- tes. Mas são poucos os grupos com im- pacto internacional. Isso ocorre devido à falta de uma infra-estrutura que per- mita três condições fundamentais na pesquisa científica: uma autoridade que defina prioridades e que seja res- peitada, agilidade para que a decisão a respeito de um projeto possa ser toma- da em pouco tempo, e continuidade no financiamento de projetos. Está tam- bém faltando mais anos de experiência da comunidade, com espírito crítico agudo, num processo de amadureci- mento, para que as pessoas envolvidas num trabalho adquiram o hábito de ir o mais profundamente possível no pro- blema específico que estão estudando, de ir até as últimas conseqüências e po- der se impor. É também pequena a par- ticipação do Brasil em projetos interna- cionais importantes, embora tenhamos pessoas capacitadas a participar de tais projetos. Há certos ramos da física que só podem ser feitos com colaboração internacional. Até em países ricos como Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha, Itália e Suécia, há certos ra- mos que nenhum deles pode fazer sozi- nho. Por duas razões: a questão finan- ceira e por causa do tempo de trabalho. Há certos equipamentos que, em cola- boração internacional, demoram oito, dez anos para ser construídos, com a participação de 10,15,20 países. Se um país quiser fazer sozinho, quando ele terminar, o assunto já estará obsoleto, ou talvez nem possa fazer. Colaboração internacional é indispensável. Veja dois

exemplos, o Observatório Pierre Auger, na Argentina, e o Southern Observa- tory for Astrophysical Research (Soar), no Chile. Esses dois projetos importan- tes foram aprovados porque houve a participação decisiva da FAPESP. Infe- lizmente, isso acontece raras vezes no Brasil, porque as decisões são tomadas por comitês que tendem a distribuir pequenas verbas para vários grupos e não têm a autoridade que teve a FA- PESP de tomar uma decisão, assumir a responsabilidade, auxiliando forte- mente no financiamento de um proje- to grande. Está faltando infra-estrutura para colaborações internacionais no Brasil, começando com uma reestru- turação das fontes de financiamento. Quando há colaboração internacional, o país assume a responsabilidade de construir equipamentos. Essa constru- ção demora anos, e é preciso viajar sempre para ter contatos com todos os laboratórios que participam. E no Bra- sil não há uma estrutura para isso.

■ Dê um exemplo concreto dessa falta de estrutura. — Vou falar no caso específico de física de partículas: se um grupo brasileiro quiser trabalhar no CERN não há uma estrutura no Brasil que possa financiar equipamentos e viagens. Para cada coi- sa é uma luta para conseguir verba. Veja um caso dramático: há quase uma cen- tena de físicos brasileiros que apresen- taram projetos para trabalharem nas quatro experiências que devem ser fei- tas no acelerador de partículas LHC, do CERN. Esses projetos brasileiros foram apresentados há anos, foram aprovados no CERN, mas ainda não foram apro- vados no Brasil. O que está acontecen- do é que, como para cada parte do pro- jeto há um tempo limitado e o Brasil não se mexe, as responsabilidades estão sendo passadas para outros países. Por exemplo: uma das experiências pedia uma grande peça de um eletroímã, que é uma trivialidade para o Brasil fazer, com a qualidade da nossa indústria, que poderia ter sido feito até num dos laboratórios da Comissão Nacional de Energia Nuclear. O grupo brasileiro propôs, o CERN aceitou e durante dois ou três anos não aconteceu nada. Como cada peça tem que ser termina- da num período determinado, o proje- to foi dado para o Paquistão. O Brasil já perdeu isso. E outros projetos que os

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brasileiros queriam fazer estão sendo passados para outros países.

■ Quando o Brasil faz esses projetos de colaboração no CERN, tem de entrar também com dinheiro? — Tem que entrar com equipamento, o que para nós é excelente, é tudo coi- sa de vanguarda. O CERN é grande, custa caro, e é financiado por 20 paí- ses (os donos do CERN). Mas os paí- ses que tomam parte das experiên- cias, como o Brasil, não financiam o CERN, participam do financiamento das experiências nas quais partilham. É uma verba à parte, que não tem nada a ver com o financiamento do CERN. Para se avaliar o custo de par- ticipação nessas experiências, deve-se avaliar o gasto por físico e por ano. Quando se faz esse cálculo, nota-se que o gasto de uma experiência feita pelos brasileiros em Genebra custa o mesmo que fazer física dos sólidos aqui em São Paulo ou no Rio. Há uma falta de informação muito séria: essa física de partículas não é mais cara do que as outras físicas. Se temos de fazer um equipamento com um grupo brasi- leiro com dez físicos, isso pode custar, digamos, US$ 1 milhão para ser gasto em vários anos. O Brasil paga por isso, mas quase tudo é feito nas indústrias do próprio país. Tem de se pagar uma parte no primeiro ano, uma parte no segundo, outra no terceiro etc. Esse equipamento vai ser usado durante oito, dez anos. Quando se pesam quan- tos anos ele será usado e quantas pes- soas trabalharão, por pessoa por ano custa a mesma coisa que os outros pro- jetos. A dificuldade é: como é que um comitê do CNPq, com uma verba limi- tada, vai aprovar um projeto de US$ 1 milhão se não tem esse dinheiro? Então é preciso uma estrutura especial de onde venha essa verba. E isso tem de ser um projeto nacional. Também faltam aqui grandes projetos nacionais mobi- lizadores prioritários. Não há uma de- terminação clara que estabeleça a linha que será prioritária no país e terá prio- ridade no orçamento para ter impacto internacional. Não existem aqui linhas de pesquisa criadas para ter impacto internacional.

■ E isso não depende só de dinheiro. — Não. Depende de dinheiro e de es- trutura. Também há uma parte cultu-

ral: os cientistas têm de aceitar que isso deve ser feito.

■ O senhor acha que não há essa menta- lidade? — Muito pouco. Nem de longe é como o que se faz na Europa e nos Estados Unidos. Na França, quando o governo define uma prioridade evidentemente isso não cai do céu e nem é feito ape- nas por autoridade. A questão é estu- dada por gente competente durante muito tempo, com consultores estran- geiros, é amadurecida e aí se torna prio- ridade. Logo, quando é lançada, essa prioridade é aceita por todos, ninguém protesta. Não existe a preocupação "vo- cê tem xis cientistas e tem uma certa quantidade de dinheiro, vamos dividir o dinheiro por xis".

■ E quem deve ser responsável pelo finan- ciamento? — Acredito que o governo federal jun- to com as várias fundações de amparo à pesquisa do país. Nós temos pessoas como, por exemplo, Sérgio Rezende, presidente da Finep, e José Roberto Leite, do CNPq, que sabem que tem de haver uma infra-estrutura e estão tra- balhando para encontrar uma solução. Uma idéia que se desenvolveu é de que

através dos fundos setoriais se crie uma infra-estrutura para colaborações in- ternacionais, não só em física, claro.

■ O que o senhor acha que vai ser mais importante no futuro, na física? — Um relatório foi divulgado há uns dois anos por um comitê norte-ameri- cano sobre isso. A conclusão é de que na física vai haver cinco campos impor- tantes: física de partículas, cosmologia e astrofísica, física atômica, física em me- dicina e biologia e física de materiais.

■ O senhor tem fé na ciência, na educa- ção, no Brasil... Tem fé em Deus? — Não tenho, não. Nem quando era garoto. Minha mãe era muito católica. Tanto que eu me chamo Roberto Aure- liano Salmeron porque nasci no dia de Santo Aureliano, e a minha mãe e a mi- nha avó puseram o nome para saudar o santo. Meu pai não tinha religião e assi- milei isso sem doutrinação. Minha mãe queria que eu fizesse catecismo. Lem- bro-me que eu ia ao colégio Coração de Jesus, nos Campos Elísios, em São Pau- lo, aos domingos, para assistir ao cate- cismo. Mas o que me interessava mes- mo era jogar futebol porque tinha um pátio maravilhoso... Então íamos jogar futebol no colégio dos padres. •

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Todos que escrevem - os chamados escritores - alguma vezes prevêem... Neste conto, de 1958, Millôr Fernandes antecipa um desastre astronáutico metafísico com que, naquela época remota, ninguém podia sonhar. Júlio Verne, dizem, deu várias voltas em sua tumba.

O Navegador

MILLôR FERNANDES

Era encarregado da navegação de bordo da aeronave estratosférica. Olhava as estrelas pelo mirante de vidro no fundo da nave e mantinha o aparelho em sua rota estrita, que não podia se afastar nem um grau, na verdade nem um 0,012, da rota que a técnica da

navegação espacial determinara. Pois uma vez, vez aparentemente como outra qualquer, esta- va o nosso navegador examinando as estrelas, numa noite estrelada como todas, pois naque- la altura não há noite não estrelada, quando estourou o tampão do mirante e ele foi sugado pra fora da nave. No momento em que o resto da tripulação percebeu o acidente, houve pâ- nico (logo controlado, eram todos profissionais experimentados a evitar pânico) a bordo. Não comunicaram nada aos passageiros-teste, trataram de descer no primeiro ponto possível. Mas nosso herói, dos muitos mártires da técnica da aeronáutica de todos os tempos, o primeiro dos tempos da astronáutica, jamais foi esquecido. Não digo que "não foi esquecido" no senti- do habitual em que se fala isso, não. Não há nada de "patriótico", "grandioso", "eterna gratidão dos homens", no inolvidável em que se tornou nosso homem.

Aconteceu apenas o seguinte: ao ser sugado do aparelho nosso navegador não caiu. O avião estava fora da órbita gravitacional de qualquer planeta. Ou melhor, subiu um pouco, algumas dezenas de quilômetros. Mas parou aí. E veio-lhe uma calma inexplicável, enquanto espiava a nave que sumia. Devido a indeterminada lei de atração-inerte ele ainda foi arrastado, em ór- bita, um certo tempo. Logo, porém, caiu num espaço vazio, sem qualquer movimento. Ten- tou se mover, não teve como. O mundo, ao seu redor, imenso. A visão, em torno, ampla como jamais supusera ser possível. Ficou olhando, agora aterrorizado. Verificou o relógio, os pon- teiros tinham parado. Tentou mover o mecanismo: a força magnética o tinha detido. Estava perdido, eternamente (?), no tempo e no espaço.

O desespero, estranhamente, não durou muito. Horas depois sentiu total tranqüilidade. Parecia que não era com ele. Ficou só constatando, verificando, se assombrando. E, na impos- sibilidade de qualquer outra coisa, esperando. Que podia fazer? Nem subir, nem descer. Vaga- mente, pensou na possibilidade de, não se mexendo do local em que estava, e nem podia, vir a ser apanhado por um outro aparelho, noutra ocasião, noutra viagem.

E lá está. Quando os estratosféricos passam por ele, ainda o saúdam. Sabem, pelo brilho de seus olhos, que ele percebe tudo. Porém os braços ele não pode mover nem prum adeus. E mesmo o brilho dos olhos vai diminuindo aos poucos, à proporção que a inanição domina o nosso herói. Que, todos já sabem, vai morrer é de fome.

Não há técnica que possa salvá-lo. Já tentaram a sucção ao contrário, mas ele caiu numa área em que o vácuo e o magnetismo se anulam. A primeira sucção tentada afastou-o mais dez quilômetros da rota normal das naves. Escadas não são praticáveis naquela altura, por- que lhes falta apoio. "Dêem-me um ponto de apoio e eu moverei o mundo" aqui não tem sentido. Não há onde apoiar e não há mundo, no sentido arquimédico. Certo dia, bem cla- ro, quando uma pequena nave de observação passava por ali, nosso herói moveu um braço e conseguiu perguntar as horas, por gestos. Viram-no lá longe, diminuto, acertando o reló- gio minúsculo. Mas foi seu único gesto relatado. Os técnicos cá de baixo tentaram, diante do fenômeno de movimentação acontecido normalmente, estabelecer uma equação capaz de reproduzir o fenômeno e assim salvar nosso homem. Mas não chegaram a uma conclu- são, muito embora as reuniões, discussões, experiências, continuem sem parar. E nosso he- rói definha.

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Mas não está morto. As naves, neste ano e meio que já transcorreu desde o fatídico aciden- te, trazem relatos: nosso amigo seca, se mumifica, mas muito lentamente. Não parece especial- mente triste, nem desesperado. Definha apenas, na proporção de um milésimo do que defi- nharia na terra sem se alimentar. O frio parece não afetá-lo. Uma vez foi surpreendido com um sorriso nos lábios. As cores das roupas que usava ficaram mais brilhantes e mais belas com o passar do tempo. E durante o solstício de verão a posição do herói foi mudando, até ficar na posição de um nascituro. Parecia que ele ia renascer do cosmo.

Enquanto isso, ele, nosso homem, é mais útil do que nunca. Os dados apurados pelo que acontece com ele têm sido analisados pela ciência aeronáutica e, acredita-se, resultarão na im- possibilidade de acidentes semelhantes no futuro.

Fazem-se cálculos, e naturalmente apostas, sobre a duração da vida do homem. A indús- tria de tecidos lançou nova moda, baseada nas fabulosas cores da roupa do navegador. O te- cido tem o nome óbvio - Navegador. Em Paris já não se usa outra coisa. Numa viagem espe- cial, patrocinada pelas Emissoras Conjugadas, a família do navegador (mãe, sogra, mulher e dois filhos) foi levada a visitá-lo, a avistá-lo. O resultado foi lamentável, pois o estado de his- teria que se produziu no mundo todo, que acompanhava a narração, trouxe críticas violentas de toda parte.

A família tem sobrevivido com donativos particulares, porque não conseguiu receber o se- guro de vida que lhe deve a companhia de aviação, pois, em verdade, o navegador não morreu, nem há mesmo certeza se está mal de saúde. O advogado da família tentou dá-lo como desapa- recido, pra que a esposa pudesse receber o seguro dentro de cinco anos, mas nem isso a com- panhia de seguros aceitou - na verdade não há homem menos desaparecido do que o navega- dor: o mundo inteiro sabe onde ele se encontra, com absoluta precisão, até em números e graus, latitude e longitude. Afinal os comandantes das aeronaves que deviam passar por aquela rota estratosférica começaram, de vontade própria, e mesmo contra o regulamento, a se des- viarem ligeiramente, para não se aproximar do navegador perdido. É que este, agora já bem mais magro e mais brilhante, deu para fitar os aparelhos com olhar de amargurada censura.

E, pouco a pouco, foi sendo inteiramente abandonado em meio às estrelas. Mas as últimas notícias repentinamente entusiasmaram o mundo. Todas as rádios de alta freqüência come- çaram a receber um novo bib-bip, bib-bip astral. Houve imediatamente a suspeita do lança- mento de um novo Sputnik. A Rússia e os Estados Unidos se mantiveram em silêncio, sem ne- nhuma declaração oficial. Mas, dias depois, o governo suíço, numa entrevista mundial de Imprensa, declarou que a Associação de Relojoeiros Suíços, depois de longas e sigilosas tenta- tivas, tinha, afinal, estabelecido ligação com o navegador. Dos dados auferidos tinham conse- guido o feito notável que agora anunciavam ao mundo: "A Suíça era o primeiro país que con- seguia colocar em órbita um homem vivo!"

Lenta, mas seguramente, o nosso navegador gira, agora, no sentido contrário da rotação da Terra.

O CRUZEIRO, 19.07.58 (O Sputnik tinha sido lançado em 1957)

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■ POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS MUNDO

A era que não terminou Em artigo publicado na revista Science (21 de maio), o economista italia- no Leonardo Maugeri lan- çou combustível numa po- lêmica planetária. Ele diz que a era do petróleo está longe de terminar, porque as previsões sobre o poten- cial das reservas mundiais pecaram invariavelmente pelo pessimismo. E cita exemplos. Em 1942, esti- mou-se que os poços de petróleo na região do rio Kern, na Califórnia, pro- duziriam no máximo 54 milhões de barris. Pois até hoje já geraram 736 mi- lhões de barris e as reservas não chegaram nem à me- tade. Outro exemplo é o do campo de Kashagan, no Ca- zaquistão. Nos anos 1990, seu potencial foi reavalia- do na casa dos 4 bilhões de Previsões sobre reservas petrolíferas pecam pelo pessimismo

barris. A última previsão diz que são pelo menos 13 bilhões de barris. "Embora os recursos sejam finitos, ninguém sabe qual é o li- mite", diz Maugeri, vice- presidente da companhia petrolífera italiana Eni. "O óleo está contido em rochas porosas, o que torna difícil estimar quanto do produto existe." Ele insinua que as empresas petrolíferas co- nhecem o fenômeno, mas se fazem de desentendidas. Assim, controlam os inves- timentos em prospecção e evitam que o aumento da produção reduza demais o preço do barril. "O pior efeito do pânico sobre o fim das reservas é que ele tem gerado políticas im- perialistas e levado ao controle das regiões pro- dutoras", diz Maugeri. •

■ Produção árabe vai sair da penumbra

As universidades árabes estão sendo conclamadas a divul- gar de forma mais eficiente sua produção acadêmica, criando bancos de dados ele- trônicos com resumos de seus projetos de pesquisa. A exor- tação foi feita em abril, num encontro de cientistas na ci- dade de Riad, na Arábia Sau- dita. Reima Ijarf, professora da Universidade Rei Saud, em Riad, propôs no encon- tro que cada uma das univer- sidades árabes crie uma pla- taforma própria e de fácil acesso, com os resumos de

suas pesquisas, com o objeti- vo de oxigenar o ambiente acadêmico na região. "A pro- dutividade de nossos cientis- tas aumentaria se eles co- nhecessem o que seus pares estão fazendo", disse Reima. Hoje, apenas uma em cada quatro instituições árabes tem bancos de dados acessí- veis - e, ainda assim, a maio- ria só oferece informações em inglês. Outro projeto é a criação de um banco de da- dos unificado, aproveitando o sucesso de uma iniciativa da Arábia Saudita. Criado em agosto de 2003, esse banco de dados em medicina, tecno- logia, agricultura e humani-

dades reúne 1.500 resumos, além dos currículos de 12.500 pesquisadores sauditas. Na- ções como Bahrein, Kuwait, Omã, Emirados Árabes Uni- dos e Qatar foram convida- das a incluir projetos e currí- culos na plataforma (SciDev. Net, 21 de maio). •

■ Caixa reforçado na pesquisa australiana

O governo australiano quer dar uma injeção de ânimo na pesquisa científica nacio- nal e anunciou um pacote de investimentos de US$ 3,7 bilhões nos próximos sete anos. Mas nem tudo é moti-

vo de comemoração. Uma boa fatia do dinheiro está vin- culada a pesquisas de inova- ção industrial, o que gerou críticas de cientistas e de políticos da oposição. A Or- ganização de Pesquisa Cien- tífica e Industrial, principal agência científica do país, receberá 305 milhões de dó- lares australianos extras ao longo dos sete anos. O presi- dente da Federação das So- ciedades Científicas e Tec- nológicas Australianas, Snow Barlow, reclama que o au- mento nem sequer acom- panhará a taxa de cresci- mento esperada no período {Nature, 13 de maio). •

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■ Lei do silêncio na costa do México

É a segunda vez que acontece em 2004: foram proibidas pesquisas sísmicas realizadas por pesquisadores norte-ame- ricanos em águas mexicanas, devido ao impacto que po- deriam causar em mamífe- ros marinhos. No dia 15 de abril foi cassada a permissão para que o navio de pesqui- sas Roger Revelle examinasse fendas ao longo da costa oci- dental do México. A deter- minação partiu da Secretaria de Recursos Naturais e Am- bientais do México. A alega- ção é que as experiências usariam ferramentas impró- prias: armas de ar compri- mido que promovem explo- sões na água. Tais estrondos produzem ondas de som captadas pelo navio depois de refletir o fundo do mar e as rochas nas profundezas. Em fevereiro, o governo me- xicano vetou projeto similar com o navio Maurice Ewing. As armas utilizadas pelo Ro- ger Revelle são menores que as do Ewing, argumenta o cientista chefe da expedição, Peter Lonsdale. Segundo ele, o navio completou uma via- gem pelo golfo da Califórnia e não houve registro de ani- mais machucados (Nature, 6 de maio). •

■ Autonomia nos testes com animais

Companhias farmacêuticas e biotecnológicas da índia não vão mais depender de outros países para submeter drogas experimentais a testes toxico- lógicos. O governo indiano anunciou a construção de um grande complexo desti- nado à criação de animais para pesquisas. Até o fim de 2004, a unidade será concluí- da na cidade de Hyderabad, ao custo de US$ 50 milhões, revelou o diretor-geral do Conselho Indiano de Pesqui- sa Médica, Nirmal Kumar Ganguly. A iniciativa decorre da proibição de copiar e pro-

duzir no país drogas paten- teadas no exterior, que co- meça a vigorar em janeiro de 2005. Agora os indianos vão enfrentar o desafio de desen- volver novos medicamentos. O complexo abrigará animais de todos os tamanhos e per- mitirá que os testes das dro- gas sejam feitos no país. O Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos treinou cientistas indianos e fornece- rá apoio. A obra será finan- ciada por empréstimos ban- cários, verbas do governo e de empresas. De acordo com Ganguly, apesar de atrelado ao governo, o complexo será administrado com autono- mia (Nature Medicine). •

■ Estímulo às patentes portenhas

A Argentina decidiu estimu- lar o patenteamento de ino- vações criadas por seus pes- quisadores, arcando com parte dos custos dos registros. Serão selecionadas 26 pes- quisas, que não necessaria- mente precisam estar vincu- ladas a laboratórios oficiais. Cada proposta escolhida re- ceberá US$ 26 mil, suficientes para cobrir os cerca de US$ 1.500 necessários para um re- gistro de patente na Argenti- na, embora aquém dos US$ 100 mil exigidos na Europa ou nos Estados Unidos. Nos últimos tempos, o ritmo cria- tivo da Argentina anda em baixa. Somente 145 cidadãos residentes no país obtiveram patentes em 2000, compara- dos a 1.400 patentes conse- guidas por não-residentes, na maioria companhias inter- nacionais. O presidente da Agência Nacional de Promo- ção Científica e Tecnológica, Lino Baranao, explica que, embora a maioria dos pes- quisadores possa arcar com os custos de patentes na Ar- gentina, suas invenções nor- malmente ficam desprotegi- das em outros países em razão do alto custo. Os US$ 26 mil poderão ajudá-los nes- sa tarefa (SciDev.Net). •

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ESTRATéGIAS MUNDO

■ De onde vieram os óvulos coreanos?

Uma proeza da ciência sul- coreana mergulhou repenti- namente no pântano da des- confiança. Em fevereiro, uma equipe de pesquisadores da Coréia do Sul anunciou ter obtido células-tronco a partir de um embrião humano clo- nado. Tudo ia muito bem, até surgir a suspeita de que o grupo liderado por Woo Suk Hwang e Shin Yong Moon, da Universidade Na- cional de Seul, recorreu a in- tegrantes da própria equipe médica para a doação dos óvulos usados na experiência. O número de óvulos foi de 242, retirados de 16 voluntá- rias. Cada uma delas recebeu injeções de hormônio para produzir de 12 a 20 óvulos a cada ciclo menstrual (o nor- mal é produzir somente um). Causou espanto o fato de tan- tas voluntárias terem se sub- metido ao tratamento, que é doloroso e pode trazer pre- juízos à saúde, como coágu-

los nas veias e derrame. "Isso nunca seria feito nos Estados Unidos", comentou o pesqui- sador José Cibelli, que estuda clonagem na Universidade do Estado do Michigan. Em- bora as doadoras tenham de se manter no anonimato, Ja Min Koo, estudante da equi- pe responsável pelo trabalho, declarou à revista Nature que doou óvulos, juntamente com outras mulheres do grupo - numa evidência de que os óvulos podem não ter sido obtidos de forma tão volun- tária. Posteriormente, quan- do a revelação começou a re-

percutir, Koo voltou atrás. Disse que havia se expressado mal porque não fala bem o inglês. Hwang refutou a par- ticipação de Koo, mas recu- sou o pedido da revista Natu- re de apresentar documentos sobre a forma de obtenção dos óvulos. O acesso a infor- mações no Hospital da Uni- versidade de Hanyang em Seul, responsável pela aprova- ção ética dos procedimentos, também foi negado. Em edi- torial, a Nature lamentou que um dos maiores eventos cien- tíficos do ano fique mancha- do por uma suspeita ética. •

■ Lei do passado na batalha ecológica

O Greenpeace venceu uma batalha judicial que travava com o governo dos Estados Unidos. Em 2002, ativistas do grupo ambientalista fize- ram a clássica abordagem a um navio que carregava mog- no da Amazônia para Mia- mi. O governo tentou enqua- drar os ecologistas numa lei de 132 anos, criada para coibir a abordagem de prostitutas a navios. O juiz de Miami, Adal- berto Jordan, mandou ar- quivar o processo. •

Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

www.talkorigins.org/faqs/homs/ Textos sobre a evolução humana, com links em que é possível se conhecer

s argumentos dos criacionistas.

www.dartmouth.edu/-floods/ Site com ferramenta disponível para análise de imagens de satélite sobre chuvas excessivas em todo o mundo.

www.bl.uk/collections/treasures/digitisationl.html Um jeito novo de consultar, on-line, obras raras da Biblioteca Britânica, como o livro de notas de Da Vinci.

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ESTRATéGIAS BRASIL

A homenagem a Alberto Carvalho da Silva

A FAPESP homenageou, no dia 13 de maio, o ex-diretor- presidente de seu Conselho Técnico-Administrativo, Al- berto Carvalho da Silva, morto em junho de 2002. Na cerimônia, em que foi des- cerrada uma placa em sua memória, também ocorreu o lançamento de dois livros que contaram com a parti- cipação do homenageado. O crescimento da agricultu- ra paulista e as instituições de ensino e pesquisa e exten- são numa perspectiva de lon- go prazo, coordenado por Paulo Fernando Cidade de Araújo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Univer-

m l^s^lÈllliim.

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* 0 presidente Carlos Vogt discursa na homenagem

sidade de São Paulo (USP), apresenta dados sobre as transformações da agricul- tura paulista nos últimos 40 anos e as contribuições da FAPESP para o avanço das

pesquisas agrícolas no mes- mo período. "A obra reúne informações históricas es- quecidas pela comunidade científica", disse Araújo. "Há estatísticas de gastos, orça-

mentos e investimentos rea- lizados pelas universidades e institutos dessa área." O li- vro foi supervisionado por Carvalho da Silva. A segun- da obra, Atividades de Fo- mento à Pesquisa e Forma- ção de Recursos Humanos Desenvolvidas pela FAPESP entre 1962 e 2001, registra a preocupação de Carvalho da Silva em relação às polí- ticas de ciência e tecnologia adotadas pela Fundação. "O lançamento das duas pu- blicações consegue subs- tanciar essa homenagem ao doutor Alberto, à sua me- mória e ao seu trabalho", disse Carlos Vogt, presiden- te da FAPESP. •

■ Enfim, o teste do feijão transgênico

Depois de mais de três anos de espera por uma licença ambiental, começaram em maio os testes de campo com o feijão transgênico desenvol- vido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Os grãos geneti- camente modificados são re- sistentes ao vírus do mosaico dourado, que amarelece as folhas do feijoeiro, causa na- nismo nas plantas e deforma as vagens. Os resultados da primeira fase de testes devem ser conhecidos em seis meses. Será avaliado o impacto nas condições físicas do solo, nos microrganismos ao redor e na fauna de minhocas, be- souros, aranhas e formigas. Mas só dentro de três anos é que se saberá se o feijão é se-

guro para a saúde humana e o meio ambiente. Além de re- petir os testes de impacto am- biental, será necessário plan- tar o feijão transgênico numa área maior, a fim de obter a quantidade de grãos necessá- ria para os testes de seguran- ça alimentar. Esses testes se- guirão as normas da FAO, órgão das Nações Unidas para

agricultura e alimentação. A coleta do feijão transgênico está sendo feita num campo experimental da Embrapa em Santo Antônio de Goiás e vai ser analisada nos Laborató- rios de Ecologia Microbiana e Fauna do Solo da Embrapa Agrobiologia, em Seropédica, Rio de Janeiro. A pesquisado- ra da Embrapa Agrobiologia,

Norma Gouvêa Rumjanek, não acha que os três anos de espera pela licença foram to- talmente desperdiçados. "A situação era muito confusa. Havia dúvidas sobre os tipos de testes de impacto ambien- tal que deveriam ser feitos e, sempre que se discutia o as- sunto, aparecia alguma idéia nova. Com o tempo, foi pos- sível amadurecer as idéias", afirma. "Ficou mais simples de planejar quando o país de- finiu que seguiria o princípio da precaução", afirma Nor- ma, referindo-se ao conceito segundo o qual é preciso ava- liar exaustivamente os peri- gos antes de liberar o consu- mo. Nos próximos meses, a Embrapa iniciará testes se- melhantes com mudas de seus mamoeiros geneticamente modificados e resistentes a ví- rus e fungos. •

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ESTRATéGIAS MUNDO

O terena que chegou longe Num momento em que o país discute políticas de co- tas para minorias, vale a pena prestar atenção na trajetória do índio terena Rogério Ferreira da Silva. Aos 34 anos de idade, ele é um raríssimo exemplo de indígena que fez carreira acadêmica até o doutora- mento. Formado em agro- nomia e mestre em Ciências do Solo pela Universidade Federal Rural do Rio de Ja- neiro, deve concluir em 2006 seu doutorado na Universidade Estadual de Londrina. Ele pesquisa or- ganismos com mais de 2 milímetros de diâmetro da fauna invertebrada em so- los submetidos a plantio di- reto. A carreira de Rogério é marcada por lances de obs- tinação - mas também de muita sorte. Na adolescên- cia, deixou sua aldeia em Mi- randa, Mato Grosso do Sul,

Rogério investiga organismos do solo

para fazer um curso técni- co agrícola numa escola de Cuiabá. Conseguiu a vaga graças à Funai, que conven- ceu a escola a reservar uma cota para indígenas. Quan- do concluiu o ensino mé- dio, decidiu acompanhar um grupo de colegas de for- matura (nenhum deles de sua etnia) ao Rio de Janeiro, para tentar o vestibular da Universidade Federal Rural

no município fluminense de Seropédica. Foram todos de ônibus. Rogério fez as pro- vas e, em vez de voltar com os amigos, arrumou um lu- gar na própria universidade para dormir, enquanto es- perava o resultado final. Acabou reprovado. Sem di- nheiro para voltar, foi pedir ajuda à Funai. Teve seu gran- de momento de sorte. Uma professora da Universidade

Federal foi acionada pela Funai para ajudá-lo a vol- tar. Impressionada com a obstinação do rapaz, ela lhe propôs trabalho. Durante um ano, Rogério cuidou de um sítio da professora, en- quanto se preparava para o próximo vestibular. Passou e deu início a sua carreira universitária. Depois de vi- ver dez anos no Estado do Rio, Rogério voltou ao Mato Grosso do Sul em 2001. Ele faz sua pesquisa numa unidade da Embrapa em Dourados, que tem li- gação com a Universidade de Londrina. Solteiro, volta todos os meses à aldeia onde os pais vivem e tor- nou-se uma espécie de ído- lo dos adolescentes locais. "Noutro dia, um garoto da aldeia ligou me convidan- do para ir à formatura dele. Disse que queria chegar aon- de eu cheguei", ele diz. •

■ Como estocar as sobras do gás

Uma equipe de pesquisadores do Instituto de Pesquisas Tec- nológicas (IPT) descobriu três estruturas geológicas subter- râneas, próximas à Região Metropolitana de São Paulo, que poderão ganhar destina- ção inédita no Brasil: a esto- cagem de gás natural trazido da Bolívia ou das reservas re- cém-descobertas na bacia de Santos. Cada uma delas tem potencial para armazenar cerca de 1,6 bilhão de metros cúbicos do gás. A pesquisa foi patrocinada pela Petrobras e

pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que inves- tiu R$ 661 mil no projeto, uti- lizando recursos do Fundo Setorial do Petróleo e Gás Na- tural, o CT-Petro. A Petrobras encomendou a pesquisa há três anos, preocupada em for- mar estoques reguladores de gás natural no Estado de São Paulo, para o caso de haver problemas de fornecimento da Bolívia. O interesse pelos reservatórios aumentou quan- do foram descobertas reser- vas de 400 bilhões de metros cúbicos de gás natural na ba- cia de Santos, a 140 quilôme- tros do litoral paulista. Com a

abundância de gás, haverá incentivos para a ampliação do consumo no país - justi- ficando a existência de reser- vatórios próximos a centros urbanos capazes de prevenir oscilações de fornecimento. A prospecção foi feita com técnicas semelhantes às que procuram reservatórios de petróleo - embora o que se deseje sejam estruturas va- zias. O grupo do IPT visitou países europeus como Fran- ça e Alemanha, pioneiros nesse tipo de estocagem, que garante o fornecimento de gás para o aquecimento das residências. "Os franceses

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são bastante ousados nessa tecnologia e já buscam estru- turas a menos de 500 metros abaixo do solo", diz Wilson Iyomasa, responsável pela pesquisa no IPT. "As nossas ficam entre 500 metros e 2 quilômetros de profundida- de." O próximo passo é fazer um levantamento geofísico tri- dimensional sobre as estru- turas descobertas. Por razões estratégicas, o IPT e a Petro- bras mantêm sigilo sobre a localização dos futuros pólos de estocagem. •

■ Instrumentos de inovação na Internet

Chegou à Internet um inédito instrumento de apoio à inova- ção tecnológica. O portal Mo- bilizar para Inovar (www.ino- var.org.br) é voltado para micros e pequenos empresá- rios e futuros empreendedo- res interessados em conhecer os mecanismos de fomento à inovação e à tecnologia. Traz informações, agenda de even- tos e biblioteca on-line. Na se- ção "Incentivos", as empresas poderão obter informações sobre todas as possibilidades de conseguir incentivos para apoio a iniciativas de inova- ção. "Muitas vezes, os proces- sos são incompreensíveis para estes empreendedores", disse o empresário Jorge Gerdau Jo- hanpetter, presidente do gru- po Gerdau e do conselho su- perior do Movimento Brasil Competitivo (MBC), entidade que criou o portal. O MBC é uma organização de interesse público, apoiada pelo Minis- tério da Ciência e Tecnologia, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) - com R$ 750 mil do Fundo Se- torial Verde e Amarelo - e pelo Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - com R$ 350 mil em bolsas. •

Prêmio Fundação Conrado Wessel

A Fundação Conrado Wes- sel (FCW) anunciou, no dia 20 de maio, os seis ven- cedores do Prêmio FCW nas áreas de Ciência Geral, Ciência Aplicada ao Mar, Ciência Aplicada ao Cam- po, Ciência Aplicada ao Meio Ambiente, Medicina e Literatura. Os nomes fo- ram escolhidos a partir de 118 indicações feitas por 24 universidades federais, cinco ministérios, três uni- versidades estaduais pau- listas - Universidade de São Paulo (USP), Univer- sidade Estadual de Campi- nas (Unicamp) e Universi- dade Estadual Paulista (Unesp) -, além do Insti- tuto Tecnológico da Aero- náutica (ITA) e do Hospi- tal do Câncer. O prêmio foi criado em 2002 com o objetivo de incentivar as artes, ciência e cultura. Os seis vencedores dividirão R$ 600 mil. • O prêmio Ciência Geral foi conferido ao reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz. Engenheiro eletrônico pelo ITA, Brito Cruz foi presidente da FA- PESP por três mandatos consecutivos. Foi premiado por sua pesquisa na área de física experimental, sobre fenômenos ultra-rápidos, eventos que ocorrem em menos de um picossegun- do (intervalo de tempo de 1 trilionésimo de segun- do), além de lasers e semi- condutores. • Dieter Carl Ernst Heino Muehe, professor de pós- graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

Brito Cruz: prêmio por pesquisa em física experimental

ganhou o prêmio Ciência Aplicada ao Mar. Geólo- go, Muehe foi um dos pri- meiros a pesquisar a costa brasileira. • O agrônomo Jairo Vidal Vieira, pesquisador da Em- presa Brasileira de Pes- quisa Agropecuária (Em- brapa), recebeu o prêmio Ciência Aplicada ao Cam- po. Formado pela Univer- sidade Federal de Viçosa e pós-doutorado pela Texas A&M University, Vieira tem se destacado por seu trabalho no melhoramen- to genético de hortaliças. • O prêmio Ciência Apli- cada ao Meio Ambiente foi conferido ao biólogo Philip Martin Fearnside, profes- sor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Fearnside é especia-

lista na análise dos impac- tos da agricultura, pecuária, silvicultura e manejo flo- restal na região. • A descoberta de que a in- flamação crônica tem papel relevante no aparecimento do diabetes tipo 2 rendeu à endocrinologista Maria Inês Schimidt, da Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o prêmio FCW de Medicina. • A escritora Lya Luft, au- tora de Perdas e ganhos e Pensar é transgredir, além de outros 15 título ganhou o prêmio de Literatura. Formada em pedagogia e letras anglo-germânicas pela Pontifícia Universida- de Católica do Rio Grande do Sul, Lya é mestra em Literatura Brasileira e Por- tuguesa pela UFRGS. •

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Page 27: Uma década de avanços desenha o futuro

O salto quântico

"ciência brasileira A pesquisa nacional se profissionaliza, incorpora o trabalho em grupo e melhora sua posição no mundo

MARCOS PIVETTA

A pequena reunião, bem informal, era em i^L casa mesmo, em meio a fraldas e ma-

È ^k madeiras. De licença maternidade (ti- A"""^k nha acabado de ser mãe pela terceira

È ^k vez), a bióloga molecular Marie- -^L. Ji^ Anne Van Sluys, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), então com 34 anos, queria entrar numa nova em- preitada da FAPESP e gostaria de contar com o apoio de dois colegas de unidade: o experiente Car- los Menck, seu marido, e a ainda mais jovem Maria- na de Oliveira, 29. Empreitada que, naquele ano de 1997, ninguém poderia imaginar que fosse dar tão certo e se tornaria um marco na ciência nacional. Marie-Anne iria se candidatar a ser coordenadora de um dos 30 laboratórios que tentariam fazer — e fizeram — o seqüenciamento do genoma da bacté- ria Xylella fastidiosa que provoca a Clorose Variega- da dos Citros (CVC), doença conhecida nos laran- jais como amarelinho. Uma responsabilidade e tanto para essa filha de belgas nascida no Rio de Ja- neiro e com doutorado na França. Afinal, ninguém no Brasil era especialista em genomas. "Havia hie- rarquia entre os grupos, mas todo mundo estava lá para aprender", relembra Marie-Anne.

E aprenderam. Em 13 de julho de 2000, Marie- Anne era uma das 116 assinaturas que constavam do hoje histórico artigo científico sobre o genoma

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Page 28: Uma década de avanços desenha o futuro

da Xylella. Os brasileiros foram os pri- meiros do mundo a seqüenciar o geno- ma de um patógeno que atacava plan- tas. Pelo feito, não só emplacaram seu trabalho na revista inglesa Nature, tal- vez a mais conceituada das publicações científicas, como foram agraciados com a capa do periódico, distinção inédita para a ciência nacional. O ge- noma da Xylella gerou uma repercus- são enorme aqui e no exterior, tanto no meio científico como na sociedade que não vive o dia-a-dia dos laborató- rios de pesquisa. A ficha caiu e, talvez a contragosto, os países desenvolvidos perceberam que aquele gigante da América do Sul era mais hábil e versá- til do que pensavam. "Samba, futebol e... genômica", escreveu The Economist, revista inglesa especializada em econo- mia, mostrando que a ginga e os dri- bles nacionais haviam se espraiado pa- ra um novo campo do saber.

Pelo modo como foi feito, pela re- percussão obtida e pelo perfil e quanti- dade de pessoas envolvidas no projeto, o genoma da Xylella é, efetivamente, um divisor de águas na pesquisa nacio-

nal, a despeito de seus muitos críticos. O projeto serviu de modelo para outras iniciativas de porte, como a rede nacio- nal do programa Genoma Brasileiro, criado no ano 2000 pelo Conselho Na- cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O Genoma Brasi- leiro montou uma rede de 25 labora- tórios, localizados em 15 estados, que decifraram o código genético da Chro- mobacterium violaceum, bactéria de importância para a biotecnologia. Mas, olhando para trás, a notícia mais im- portante não tem a ver com seqüencia- dores e genes. A boa nova, boa mesmo, é que, nos últimos 15 ou dez anos, a ciência nacional como um todo - e não apenas a genômica - cresceu, ga- nhou visibilidade e atingiu patamares de excelência internacional nunca an- tes vistos. De 1990 para cá, triplicou o número de cientistas nas instituições de pesquisa, dobrou o percentual de ar- tigos assinados por brasileiros em re- vistas internacionais indexadas e quin- tuplicou o total de novos doutores formados anualmente no país. "Nesse período, a pesquisa brasileira mudou de

escala, ganhou massa crítica e se pro- fissionalizou", afirma Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex- presidente da FAPESP O sucesso do genoma nacional era apenas a ponta de um iceberg que então começava a despontar e hoje se revela por inteiro.

Inovação e riqueza - Por ora, salto equivalente ao da ciência não aconte- ceu com o chamado setor de inovação, encarregado de transformar as boas idéias que surgem na pesquisa (básica) - feita em geral nas universidades pú- blicas - em produtos, empregos e ri- queza para o Brasil. Um dos indica- dores usados para medir a saúde da pesquisa tecnológica de um país é olhar para a evolução do número de patentes registradas nos Estados Unidos, a maior economia do mundo. Em 1990, o Bra- sil obteve 41 patentes desse tipo (a Co- réia, 225). Em 2001, a situação - a nos- sa, infelizmente - não havia se alterado radicalmente: 110 novos registros para o Brasil e 3.538 para o tigre asiático. É verdade que a quantidade de patentes e

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Page 29: Uma década de avanços desenha o futuro

A pesquisa nacional avança, mas a inovação ainda patina

A ciência brasileira globalizada Um em cada 65 artigos científicos que

saem em revistas internacionais indexadas é de brasileiros, proporcionalmente

o dobro de 1990

A inovação cresce lentamente Em 1990 o país registrou 5,5 vezes menos

patentes nos EUA do que a Coréia. Em 2001 os orientais obtiveram 32 vezes

mais registros do que os brasileiros

Ano de artigos brasileiros em relação ao mundo

de artigos brasileiros em relação à A. Latina

1990 0,64 36,95 1991 0,69 38,39 1992 0,77 39,82 1993 0,75 37,90 1994 0,76 37,59 1995 0,83 38,01 1996 0,90 37,96 1997 1,00 38,19 1998 1,13 40,95 1999 1,25 41,59 2000 1,33 42,11 2001 1,44 43,06 2002 1,55 43,84

Registros concedidos pelo escritório

Brasil

de patentes dos EUA

Coréia

1990 41 225 1991 62 405 1992 40 538 1993 57 779 1994 60 943 1995 63 1.161 1996 63 1.493 1997 62 1.891 1998 74 3.259 1999 91 3.562 2000 98 3.314 2001 110 3.538 ^mtmmmmmlÊl^lm^a^mimmimlllmllmm

Fonte: Institute for Scientiffc Information (ISI) Fonte: Escritório de Patentes e Marcas dos EUA (USPTO)

registros concedidos a residentes no Brasil pelo Instituto Nacional de Pro- priedade Industrial (Inpi), no Rio Ja- neiro, dobrou entre 1995 e 2002, pas- sando de 1.445 para 3.724 concessões. É um quadro animador, sem ser revolu- cionário. "As empresas nacionais ainda não sabem como inovar. É uma ques- tão cultural. Esse tipo de atividade en- volve riscos e demanda tempo", explica Sérgio Rezende, presidente da Financia- dora de Estudos e Projetos (Finep), agência federal de apoio à inovação.

A pesar das dificuldades, houve I^L progressos no setor, como a LJ^ criação em 1995 do progra- i ^L ma Parceria para Inova-

-X- ■ ção Tecnológica (PITE), da FAPESP, que hoje serve como mo- delo para iniciativas semelhantes em outros estados e no âmbito federal. O PITE promove associações entre insti- tuições de pesquisa do Estado de São Paulo e empresas de qualquer porte in- teressadas em desenvolver produtos ou processos produtivos com alto conteú- do tecnológico. Espera-se que a recente

Lei de Inovação, enviada pelo governo federal para apreciação do Congresso Nacional, seja aprovada e abra cami- nho para a transferência efetiva de co- nhecimento dos centros de pesquisa pa- ra as empresas nacionais. Outra aposta é que o dinheiro dos fundos setoriais, criados em 1999 para fomentar a ino- vação, passe a chegar a seu destino. "Co- locar o tema inovação na agenda nacio- nal é fundamental para o país manter sua economia competitiva", diz Carlos Américo Pacheco, do Instituto de Eco- nomia da Unicamp e ex-secretário-exe- cutivo do Ministério da Ciência e Tec- nologia (MCT). O tema pode até ter entrado no discurso oficial, mas a polí- tica industrial ainda não reflete isso. A força da Petrobras, da Embraer e do agronegócio nacional, graças em parte à Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária (Embrapa), é ainda exceção no panorama da inovação.

Três vezes mais artigos - Um dos indi- cadores mais expressivos do fortaleci- mento da pesquisa nacional é o aumen- to no número de trabalhos assinados

por brasileiros em revistas internacio- nais. Em 13 anos, a quantidade de arti- gos científicos escritos aqui e publica- dos em periódicos indexados pela base de dados do Institute for Scientific Infor- mation (ISI) triplicou e o peso da pro- dução nacional dobrou em relação à do mundo. Em 1990, os pesquisadores brasileiros publicaram 3.552 artigos na base de dados do ISI, que monitora a produção científica de 8,5 mil revistas de 21 áreas de estudo. O número eqüi- valia a 0,64% da produção mundial acompanhada pelo ISI. Em 2002, os cientistas nacionais publicaram 11.285 trabalhos e responderam por 1,55% da produção mundial - mais do que, por exemplo, a participação brasileira no comércio global (0,9%). O país firmou sua posição de líder inconteste da ciên- cia na América Latina. Quase 44% dos artigos oriundos dessa parte do planeta carregam hoje o nome de um brasi- leiro. Em 1990, esse índice era de 37% (veja tabela acima). Os números do ISI retratam com fidelidade o salto quanti- tativo e qualitativo que ocorreu com a ciência nacional? Pode até não ser o

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Page 30: Uma década de avanços desenha o futuro

melhor parâmetro desse fenômeno, mas, com certeza, não pode ser ignora- do. "Apenas 10% da produção científi- ca brasileira está em periódicos do ISI", diz Evando Mirra, presidente do Cen- tro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do MCT. "Porém esse indica- dor é importante, pois é aceito interna- cionalmente e permite comparações."

Possibilita, por exemplo, des- cobrir que o Brasil é hoje o 17° produtor de artigos cien- tíficos indexados. Um em ca- da 65 trabalhos publicados

nos periódicos da base do ISI carrega o nome de um cientista nacional. Vinte países emplacam mais de 10 mil artigos por ano em revistas indexadas - e o Brasil é um deles. Dos países que publi- cavam menos do que o Brasil em 1981, apenas a China e a Coréia estão agora em situação melhor do que a nossa. Em 2.002, a China era o sexto produtor de artigos indexados (33 mil trabalhos) e a Coréia ocupava a 14a posição (15 mil ar- tigos). A despeito do processo crescen- te de globalização da ciência, a ativi- dade de pesquisa permanece bastante centralizada nos países mais ricos. Ape- sar de o interesse pela carreira científica estar em declínio entre seus habitantes, os Estados Unidos ainda lideram, com folga, a lista dos países com maior produção científica. Os norte-americanos res- pondem por 33,6 % dos artigos do mundo inde- xados pelo ISI. O segundo colocado, o Japão, fica com 9,5%. Em seguida, apare- cem Reino Unido (9%), Alemanha (8,7%) e Fran- ça (6,2%).

Os dados do ISI tam- bém jogam luz sobre as áreas da ciência nacional que mais publicam lá fo- ra. Considerando toda a produção indexada entre 1998 e 2002, as ciências agrárias lideram esse ran- king. Seus artigos repre- sentaram 2,96% da produ- ção mundial nessa área de pesquisa. Em seguida, vie- ram a física (2,12%), a ciên- cia espacial (1,92%), a mi- crobiologia (1,91%), as ciências de plantas e ani-

mais (1,87%), a farmacologia (1,57%) e a matemática (1,51%). Quem publica mais tem mais chance de ser citado em trabalhos de colegas, daqui ou do exte- rior. De forma mais discreta do que ocorreu com o crescimento no núme- ro de artigos científicos publicados, a quantidade de menções aos trabalhos nacionais também aumentou. Entre 1992 e 1996, cada paper brasileiro foi citado em média 1,8 vez. Entre 1998 e 2002, esse índice estava na casa de duas citações por artigo científico. No entan- to, em todas as áreas de estudos os es- critos dos brasileiros ainda são menos citados do que a média da produção mundial. Com 2,64 citações por traba- lho publicado, índice apenas 16% me- nor que a média mundial, a área de psi- cologia e psiquiatria teve o melhor desempenho nesse quesito. Outro pa- râmetro que mostra a preocupação dos brasileiros em publicar seus trabalhos é a consolidação da Scientiftc Electronic Library Online (SciELO). Financiada pela FAPESP desde 1997, com apoio do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), essa biblioteca eletrônica conta hoje com 123 periódicos brasilei- ros, todos de acesso livre e gratuito. A partir de 2002, o CNPq passou a inves- tir também no SciELO.

Maise melhores cérebros

Em uma década, a quantidade de cientistas em universidades e centros de pesquisa do país triplicou

e a porcentagem de doutores cresceu 9 pontos

Número de pesquisadores % de cientistas com doutorado

1993 1995 1997 2000 2002 1993 1995 1997 2000 2002

Fonte: CNPq

Obs.: Não estão incluídos os pesquisadores de empresas privadas

Por que a ciência brasileira evoluiu tanto nos últimos anos? Resposta: cres- ceu porque há mais gente - e sobretu- do mais gente qualificada - fazendo pesquisa no país. Houve o tal aumento de massa crítica e profissionalização das atividades de pesquisa nas univer- sidades e centros de estudos. Hoje a quantidade de jovens que ingressam na vida acadêmica com um olho na carrei- ra de cientista não pára de crescer.

Mais mulheres - Em apenas nove anos, de 1993 a 2002, triplicou o número de cientistas trabalhando em universida- des e centros de pesquisa, segundo da- dos do CNPq. Pulou de pouco mais de 20 mil para quase 60 mil pessoas, das quais 60% são hoje doutores (veja qua- dro abaixo). Nessas instituições, 46% dos pesquisadores são hoje do sexo fe- minino. "Mas a presença de mulheres na liderança de grupos de pesquisa é um pouco menor, cerca de 41%", afirma Jacqueline Leta, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que realizou um estudo sobre a participação feminina na ciência nacional. O conjunto de pes- quisadores registrados na base de da- dos do CNPq não inclui os cientistas que atuam em empresas privadas, pos- sivelmente mais 30 mil indivíduos.

O aumento no núme- ro de gente fazendo pes- quisa permitiu à ciência nacional tocar projetos mais ambiciosos e, em al- gumas áreas, concorrer de fato com os grandes cen- tros internacionais. "Até a década de 1980, a comuni- dade científica no Brasil era muito pequena. Havia um esquema familiar de produção na pesquisa", co- menta Brito. "Todo mun- do conhecia seus colegas de área pelo nome. Isso já não acontece hoje." As pa- lavras do reitor da Uni- camp, um estudioso das tendências que permeiam a produção científica na- cional, não devem ser en- tendidas como uma crítica às gerações passadas. Não é nada disso. Sempre hou- ve gente qualificada fazen- do ciência de ótima quali-

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Page 31: Uma década de avanços desenha o futuro

dade no país. Só que o nú- mero de pesquisadores era pequeno no passado. Eles formavam um clubinho acanhado e fechado. Não dava para encher um está- dio de futebol com eles. Havia interação entre esses poucos cientistas, mas as colaborações eram fruto essencialmente do círculo de relações de amizade e conhecimento do pesqui- sador - e não de projetos ou programas pensados pela comunidade científica e agências de fomento. "Havia colaborações fortui- tas entre os pesquisadores. Agora essas colaborações são institucionais", afirma José Fernando Perez, dire- tor científico da FAPESP. Houve também um ama- durecimento dos grupos de pesquisa no país. "Eles su- peraram a antiga visão de competição e passaram a mais", comenta Perez.

Sangue novo na pesquisa

0| jaís forma hoje cinco vezes mais doutores do que no início da década passada

Número de novos doutores titulados

7.300 6.843.

6.042^

4.853

3.949 ^H 3.497 ^iH

2.497 ' ^^

1.410 1.750 1.759 1.875JS^^ m

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003*

*Dado preliminar

Fonte: Capes/Coordenação de Estatísticas e Indicadores do MCT

cooperar

Responsável por cerca de 50% da pesquisa produzi- da no país, o Estado de São Paulo foi pioneiro nesse novo jeito de fazer ciência,

dando ênfase a projetos maiores e mul- tidisciplinares que estimulassem o tra- balho em equipe em busca de resulta- dos de maior impacto. Criados em 1990, os projetos temáticos da FAPESP são um exemplo da ciência nacional que entrou na maioridade e deixou a adolescência para trás. Até 2001, a Fun- dação havia investido R$ 230 milhões em 624 projetos de todas as áreas exa- tas, biológicas e humanas. Mais organi- zada e com mais gente, a pesquisa pôde abraçar empreitadas ambiciosas, como o programa Biota, um instituto virtual, sem sede física, que congrega 500 cien- tistas com o objetivo de levantar toda a biodiversidade paulista. Também pro- tagonizou lances ousados como a cos- tura político-financeira que permitiu a entrada do Brasil num empreendimen- to internacional e, literalmente, astro- nômico: a construção do Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica, o Soar, recém-inaugurado no Chile. O obser- vatório não tem concorrente em terra

firme - seu competidor está no espaço, o telescópio Hubble - e deve dar um im- pulso sem precedentes à astrofísica nacional. Do custo total do projeto, US$ 28 milhões, o país entrou com US$ 12 milhões e adquiriu o direito de usar 34% do tempo de observação do teles- cópio montado nos Andes {veja adian- te reportagem sobre o Soar).

No plano federal, também houve iniciativas recentes que estimularam o trabalho multidisciplinar e multicên- trico, juntando competências comple- mentares para investigar grandes temas da ciência, básica ou aplicada. A criação do programa Institutos do Milênio, em 2001, pelo MCT/CNPq, se insere nesse contexto. Esses projetos promovem o trabalho em rede de um conjunto de cientistas dispersos, às vezes em dife- rentes instituições e estados. Hoje há 17 Institutos do Milênio, dedicados a te- mas tão diversos como polímeros, na- nociências, matemática, terapia celular, recursos costeiros e genoma dos citros. Outra iniciativa vinda de Brasília que animou os pesquisadores brasileiros foi o lançamento em 1996 do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pro- nex). "Esses dois programas represen- tam novas formas de financiamento de longo prazo e são idéias muito boas", avalia Luiz Davidovich, do Instituto de

Física da UFRJ e coordenador do Insti- tuto do Milênio sobre informação quân- tica. "Mas apresentam problemas em sua implementação."

Descontinuidade de verbas - Proble- mas de implantação é a forma polida de aludir à crônica descontinuidade das verbas federais para a ciência e tecnolo- gia. O país dedica ao setor cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB), dos quais 60% vêm do poder público (go- verno federal e, em menor escala, os estados) e 40% da iniciativa privada. Nações desenvolvidas canalizam, pro- porcionalmente, o dobro ou o triplo para o setor. No Brasil ainda é pequeno o investimento privado em pesquisa, mas a situação já foi pior. Há alguns anos, as verbas das empresas represen- tavam 10% do total despendido aqui em ciência. "A meta é investirmos pelo menos 2% de nosso PIB em pesquisa, com maior participação do setor pri- vado", diz o médico Eduardo Moacyr Krieger, do Instituto do Coração (In- cor), de São Paulo, e presidente de Aca- demia Brasileira de Ciências (ABC). Devido ao respaldo da FAPESP e a uma trinca de universidades estaduais de primeira linha (USP, Unicamp e Unesp), São Paulo é um estado privile- giado no cenário nacional. Sente me-

32 ■ JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

Page 32: Uma década de avanços desenha o futuro

nos as oscilações no tamanho do orça- mento destinado pelo Planalto para a pesquisa (veja abaixo tabela com a evo- lução da verba federal para a ciência nos últimos anos).

Nos outros estados, cujo sistema público de ciên- cia depende em maior medida do dinheiro de Brasília e da infra-estru-

tura existentes nas univer- sidades federais, a vulne- rabilidade é maior e gera situações quase surreais. "Há ilhas de excelência num mar de miséria", afir- ma Davidovich. "Temos aqui na UFRJ laboratórios modernos em prédios sem lâmpadas, com goteiras e paredes com risco de de- sabar." Para minorar esse quadro, grupos de ponta de vários estados brasilei- ros procuram estabelecer parcerias com centros em melhor situação financei- ra. "Nos momentos de cri- se, a saída é intensificar a cooperação com colegas de São Paulo e do exterior", diz o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universida- de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Se não houve um au- mento expressivo - e per- manente - no volume de verbas destinadas para a ciência nacional, o que ex- plica a ascensão da pesqui- sa brasileira, reconhecida até no exterior, a partir dos anos 90? A resposta é um segredo de Polichinelo. O Brasil deu se- qüência a uma política de Estado, ini- ciada na década de 1960, e construiu um sistema de pós-graduação, em es- pecial nas universidades públicas. É da pós que sai o fermento que faz o bolo da pesquisa nacional crescer: os novos doutores. Até a década 1980 não havia alternativa para muitos aspirantes a cien- tistas que queriam se especializar em áreas de ponta: o caminho mais curto para o doutorado era o aeroporto. Conseguia-se uma bolsa de alguma agência de fomento nacional (ou até

avião com destino aos Estados Unidos ou Europa. Hoje não é mais assim. "Na minha época, era preciso ir ao exterior para se especializar em biologia mole- cular de plantas", relembra Marie-Anne Van Sluys. "Agora é possível fazer o doutorado aqui, aprendendo as técni- cas de ponta."A pós-graduação se dis- seminou pelo país. Em 1990, os progra- mas nacionais de pós-graduação formaram 1.410 doutores. Ano passa-

A incerteza das verbas de Brasília

Total de recursos federais aplicados em Pesquisa & Desenvolvimento

(em bilhões de reais de 2002)

1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Gráfico elaborado pelo MCT

Obs: Valores monetários expressos em reais de 2002, Atualizados pelo Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas (FGV)

mesmo do exterior) e tomava-se um

do, cerca de 7.300 pessoas receberam esse título em território nacional (veja gráfico na página ao lado).

O futuro da ciência brasileira, e em especial do setor de tecnologia e ino- vação, depende das oportunidades que serão criadas para essa crescente leva de doutores, um capital humano pre- cioso. No século 21, poucos países titu- lam a quantidade de doutores que o Brasil forma anualmente. Mas qual será o destino dessa mão-de-obra altamen- te especializada? Nos centros nacionais de pesquisa não há - e não pode haver - vagas para todos esses candidatos a

cientistas. Ainda assim, uma parte de- les será absorvida nas universidades e, se devidamente financiada e estimula- da, poderá elevar a excelência e o peso da pesquisa (básica) nacional. Alguns doutores, inevitavelmente, emigrarão para os grandes centros internacionais. E os outros? O rumo de um bom nú- mero desses jovens pesquisadores de- verá ser a iniciativa privada, onde po- dem resolver dois problemas: um de

ordem pessoal (arrumar emprego) e outro de or- dem estrutural para a economia do país (impul- sionar o setor de pesquisa e inovação no meio em- presarial).

No final do mês passa- do, José Fernando Perez, da FAPESP, e Fernando Reinach, do Instituto de Química da USP e presi- dente da Alellyx, empresa nacional de biotecnolo- gia, fizeram uma proposta para patrocinar o casa- mento dos novos douto- res com a inovação: em- presas que contratarem doutores para a realização de atividades de Pesquisa e Desenvolvimento fica- riam desoneradas de todos os encargos sociais refe- rentes ao recrutamento desses indivíduos. O in- centivo valeria somente durante os dez primeiros anos subseqüentes à ob- tenção do título de dou- tor. Os autores da idéia calculam que 50 mil no- vos doutores poderiam ser beneficiados pela propos-

ta nos próximos dez anos. "O impacto dessa medida seria imediato", dizem Perez e Reinach. "Os custos para con- tratação de doutores teriam uma redu- ção de 50%." Para as empresas, um dos insumos mais caros de um departa- mento de pesquisa é o recrutamento de cérebros. O subsídio proposto pode ge- rar o círculo virtuoso de que o Brasil tanto precisa: mais emprego, mais em- presas de base tecnológica, mais inves- timento privado na pós e maior proxi- midade da universidade e da indústria. A ciência nacional já deu um salto. Agora é a vez da inovação. •

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 33

Page 33: Uma década de avanços desenha o futuro

CAPA

Construção do Soar cria um modelo de avaliação de empreendimentos de grande porte

CARLOS FIOR,

J oi durante uma partida de tênis, em uma tarde ensolarada de sábado em janeiro de 2000, que Luis Herrera Árias acei- tou a coordenação da construção da cúpula do telescópio Soar - uma semi-esfera de 14 metros de altura que desliza com delicadeza sobre um anel metálico de 20 metros de diâ-

metro. Dois anos depois, Herrera estava no alto de uma montanha dos Andes chilenos, o Cerro Pachón, a 2.700 metros de altitude, à frente de 15 homens que montavam as peças feitas no Brasil, todos com rou- pas vermelhas e encapuzados, na esperança de escapar do frio de 8 graus negativos.

"Era horrível", comenta o engenheiro de 66 anos, ainda hoje um parceiro de tênis de César Ghizoni, o diretor da empresa que o contra- tou, a Equatorial, de São José dos Campos. "Não conseguíamos ficar mais de meia hora seguida nas escadas, a 12 metros do chão." E havia neve, muita neve: mesmo nascido no Chile, Herrera nunca tinha visto tanta neve. Por duas vezes, na iminência de uma tempestade, teve de aban- donar o observatório com sua equipe, sob o risco de ficarem isolados no alto da montanha sabe-se lá por quanto tempo. "Lá fora", lembra- se, "ninguém enxergava mais nada." O vento branco se intensificava e, horas depois, deixaria o solo coberto por 1 metro e meio de neve.

Como uma casa, que depois de pronta silencia as vozes que a cons- truíram, as obras cientificas tendem a deixar para trás quem atuou nos bastidores e criou os caminhos a serem seguidos pelos que vêm depois. Foi assim com o Soar - o Southern Observatory for Astrophysical Re- search ou Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica -, inaugurado sob um céu azul e um tempo amigável no dia 17 de abril. O processo de avaliação pelo qual passou esse projeto criou um modelo de financia- mento de empreendimentos de grande porte, adotado a seguir em dois projetos semelhantes: o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, em construção na Argentina, no qual o Brasil participa ao lado de 16 países, e o Detector de Ondas Gravitacionais Mario Schenberg, inteira- mente nacional, com início de operação previsto para o próximo ano.

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"Com o Soar, a FAPESP ganhou um ] novo olhar para projetos de construção de grandes equipamentos, especialmen- te os internacionais", diz José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP, uma -< N

raquele momento, haviam se passado dez anos des- de que os astrofísicos brasileiros chamaram a atenção a respeito da im-

M das instituições que financiaram o ob- servatório no Chile, com cerca de US$ 3,2 milhões, junto com o Conselho Na- cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que liberou US$ 10 milhões. Duas estratégias adotadas

Forno da Italbronze: trabalho com pesquisadores cria desafios às empresas

to - além, evidentemente, da relevância científica - passaram a nortear a avalia-

vimento dos pesquisadores em todas as etapas de trabalho, do projeto à opera- ção dos aparelhos, e a construção dos próprios instrumentos, na medida do possível, pela indústria nacional. "Proje- tos dessa envergadura devem servir para desenvolver a competência do país em instrumentação de precisão", destaca Pe-

bilidades com a instrumentação do que em outras atividades em que podería- mos aprender menos." Foi essa a razão pela qual a FAPESP liberou cerca de US$ 1 milhão para um projeto independen- te, ainda que complementar ao Soar: a construção de um instrumento bastante refinado - um espectrógrafo -, que de-

do surgiram e de que são feitas.

Oportunidade - A maior lição dessa his- tória talvez seja esta: aprenda a virar o jogo quando necessário. No início, o Soar era uma idéia acalentada apenas por instituições norte-americanas - o National Óptica] Astronomy Observa- tories (Noao) e quatro universidades. João Steiner, astrofísico da Universida- de de São Paulo (USP), descobriu uma brecha para o Brasil em 1993, quando participava de uma reunião nos Esta- dos Unidos como representante do país no Gemini, conjunto de dois telescó- pios com espelhos de 8 metros de diâ- metro, um no Havaí e outro no Chile. Soube então que a equipe do Noao, em paralelo ao Gemini, havia iniciado o projeto de um telescópio menor, mais

metros de diâmetro. Só que teve de congelar os planos com a desistência de dois parceiros, a Universidade de Co- lumbia e a Universidade do Colorado. Era a oportunidade que o Brasil espe- rava havia muito tempo.

telescópio com espelho de 4 metros de diâmetro: seria uma forma de suprir as futuras lacunas do telescópio de 1,6 metro do Laboratório Nacional de As- trofísica (LNA), inaugurado em 1981 no município mineiro de Brasópolis. Sem aparelhos mais potentes, a astrofí- sica, uma das áreas mais produtivas da ciência nacional, correria o risco de fi- car para trás no cenário internacional. Nesse tempo, o Brasil tinha se tornado um dos sete países do Gemini, mas com direito a apenas 2,5% do tempo de uso, o equivalente a 14 noites por ano. Faltava algo de porte intermediário, se possível com um tempo mais generoso, que ajudasse os cerca de 200 grupos de pesquisa do país a selecionar os objetos celestes a serem estudados mais detida- mente no Gemini. Steiner foi, portanto, bem recebido ao apresentar a perspec- tiva de parceria com as instituições norte-americanas que se mantinham no projeto - o Noao, a Universidade da Carolina do Norte (UCN) e a Universi- dade Estadual de Michigan (MSU).

Mobilizada como uma possível fon- te de recursos, a FAPESP, como de há- bito, consultou especialistas brasileiros - os assessores externos ou ad hoc, que permanecem anônimos para que pos- sam avaliar as propostas com isenção.

pequena participação brasileira na de- finição do projeto do telescópio, que

-america- nos. Mas, em vista da complexidade do projeto, que impôs a necessidade de um diálogo mais intenso com os pes- quisadores, a fórmula tradicional de avaliação dos pedidos de financiamen- to não era a mais adequada - e a Fun- dação adotou então a assessoria aberta,

pesquisa de genomas. Além de especialistas brasileiros, a

exemplo de Herch Moysés Nussenz- veig, físico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de reconhecida competência, e de Cylon Gonçalves da Silva, que havia coordenado a constru- ção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), a Fundação convi-

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dou dois experientes astrofísicos euro- peus: o inglês Roger Davies, da Univer- sidade de Durham e representante do Reino Unido no Gemini, e o italiano Massimo Tharenghi, gerente do projeto Very Large Telescope (VLT), um dos qua- tro telescópios com espelho de 8 metros do Observatório Europeu do Sul (ESO), erguidos também nos Andes chilenos com um orçamento de U$ 700 milhões - o do Soar era de US$ 28 milhões.

Em uma quarta-feira, 13 de dezembro de 1995, come- çou um encontro de dois dias promovido pela FA- PESP que mudaria os ru-

mos do projeto Soar. Os debates deixa- ram evidente a importância de um telescópio desse porte para a astrofísica brasileira continuar enxergando longe e manter o ritmo das pesquisas sobre a origem e a composição das estrelas, a evolução de galáxias e a distribuição de massa do Universo. Na sexta, Davies e Tarenghi reuniram-se a sós e elabora- ram um documento de sete páginas, com uma análise das linhas gerais do projeto e algumas recomendações. A mais estratégica delas: a comunidade científica brasileira deveria ter voz ativa e mais crítica, em vez de se limitar ao papel de financiador e usuário do equi- pamento, como havia acontecido no Gemini. "Os assessores sugeriam que o Brasil visse o projeto apenas como ras- cunho, embora tivesse sido apresenta- do como mais ou menos concluído, e explorasse outras alternativas que aten- dessem plenamente aos interesses dos grupos de pesquisa brasileiros", recorda Luiz Nunes, atual pró-reitor de pesqui- sa da USP que foi um dos articuladores dessa reunião, então como assessor da Diretoria Científica da FAPESP. "Era como escolher entre comprar um carro ou construir um."

Na avaliação dos assessores, o Brasil deveria também definir claramente os objetivos científicos a serem persegui- dos com o Soar. Os grupos de pesquisa foram consultados e, um ano e meio de- pois, estava claro como deveria ser o te- lescópio de que o país realmente precisa- va. Como não era exatamente o que os norte-americanos imaginavam, come- çaram as propostas de ajustes do proje- to original, que acabou mudando em alguns pontos essenciais. Os brasileiros preferiam um detalhamento de ima-

gem - ou resolução - maior, ainda que com uma área observada menor. Os parceiros cederam: a mudança também atendia aos interesses deles.

"Por termos optado por uma área menor e maior resolução, ganhamos uma vantagem competitiva", comenta Steiner. "Hoje só temos um rival, o Hubble." Por fim, os brasileiros acaba- ram assinando os projetos óptico - obra de Gilberto Moretto, hoje consul- tor da Nasa - e elétrico - de Oliver Wie- cha, que hoje cuida de um telescópio semelhante, em construção nos Esta- dos Unidos. "A FAPESP só aprovou o financiamento depois que o projeto foi redesenhado de forma a responder cla- ramente aos interesses científicos da comunidade astronômica brasileira, que tiveram de ser previamente enun- ciados", comenta Perez.

Finanças - O Soar viveu uma en- genharia financeira peculiar. Em uma articulação inédita, o go- verno federal e as fundações de apoio à pesquisa em São Pau- lo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul se uniram para co- brir os US$ 14 milhões que o Brasil teria de liberar ao longo da construção do telescópio - depois, essa participação passou pa- ra US$ 12 milhões em capital e US$ 2 milhões em 20 anos, cobrindo parte dos custos da ope- ração, com a vantagem de o país ganhar experiên- cia no gerenciamento de projetos desse tipo.

Um convênio de coo- peração assinado em no- vembro de 1998 estabelecia que o CNPq entraria com US$ 2 milhões, a Financiado- ra de Estudos e Projetos (Finep) com US$ 1,7 milhão, a FAPESP com US$ 3,1 milhões e as Funda- ções de Minas (Fapemig), do Rio (Fa- perj) e do Rio Grande do Sul (Fapergs) com US$ 860 mil cada uma. Mas essa equação mudaria bastante: a crise finan- ceira que o país atravessou em 1999, com a alta repentina do dólar, somada às instabilidades políticas geradas pelas eleições estaduais do ano anterior, invi- abilizou a participação das fundações do Rio, Minas e Rio Grande do Sul.

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I

Em outro lance inédito, a FAPESP havia assumido uma dívida do CNPq com os pesquisadores paulistas no valor de US$ 3,2 milhões, correspon- dente à participação do Estado de São Paulo no Soar. Mais tarde, o CNPq en- viou diretamente ao projeto a parcela da Fundação e completou a cota brasi- leira, cobrindo a participação das ou- tras fundações.

O Brasil, que entrou de mansinho, tem direito a 34% do tempo de uso, o equivalente a 127 noites por ano, de um aparelho de primeira linha. Se- gundo Steiner, entre os outros oito te- lescópios com espelhos de 4 metros em operação no mundo, não há outro tão moderno - com um espelho pri- mário tão fino, de apenas 10 centíme- tros de espessura, mantido fixo por meio de 120 pontos de apoio, e um

mecanismo de correção de imagem, o tip-tilt, que desfaz deformações

da luz com comprimento de on- da de até 50 hertz - cinco vezes

acima do máximo do tip-tilt do Gemini.

Desafios - Esse projeto am- pliou a competência nacio- nal em construir instru- mentos de precisão. De fato, o protótipo do espec- trógrafo, já em uso junto ao telescópio de Minas, exibe uma inovação: as fibras ópticas que se li- gam às 553 microlentes têm um diâmetro de 50 micrômetros (1 micrô- metro corresponde a 1 milésimo do milímetro), a metade do habitual. A

versão definitiva está em fa- se de montagem, em con-

junto com a Leg Tecnologia, de São José dos Campos, e

deverá seguir para o Chile no próximo ano. Jacques Lépine, di-

retor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas

(IAG) da USP e coordenador do pro- jeto, segura com extremo cuidado uma de suas peças principais: um bloco de vidro mais largo que um tablete de chocolate, com 1.300 lentes, às quais serão coladas as fibras ópticas que vão conduzir a luz para ser analisada no espectrógrafo. Com uma perda de luz cabe na palma da mão custa cerca de

US$ 50 mil. "Queremos estar no pata- mar mais competitivo que existe", co- menta Lépine.

Para os pesquisadores que trabalham no Soar e nos projetos semelhantes, lidar com as empresas é uma forma de refinar a arte do

diálogo. Odylio Aguiar, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Es- paciais (Inpe), percorreu quatro fun- dições antes de chegar à Italbronze, de Guarulhos, na Grande São Paulo, a única que se dispôs a construir a peça básica do Detector Mario Schenberg, cujo propósito é registrar as ondas gra- vitacionais, previstas na Teoria da Re- latividade, mas ainda imperceptíveis aos outros 10 equipamentos similares já em operação no mundo. À frente do projeto, que conta com cerca de US$ 1 milhão da FAPESP, Aguiar pensava em uma esfera maciça de bronze de 3 me- tros de diâmetro. Após ver os custos e as dificuldades de produção, conten- tou-se com uma de 65 centímetros de diâmetro, mesmo assim pesando 1,15 tonelada. "Foi um trabalho inédito", recorda Jaime Jimenez, gerente-geral da Italbronze. A empresa, que nunca tinha feito nada maciço nessas di- mensões nem com esse tipo de bron- ze, sem estanho, fundiu depois ou- tras duas esferas semelhantes para a equipe da Holanda que trabalha com os brasileiros.

Carlos Escobar, físico da Univer- sidade Estadual de Campinas (Uni- camp), está em contato com empresas mais intensamente desde 2000, quando assumiu a coordenação da equipe bra- sileira de um projeto que enfatiza o de- senvolvimento da instrumentação: o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, do qual a FAPESP participa com R$ 1,6 milhão e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) com R$ 600 mil. Sua experiência indica que as empresas apuram o controle de quali- dade em projetos dessa envergadura. Não é o único ganho. "Depois de con- viver com os pesquisadores, a equipe de engenharia amadurece, perde o medo de errar e começa a buscar soluções mais criativas", conta César Ghizoni, diretor da Equatorial, que atendeu também o Pierre Auger e, a propósito, foi quem ganhou aquela partida de tê- nis contra Luis Herrera. •

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ENTREVISTA: FERNANDO REINACH

A revolução

CLAUDIA IZIQUE E MARILUCE MOURA

anunciada

Fernando Reinach, 47 anos, é uma personagem rara - pelo menos ain- da - tanto no ambiente científico quanto na cena empresarial brasi- leira. Pesquisador respeitado em bio-

logia molecular, um dos mentores, em 1997, e, logo a seguir, um dos coordenadores do pri- meiro projeto genoma brasileiro, o da Xylella fastidiosa, que contribuiu decisivamente para mudar os padrões da pesquisa nacional, Rei- nach é hoje também um executivo bem-suce- dido no mundo dos negócios. É diretor-execu- tivo da Votorantim Ventures, fundo de capital de risco do maior grupo privado nacional, des- tinado a fomentar empresas de base tecnoló- gica, e vice-presidente-executivo da Alellyx Apllied Genomics, a primeira dessas empre- sas que o fundo ajudou a nascer.

Voltado para a bioquímica de músculos no doutoramento em Cornell, nos Estados Uni- dos, e depois no pós-doutoramento em Cam- bridge, Inglaterra, Reinach retornou ao Brasil, em 1986, com um sentimento de autonomia forte o suficiente para prestar concurso de professor no Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP) sem, diga- mos, pedir licença ou as bênçãos de qualquer dos grandes mestres da área. Entrou, avançou e rapidamente alcançou o topo da carreira, ou seja, tornou-se professor titular aos 35 anos - posto do qual está licenciado no momento. Ao mesmo tempo, ele retornara contaminado pelo espírito empreendedor que impulsiona- va o desenvolvimento da biotecnologia nos Estados Unidos e por essa razão criou a Ge- nomics, a primeira empresa brasileira a fazer testes de paternidade, que passou adiante em 2003. No início de 2004, Reinach foi escolhido pela revista Scientific American (edição norte- americana) como um dos 50 Líderes de Ne- gócios de 2003, ao lado de, por exemplo, Ste-

ve Jobs, fundador da Apple, entre outros em- preendedores de destaque em todo o mundo - sem dúvida, um reconhecimento e tanto.

Vê-se, portanto, que Fernando Reinach é uma exemplar figura de síntese, espécie de metáfora concreta de um processo funda- mental da economia contemporânea, lato sensu, que vai da descoberta científica, facili- tada por uma profissionalização intensiva do métier de pesquisador, à produção de riqueza via apropriação e transformação do conheci- mento, ou seja, inovação tecnológica, em pro- dutos e serviços pelas empresas. Com esse cabedal, ele tem uma visão privilegiada do processo de mudança por que vem passando a pesquisa no país, suas facilidades e seus grandes obstáculos, de que dá clara mostra na entrevista a seguir:

■ Pode-se considerar o projeto de seqüencia- mento do genoma da Xylella fastidiosa, de 1998 a 2000, o marco de uma nova forma de produ- zir ciência no país? — Penso que sim. Mas antes da Xylella acon- teceram algumas coisas nesse sentido. A pes- quisa no Brasil teve várias fases. A primeira, até a década de 1970, era a dos "coronéis", di- gamos, a dos catedráticos. A comunidade cien- tífica era pequena, mas existiam grandes pes- quisadores. Esse quadro evolui para uma outra situação, mais profissional, que coinci- de com uma profissionalização da própria FAPESP, não só das pessoas, mas do próprio processo de financiamento. Qualquer pessoa com as credenciais corretas podia ir à Funda- ção pedir apoio. Foi nesse período que come- cei a trabalhar na Fundação, em 1994, com Perez (José Fernando Perez, diretor científi- co). E foi nessa fase que ocorreu um movi- mento interessante puxado por Rogério Me- neghini e Hugo Armelim, cuja máxima era a

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seguinte: quem faz pesquisa tem que publicar. Tornou-se inaceitável não pu- blicar. O passo seguinte foi publicar em revistas qualificadas, para produzir im- pacto. Foi uma mudança cultural que aconteceu primeiro em São Paulo e só depois no resto do país. E isso, acredi- to, está acontecendo agora no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnológico).

■ Ou seja, formou-se uma noção clara pa- ra os pesquisadores de que, além de pes- quisar, os resultados da investigação de- veriam ter projeção no mundo. — Acho que essa noção já existia. Entre os professores tradicionais, a publicação de artigos era valorizada, mas, se não se publicasse, tudo bem. Esse processo de mudança - profissionalização e forma- lização do apoio, estímulo à publicação — começou a dar espaço para os jovens pesquisadores fazerem o que queriam, independentemente do professor titular. Não era mais necessária a sua bênção pa- ra se apresentar um projeto à FAPESP. Começou a se desmontar um aparato hierárquico muito rígido. Os institutos de pesquisa começaram a contratar pes- quisadores porque eram competentes e o resultado foi uma maior diversidade de temas e mais liberdade de pesquisa. Surgiu assim um grupo de pessoas re- lativamente jovens, independente dos mais velhos, uma espécie de classe mé- dia na ciência. Eu sou dessa geração. Fui contratado na Bioquímica e não era filhote de ninguém. Não tinha feito dou- toramento lá, ninguém me conhecia ali. Houve, portanto, uma espécie de moder- nização da ciência e a criação de uma geração independente. Já trabalhando na FAPESP como coordenador de bio- química, reparei que existia uma massa crítica de pessoas começando a mexer com biologia molecular e não necessa- riamente alinhadas a um grande pro- fessor. E isso foi central para o sucesso metodológico da Xylella, que não pre- cisou da bênção dos grandes titulares.

uA essa altura, os grandes titulares já es- tavam distantes das novas questões que a biologia molecular colocava. — Tínhamos a genética clássica e aí surgiu a biologia molecular. A mudan- ça foi tão rápida que uma parte dos ve- lhos pesquisadores não a acompanhou. Eles não entendiam a nova tecnologia que os mais jovens compreendiam mui-

to bem. Mas há ainda outro fenômeno que ocorreu na biologia, de maneira global, e que já tinha ocorrido na física, alguns anos antes, que contribuiu para a concepção do projeto da Xylella. Até a Segunda Guerra Mundial, a física avan- çava por meio de grandes contribuições individuais. Até que começaram a des- pontar os grandes projetos, como o da bomba atômica ou o dos grandes ace- leradores, por exemplo, e os problemas ganharam tal magnitude que uma pes- soa sozinha já não dava conta. Começou então a nascer esse conceito de que cer- tos problemas eram grandes demais pa- ra uma só pessoa. Apesar de existir ótima ciência feita por uma só pessoa, come- çou a surgir a ciência feita por grandes times. Na biologia isso levou muito mais tempo. Talvez tenha se iniciado justa- mente com os projetos genoma.

■ Mas, em São Paulo, já existiam desde 1990 os grandes projetos temáticos que congregavam grupos de pesquisadores. — Era diferente. A colaboração cientí- fica sempre existiu. Os temáticos eram isso: cada um fazia um pedaço e assim era possível ir mais longe. Mas, se não tivesse a colaboração, era possível fazer sozinho. Não havia a necessidade abso- luta de se fazer junto, como foi o caso da Xylella. Em paralelo à necessidade de atacar os problemas com o trabalho conjunto de muita gente, sem o que nada funcionaria, também vivi na FA- PESP o processo de as máquinas torna- rem-se mais sofisticadas, muito caras. Não dava mais para cada um ter a sua, era preciso ter equipamentos coletivos, como acontecera bem antes na física, com os aceleradores. Foi nesse mo- mento que começaram a surgir os pri- meiros projetos genomas e constata- mos que a nossa biologia molecular estava ficando para trás. O Perez então sugeriu: precisamos de um grande pro- grama para botar a biologia molecular para a frente. Eu tinha a sensação mui- to concreta de que tínhamos massa crí- tica, os projetos genoma lá fora haviam ocorrido de uma maneira colaborativa. Ora, para dar um salto quântico na qualidade da nossa biologia molecular, por que não montar um desses?, inda- gamos. Portanto, havia uma série de fa- tores favoráveis ao projeto da Xylella que estavam acontecendo bem embai- xo de nosso nariz e conseguimos vê-los. Assim, quando propusemos o projeto

genoma, ele foi revolucionário. Encon- trou uma resistência muito grande do pessoal mais velho, mas eles não tinham mais poder sobre os jovens.

■ Qual era o argumento para a resistên- cia? — Dizia-se que aquilo era um trabalho de macaco, que não era ciência. Afirma- va-se que era mais importante cada la- boratório ganhar mais dinheiro do que trabalhar colaborativamente. Era, enfim, a resistência à mudança. E só consegui- mos fazer o projeto porque os jovens que tinham conseguido entrar no sistema já não estavam sob o domínio do pessoal mais velho. Quando lançamos o edital para a seleção dos laboratórios, foi esse pessoal novo que disse "eu faço". Quan- do os mais velhos disseram "nós não va- mos entrar", isso foi muito sintomático do que estava ocorrendo.

■ Vocês tinham a expectativa de que os pesquisadores mais velhos aderissem? — Eu fiz uma aposta com Perez, cujos termos não lembro bem, mas previa o número de propostas que seriam apre- sentadas. Nosso medo era ninguém se inscrever para o projeto. Eu disse que seriam até 50 laboratórios e ele, que se- riam mais de 50 - Perez ganhou. É gra- tificante constatar que, de repente, hou- ve uma geração que fez um dos mais importantes projetos de pesquisa do Brasil sem autorização. E deu um pulo à frente. Em geral, em ciência, os mais velhos vão morrendo, os novos vão as- sumindo, daí vem a geração de baixo etc. Ali, não: uma nova geração assu- miu e deu o pulo. Esse aspecto foi revo- lucionário. Veja, eu tinha 41 anos e pro- vavelmente era o mais velho. Andrew Simpson, coordenador de DNA do pro- jeto, Paulo Arruda e eu éramos os mais ve- lhos. A maioria tinha entre 25 e 30 anos. No esquema antigo da ciência brasilei- ra eles não teriam nenhum espaço.

■ Como é que vocês estabeleceram o pro- jeto e, posteriormente, o organismo que ia ser seqüenciado? — Depois de observarmos as taxas de penetração da ciência nacional, verifica- mos que a porcentagem de papers bra- sileiros estava aumentando em todas as áreas, menos na biologia molecular, que evoluía mais lentamente. Não tanto por- que crescesse devagar no Brasil, mas porque ela estava crescendo muito rá-

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pido fora do país. Daí, o Perez falou que precisávamos fazer alguma coisa. Pri- meiro surgiu a idéia de fazer um proje- to de infra-estrutura, comprar equipa- mentos etc. Já tinha saído aí o primeiro paper do Craig Venter sobre o genoma. Num final de semana, em Io de maio de 1997, eu estava no sítio em Piracaia, e pensei: pô, em vez de fazer um proje- to de infra-estrutura, vamos fazer um projeto de genoma, juntar todo mundo num objetivo único. Em vez de dar equipamento para todo mundo, vamos fazer um projeto em cima de um tema. Era uma idéia, para mim, muito estra- nha. Eu liguei para o Perez, que estava em Santos, e ele veio até o sítio. Con- versamos e a idéia se cristalizou.

■ Por que a idéia lhe parecia estranha? — Sempre existiu uma polêmica no Brasil - e ainda existe hoje - entre a ciência espontânea e a ciência induzi- da. Quando um governo fala em finan- ciar determinado tema, em geral a ciên- cia a partir daí produzida não é tão boa. Isso ocorre quando alguém que não é cientista resolve decidir o que o cientis- ta tem que pesquisar. O oposto disso é quando se diz: você faz o que quer e a gente dá o dinheiro. Um exemplo im- portante de ciência induzida: depois que o presidente Kennedy pôs o homem na Lua, Nixon decidiu curar o câncer. É uma coisa meio prepotente dos admi- nistradores. No Brasil, o governo federal sempre tendeu a fazer ciência induzi- da. Eu sempre fui contra. A experiência mostrava que isso não dava certo. E a idéia que eu tive era justamente desse tipo. Tive uma resistência pessoal contra a minha própria idéia. Perez, no entan- to, considerou que era diferente: "Não estamos dizendo que genoma vai ser", ele argumentou. "Isso vai sair das pró- prias pessoas." Mas tínhamos que en- frentar vários problemas: como escolher o genoma, organizar o projeto etc.

■ Nesse momento em que o professor Pe- rez foi a seu sítio em Piracaia, vocês não tinham claro qual seria o organismo a ser seqüenciado? — Não. Sabíamos que ia ser uma bacté- ria. O genoma tinha que ser grande o su- ficiente para envolver um número gran- de de pessoas e pequeno o bastante para conseguirmos fazer com a tecnologia que teríamos. Deveria representar um gran- de desafio, mas que não fosse inviável. Nessa época eu trabalhava três meses por ano nos Estados Unidos, e foi lá que escrevi o primeiro documento do projeto, a pedido de Perez. Eu tinha tra- balhado na Inglaterra com o Bob Wat- terston e com o John Sulston, que fize- ram o genoma humano. Conversei com os dois antes de elaborar o documento e eles acharam que dava para fazer.

■ Nesse momento continuava-se sem idéia da bactéria que seria seqüenciada? — É, não tínhamos noção da bactéria. No primeiro documento já havia a idéia de que o projeto seria descentrali- zado, desenvolvido em vários laborató- rios, cada um seqüenciando um peda- ço, meio no sistema da Saccharomyces cerevisiae. Também já estava decidido que a estratégia seria trabalhar com cosmídeos e que o microrganismo seria da área agrícola. Alguns anos antes ti- nha havido uma discussão na Socieda- de Brasileira de Bioquímica sobre o fu- turo da bioquímica e ali se dizia que o caminho era a agricultura, já que não tínhamos como competir na área do câncer. Enquanto isso, em São Paulo, o pessoal do Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura) ia até a FAPESP preocupado com a Xylella. Ninguém sabia ainda se a X. fastidiosa era mesmo a causa da CVC (Clorose Variegada dos Citros) ou não. Em setembro, o Joseph Bové, da Universidade Bordeaux II, confirmou que o patógeno da CVC era ela mesmo.

■ E ainda havia dúvida sobre se a bioin- formática do projeto seria feita aqui. — Isso era para mim muito claro. Quando voltei em 1986 para o Brasil, logo depois João Meidanis e João Setú- bal também voltaram dos Estados Uni- dos. Eles foram ao meu laboratório, ainda no Instituto de Química, e disse- ram que precisávamos fazer alguma coisa juntos. Na época, eu, a Sueli Go- mes, do Instituto de Química da USP, e o Francisco Gorgônio Nóbrega, da Uni- vap (Universidade do Vale do Paraíba), éramos os únicos que seqüenciavam DNA no Brasil. Eu falei que precisava de um leitor de DNA e eles fizeram um leitor de filme de raio X, onde era feita a seqüência de DNA. A máquina cha- mava-se "o treco". Era um teclado de te- lefone com um negócio de plástico que permitia ver o filme. E aí apertavam-se as teclas e o negócio registrava A, C, T ou G (letras relativas a adenina, citosina, timina e guanina, bases do código gené- tico). O aparelho tinha um fio que ligava no computador. Veja, antes desse apa- relho, líamos o filme e íamos falando, A, C etc. e o aluno ia marcando. Isso foi há apenas dez anos. Quando surgiu a necessidade da bioinformática para o projeto genoma, eu sabia que existia competência aqui. Depois trouxemos o Paulo Arruda, que trouxe o André Gouf-

A mudança começou a dar espaço para jovens pesquisadores fazerem o que queriam, independentemente do professor titular

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feau (cientista francês que coordenou o seqüenciamento da Saccharomyces), quando pensamos que era preciso ter um steering comittee de fora. Afinal, tratava- se de um bando de jovens, e precisava ter alguém, gente com muita experiên- cia, que ficasse entre os pesquisadores e a FAPESP. No steering comitee estavam um pesquisador experiente em bioin- formática, que era Gouffeau, e dois in- gleses, Steve Oliver, também coordena- dor da Saccharomyces e John Sgouros. Oliver veio para o Brasil, tivemos uma reunião na FAPESP e acertamos os de- talhes: precisava ter dois laboratórios centrais, a bioinformática e um coorde- nador-geral. Nessa época, o Simpson já estava começando a se envolver no pro- jeto. Perez também observou que o projeto envolvia um monte de dinhei- ro, e defendeu a mesma idéia do Oliver, com o acréscimo de que os dois labora- tórios precisavam seqüenciar muito. Então, pensamos: vamos definir os car- gos e as pessoas se candidatam, nin- guém vai ser escolhido. E no edital saiu assim: uma vaga para coordenador, duas vagas de seqüenciador, um grupo para bioinformática e 30 laboratórios. Achamos que o coordenador não deve- ria ser ninguém ligado à FAPESP, por causa desse problema do projeto ser in- duzido. Por outro lado, eu queria ser seqüenciador, porque provavelmente o meu laboratório era um dos que mais sabiam seqüenciar e era essa área que poderia dar o maior problema. O Simpson decidiu ficar com a coordena- ção. Na verdade, ele era o coordenador de DNA, tinha que garantir clones. Como havia dois laboratórios centrais para seqüenciar - o meu e o do Paulo Arruda - e a bioinformática, na verda- de, eram quatro coordenadores-gerais do projeto. Fizemos o processo de sele- ção e daí chamamos o steering comittee para fazer a seleção. Ainda houve uma certa resistência: "Pô, mas não tem pro- jeto de pesquisa. Vão se candidatar para seqüenciar um pedaço de DNA". Já co- meçavam as críticas. Ficou decidido as- sim: dos 30 laboratórios, dez tinham de ser de gente que sabia um pouco de se- qüenciamento. Outros dez de pesquisa- dores que vinham da agricultura, que não sabiam nada de seqüenciamento, mas tinham idéia do que era essa bac- téria, a Xylella. E dez tinham de ser de gente que não era da agricultura e nem sabia seqüenciar, mas eram pessoas cien-

tificamente competentes e que queriam aprender. Perfil, por exemplo, de José Eduardo Krieger.

■ Nesse momento, começo de 1998, vocês estavam prontos para iniciar o trabalho. — Sim. Houve várias coisas divertidas. Nesta época ainda não se tinha fechado o postulado de Koch da Xylella (que demonstra a causalidade de um doen- ça). Ou melhor, não tinha fechado com os isolados brasileiros. Joseph Bové ti- nha levado isolados para a França e fe- chado o postulado de Koch lá. Aí fiquei em dúvida: a gente vai seqüenciar uma coisa coletada recentemente no Brasil, mas que ninguém provou que aquela bactéria fechou o postulado, ou vamos pegar uma bactéria importada da Fran- ça - uma vergonha nacional! - mas em que foi fechado o postulado? Resolve- mos fazer com a francesa. O meu medo era os caras terem misturado as bacté- rias e a gente estar com uma bactéria errada. Ao mesmo tempo que começa- mos a seqüenciar, começamos a refazer o postulado para ter certeza de que es- tava ok. Goffeau arranjou gente para en- sinar a fazer cosmídeo e nosso pessoal foi para o exterior para aprender.

■ Essa tecnologia continua a ser usada? Na Alellyx utilizam-se esses procedi- mentos? — A Xylella foi feita por cosmídeo. E hoje geralmente a gente faz por shot- gun. A primeira que foi feita por shot- gun foi a Xanthomonas, a partir de 1999. Bem, os dois laboratórios, o meu e o de Paulo Arruda, seqüenciavam bas- tante e aconteceram coisas interessantes. Paulo Arruda assumiu o papel do edu- cador: organizou os cursos, trouxe o pessoal dos laboratórios todos para en- sinar como seqüenciar. Com o meu la- boratório era diferente: decidimos que íamos formar gente no exterior e trazer para o Brasil a tecnologia mais avança- da. E Meidanis foi o único que falou "vou visitar todos os laboratórios". Isso é muito interessante, as coisas aconte- cerem por causa das vocações das pes- soas. Outra coisa engraçada foi o em- barque dos seqüenciadores no dia de Natal ou Ano-Novo, não me lembro bem. O pessoal no exterior queria espe- rar para embarcar depois, e eu disse "po- de embarcar que a gente se vira aqui". Corríamos contra o tempo. Era um bando de jovens que já tinham mostra-

do uma certa irreverência ao passar por cima do establishment, precisando mos- trar que eram competentes. Tinha as- sim uma alta pressão para conseguir fa- zer, e o pessoal mais velho só sentado, olhando para ver os caras tropeçarem.

■ Esse jeito novo de fazer ciência influen- ciou outras áreas ou ficou restrito à genô- mica? — Quando conseguimos publicar na Nature, teve muita influência na auto- estima das pessoas de qualquer área científica.

■ O grau de ambição da pesquisa brasi- leira mudou de patamar a partir do re- sultado da Xylella. — Mudou. A gente não estava mais co- mendo mingau pela periferia. Pulamos dentro do prato. Fizemos a Xylella e logo depois fizemos as duas Xanthomo- nas. Eram duas bactérias, cada uma o dobro da Xylella, foram feitas com um quarto das pessoas, um quarto do orça- mento e metade do tempo.

■ E foi lançado logo depois o projeto da cana. — Mas o projeto Xanthomonas foi o úl- timo genoma especificamente. Sempre critiquei que chamássemos de projeto genoma, o que não é precisamente pro- jeto genoma, ou seja, os projetos da ca- na, do boi etc.

■ Explique, por favor, essa distinção do ponto de vista científico. — Você faz um genoma quando se- qüência o DNA total de um organismo, todos os seus genes. Os outros são pro- jetos de seqüenciamento de RNA men- sageiro, só da parte expressa do geno- ma. Então não é um projeto genoma.

■ Mas não está tudo sob o guarda-chuva da genômica? — Da genômica, sim. Mas não são pro- jetos genomas. No exterior nunca é usa- do este nome. São projetos de EST (Ex- pressed Sequence Tags ou Etiquetas de Seqüências Expressas). Não quer dizer que são melhores ou piores, mas são di- ferentes. O primeiro que carregou o no- me e não era genoma foi o projeto do câncer, uma espécie de loucura, porque o câncer não tem genoma, quem tem genoma é o ser humano. A cana, o eu- calipto são projetos de EST. Tudo bem, eram coisas muito grandes, não ia dar

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para fazer o genoma mesmo. Mas eu acho que aí, quando se decidiu fazê-los, perdeu-se um pouco o ímpeto do começo, os desafios se tornaram menores. Apesar de serem projetos difíceis, eram no má- ximo tão difíceis quanto a Xylella-pro- vavelmente mais fáceis porque já se sa- bia como fazer. Ficamos repetindo um pouco, o que tornou as críticas mais fáceis. Mas aí vieram outros projetos grandes e importantes, como o Biota.

■ Qual foi o legado do projeto genoma para a ciência? — Os padrões subiram. A idéia de que a ciência é um campo de colaboração tornou-se mais aceita. E logo depois ha- via outro desafio: uma semana antes de publicarmos o projeto, escrevi um arti- go na Folha de S.Paulo que se chamava Despreparados para o sucesso, em que in- dagava qual seria o próximo passo. Era preciso fechar o ciclo: da mesma maneira que o genoma humano está transfor- mando a indústria farmacêutica norte- americana, nós, que seqüenciamos a Xy- lella, temos que resolver o problema da Xylella, transformando a ciência em riqueza. Para mim, esse era o desafio: o próximo passo era fora da academia, enquanto na academia era preciso con- tinuar ousando. Foi aí que a gente per- deu o ritmo, o ímpeto, e os críticos che- garam na gente.

■ A pesquisa emproteoma não represen- tou o próximo passo da academia? — Projetos genoma são absolutamente mensuráveis. O produto final é finito, mensurável e conhecido. Projetos de EST já não tem isso: chega uma hora em que têm que parar. A grande coisa da Xylella era: ou você acaba, ou você não acaba. E é completamente óbvio. Outros pro- jetos - proteomas, cristalografia -, se vo- cê perguntar qual é o marco absoluto, inquestionável, de que acabou o proje- to, não tem resposta. Isso é mais ou me-

nos a pesquisa clássica, não tem resposta, é compreender como funciona o mundo. E isso é natural, é o processo da ciência. Nós tínhamos de fazer o genoma da ca- na e do eucalipto e a única maneira de fa- zer era com EST. Poderíamos ter optado por fazer um genoma um pouco maior. Enfim, os grandes projetos colaborati- vos funcionam bem quando o objetivo é muito claro. Todo mundo que entra sabe: ou chega naquele ponto, ou não chega. A analogia que faço é a seguinte: há um abismo entre duas rochas, eu venho cor- rendo e vou pular. E aí, ou chego do outro lado, ou caio no buraco. Não tem meio- termo. A ciência normal não é assim, ela vai progredindo, publica um paper, outro paper, nunca acaba. São raras as vezes em que se tem projetos científicos no mundo em que o objetivo final é muito claro.

■ Qual a sua visão da pesquisa brasileira em biologia molecular, e no geral, hoje? E quanto ao futuro? — Não estou tão próximo do que as pessoas estão fazendo hoje, mas acho que ela voltou a ser clássica. Acho que falta no Brasil um projeto desses, com objetivos absolutamente claros. Mas nem sei se dá para a biologia molecular ter um projeto desses no momento, es- sa não é a maneira normal de a ciência operar, nem sempre se consegue achar projetos assim., E isso não é demérito, o conhecimento tem fases distintas.

■ Mas existem no país alguns grandes projetos colaborativos em curso, na área de saúde. Hipertensão, por exemplo. — Existe cooperação, sim, mas no senti- do anterior, dos temáticos, por exemplo. E não dá, nesses casos, para acertar um objetivo e dizer vamos todos para lá.

■ Esses objetivos podem aparecer espon- taneamente ou são sempre induzidos? — Veja, no caso da Xylella acho difícil dizer que se trata de um projeto total-

A Xylella, como teve projeção internacional, sinalizou que a ciência brasileira tinha competência

mente induzido, porque ele foi propos- to pela comunidade científica. Ocorre que na FAPESP a comunidade científi- ca está lá dentro, diferente do que ocor- re no CNPq. Assim, a FAPESP captou as vozes da comunidade e catalisou o pro- cesso. A pesquisa foi dirigida no senti- do de que teve um órgão que disse "va- mos fazer", mas igualmente não o foi porque não nasceu fora da comunida- de científica.

■ Vamos passar um pouco ao campo pri- vado. Parece-nos que uma das mudanças no padrão brasileiro de produção cientí- fica foi que aumentou, depois da segun- da metade dos anos 1990, a possibilida- de da pesquisa no ambiente empresarial. — Há várias razões para isso. Durante a ditadura, a universidade foi um cen- tro de resistência e queria distância do setor privado. Na medida em que a de- mocratização veio, isso começou a mu- dar. Outra coisa é que está mudando a percepção que se tem da ciência. Todo mundo fala que ela gera riqueza e nos Estados Unidos, por exemplo, isso é ver- dade. O desenvolvimento científico que gera novas tecnologias, gera novas em- presas, gera imposto, gera emprego e ri- queza para o país e essa riqueza volta para a universidade. Um ciclo virtuoso do investimento em C&T. No Brasil, esse círculo está começando a fechar.

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Não fechava antes por uma conjunção de coisas. No início não tinha cientista. Até os anos 1970 não tinha massa crítica. Depois começou a ter massa crítica, mas os cientistas não queriam saber do setor privado. Quando voltou a demo- cracia, tinha massa crítica, mas havia reserva de mercado e não tinha a de- manda das empresas. O Brasil era fe- chado. Daí abriu-se o país. Agora tem massa crítica e as coisas começaram a fluir. Para fechar o ciclo, precisava de capital, que começou a surgir há uns cinco ou seis anos.

■ O projeto da Xylella, além do seu signi- ficado na biologia molecular, sinaliza um momento de mudança também para ou- tros setores da sociedade? — O setor privado não sabe o que acontece na universidade. A Xylella, como teve projeção internacional, si- nalizou que a ciência brasileira tinha competência. Tinha muita coisa acon- tecendo, mas não eram óbvias. Na hora que sai na Nature, no The Economist, o primeiro genoma de planta, aí se cons- tata que o negócio funciona. Tem de ter visibilidade e chamar a atenção. Não foi a primeira evidência de que a ciência era competente. Exatamente porque a ciên- cia era competente que surgiu a Xylella. Para o setor privado isso significou que era possível investir na universidade e que esta poderia ser utilizada para de- senvolver tecnologia para as empresas.

uMas, quando saiu o resultado da Xylel- la, aqui em São Paulo já existiam pro- gramas de inovação tecnológica, como o PITE ou PIPE, formulados desde 1995... — É claro que na academia havia o re- conhecimento da necessidade de inte- gração com o setor privado. Mas quan- tas vezes a Fiesp ou a CNI foram à FAPESP para afirmar: precisamos da ciência de vocês? Isso não existia e ain- da não existe direito. A demanda têm que vir do setor privado. E só vai ocor- rer quando o setor privado nacional olhar a universidade do mesmo jeito que o setor privado norte-americano olha a universidade americana.

■ E isso está começando, ou não? — Está começando. Não é um movi- mento suficientemente forte para re- sultar numa virada. E o problema é o seguinte: quanto de risco o setor priva- do está disposto a tomar. Se eu moro na

Suíça, um país tranqüilo, e pulo de pára-quedas, faço uma coisa superar- riscada. Tenho uma vida com risco bai- xo e meu risco é o esporte radical. Mas, se eu moro no Brasil, sair de casa de ma- nhã e não ser assaltado ou atropelado já é um risco. Por que eu ainda vou cor- rer o risco a pular de pára-quedas? O problema na indústria nacional é a mes- ma coisa. O Brasil não tem estabilidade política, não tem marco regulatório e tem instabilidade de tantas naturezas que a empresa, que já está tomando um monte de riscos, teme assumir o risco de desenvolver novas tecnologias. É ris- co demais. Os empresários — a não ser que muito pressionados - preferem não investir. Quando se fala que empresário brasileiro não quer correr risco, não é justo. Talvez ele não corra o risco que a gente, cientista, gostaria que ele corres- se, que é investir em nova tecnologia.

■ O fato de você estar ligado ao maior gru- po privado brasileiro e ser presidente de uma empresa de base tecnológica não si- naliza o oposto do que você está dizendo? — Esse processo se iniciando e é natu- ral que comece no grupo que pode se dar ao luxo desses riscos. Nos Estados Unidos, grupos menos sólidos correm esse risco tecnológico. Mas você não vê grupos nacionais desenvolvendo novas drogas. Por causa dos riscos. Num país em que ambiente de risco é baixo, para progredir é preciso correr o risco, por exemplo, de desenvolver um novo re- médio. Aqui no Brasil o mesmo negó- cio tem outros riscos - o governo pode tabelar o preço do remédio etc. Então o empreendedor pensa: vou é fazer lobby para não congelarem o preço. A preo- cupação com inovação é secundária.

■ Dentro desses riscos que no ambiente brasileiro parecem ser maiores, como fica a questão das patentes? — A biologia molecular de plantas, por exemplo, leva automaticamente aos transgênicos. Considere três empresas que querem fazer transgênicos: uma na Europa, uma nos Estados Unidos e outra no Brasil. A Europa não aceita transgê- nicos, as regras são conhecidas e todo mundo sabe que não pode. Nos Estados Unidos, as regras são conhecidas e a pro- dução e comercialização de transgêni- cos é permitida. No Brasil, não se sabe se pode ou não. A regra não está defi- nida, está tudo parado na Justiça, o pro-

jeto de lei de biossegurança está no go- verno e ninguém sabe se será aprovado.

■ Mas isso não tem a ver com o desenvol- vimento tecnológico, mas com o ambien- te econômico? — Mas são essas coisas que determi- nam o desenvolvimento científico. O sistema jurídico do país é difícil, o siste- ma de patentes não funciona. Não se sabe se o Judiciário vai fazer valer mi- nha patente. No Brasil, tudo leva muito tempo. O Inpi já não funciona direito e o Judiciário não funciona direito...

■ Mas não existe uma lei de patentes no Brasil? Isso não está regulado? Uma coisa é você ter a regulamentação legal e a outra é cumprir na prática. Ve- ja o caso da Monsanto com a soja trans- gênica, na Argentina, que tem uma lei de patentes. O agricultor planta a soja e não paga os royalties. A empresa vai à Justiça para multar o infrator. A Justiça não multa, e o outro não paga. Uma coisa é ter a lei, a outra é cumprir. É o mesmo que comprar uma fazenda no Pontal do Paranapanema. A terra está barata, mas é arriscado: os sem-terra podem invadir. Você não só tem que ter a lei como ter um aparato que garante que ela seja cumprida.

■ Quais são suas apostas no desenvolvi- mento da biotecnologia no campo em- presarial? — O ideal é apostar em coisas que, se não der para vender no Brasil, você vende fora, como é o caso da biotecno- logia humana e agrícola. Quando se tem uma coisa de fronteira, muito na fren- te, o mercado é global.

■ Mas o que vocês estão fazendo hoje ainda é mais factível para o mercado nacional... É factível para qualquer mercado. Um bom exemplo é a tecnologia da Embraer que é global. Se fechar a fábrica bra- sileira, poderá se produzir avião na Ve- nezuela. As pessoas tentam investir em coisas que minimizem o risco do país onde elas estão. Se a Embraer fizer um avião que só dá para fazer aqui no Bra- sil é muito arriscado.

uMas quando se pesquisa quem é o agen- te causador da morte súbita, você está pen- sando num problema brasileiro... —Está aí um dos problemas da Alellyx. •

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A vida ao microscópio

MOACYR SCLIAR

No começo de minha carreira médica dediquei-me,por certo tempo,à anatomia pato- lógica. Naquela época não havia residência ou qualquer tipo de curso de aperfeiçoa- mento nesta área; aprendia-se trabalhando com colegas mais experientes. Foi o que

fiz. Consegui um emprego num pequeno laboratório que funcionava numa velha casa na Ci- dade Baixa. A equipe constava de três especialistas (três irmãos, a propósito), de auxiliares e do pessoal administrativo. Na verdade era como se fosse uma família; os três médicos, pessoas gentis, faziam questão de criar um ambiente acolhedor para pacientes e para a própria equipe. Na sexta-feira tínhamos uma happy hour, um momento de confraternização. E aí o Quinzi- nho cantava para nós, desafinado mas alegre.

O nome dele era Joaquim. Viera de uma cidade do interior. Ainda jovem, tinha uns pou- cos anos de estudo, mas compensava a falta de conhecimento com uma enorme inteligência e uma não menor dedicação. Quinzinho era, como se costuma dizer, pau para toda a obra. Fa- zia qualquer coisa: preparava o material para as lâminas, providenciava os produtos químicos necessários e, depois do expediente, limpava e arrumava o laboratório. Levar cartas no correio? Quinzinho ia. Entregar resultados de exames no hospital? Ia também. Sempre alegre, sempre disposto. E bom papo. Eu gostava de ouvir suas histórias. De família muito pobre, provavel- mente teria seguido o caminho do pai, tornando-se operário em uma fábrica de calçados. Mas Quinzinho queria ir além. Quinzinho queria ser médico patologista.

De onde vinha esta, até certo ponto, curiosa aspiração? Nem ele sabia dizer direito. Aparen- temente, havia sido motivado por duas coisas. Em primeiro lugar, por um filme que, em crian- ça, vira na tevê; uma trama de mistério em que um patologista resolvia um caso complicado. Depois, pelo microscópio.

O instrumento lhe chegara às mãos por acaso. Para reforçar o orçamento familiar, Quinzi- nho fazia bicos nos fins de semana; lavava carros, pintava casas, cortava grama. Um de seus clientes era um professor de biologia, e foi na casa desse homem, já idoso, que Quinzinho viu um microscópio, antigo, mas de marca afamada. Perguntou ao professor se podia dar uma es- piadinha. O homem disse que sim, e mostrou ao maravilhado rapaz a estrutura de um fio de cabelo. Quinzinho ficou deslumbrado: estava descobrindo um mundo novo, desconhecido. Daí em diante, cada vez que vinha à casa do professor, pedia para usar o microscópio. E fez um tra- to com o homem: cortaria a grama de graça em troca de algumas lições sobre o uso do apare- lho. Não foram muitas: o professor, doente, faleceu. No velório, Quinzinho criou coragem e foi falar com a filha dele. Disse quem era, contou sobre a experiência com o microscópio. A mulher ouvia-o com crescente impaciência e mal disfarçada irritação. Lá pelas tantas, interrompeu-o:

- Mas, afinal de contas, o que é que você quer? - Eu queria o microscópio de seu falecido pai... Ela mirou-o, ultrajada: - Você? Você quer o microscópio do meu pai? Mas você não se enxerga, rapaz? Você, um ig-

norante, um grosso - usar o instrumento que foi de um grande professor? Desapareça daqui! Orelhas ardendo, Quinzinho bateu em retirada. Confuso, humilhado - mas decidido: não

desistiria do microscópio. Um dia haveria de usá-lo, na qualidade de profissional, de cientista. A primeira providência para isso era mudar-se para a capital e foi o que Quinzinho fez,

apesar da oposição da família. Seu plano era trabalhar e estudar - e entrar na universidade. Po- deria estudar biologia, como o professor. Ou mesmo medicina. Qualquer área, enfim, que lhe desse a oportunidade de usar o microscópio.

Teve vários empregos: foi servente de pedreiro, trabalhou numa oficina mecânica. Um dia, passando pelo laboratório, viu o anúncio, pedindo um auxiliar. Entrou, falou com um dos donos. Que ficou impressionado com a vivacidade e a determinação do rapaz. Deu-lhe o emprego.

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Quinzinho não poderia ter desejado coisa melhor. Ali estava no meio de microscópios, vá- rios deles. Depois do trabalho, e com licença dos donos, olhava as lâminas com tecidos de biópsia ou de órgãos retirados em cirurgia. Aos poucos, foi aprendendo a identificar o que via ali. Sabia diferenciar fígado de baço, sabia quando um tumor era benigno e quando era malig- no. Os médicos ficavam surpresos com aquela habilidade; um deles até lembrou o caso de um famoso hematologista argentino que nunca tinha cursado a universidade.

Não era o caso de Quinzinho. Ele queria, sim, estudar. Começou a cursar o supletivo, à noi- te. Mas, paradoxalmente, isto lhe era difícil; muitas vezes até adormecia durante uma aula.

- Assim nunca passarei no vestibular - suspirava. Àquela altura eu já tinha me tornado seu amigo e confidente. Procurava animá-lo: o que é

isto, Quinzinho, você é inteligente, o vestibular não será problema para você. No fundo, po- rém, eu tinha dúvida em relação a isso. Não deu outra: terminando o curso, fez o vestibular para medicina e foi reprovado. Uma decepção neutralizada, no entando, por uma surpresa. Naquele ano realizava-se na cidade um congresso nacional de anatomia patológica. Um dos di- retores do laboratório resolveu apresentar Quinzinho aos participantes. Que ficaram verdadei- ramente assombrados com o rapaz. Entregaram-lhe 20 lâminas para que fizesse o diagnóstico; ele acertou em 19 (o vigésimo caso era tão complicado que suscitou dúvidas entre os pró- prios patologistas). O assunto acabou chegando a uma revista de circulação nacional, que pu- blicou uma matéria a respeito intitulada "Cientista sem diploma". Ali estava uma foto do Quin- zinho, sorridente, junto ao microscópio.

Estas coisas animaram-no e ele resolveu tentar de novo o vestibular; desta vez tinha certe- za de que seria aprovado.

Não chegou a fazer a prova, porém. Um dos vários sinais que tinha na pele começou a cres- cer rapidamente. Ele procurou o dermatologista. A lesão foi excisada e examinada em nosso la- boratório. Era um tumor maligno, um melanoma. Que evoluiu rapidamente, mesmo porque àquela época não havia tratamento adequado para esse tipo de tumor. Dois meses depois foi hospitalizado e veio a falecer, com metástases generalizadas.

Nós nunca lhe revelamos o diagnóstico. Dizíamos que era uma coisa benigna, que tinham surgido algumas complicações, mas que ele ficaria bem. Aparentemente ele acreditava em nós, o que era, para todos, um alívio. Ao menos tem esperança, pensávamos. Ao menos mor- rerá iludido.

Iludidos estávamos nós. Depois do enterro, a família foi recolher as coisas dele, no peque- no apartamento que dividia com dois amigos. E ali estava, entre os seus livros e cadernos, uma lâmina. O pai trouxe-a para o laboratório. Ninguém precisou olhá-la: sabíamos que ela tinha saído dali mesmo, e que o diagnóstico seria de melanoma, um tumor maligno que às vezes ata- lha vidas, extingue sonhos - mas não termina com a grandeza que caracteriza os verdadeiros cientistas.

MOACYR SCLIAR é médico e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor, entre vários livros, de A orelha de Van Gogh e Saturno nos trópicos.

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

DIVULGAÇÃO

Deu no Jornal Nacional Mídia amplia espaço de ciência e tecnologia e lança uma série de novos produtos nos próximos meses

Ciência, tecnologia e inovação são hoje ter- mos e temas que freqüentam a mídia bra- sileira em tal volume e com tamanha natu- ralidade que chega a parecer espantosa a indigência da cobertura que mereciam até

há cerca de uma década - com as exceções de praxe, é claro. Considerados insumos estratégicos para o desen- volvimento socioeconômico, e por vezes elementos va- liosos para determinadas criações da cultura popular, os avanços na área de ciência e tecnologia - relacionem-se eles a organismos transgênicos, clonagem, terapias com células-tronco, energia nuclear, investigação e explora- ção espacial ou tantos outros campos - tiveram seu es- paço sensivelmente ampliado, nos últimos anos, nos vá- rios meios de comunicação nacionais. E mais: nesse processo, a ciência e a tecnologia produzidas no país deixaram de ser discriminadas, quando não passaram mesmo a ser francamente valorizadas.

A mudança pôde ser percebida de forma clara, por exemplo, no Jornal Nacional, da Rede Globo, o noticiá-

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rio de maior audiência da televisão brasileira, que chega diariamente a al- gumas dezenas de milhões de pessoas. Mostrou-se significativa também nos domínios do jornalismo impresso, onde, a par do aumento de espaço para a ciência em veículos tradicio- nais, registrou-se, nos últimos anos, o lançamento de alguns títulos impor- tantes voltados exclusivamente para ciência e tecnologia. Não bastasse isso, novas publicações estão sendo nesse momento preparadas para esquentar o mercado editorial. O poderoso gru- po Abril, por exemplo, responsável pela revista de maior tiragem ligada à divulgação da ciência, a mensal Supe- rinteressante (400 mil exemplares), que acaba de chegar à edição número 200, agendou para o final de julho o lançamento da revista Sapiens, com tiragem inicial de 40 mil exemplares. E, finalmente, as publicações on Une compõem um capítulo especial da re- cente escalada nacional de divulgação científica.

Certamente, dez entre dez dos cer- ca de 70 mil pesquisadores brasileiros e boa parte de outros profissionais que acompanham mais de perto os assun- tos científicos gostariam de saber o que é capaz de transformar dados e resul- tados de pesquisa científica em notícia no Jornal Nacional. Segundo seu editor- chefe, o jornalista William Bonner, ba- sicamente se noticia o que é novo - al- guma conquista científica, novidades em pesquisa -, aquilo que é passível de aplicação imediata ou que é sem dúvi- da importante como um passo para a conquista de algo como um medica- mento ou determinado bem econômi- co em futuro próximo. "Se fizéssemos uma análise de tudo que foi ao ar nos últimos anos, certamente temas liga- dos à saúde seriam a maioria; ou te- mas de interesse circunstancial, como na crise de energia, as matérias sobre pesquisas em como poupá-la ou fon- tes alternativas."

Bonner reconhece que saúde é mesmo o tema mais fácil de emplacar na televisão, em particular notícias sobre novos caminhos para a cura de doenças. De qualquer sorte, segundo ele, o cardápio de assuntos de ciência é dinâmico no Jornal Nacional. "Não te- mos editores de ciência, mas dispomos de uma lista de consultores, o que é um cuidado básico para abordar te-

mas científicos com qualidade e rigor." Aliás, alguns critérios sugeridos quan- do da produção de uma reportagem, em 2000, por um desses consultores, o médico Caio Rosenthal, de São Paulo, transformou-se numa espécie de bí- blia para a redação, relata ele.

Eles incluem a checagem obriga- tória de quatro itens antes de uma re- portagem ou notícia ir ao ar: verificar se o pesquisador utilizou metodolo- gia científica em seu experimento; se a pesquisa com seres humanos obser- vou o código da comissão de ética; se os voluntários da experiência assina- ram termos de consciência dos riscos e se a pesquisa foi ou vai ser publica- da e em qual revista científica de im- portância. Bonner admite que o fato de o JN estar voltado para um grande público, integrado por grupos de dife- rentes níveis sociais e econômicos, cria dificuldades quanto à forma mais adequada de abordar assuntos de ciên- cia. "Temos que ser claros o suficiente para o público de baixa escolaridade, sem ofender a inteligência daqueles que têm maior nível de conhecimento. Ambos são nossos telespectadores." Uma estratégia de linguagem adotada é trabalhar sempre com analogias e com exemplos do repertório de conhe- cimento do público menos letrado.

Mas uma informação preciosa sobre a per- cepção do público re- lativamente às ques- tões científicas surgiu,

segundo Bonner, de uma grande pes- quisa qualitativa feita no início deste ano para consumo interno da Globo, em que a emissora, entre outras coisas queria saber até que ponto alguns te- mas complexos abordados pelo jornal haviam sido compreendidos pelo gran- de público. "O resultado foi frustrante mas, ao mesmo tempo, produtivo: na série sobre transgênicos, embora te- nhamos usado formas didáticas para tratar do tema, a percepção foi muito baixa. O espectador tende a buscar res- postas objetivas para os assuntos e, nesse caso, o que ficou foi a polêmica existente sobre a questão de organis- mos modificados. A constatação do in- sucesso em atingir o objetivo nos ser- viu para buscar entender por que o didatismo usado não foi suficiente", diz o jornalista.

Ligação visceral - Parece haver uma ligação estreita e essencial, até óbvia em certa medida, entre o crescimento notável da pesquisa científica no Bra- sil nos últimos dez anos (ver reporta- gem na página 28) e a expansão siste- mática da divulgação científica no país ao longo desse período. E ressal- te-se que essa expansão se dá, diga- mos assim, em toda a cadeia de pro- dução de informações sobre feitos e resultados da pesquisa científica: dos veículos mais especializadas e próxi- mos aos produtores de ciência, como as agências de notícias, sites e revistas de universidades, agências de fomen- to e associações científicas, até os gran- des meios de comunicação de massa, como a televisão.

É claro que se pode contar uma lon- ga história da divulgação da ciência no Brasil, cujas raízes lançam-se até o sé- culo 19. É fora de dúvida que José Reis, com seu trabalho iniciado ainda na dé- cada de 40 do século 20, no jornal Folha de S.Paulo, é o pioneiro incontestável do jornalismo científico brasileiro. Mas uma observação mais sistemática do panorama de divulgação científica mostra que é na década de 80 que se es- tabelecem suas bases mais consistentes para, em fins da década de 90, essa di- vulgação se ampliar de forma extraor- dinária - quase como se fosse uma con- traface da evolução que se verifica na produção científica nacional. Assim, a revista mensal Ciência Hoje, da Socieda- de Brasileira para o Progresso da Ciên- cia (SBPC), foi lançada em 1982, che- gou a ter tiragens em torno de 70 mil exemplares na segunda metade da dé- cada e vendas perto dos 50 mil exem- plares. É também da segunda metade dos anos 80 a Revista Brasileira de Tec- nologia, do Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em sua forma jornalística, com tiragens de 25 mil exemplares, grande parte da qual vendida a assinantes - a revista desapareceu em 1990, no gover- no Collor. No âmbito da grande im- prensa, a Superinteressante foi lançada em 1987, a Folha de S.Paulo lançou em 1989 um caderno semanal de ciência que perduraria até 1992 (quando deu origem à editoria de ciência) e, em 1990, foi lançada outra revista mensal, a Globo Ciência, posteriormente bati- zada de Galileu. Ressalte-se que Globo Ciência fora lançado originalmente

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como programa de televisão em 1984, marcando, aliás, o pioneirismo da Rede Globo em divulgação científica na po- derosa mídia televisiva.

A acumulação de competência cien- tífica no Brasil ao longo dos anos 80 e 90 terá influência fundamental no ta- manho, nas ambições e nos feitos da pesquisa científica nacional perto da virada do século 20 para o século 21. E é possível entender hoje como esse fe- nômeno produzirá um poderoso efei- to sobre a divulgação científica no Bra- sil a partir desse momento, compondo passo a passo uma espécie de nova cul- tura científica no país que hoje conti- nua a se espraiar.

No rastro desse espraia- mento, além da nova re- vista do grupo Abril, deve-se esperar uma sé- rie de lançamentos rela-

tivos a divulgação científica nos próxi- mos meses. Entre eles está o programa TV Superinteressante, com duração de 30 minutos, produzido na MTV para ser veiculado aos domingos em horá- rio nobre na TV Cultura. A Discovery, conhecida no país por seus documen- tários científicos veiculados na TV por assinatura e na Rede Educativa, prepa- ra sua versão brasileira no papel, se- gundo divulgou recentemente o jornal Meio e Mensagem, informação confir- mada pelo subeditor Marcelo Affiny, mas ainda guardada em segredo pela editora responsável. Em agosto, a Dueto Editoral, que desde julho de 2002 publica a versão brasileira da Scientific American- a mais antiga revista de divulgação científica do mundo, lançada em abril de 1845 -, deve colocar um novo título no mercado, a revista Viver, Mente e Cérebro. A TV Cultura, que, aliás também tem tradição em produções de cunho científico - man- tém em sua grade o Re pórter Eco, no ar há onze anos, além do jovem Ver Ciência, produziu em 1999 uma série de documentários sobre a pesquisa em genô mica, com apoio da FAPESP, recen- temente foi pre- miada com a sé-

rie de documentários Minuto Científico e Viver Ciência -, estréia no final de ju- nho Cientistas Brasileiros, série de 15 filmes curtos, enfocando personagens, grandes projetos e institutos de pesqui- sa, que devem distribuir-se entre os programas normais da grade da emis- sora, informa Mário Borgneth, geren- te de documentários da Cultura. E há uma série de outras iniciativas em pla- nejamento, ligadas a rádio e a televi- são, cujos responsáveis preferem por ora manter sob reserva.

Uma nova compreensão - A FAPESP tem, sem dúvida, um papel que ainda está para ser corretamente avaliado e re- conhecido nas transformações que vêm ocorrendo no âmbito da divulga- ção científica no Brasil, nos anos re- centes. Primeiro, há que se destacar a crescente profissionalização de seu trabalho de assessoria de imprensa, desde 1995, quando a Fundação come- çara a diversificar e a ampliar extraor- dinariamente o alcance de seus progra- mas de apoio à pesquisa. Esse trabalho obrigou pouco a pouco os jornalis- tas da grande imprensa a se da- rem conta da qualidade e da

importância da pesquisa científica e tecnológica desenvolvida sistematica- mente no Estado de São Paulo. Dessa forma, quando por exemplo em 2000 a imprensa internacional literalmente festejou o feito do seqüenciamento da Xylella fastidiosa no Brasil, resultado da proposta pioneira e ousada da FA- PESP na área da genômica, toda a mí- dia brasileira, bem calçada de informa- ções, já se dedicara exaustivamente ao assunto e precisou apenas conceder-lhe uma nova repercussão. Era uma dife- rença flagrante em relação à indiferen- ça com que recebera o lançamento do projeto em outubro de 1997.

Em segundo lugar, é necessário destacar a importância de Pesquisa FAPESP, que hoje tem tiragem de 45 mil exemplares, gestada a partir do boletim Notícias FAPESP, lançado em agosto de 1995, como uma fonte de re- ferência de peso para a mídia nacional, primeiro sobre a pesquisa produzida no Estado de São Paulo e, mais adiante, no país como um todo. Um levantamento sistemático das notícias veiculadas pela

imprensa a partir do material pu- blicado pela revista mostra

que, em 2000, por exemplo,

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11 edições de Pesquisa FAPESP gera- ram 208 matérias em jornais e revistas brasileiros. Aliás, vale registrar um co- mentário de Muniz Sodré, professor da Universidade Federal do Rio de Ja- neiro (UFRJ) e um dos mais respeita- dos teóricos da comunicação no país, em artigo publicado no site Observa- tório da Imprensa em 20 de janeiro de 2004, sob o título "Um exemplo de jornalismo utilitário". Em suas pala- vras, Pesquisa FAPESP "vem se reve- lando como uma das melhores, senão a melhor publicação do gênero em nosso país". E mais: "Com ela, a função jornalística ganha de fato sentido ple- no", diz ele.

Finalmente, sobre as contri- buições da Fundação para a divulgação científica, é im- perioso destacar o novo pas- so dado nesse sentido em ju-

nho de 2003, com a criação da Agência FAPESP, que diariamente envia notí- cias nacionais e internacionais de po- lítica científica, divulgação científica, ciência e tecnologia para 25 mil assi- nantes em todo o país. Todo esse com- plexo de divulgação em que a FAPESP vem investindo resultou, por exemplo, no período de lfl de março a 20 de maio deste ano, em 424 citações do material produzido pela Fundação na mídia impressa nacional. A agência, especificamente, foi responsável no período por 183 notícias publicadas por jornais de todo o país, fora do eixo Rio-São Paulo.

A inserção especial da FAPESP e, no caso, especificamente de Pesquisa FAPESP, no panorama da divulgação científica, na verdade, já tinha sido percebido em 2001 por executivos es- trangeiros interessados no mercado brasileiro de divulgação científica. A Fundação recebeu naquele ano a vi- sita de um dos diretores da Scientific American dos Estados Unidos, que propunha uma parceria na produção de uma revista brasileira de divulga- ção científica. As negociações avança- ram até certo ponto, mas a FAPESP não abria mão de manter 70% do ma- terial editorial da revista vinculado à produção científica brasileira, enquan- to o candidato a parceiro queria ter no mínimo 50% do material originário da produção internacional da Scienti- fic American. Assim, o acordo não foi

assinado e a publicação norte-ameri- cana foi em busca de outras alternati- vas de entrada no mercado brasileiro, o que terminou ocorrendo através da Duetto Editorial.

Segundo Alfredo Nastari, diretor da editora, "apesar de o Brasil ter piores índices de escolaridade e miséria endê- mica, um potencial de mercado avalia- do entre 3 milhões e 5 milhões de lei- tores para publicações especializadas tornou o Brasil mais atraente que o Leste Europeu, que era outra opção do grupo da Scientific American na mesma época para lançamento de uma nova edição internacional". Com dois anos de existência, a edição brasileira já se posiciona em quinto lugar num ran- king de 20 que a Scientific publica no mundo todo.

Na opinião de Nastari, existe espaço para a revista informativa de ciência, apesar de o público interessado pelas diversas áreas do conhecimento dispor de tantas opções eletrônicas gratuitas. "O papel de uma revista é ordenar o universo de informações abundantes e livres por meio de uma edição e uma linguagem adequadas à capacidade de entendimento do leitor", diz ele. Uma busca no Google, por exemplo, acres- centa, traz um excesso de fontes e nível de inteligibilidade difícil de absorver. "O tratamento da notícia, a clareza, a originalidade e a credibilidade do con- teúdo são a chave para conquistar o lei- tor", considera. Ele ressalta, contudo, que "a tragédia em nossa área é a pu- blicidade, que não está preparada para esse perfil de publicação, não entende seu potencial de venda e dificulta a vi- da econômica desses projetos".

Que existe demanda de público para informação de ciência em revista está demonstrado pelo sucesso de títulos como a Superinteressante, direcionado ao público jovem-adulto, que ocupa o segundo lugar na circulação das revis- tas mensais, atrás apenas da feminina Claudia. O segredo do bom desempe- nho da revista, desde seu lançamento, há 17 anos, está no foco, segundo seu editor, Dennis Russo. "Não é uma pu- blicação dirigida para escolares, mas para pessoas interessadas em conheci- mento em geral, jovens e adultos." Rus- so diz considerar a Super, como ela costuma ser chamada, uma revista de conhecimento, e não de jornalismo científico. "Somos pautados pela von-

tade grande de surpreender, de falar de coisas que as pessoas querem saber, mas ainda não sabem. A pauta não tem compromisso com o noticiário diário, embora não deixe de estar atento à atualidade."

Semanais e Internet - Entre as revistas informativas semanais, a Época, da Edi- tora Globo, entrou no mercado em 1998 abrindo um espaço inédito para ciência e tecnologia. José Roberto Nas- sar, diretor de redação no primeiro ano e meio da publicação, observa que a revista buscava um diferencial editorial que viabilizasse expandir o público das revistas, e não dividir o público já exis- tente das semanais. As edições tinham sempre um mínimo de 100 páginas editoriais, distribuídas de forma mais ou menos equânime entre as diversas editorias - o que incluía a área de ciên- cia, tecnologia e informática. "Em nos- sa avaliação, este era um caminho para conquistar novos leitores. A experiên- cia do modelo já vinha sendo testado no exterior, onde se podia observar o interessante mercado explorado em publicações da Alemanha e dos Esta- dos Unidos, principalmente, ao longo dos anos 1990", lembra Nassar.

A revista Focus, inspiração para a Época, quando foi criada na Alema- nha, em 1995, tinha uma tiragem de 800 mil, enquanto a Der Spiegel man- teve-se com 1 milhão de exemplares. Não houve perdas de leitores. Acredi- tava-se que o mesmo fenômeno pode- ria ser repetido no Brasil, com um mix de leitores que incorporasse o público jovem, já consumidor de tecnologia. Mas com a crise econômica muita coi- sa mudou no mercado editorial.

Mais recentemente começaram a proliferar os sites de divulgação. A FA- PESP, por exemplo, tem três: o institu- cional da Fundação, o da revista Pesqui- sa FAPESP e o da Agência FAPESP. A SBPC mantém o JCEmail, versão eletrô- nica diária do Jornal da Ciência, sema- nal. Surgiram revistas eletrônicas, como a ComCiência, do Laboratório de Jor- nalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor) em convênio com a SBPC. Criaram-se portais como o Canal Ciência do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, e o SciDev.Net. Além dis- so, expandem-se os sites específicos da

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área de comunicação, com destaque especial para o jornalismo científico, como a Comtexto ou ainda o Observa- tório da Imprensa.

A oferta de divulgação científi- /% ca se amplia também na TV

Z^A por assinatura: na Futura, i ^ os programas Globo Ciên-

^L .A. cia, Mundo da Ciência e Ponto de Ebulição. Na Globo News, o programa Espaço Aberto: Ciência e Tec- nologia é distribuído ao longo da grade.

Difícil prever, em meio à eferves- cência da área de divulgação científica, seus desdobramentos para além de al- guns meses, em meio às discutidas cri- ses do jornalismo e da mídia. Se to- marmos como exemplo a pioneira das revistas de divulgação, a Ciência Hoje, vamos ouvir de Alicia Ivanissevich, sua editora-executiva - que, aliás, se incor- porou à equipe em 1985, depois cui- dou da ciência no Jornal do Brasil de 1992 a 1997, e então voltou à revista da SBPC -, uma afirmação sobre a ma- nutenção dos objetivos originais da publicação, após mais de 200 edições ininterruptas, e o propósito de aumen- tar sua tiragem, que caiu para 15 mil exemplares, dos quais cerca de 70% são dirigidos a assinantes. "A intenção é viabilizar uma distribuição nacional mais efetiva, mas os custos são eleva- dos", ressalta Alicia. Da original Ciência Hoje nasceram vários filhotes, alguns extraordinariamente bem-sucedidos em termos de público, caso da revista dedicada ao público infantil, Ciência Hoje das Crianças, para a faixa etária de 7 a 12 anos, que começou como um encarte mas, a partir do número 16 ga- nhou vida própria e chegou em 1986 com uma tiragem de 200 mil exem- plares. Hoje 180 mil revistas são ad quiridas pelo Ministério da Edu- cação, que as distribui a todas as bibliotecas escolares.

A jornalista e pesquisado- ra Luisa Massarani, da Fun- dação Oswaldo Cruz, e res- ponsável pelo site SciDev.Net América Latina, observa que, para o futuro, "um dos principais desafios é fazer uma divulgação científica mais crítica, na qual, em vez de focar exclu- sivamente as maravilhas da ciência, é importante considerar aspectos como riscos legais e éticos; incertezas dentro da comunidade científica; impacto da

ciência e da tecnologia na sociedade". Já o editor de ciência da Folha de S.Pau- lo, Marcelo Leite, alerta para o risco de reduzir-se o espaço de um jornalismo científico sério, que não recua diante das dificuldades do tema quando ele é socialmente relevante, dada uma ten- dência de se divulgar mais e mais te- mas de saúde, na forma facilitaria de um aconselhamento descartável, em particular nas revistas semanais (ver artigo na página 62).

Já o diretor de jornalismo da TV Cultura, Marco Antônio Coelho, con- sidera que "a tradução do conhecimen- to científico para uma linguagem de TV é de interesse público e está no man- dato da Cultura". Essa é uma linha de trabalho que a atual gestão persegue, continuará a perseguir e tem inflexão na pauta do jornalismo diário, diz Co- elho, para quem "a principal mercado- ria do futuro é a idéia. Desenvolver o conhecimento é fundamental para o crescimento social". Nesta concepção, acrescenta, o jornalismo tem papel fun- damental e a divulgação científica é

dele parte integrante. Coelho avalia que o espaço ocupado por essa divulgação ainda é pequeno - "talvez 5% da pro- gramação" -, mas garante que é uma área em expansão.

A divulgação de ciência tem um belo futuro garantido também no jor- nalismo impresso diário, a depender dos vaticínios do diretor de redação da Folha de S.Paulo, feito em entrevis- ta publicada na Pesquisa FAPESP nú- mero 95, de janeiro de 2004. Ali, Octa- vio Frias Filho dizia que o interesse jornalístico pela ciência só tende a au- mentar. "Primeiro, porque a ciência exerce uma influência, ainda que indi- reta, muito grande na vida das pes- soas", o que só deve aumentar numa civilização técnico-científica como a nossa. E, em segundo lugar, "porque a ciência passou a ser vista como uma das portas de ingresso do público mais jovem ao hábito de ler jornais". Públi- co, acrescenta ele, que é o enfant gâté dos jornais hoje, quando é imensa a preocupação com a formação de no- vos leitores. •

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

POPULARIZAÇÃO

Em ritmo * de samba Pesquisadores usam novas linguagens para levar a ciência ao público

CLAUDIA IZIQUE

Enquanto os sambistas da Unidos da Tijuca evoluíam na Marquês de Sapucaí, com o enredo "A arte da ciên- cia no tempo do impossível", no último Carnaval, os pesquisadores da Casa da Ciência da Universida- de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) comemora-

vam os resultados de um projeto ousado. Junto com o car- navalesco Paulo Barros, reconstituíram a história das mais notáveis descobertas científicas, traduzindo-as em alegorias, fantasias, sons e ritmo. Alguns chegaram a temer que o enredo reeditasse o Samba do crioulo doido, obra-prima de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto. No entanto, dollys, santos dumonts, alquimistas, passistas enroladas nas espirais do DNA e até Roald Hoffmann, prêmio Nobel de Química em 1981, fundiram-se em sincretismo e samba para empolgar o público e garantir à escola o título de vice-campeã do Carna- val carioca de 2004. "Foi o momento certo de ver o que signi- fica a popularização da ciência", lembra Fátima Brito, direto- ra-executiva da Casa da Ciência.

Iniciativas como a da equipe da UFRJ são cada vez mais freqüentes em todo o país. Também neste Carnaval, em Ma- naus, a 4 mil quilômetros do Sambódromo, a escola de sam- ba A Grande Família homenageou os 50 anos do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Inpa). O carro abre-alas, que aludia a um laboratório de pesquisa, era seguido pela ala dos pesqui- sadores, dos meliponicultores (criadores de abelha sem fer- rão) e das plantas medicinais, entre outros. O último carro, que representava o programa de pós-graduação em Biologia Tropical e Recursos Naturais, puxava a ala da aquacultura, dos pesquisadores do futuro e das baianas. E ainda dava ca- rona ao bloco Eles e Elas, formado por gays e simpatizantes que, ainda que não integrassem o enredo, fazem parte da tra- dição da escola.

O impacto da presença de temas de ciência no Carnaval carioca e manauense e a receptividade do público empolga- ram o físico Ildeu Camargo Moreira, diretor do recém-criado Departamento de Popularização e Divulgação da Ciência, da

Q& •°k\

Tributo à clonagem: passistas da ala Dolly

Molécula de DNA em ritmo de samba

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Carro abre-alas da Unidos da Tijuca: os homens maravilhosos e suas máquinas voadoras

Homenagem a Franklin: pára-raios A física avança: energia mecânica Energia elétrica na Sapucaí

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Ádamo Siena; 14 anos, conta em quadrinhos a Agonia de uma célula invadida por vírus.

Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social do Ministério da Ciên- cia e Tecnologia (MCT). Para ele, estes são dois exemplos inequívocos de que é possível aproximar ciência e cultura no país. "A ciência é técnica e não tem a ver com cultura e arte. É preciso adotar um conjunto de ações para aproximá-las."

Ciência pela TV - Desde o início de abril, Moreira está empenhado na ta- refa de identificar, articular e apoiar ações que consolidem uma cultura de educação para a ciência em todo o país. Ele rodou o Brasil para fazer um amplo levantamento do estado da arte de popularização e difusão da ciência. Constatou que a divulgação científica melhorou muito nas últimas duas dé- cadas, com um aumento substantivo no número de revistas, livros, sites e uma maior abertura da mídia para o tema (ver reportagem na página 48). "Mas a situação da educação científica e da popularização da ciência está mui- to distante do razoável", observa. Os problemas vão desde a formação de "comunicadores" até a ausência de po- líticas para o tema.

Concluído o diagnóstico, Camargo Moreira deu início à elaboração de um grande projeto de popularização e di- vulgação da ciência e tecnologia, que prevê desde o apoio à criação de novos museus de ciência até o estímulo a ex- posições itinerantes, incluindo esfor- ços para a ampliação da presença da ciência na mídia, principalmente na TV. "Junto com a revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Pro- gresso da Ciência (SBPC), estamos ne- gociando com a Rede Globo a realiza- ção de inserções rápidas sobre o tema e, com o mesmo objetivo, articulamos

contatos com os canais de TV ligados à Radiobrás", conta Moreira. Essa idéia também será estendida para a mídia impressa.

E mais: em parceria com o Labo- ratório de Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o MCT - por meio da Fi- nanciadora de Estudos e Projetos (Fi- nep) - vai apoiar a construção de um portal de popularização da ciência e tecnologia, que reunirá as iniciativas disponíveis sobre comunicação em ciên- cia e jornalismo científico, entre outros. Também se articula a realização de um fórum nacional de popularização da ciência, envolvendo o Ministério da Educação e outros órgãos do governo, com setores representantes da comuni- dade científica de todo o país. "O fó- rum tem que ter caráter nacional, já que nossa meta é implantar uma polí- tica nacional de ciência", justifica.

Esse conjunto de iniciativas atingirá o ápice na Semana Nacional de Ciência e Tecno- logia, que o MCT está empe- nhado em organizar no se-

gundo semestre, que reunirá escolas, universidades, agências de fomento, entre outros, numa promoção simul- tânea de eventos ligados à pesquisa e ao conhecimento.

A proposta do MCT pretende se articular com as políticas de estímulo à inovação no país. "Para estimular a inovação é preciso criar uma mentali- dade favorável com o público mais amplo", argumenta Moreira. Algumas medidas práticas já foram tomadas, dando mostras da disposição do go- verno federal de fazer avançar o pro- jeto. A Finep, por exemplo, destinou R$ 1,3 milhão do Fundo Setorial de

Energia para a difusão de informações sobre o tema. O Centro Museus de Ciências recebeu R$ 4 milhões para a ampliação de projetos - que inclui a incubação de museus - e, em breve, serão anunciados recursos para apoiar projetos de "ciência móvel", como o do Projeto Museu Itinerante (Promusit), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Um caminhão de reboque - O Promu- sit, na verdade, é um reboque com 21 metros de comprimento, puxado por um caminhão, que transporta 60 expe- rimentos e dezenas de kits pedagógicos utilizados em oficinas e cursos dirigi- dos para alunos e professores. Descar- regado com o auxílio de um elevador capaz de suportar 1 tonelada e meia, o reboque se transforma num moderno auditório com ar condicionado, equi- pamento de áudio, home theater, siste- ma de comunicação via Internet e saté- lite, entre outros.

A equipe do Promusit é formada por 12 professores, 10 técnicos especia- lizados e 10 estagiários capacidados para ensinar ciência "de forma lúdica e interativa", como diz Jetter Bertolet- ti, diretor do Museu de Ciência e Tec- nologia da PUC-RS, idealizador do projeto. Este, inaugurado em 2001, conta com o apoio da Fundação Vitae, Banco Santander, Conselho Nacio- nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além da própria universidade. No ano passado, o mu- seu móvel foi visitado por mais de 200 mil pessoas em mais de 20 cidades gaúchas. "O museu combina o pro- cesso de popularização da ciência com a educação inicial e continuada de professores da área científica", con- ta Bertoletti.

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e descreve a batalha bem-sucedida dos anticorpos contra os vírus

g| A popularização e a educação /^ para a ciência se confun-

/^^^ dem", afirma Leopoldo de È ^ Méis, professor titular de

-A~ JL. Bioquímica do Instituto de Ciência Biomédica da UFRJ, autor de uma série de livros em quadrinhos sobre ciência, uma peça de teatro e um filme de divulgação científica. "O co- nhecimento novo tem crescido expo- nencialmente. As informações, muitas vezes, ficam atrapalhadas e é difícil to- mar decisões", observa. Há anos, ele busca obsessivamente desenvolver uma linguagem adequada para tornar as informações científicas mais pala- táveis para jovens e crianças. Nota que, fora do ambiente acadêmico, jornais, revista, TVs, entre outras mídias, apre- sentam a ciência ao cidadão enfatizan- do sua aplicação, utilidade e impacto para o desenvolvimento do país. "Ra- ramente se fala sobre o lado lúdico da ciência, ligada ao desejo do homem de entender o Universo", diz. Essa omissão contribui para que os cientistas sejam

representados como "loucos, desvaira- dos e solitários" e a ciência como uma atividade "lógica", desprovida de cria- tividade, conforme ele constatou em pesquisa realizada com crianças e jo- vens recém-aprovados no vestibular, na década de 1980. A arte, ao contrá- rio, era entendida por esse mesmo pú- blico como sinônimo de emoção, cria- tividade, novidades. Foi aí que ele decidiu aprender a linguagem das ar- tes para ensinar ciência. Em 1996, com o apoio da Fundação Vitae e da FA- PESP, lançou o seu primeiro almana- que: O método científico-, distribuído nas escolas. Em 1998 fez o segundo: A respiração e a Ia lei da termodinâmica ou... a alma da matéria. E prepara o lançamento do terceiro, sobre a histó- ria das vacinas.

Várias outras experiências de in- terface entre ciência e arte estão em desenvolvimento no país. O Ciência em Cena, um dos projetos do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é um deles. A primeira peça,

O mensageiro das estrelas, de Ronaldo Nogueira da Gama, que contava a vida de Galileu Galilei, atingiu um público estimado em 28 mil pessoas, e a segunda, O mistério do barbeiro, re- lata a epopéia da descoberta da doen- ça por Carlos Chagas e está em cartaz desde 2000.

Monocórdio de Pitágoras - A integra- ção entre ciência e arte também é o carro-chefe da programação da Esta- ção Ciência, em São Paulo, atualmen- te sob administração da Universidade de São Paulo (USP). Até meados de ju- nho, crianças e jovens poderão assistir à peça O monocórdio de Pitágoras, uma aula-espetáculo que mistura música e matemática por meio da utilização de escalas musicais descobertas pelo filó- sofo grego Pitágoras. No texto, o autor e ator Pedro Paulo Salles interpreta um artista popular nordestino que relata em cordel histórias que lhe foram con- tadas por antepassados sobre a criação do monocórdio - um instrumento mu-

Museu de ciência percorre o Rio Grande do Sul num caminhão de 21 metros

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sical de uma corda só -, os experimen- tos e deduções de Pitágoras para che- gar às escalas musicais. "O teatro, por seu potencial comunicativo, configu- ra-se como uma ferramenta funda- mental para o aprendizado e difusão científica", comenta Cauê Matos, coor- denador do Núcleo de Artes Cênicas da Estação Ciência, responsável pela elaboração dos textos. As montagens dos espetáculos são realizadas pelo Grupo de Teatro Estação Ciência da Cooperativa Paulista de Teatro. A ex- pectativa é de que Pitágoras siga a mes- ma carreira de sucesso de A estrela da manhã, encenada 130 vezes para um público de 25 mil pessoas.

A Estação Ciência foi inaugu- /% rada em 1987, por iniciati-

L^L va do CNPq, num antigo i ^k galpão reformado, ao lado

^L. JL- da Estação Ferroviária da Lapa, cuja arquitetura remonta o início do século 20. O termo Estação, com o qual foi batizada, remete às via- gens ao mundo do conhecimento cien- tífico e à sua proximidade com as esta- ções de trem e metrô.

Cerca de 1.700 crianças e jovens vi- sitam a Estação Ciência diariamente. "No final de semana eles geralmente voltam acompanhados pelos pais", conta Wilson Teixeira, diretor. Além das peças de teatro, eles podem conhe- cer o Laboratório Virtual, que apre- senta animações e jogos interativos com o objetivo de divulgar a ciência de maneira lúdica e divertida com o apoio da Internet.

Educação para a cidadania - Se as ex- periências da UFRJ, Inpa, PUC-RS, Fiocruz e Estação Ciência podem ser consideradas bons modelos de proje- tos de popularização do conhecimen- to, as atividades desenvolvidas pelos Centros de Pesquisa, Inovação e Difu- são (Cepids), mantidos pela FAPESP, são exemplos de sucesso de difusão científica.

O Centro de Terapia Celular (CTC), em Ribeirão Preto, além de in- vestigar a utilização de células-tronco no tratamento de doenças, desenvolve projetos educacionais com alunos de ensino fundamental e médio da rede pública. E aposta no desenvolvimento de jovens talentos. Por meio de ativi- dades promovidas pela Casa da Ciên-

0 Monocórdio de Pitágoras, encenado na Estação Ciência: experimentos e deduções até chegar à escala musical

cia - mantida pelo Hemocentro e que, em breve, se transformará no Museu e Laboratório de Ensino de Ciências - e programas como o Caça-Talentos, o centro desenvolve metodologias de aprendizagem que incentivem a curio- sidade e a prática científica. Os alunos são selecionados por seus professores em escolas de toda a região para, jun- tos, desenvolver atividades de inicia- ção científica fora da sala de aula. "Tratamos de assuntos essenciais para a nossa vida, não só para a educação em ciência como também para o exer- cício da cidadania", explica Marco An- tônio Zago, coordenador do CTC.

Nos cursos utiliza-se com freqüên- cia técnicas de dramatização para fixar conceitos relacionados a questões de difícil compreensão, como clonagem, transgênicos ou o desenvolvimento de

doenças. Joyce da Silva e Daine Dias, por exemplo, ambas com 14 anos, es- creveram uma peça de teatro para pre- venir as colegas contra o câncer de mama, popularizando conceitos espe- cíficos. Na peça, a paciente, cujo nome é Maria, pergunta à médica Débora como foi o resultado do exame. A mé- dica responde: "Você não possui me- tástases. Metástase é quando células do tumor caem na corrente sangüínea e espalham-se para outras partes do cor- po. Você é uma mulher de sorte, pois o nódulo estava em sua fase inicial, dan- do a você total capacidade de se tratar a tempo". Maria, revelam as duas me- ninas, tratou-se com a doutora Débora até curar-se da doença.

Os projetos desenvolvidos pelo centro têm como eixo aulas ministra- das pela equipe de pesquisadores, in-

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vestigação em grupo e atividades nas escolas. Inclui, ainda, a edição de um jornal, a divulgação de informações num site e outras formas de expressão que, como diz Zago, permitem conta- bilizar, na medida exata, a sua com- preensão da matéria. Ádamo Siena, de 14 anos, que integra a equipe de alunos do CTC desde 2002, fez uma história em quadrinhos com 75 lâminas basea- do na peça Agonia de uma célula, escri- ta e produzida por ele e seus colegas, com o intuito de popularizar alguns conceitos sobre o vírus {veja ilustração na página 50). "Se o aluno consegue fa- zer, significa que entendeu, que pensou no assunto e que tem capacidade de decidir sobre o assunto", observa Za- go. Fã da biologia celular e molecular, Ádamo e outros três colegas de grupo foram selecionados e vão receber uma

bolsa no âmbito do Programa de Inicia- ção Científica Júnior, que conta com o patrocínio da FAPESP e do CNPq.

O reforço para as ativida- des de professores em sala de aula também é a tônica das atividades de difusão do Centro de Es-

tudos do Genoma Humano, outro dos dez Cepids apoiados pela Fundação. Já foram publicados três volumes sob o tí- tulo Conceitos de biologia, dois livros paradidáticos sobre clonagem humana e seqüenciamento de DNA e um guia de apoio didático para professores. "O centro também promove cursos para professores de ensino médio e para jor- nalistas interessados em genética mo- derna", conta José Mariano Amabis, coordenador de Difusão. Entre os pro-

fessores, a área de genética molecular é praticamente desconhecida. E não exis- te material didático disponível para que possa se informar sobre temas como teste de paternidade e organismos ge- neticamente modificados, entre ou- tros, que já fazem parte do universo de dúvidas de grande parte das crianças e jovens . "O nosso objetivo é melhorar a qualidade do ensino, trabalhar com conteúdos básicos da genética e prática pedagógica", diz Amabis.

Hologramas e Newton - Em outro Ce- pid, o de Pesquisa em Óptica e Fotôni- ca (Cepof) - que reúne pesquisadores do Instituto de Física da Unicamp, do Instituto de Física da USP em São Car- los e do Instituto de Pesquisas Energé- ticas e Nucleares (Ipen) -, a televisão, o rádio e os jornais da região são utiliza- dos como veículos para a divulgação de conceitos e popularização da ciên- cia. Em São Carlos, por exemplo, o centro montou um pequeno estúdio onde são produzidos os programas da série Vídeo e ciência, com 5 a 15 minu- tos de duração, e que tratam de 50 te- mas como hologramas, laser, leis de Newton, leis de Kepler, entre outros, todos eles à disposição das escolas. Outra série, batizada de Na Trilha dos Cientistas, já com 18 volumes, conta a história dos autores das grandes des- cobertas desde Arquimedes até Pascal, incluindo os brasileiros Vital Brazil e Carlos Chagas. "Todos os títulos, além ser distribuídos nas escolas, estão dis- poníveis nas videolocadoras de São Carlos e os interessados podem retirá- los sem custo", conta Wanderly Bagna- to, coordenador do Cepof. "Há procu- ra e interesse, já que as locadoras estão pedindo mais cópias."

O mesmo estúdio produz, também em formato para TV, uma série de au- las dirigidas para estudantes universitá- rios do primeiro e segundo anos dos cursos de ciências exatas. Os cursos são veiculados na TV Universitária, distri- buída pela Net e TV Comunitária. "As aulas são utilizadas em faculdades par- ticulares", orgulha-se Bagnato. O centro mantém ainda um programa diário na Rádio USP - batizado com o nome Mi- nuto da ciência, com informações so- bre plantas medicinais, agrotóxicos, radioterapia, entre outros - e uma co- luna dominical publicada em vários jornais da região. .

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ARTIGO CARLOS VOGT

Ciência, divulgação e leitura

O movimento editorial no Brasil em torno da divulga- ção científica tem crescido consideravelmente nos últimos anos se observarmos, não fossem outros in-

dicadores, o número de livros e revistas e as editorias e pági- nas especiais da grande imprensa dedicados ao tema.

Talvez a referência mais importante seja a criação, em 1949, da revista Ciência e Cultura, idealizada por José Reis e pelo grupo de pesquisadores que fundaram a SBPC no ano anterior. A permanência da revista e sua continuidade por 56 anos, durante pelo menos três fases de evolução editorial conseqüente, é um testemunho desse movimento. E o seu ideário, apresentado na primeira edição, mantém atualidade e presença nos objetivos daqueles que militam no jornalismo e na divulgação científica. A revista de- finia-se como veículo de difusão não apenas do conhecimento científico, mas de dados relativos à projeção desse conhecimento na sociedade. Ciência e Cultura tem hoje uma tiragem de 25 mil exemplares e circula por venda, as- sinatura e distribuição institucional.

Em 1982 nasce a revista Ciência Hoje, também da SBPC, hoje com tira- gem de 15 mil exemplares - cujo suces- so leva à criação da argentina Ciência Hoy. Ao lado da Ciência Hoje para Crian- ças, com 200 mil exemplares, a revista constitui um marco da consolidação da divulgação científica no país. Ambas também são vendidas, assinadas e distribuí- das institucionalmente. Ainda na SBPC, o Jornal da Ciência e o JC e-mail tratam de política de ciência e tecnologia, com forte papel na mobilização da comunidade acadêmica.

A partir da experiência inicial com um boletim informa- tivo, criado em 1995, surge, em outubro de 1999, a revista Pesquisa FAPESP, hoje com uma tiragem de 44 mil exempla- res, dos quais 20 mil circulam por vendas e assinaturas e 24 mil por distribuição institucional. Reconhecida por sua qua- lidade gráfica e editorial, a revista é leitura indispensável para o acompanhamento da produção científica e tecnológi- ca em São Paulo e no país, pautando a mídia e o cotidiano do leitor interessado na área.

Em 1999 foi lançada pelo Laboratório de Estudos Avan- çados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp, a revista eletrô- nica ComCiência (www.comciencia.com.br), que logo no ano seguinte passaria a ser mais uma publicação da SBPC com número expressivo de leitores. Em 2001 foram 392 mil acessos ao site; em 2002, mais de 1,1 milhão; e, em 2003, quase 2,2 milhões.

Especializada em divulgação de ciência, tecnologia e apli- cação, como se define, a Scientific American tem 15 edições in-

A FAPESP enfatiza sua missão

de apoiar a pesquisa e divulgar

o conhecimento

ternacionais, 159 anos de história, e começou a ser publicada no Brasil em junho de 2002, o que confirma o movimento de ampliação do interesse editorial do público sobre o tema.

Em 2003 foi criada a Agência FAPESP (www.agencia. fapesp.br), cujo slogan "Divulgando a cultura científica" ex- pressa bem sua fidelidade à dinâmica das relações entre ciên- cia e sociedade por meio de notícias e informações nacionais e internacionais sobre a produção e políticas no setor. Em pouco mais de um ano, a Agência acumulou mais de 25 mil assinantes e seu site recebe mais de 8 mil visitas diárias.

Quando se consideram ainda as editorias e páginas de ciência em jornais e revistas, as páginas eletrônicas como as de Ciência em Dia, as publicações mais populares como

Superinteressante e Galileu, além de programas no rádio e na televisão, ter- se-á uma medida mais justa e otimista da presença crescente do tema na vida da sociedade. Hoje talvez fosse possível estimar em 5 milhões o número de pessoas - perto de 2,5% da população brasileira - que de alguma forma lêem assuntos relativos a C&T.

Nesse sentido, o projeto A Ciência Nossa de Cada Dia, que a Pesquisa FA- PESP se propõe a desenvolver com a Se- cretaria de Estado da Educação, além de constituir-se em um meio para mobili-

zação do jovem secundarista da rede pública de ensino para o amor à ciência - o jovem amador da ciência -, é também uma forma de ação eficaz para a criação de uma cultura cien- tífica na juventude, que a disponha positivamente para a amizade do conhecimento e para o conhecimento amigo da razão e do entendimento, tanto do ponto de vista técnico quanto do social.

Tomando as matérias publicadas pela Pesquisa FAPESP como referência para guias mais didáticos, mas não menos agradáveis, para professores e alunos, o projeto deverá traba- lhar com mais de 11 mil professores e envolver 6 milhões de estudantes. Como conseqüência, será alongado o diâmetro da espiral da cultura científica e ampliada a base de leitores jovens de interesse mobilizado para questões atinentes ao conhecimento e suas relações com a sociedade. Assim, a FAPESP enfatiza sua missão institucional de apoiar a pesqui- sa e divulgar o conhecimento produzido pela ação de seus programas de fomento.

CARLOS VOGT é poeta e lingüista, presidente da FAPESP, coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp (Labjor) e vice-presidente da SBPC

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ARTIGO JOSé FERNANDO PEREZ

Celebração de uma feliz parceria

Em maio de 1997 fui convidado para um almoço na redação do jornal Folha de S.Paulo. Durante pouco mais de uma hora e meia, fui submetido a uma ami-

gável, mas intensa sabatina sobre a ação da FAPESP no fi- nanciamento à pesquisa. Devemos lembrar que, naquele momento, estávamos prestes a lançar o programa de apoio à inovação tecnológica em pequenas empresas, o PIPE. O projeto Genoma seria lançado em outubro do mesmo ano. O diretor-geral do jornal, Octavio Frias de Oliveira, coman- dava uma inteligente argüição e, no meio da conversa, após alguns segundos de silêncio, fuzilou com um veredicto in- contestável: "Se vocês são tão bons assim, então são muito ruins de marketing!" Absorvido o impacto de uma declara- ção tão franca e espontânea, só me res- tou refletir e concordar: de fato, uma instituição que recebe 1% da receita tributária do estado não apenas tem obrigação perante o contribuinte de mostrar claramente o que faz, mas mostrar também que faz bom uso des- ses recursos.

Como mostrar de forma, ao mes- mo tempo, precisa e acessível ao não especialista o que faz, como faz e quais os resultados do que faz uma agência de fomento à pesquisa científica e tec- nológica? Desde agosto de 1995 já circulava entre a comunidade científica do Estado de São Paulo o boletim Notícias FAPESP. A iniciativa começara ti- midamente, com apenas quatro páginas em branco e preto. Os parcos mil exemplares impressos chegavam apenas aos diretores das faculdades e dos departamentos das universi- dades, sem alcançar a maioria dos pesquisadores. Tampou- co o contribuinte paulista sabia da existência do boletim e do fim dado ao seu dinheiro. Apoiado pela FAPESP e pelos pesquisadores paulistas, Notícias FAPESP cresceu, se transfor- mou na revista Pesquisa FAPESP, em outubro de 1999, e co- meçou a ser distribuído para os pesquisadores da Fundação.

Desde então a revista virou um instrumento importan- te para o sistema científico do estado. Criou-se uma siner- gia entre o que acontecia nas universidades, institutos - e até em empresas que apostavam na inovação - e a difusão sistemática dessas ações. A comunidade de pesquisadores começou a ter uma melhor compreensão da importância de divulgar os projetos, de mostrar como é gasto o dinhei- ro do seu imposto. Em março de 2002, outro salto: a publi- cação abriu-se em termos editoriais para a produção cien- tífica nacional, ganhou as bancas das principais cidades brasileiras e passou a receber anúncios e assinantes, uma forma de compensar, em parte, o investimento na revista.

A revista garantiu a qualidade da

informação científica pela interação

com os pesquisadores

A mídia aprendeu a ver a FAPESP com outros olhos a partir do crescimento da revista. Como é distribuída para os jornalistas, aos poucos as reportagens que apareceram pela primeira vez em Pesquisa FAPESP passaram a ser in- corporadas à pauta dos principais veículos de comunicação do país - não sem alguma resistência. Um episódio emble- mático ilustra as dificuldades daqueles tempos. Quando do lançamento do projeto de seqüenciamento da bactéria Xy- lella fastidiosa, em 1997, não houve praticamente cobertu- ra da imprensa. Apenas os dois principais jornais de São Paulo deram a notícia, um deles com dias de atraso. Hoje esse quadro mudou. Os programas e projetos financiados pela FAPESP são divulgados em todos os veículos porque a

mídia reconhece o valor que eles têm para a sociedade.

Pesquisa FAPESP é parceira impor- tante da Fundação e, conseqüentemen- te, da comunidade científica - hoje não só a paulista, mas a nacional. A publi- cação transformou os projetos de pes- quisa em fonte inesgotável de ins- piração para a prática do jornalismo científico. Garantiu a qualidade da co- municação também por ser feita por jornalistas, com perfeito domínio do instrumento, a revista. Garantiu a qua- lidade da informação científica, pela in-

teração e colaboração com os pesquisadores. A parceria entre revista, Fundação e cientistas já rendeu outros frutos, como a Agência FAPESP, que faz a divulgação eletrônica diária, via Internet, da ciência e da política científica e tecnológica brasileira.

A criação da revista e da agência nasceu também por- que a missão institucional da FAPESP, como prevista pela lei, inclui a divulgação das atividades de pesquisa que fi- nancia. Por essa razão, a publicação da revista se dá por meio de um projeto especial, coordenado por um filósofo, o professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, e com um Conselho Editorial formado por cientistas que acompa- nham de perto a ação da instituição. Essa condição de pro- jeto, ainda que especial, garante que a revista consiga cum- prir a dupla finalidade de ser ao mesmo tempo um veículo institucional e um divulgador da ciência. O marketing su- gerido por Octavio Frias de Oliveira tinha toda a razão de ser. Hoje ele é muito eficiente, não para vender ilusões, mas como instrumento de informação para o contribuinte e o pesquisador.

JOSé FERNANDO PEREZ é diretor científico da FAPESP

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ARTIGO MARCELO LEITE

Promessas e problemas

A divulgação científica atravessa um período de- L\ ficado no Brasil, prenhe de promessas e de

./. \. problemas. Nunca a ciência natural neces- sitou tanto de uma cobertura jornalística em senti- do pleno, informativa e crítica, capaz de aparelhar minimamente cidadãos interessados para tomar parte em debates nacionais da importância das ins- peções da Agência Internacional de Energia Atô- mica, para ficar num exemplo recente. E também nunca foram tão pesados os efeitos dos constrangi- mentos econômicos sobre a prática jornalística, com reflexos imediatos sobre aqueles setores ainda percebidos como menos prioritários, como as edi- torias de ciência.

A situação financeira preo- cupante e os cortes seguidos de recursos trazem consigo o risco de um retrocesso no que toca ao prestígio e ao reconhe- cimento do jornalismo cien- tífico dentro das próprias redações, que haviam sido conquistados a duras penas e com muito investimento na formação de um grupo pe- queno, porém consistente, de profissionais. Parte desse ca- bedal se encontra agora sob ameaça, com o fantas- ma do desemprego e o aviltamento geral das con- dições de trabalho.

Embora a crise da indústria de comunicação se- ja sistêmica, nas revistas semanais seus efeitos tal- vez não tenham sido sentidos tão fortemente na área de divulgação científica. Mesmo que postos de trabalho tenham sido cortados aí, o fato é que nos últimos anos se acentuou a tendência de dedicar mais e mais espaço a temas de saúde. Além de ser um provável sintoma de deterioração da qualidade de vida, sob as novas exigências do desinvestimen- to social e da hiperperformance individual no tra- balho, essa tendência acaba por traduzir-se no que muitos consideram o avesso do jornalismo científi- co: um tipo de aconselhamento descartável, ainda que envernizado por pinceladas de ciência - notí- cias que se podem usar (e deitar fora) como lenços de papel.

Algo de similar parece laborar contra o jorna- lismo científico de estirpe - aquele que não recua diante da aparência de impenetrabilidade quando a relevância científica se impõe - nas revistas men-

É preciso criar uma rede de apoio

social para a pesquisa como

um valor cultural

sais dedicadas ao tema. O canto da sereia sugere como regra tornar importante o que não é mais que interessante, exatamente o oposto do que man- da a boa prática. Notícia auspiciosa, a esse respeito, é que permanecem na praça ao menos duas publi- cações, Scientific American Brasil e Pesquisa FA- PESP, que insistem no desafio de tornar compreen- sível e atraente o mundo das ciências naturais sem recorrer ao expediente fácil de borrar suas frontei- ras com as do que se poderia chamar de paraciên- cia. Entre as duas publicações, é imperativo ainda destacar a marcha consistente de Pesquisa FAPESP no sentido de libertar-se dos horizontes paulistas e

ganhar representatividade em termos de pesquisa nacional, nicho que em tempos menos bicudos foi pioneiramente ocupado pela revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Não serão veículos impres- sos como esses, porém, aque- les capazes de sanar a princi- pal deficiência da divulgação científica no Brasil: falta de ca- pilaridade. Como é da nature-

za dos jornais diários, suas reportagens de ciência não conseguem mais do que gerar lampejos mo- mentâneos na tela do radar da opinião pública, en- quanto as revistas, especializadas ou não, são atraí- das pelo brilho fugidio do mercado ou então vêem seus esforços consistentes esvaírem-se em tiragens irrisórias. O que faz falta no Brasil é um grande portal de ciência para o público, como o EurekA- lert dos Estados Unidos (www.eurekalert.org), que sirva tanto para leigos em busca de informação quanto para professores secundários carentes de atualização e jornalistas sedentos de pautas para reportagem. Enquanto não se criar uma rede de apoio social para a pesquisa científica como um valor cultural, e não apenas como fator de inova- ção e de competitividade econômica, o jornalismo científico - e talvez o próprio empreendimento de pesquisa - continuará abandonado aos fluxos e re- fluxos da conjuntura.

MARCELO LEITE é jornalista, editor de Ciência da Folha de S.Paulo e autor de O DNA (Publifolha).

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Marche aux puces

G

NELSON DE OLIVEIRA

CC^ 1 ogito, ergo sum", Alberto leu pela enésima vez. Esculpido no cabo de vários martelos de osso: "Cogito, ergo sum". No cabo de centenas de martelos fabricados pelo Homo habi-

' lis há 2 milhões de anos. O Mercado das Pulgas é pródigo em prodígios desse tipo. Quantas cabaças e cabeças esses martelos teriam fraturado, as pulgas e os percevejos encharca- dos de cerveja não quiseram revelar. Alberto, o pensamento metido nas nuvens, meditava sobre esses ossos assassinos quando, opa. Puxão meio amarrotado de pigmeu marroquino na manga amarelo-manga do brasileiro:

- Meciê... Qué compra um balão, qué? - quis saber o pai de família, refém das treze bexigui- nhas coloridas que por bem ou por mal teriam que ser transformadas no peixe e no pão desse dia odioso.

Não. Alberto não queria. Já estava farto dos balões. Paris. Apesar do outono, Paris. Apesar dos pesares do princípio do século e do vento meio tu-

piniquim meio francês, Paris Paris Paris sempre Paris. Foi aí que Alberto e André se conheceram. Ódio à primeira vista. Antipatia no Mercado das Pulgas. Disputa pela miniatura de Paris, mara- vilha encontrada por acaso entre mancebos de madrepérola e comadres de alumínio. Por puro acaso descoberta entre camarões de Bengala e bengalas de Camarões, pequineses de Havana e havanas de Pequim. "É minha." "Não, é minha." Briga braba pela misteriosa miniatura da Cida- de Luz, perdida no movimento de minúsculas engrenagens, roldanas e alavancas. Alberto, olhos baços - "Eu pago xis!" -, abriu a carteira de couro, que recebeu o pontapé certeiro de André.

- Quem o senhor pensa que é? Sabe quem eu sou?! - O senhor é quem pensa que é? Quem sabe eu sou! Alberto, a magreza exata da certeza geométrica, do cálculo renal multiplicado pelo vetorial.

O bigodinho, integral tripla forjada na bigorna. O quadril, raiz quadrada sob o quadriculado do casaco. As sobrancelhas, seno e cosseno coçando-se mutuamente. Não restava dúvida, Alberto estava furioso. Alberto, coberto de razão, espumava algarismos, dardejava perdigotos racionais e irracionais na testa do adversário. Cegado pelo dialético dilema da ação que exigia a devida rea- ção, não reagia. Pois é, a devida reação... Que reação? Sei lá, qualquer reação, reaja, homem! De que jeito? Revida, dá o troco, ora! Tempo, preciso ganhar tempo, minha carteira, cadê? Ali. Onde? Caída entre as tralhas. Abaixou para pegá-la, espanou a poeira - eureca, capoeira! - e aplicou na cabeça de André o seu famoso rabo-de-arraia.

- Puta que o pariu! - Tomou, papudo? André, a consistência esférica e tranqüila dos pesadelos a céu aberto, dos campos magnéticos

do amor louco. O cabelo, máscara moçambicana repartida em quatro. A barriga, balão atmosfé- rico tirado das comédias de Mack Sennett. As orelhas, pratos em branco-e-preto perfeitos para o acorde final da Nona sinfonia. O doutor André abanava-se, bufando bananas e rabanadas. Aba- nava-se, pronto para operar ao deus-dará. Os punhos fechados, prontos para as futuras fraturas no queixo do engenhoso engenheiro, Alberto.

- Trouxe-mouxe! - Txucarramãe! No famigerado Mercado das Pulgas, trecos e cacarecos por todos os lados. E daí? Alberto e

André só tinham olhos ouvidos nariz boca e mãos para a pequena Paris. Nela tudo era réplica. Cada passo dado na grande Paris repetia-se pé ante pé na pequena. Ah, pequenina Paris! Ape- sar das suas minúsculas mulheres de seda, dos seus reduzidos anarquistas de marfim, dos balõe- zinhos do sisudo Albertinho e dos poeminhas do jovial Andrezinho, Paris Paris Paris sempre Paris. Porque nessa Paris de dimensões mínimas outras dimensões se espalhavam. Para além da largura, da altura e da profundidade, o tempo. Não, meus amigos. Não o tempo presente. O tempo futuro.

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*^^%^HK^^1 f KB^^ãil - Physique du role! - Châteauneuf-du-Pape! Alberto apoiou as mãos na borda do tabuleiro, aproximou da colina de Montmartre os olhos

leves de futuro aeromodelista, quase tocou o queixo na basílica do Sacré-Coeur. Do outro lado a sombra de André provocou terror e êxtase nos vasos sangüíneos da Torre Eiffel, nas articula- ções cartilaginosas do Teatro dos Champs-Élysées. Nesse minuto, no porvir miúdo da miniatu- ra, o brasileiro e o francês viram a libélula alçando vôo no Campo de Bagatelle. "Zeus do céu, o homem voa?!", murmurou Alberto sacando a lupa do bolso do casaco. "Voa Zeus, o homem do céu?!", boquiabriu-se André enfiando o seu olho esquerdo no olho direito alheio, que já olhava através da lupa. A libélula mecânica, mesmo voando baixo, transferia para a História esse peque- no outono em Bagatelle. Alberto e André, a atenção estatelada nessa tela-adrenalina, nessa baga- tela impressionista. Aqui ali acolá o povão uivava, chapéus ao vento: "Voilà, o homem voa!" Ui- vava, pedia bis. Apesar do outono, bis. Apesar do biplano tridimensional movido pelo motor Levavasseur-Antoinette de 50 HP, bis bis bis sempre bis. 14-Bis em Paris.

- Causa mortis! - Sine qua non! Cavalgando os 50 cavalos alados, outro Alberto, o menor Alberto possível nesse princípio ae-

rodinâmico de século. O Alberto da pequena Paris voava 20, 40, 60 trêmulos e minúsculos me- tros de distância. Voava rente ao chão, rente ao mesmo chão em que o nervoso outono naufra- gava. Voava para as décadas que ainda iriam chegar. Voava com a vida, voava para as batalhas aéreas das catalépticas grandes guerras, desaparecia sob a sombra meteorológica do Boeing 747 que eclipsava o sol de norte a sul, voava para o lado oculto da lua. Para o lado oculto da lua que era a íris do olho de André, do olho ampliado pela lente da lupa. No maiúsculo Mercado das Pul- gas a miniatura de Paris ampliava o horizonte perdido, esticava a visada vertical de Alberto e An- dré. Desprendendo-se do jardim lateral, o aroma das flores no cio - delirium tremens, long- plays, sashimis - provocava overdose no ar viciado.

Em consideração aos pífaros da epifania, a dupla fingiu fazer as pazes. - Vamos? - Você primeiro. A dona da miniatura de Paris, mulher do pigmeu que vendia bexigas, estivera esse tempo

todo de olho nos dois possíveis compradores. Estivera de olho, ora se estivera! Literalmente de olho - afinal, tendo perdido o esquerdo no campeonato anual de dardos, sobrara só o outro, o único. Estivera de olho, a dona da miniatura de Paris, nos dois falsos ases da paz, que, a cabeça cheia de bagagem e os respectivos passaportes prontos para voar, embarcaram no perfume das alucinadas flores, rumo ao resto do mundo. Embarcaram, Alberto e André, inimigos íntimos: pi- loto reumático e co-piloto automático em tudo diferentes. É claro que por precaução Alberto le- vou escondido o seu pré-histórico "Cogito, ergo sum". Contra possíveis surtos histéricos do com- panheiro, o precioso martelo de osso.

NELSON DE OLIVEIRA é autor de A maldição do macho e Verdades provisórias, entre outros.

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Coçar-se

RUY CASTRO

Ainda está para ser escrita a história definitiva dessa importante

atividade humana

Um ditado do tempo do Onça dizia que, quando não tem nada para fazer, a pessoa procura sarna para se cocar. Isso podia ser fácil no tempo do capitão-geral Luiz Va- hia Monteiro, o Onça, que governou o Rio de 1725 a 1732, quando a sarna grassa-

va na cidade e ninguém precisava estar desocupado para se cocar. Ao contrário, havia casos em que a vontade de se cocar atingia o cidadão nas situações mais melindrosas ou justamen- te quando ele estava ocupado. Como na vez em que o próprio Onça, ao convocar os jesuí- tas ao palácio para pô-los na linha por algum motivo (vivia fazendo isto), começou a sentir pruridos estranhos por debaixo do gibão. Era uma vontade infernal de se cocar. A comichão aumentou à medida que ele tentava enquadrar os padres da poderosa Ordem e, para não ferir o decoro, não podia meter a mão por dentro da farda para se aliviar. Nem adiantaria porque, sob as calças, ainda havia as ceroulas, formando uma barreira intransponível entre suas unhas e sua pele. Onça acabou dispensando os jesuítas antes da hora e, assim que a úl- tima batina desapareceu no corredor, livrou-se do gibão, arriou as calças, desabotoou as ce- roulas e só então pôde dedicar-se à sarna com a ênfase que ela merecia. E não teve dúvida de que os ácaros lhe foram passados de propósito por um dos jesuítas, sabendo-se que abundavam nos conventos e que os padres prometiam aprontar-lhe alguma para ele parar de persegui-los.

Outro ditado, este do tempo do rei - D. João VI -, dizia que comer e cocar era só come- çar. A data é importante porque, injustamente, a posteridade reduziu D. João a um monar- ca que, sem a menor compostura, tirava frangos assados dos bolsos da casaca de abas largas e os devorava na rua ou onde quer que estivesse. Primeiro, não é verdade que ele fosse esse lambão. Segundo, isto só contribuiu para minimizar suas magníficas realizações no Rio, como construir teatros, bibliotecas, museus, arquivos e escolas, patrocinar músicos brasilei- ros, trazer artistas franceses e cientistas austríacos e fundar toda espécie de serviço público, para não falar da maior de todas, que foi abrir o Brasil ao mercado internacional. Mas é ver- dade - não dá para negar - que D. João gostava de se cocar.

Ou, pelo menos, era levado a isso pelos fungos que insistiam em se imiscuir sob as cal- çolas reais. O problema não era só dele, mas de toda a aristocracia de 1808, e não apenas em terras tropicais. Em pleno navio que as trazia ao Rio, por exemplo, as mulheres da Corte portuguesa foram atacadas por um tremendo surto de piolhos, sem dúvida transmitidos pelos marinheiros. O fato é que, antes de arrancar o couro cabeludo de tanto cocar, as ma- dames tiveram de raspar a cabeça em massa no convés, e foi assim que desembarcaram aqui, carequinhas sob as perucas. (É bom notar que o desaire aconteceu em alto-mar, fora das águas brasileiras - para evitar mais um mal-entendido histórico que manche o bom nome do Brasil.)

D. João foi poupado pelos piolhos do navio, mas, pouco depois de chegar, foi mordido por um carrapato carioca, o que lhe provocou coceiras a ponto de atrasar por alguns dias a fundação da Casa da Moeda. Em compensação, foi esse providencial carrapato o responsá- vel por outra das grandes contribuições de D. João à cultura brasileira: o banho de mar. Para se livrar da coceira, ele adentrou o mar na praia do Caju, a bordo de uma banheira de ma- deira, cheia de furos, e, de roupa e tudo, deixou-se banhar generosamente pelas ondas, sol- tando gemidos de prazer. O iodo e o sal fizeram a mágica, e D. João, mitigado de seu des- conforto, pôde concentrar-se na tarefa de governar o novo centro do Império.

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Ainda está para se escrever uma história definitiva do hábito (ou necessidade) de o ser humano se cocar. E, no entanto, esta é uma atividade que o homem já sofisticou o quanto pôde. Uma prova disso é a invenção do coça-costas - a melhor forma de se chegar a certas partes do corpo que o braço não alcança. Pois o inventor desse instrumento tão humilde e indispensável permanece anônimo: quem terá sido? Já em seu filme Ombro, armas, de 1918, Charles Chaplin mostra Carlitos chegando à sua casamata no front francês da Primeira Guerra e, à falta de coça-costas, instala um ralador de queijo na parede para cumprir aque- la importante função. E há quem não se contente em cocar a si próprio, mas ainda exige o concurso alheio, mesmo que em forma de cafuné. A querida estrela Leila Diniz era uma. É dela a imortal frase "Cafuné, eu aceito até de macaco". Não que faltasse gente a fim de coçá- la - porque, a pedidos, eu mesmo iria para o sacrifício.

Um dos problemas de se deixar cocar por outra pessoa, inclusive macacos, é que nunca sabemos o que nos espera. Cócegas fora do lugar e hora, à traição ou em certos pontos do corpo (cada um tem o seu) podem provocar ataques descontrolados de riso, nem sempre bem aceitos em sociedade. Ao mesmo tempo, ninguém consegue rir ao fazer cócegas em si mesmo - já reparou?

Há cerca de três anos, os cientistas do Instituto de Neurologia de Londres, comandados pelo professor Chris Frith, também chegaram a essa surpreendente constatação. Daí resol- veram investigar por quê. Uma turma de 16 voluntários monitorados por eles dedicou-se a se cocar no laboratório durante cinco horas - cada qual cocando a si próprio - e a única coisa que isso provocou em alguns foi uma irritação nas axilas. Nem uma risota, nem um achaque, muito menos uma gargalhada. Numa segunda etapa, os voluntários foram ligados a um robô programado para fazer-lhes cócegas diferentes das anunciadas. Exemplo: o vo- luntário era informado de que o robô iria coçar-lhe as costelas. Mas o robô, sem aviso pré- vio, ia-lhe traiçoeiramente ao umbigo. Isso provocava um riso histérico no voluntário, mes- mo que, até então, ele fosse insensível ao próprio umbigo. A experiência fazia rir também os outros voluntários que assistiam à cena, o que contagiava os cientistas, os pesquisadores de outras especialidades, os que passavam à toa pelo corredor e, de repente, o laboratório in- teiro era uma pândega.

Recompostos e de volta à seriedade, os neurocientistas ingleses concluíram que ninguém consegue rir ao fazer cócegas em si mesmo porque algo dentro do cérebro prediz o que vai acontecer. Já uma sensação tátil de origem inesperada faz com que a pele emita um sinal de perigo para o cérebro. Quando se dá sem querer uma topada com a canela na quina da me- sinha, esse sinal faz o cérebro reconhecer a dor e o sujeito geme. No caso das cócegas, que são inofensivas, o sinal faz o cérebro achar graça - daí o riso.

Será? Respeito a opinião dos cientistas, mas acredito que deva haver exceções. Uma pes- soa que dá uma topada com a canela na quina da mesinha e sai pulando num pé só, fazen- do "Cain! Cain!", também é capaz de provocar o riso. Pelo menos na outra pessoa.

RUY CASTRO é escritor, autor de, entre outros, Amestrando orgasmos • e outras fixações animais (Objetiva, 2004).

Bípedes, quadrúpedes

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1 CIÊNCIA

LABORATóRIO BRASIL

O Cerrado, seco e belo

Erva-galega: crescimento só em áreas abertas, próximo a rios e córregos

A engenheira florestal Gi- selda Durigan começou há 20 anos a fotografar as plantas do Cerrado paulista com o propósito de facilitar o reconhecimento das espé- cies. Com o tempo, seu tra- balho se somou ao de outros dois pesquisadores do Ins- tituto Florestal, João Batista Baitello e Geraldo Franco, e ao de Marinez Siqueira, do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), e resultou em livro que abre o olhar para as for- mas e sutilezas de uma ve- getação vista normalmente com desdém, o Plantas do Cerrado paulista - Imagens de uma paisagem ameaçada (Páginas & Letras Editora, 476 páginas, R$ 150,00). Pu- blicada com apoio da Agên- cia de Cooperação Inter- nacional do Japão (Jipa), a obra é provavelmente o

maior levantamento já rea- lizado do Cerrado paulista, com descrições de 420 es- pécies, acompanhadas pe- las imagens de folhas, fru- tos e flores. "Só quando se sentem próximas das plan- tas as pessoas começam a pensar em preservação", observa Giselda. Sem dei- xar a ciência ficar atrás da estética, os autores apresen- tam como espécies distin- tas o pau-santo (Kielmeye- ra coriacea), uma árvore de tronco tortuoso e flores grandes com pétalas bran- cas, antes confundida com a malva-do-campo (Kielme- yera variabilis), subarbusto de até 1 metro de altura e flores levemente diferentes. Além disso, reconhecem o cedro-do-brejo {Cedrela odorata variedade xerogei- torí), outra árvore de casca espessa, encontrada exclu-

sivamente em terrenos úmi- dos, como um grupo distin- to do cedro {Cedrela odora- ta), típico de solos secos. Uma das raridades do livro é o feijão-de-campo (Clito- ria densiflora), com até 50 centímetros e flores lilases ou azuladas, nunca antes coletado em São Paulo. "Sua identificação", conta Giselda, "foi quase impos- sível porque a amostra que batizou a espécie está guar- dada na Europa". Os pes- quisadores alertam para a necessidade de preservação desse ecossistema, o segun- do maior do Brasil, do qual, em São Paulo, restam apenas 7% da área origi- nal: a maioria das espécies de Cerrado só sobrevive em seu próprio hábitat, já que ainda não se sabe co- mo cultivar em viveiros grande parte delas. •

■ Cuidado com as ostras frescas

Saborear uma ostra à beira das praias de areia branca e o mar verde-esmeralda do Cea- rá pode não ser assim tão bom: as ostras (Crassostrea rhizophorae) que crescem no estuário do rio Cocô, um dos principais criadouros natu- rais do estado, estão contami- nadas. Os moluscos coletados nessa região e vendidos ainda frescos para serem consu- midos em geral crus apresen- tam quantidades elevadas de duas bactérias encontradas em fezes, a Escherichia coli e a Enterococcus faecalis. A equi- pe da bióloga Regine Vieira, da Universidade Federal do Ceará, analisou 300 ostras e constatou que a taxa de E. coli variou de 2 a 920 unidades formadoras de colônias por grama de ostra, enquanto a de E. faecalis ficou entre 3 e 100, segundo artigo a ser pu- blicado no Brazilian Journal of Microbiology. Embora a le- gislação sanitária brasileira não estabeleça limites de con- taminação por E. coli para moluscos a serem consumi- dos crus, a comparação com os critérios europeus indica que 40% dessas ostras não deveriam ser degustadas fres- cas. Antes do consumo, teriam de passar por um banho pro- longado em água limpa para eliminar as bactérias. "A pre- sença de E. coli nas ostras é um indício de que as águas da região podem conter bacté- rias associadas a doenças", diz Regine. Ela sugere que a Vigi- lância Sanitária adote a quan- tificação dessas bactérias para definir o padrão da qualidade dos moluscos. •

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■ Estratégias para deter a raiva

Das 150 espécies de morcegos encontradas no Brasil, três se alimentam de sangue e só uma, a Desmoáus rotundus, ataca mamíferos como os se- res humanos. O desmatamen- to faz o D. rotundus ou mor- cego-vampiro buscar sangue nos povoados e nas fazendas de criações de gado, porcos e ovelhas próximos a florestas. Para evitar a transmissão da raiva, doença causada por um vírus que afeta o sistema ner- voso, o Ministério da Agri- cultura recomenda o uso de uma pasta à base de warfari- na, substância que impede a coagulação do sangue. Apli- cada no dorso de alguns pou- cos morcegos, a warfarina pode eliminar uma colônia inteira de até 300 indivíduos, por causar hemorragia, já que os animais espalham o veneno ao se lamberem uns aos outros. Mas essa estraté- gia é ineficaz por duas razões, segundo Friederike Mayen, do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisas Agronômicas para o Desen- volvimento (Cirad, na sigla em francês). Em um estudo publicado no Journal of Vete- rinary Medicine Series B, Ma- yen argumenta que, além de não reduzir de modo contí- nuo os casos de raiva entre as criações, o uso da pasta gera um problema ambiental gra- ve: não são apenas os morce- gos-vampiros que morrem, algo por si só desnecessário para evitar a transmissão da raiva. Como as colônias po- dem reunir também espécies que comem frutos e insetos, a warfarina pode atingir essas outras, essenciais à dissemi- nação de plantas e ao contro- le de insetos noturnos. Uma solução mais eficaz? Estimu- lar a construção de casas sem

Inocentes em perigo: nem todo morcego transmite o vírus

frestas, o uso de repelentes de morcegos e a vacinação das criações contra a raiva. No país há 191 milhões de cabe- ças de gado, mas apenas um quarto recebe vacina anti-rá- bica a cada ano. Segundo Guilherme Marques, do Pro- grama Nacional de Controle da Raiva dos Herbívoros do Ministério da Agricultura, o uso da pasta deve, em princí- pio, atingir apenas o Desmo- dus rotundus, que vive em co- lônias coesas, formadas por uma única espécie. •

■ As conseqüências do sono atrasado

Antes de passar por uma ci- rurgia, pergunte ao seu mé- dico qual o horário em que ele costuma dormir. Isso mesmo. Se ele responder que

em geral se deita tarde, não insista em fazer a operação pela manhã, um dos horá- rios preferidos pelos cirur- giões - a menos que não se importe com o risco de ele cochilar durante a operação. Há razão para se precaver. In- teressada na relação entre o ritmo biológico e a sonolên- cia durante o dia, a psiquia- tra Maria Paz Hidalgo, do Hospital Presidente Vargas, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, investigou o padrão de sono e vigília de 310 es- tudantes de medicina, que normalmente dormem me- nos que o necessário, assim como os médicos já formados. Em um artigo publicado no Psychological Reports, Maria Paz relata que - independen- temente do total de horas dormidas - os alunos classi-

Risco extra: sonolência, apesar das horas dormidas

ficados como vespertinos, que dormem e acordam tar- de, correspondentes a quase um terço do total analisado, apresentam uma propensão maior a cochilar ou adorme- cer durante o dia em compa- ração com os matutinos, que deitam e acordam cedo. O resultado preocupa, uma vez que a sonolência diurna está associada à ocorrência de acidentes de trabalho e que- da na produtividade. •

■ Doses além da média nacional

Pode ser uma conseqüência do clima frio. Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, as pessoas estão tomando mais vinho e cerveja do que os organismos internacionais de saúde con- sideram saudável, revela um estudo feito com 1.968 pes- soas com idade entre 20 e 69 anos. Por uma razão ainda desconhecida, o número de adultos que consomem be- bidas alcoólicas em excesso (14,3%) é bem superior à média nacional, estimada em 9,2%. A proporção de ho- mens que ingerem álcool em excesso - mais de 30 gramas por dia, o equivalente a meia garrafa de vinho ou pouco mais que uma garrafa grande de cerveja - é sete vezes maior que a de mulheres. Um em cada três homens bebe mais do que deveria, enquanto o mesmo ocorre com uma em cada 30 mulheres. O consu- mo é maior entre os negros, os indivíduos que freqüen- taram a escola por menos de quatro anos e os homens mais velhos, em especial, aqueles com mais de 60 anos, de acordo com o levan- tamento coordenado por Ju- venal Dias da Costa, da Uni- versidade Federal de Pelotas, e atual secretário da Saúde do município. •

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LABORATóRIO MUNDO

No berço da aurora boreal Pela primeira vez, imagens tênue camada descoberta de satélite mostram detalhes nos limites do campo mag- das finas camadas da parte nético de nosso planeta, em externa do campo magnéti- um estudo publicado na re- co terrestre, a magnetopau- vista Geophysical Research sa, capazes de influenciar o Letters. Essa camada tem comportamento das partícu- aproximadamente 20 quilô- las que circulam nessa região metros de largura e possui do espaço. Pesquisadores do correntes e fortes campos Instituto Sueco de Física Rs- elétricos que influenciam a pacial de Uppsala examina- passagem de partículas de rám as propriedades de uma vento solar - o fluxo de pró-

tons e elétrons emitidos pe- lo Sol - e energia. É quando o vento solar entra em con- tato com os campos mag- néticos terrestres, localiza- dos nos pólos, que se forma o espetáculo multicolorido das auroras boreal e austral, como o mostrado na foto acima. Anteriormente, naves

mada, mas não conseguiram determinar quaisquer pro- priedades devido à escassez de informações. A magneto- pausa passou pela formação dos quatro satélites Cluster em 2002, fornecendo aos pes- quisadores dados para infe- rir mudanças na corrente do campo elétrico e nos proces- sos microfísicos que coman-

conta da existência dessa ca-

■ Botox, desta vez para homens

O Botox, a vedete dos consul- tórios dermatológicos, ganhou uma aplicação insuspeita, ao menos aos olhos das mulhe- res preocupadas em disfarçar as rugas. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh (EUA) e do Hospital Memo- rial Chang Gung, em Taiwan, descobriram que a toxina bo- tulínica é uma promissora al- ternativa de tratamento para milhões de homens que so- frem com o aumento da prós- tata, a chamada hiperplasia benigna. O aumento da prós- tata atinge mais da metade dos homens com mais de 60 anos e 80% dos acima de 80,

levando à necessidade de uri- nar com freqüência, a infec- ções do aparelho urinário e mesmo danos à bexiga e aos rins. A maioria dos tratamen- tos traz o fantasma da impo- tência como um dos possíveis efeitos colaterais. Com o bo- tox, esses problemas não apa- receram, ao menos por en- quanto. Em testes com 11 pacientes, com idades entre 50 e 82 anos e portadores de hiperplasia benigna da prós- tata, injeções de toxina botu- línica aplicadas na própria glândula se mostraram efica- zes entre três e sete dias após a aplicação. Nenhum dos ho- mens submetidos ao estudo havia respondido bem ao tra- tamento convencional (medi- camentos ou cirurgia). Após

receberem o botox, os pacien- tes apresentaram uma redução de 62,3% dos sintomas e me- lhora de 56,5% na qualidade de vida. Houve ainda aumen- to do fluxo urinário e redu- ção do tamanho da próstata, sem aparecem efeitos colate- rais como incontinência uri- naria ou impotência. •

■ Um trem de poluição

Uma parte da poluição do Brasil vem de longe, da Ásia. Em certas épocas do ano, nu- vens carregadas de poluentes se movem rapidamente sobre a África, como impulsionadas por um trem expresso, atra- vessam o Atlântico e aportam na atmosfera brasileira. Bob

Chatfield e Anne Thompson, da Nasa, a agência espacial norte-americana, chegaram a essa conclusão usando dados de dois satélites e sensores co- locados em balões que detec- tam quando a poluição pró- xima da superfície pega esse trem expresso rumo ao Oci- dente, de janeiro a abril. No inverno, período de alta con- centração de ozônio no Atlântico Sul, a poluição no oceano Indico segue uma rota similar para o oeste, im- pulsionada por ventos das camadas superiores. Os pes- quisadores viram que essa po- luição algumas vezes se acu- mula sobre o Atlântico Sul. "Sempre tivemos dificuldade em explicar todo aquele ozô- nio", admitiu Thompson. •

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Além do acaso: as espirais formadas a partir do ponto central seguem um padrão matemático

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■ A matemática das flores

Olhe para uma pinha, um cacto ou um girassol e repare nas intrincadas espirais que eles apresentam. Os desenhos que parecem um prodigioso acaso da natureza são, para os matemáticos, o resultado de forças mecânicas que agem no crescimento das plantas. Já se sabia que as espirais ex- pressam uma progressão nu- mérica conhecida como se- qüência de Fibonacci, em que cada número é a soma dos dois precedentes: 1, 1, 2, 3, 5, 8,13... Agora, os matemáticos Patrick Shipman e Alan Ne- well, da Universidade do Ari- zona, nos Estados Unidos, criaram um modelo mate- mático para explicar esse fe- nômeno {Physical Review Let- ters, 23 de abril). A cabeça arredondada dos cactos, por exemplo, é coberta de peque- nas protuberâncias, cada uma com um espinho. Co- meçando pelo centro e co- nectando os pontos de cada espinho até seu vizinho, che- ga-se a uma espiral com 2, 5 ou 8 galhos - a seqüência de Fibonacci. Cada nova folha emerge de um ponto que consiste de uma capa que co-

bre um núcleo. À medida que a planta cresce, a capa se de- senvolve mais rápido que o núcleo, e assim as espirais se formam para acomodar a su- perfície extra. Os espinhos fi- cam na intersecção das espi- rais. Formam-se três tipos de espirais, que dividem a super- fície da planta em triângulos de lados curvos, com proprie- dades especiais. Alguns bió- logos comentaram que esse modelo pode ser útil nas pes- quisas sobre a formação de padrões nos organismos vi- vos, mais do que apenas pro- duzir desenhos elegantes. •

■ 0 impacto da perda de espécies

Preservar o máximo de espé- cies possível é a melhor for- ma de garantir o equilíbrio e a sobrevivência de toda uma comunidade, já que uma es- pécie hoje aparentemente in- significante pode se tornar importante mais tarde, numa situação em que esteja livre de predadores, de acordo com uma pesquisa da Univer- sidade de Wisconsin-Madi- son, dos Estados Unidos (Na- ture, 13 de maio). Anthony Ives, co-autor do estudo, des- cobriu que, quando espécies

começam a desaparecer, duas forças entram em jogo na co- munidade, tornando-a vul- nerável às condições ambien- tais. Uma dessas forças se dá quando as espécies se extin- guem em reação a determi- nado fator, como o aqueci- mento global ou a chuva ácida. As mais suscetíveis de- saparecem primeiro, as mais bem adaptadas sobrevivem - e toda a comunidade se forta-

Mais extinção, mais erosão

lece. O problema é que a re- sistência da comunidade se altera ao longo do tempo em função de mudanças nas in- terações da cadeia alimentar resultantes da extinção de es- pécies individuais. Uma vez que todos pertencem a uma só cadeia alimentar, como predadores ou presas, a mor- te de um indivíduo compro- mete a sobrevivência dos demais. Assim, a extinção contínua de organismos de uma comunidade debilita a capacidade de aumentar sua população e de enfrentar a degradação ambiental. •

■ Coração assassino

As doenças cardiovasculares já são as mais sérias ameaças à saúde global nos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil. Um estudo da Univer- sidade de Columbia (EUA) mostrou que a taxa de mor- talidade na população de 35 a 65 anos na índia, África do Sul, Brasil, China e re- pública do Tatarstão é duas vezes e meia maior que a re- gistrada nos Estados Unidos. Os motivos, segundo Stephen Leeder, co-autor desse traba- lho, são a falta de tratamento e de programas que incenti- vem mudanças no estilo devi- da, como campanhas em fa- vor de dieta e de exercícios. Estima-se que se percam pelo menos 21 milhões de vidas anualmente no mundo devi- do a problemas cardiovascu- lares. Na África do Sul, que tem o flagelo da Aids como principal causa de mortalida- de, as doenças cardiovascula- res ocupam o terceiro lugar entre as causas de morte nas mulheres e o sexto entre os homens. Os fatores de risco são conhecidos: pressão alta, tabagismo, dieta rica em gor- duras e vida sedentária. •

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■ CIÊNCIA

EPIDEMIOLOGIA

À frente , dos fm

desafios tropicais O Brasil mantém pioneirismo na pesquisa e na prevenção de doenças típicas de países pobres

FABRíCIO MARQUES

Se uma máquina do tempo trouxesse Oswal- do Cruz ao Brasil de 2004, o grande sanita- rista brasileiro, nessa viagem hipotética, po- deria concluir que foram tímidos os avanços na pesquisa das doenças tropicais nos últi-

mos cem anos. O país ainda padece de endemias como a malária, não conseguiu livrar-se da hanseníase e da leishmaniose, assistiu impotente à expansão da tuber- culose e do cólera e é freqüentemente acossado por surtos de dengue que, por compartilhar o mosquito transmissor com a febre amarela, impõe o risco de trazer de volta o flagelo que Oswaldo Cruz tanto se empenhou para erradicar no começo do século 20. A verdade, porém, é que, nas últimas décadas, os pes- quisadores brasileiros não pararam de trazer contri- buições originais na compreensão e na busca de tra- tamento de doenças tropicais, que se tornou uma das áreas mais relevantes da pesquisa científica em saúde no país. E, em vários momentos, os pesquisadores trabalharam praticamente sozinhos, pois a maioria das indústrias farmacêuticas jamais se dispôs a inves- tigar drogas de interesse exclusivo de países pobres.

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0 médico Rui Durlacher atende morador de Candeias, em Rondônia: visita a pelo menos seis casas em um dia para acompanhar os mais diversos problemas de saúde

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As ferramentas para combater a fe- bre amarela são um exemplo dessa contribuição original. Para evitar a eclosão da moléstia em áreas de gran- de incidência de dengue - as duas doen- ças compartilham o mesmo mosquito transmissor, o Aedes aegypti -, o epide- miologista Eduardo Massad, professor da Faculdade de Medicina da Univer- sidade de São Paulo (USP), trabalha com modelos matemáticos para esta- belecer zonas de bloqueio à entrada da doença silvestre, na fronteira de São Paulo com Mato Grosso do Sul. A saí- da habitual, na iminência de um surto de febre amarela, seria vacinar toda a população. Mas isso implica riscos. "Não se trata de uma vacina inocente", diz Massad. A cada milhão de doses, ocorre uma morte. O modelo mate- mático ajuda a definir as áreas em que a vacinação é realmente indispensável - pois a incidência de dengue e a infes- tação de mosquitos são muito eleva- das — e onde isso não é necessário. E possível também fazer projeções sobre o contingente de pessoas que devem ser vacinadas para criar uma margem segura no bloqueio à doença - que não necessariamente é de 100% dos indiví- duos da área.

Esse tipo de pesquisa, que se baseia em boa medida no uso da matemática e dos computadores, ainda é vis- to com reservas pelos espe-

cialistas em medicina tropical da velha guarda, aqueles que acompanham pessoas doentes e conhecem de cor seus sintomas. "Fui a um congresso re- centemente e vi que o entusiasmo com a pesquisa que fazemos parte mais dos jovens médicos", diz Massad. Mas nin- guém duvida de que essa área tem uma enorme contribuição a dar à preven- ção das doenças tropicais. O grupo de Eduardo Massad prepara-se para reali- zar, nos próximos quatro anos, o maior esforço já feito no país para diagnosti- car o espectro das arboviroses, doen- ças virais transmitidas por mosquitos e carrapatos. Em quatro regiões do Es- tado de São Paulo - a capital, o litoral norte, o litoral sul e em São José do Rio Preto - pesquisadores vão procu- rar os arbovírus em pessoas, animais domésticos, animais silvestres e mos- quitos. Um dos objetivos do trabalho é analisar a probabilidade de chegada

ao Brasil do vírus da Febre do Oeste do Nilo, que causa encefalite. Aves que transportam o vírus e os mosquitos transmissores do gênero Culex existem de sobra até mesmo na capital paulista. O trabalho, que envolverá pesquisa- dores de várias áreas, vai propor es- tratégias de prevenção que seriam inimagináveis nos tempos heróicos de Oswaldo Cruz.

As ferramentas dos pesquisadores estão mudando. A genômica tem gran- de vocação para ampliar o conheci- mento a respeito de micróbios e seus vetores. No ano passado, pesquisado- res do projeto Genoma Schistosoma mansoni, financiado pela FAPESP no âmbito da rede ONSA (consórcio vir- tual de laboratórios genômicos do Es- tado de São Paulo, na sigla em inglês), concluíram o seqüenciamento de 92% dos estimados 14 mil genes do parasi- ta causador da esquistossomose. A moléstia, contraída por meio do con- tato com água contaminada com lar- vas do verme, também é chamada de barriga-d'água, devido ao inchaço que provoca no abdômen. Se não for trata- da, resulta num quadro crônico, com aumento do tamanho do fígado, ane- mia, varizes no esôfago e vômitos de sangue. Graças à melhoria do sanea- mento básico e ao advento de dois me- dicamentos, a esquistossomose já vi-

nha se tornando uma doença tratável e menos perigosa. O seqüenciamento abre um novo front de pesquisas no combate a uma moléstia que encarna- va a própria imagem do subdesenvol- vimento - as crianças com a barriga inchada em meio à completa ausência de saneamento. E se soma a outras contribuições importantes, como a vacina contra a doença desenvolvida recentemente pela equipe da pesquisa- dora Miriam Tendler, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Ja- neiro. A vacina foi produzida a partir do isolamento e clonagem de proteí- nas do Schistosoma.

Vigor - As gerações que sucederam a de Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz, Carlos Chagas e Emílio Ribas não são muito lembradas nos livros de história, mas desempenharam um papel igualmente importante. Não promoveram vacina- ções forçadas nem participaram da criação dos institutos encarregados de combater doenças que aniquilavam multidões. Mas mantiveram de modo consistente o fluxo e a qualidade das in- vestigações. São nomes como Leônidas de Melo Deane (1914-1993), da Facul- dade de Medicina da USP, do Instituto Evandro Chagas e da Fundação Os- waldo Cruz, que estudou a epidemio- logia da malária. Ou Oswaldo Paulo

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Forattini, da Faculdade de Saúde Públi- ca da USP, um estudioso de mosquitos transmissores de doenças, com contri- buições na pesquisa de febre amarela silvestre e da epidemia de encefalite no Vale do Ribeira, há três décadas.

"M uitos pesquisa- dores brasileiros conseguiram manter uma ati- vidade vigorosa",

observa Erney Plessmann de Camargo, professor do Instituto de Ciências Bio- médicas (ICB) da USP, ele próprio um desses pesquisadores. "E, ao contrário dos tempos de Oswaldo Cruz, as inici- ativas não dependeram do governo ou de institutos criados com finalidades específicas, mas partiram de demandas dos próprios pesquisadores", diz Ca- margo, que atualmente preside o Con- selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seus primeiros trabalhos foram sobre a bio- química de protozoários causadores da malária em colaboração com outro nome de destaque, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que, afastado do Brasil depois de 1964, fez carreira no Instituto Pasteur de Paris.

Tanto Erney Camargo como Luiz Hildebrando coordenam grupos dis- tintos, responsáveis por pesquisas em

0 início: Adolpho Lutz com a filha, Bertha, em Manguinhos (.esq.) e a bordo do Espana, descendo o rio Paraná, em 1918

doenças tropicais no Estado de Ron- dônia. Os dois grupos comprovaram a existência na Amazônia de portadores assintomáticos do Plasmodium vivax, protozoário que causa cerca de 80% dos casos da moléstia no Brasil. Os de- mais 20% são provocados pelo Plas- modium falciparum, a espécie mais agressiva do parasita da malária. A confirmação de que existem vítimas assintomáticas do Plasmodium vivax ganhou repercussão internacional, rendendo um artigo científico na re- nomada revista inglesa Lancet. Mas as pesquisas dos dois grupos não se limi- tam à malária. A equipe do ICB levan- tou evidências da existência de uma ainda desconhecida espécie de proto- zoário Leishmania que seria um novo agente causador da leishmaniose tegu- mentar americana, doença que ataca pele e mucosas e vitima 28 mil brasi- leiros a cada ano.

A malária mata anualmente 2 mi- lhões de pessoas, sobretudo crianças africanas. É o principal problema de saúde pública da Região Norte, onde ocorrem 99% dos casos brasileiros. Mata, em média, 20 brasileiros a cada ano, mas os casos se contam às cente- nas de milhares. O tratamento à base de quinino é conhecido desde o sécu- lo 19. Há décadas, cientistas de vários países tentam encontrar, em vão, uma

vacina. O Exército norte-americano, por meio do Instituto de Pesquisa Walter Reed, foi um dos principais pa- trocinadores da vacina que alcançou até agora os melhores resultados, cria- da por Manuel Patarroyo, do Instituto Colombiano de Imunologia. Mas tes- tes recentes mostraram que a imuni- zação promovida pela vacina não che- ga a 30% das pessoas. O interesse do Exército dos Estados Unidos pela ma- lária vem de muito tempo atrás. A doen- ça matou milhares de soldados desde a Guerra da Secessão, até em campanhas da África e na Guerra do Vietnã.

Tratamento - "Há dificuldades em conseguir vacinas eficientes para doen- ças causadas por protozoários", diz o infectologista Marcos Boulos, profes- sor de doenças infecciosas e parasitá- rias da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisadores brasileiros como Luiz Hildebrando Pereira da Silva, traba- lhando à época no Instituto Pasteur de Paris, e o casal Ruth e Victor Nussenz- weig, na Universidade de Nova York, participaram desse esforço. Enquanto o mundo procurava a vacina, pesqui- sadores brasileiros dedicavam-se a pesquisas que só podiam mesmo ser feitas aqui, como os mecanismos de proliferação da moléstia. Desenvol- veu-se uma estratégia que conseguiu reduzir os casos de malária à metade em 2002. Consiste em diagnosticar e tratar rapidamente os pacientes, para reduzir o contingente de mosquitos contaminados. É o jeito, porque os anofelinos, vetores da malária, andam cada vez mais resistentes a inseticidas. "Nossa pesquisa em malária é de nível internacional", diz Boulos. "O Brasil e a Tailândia destacam-se nesse campo."

Graças ao empenho dos pesquisa- dores, e também ao aumento no inves- timento em estudos sobre doenças tropicais, o Brasil exibe hoje diversos sinais de vitalidade nesse campo. O Instituto Manguinhos, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, de centro ir- radiador de soluções contra a febre amarela e o mal de Chagas transfor- mou-se em complexo produtor de va- cinas antivirais. O Instituto Butantan, fundado em 1901 por Vital Brazil para fabricar soros contra a peste bu- bônica, acabou se tornando referência em animais peçonhentos e, mais recen- temente, na fabricação de vacinas de

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todo tipo. No Pará, o Insti- tuto Evandro Chagas, liga- do ao Ministério da Saúde, é reconhecido no mundo inteiro como o principal centro de pesquisas em leishmaniose e em vírus transmitidos por mosquitos e carrapatos. "Nos últimos vinte anos, cresceu signi- ficativamente o financia- mento para pesquisas em doenças tropicais, assim co- mo a possibilidade de par- cerias com grupos de pes- quisa de outros países", diz Boulos. Segundo ele, o inte- resse dos países desenvolvi- dos pelas moléstias tropi- cais ganhou fôlego graças à globalização. "Como 1 bi- lhão de pessoas fazem via- gens aéreas todos os anos, as doenças deixaram de res- peitar fronteiras."

A trajetória da doen- /^ Ça de Chagas L^^ reúne um dos i M momentos

^L JL. mais felizes da pesquisa brasileira em medicina tropical. Carlos Chagas (1879-1934), numa tacada só, descreveu em 1907 o parasita (Trypanoso- ma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz), o vetor (o barbeiro), o reservatório doméstico (o gato) e a doença, batizada com seu nome. O fei- to, inédito na história médica, possibi- litou a criação de estratégias para aca- bar com o inseto transmissor da doença, que aumenta o volume do co- ração e leva à insuficiência cardíaca. Entre os anos 1980 e 90, o barbeiro pôde ser erradicado, graças a uma campanha governamental capitaneada pelo médi- co José Carlos Pinto Dias e à mudança no padrão de habitação nas regiões ru- rais brasileiras. Acabaram as casas de pau-a-pique em cujas paredes os bar- beiros proliferavam.

O conceito de doença tropical sur- giu na Europa, englobando uma cole- ção de doenças exóticas freqüentes nas regiões coloniais de clima quente. Na prática, muitas dessas moléstias são apenas males da pobreza, da falta de saneamento e da desnutrição - mais

Ceará, 1939: guarda-medicador do Serviço de Malária do Nordeste

Rondônia, 2002: motoqueiro distribui medicamentos e colhe sangue para exame

freqüentes nos trópicos do que nas ci- vilizações temperadas. O Brasil impor- tou essa visão. O Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da USP foi criado, na década de 1950, pelo professor Carlos da Silva Lacaz, depois que ele passou uma temporada em Hamburgo, na Alemanha, num institu- to semelhante.

Depois da mobilização nacional no início do século 20, a pesquisa das doen- ças tropicais ganhou um certo estigma. Quando a medicina explodiu em deze- nas de especialidades, o trabalho com doenças tropicais passou a ser visto como uma área antiquada e pouco char- mosa. Os novos campos de conheci- mento seduziam os estudantes, pro- metendo empurrar as fronteiras da ciência. Enquanto isso, a medicina tropi- cal, com patrocínio da Fundação Rocke- feller, propunha a erradicação de doen- ças, como se ela própria fosse acabar um

dia. "Esse descompasso ain- da ocorre hoje", afirma o ve- terano infectologista Vicen- te Amato Neto, professor da Faculdade de Medicina da USP. "Tem uma corrente que se intitula os novos in- fectologistas', que se diz mais preocupada com infecções hospitalares, infecções pós- cirúrgicas ou pacientes imunodeprimidos", ele diz. "Esquecem-se de que há inúmeras doenças infeccio- sas a combater e que o Bra- sil tem tradição nisso."

Preocupações - Novos de- safios estão sempre surgin- do. O avanço das hepatites virais B e C, por exemplo, ganha contornos cada vez mais preocupantes, com o crescimento de casos de cirrose e câncer de fígado que inflam as filas de transplantes. Na visão dos especialistas, essas lesões poderiam ser evitadas se houvesse diagnóstico pre- coce e o tratamento ade- quado. A tuberculose, que reapareceu como doença oportunista associada à Aids e disseminou-se, en- carna outro desafio. Sem fa- lar no medo de que doen-

ças emergentes cheguem ao Brasil. As epidemias da Síndrome Aguda Respi- ratória Severa (Sars) e a gripe do fran- go trouxeram esse temor à tona recen- temente.

O Brasil também se prepara para essas adversidades. O recém-inaugu- rado Laboratório Klaus Eberhard Ste- wien, no Instituto de Ciências Biomé- dicas da USP, é o primeiro no país com nível máximo de biossegurança 3+. É quase o máximo possível para a pes- quisa civil - há instalações mais sofis- ticadas somente nos Centros de Con- trole e Prevenção de Doenças (CDC), de Atlanta, Estados Unidos, referência mundial em doenças emergentes. O laboratório é o primeiro de uma série de 12 que começam a ser construídos no país. Essas unidades darão seguran- ça e condições adequadas para investi- gações de agentes de doenças tropicais de todo tipo. •

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Amazônia contra a malária Testes em laboratório comprovam ação biológica de plantas da floresta usadas pelas populações nativas

Foram mais de 350 dias de expedições por sete mu- nicípios do Amazonas em busca do conhecimento po- pular acerca dos tratamen-

tos da malária. Lin Chau Ming, da Fa- culdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, e Ari de Freitas Hidalgo, da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), propuseram-se a levantar o re- pertório de folhas, raízes, cipós e cascas de plantas usadas para prevenir ou amenizar sintomas da malária entre habitantes da região de Manaus e da calha do rio Solimões. Das 71 pessoas entrevistadas, com idade entre 34 e 83 anos, somente oito nunca haviam contraído malária, enquanto 32 já a haviam tido pelo menos três vezes -

dois homens afirmaram que haviam tido malária mais de 20 vezes. Quase todos, enfim, eram vítimas recorrentes da moléstia, habituados a procurar na floresta substâncias para combater seus sintomas.

Ming e Hidalgo colheram informa- ções sobre o uso de 126 espécies de plantas descritas como eficazes não só contra malária, mas também contra suas conseqüências, como problemas hepáticos e renais ou anemia. Das espé- cies indicadas, 82 se referiam especifi- camente à malária ou à febre, o princi- pal sintoma, e outras 91 ao fígado, o órgão mais afetado.

Em um teste preliminar, os pesqui- sadores avaliaram a ação dos extratos das plantas em larvas de Artemia fran- ciscana, microcrustáceo usado para de- tectar o potencial bioativo de substân-

cias, devido à capacidade de sobreviver à paralisação metabólica. Somente 22 das 126 plantas não apresentaram ne- nhum efeito sobre as larvas de Artemia.

Em alguns casos, como no dos ex- tratos da sacaca (Croton cajucara), do camapu (Physalis angulata) e da caape- ba {Potomorphe peltata), 100% das lar- vas morreram. Outras vezes, o resulta- do foi menos expressivo, o que não chega a desqualificar a sabedoria popu- lar. Um exemplo é um cipó saracura- mirá (Ampelozizyphus amazonicus), matéria-prima de uma bebida medici- nal espumante conhecida como cerve- ja-de-índio. Nos testes, a letalidade do crustáceo ficou entre 61% e 70%. Mas há indícios de que essa planta pode mesmo ter um papel na prevenção da malária, como dizem os ribeirinhos. Pesquisadores da Universidade Federal

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Hádé

Medicamentos da terra â décadas os técnicos da Funa-

sa percorrem a Amazônia, fazem palestras e campanhas de pre- venção e de erradicação do mos- quito transmissor, chamado de carapanã, coletam sangue para exames e distribuem medica- mentos. Apesar do trabalho in- tensivo, o uso de plantas é uma prática freqüente, principalmen- te como forma de evitar os efei- tos colaterais dos comprimidos, como tonturas ou enjôo, às vezes

confundidos com os sintomas da própria doença. Com folhas, raízes ou cascas de plantas como o açaizeiro-do-amazonas (Euter- pe precatória), copaíba (Copai- fera sp) e caapeba (Pothomorphe peltata) trata-se a malária e os problemas que ela causa, como hepatite e anemia. Mas árvores de uso medicinal como a cara- panaúba (Aspidosperma sp) às vezes são derrubadas para dar lugar a pequenas plantações. Açaizeiro: raízes novas contra hepatite e anemia

de Minas Gerais (UFMG) e da Funda- ção Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra- ram que o extrato de saracura-mirá bloqueia o ciclo da malária no organis- mo, impedindo que o protozoário cau- sador da doença ganhe a corrente san- güínea e deflagre os ataques febris.

Outros pesquisadores haviam des- crito vegetais usados contra a malária, mas se limitaram a fazer listas de plan- tas. Maria das Graças Brandão, da UFMG, foi um pouco além: fez levan- tamentos em dois estados, Rondônia e Pará, e testes com o Plasmodium falci- parum, o protozoário causador da malária. Mas esta é a primeira vez que se avalia a eficiência de extratos de plantas usadas no Amazonas - e 22 das 127 espécies não haviam sido citadas antes em nenhuma outra pesquisa. Na próxima fase, os extratos serão subme- tidos a testes mais acurados, com cepas

padronizadas do Plasmodium falcipa- rum, cultivadas no Instituto de Medici- na Tropical do Amazonas.

A intenção é usar o conhecimento popular como um atalho para novos medicamentos. Tais ferramentas per- tencem à esfera da etnobotânica, que é o estudo do uso de plantas por agrupa- mentos humanos. "A malária foi intro- duzida na Amazônia há mais de 200 anos e tanto os índios como os cabo- clos tiveram de desenvolver meios pró- prios de se tratar", diz Ming. "Esse aprendizado é um ponto de partida para a pesquisa de novas drogas."

As estratégias disponíveis para com- bater a doença atingiram um limite. Os mosquitos que transmitem a doen- ça, do gênero Anopheles, vêm criando resistência a inseticidas, e a cloroqui- na, o mais tradicional remédio contra a malária, já não é eficaz contra algu-

mas cepas do Plasmodium falciparum. Existe outra opção, a erva asiática Ar- temisia annua, da qual se produz a artemisinina, mas seu custo de produ- ção é ainda elevado. Os índios e as po- pulações ribeirinhas sofrem com a malária desde o século 18, quando a doença foi trazida da África com os colonizadores. Levar em conta essa ex- periência pode conduzir a novas estra- tégias de combate.

Riscos - A malária é uma doença debi- litante, que provoca febres e anemia, e torna o organismo suscetível a outras moléstias. Diminui o rendimento no trabalho, exige deslocamento das víti- mas para locais que tenham condição de fazer diagnóstico e em alguns casos pode ser letal, sobretudo em indivíduos malnutridos. "Em caso de malária na gravidez", comenta Ming, "pode ocor-

A febre que vem da água Além de pesquisar as plantas e suas for- mas de uso, Lin Chau Ming e Ari de Freitas Hidalgo colheram depoimentos sobre como a malária é vista na Amazô- nia, o que a causa e como lidar com ela. "Em alguns municípios, a malária é considerada quase tão comum quanto uma gripe", diz Ming. "Convive-se com ela como com um resinado." É também chamada de paludismo, tremedeira ou simplesmente febre; os moradores mais antigos ainda se lembram de quando a tratavam de sezão ou maleita.

"Sentia muita dor de cabeça, muito calafrio, dor nos ossos. Me deu uma tre- medeira tão grande que eu pensei que ia morrer. Jogava lençol, lençol. Aí depois eu fiquei com tontura, muita fraqueza. A primeira vez nem tanto, mas na se- gunda vez eu pensei que ia morrer." Ma- ria José Rodrigues, 50 anos, Tefé.

"Frio, febre, dor nos ossos, no cor- po. Enrola no pano e não passa o frio. Dá muita dor de cabeça, ela é que mata, a gente só falta ficar doidinha." Nazaré Reis, 46 anos, Careiro.

Os pesquisadores concluíram que a estratégia de combate à malária pode não estar surtindo os efeitos desejados, entre outros motivos, pela convicção da população de que a doença pode ter mais de uma causa: pelo menos a me- tade dos entrevistados não considera como totalmente verdadeira a infor- mação apresentada pelos técnicos so- bre as formas de transmissão do proto- zoário causador da doença.

"É o seguinte: ela é introduzida, di- zem, mais pelo mosquito, mas eu não

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Copaíba: cascas para malária e fígado

rer má-formação do feto, atraso no de- senvolvimento intra-uterino ou mes- mo abortos, além de seqüelas perma- nentes na criança."

No Brasil, 99% dos casos de malária ocorrem na Região Norte, onde a mo- léstia mantém um fôlego desafiador: de 11 mil casos no Amazonas em 1985, chegou a 180 mil em 2000, caindo para 40 mil no ano seguinte. "Em 1999 hou- ve o maior surto no Amazonas, com 167.722 casos registrados e certamente muitos milhares não incluídos nas esta- tísticas", conta Hidalgo. "Foi nesse mo- mento que decidi trabalhar com mais afinco na procura por alternativas para minimizar o sofrimento causado pela malária."

Caapeba: raízes contra malária

Entre 2001 e 2003, Ming e Hidalgo, em cinco viagens que duraram em média dois meses e meio cada uma, vi- sitaram três municípios da região de Manaus (Careiro, Presidente Figueiredo e Pdo Preto da Eva) e quatro na área de influência do rio Solimões (Atalaia do

0 PROJETO

Etnobotânica de Plantas Antimaláricas da Calha do Rio Solimões e Região de Manaus

MODALIDADE Linha Regular de Auxílio a Pesquisa

COORDENADOR LIN CHAU MING - Unesp

INVESTIMENTO R$ 31.025,11

Norte, Benjamin Constant, Tefé e Coa- ri). Em cada lugar, selecionaram os en- trevistados com o apoio de agentes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e voluntários da Pastoral da Criança.

Embora a Funasa promova campa- nhas periódicas sobre a importância de combater os mosquitos, boa parte dos entrevistados ainda acha que a malária se propaga mesmo é pela água (veja quadro abaixo). "Muitos associam a malária às favas (vagens) que caem de uma árvore, o baú-baú, contaminando a água", diz Hidalgo. "Na verdade, há uma coincidência entre o ciclo repro- dutivo da árvore e as cheias, que alagam terrenos e favorecem a proliferação dos mosquitos e, conseqüentemente, da malária." Hidalgo e Ming pretendem até 2006 repetir a pesquisa na calha do rio Negro, onde é mais forte a presença de índios do que de caboclos. •

acredito. Mais é pela água, água de en- contro." Isaías Gomes, 54 anos, Tefé.

"O povo diz que é carapanã, mas eu digo que é da água. Dá muita fava e a água fica podre, envenenada. A fava é veneno, se beber água com fava pega malária." Nelsina Vitor, 81 anos, Careiro.

"Teve umas enfermeiras que passa- ram por aqui dizendo que pega de ca- rapanã, mas não sei se aqui na comu- nidade alguém já pegou assim desse jeito." Aldair Ramirez, 39 anos, Benja- min Constant.

Para a maioria dos entrevistados (84,5%), quem está com malária ou

acabou de sair de uma deve seguir uma dieta específica e evitar alguns tipos de carne, principalmente as gorduras - conhecidas na Amazônia como rei- mosas -, para evitar que a doença rea- pareça de imediato.

"Quem tá de malária tá com o fí- gado prejudicado, tudo sensível, não dá para comer tudo que gosta. Tem coisa que afeta muito o fígado, princi- palmente comida com muita gordura. O doente tem que comer coisa leve." Irondina Machado, 65 anos, Careiro.

"Olhe a carne de anta, o sr. veja, o sr. pode passar 15 ou 20 dias que já não sente mais nada, mas coma carne de

anta pra o sr. ver como ela volta. É rei- mosa, muito, muito. Ave Maria, eu ti- nha mais medo de carne de anta de que de qualquer outra coisa." Manoel Pinto, 79 anos, Careiro.

"Pirarucu? Nem pensar! É bater dentro e a bicha volta. Inflama tudo, fí- gado, estômago. O sangue fica ruim, se tiver coceira estoura tudo." Sandra Amaral, 66 anos, Rio Preto da Eva.

"Se comer pirarucu, piranha, fica prejudicado. Ela sobe mais, dá mais força pra ela maltratar o órgão da pes- soa. Evita esses negócios aí que ela vai deixando". Artur Fortes, 74 anos, Benja- min Constant.

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 89

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CIÊNCIA

VIROLOGIA

Lentamente/ um subtipo do vírus da Aids pouco comum no país se espalha e altera o perfil da epidemia

Não há mais dúvida. A epidemia provocada pelo vírus da Aids se encontra mesmo em transforma- ção no Brasil, onde 140 mil pessoas são portadoras do HIV. Seu antigo

perfil - chamado de ocidental por causa da pre- dominância de uma variedade do vírus comum nas Américas e na Europa Ocidental, o HIV-1 do subtipo B - vem assumindo nos últimos anos ca- racterísticas cada vez mais semelhantes às obser- vadas na China, na índia e nas nações africanas situadas ao sul do deserto do Saara. Nesses paí- ses, 83% dos 30 milhões de portadores do vírus carregam no sangue o subtipo C, uma das nove variedades já identificadas.

Por alguma razão desconhecida, o subtipo C passou a dominar a epidemia também em regiões nas quais, antes, outras variações do HIV respon- diam pela maioria dos casos da infecção. A dife- rença entre uma variedade e outra pode estar na habilidade do vírus de sobreviver aos medica- mentos usados contra a infecção. Quase tudo o que se conhece sobre a resistência do HIV resulta de pesquisas feitas com a variedade B e ainda não está comprovada a eficácia dos medicamentos contra as outras cepas do vírus. Por essa razão, a mudança do perfil da epidemia brasileira pode exigir ajustes no tratamento e na composição de vacinas anti-HIV em desenvolvimento.

As primeiras evidências dessa mudança des- pontaram na Região Sul, onde se registrou em 1990 o primeiro caso provocado pelo subtipo C. Estudos isolados apontavam uma presença cres- cente dessa variante do HIV na região, nos últi- mos cinco anos. Mas os dados mais contunden- tes surgiram no ano passado, com a conclusão do primeiro levantamento nacional de resistência do vírus aos medicamentos, elaborado pelos sete

laboratórios da Rede de Vigilância da Resistência do HIV (Revire), do Ministério da Saúde. De acordo com os resultados - divulgados na Pesqui- sa FAPESP em agosto de 2002 e publicados em junho de 2003 na revista Aids -, o subtipo C ul- trapassou a presença do B no Rio Grande do Sul e aparece em 45% das infecções. No restante do país, o subtipo B ainda é a cepa predominante, mas vem se colocando numa posição mais dis- creta. Um terço dos paranaenses portadores do HIV carrega no sangue o vírus da variedade C. Também há indícios de que a presença dessa cepa esteja aumentando no Sudeste. Hoje 6% dos portadores do vírus têm o HIV do subtipo C no Rio de Janeiro, enquanto essa cepa contamina 3% das pessoas com o vírus em São Paulo.

Essas conclusões resultam de pesquisas coor- denadas por Marcelo Soares e Amilcar Tanuri, ambos do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos centros integrantes da Revire. Em parceria com outras equipes do Rio, de São Paulo e do Mi- nistério da Saúde, os pesquisadores da UFRJ ava- liaram o material genético do HIV que contami- nava 112 pessoas de cinco estados - Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio e Mato Grosso do Sul. O resultado, divulgado em janeiro de 2003 na revista Aids, mostrou que, em média, um em cada três portadores do vírus nas regiões Sul e Sudeste já apresentava no sangue o subtipo C. Soares e Tanuri viram ainda que, embora o perfil da epidemia nacional se aproxime daquele obser- vado na África e na índia, o HIV do subtipo C encontrado no Brasil apresenta características distintas do subtipo C africano e indiano.

Mais recentemente os pesquisadores da UFRJ voltaram a atenção para a capital gaúcha para ver como a infecção pelo HIV evoluiu ao longo de 18

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anos, na busca de uma provável indica- ção do que pode ocorrer no restante do país. Soares e Tanuri coletaram amos- tras de sangue de 77 portadores do HIV atendidos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o maior centro de trata- mento de Aids no estado. A partir da análise do material genético do vírus, constataram: a proporção de casos pro- vocados pelo subtipo C passou de 20%, entre 1986 e 1990, para 43%, entre 2001 e 2002, conforme relataram os pesqui- sadores no Journal ofAcquired Immune Deficiency Syndromes de dezembro pas- sado. Segundo Soares, essa é uma ten- dência que pode ser extrapolada para todo o estado. Em um outro estudo, fei- to com 72 mulheres grávidas portado- ras do HIV da cidade gaúcha de Rio Grande, o virologista do Rio verificou que a variedade C era responsável por 70% das infecções. "Ainda não há evi- dências formais de que o subtipo C se dissemine mais rápido que os outros", afirma Soares, "mas, sempre que essa variedade aparece em uma região, ela acaba predominando sobre as demais."

As conseqüências mais imediatas dessa alteração devem aparecer no tra- tamento dos portadores do vírus. Em outro estudo, publicado em setembro do ano passado na Antimicrobial Agents Chemotherapy, a equipe de Soares ana- lisou o material genético das variedades B e C em busca de alterações que indi- cassem resistência às três classes de me- dicamentos usados na terapia anti-re- troviral altamente ativa (Haart, na sigla

em inglês), mais conhecida como co- quetel anti-HIV. Os pesquisadores ob- servaram que a variedade C é mais sen- sível que a B ao lopinavir - um tipo específico de inibidor de protease, me- dicamento que impede as novas cópias do vírus de amadurecerem e infectarem outras células de defesa.

Com esses dados, torna-se possível traçar novas estratégias de combate ao HIV. "Talvez seja mais eficaz incluir o lopinavir no tratamento dos portadores do subtipo C", cogita Soares. É uma al- ternativa a ser considerada, uma vez que os estudos sobre a capacidade de conta- minação, agressividade ou resistência do HIV aos remédios, em geral, são realiza- dos em países desenvolvidos e levam em conta apenas o subtipo B. Como a dis- tribuição de medicamentos contra o ví- rus é gratuita - o que torna os remédios disponíveis para todos os portadores do HIV -, o Rio Grande do Sul torna-se o estado mais indicado para se avaliar as modificações observadas no subtipo C durante o tratamento e também para o teste de vacinas de interesse dos países pobres ou em desenvolvimento. Na pró- xima etapa do trabalho, Soares pretende verificar a eficácia do lopinavir em pes- soas com o vírus. Em um estudo pla- nejado em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre, Soares busca avaliar como portadores do subtipo B e do C reagem ao tratamento com o lopinavir associado a dois inibidores de transcrip- tase reversa. O estudo deve começar neste semestre e durar dois anos. •

PESOUISA FAPESP 100 • JUNHO DE 2004 ■ 91

Page 79: Uma década de avanços desenha o futuro

CIÊNCIA

GENÉTICA

O papel dos esquecidos Trechos de RN A antes vistos como inúteis regulam a produção de proteínas ligadas ao câncer

Como os catadores de lixo, que garimpam objetos valiosos em meio aos des- pojos da sociedade, alguns biólogos moleculares ex-

traem informações preciosas de trechos aparentemente menos nobres do mate- rial genético humano. Num artigo a ser publicado em breve na revista britânica Oncogene, um grupo de pesquisadores brasileiros mostra que fragmentos nor- malmente desprezados de uma classe específica de RNA - a molécula do áci- do ribonucléico, derivada do famoso DNA e de fundamental importância para a produção de proteínas - não são inú-

teis. Ao contrário do que ainda postu- lam os manuais de genética, pedaços do chamado RNA intrônico anti-senso são importantes para a biologia das células. Mais do que isso: sua maior ou menor presença num organismo pode estar re- lacionada ao estágio de desenvolvimen- to de doenças complexas e talvez funcio- nar como um marcador do grau de malignidade de certas formas de câncer.

Tal hipótese ganhou força depois que os cientistas compararam as quan- tidades existentes de cerca de 4 mil seg- mentos de três distintas classes de RNA em tecidos sadios e com tumor de prós- tata extraídos de 27 pacientes. Essa ta-

refa foi feita com o auxílio de um dis- positivo chamado microarray de DNA, construído no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). No final do trabalho, 12 pedaços de RNA se revelaram muito relevantes para determinar o nível de agressividade do tumor - seis deles eram trechos do até então desprezado RNA intrônico anti- senso. "Mostramos que as mensagens emitidas por esse tipo de RNA partici- pam do processo de regulação de pro- dução de proteínas ligadas ao desenvol- vimento do câncer de próstata", afirma Sérgio Verjovski-Almeida, do IQ-USP, líder da equipe que redigiu o artigo

0 lixo que não é lixo

Fragmentos de moléculas antes consideradas sem função interferem na produção de proteínas nas células

(D Um gene (fragmento de DNA) contém éxons e íntrons

GENE

Fita anti-senso

Fita senso

Uma molécula de RNA mensageiro forma-se a partir dos éxons e íntrons de uma das fitas do DNA

(D Forma-se outro RNA mensageiro a partir do íntron da fita anti-s^nso

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Page 80: Uma década de avanços desenha o futuro

com a descoberta para a Oncogene. "Elas não podem mais ser ignoradas nos estudos sobre expressão de genes em doenças e devem ser incoporadas ao ar- senal de ferramentas para a pesquisa em câncer." Também participaram do trabalho pesquisadores do Instituto Na- cional do Câncer (Inca), no Rio de Ja- neiro, e dos hospitais Sírio-Libanês e Al- bert Einstein, de São Paulo.

Uma pincelada de genômica ajuda a entender o que são esses fragmentos de RNA intrônico anti-senso. Um gene é uma seqüência ordenada de bases quí- micas - adenina (A) citosina (C), guani- na (G) e timina (T) - localizada numa das fitas da molécula do DNA. A fita em que está o gene é chamada de senso e a outra, que lhe é complementar, de anti-senso. As bases formam dois tipos de regiões no interior de um gene: os éxons e os íntrons. As regiões com éxons fornecem a receita que comanda a pro- dução de uma proteína nas células. En- tre um e outro éxon, surgem os íntrons, segmentos mais longos, que não têm função aparente. Até recentemente, uma região com íntron era vista como uma "sujeira" no meio de um gene, sem fun- ção biológica. Há dois tipos de regiões intrônicas: as situadas na fita senso do

DNA, dentro do gene, e as localizadas na fita anti-senso (veja ilustração).

O que o RNA e o câncer têm a ver com isso? Agora vem a explicação. Quando é expresso (ativado) num teci- do humano, sadio ou com uma doença qualquer, como o câncer, um gene gera pedaços de várias classes de RNA men- sageiro. Esses fragmentos de RNA são denominados transcritos pelos biólo- gos moleculares. Os trechos de RNA ori- ginários dos éxons compõem a fórmu- la da proteína. Os transcritos oriundos dos íntrons (senso e anti-senso) não en- tram na receita e, até recentemente, eram encarados como lixo genômico. "A lite- ratura científica já havia mostrado que o RNA intrônico senso participava da regulação da síntese de proteínas", diz o biólogo Eduardo M. Reis, outro autor do estudo brasileiro. "Nossa contribui- ção foi revelar que existem RNAs intrô- nicos, derivados exclusivamente da fita anti-senso, que também atuam nesse processo." No caso do câncer de prósta- ta, um desses RNAs intrônicos (tanto o senso como o anti-senso), o RASSF1, funcionou como um marcador da agres- sividade dos tumores. Os pacientes com câncer em estágio avançado exibiam níveis baixos desse tipo de RNA. •

0 RNA perde o íntron e, aperjas com os éxons, aciona o processo de produção de umai proteína

© * Os RNAs derivados de íntrons, antes chamados de lixo, parecem agir com o RNA exônico e regular a quantidade de proteína produzida

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Page 81: Uma década de avanços desenha o futuro

I CIÊNCIA

MEDICINA

Remédios imaginários

Expectativa e condicionamento explicam por que placebo, às vezes, funciona

RICARDO ZORZETTO

Talvez os mais rigorosos tenham de re- ver algumas certezas. Está um pouco mais fácil explicar os resultados estra- nhos de um estudo norte-americano realizado no Texas e publicado há dois anos em uma das mais respeitadas re- vistas médicas do mundo, o New En- gland Journal of Medicine. Num expe- rimento destinado a avaliar a eficácia de uma cirurgia bastante comum de joelho, feita em 650 mil indivíduos por ano nos Estados Unidos a um custo de

US$ 5 mil cada, as pessoas que passaram por uma falsa ope- ração, com três cortes superficiais no joelho, melhoraram tanto quanto as que se submeteram à cirurgia real, com a re- tirada de partes gastas de cartilagem. A explicação? A impro- vável recuperação de quem experimentou a operação si- mulada se deve à convicção de que a cirurgia realmente eliminaria a dor do joelho, uma evidência de que o pensa- mento consegue modificar o funcionamento do corpo. É o

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Répteis, de Maurits Escher, 1943

chamado efeito placebo: algo que em princípio não deveria funcionar do ponto de vista físico e químico - como os cortes superficiais no lugar de uma cirurgia ou comprimidos de farinha em vez de pílulas com princípio ativo - na prática pode funcionar e, espanto- samente, eliminar dores, baixar a pres- são arterial, abrandar a ansiedade e di- minuir a depressão.

Só agora esse fenômeno, do qual já se tinha consciência há quase 2 mil anos, desde pelo menos a Roma do im- perador Marco Aurélio, começa a ser desvendado do ponto de vista bioquí- mico e fisiológico. É a expectativa de que a cirurgia será eficaz que altera o desempenho do sistema nervoso cen- tral, mesmo que na prática seja apenas uma simulação. Acionadas pela imagi-

nação do doente, algumas áreas do sis- tema nervoso associadas à percepção da dor se tornam menos ativas, en- quanto outras, relacionadas à inibição da dor, são acionadas, segundo estudos recentes. O não-tratamento, assim, é uma espécie de indução ao engano acei- to pelo próprio cérebro: o que nunca foi se torna o próprio ser.

As nuances do real - As descobertas recentes reacendem um debate ético sobre se, quando e como usar placebo em testes de novos remédios e trata- mentos ou mesmo como uma terapia paliativa em algumas doenças crôni- cas, como enxaqueca ou gastrite, desde que não envolvam risco de morte. Até hoje, os pesquisadores têm por certo que a forma mais eficiente de descobrir

a verdadeira capacidade de cura de um novo medicamento ou de uma nova operação é comparar o tratamento real com um placebo - em tese, o mesmo que nada. Antes de liberar um remédio para ser consumido pela população, as agências de controle de medicamentos - a exemplo da Food and Drug Admi- nistration (FDA), nos Estados Unidos, que serve de referência para o Brasil, ou o European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, na Europa - exigem testes com seres humanos com o uso de placebo, o chamado en- saio clínico duplo-cego, no qual nem médico nem paciente sabem quem re- cebe remédio ou placebo. Essa é, aliás, uma das poucas situações em que se consente o uso de placebo. A Declara- ção de Helsinque, conjunto de normas

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éticas que regulam o uso de placebo em estudos com seres humanos, deter- mina que em qualquer estudo médico deve-se assegurar o melhor tratamento diagnóstico ou terapêutico existente a todos os pacientes - incluindo aqueles do grupo controle, se houver - e, ape- nas em casos excepcionais, os pesqui- sadores podem adotar placebo.

H avia tempos se suspei- tava de que o placebo fosse mais do que sim- plesmente algo que não existe,

mas consegue fazer bem - um remédio imaginário, enfim. Derivada do verbo latino pla- cere, que significa proporcio- nar prazer ou agradar, a pala- vra placebo aparece nos livros de medicina em fins do século 18. Mas o conceito de efeito placebo ganhou peso mesmo após a Segunda Guerra Mun- dial, quando pesquisas médi- cas começam a revelar altera- ções no funcionamento do organismo produzidas por substâncias farmacologica- mente inócuas. Em 1955, o anestesiologista norte-ameri- cano Henry Knowles Beecher publicou no Journal of the American Medicai Association um artigo provocativo que se tornou uma referência: The powerful placebo. Beecher analisou 15 estudos clínicos nos quais uma parte dos voluntários recebeu placebo para tratar dor, distúrbios cardíacos e pro- blemas gástricos. De 21% a 58% dos doentes, número que variou segundo o problema apresentado, melhoraram tomando apenas os compostos sem ação farmacológica. E um terço tor- nou-se um número mágico. Ainda hoje, médicos e farmacólogos acredi- tam que uma proporção de pessoas se- melhante à verificada no estudo de meio século atrás melhore por causa do efeito placebo, não pela ação especí- fica do princípio ativo dos medica- mentos, apesar do avanço da indústria química e farmacêutica nesse tempo.

A mais recente revelação sobre esse efeito mostra o placebo em ação sobre o sistema nervoso em tempo real. Por meio de um aparelho de ressonância nuclear magnética, a equipe de Jona-

than Cohen, da Universidade de Prin- ceton, nos Estados Unidos, produziu imagens do cérebro em atividade de pessoas que participaram de dois expe- rimentos distintos, supostamente vol- tados para testar a eficácia de um novo analgésico - na realidade, um creme inócuo. Deitados no interior do apare- lho, os participantes tinham de quanti- ficar a dor ao receber um choque no punho no primeiro teste e, no outro, classificavam a dor causada pelo con- tato de um objeto quente no antebra-

Vaso de Edgar Rubin, 1915: imagens flutuantes

ço. A tela do computador mostrava por meio de cores a intensidade do funcio- namento de cada área do cérebro. Em ambos os experimentos, apresentados em um artigo na Science de 20 de feve- reiro deste ano, as pessoas afirmaram sentir menos dor nos testes feitos de- pois da aplicação do creme.

Efeito esperança - A simples informa- ção de que haviam recebido uma dose de pomada analgésica - na verdade, o tal creme sem ação farmacológica - foi suficiente para diminuir a atividade de quatro regiões ligadas à percepção da dor: o córtex cingulado anterior e o so- matossensório, a insula e o tálamo. Quanto menor a atividade dessas áreas, maior o alívio da dor. Em contraste, essas mesmas áreas permaneceram mais ativas em quem acreditava ter re- cebido um outro creme sem ação con- tra a dor - nos dois grupos, foram

aplicadas a mesma pomada inativa. A equipe de Cohen planejou o segundo experimento, no qual o objeto quente ficava em contato com a pele por 20 segundos, de modo que pudesse acom- panhar a evolução da atividade do sis- tema nervoso e da ação do placebo desde antes do estímulo doloroso - fase chamada antecipação, quando um sinal luminoso com a expressão "Pre- pare-se!" informava ao voluntário que em breve entraria em contato com a peça quente - até a dor cessar por

completo. Tão logo as pessoas rece-

biam esse aviso, constataram os pesquisadores, aumentava bas- tante a atividade do córtex pré- frontal - parte do cérebro si- tuada acima dos olhos, que regula outras áreas do sistema nervoso. Em seguida, no moni- tor do computador que mos- trava o cérebro inteiro, brilhava outra região do sistema nervo- so situada no mesencéfalo, as- sociada à produção de analgé- sicos naturais tão potentes quanto a morfina. Na visão de Jonathan Cohen, o coordena- dor dessa pesquisa, a maior ati- vidade do córtex pré-frontal nessa fase resulta da expectati- va de alívio e diminui o funcio- namento das áreas responsá- veis pela percepção dolorosa. Foi por essa razão que os vo-

luntários relataram uma redução de 22% na intensidade da dor no segundo experimento.

Mas apenas a expectativa de que o tratamento dê certo não explica por completo os resultados. Em dois outros experimentos realizados na Itália, Mar- tina Amanzio e Fabrizio Benedetti, neurocientistas da Universidade de Tu- rim, descobriram outro componente do efeito placebo, o condicionamento - algo parecido com o que viu Ivan Pav- lov, o fisiologista russo que treinou cães famintos para salivar ao ouvir o toque de uma sineta. De modo semelhante ao reflexo condicionado dos cães, o consu- mo de um determinado analgésico re- petidas vezes habitua o corpo a reagir da mesma forma quando uma injeção de analgésico é trocada por uma dose de água com sal - sem o conhecimento do paciente, claro. Conseqüência: o sis- tema nervoso central faz o próprio cor-

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po produzir compostos contra a dor, em uma reação quase automática a um estímulo conhecido, como, por exem- plo, sentir a boca cheia d'água ao ouvir que o bolo de chocolate está pronto.

Uma das dificuldades do experimento da equipe italiana era elaborar um teste que comprovasse o poder do condiciona-

mento. Os pesquisadores de Turim montaram uma complexa bateria de exames com 229 pessoas sepa- radas em 12 grupos, para ava- liar melhor os resultados - em cada grupo, se adotava uma es- tratégia diferente. Cada partici- pante passou por cinco sessões de avaliação na qual repetiam os mesmos exercícios: pressio- navam com a mão as hastes de um aparelho com molas - um dinamômetro -, enquanto uma bolsa de ar de um aparelho de medir pressão presa ao braço bloqueava a passagem de san- gue para o antebraço do vo- luntário. A cada apertão, a dor no antebraço aumentava rapi- damente e, em questão de mi- nutos, atingia um nível insu- portável.

Martina e Benedetti viram que as pessoas toleravam a dor por um período maior se, dez minutos antes do teste, fossem tratadas com uma injeção de morfina. O mais chocante: a resistência à dor foi semelhante à obtida com a morfi- na quando a pessoa tomava uma inje- ção de água salgada na terceira sessão de exercícios, após haver recebido o analgésico em dois testes seguidos. Se, no lugar de água e sal, a injeção conti- vesse uma droga que corta o efeito da morfina - a naxolona -, a tolerância à dor diminuía. Era um sinal claro de que o uso seguido de morfina condi- cionava o sistema nervoso a acionar as áreas produtoras de analgésicos do grupo dos opióides, ao qual pertence a morfina.

De modo semelhante, o placebo também induziu o corpo a acionar sua própria fonte de analgésico - mas por um mecanismo distinto - após a apli- cação de uma dose de cetorolac, um potente analgésico não-opióide, em vez de morfina. Surgiu, porém, uma

surpresa: a resistência à dor aumentou ainda mais quando, durante a injeção de placebo, os pesquisadores induzi- ram os participantes a acreditar que o composto inócuo era morfina ou ceto- rolac. Estava claro: o placebo atuava sobre a dor por mecanismos neuroló- gicos distintos (opióide e não-opiói- de), acionados em parte pela expectati- va, em parte pelo condicionamento.

Em um experimento ainda mais curioso, Martina, Benedetti e outra neurocientista de Turim, Claudia Ar-

Espaço ambíguo: número de cubos depende do olhar

duino, revelaram um aspecto até então não imaginado do placebo: sua ação benéfica pode se manifestar em partes específicas do corpo, para as quais se dirigem a atenção e a expectativa. Num teste que lembra uma cena de tortura, os pesquisadores injetaram simulta- neamente no dorso das mãos e dos pés de cada voluntário uma dose de cap- saicina, substância que faz a pimenta arder na boca. Nos segundos seguintes, o participante recebia um leve choque no pé ou na mão para avaliar a inten- sidade da dor. Após a aplicação na mão direita de uma pomada inócua, que se acreditava ser um novo analgésico, os voluntários afirmavam sentir menos dor apenas naquele membro. Em arti- go publicado no Journal of Neuroscien- ce, o grupo italiano concluiu que me- canismos de atenção possivelmente também estejam envolvidos no efeito gerado pelo placebo, uma vez que a ex-

pectativa direcionada a uma determi- nada parte do corpo concentrou os be- nefícios apenas ali.

Além de ajudarem a compreender como nosso organismo reage diante da expectativa de cura, as evidências acu- muladas nos últimos anos de que o pla- cebo é mais que uma substância inócua também abrem uma polêmica: é nossa capacidade de autocura que é grande ou o problema está nos medicamentos disponíveis para a população, que são menos eficazes do que seria de espe-

rar? Diversos estudos mos- tram que substâncias inócuas são capazes de, em algumas doenças, fazer a pessoa melho- rar tanto quanto os remédios considerados eficazes, distin- ção que parece bastante com- plicada principalmente no cas- o dos medicamentos usados para tratar da depressão.

Antidepressivos - Em um arti- go polêmico intitulado Liste- ning Prozac but hearing placebo (Ouvindo Prozac, mas enten- dendo placebo), publicado na Prevention and Treatment de junho de 1998, Irving Kirsch, da Universidade de Connecti- cut, e Guy Sapirstein, do Hos- pital Westwood Lodge, ambos nos Estados Unidos, afirma- ram que substâncias inócuas foram tão eficazes quanto os

antidepressivos no tratamento da de- pressão. Foi um golpe nos medicamen- tos de eficácia comprovada, que movi- mentam um mercado de bilhões de dólares no mundo. Talvez por precau- ção, o editor da revista adicionou uma observação ao estudo, informando que o trabalho usou uma metodologia po- lêmica para comparar estudos feitos com métodos e critérios de tratamento distintos. No ano seguinte, o médico Thomas Weihrauch, diretor do Centro de Pesquisas Farmacêuticas do labora- tório farmacêutico Bayer, na Alema- nha, buscou sinais do efeito placebo em diversos estudos que avaliavam a ação de cinco medicamentos produzi- dos pela Bayer - contra dor no peito, ansiedade, acidente vascular cerebral, gastrite e diabetes. Com exceção do tratamento do diabetes, os compostos supostamente inócuos mostraram um nível de eficácia que variou caso a caso.

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Fragmento de Metamorfose II, de Maurits Escher, 1940

Outra constatação ainda mais inespe- rada: de modo semelhante aos remédi- os, as substâncias-placebo provocaram na maior parte dos casos efeitos colate- rais, como secura na boca, cansaço e confusão mental. Na conclusão do tra- balho, publicado na Drug Research de 1999, o pesquisador adverte: os médi- cos devem fazer uma seleção muito ri- gorosa das pessoas a serem tratadas, antes de receitar um medicamento sem eficácia cientificamente comprovada.

Surge então uma dúvida. Se um composto inerte funcio- na em parte dos casos, ainda pode ser considerado place- bo? Depende de quem res-

ponde. Para os mais céticos, o placebo não tem ação farmacológica e ponto. Em 2001, os pesquisadores dinamarqueses Peter Gotzsche e Asbjorn Hrobjarts- son, da Universidade de Copenhague e do Centro Cochrane em Copenhague, organização internacional que analisa conjuntos de estudos clínicos em bus- ca de evidências da eficácia dos trata- mentos, apresentaram no New England Journal of Medicine um artigo desban- cando o efeito placebo.

Após analisar 130 estudos clínicos, os pesquisadores constataram que, de modo geral, dar placebo era equivalen- te a não fornecer nenhum tratamento para o doente. "Encontramos pouca evidência de que, em geral, os placebos apresentem poderosa ação clínica", concluíram Gotzsche e Hrobjartsson. Segundo eles, os benefícios proporcio- nados por placebos parecem muito pe- quenos e foram observados apenas nos testes em que a avaliação da melhora

era feita pelo próprio paciente - ou seja, a análise era subjetiva - ou na te- rapia da dor.

Nem todos pensam assim. Há quem defenda a reavaliação da própria definição de placebo. "Não há uma substância ou um tratamento em par- ticular que possa, de uma vez por to- das, ser definido como placebo", afir- ma o filósofo Zbigniew Szawarski, da Universidade de Varsóvia, Polônia, em um dos artigos sobre o papel do place- bo na pesquisa médica publicado na edição de janeiro da revista Science and Engineering Ethics. Segundo o fi- lósofo, a razão é que a eficácia de um composto químico qualquer - inócuo ou farmacologicamente ativo - depen- de também das características do me- dicamento (como cor, forma, aroma), da pessoa que o toma, da relação com o médico e mesmo das circunstâncias em que é usado.

Sobrevivência - Nikola Biller-Andor- no, da Universidade de Goettingen, Alemanha, e consultor em ética da Organização Mundial da Saúde, apre- senta uma alternativa. "A dicotomia entre substância 'ativa' e 'placebo' não é adequada, uma vez que os placebos podem produzir efeito e que parte da ação das substâncias 'ativas' pode ser decorrente do 'efeito placebo'. Por- tanto, a terapia com placebo não deve ser considerada ausência de trata- mento", escreve Andorno em um dos artigos da Science and Engineering Ethics. "Em vez de pensar no emprego de um ou de outro, pode ser mais apropriado imaginar como o efeito placebo pode ser usado para melhorar

a eficiência de uma determinada tera- pia", propõe.

O neurocientista Raul de La Fuen- te-Fernández, da Universidade de Co- lúmbia Britânica, no Canadá, e do Hos- pital Arquiteto Marcide, em La Coruna, Espanha, concorda com a necessidade de se alterar a forma de ver o placebo. Na sua opinião, é hora de repensar a es- trutura dos estudos científicos. "Obser- vações recentes indicam que chegou o momento de planejar investigações apropriadas que utilizem o placebo", afirma o pesquisador. Para ele, o efeito placebo pode ser um mecanismo que os seres humanos desenvolveram a par- tir da seleção natural. "Num período em que não existiam tratamentos ati- vos disponíveis, a capacidade de res- ponder a remédios com supostas pro- priedades curativas poderia elevar a sobrevivência", comenta La Fuente, que dois anos atrás desvendou como subs- tâncias inócuas agem no sistema ner- voso de pessoas com mal de Parkinson, que provoca a perda do controle dos movimentos e mata progressivamente as células produtoras de dopamina. No artigo da Science and Engineering Ethics de janeiro, em que comenta as evidên- cias bioquímicas do efeito placebo, La Fuente lança a idéia de que esse efeito de sugestão já deve ter sido maior, antes de surgirem os medicamentos atuais: "O poder de cura da fé pode ter di- minuído nos tempos modernos como conseqüência da crescente influência que o método científico, uma vez esta- belecido na literatura médica como a única ferramenta válida para se chegar à verdade, pode ter tido na mente da população geral." •

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A inexistência de Plutão

JOSé CASTELLO

Clyde Tombaugh, o astrônomo que descobriu Plutão, o mais remoto dos planetas, foi contemporâneo de meu pai, José Ribamar. Ambos nasceram no longínquo verão de 1906, Tombaugh numa noite em que o céu do Hemisfério Norte era riscado por um

cometa, o Schlumberger, enquanto meu pai, um piauiense, veio ao mundo respirando a as- pereza do firmamento nordestino. Um ano antes, em 1905, morreu Júlio Verne, o criador da ficção científica, e minha mãe, que é espírita, assegura que Tombaugh foi a reencarnação de Verne. Não sei se um ano basta para um processo tão complexo, mas ela argumenta que, no campo espiritual, a lógica é sempre outra, ou como prefere dizer, é "invertida".

Mas não é isso o que interessa aos senhores, eu presumo, e nem a mim, coitado de mim, que estou aqui para ser julgado por um crime inexistente. Matar um cachorro, isso basta para levar um sujeito para as grades? Batizei meu primeiro cachorro, um vira-lata, de Plu- tão. Como todos sabem, Plutão, o planeta e não meu cachorro, tem uma órbita excêntrica, isto é, que se desvia ou afasta de seu centro; e meu cachorro, que se comportava como um tamanduá, tinha atração por cupins. Ele não latia, talvez pela ausência de dentes, ou então por temperamento - e meu avô afirmava que era mudo. Era um bom cachorro, ainda que excêntrico.

De que mesmo eu falava? Ah, sim, de Plutão, o planeta, e não de Plutão, o cachorro. E de Clyde Tombaugh, o astrônomo que descobriu o astro, não o cachorro, e de meu pai, José Ribamar, que nada descobriu além da rudeza do mundo. Quando Tombaugh fez seu acha- do científico, tinha só 24 anos, e meu pai, em conseqüência, também. Mas meu pai, aos 24 anos, não tinha tempo a perder com a observação do céu, já que, como advogado, passava suas horas, ao contrário, com os olhos derramados sobre processos judiciais. Aliás, na mes- ma pose contrita dos tamanduás que fuçam os formigueiros.

Plutão, o planeta, tem uma lua, Caronte, que é só um pouco menor que ele. E, não fos- sem os movimentos giratórios que faz em torno de seu mestre, se poderia afimar que ela sim, Caronte, é o planeta, e não Plutão. Ambos, Plutão e Caronte, viajam no espaço sempre face a face, quer dizer, numa espécie de namoro silencioso, e sem brigas, já que nunca se dão as costas. Pois Plutão, meu cachorro, era também um animal extravagante. Quando saía- mos, costumava andar sempre às minhas costas, e nunca à frente, como fazem os cachorros nos filmes americanos, nas expedições de caça e nas batidas policiais. Se latia, vacilava, era gago. Se rosnava, afogava-se no próprio resmungo.

Plutão, como Vênus e Urano, tem uma rotação retrógrada, quer dizer, viaja na direção oposta à dos outros planetas. Enquanto os outros avançam, ele regride. Foge, mas de quê? A verdade é que Plutão, meu cachorro e não o planeta, é um vira-lata medroso, tanto que às vezes se põe a correr só por causa de um sapato largado na rua. Tinha suas fobias, então se parecia com Plutão, o planeta, que talvez gire ao contrário pelo mesmo motivo, algum horror, alguma aversão monstruosa, sabe-se lá a que, já que ainda não existe a psicologia dos planetas.

Como o planeta, meu cachorro também teve um apelido, Bafo, que vinha de seu mau há- lito - e, quando o chamava de Bafo, minha mãe dizia que se tratava de outro cachorro, não do que ela costumava alimentar. Também a descoberta de Plutão é atribuída, muitas vezes, a Percival Lowel, e não a Tombaugh. E Plutão, o planeta, possui ainda um segundo nome, Hades, o deus do inferno, porque é mesmo um inferno ter dois nomes e não saber ao certo quem é.

Como vocês dizem, cometi meu crime - se é que matar um cachorro é um crime - por- que não suportava mais essa tendência à duplicidade, ao retorno e à regressão. Transformei- me em seu Caronte, fui escravo de suas manias, eu, um homem respeitável, e mais forte, como Caronte, que trabalho no Tribunal de Contas, na seção de registros e catalogações. Tornei-me só um apêndice, um satélite de meu cão, e quando percebi que aquilo chegara a

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um ponto insuportável, não tive alternativa. Porque um crime é isso, não é uma decisão, não é um impulso maléfico, não é uma tara, é só uma maneira de fugir. Só que, ao fugir, esbar- ramos numa imensa muralha.

Se Plutão (Hades) é o deus do inferno, não é à toa. Desde rapaz, quando já não conse- guia controlar meus impulsos sexuais, passei a especular se o demônio, de alguma forma, se instalara em meu corpo. Levado por sei lá qual senso de martírio, cultivei costeletas diabó- licas. Aquilo me fez mal, mas fazia sentido, era um incômodo que, mesmo incomodando, emprestava uma direção às minhas excentricidades. Outra coincidência infernal é que Plu- tão, o planeta, foi descoberto por acaso, na verdade como conseqüência de um erro cientí- fico, que apontava, desastradamente, a existência de um planeta num lugar onde, a rigor, não deveria haver planeta algum. Tomando o erro a sério, Tombaugh empenhou-se na pes- quisa do céu e descobriu Plutão, um erro científico, mas um planeta verdadeiro. Eu, que também nasci por causa de um cálculo malfeito nas tabelas que minha mãe usava para não engravidar, surgi, como um homem real, num lugar em que não devia haver homem algum.

Há quem pense que Plutão deve ser considerado, na verdade, só um asteróide, ou um cometa, e não um planeta, do mesmo modo que meus colegas do Tribunal de Contas cos- tumam acreditar que eu deveria ser apenas um auxiliar de escritório, ou no máximo um su- balterno, e jamais um técnico graduado em contabilidade. Meu diploma, de fato, é falso: eu o comprei de um árabe que vive em Botucatu. Não era um especialista em falsificações, mas porque gostava muito de Plutão, não o planeta, mas meu cachorro, um dia, com pena de minha vida miserável (eu sobrevivia como empregado temporário de uma pastelaria), me arrumou o diploma e me salvou.

Por que matei Plutão, meu pobre cachorro, que agora inexiste? Eu o amava. Quando o comprei, acreditava que as características do planeta que desde cedo identifiquei em mim se transfeririam para ele, e que, assim, ele me salvaria. Elas se transferiram, mas continuaram também em mim, e, ao contrário, se exacerbaram, de modo que não me restou alternativa, tive que matá-lo, para me livrar daquilo que nos aproximava. É difícil suportar a semelhança. A desgraça foi que D. Romüda, minha vizinha, assistiu a tudo entre os lençóis de seu varal de roupas, e me denunciou ao Tribunal Verde. E agora, que aqui estou, diante de iminentes ve- terinários, ecologistas, protetores de animais, não sei se conseguirei me defender, não creio que serei capaz, porque para todos vocês um cachorro vale muito mais que um homem.

Matei Plutão, mas não matei o planeta que me habita - e aviso, desde logo, que despre- zo a astrologia, ciência de dondocas e de mentirosos. Plutão, meu cachorro, não matou Plu- tão, o planeta que me inferniza, que me empurra para trás e que, agora mesmo, enquanto tento me defender diante desse tribunal, dá cambalhotas no Armamento, desperdiçando energia e rindo do universo. Não matou porque um cão não pode exterminar um planeta, mas eu, eliminando Plutão, o cachorro e não o planeta, cheguei a acreditar que tinha obti- do a salvação. Pura tolice.

JOSé CASTELLO é jornalista e escritor, autor, entre outros, de Vinícius, o poeta da paixão e Pele: os dez corações do rei.

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Chiropsalmus quadrumanus (à esquerda) e Tamoya haplonema: medusas brasileiras da classe Cubozoa, grupo-irmão dos Staurozoa

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CIÊNCIA

OOLOGI

Testemunhas aterra primitiva

Medusas fixas formam nova classe de animais marinhos

FRANCISCO BICUDO

arecem cogumelos gelatinosos - vermelhos, azuis, verdes, ala- ranjados, amarelos, até mes- mo luminescentes - que se movem pelo mar como se

dançassem. Aprecie, mas não se aproxime

esbarrão pode provocar envenenamentos fatais. Eis os cnidários, grupo de animais invertebrados antigamente chamados de celenterados, representado pelos pólipos, águas-vivas, hidras e medusas. "Não são fascinantes?" observa o biólogo Antônio Carlos Marques, diante da imagem de uma medusa transparente na tela do computa- dor de sua sala, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). "De uma certa forma, tudo começou com eles." Surgidos há cerca de 600 milhões de anos,

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os cnidários - um grupo hoje formado por cerca de 11 mil espécies - foram um dos primeiros animais pluricelula- res da Terra, já com tecidos organiza- dos e um esboço de aparelho digestivo.

Marques identificou uma nova classe de cnidários, batizada de Staurozoa - uma classe reúne animais

com características semelhantes, ainda que sejam bastante diferentes entre si, já que devem ter se originado de um mesmo ancestral (elefantes e ratos per- tencem à mesma classe, os mamíferos, embora sejam espécies distintas). São cerca de 50 espécies com representantes vivos, sem contar os fósseis, agrupadas em duas ordens, em um estágio abaixo da classificação dos seres vivos. As me- dusas de uma dessas ordens apresen- tam uma diferença básica em relação às espécies dançantes: as da nova classe vi- vem agarradas a rochas ou algas, por meio de uma estrutura semelhante a uma ventosa, o pedúnculo. Seu traba- lho - feito em colaboração com Mar- cello Simões, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, e com o norte-americano Allen Gilbert Collins, da Escola Veterinária (ITZ, na sigla em alemão), de Hannover, na Alemanha - foi o principal estudo publicado na edi- ção do início do ano da revista Inverte- brate Biology.

A identificação dos Staurozoa, que inclui representantes fósseis, é o pri- meiro passo na direção do plano mais ousado de Marques: montar a árvore genealógica do grupo considerado a base de evolução dos animais - ou metazoários - e definir como era um dos primeiros seres a habitar a Terra. "Agora acreditamos que o ancestral comum desse grupo deve ter sido uma linhagem que vivia fixa, sem se deslocar", comemora o biólogo de 34 anos, contratado há quatro pela USP. "É um avanço e tanto." Seus estudos se baseiam na teoria cladística, cor- rente de pensamento criada há cerca de 50 anos pelo alemão Willi Hennig, que adota a evolução como referência para a classificação dos seres vivos, baseada nas características externas comuns.

"Para a cladística", comenta Mar- ques, "somente se considera válido o grupo com um ancestral comum exclu-

sivo, não compartilhado com nenhum outro grupo." Antes de Hennig predo- minava a escola chamada gradista, se- gundo a qual os seres vivos deveriam ser agrupados sem necessariamente se respeitar a origem dos grupos. Esse ra- ciocínio, hoje visto como simplista, fez com que, por exemplo, todos os peixes fossem agrupados na classe Pisces por terem escamas e cara de peixe. Porém, se adotados outros elementos de classi- ficação, há peixes, chamados ósseos, que ficam mais próximos de todos os outros vertebrados do que dos outros peixes, os cartilaginosos.

Na verdade, a preocupação em en- contrar formas de reunir os animais é bem mais antiga e interessou filósofos como Aristóteles, na Grécia Antiga. O sueco Carolus Linnaeus, no Systema naturae, de 1735, propôs uma padroni- zação dos nomes dos seres vivos que persiste ainda hoje: os nomes escritos em latim, sempre usando duas pala- vras, a primeira para apenas o gênero; as duas juntas, a espécie. A atual escala de classificação dos seres vivos, que nasceu com Linnaeus, funciona como um funil com sete estágios, que sai do mais geral, os reinos, que representam os conjuntos maiores, até chegar ao particular, a espécie. As classes estão entre os compartimentos mais abran- gentes, abaixo dos dois primeiros está- gios, os reinos e os filos, e acima das or- dens, das famílias, dos gêneros e das espécies. No filo dos artrópodes, por exemplo, há as classes das aranhas, dos crustáceos e dos insetos.

Marques percebeu que havia algo errado nas classes dos cnidários du- rante o doutorado, concluído em 1997: animais muito diferentes, prova- velmente com ancestrais distintos, es- tavam em um mesmo grupo. Foi pu-

Relações Filogenéticas nos Cnidaria, com Ênfase nos Medusozoa

MODALIDADE Jovem Pesquisador

COORDENADOR ANTôNIO CARLOS MARQUES - IB/USP

INVESTIMENTO R$ 120.799,43

xando a ponta do novelo que ele con- seguiu identificar e caracterizar os Staurozoa, que ganharam esse nome em razão de uma de suas principais características: o pedúnculo em forma de cruz (em grego, stauros), que fixa o animal às rochas. A Halyclistus octora- diatus, a espécie estampada na capa da revista Invertebrate Biology, exibe um pedúnculo vermelho vivo, que lembra uma língua colocada para fora da boca. Seus oito tentáculos amarelos, com as pontas cor-de-rosa, deixam es- se invertebrado dos mares com forma semelhante à de uma flor.

"Os Staurozoa trazem informações básicas sobre os primeiros passos de evolução da vida na Terra", comenta Allen Collins, colaborador de Marques na Alemanha. Até os dois começarem a trabalhar juntos, em 1999, a maioria dos estudos sobre os cnidários enfatiza- va apenas a descrição de espécies, nu- ma abordagem de varejo, sem uma vi- são abrangente. "Ainda hoje são raros os trabalhos sobre os maiores conjun- tos de seres vivos, que são fundamen- tais porque, quanto maior a abrangên- cia, mais significativo o impacto", diz o pesquisador da USP.

Raridades no Brasil - A nova classe é formada por duas ordens. A primeira, Conulatae, abriga apenas representan- tes fósseis, que teriam existido de 550 a 200 milhões de anos atrás, entre os pe- ríodos geológicos Cambriano e Triás- sico. As espécies dessa ordem tinham a forma de um cone de sorvete e viviam aderidas a superfícies marinhas, hoje de depósitos fossilíferos, localizados principalmente nas atuais bacias dos rios Amazonas e Paraná, ocupadas por água salgada há milhões de anos.

Os cerca de 50 representantes vivos formam a outra ordem, Stauromedu- sae. Estão nesse grupo as medusas fixas, com até 5 centímetros de comprimen- to, e um corpo formado por uma base cilíndrica com uma ventosa em uma das extremidades e os tentáculos na ou- tra. Suas cores variam de um vermelho ou laranja vivos a um marrom pálido. Solitários e carnívoros, alimentando-se de larvas de crustáceos e de outros ani- mais, são comuns em águas frias do li- toral do Japão, do Canadá e dos Esta- dos Unidos. O Brasil possui apenas uma espécie, a Kishinouyea corbini, com no máximo 1 centímetro de comprimen-

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Lychorhiza lucerna: medusa da classe Scyphozoa de 50 centímetros de diâmetro

to. "Até hoje só foram encontrados dois exemplares dessa ordem, um no litoral do Espírito Santo e outro em Cabo Frio, no Rio de Janeiro", conta Mar- ques. "São raríssimos por aqui."

Até o reconhecimento dos Stauro- zoa havia quatro classes conhecidas de cnidários, assim chamados por possuí- rem células urticantes conhecidas co- mo cnidócitos em seus tentáculos. A primeira é a Anthozoa representada pelos corais e pelas anêmonas-do-mar, abundantes em águas rasas. Os Scypho- zoa são o grupo das águas-vivas, capa- zes de se deslocar e nadar livremente, como a Aurélio, aurita, uma das espé- cies mais conhecidas, com cerca de 15 centímetros de diâmetro, cujo formato lembra um guarda-chuva azulado e quase transparente. As hidras, incluin- do a mais famosa delas, a caravela-do- mar (Physalia physalis), fazem parte da Hydrozoa, a terceira classe. Em sua fase de larva - ou pólipo, antes de se tornar um adulto ou medusa -, os animais

aessa ciasse se parecem com uma mi- niárvore de galhos muito finos, como a Corydendrium parasiticum.

e essas três classes foram pro- postas ainda durante o sécu- lo 19, a quarta, a Cubozoa, foi descrita apenas em 1975 pelo alemão Bernhard Wer-

ner. É formada por cerca de 25 espé- cies, conhecidas genericamente como águas-vivas - algumas delas venenosas, como a vespa-do-pacífico (Chironex fleckeri), que habita os mares próximos à Austrália. No litoral brasileiro, é pos- sível encontrar a Chiropsalmus quadra- manus, que chega a 15 centímetros de diâmetro, e a Tamoya haplonema, am- bas com um formato semelhante a si- nos - e venenosas.

Antes de ganhar vida própria, os re- presentantes da classe Staurozoa faziam parte dos Scyphozoa, mas as análises moleculares de Marques e Collins, combinadas com análises de evolução

morfológica, mostraram que havia mais diferenças do que semelhanças entre os dois conjuntos de animais. Era como se uma ave como uma galinha estivesse no mesmo conjunto do mor- cego, um mamífero.

A reclassificação dos cnidários re- sultou da análise comparativa de 87 ca- racterísticas das quatro classes então já descritas, como as estruturas das célu- las e do próprio corpo, os tipos de ciclo de vida (alguns não apresentam a fase de pólipo, outros não chegam a medu- sas) e as formas de reprodução (nem sempre a fertilização é direta). Foram quase cinco anos de trabalho intensivo até se chegar à demonstração de que as quatro classes deveriam ser cinco. Ago- ra, com o trabalho pronto, abriram-se perspectivas de entender um pouco me- lhor como começou a história dos ani- mais no planeta. "Estamos tentando documentar uma pequena parte de um mundo que está muito próximo de nós", anima-se Collins. •

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I CIÊNCIA

Perdidas

espaço Brasileiros descobrem quatro berçários de estrelas fora das galáxias

fi

um recanto do Universo onde não se julgava ha- ver nada, uma equipe de astrofísicos do Brasil e da França identificou

quatro novos berçários de estrelas quentes e jovens, com idades entre 3,2 milhões e 5,6 milhões de anos (veja pontos azuis luminosos em destaque na página ao lado). Ricas em metais e com- postas de hidrogênio carregado de par- tículas elétricas, essas regiões se locali- zam em pontos aparentemente vazios do espaço intergaláctico existente nas redondezas de um compacto grupo de cinco galáxias, conhecido como Quin- teto de Stephan, distante 280 milhões de anos-luz da Terra. Um ano-luz eqüivale ao espaço percorrido pela luz em um ano, algo como 10 trilhões de quilôme- tros. Os berçários se encontram na cau- da de gás de uma das galáxias do Quin- teto de Stephan, a NGC 7319, mas se situam a cerca de 70 mil anos-luz de seus braços espirais, onde normalmente ocorre a formação estelar. Isso quer di- zer que as novas regiões estão literalmen- te fora das galáxias. Suas dezenas ou tal- vez centenas de estrelas estão, portanto, "soltas" no Cosmos, fora do seu lugar cativo, como se fossem órfãs ou eremi- tas do espaço. São estrelas sem galáxias. Perto do tamanho de uma galáxia, que pode conter bilhões de estrelas, como a Via Láctea, os novos berçários são um ponto imperceptível no Universo.

A descoberta de regiões H II, nome técnico dado aos locais em que se origi-

nam estrelas novas, em zonas externas às galáxias, é extremamente rara e re- cente. "Até dois anos atrás, os astrôno- mos acreditavam que a formação de es- trelas, em especial das mais jovens, só ocorria dentro das galáxias", diz a pes- quisadora brasileira Claudia Mendes de Oliveira, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), uma das autoras da descoberta dos ber- çários, relatada num artigo científico publicado na edição de 10 de abril do The Astrophysical Journal. "Somente no interior delas haveria densidade de gás alta o bastante para isso acontecer." No meio intergaláctico, a densidade de gás seria baixa demais para levar à forma- ção de estrelas. Seria, mas não é - a jul- gar pelo trabalho redigido pela equipe franco-brasileira e por outros artigos científicos recentes.

Evolução de Galáxias em Grupos e Aglomerados

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADORES LAERTE SODRé JúNIOR E CLAUDIA

MENDES DE OLIVEIRA

INVESTIMENTO R$ 207.588,40

A identificação de quatro berçários de estrelas jovens e quentes nos arredo- res do Quinteto de Stephan - obtida com a utilização de instrumentos insta- lados no Observatório Gemini Norte, no Havaí - representa a segunda evi- dência de peso a favor da idéia de que existem, sim, regiões H II fora das galá- xias. A primeira surgiu em 2002, quan- do um grupo de pesquisadores da Eu- ropa, Austrália e Japão descobriu uma solitária região H II nas proximidades da constelação de Virgem. Depois da publicação desses trabalhos pioneiros, dois outros grupos internacionais en- contraram mais seis berçários de estre- las fora de galáxias. Pelo jeito, há mais grupos de jovens estrelas órfãs vagando pelo espaço intergaláctico do que qual- quer astrofísico um dia imaginou. "A presença de regiões H II fora de galáxias não é tão rara como pensávamos até agora", afirma Laerte Sodré Júnior, também do IAG-USP, outro autor da descoberta dos berçários junto ao Quinteto de Stephan. "Na verdade, es- tamos diante de um novo mecanismo de formação de estrelas." Ainda assi- nam o artigo no The Astrophysical Jour- nal o brasileiro Eduardo Cypriano, que hoje mora no Chile, e a francesa Chan- tal Balkowski, do Observatório de Pa- ris. As pesquisas da equipe contam com financiamento da FAPESP e apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimen- to Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex).

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Encontrar regiões H II no meio do nada ainda não é prova cabal de que há formação de estrelas jovens nesse trecho do espaço, fora das galáxias. •• As estrelas podem hoje estar ali, mas isso não significa que sempre esti- veram. Seu local de nas- cimento pode ter sido o interior de uma galáxia ! próxima e, mais tarde, por algum motivo, pro- vavelmente colisões en- tre galáxias, essas estrelas podem ter sido expelidas para o meio intergalácti- co. Seria uma situação análoga à de um brasileiro que, por algum motivo, deixa seu país e se muda para os Estados Uni- dos. Isso não o torna norte-americano. No máximo, ele está norte-americano. No caso dos quatro berçários de estrelas identificados nos arredores do Quin- teto de Stephan, os astrofísicos contam com uma evidência para defender a hi- pótese de que essas regiões H II devem ter se originado exatamente no lugar onde atualmente se encontram: sua ex- trema juventude em termos astronô- micos. Os quatro berçários de estrelas são considerados excessivamente jo- vens para terem surgido num ponto do Universo (o interior de uma ou mais galáxias vizinhas) e depois migrado pa- ra outro (o meio intergaláctico). Esse tipo de deslocamento demanda mais tempo para ocorrer do que a idade mé-

dia atribuída às novas regiões H II, 4,6 milhões de anos. Logo, os berçários de- vem ter nascido onde estão hoje.

O cenário parecia perfeito a não ser por um detalhe. Como os pesquisadores explicariam a alta metalicidade medida nessas estrelas jovens que se formaram fora das galáxias, paradoxalmente num ambiente quase desprovido desse tipo de elementos químicos? Afinal, a quan- tidade de metais presentes nas novas regiões H II é da mesma ordem da en- contrada no interior de galáxias e estre- las, como o Sol. "A verdade é que ainda não temos uma boa resposta para essa pergunta", admite Claudia. "Mas propo- mos um cenário para dar conta dessa situação." Para os astrofísicos, as regiões H II se originaram no quase vazio do meio intergaláctico a partir de materi- al já reciclado e enriquecido com me- tais que, cerca de 100 milhões de anos atrás, havia sido ejetado do interior

As galáxias do Quinteto de Stephan e os diminutos berçários de estrelas jovens (pontos ampliados em azul): formação estelar no vazio intergaláctico

do Quinteto de Stephan devido a colisões entre as suas galáxias. Seu ele- mento constituinte, por- tanto, não foi apenas o gás primordial do meio intergaláctico, pouco denso e pobre de metais. Foi sobretudo o material mais pesado e metálico

• que se soltou das galá- ' * • I xias vizinhas.

Os cientistas suspei- tam de que os berçários de estrelas estejam asso-

ciados a nuvens de gás frio (hidrogênio neutro) que se desprenderam do Quin- teto de Stephan e hoje se encontram na cauda da galáxia NGC 7319. Devido a alguma instabilidade mais recente, ocorrida há poucos milhões de anos, es- sas nuvens de gás deram origem às re- giões H II no meio intergaláctico. "A existência dessas regiões representa um mecanismo de enriquecimento e trans- ferência de metais das galáxias para o meio intergaláctico", afirma Sodré Jú- nior. Agora que descobriram a existên- cia de berçários estelares no vazio do Universo, os pesquisadores vão ter de acompanhar a evolução dessas inusita- das formações. Eles acham que essas es- trelas soltas no espaço podem, um dia, originar um dos eventos mais energéti- cos do Cosmos: explosões que geram supernovas, estrelas capazes de, tempo- rariamente, brilhar mais do que uma galáxia inteira. •

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USP 3 Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, Pesquisa FAP ESP mostra as soluções tecnológicas criadas pela Escola Politécnica da USP, celeiro de profissionais que ajudaram a modernizar o país

Usina de engenhos FABRíCIO MARQUES

s 111 anos de história da Escola Politécnica da Uni- versidade de São Paulo (Poli-USP) resumem a trajetória de um país que soube se modernizar a passos velozes. São Paulo ganhou ares cosmopoli- tas graças, em boa medi- da, à contribuição de pio-

neiros como o engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza (1843-1917) ou o construtor de edifícios e pa- lacetes Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851- 1928), ambos fundadores da Escola Politécnica de São Paulo, em 1893. No final dos anos 1920, quando go- vernar virou sinônimo de construir estradas, a institui- ção forneceu quadros para riscar um primeiro rascu- nho da malha rodoviária que, décadas mais tarde, substituiria de vez as ferrovias. Engenheiros politécni- cos aventuraram-se até a produzir blindados e grana-

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das quando São Paulo insurgiu-se contra Getúlio Var- gas em 1932. A Escola, que se incorporou à Universi- dade de São Paulo em 1934, logo ganharia fama de celeiro de homens públicos - um punhado de gover- nadores paulistas passaram por ela.

Entre as décadas de 1950 e 1970, aquela fase em que a economia brasileira cresceu a taxas de tigre asiático e carecia de soluções tecnológicas para las- trear o desenvolvimento, o engenheiro politécnico viveu talvez a sua fase de ouro. "A gente ia de ônibus para a faculdade carregando aquela enorme régua T e chamava atenção. Muito futuro engenheiro arru- mou namorada assim", lembra o professor Moacyr Martucci Júnior, presidente da Comissão de Pesqui- sa da Poli-USP. O advento da informática provocou um terremoto na engenharia, que explodiu em no- vas especialidades. Da engenharia elétrica, brotou a engenharia de computação. Das engenharias elétri- ca e mecânica surgiu a mecatrônica. Os computa- dores levaram a régua T a uma merecida aposenta-

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doria e estabeleceram novas bases para o ensino e a pesquisa da instituição, onde trabalham hoje 495 do- centes e estudam 4,3 mil alunos de graduação e 4 mil de pós-graduação.

A Poli-USP metamorfoseou-se para manter seu papel modernizador e continuou criando engenhos capazes de melhorar o bem-estar da sociedade. É possível citar con- tribuições marcantes de pesquisadores e profissionais formados da instituição em inúmeras áreas. Nos anos 1960, o planejamento na área de transportes no país, que transformou a engenharia de tráfego em ciência e foi aplicado na construção das linhas de metrô, também despontou graças ao trabalho de professores da Poli, como íon de Freitas e Antônio Galvão Novaes. Entre 1990 e 1994, a Escola Politécnica da USP foi dirigida pelo professor Francisco Romeu Landi, diretor-presi- dente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, que morreu em abril aos 71 anos.

Se o Brasil hoje dispõe de uma indústria de micro- eletrônica e expertise na área de telecomunicações, deve isso à capacidade da Escola Politécnica em fazer pesqui- sa e formar mão-de-obra nessas áreas nos últimos 30 anos. A Escola reivindica a criação do primeiro compu- tador brasileiro. Batizado de "Patinho Feio", foi obra de pesquisadores da área de engenharia elétrica, em 1972. Passados 30 anos, essa semente produziu uma árvore de frutos carregados. Embora o Brasil, como vários outros países, não tenha conseguido desenvolver uma indústria de computadores competitiva como planejado inicial- mente, os pesquisadores da área de informática da Poli-

A Caverna Digital simula ambientes interativos para pesquisas em diversas áreas da engenharia

USP destacaram-se na criação de softwares e na segu- rança de redes.

O Laboratório de Arquitetura e Redes de Computa- dores da Escola é referência mundial em códigos de crip- tografia. Paulo Barreto, pesquisador da Poli e criptolo- gista-chefe da empresa brasileira Scopus, participou da criação dos algoritmos adotados para assinatura digital da Comunidade Européia e do governo norte-america- no, depois de vencer concursos internacionais que defi- niram os padrões de segurança. O Laboratório também criou ambientes seguros para páginas de diversos bancos na Internet e desenvolveu um sistema de segurança na arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), que acabou com as fraudes prati- cadas nos computadores do Detran de São Paulo.

Tanque numérico - No campo das telecomunicações, professores da Poli-USP foram contratados no início dos anos 1970 pela Telebrás para ajudar a modernizar as centrais telefônicas brasileiras, que eram analógicas. A digitalização das centrais ampliou o acesso dos bra- sileiros ao telefone e integrou o território nacional. Esse grupo também desenvolveu, em 1976, o protótipo que propiciou as ligações de discagem direta internacional. Parte desses pesquisadores acabou desgarrando-se da Escola para fundar o Centro de Pesquisas e Desenvol- vimento da Telebrás (CPqD), um dos principais dína- mos da pesquisa brasileira em telecomunicações.

A indústria naval brasileira ganhou consistência a partir de 1956, depois de um estratégico convênio cele-

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Nos primórdios da Escola Politécnica, um dos laboratórios reunia modelos arquitetônicos de escadas e pórticos

brado entre a Marinha e a Poli, que deu origem ao De- partamento de Engenharia Naval e Oceânica. O depar- tamento continua ativo, mas encontrou novas vocações. Nos últimos quinze anos, fortaleceu os laços com a Pe- trobras numa linha de pesquisa que culminou com a criação, em 2001, de um tanque de provas numérico. Trata-se de um simulador, dotado de um cluster de 120 microcomputadores pessoais, capaz de projetar modelos tridimensionais de qualquer coisa: aviões, carros, navios. "Num tanque numérico, o processamento de informa- ções é muito mais rápido e é possível realizar simula- ções de sistemas bastante complexos", diz o professor Hélio Mitio Morishita, chefe do departamento. No caso da Petrobras, o principal interesse é o desenvolvimento de sistemas oceânicos, como plataformas de petróleo, complexos demais para serem testados num tanque de provas de verdade.

Marinha usou os serviços do tanque nu- mérico da Poli-USP antes de fazer as adaptações no porta-aviões São Paulo, que pertencia à França. Havia dúvidas se a enorme embarcação caberia no dique seco do arsenal da Marinha, no Rio, onde seria reformada. Com

base em imagens e medidas tiradas do porta-aviões e do dique, o tanque mostrou que era possível, sim, estacio- nar o porta-aviões lá dentro - tirando uma fina, é verda- de. Só depois da simulação é que a reforma começou. Ferramentas de realidade virtual são cada vez mais usa- das em escolas de engenharia. O Laboratório de Siste-

mas Integráveis de Politécnica abriga, desde 2000, a Ca- verna Digital, um complexo para realidade virtual, que cria um ambiente interativo por meio de projeções de imagens múltiplas. Até seis pessoas podem entrar na ca- verna ao mesmo tempo e interagir com o mundo simu- lado por computador. Além das aplicações nos ramos da engenharia, a caverna também pode ser usada na medi- cina, na astronomia, na produção de jogos interativos.

O elo entre as vocações do passado e as do presente torna-se mais palpável em alguns departamentos da Poli-USP, como o de Engenharia de Energia e Automa- ção Elétricas. Sob o comando do professor José Rober- to Cardoso, o Laboratório de Eletromagnetismo Aplica- do segue trabalhando com a pesquisa em tração elétrica de ferrovias e de metrôs. "Como participamos da im- plantação da primeira linha do metrô de São Paulo, o conhecimento ficou acumulado", diz Cardoso. Não há muito trabalho a fazer em relação a ferrovias, que cada vez mais perdem importância como meio de transpor- te. Mas como várias capitais brasileiras estão construin- do seus metrôs, o laboratório tem sido convocado a aju- dar, fazendo simulações das composições caminhando na linha em várias velocidades, além da quantidade de energia necessária para fazer todo o sistema funcionar.

O laboratório também se dedica à pesquisa sobre interferências eletromagnéticas. Ajudou, por exemplo, fabricantes de eletrodomésticos a controlar as emissões eletromagnéticas de seus produtos nos níveis exigidos internacionalmente. Também auxiliou a Marinha a fa- zer um estudo de compatibilidade eletromagnética do projeto de submarino de propulsão nuclear que está

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Ramos de Azevedo ajudou a moldar a arquitetura paulista

sendo desenvolvido no complexo de Aramar, no interior paulista. Trata-se de um estudo sofistica- díssimo, dada a profusão de fios e circuitos previs- tos para o gigantesco pro- tótipo. Mas a vida do la- boratório não se resume a dar suporte para quem precisa. A pedido da Pe- trobras, foi desenvolvido um motor tubular linear para extração de petróleo que vai substituir os equipamentos mecânicos conhecidos como cavalos-de-pau instalados em 9 mil poços terres- tres no país. O motor elétrico tem o dom de aumentar a vazão dos poços e sofre um desgaste menor, pois, ao contrário do cavalo-de-pau, não produz atrito com as paredes do poço.

A Escola envolve-se em pesquisas de caráter teórico com a mesma disposição com que busca soluções para problemas prosaicos. No Departamento de Engenharia de Transportes, testa-se o emprego de um pavimento composto em que placas de concreto de cimento traba- lham de forma aderida ao concreto asfáltico. A técnica, trazida nos Estados Unidos, cria uma superfície mais resistente e ajuda na manutenção de pavimentos com deficiências estruturais. O Departamento de Engenha- ria Metalúrgica e de Materiais, o de maior produção

Na Revolução de 32, os engenheiros fizeram blindados

acadêmica da Escola, de- senvolveu um método ca- paz de reciclar a poeira de minério de ferro que era descartada e poluía o ambiente. Essa poeira, obtida em grande quan- tidade no processo de de- gradação do minério, en- tupia os fornos e era considerada imprestável. Num trabalho sobre o

comportamento térmico de materiais, os pesquisado- res da Poli constataram que, ao misturar a poeira de minério de ferro com carvão, produziam-se pelotas ou pequenos tijolos que, após um processo de cura, fi- cavam duríssimos e podiam ser armazenados. O des- perdício e a poluição acabaram. Hoje as pelotas são usadas nos fornos como matéria-prima de aço. "A pes- quisa teve grande importância na busca de processos limpos e não poluentes na metalurgia", diz o professor José Deodoro Trani Capocchi, chefe do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais. São 400 tra- balhos científicos publicados em revistas indexadas a cada ano. Seus pesquisadores às vezes ajudam a resol- ver crimes. A pedido da Polícia Científica de São Pau- lo, fazem pareceres sobre a deformação de projéteis ou o desgaste de outros materiais, capazes de elucidar as circunstâncias de homicídios ou acidentes.

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O motor tubular elétrico, desenvolvido a pedido da Petrobras, vai substituir bombas mecânicas de 9 mil poços de petróleo

Dentro da Politécnica, também funciona o Centro In- ternacional de Referência em Reuso da Água (Cirra), vin- culado ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Sa- nitária. O grupo de pesquisadores da instituição trabalha em várias frentes, do desenvolvimento de sistemas hi- dráulicos que economizem água (como uma caixa de des- carga para vaso sanitário com apenas 3 litros de água) ao teste de estratégias de reaproveitamento de recursos hídri- cos, como o uso de água não tratada na agricultura, em sistemas de refrigeração de indústrias ou na irrigação de áreas verdes urbanas. Também ajuda a Agência Nacional de Águas a formular novas políticas contra o desperdício.

No rol das aplicações práticas, um pesquisador do Cirra desenhou um sistema de reaproveitamento de água que servirá ao terceiro terminal no Aeroporto de Cumbi- ca, em Guarulhos, a ser construí- do nos próximos anos. Hoje toda

a água usada nos dois terminais do aeroporto, que rece- be 14 milhões de passageiros por ano, é retirada de seu subsolo. A construção de um terceiro terminal vai re- querer uma nova solução, pois o manancial está à beira do esgotamento e não terá água suficiente. A proposta é submeter a água servida a um tratamento parcial, utili- zando-a de novo para lavar a pista e resfriar o sistema de ar condicionado do aeroporto, para citar dois exem- plos. "É possível estabelecer um uso mais parcimonioso da água a partir de múltiplas estratégias", diz o profes- sor Ivanildo Hespanhol, diretor do Cirra.

Como na maioria das carreiras, o campo de conhe- cimento da engenharia expandiu-se muito nas últimas décadas e a Escola Politécnica esforçou-se em abarcar todos os desdobramentos, criando novos departamen- tos e especializações. Mas as mudanças e oscilações do mercado de trabalho andam tão abruptas que um ramo da engenharia muito disputado num vestibular pode ter seu interesse reduzido poucos anos mais tar- de, quando o estudante estiver se formando. Isso já aconteceu várias vezes. A tradicional engenharia civil, por exemplo, perdeu força nos anos 1980, a década perdida em que o Brasil parou de fazer hidrelétricas e estradas, frustrando uma geração de jovens profissio- nais. Hoje a procura pela engenharia civil melhorou. Apesar do jejum de grandes obras, abriu-se espaço para os engenheiros, por exemplo, na expansão da construção civil e da infra-estrutura de saneamento. A engenharia de telecomunicações viveu o apogeu e a queda num curtíssimo espaço de tempo. Com as priva- tizações, em meados dos anos 1990, a concorrência no vestibular explodiu, mas houve uma severa retração em 2000 e 2001, que espantou o interesse dos candida- tos. "Nem a euforia nem a ressaca se justificavam", diz Paul Jean Etienne Jeszensky, professor do Departamen- to de Engenharia de Telecomunicações e Controle. "Hoje caminha-se para um equilíbrio no mercado de trabalho, um cenário que não é tão bom nem tão ruim como já se imaginou", afirma.

Tais oscilações são naturais e, exceto pela decepção que geram nos recém-formados, não trazem conse- qüências profundas. Acontece que o engenheiro politéc-

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nico é formado, antes de tudo, para se adaptar a novas situações, para estar pronto a solucionar problemas que sequer podem ser imaginados hoje. "A Escola fornece uma excelente base. A bagagem é do aluno", diz Jes- zensky. "Preparamos profissionais para a tomada de de- cisões, profissionais que estão sempre prontos a apren- der coisas novas", diz Moacyr Martucci, presidente da Comissão de Pesquisa. Assim como os engenheiros civis frustrados dos anos 1980 fizeram carreiras reluzentes dentro e fora da engenharia - o mercado financeiro, por exemplo, abasteceu-se fartamente desses profissionais -, a turma das telecomunicações será absorvida. Mas tam- bém existem cursos que não conhecem crise. O de engenharia de computação oferece duas turmas de 40 alunos a cada vestibular. Uma dessas turmas faz um curso nos moldes tradicionais. A outra tem uma grade curricular diferente, em que teoria e prática têm o mes- mo peso. Os módulos se alternam a cada quadrimestre - ora o estudante dedica-se a disciplinas teóricas, ora faz um estágio numa empresa, que a própria Escola se encarrega de arrumar para os alunos. "O engenheiro sai formado com uma base teórica forte e também com uma notável experiência profissional", diz o professor Wilson Vicente Ruggiero, do Departamento de Enge- nharia de Computação e Sistemas Digitais.

A Escola ensaia uma mudança conceituai na forma- ção de seus alunos. Existe uma demanda do mercado de trabalho por profissionais com uma bagagem mais hu- manística. O engenheiro de hoje precisa levar em conta variáveis que eram relegadas antigamente. Já vai longe o tempo em que se projetava uma hidrelétrica sem levar em

0 Centro de Referência em Reuso de Água busca soluções para combater o desperdício

conta o impacto ecológico que a obra causaria. Construída no início dos anos 1980, a usina de Balbina, que abastece Manaus, capital do Ama- zonas, é um exemplo de belíssima obra de en- genharia que perpetrou um crime ecológico, criando um gigantesco lago raso em que espé- cies de árvores apodrecem até hoje. "A forma- ção excessivamente técnica às vezes faz com que o engenheiro raciocine sem levar em con- ta que há gente no processo", diz o professor Hélio Morishita, cujo departamento, o de En- genharia Naval e Oceânica, alterou seu currí- culo e hoje exige que seus estudantes façam 24 disciplinas optativas em outras unidades da Universidade de São Paulo.

escolha dessas disciplinas cabe ao estudante. O melhor é que eles tenham contato com a sociologia, a comunicação, a filosofia. Alguns resistem e vão fazer as disciplinas na Faculdade de Economia

e Administração, que tem mais afinidades com a engenharia", diz Morishita. O Departamento de Engenharia Elétrica promoveu uma alteração seme- lhante no currículo. A humanização na formação dos alunos é um dos objetivos do Poli 2015, um programa para ajustar a Escola, até o ano de 2015, aos desafios desse início de século. Entre as metas declaradas do Po- li 2015, destacam-se "a competência no relacionamento humano e na comunicação, a postura ética e o compro- metimento cultural e social com o Brasil". Sem abrir mão, é claro, da excelência do ensino.

O futuro da Poli-USP também é virtual. A educa- ção a distância já é uma realidade. As aulas de 105 dis- ciplinas são gravadas em vídeo e disponibilizadas na Internet, assim como o material didático utilizado pelo professor. Quem faltou à aula pode assisti-la em casa, na tela do computador. Caso o estudante virtual não entenda a explanação, pode interagir entrando num chat e fazendo perguntas. Se for uma dúvida que outro aluno já teve antes (80% delas são recorrentes), a res- posta está armazenada e vem na hora. Senão, o professor responde mais tarde, por e-mail. Os cursos e seu mate- rial didático agora começam a ser franqueados a qual- quer pessoa que tenha computador em casa. "A idéia é disseminar o conhecimento depositado na Poli para outras faculdades e estudantes de engenharia, é devol- ver à sociedade, da forma mais ampla possível, o inves- timento que ela fez nessa escola", diz o professor Wilson Vicente Ruggiero. Se der certo, a escola que nasceu vin- culada à elite - os fundadores Ramos de Azevedo e Paula Souza tiveram de ir à Europa para se formar - terá feito um belo acerto de contas com o passado. •

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

Sociologia

Balanço religioso

O artigo Desafios estra- tégicos da Igreja Católica, de Dermi Azevedo, jorna- lista e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), pro- curou traçar uma perspec- tiva a longo prazo da Igre- ja Católica, à luz do Concilio do Vaticano II (1962-1965), evento histó- rico que procurou ade- quar a instituição aos de- safios da modernidade. A investigação indica que o cristianismo, nas suas vertentes católica e evangélica, possui atualmente cerca de 2 bilhões de seguidores no mundo. Desse universo, 553 milhões estão na Europa, 802 milhões nas Américas, 351 milhões na África, 290 milhões na Ásia e 24 milhões na Oceania. O estudo faz um levantamento dos principais desafios estratégicos enfrentados pela Igreja Católica Apostólica Romana neste início de século, citando fatos como o avanço dos fenômenos da deseclesialização, o fim do eurocentris- mo eclesiástico, a persistência do déficit democrático interno e a concorrência simultânea dos novos agrupa- mentos religiosos. O autor defende que, nos últimos 40 anos, houve um aprofundamento do descompasso entre a missão externa da Igreja, "que tem reconhecido os valores modernos", e o déficit democrático de suas estruturas e práticas internas. "A Igreja continua a en- frentar temas polêmicos, tais como o controle da nata- lidade, o celibato obrigatório para o clero, o reaprovei- tamento dos padres casados nas atividades eclesiais, o acesso das mulheres ao sacerdócio, a ordenação de ho- mens casados e as questões de gênero e da homosse- xualidade", aponta Azevedo. Além disso, há a questão do casamento de católicos divorciados e sua participa- ção nos sacramentos e na comunidade católica, as mu- danças na liturgia e as inovações científicas, incidindo especialmente no campo da bioética. Para Azevedo, o processo de modernização da Igreja Católica, quando chegar o momento da sucessão de João Paulo II, será inevitável.

LUA NOVA - N° 60 - SãO PAULO 2003

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■ Inovação

Parcerias de sucesso

Um caso de interação universidade-empresa consi- derado positivo. Este é o mote do artigo A relação uni- versidade-empresa: comentários sobre um caso atípico, de Renato Dagnino e Erasmo Gomes, do Departa- mento de Política Científica e Tecnológica da Univer- sidade Estadual de Campinas (Unicamp). O texto aborda a realização de um projeto de pesquisa e desen- volvimento (P&D) envolvendo docentes e pesquisado- res da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e de uma empresa multinacional do setor de autope- ças. "O caso de interação estudado foi considerado bem-sucedido no que diz respeito às atividades de pes- quisa universitária e à formação de recursos humanos. Na gênese dessa interação está o relacionamento pes- soal, visto que a empresa contratava muitos engenhei- ros formados pela universidade", aponta o estudo. A pesquisa possibilitou uma melhor compreensão sobre o comportamento dos professores da universidade, dos técnicos da empresa privada e das diferentes percepções que eles têm sobre os processos de interação. De acordo com o artigo, os impactos positivos mencionados pelos professores são, por exemplo, a possibilidade de obter novos conhecimentos e de repassá-los aos alunos, além da possibilidade de renovar as linhas de pesquisa existentes. Os técnicos da empresa julgaram o desen- volvimento de know-how próprio como uma das grandes vantagens da parceria, o que levou ambos os lados a recomendar um aumento no número de pro- jetos realizados em cooperação.

GESTãO E PRODUçãO

DEZEMBRO 2003 - VOL. 10 - N° 3 - SãO CARLOS -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 530X2003000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Nutrição

Mascarando o gosto salgado

A suplementação de alimentos com zinco pode me- lhorar a aceitação das crianças pelas refeições com sal. O artigo Suplementação com zinco pode recuperar ape- tite para refeições de sal, de autoria de seis pesquisado- res da Faculdade de Medicina da Universidade de Bra- sília, procurou avaliar o efeito do metal em crianças de 8 meses a 5 anos de idade com falta de apetite para re-

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feições que continham sal. "A falta de apetite é um dos motivos mais freqüentes de consulta em clínica pediá- trica. Sabe-se que sua prevalência pode alcançar 15% de todas as consultas na faixa etária de 6 meses a 4 anos de idade em um ambulatório de pediatria", justificam os pesquisadores. O estudo, desenvolvido no ambula- tório pediátrico do Hospital Universitário de Brasília, envolveu um total de 40 crianças de ambos os sexos. Todas foram selecionadas da população de crianças atendidas no ambulatório pediátrico a partir da quei- xa de falta de apetite para comida com sal. Dois gru- pos de 20 crianças foram acompanhados durante seis meses. As crianças do primeiro grupo receberam 1 mg/kg/dia de zinco sob forma de quelato, durante três meses, enquanto as do segundo grupo receberam uma solução de placebo durante o mesmo período. Em cada consulta era feita uma avaliação da história ali- mentar e se obtinha da mãe a informação referente ao apetite da criança. Os resultados mostram que a pro- porção de crianças suplementadas com zinco que res- pondeu com recuperação do apetite para refeições com sal foi maior do que a daquelas que receberam placebo.

JORNAL DE PEDIATRIA (RIO DE JANEIRO)

- PORTO ALEGRE - IAN/FEV 2004 VOL. 80 - N° 1

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021- 75572004000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Idosos

Vantagens da ginástica na água

O sedentarismo, que tende a acompanhar o envelhecimento, é um importante fator de risco para as doenças crònico-degenerativas, especialmente as afec- ções cardiovasculares, principal causa de morte nos idosos. "A prática de exercício físico contribui de maneira significativa para a manutenção da aptidão física dos mais velhos, seja na sua vertente da saúde como nas capacidades fun- cionais", segundo o artigo Aptidão física relacionada à saúde de idosos: influência da hidroginástica, de autoria de Roseane Victor Alves, Manoel da Cunha Costa e João Guilherme Bezerra Alves, da Escola Superior de Educação Física da Universidade de Pernambuco (UPE), no Recife, e Jorge Mota, da Faculdade de Ciên- cias do Desporto e Educação Física, de Portugal. Entre as várias possibilidades de se exercer uma atividade fí- sica existe uma em especial que foi considerada positi- va pelos pesquisadores. "A hidroginástica apresenta al- gumas vantagens para esse grupo populacional, com o aproveitamento das propriedades físicas da água pos- sibilitando um melhor rendimento aos idosos, além de oferecer menores riscos", escreveram os autores. Pouco estudada, a prática da ginástica na água foi analisada

em um grupo de 37 mulheres, que recebeu duas aulas semanais de hidroginástica durante três meses. Um outro grupo de mulheres do mesmo tamanho foi usa- do como parâmetro na pesquisa. A aptidão física foi avaliada por meio de uma bateria de testes com avali- ações de força e resistência de membros inferiores e superiores, mobilidade física, resistência aeróbica, ve- locidade, agilidade e equilíbrio. Os testes foram aplica- dos antes do início das aulas e no fim do programa, após três meses. O grupo da hidroginástica apresentou um melhor desempenho em todos os pós-testes, quan- do comparados com os resultados do próprio grupo no pré-teste. "Observamos em nosso estudo uma me- lhora significativa em todos os testes de aptidão física aplicados, após o treinamento com aulas de hidrogi- nástica", disseram os pesquisadores no artigo. Eles con- cluíram que a prática de hidroginástica para mulheres idosas contribuiu significativamente para a melhoria da aptidão física relacionada à saúde.

REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA DO ESPORTE - VOL. 10 - N° 1 - NITERóI - IAN/FEV 2004

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■ Educação

Manual de instrução para as mães

Descrever o desenvolvimento de um material didá- tico-instrucional, dirigido ao treinamento materno para preparar a alta hospitalar do bebê prematuro. Este é o objetivo do artigo Cartilha educativa para ori- entação materna sobre os cuidados com o bebê prematu- ro, desenvolvido por pesquisadoras da Escola de Enfer- magem da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. A investigação reflete sobre a criação de um ma- terial educativo para o treinamento de mães, elabora- do com a participação das enfermeiras, auxiliares de enfermagem e das próprias mães. Utilizando como modelo pedagógico a educação conscientizadora, fun- damentada na teoria de que todos os seres vivos apren- dem por meio da interação com o ambiente, as auto- ras escolheram a metodologia participativa. Mães e enfermeiras do hospital universitário de Ribeirão Pre- to, interior de São Paulo, atuaram efetivamente no processo de desenvolvimento da cartilha educativa so- bre os cuidados com o bebê prematuro. "Mais do que oferecer uma coletânea de perguntas e respostas, apre- sentamos referenciais que auxiliam o desenvolvimento das potencialidades das mães e instigam a equipe de enfermagem a trabalhar de forma dinâmica com um aliado, o material educativo", dizem as pesquisadoras no estudo.

REVISTA LATINO-AMERICANA DE ENFERMAGEM - - N° 1 - RIBEIRãO PRETO - IAN/FEV 2004

VOL. 12

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PESQUISA FAPESP 100 • JUNHO DE 2004 ■ 115

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Mãos soberanas

HELOíSA SEIXAS

Começou de manhã. Ou talvez começasse antes, com o sonho - mas ela preferia acreditar que não, os sonhos não importam, os sonhos nunca importam.

Começou de manhã. Ela estava lendo jornal, era uma quarta-feira, o dia es- tava nublado e tudo parecia petrificado em seu lugar, o mundo envolto por uma ca- mada de tédio paralisante, da cor das cinzas, a única diferença tendo sido - o sonho.

Recomeçando. Foi de manhã. Ela estava lendo jornal, era uma quarta-feira, o dia nublado. Acaba-

ra de se sentar para tomar café depois de arrumar a mesa da mesma forma - exata- mente da mesma forma - que fazia sempre. Embora morasse sozinha havia muitos anos, tinha o hábito de pôr a mesa e se sentar para as refeições com todo o método, dispondo sobre a toalha quadriculada os ingredientes de seu café da manhã: a bande- ja com frutas e o pote de cereal à direita; à esquerda, a caixa de biscoitos, o queijo e o mel; bem no centro, a garrafa térmica com o café e o açucareiro. Tudo sempre no mes- mo lugar e na mesma ordem.

E então, quando estava assim sentada em seu mundo ordenado, cercada por uma manhã cinzenta e banal, a história começou.

Não foi nada, a princípio, apenas uma matéria, uma bobagem, coisa curiosa da- quelas que encontramos nas páginas de ciência dos jornais. Ela achou graça, até. Fala- va de uma síndrome de nome estranho, que acabara de ser assunto de debate duran- te um congresso médico na Inglaterra: Síndrome do Dr. Strangelove. O nome era uma referência ao personagem de Peter Sellers no filme Dr. fantástico, aquele cientista cujo nazismo disfarçado teimava em aparecer num movimento involuntário da mão, que se erguia fazendo a saudação a Hitler. Segundo os médicos, os portadores da doença exibiam sintomas parecidos, suas mãos apresentando movimentos súbitos, involuntá- rios. Os cientistas achavam que aquilo era provocado por uma espécie de curto-circuito num dos lobos frontais do cérebro, mas admitiam que essas explicações físicas ainda eram pouco consistentes, ainda mais porque havia uma história de doenças psiquiá- tricas em quase todos os pacientes.

Lendo aquilo, a mulher baixou sobre a mesa a página do jornal (o espaço à direi- ta, entre a bandeja de frutas e o pote de cereal, que sempre reservava para apoiar o jor- nal) e observou as próprias mãos, espalmadas. Enquanto tinha os olhos fixos nas mãos imóveis, por um momento sentiu-as como estranhas, duas folhas abertas, duas plan- tas aquáticas secando ao sol.

Foi assim que começou. Sentiu uma inquietação, mexeu-se na cadeira. Fechou o jornal e terminou de to-

mar café olhando para a manhã cinzenta recortada na janela, aquele mundo de pedra que a reconfortava. Pouco depois, ergueu-se e foi tomar banho. Hora de trabalhar.

No banho, nada aconteceu, mas não pôde deixar de registrar um arrepio ao con- tato da esponja que suas mãos conduziam, como se a espuma ameaçasse amenizar- lhe a pele, sobrepujá-la. A sensação não chegou a se cristalizar, a ganhar superfície. Ficou só lá no fundo, como a recordação imprecisa de um sonho. Vestiu-se depres- sa. Saiu.

Durante o dia, sentada em sua mesa de trabalho, lutou com um relatório que vi- nha tentando terminar havia dias. Precisava enviá-lo para a matriz da empresa o quan- to antes, já devia tê-lo feito, mas por alguma razão não conseguia. Estava relendo-o mais uma vez, depois de tirar uma cópia na impressora, quando sua mão direita pe- gou a primeira das três folhas e amassou-a, jogando-a fora. Aconteceu muito depres- sa. Ela nada pôde fazer. Seus olhos saltaram da folha amassada no fundo da lixeira para

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a própria mão, suspensa no ar, semi-aberta. Sentia ainda na palma a comichão do con- tato com o papel sendo enrugado. E teve a nítida sensação de que a mão agira por con- ta própria.

A noite, ao chegar em casa, outro sobressalto. Encontrou, sobre a mesinha de cen- tro, a poucos metros da mesa onde tomara seu café da manhã, o jornal dobrado, ain- da aberto na página de ciência onde constava o artigo sobre a Síndrome do Dr. Stran- gelove. Aproximou-se devagar e se sentou no sofá. Como podia ser? Metódica como era, nunca seria capaz de sair sem deixar o jornal dentro do porta-revistas. Jamais o largaria ali, fora do lugar, ainda por cima aberto numa página interna. Estranho. Tal- vez suas mãos, pensou - e cortou o pensamento como se a faca, caminhando depres- sa em direção à cozinha -, a mente ainda teimando em pensar o que ela não queria, não devia. Estranho, Strangelove, amor estranho.

O jantar transcorreu sem sustos. Depois de comer, a mulher ainda se sentou no sofá para ver o noticiário, mas logo pensou em deitar-se, pois queria ler um pouco e só gostava de ler na cama. E, recostando-se nos travesseiros, de olhos fechados, permi- tiu-se - pela primeira vez naquele dia, naquela quarta-feira de cinzas, de pedra - pen- sar no sonho que tivera. Já mais calma e confiante, deixou fluir a lembrança.

Mãos. Mãos muito brancas, quase femininas, de unhas abauladas e ínfimos tufos de pêlos no dorso dos dedos. Mãos de muitos anéis, ricos anéis de prata e ébano, mãos repousando sobre uma superfície de pedra negra, muito polida. Mãos que pareciam respirar de tão vivas. A mulher sabia a quem pertenciam, eram de um príncipe. Podia adivinhar-lhe o porte, o peito largo, os longos cabelos sob a malha de metal, na coroa a cruz que era a razão de sua luta. Mas estava condenada a ver dele apenas as mãos. E estas - de repente - se moviam. E a mulher já nada via. Agora o sonho era tátil, feito apenas de sensações, do calor daquelas mãos que lhe acariciavam a pele devagar, que buscavam um ponto secreto, intocado. Um ponto que ela julgava morto, frio, mas que agora se incendiava à sua revelia. Parece tão real, pensou a mulher. Tão real. Estranho. Estranho amor.

E abriu os olhos. Abriu-os apenas para ver que eram suas as mãos que ali estavam, tão reais quanto

a lembrança do sonho, mãos soberanas, rainhas, que a acariciavam e enlouqueciam, em desafio. E foi assim que entendeu - com horror, com humilhação, com desvario - o quanto precisava, ainda, ser amada.

HELOíSA SEIXAS nasceu no Rio de Janeiro, onde mora. Formada em Jornalismo, é autora do li- vro de contos Pente de Vênus (1995) e dos romances A porta (1996), Diário de Perséfone (1998), Através do vidro (2001) e Pérolas absolutas (2003), todos pela editora Record. Heloí- sa é ainda autora dos Contos mínimos, publicados pela revista Domingo, do Jornal do Bra- sil, que por duas vezes já foram reunidos em livro (Contos mínimos, Record, 2001) e Sete vi- das (Cosac&Naify, 2002).

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I TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO MUNDO

Acelerador de partículas em rede A segunda fase do projeto Computing Grid, sistema de computação em rede desen- volvido para o maior acele- rador de partículas do mun- do, o Large Hadron Collider (LHC), instalado em Gene- bra, na Suíça, terá a partici- pação da empresa HP. Serão interligados ao LHC os com- putadores da HP Labs de Paio Alto (Estados Unidos) e Bristol (Reino Unido), do Brasil e de Porto Rico. A pri- meira etapa do desenvolvi- mento do projeto recrutou poucos parceiros ao redor do mundo. Mas na segunda fase o número de participan- es deverá aumentar rapida-

Processamento de dados da ordem de 14 petabytes

mente, até que a estrutura me de informações que as atinja as dimensões neces- sárias para o processamento de 12 a 14 petabytes de da- dos por ano. Esse é o volu-

experiências no LHC deve- rão gerar a partir de 2007, quando o acelerador, que tem 27 quilômetros de cir-

cunferência, estará operan- do a plena capacidade. Pa- ra comportar e analisar essa quantidade de dados, seriam necessários 20 milhões de CDs e em torno de 70 mil dos mais rápidos computa- dores de última geração. O acelerador de partículas foi construído pelo Centro Eu- ropeu de Pesquisas Nu- cleares (CERN, na sigla em francês), maior centro mun- dial de pesquisa de física de partículas, financiado por 20 países. Trabalham no centro cerca de 6.500 pes- quisadores de mais de 80 nacionalidades, inclusive do Brasil. •

■ Energia limpa nas casas japonesas

A energia elétrica do Japão é uma das mais caras do mun- do. Por isso, iniciativas como a da empresa Ebara Ballard - fusão da japonesa Ebara Cor- poration com a canadense Ballard Power Systems -, res- ponsável pelo desenvolvimen- to de uma célula a combustível de uso doméstico de 1 quilo- watt (kW) que substitui com vantagem os aquecedores de- pendentes de derivados do pe- tróleo, são sempre uma boa alternativa para o consumidor e para a economia do país. A célula do tipo PEM (Proton Membrane Exchange), ou tro- ca de membrana de próton, usa a infra-estrutura já exis- tente nas casas japonesas ser- vidas por gás natural. Do gás, após ser processado num re- formador, é extraído o hidro-

gênio que faz a célula gerar energia elétrica. Esse sistema tem como subproduto o va- por produzido pelo aqueci- mento. Em fase final de testes, o produto, que gera a chama- da energia limpa, deve estar no mercado até o fim deste ano. A eficácia da célula a combustí- vel é de 35%, cerca de três ve- zes mais eficiente em termos energéticos que as termelétri- cas, usuárias do carvão ou do gás natural para obter energia elétrica (Business Wire). •

■ 0 caçador de formas perdidas

Como achar um modelo tri- dimensional no computador em meio a milhares de designs já criados e arquivados, pron- tos para serem reutilizados, mas que ninguém sabe onde estão? A tarefa normalmente exige horas de exaustiva procu-

ra. Dispostos a solucionar esse problema, professores do Cen- tro de Educação e Pesquisa Purdue para Sistemas de In- formação e Engenharia, nos Estados Unidos, desenvolve- ram um programa que per- mite localizar facilmente uma forma tridimensional espe- cífica, poupando à indústria milhões de dólares ao ter de recriar o que já foi criado. O sistema desenvolvido utiliza al-

goritmos (processos de cálcu- lo) complexos que convertem grupos de cubos denomi- nados voxels em um gráfico. "Como nosso esqueleto, ele representa os ossos de deter- minada parte e formato, indi- ca quantos buracos contém e onde estão", explica Karthik Ramani, professor de Enge- nharia Mecânica e diretor do Centro Purdue. O sistema cria versões de formas em três ca-

Programa encontra modelos tridimensionais específicos

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Page 105: Uma década de avanços desenha o futuro

Aparelho enfraquece vírus

tegorias: sólido, oco ou uma combinação de ambos. Ele exemplifica: uma xícara é va- zia, mas sua alça pode ser só- lida. Dessa forma, esse objeto reúne as duas categorias que devem ser representadas para que se torne encontrável. De acordo com Ramani, a memó- ria corporativa costuma ser curta, gerentes são trocados, funcionários saem e arquivos importantes são esquecidos. Normalmente, argumenta, en- genheiros de design perdem seis semanas por ano procu- rando informações sobre par- tes de objetos. Com o novo programa, esse tempo deve ser reduzido em 80%. •

■ Luz infravermelha contra o herpes

O herpes não exige mais tra- tamentos longos. A Verulite, companhia de pesquisa mé- dica do Reino Unido, desen- volveu um pequeno aparelho capaz de emitir luz numa fre- qüência que enfraquece o ví- rus causador da doença e im- pede novos ataques {London Press Service). O tratamento dispensa o uso de pomadas e não tem efeitos colaterais. O aparelho utiliza diodos de emissão de luz infravermelha que tratam a área onde existe a lesão. O equipamento, que

não usa baterias e tem vida útil de até três anos, foi desenvol- vido pelo médico e engenhei- ro eletrônico Gordon Dougal e pelo oftalmologista Jim Has- lam, diretores da empresa. Os especialistas contaram ainda com a colaboração de pesqui- sadores da Universidade de Sunderland, na Inglaterra. Ao longo das pesquisas, que le- varam 12 anos, 250 pacientes com herpes foram tratados com as emissões de luz de baixa energia por um período de três anos. Segundo Dou- gal, o novo aparelho ajuda o organismo a criar resistência contra o vírus e na maioria dos casos alivia a dor em ape- nas 90 segundos. A Verulite foi criada originalmente para explorar a possibilidade de existência dentro do espectro de luz infravermelha de uma ampla banda responsável por efeitos terapêuticos. Hoje a empresa exporta para 12 paí- ses europeus. Até agora 10 mil aparelhos de tratamento de herpes foram produzidos, e entre outras aplicações está a cura de úlceras na boca. •

■ Silicone é base de fármaco para retina

Um novo medicamento para casos graves de deslocamen- to de retina, desenvolvido na Universidade Paul Sabatier, em Toulouse, na França, já conquistou a Europa e os Es- tados Unidos (boletim Fran- ça Flash n° 38). O Oxane-HD, constituído de óleo silicone e fluorocarboneto, é injetado no globo ocular após a retirada do humor vítreo, a substância transparente que o preenche. Por ser mais denso, pressiona a retina contra a parede do ór- gão, facilitando a colagem com laser. A vantagem do novo me- dicamento é que ele pode per- manecer no olho por alguns meses após a cirurgia. •

BRASIL

Criança mais segura com novo assento

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Um novo assento para carros, destinado a transportar com segurança crianças acima de 3 anos, está previsto para chegar ao mercado em três meses. Trata-se do Kael — uma placa de retenção feita de náilon que é afixada no banco trasei- ro do automóvel com o pró- prio cinto de segurança. De- senvolvido na Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp) por uma equipe forma- da por engenheiros, pediatra, ortopedista e psicólogo, o equipamento representa um avanço do ponto de vista pe- diátrico, segundo o professor Antônio Celso Arruda, da Fa- culdade de Engenharia Mecâ- nica, coordenador do projeto. Além disso, preencherá uma

Equipamento de segurança para crianças foi aprovado em testes de impacto

lacuna do mercado. Seu pre- ço, em torno de R$ 100,00, se- rá bastante acessível em relação às cadeirinhas usadas para transporte de bebês. A fabri- cação do Kael está sendo nego- ciada com uma empresa incu- bada na Unicamp. O protótipo já foi aprovado em dois testes: em colisão de automóvel com um caminhão a 50 quilôme- tros por hora e contra barreira rígida em condições de impac- to superiores às exigidas pela norma brasileira de trânsito. O presidente da Associação Brasileira de Medicina de Trá- fego (Abramet), Fábio Racy, afir- ma que a entidade ainda não avaliou o Kael, mas considera o equipamento bem-vindo. "A opção atual para crianças maiores é bastante inadequa- da", diz ele, referindo-se a uma espécie de banco que aumen- ta a altura para permitir o uso correto do cinto de segurança, fora da área do pescoço, e cujo principal inconveniente é o ris- co de deslocamento da crian- ça em caso de impacto. •

PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 119

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LINHA DE PRODUçãO MUNDO

Avaliação do telescópio Masco

Telescópio é transportado para o lançamento Balão carregou o Masco em viagem pela estratosfera

Dentro de dois meses será possível analisar todos os dados captados pelo telescó- pio brasileiro Masco (sigla pa- ra máscara codificada) du- rante as quase dez horas que permaneceu viajando pela estratosfera - a 40 quilôme- tros de altitude - no dia Ia

de abril deste ano. "Estamos agora na fase de analisar to- dos os sistemas do instru- mento durante o vôo", afirma o coordenador do projeto e

pesquisador da Divisão de Astrofísica do Instituto Na- cional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Thyrso Villela Neto. Satisfeito com a performan- ce do telescópio, Villela ga- rante que "daria nota quase dez para ele". O "quase" ficou por conta de uma falha ainda não identificada na trans- missão via rádio das infor- mações captadas pelo Mas- co. "A partir de quatro horas de vôo, deixamos de receber

esses dados. Estamos anali- sando alguns circuitos ele- trônicos para ver se houve falha", explicou. O Masco, avaliado em R$ 3 milhões e financiado pelo Inpe, Conse- lho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnoló- gico (CNPq) e FAPESP {veja Pesquisa FAPESP n° 79, de setembro 2002), foi criado para registrar a radiação de raios X e gama do Univer- so. Com 7 metros de com-

primento e 2 toneladas, o te- lescópio cumpriu a meta em meio a condições adversas: preso a um balão que viajava a cerca de 100 quilômetros por hora e oscilando como um pêndulo. Villela diz que o desafio foi vencido graças ao Sistema de Apontamento e Referência de Atitude (Sara), desenvolvido pelo Inpe, que mantinha o telescópio dire- cionado para as imagens a serem registradas. •

■ Sisal para reforçar estrutura de madeira

O patrimônio histórico na- cional constitui-se no maior mercado de um novo com- pósito, formado por fibras de sisal impregnadas com resina epóxi. O material, que terá como principal aplicação o reforço de estruturas antigas de madeira, está na fase final de desenvolvimento nos la-

boratórios da Escola de Enge- nharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP). Em comparação com a fibra de vidro ou carbono, o compósito propicia vanta- gens econômicas, sociais e ambientais, segundo o enge- nheiro civil Ricardo Fernan- des Carvalho, autor da tese de mestrado sobre o novo material, publicada na Revis- ta Baiana de Tecnologia. Gra-

duado pela Universidade Fe- deral da Bahia (UFBA), ele teve a idéia de desenvolver o compósito porque a Bahia é responsável por 90% da pro- dução brasileira de sisal, cerca de 110 mil toneladas anuais, e concentra boa parte dos pré- dios históricos do país. Além disso, o sisal custa nove vezes menos que a fibra de vidro e 1.399 vezes menos que a de carbono. •

■ Sensor detecta se frutas estão maduras

Um "nariz eletrônico" bara- to, descartável e de aplicação rápida, feito para detectar o ritmo de amadurecimento de frutas pelos gases que emi- tem, está em testes de campo sob supervisão dos pesquisa- dores da Embrapa Instru- mentação Agropecuária, de São Carlos (SP). O sensor po-

120 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Page 107: Uma década de avanços desenha o futuro

dera ajudar os produtores de frutas a prever a colheita. "É um método rápido e que não estraga a fruta", afirmou o pes- quisador Paulo Sérgio de Paula Herrmann Júnior. Os primeiros resultados podem surgir em 18 meses. Os estu- dos preliminares do sensor, que utiliza a técnica Une pat- terning (formação de trilha), foram feitos na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, sob coordenação do Nobel de Química Alan Mac- Diarmid. "Vamos agora utili- zar a técnica de formação de trilhas de grafite para desen- volver eletrodos sobre plás- tico e papel e, em cima dos eletrodos, depositar políme- ros condutores que respon- dem a vapor de água e com- postos orgânicos voláteis emitidos pela fruta", explicou Herrmann. •

■ Diferencial para exportação

A Ci&T, empresa que desen- volve softwares corporativos formada por ex-alunos do cur- so de engenharia da computa- ção, conquistou o Capability Maturity Model (CMM), ní- vel 3. Foi a primeira empresa nacional a conseguir a certifi- cação, concedida pela Soft- ware Engeneering Institute (SEI), da Universidade Car- negie Mellon, nos Estados Uni- dos. A Ci&T pleiteou e obteve o CMM2 e o CMM3 simulta- neamente e em apenas 15 me- ses - em média, as compa- nhias levam 45 meses para conseguir o nível 3 da certifi- cação, considerada hoje o principal diferencial compe- titivo entre exportadores de programas de computador. A companhia, que investiu R$ 600 mil para adequar-se aos padrões da norma, espe- ra retorno do investimento em dois anos. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento

de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

■ Duas moléculas para a produção do Eliprodil

Dois processos de obten- ção de dois compostos precursores do princípio ativo Eliprodil, usado em medicamentos para redu- ção das isquemias (derra- mes) cerebrais e em tra- tamentos da retina e do nervo ótico, foram desen- volvidos no Instituto de Química da Universida- de Estadual de Campinas (Unicamp). Os processos desenvolvidos permitem produzir separadamente os dois enantiômeros (com- postos) de um álcool a par- tir da redução de uma ce- tona, empregando cepas de uma espécie de levedura, a Rhodotorula glutinis, e de um fungo, Geotricum candi- dadum, resultando produtos com elevados rendimentos.

Título: Processos de

Obtenção de 2-Cloro-l-

(4-Clorofenil)-l -Etanona,

Através de Reação

de 4-Cloroacetofenona

com o Ácido Meta-

Cloroperbenzóico

(MCPBA), de (R) - (-) -

2-Halo-l-(4-Clorofenil)-l-

etanóis por Biorredução

com Rhodotorula Glutinis

CCT 2182 ou qualquer

mutante dela derivado

e (S)-(+)-2-halo-l-

(4-clorofenil)-l -etanóis

por Biorredução com

Geotrichum Candidum

Sem interferências

CCT1205 ou de Qualquer

Mutante dela Derivado,

precursores quirais para a

obtenção dos enatiômeros

do Fármaco Eliprodil

e de seus Sais Derivados

Inventores: Paulo José

Samenho Moran, Lucfdio

Cristóvão Fardelone e José

Augusto Rosário Rodrigues

Titularidade: Unicamp/

FAPESP

■ Camas e plataformas não-magnéticas

Sistema pneumático não- metálico e não-magnético para movimentar vertical- mente, com precisão de décimo de milímetro, ca- mas e plataformas de uso médico que não podem sofrer interferências mag- néticas. Um isolamento necessário, por exemplo,

em equipamentos de res- sonância magnética. Uma das vantagens do novo sistema é o baixo custo. Possui pistões formados por tubos de polipropile- no e câmaras-de-ar de borracha. Quando cheias, essas câmaras levantam, de modo suave e lento, uma cama hospitalar, bastando o prédio pos- suir uma central de ar- comprimido. Esse siste- ma foi desenvolvido por pesquisadores do Depar- tamento de Física da Fa- culdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ri- beirão Preto da Universi-

dade de São Paulo (USP) para o desenvolvimento e construção de um apare- lho, chamado de biossus- ceptômetro, capaz de me- dir a quantidade de ferro no organismo sem a neces- sidade de biópsia. A análise é feita por meio da intensi- dade do campo magnético emitida por esse elemento químico que se concentra principalmente no fígado, um problema enfrentado sobretudo por pessoas que recebem constantes trans- fusões de sangue.

Título: Sistema

Pneumático em Grandes

Dimensões para

Levantamento

de Plataforma

Inventores: Antônio

Adflton Oliveira Carneiro

e Oswaldo Baffa Filho

Titularidade: USP/

FAPESP

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 121

Page 108: Uma década de avanços desenha o futuro

TECNOLOGIA

MICROELETRÔNICA

1 País experimenta novos caminhos para diminuir a dependência externa na área de semicondutores

resentes em todo tipo de aparelho eletrônico, do televisor ao forno de microondas, do celu- lar ao sistema de injeção de combustíveis dos automóveis, além, é claro, nos computadores, os semicondutores possuem uma caracterís-

tica que está sempre implícita na sua descrição: evolu- ção. Não que outros produtos do mundo da eletrônica ou da biotecnologia, por exemplo, estejam fora do está- gio evolutivo, mas com os semicondutores a evolução acontece como o passar dos minutos. As exigências da miniaturização, da velocidade de processamento de in- formações, do avanço dos softwares e da capacidade de memória fazem dessas pequenas pastilhas de silício um dos suportes da civilização atual. Tamanha importância é medida também pelo volume de pesquisas nessa área. Semicondutores são alvos constantes de pesquisadores de universidades e de toda a indústria eletroeletrônica e de informática do mundo que sempre está atenta às exi- gências do mercado do futuro próximo e distante.

No Brasil, embora não tenhamos uma indústria de semicondutores de grande porte com produtos de pon- ta, o que levou o país a gastar US$ 2 bilhões em 2003, se- gundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elé- trica e Eletrônica (Abinee), a pesquisa, muitas vezes, surpreende. Aqui, ela ocorre fundamentalmente nas universidades e já colhe bons frutos. Entre os resultados práticos mais recentes encontram-se memórias para com- putador 250 vezes mais potentes que estão em análise por duas multinacionais, um microssensor de pressão sangüínea para cirurgias, além de várias alternativas para os compostos de silício (Si), principal material usa- do na fabricação de componentes semicondutores (ma- teriais com nível de condutividade elétrica intermediária entre os condutores, como o cobre e os metais, e os iso- lantes, como a borracha e a cerâmica, que aproveitam melhor os elétrons no processamento de informações).

Page 109: Uma década de avanços desenha o futuro

âmina de silício em forno do Instituto de Física da USP

Dentro da pesquisa acadêmica nacional, além de São Paulo, frentes importantes de estudo de semicondutores também se formaram, na década de 1990, no Rio Gran- de do Sul, em Santa Catarina e em Pernambuco. A Uni- versidade de São Paulo (USP), por exemplo, concentra a maioria dos estudos dessa área na Escola Politécnica (Poli) e no Instituto de Física (IF). Na Poli, as pesquisas da Divisão de Microssistemas Integrados (DMI), coor- denada pelo professor Nilton Itiro Morimoto, já deram vários resultados. "Desenvolvemos um sensor de pressão sangüínea descartável para monitorar pacientes em ci- rurgias que resultou em uma microempresa", conta Mo- rimoto. O sistema, que utiliza a tecnologia MEMs (Mi- cro-Electro-Mechanical Systems na sigla em inglês), dispositivos semicondutores conhecidos como micro- máquinas, é montado num substrato cerâmico e ligado ao paciente e aos aparelhos eletrônicos de monitora- mento. A empresa é a Torr Microssistemas, localizada em São Paulo, que recebe financiamento do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP e deve, em três meses, começar a distribuir o produto num mercado que só possui sensores seme- lhantes importados.

A produção do grupo do professor Morimoto pode ser medida pelo número de trabalhos publicados anual- mente. "Somos responsáveis por cerca de 60% dos papers apresentados na área de processos de microeletrônica no Symposium on Microelectronics Technology and Devices (Simpósio em Tecnologia de Microeletrônica e Disposi- tivos), uma reunião internacional promovida anualmen- te pela Sociedade Brasileira de Microeletrônica (SBMi- cro) e pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Para Morimoto, o incentivo da nova política industrial do governo federal para a criação de uma indústria de semicondutores é uma iniciativa louvável. "Uma fábri- ca de semicondutores no Brasil significa que o país terá

Page 110: Uma década de avanços desenha o futuro

capacidade de agregar um alto valor a seus produtos apenas colocando uma mínima inteligência eletrônica neles. Significa que o país poderá exportar mais e importar menos produtos ele- trônicos e componentes e significa, ao mesmo tempo, criar milhares de em- pregos de altíssimo nível, tanto sala- rial como intelectualmente", diz.

Opinião semelhante tem a sua co- lega Inés Pereyra, chefe do Departa- mento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica. Para Inés, o domínio dessa tecnologia é uma questão estratégica porque é em razão dela que se assenta grande parte do de- senvolvimento tecnológico das últimas décadas. "Poderíamos dizer, sem exage- ro, que a independência econômica de qualquer país passa pelo domínio da tecnologia de semicondutores e isso, evidentemente, exige investimentos em pesquisa e a existência de indústrias no país", diz. A pesquisadora coordena um projeto temático que tem como foco a pesquisa de novos materiais semicon- dutores e isolantes e o desenvolvimen- to de dispositivos micro e optoeletrôni- cos baseados nesses materiais.

As pesquisas de Inés envolvem a pro- dução e o estudo de filmes finos (pelícu- las) de materiais como carbeto de silício (SiC) e oxinitreto de silício (SiOxNy), produzidos com processos envolvendo baixas temperaturas. O carbeto de silício é um semicondutor alternativo ao silício na fabricação de dispositivos que ope- ram em ambientes com altas tempera- turas, quimicamente agressivos ou com alta radiação, como sensores para a in- dústria aeroespacial e siderúrgica. Já o oxinitreto de silício é um isolante que pode substituir o oxido de silício em muitas aplicações. "Procuramos melho- rar as propriedades desses dois mate- riais para desenvolver dispositivos mi-

cro e optoeletrônicos, como transisto- res, diodos detetores e emissores de luz e guias ópticos (usados nas telecomu- nicações via fibra óptica)", diz Inés.

A lém da pesquisa aplicada, os i^L professores da Poli também LjL fazem pesquisa teórica. É o

ã ^ caso do físico João Fran- ^L. .A. cisco Justo Filho, que, por meio de simulações computacionais, investiga as propriedades eletrônicas, estruturais e ópticas de ligas semicon- dutoras. Segundo o pesquisador, essas simulações são ferramentas de baixo custo, que podem auxiliar no desenvol- vimento e manipulação de materiais e, por sua vez, na criação de novos dispo- sitivos e processos de produção. "Nos- sos sistemas de estudo são compostos de conjuntos de átomos, elementos fun- damentais no contexto da ciência dos materiais. É importante entender suas propriedades microscópicas, como o ti- po de interações deles com os seus vizi- nhos, porque elas determinam grande parte das propriedades macroscópicas dos materiais."

Uma das linhas de pesquisa de Justo Filho, que conta com um projeto den- tro do Programa Jovem Pesquisador da FAPESP, está voltada para o desenvolvi- mento de um software de simulações de materiais nanoestruturados, princi- palmente nanoestruturas de silício. Para criá-lo, o primeiro passo do pes-

quisador foi desenvolver um código com- putacional que permitisse investigar propriedades térmicas dos materiais. A etapa seguinte foi a criação de um soft- ware de visualização das simulações, onde películas pudessem ser construí- das, mostrando a evolução temporal dos átomos. "Uma das simulações que realizamos com sucesso foi observar o comportamento de um nanofio de silí- cio sendo submetido a tensão constan- te em certas condições de temperatura. Com esse estudo verificamos que é possível construir esses nanofios por meio de processos controlados", afirma o pesquisador. "Na minha visão, os na- nofios de silício são o próximo passo da nanotecnologia. Eles poderão ser usa- dos em aplicações optoeletrônicas (la- sers, principalmente)."

Crescimento de nanofilmes - Igual- mente focado nas nanoestruturas se- micondutoras está o físico José Rober- to Leite, coordenador do Laboratório de Novos Materiais Semicondutores (LNMS), do Instituto de Física da USP de São Paulo. "Estamos trabalhando no crescimento de nanofilmes e sua carac- terização e aplicação em dispositivos nanoeletrônicos, como LEDs (diodos emissores de luz), LDs (diodos laser), sensores e detectores. Esses dispositivos são de grande importância em grava- ção óptica (CDs e DVDs) e nas teleco- municações, entre outras áreas. "Desen-

124 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Page 111: Uma década de avanços desenha o futuro

Componentes < semicondutores

( produzidos no Brasil pela empresa Aegis: 30% para o exterior

volvemos novos LDs e LEDs de grande interesse porque poderão substituir, no futuro, as lâmpadas incandescentes das residências com mais luminosidade e com menor gasto de energia."

Outra novidade, garantida por uma patente e destinada a melhorar as me- mórias dos computadores, transfor- mou-se em uma negociação industrial como mostrou Pesquisa FAPESP na edi- ção n° 97. Até agora, duas grandes em- presas multinacionais, que preferem não revelar seus nomes, contataram e pedi- ram maiores informações ao professor Elson Longo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do Centro Multidisciplinar para o De- senvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), sobre o processo de pro- dução e a nova formulação de um chip potencialmente capaz de aumentar a memória dos computadores em 250 ve- zes, baseado no composto titanato de bário e chumbo. "Eles nos contataram e levaram relatórios para suas matrizes e agora estão analisando", conta Longo.

No Instituto de Física da Unicamp, a busca por novos materiais semicon- dutores também está no foco dos pes- quisadores. O Laboratório de Pesquisa em Dispositivos (LPD) trabalha na sín- tese de novos materiais, no processa- mento e na caracterização de disposi- tivos e sistemas ópticos. "Pesquisamos semicondutores feitos a partir de ele- mentos como gálio, fósforo, nitrogênio

e antimônio, entre outros, que são os mais apropriados para a fabricação de dispositivos optoeletrônicos", afirma o físico Mauro Monteiro Garcia de Car- valho. Esses dispositivos são usados principalmente na fabricação de lasers, amplificadores de luz, células solares e emissores e detectores de luz, muito utilizados no setor de telecomunica- ções, no armazenamento de ciados, co- mo aparelhos de CD e DVD, em displays eletrônicos e equipamentos de laser pa- ra aplicação médico-odontológica. "Es- tamos na ponta da pesquisa, tanto na síntese como no desenvolvimento de novos lasers de semicondutores."

Criado em 1974 como La- boratório de Eletrônica e Dispositivos (LED) e rees- truturado em 1993, quan- do ganhou seu atual nome,

o Centro de Componentes Semicondu- tores da Unicamp é um dos poucos la- boratórios nacionais de microeletrônica que desenvolvem processos completos de fabricação de circuitos integrados. "Fazemos pesquisa e desenvolvimentos de dispositivos com a tecnologia CMOS (Complementary-Metal-Oxide-Semi- conductor), ou Metal-Óxido-Semicon- dutor Complementar, que responde por mais de 85% dos chips fabricados em nível mundial", conta Jacobus Swart, coordenador do centro e professor da Faculdade de Engenharia Elétrica da

Unicamp. Vários projetos já foram exe- cutados (Veja Pesquisa Fapesp n°77). "Também pesquisamos tecnologia de sensores microfabricados, os MEMs, chamados de micromáquinas, usados como sensores de pressão, de gases e de radiação." Os MEMs são dispositi- vos semicondutores que tipicamente medem menos de 100 micrômetros ou micra (1 micrômetro é igual a milési- mo de milímetro) e podem ser usados em diversos setores da economia. "Eles são sensores fabricados a partir de pro- cessos microeletrônicos. Ao reduzir seu tamanho, reduzimos também seu cus- to, melhoramos seu desempenho e au- mentamos sua confiabilidade", explica.

Para Swart, recuperar o atraso tec- nológico brasileiro nessa área não será uma tarefa fácil. Ele acredita que o go- verno só conseguirá criar no país uma indústria competitiva de semicondu- tores se gerar condições econômicas ca- pazes de atrair investimentos externos e conceder incentivos a empresas me- nores que possam crescer a partir de nichos específicos de mercado. Outro aspecto, segundo ele, são os recursos humanos. "Sem pessoal especializado, essa indústria não pode funcionar. No Brasil existem apenas cerca de 500 pes- quisadores com experiência direta em semicondutores de silício. É um núme- ro baixo para o nosso país. O ideal é que tivéssemos pelo menos o dobro."

O objetivo do governo é estimular os empreendedores nativos a investir nessa área e atrair investimentos dire- tos para o país, com a instalação de multinacionais do setor, como grandes fabricantes de circuitos integrados, também chamados de chips, funda- mentais para o funcionamento de todo equipamento eletrônico. "A indústria de semicondutores é crucial para a ino- vação em todos os segmentos que mais

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 125

Page 112: Uma década de avanços desenha o futuro

OS PROJETOS

Produção, Caracterização e Aplicações de Ligas Semicondutoras e Isolantes

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR INéS PEREYRA- USP

INVESTIMENTO R$ 287.049,00 e US$ 399.205,00

Estudo Experimental e Teórico de Nanoestruturas Epitaxiais Semicondutoras Derivadas de Compostos III-V

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR JOSé ROBERTO LEITE - USP

INVESTIMENTO R$ 416.700,00 e US$ 502.219,00

Modelamento Teórico de Propriedades Eletrônicas e Estruturais de Ligas Semicondutoras

MODALIDADE Jovem Pesquisador

COORDENADOR JOãO FRANCISCO JUSTO FILHO - USP

INVESTIMENTO R$ 71.547,00 e US$ 45.449,00

Encapsulamento Completo de Transdutores Descartáveis de Pressão Sangüínea

MODALIDADE Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR EDGAR CHARRY RODRIGUEZ - Torr

INVESTIMENTO R$ 155.100,00

Plataforma de Integração Optoeletrônica Embasada em Crescimento Epitaxial Seletivo e Não-Seletivo por Epitaxia de Feixes Químicos

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR MAURO MONTEIRO GARCIA

DE CARVALHO - Unicamp

INVESTIMENTO R$ 539.193,00

crescem no mundo: tecnologia da infor- mação, telecomunicações e entrete- nimento", sintetiza Sérgio Bampi, pre- sidente da Sociedade Brasileira de Microeletrônica e coordenador do programa multidisciplinar em Microe- letrônica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Entrar nesse disputado setor, dominado por países como Estados Unidos, Alema- nha, Japão, Irlanda, Coréia e Taiwan, é facilmente explicado. A indústria mun- dial de semicondutores reúne cifras gigantescas e é a que mais cresce no mundo. Segundo a Associação da In- dústria de Semicondutores (SIA) dos Estados Unidos, as vendas globais do setor alcançaram US$ 166,4 bilhões no ano passado - em 2000, no auge da bo- lha das empresas de tecnologia da in- formação e de Internet, elas atingiram US$ 204 bilhões. Nos últimos 20 anos, o segmento teve um crescimento mé- dio anual de 16% ante 3 a 4% da eco- nomia mundial em geral. No Brasil, segundo Bampi, o mercado de semi- condutores gira em torno de US$ 3,5 Bilhões anuais, reunindo os compo- nentes importados isolados e os agre- gados a produtos prontos importados mais o mercado de contrabando.

Independentemente do interesse ou não de as indústrias multina- cionais produzirem chips no Bra- sil, está surgindo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o Centro

de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), financiado pela Fi- nanciadora de Estudos e Projetos do Ministério de Ciência e Tecnologia, go- vernos do estado e do município, além de empresas. A instituição, ainda em fa- se de projeto, será um núcleo especiali- zado em desenvolvimento de projetos e de fabricação de protótipos de circuitos integrados, principalmente os dotados de tecnologia CMOS. Para isso, o cen- tro gaúcho de prototipagem contará com sala limpa classe 1.000 (concentra- ção de partículas em suspensão no ar menor que 1.000 partículas por pé cú- bico) de 800 metros quadrados com ambientes internos classe 100 (menos que 100 partículas por metro cúbico) e classe 10. Também será construído um prédio de apoio que incluirá o setor ad- ministrativo do centro, e a maior parte é reservada ao desenvolvimento de projetos de circuitos integrados e for-

mação de recursos humanos. Enquan- to o Ceitec não começa a operar, a Uni- versidade Federal do Rio Grande do Sul possui vários projetos de pesquisa para o desenvolvimento de semicondutores e da engenharia de chips. O programa de pós-graduação em microeletrônica da instituição, por exemplo, atua no proje- to de circuitos integrados, no desenvol- vimento de dispositivos com estrutu- ra MOS (Metal-Óxido-Semicondutor), de softwares para integração de chips e dos chamados sistemas embarcados (hardware e software) on chip, conside- rados um dos caminhos futuros do chip, com memória, processadores e aciona- dores de entrada e saída de dados no mesmo dispositivo.

Um dos estudos mais relevantes é coordenado pelo professor Israel Baum- vol, que tem testado alternativas ao oxi- do de silício (Si02) na produção de chips, principalmente com oxido, sili- catos e aluminatos de háfnio, um ele- mento químico metálico (veja Pesquisa FAPESP n° 82). "Minha atividade de pesquisa é estreitamente relacionada com a produção de componentes semi- condutores para os próximos dez a 20 anos", diz Baumvol. "Se o Brasil pos- suir indústria de semicondutores, nos- so trabalho será de importância vital. Se não tivermos, os grandes fabricantes internacionais serão os únicos benefi- ciários de nossas pesquisas", diz ele.

Componentes discretos - Atualmente, só existem quatro fábricas que atuam na cadeia produtiva de semiconduto- res instaladas no Brasil: Aegis, Semi- kron, Heliodinâmica e Itaucom. As duas primeiras produzem os chama- dos componentes discretos de potên- cia - como diodos e tiristores -, que são mais simples do que os circuitos integrados. "Diodos e tiristores são dispositivos que funcionam como uma chave, deixando a corrente elétrica pas- sar ou a bloqueando", explica o enge- nheiro Wanderley Marzano, diretor presidente da Aegis, cuja sede fica em São Paulo. "Nossos dispositivos são feitos de silício e direcionados para a indústria de bens de capital. Eles são utilizados em fontes de corrente contí- nua que integram equipamentos de automação e retificação (transforma- ção de corrente alternada para contí- nua), entre outros." A produção mensal da Aegis é de cerca de 6 mil lâminas,

126 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Page 113: Uma década de avanços desenha o futuro

Microprocessadores e memória: produtos importados

mas ela poderia ser bem maior. "Não uso nem 25% da minha capacidade instalada", diz o empresário, que recla- ma da instabilidade do mercado brasi- leiro e das dificuldades para vender para clientes no exterior. Mesmo as- sim, 30% de sua produção é destinada a uma dúzia de países, entre eles Esta- dos Unidos, China, Taiwan, Alemanha, Itália e França.

A Heliodinâmica, por sua vez, pro- duz principalmente células solares (que são feitas de silício) e a Itaucom atua na montagem de circuitos inte-

grados. Os componentes chegam do exterior na forma de uma lâmina de si- lício processada, também chamada de wafer (ou bolacha), e a empresa faz sua montagem e testes para colocação no mercado. Embora hoje muito limita- do, o parque industrial brasileiro de se- micondutores já foi bem maior. No início dos anos 1970, o país possuía um laboratório de classe mundial, o Laboratório de Microeletrônica da Universidade de São Paulo (USP), que estava próximo do estado-da-arte em pesquisa de circuitos integrados. E na

década de 1980 existiam 23 empresas instaladas, a maioria pertencente a grandes grupos internacionais.

Mudanças no caminho - "A abertura de mercado promovida pelo governo Collor fez com que as empresas nacio- nais fechassem suas portas e as estran- geiras deixassem o país", afirma José Elis Ripper Filho, diretor-presidente da Asga, instalada na cidade de Paulí- nia, em São Paulo, que naquela época fabricava semicondutores e hoje pro- duz avançados equipamentos de tele- comunicações via fibra óptica. Com o fim da reserva de mercado, os fabri- cantes de bens finais passaram a im- portar conjuntos prontos (kits) para serem montados no Brasil. "Dessa for- ma, a compra de componentes passou a ser feita lá fora", diz Ripper. "A im- portação de um kit completo tornou- se mais vantajosa para o montador fi- nal, já que permite a redução do custo de engenharia própria e simplifica a gestão da cadeia de suprimentos", aponta o documento Programa Nacio- nal de Microeletrônica — Contribuições para a Formulação de um Plano Estru- turado de Ações, produzido pelo Mi- nistério da Ciência e Tecnologia, em dezembro de 2002. Um caminho que terá de ser negociado se os semicon- dutores de ponta voltarem a ser pro- duzidos no Brasil. •

Por dentro da cadeia produtiva As indústrias que compõem a cadeia produtiva dos circuitos integrados podem ser divididas, de modo sim- ples, em três categorias: as design houses (empresas de projeto), respon- sáveis pelos projetos dos circuitos, as foundries (fundições de silício), que fazem a fabricação propriamente di- ta, o que compreende o processamen- to físico-químico dos circuitos inte- grantes da etapa chamada de front end, e as companhias encarregadas da montagem, encapsulamento e teste do produto, que integram a etapa cha- mada de back end. De todas elas, as foundries, exatamente as que não existem no país, são as que agregam maior valor ao produto. O valor do investimento para instalação dessas

indústrias é muito variado. Segundo estudo feito pelo Ministério da Ciên- cia e Tecnologia, no final de 2002, o custo de instalação de uma design hou- se variava de US$ 1 milhão a US$ 5 milhões, com a concentração de re- cursos, basicamente, em software, treinamento e estações de trabalho. As foundries, por sua vez, têm custo bem mais diversificado e que depen- de da área de atuação. Indústrias es- pecializadas na prototipagem de pe- quenas séries, como a produção de dispositivos CMOS simples em baixa escala, demandam investimentos re- lativamente pequenos, de US$ 10 mi- lhões a US$ 100 milhões.

Já as fábricas que fornecem para segmentos especializados, como com-

ponentes automotivos, sensores, trans- ceptores (recebem e emitem sinais de rádio) e sistemas microeletrome- cânicos (MEMs), custam de US$ 300 milhões a US$ 600 milhões. "Essas foundries constituem a maioria das fábricas de wafers do mundo e per- mitem bastante inovação nos produ- tos eletrônicos", diz Sérgio Bampi, presidente da Sociedade Brasileira de Microeletrônica. A terceira categoria dessas empresas é constituída de me- gafábricas, como as norte-ameri- canas Intel e a AMD, que produzem principalmente microprocessadores e memórias com tecnologia de pon- ta. O custo de implantação delas, al- tíssimo, varia de US$ 1 bilhão a US$ 3 bilhões.

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 127

Page 114: Uma década de avanços desenha o futuro

■ TECNOLOGIA

TELECOMUNICAÇÕES

Esforço concentrado

Amplificadores, fibras ópticas e redes ultra-rápidas promovem nova fase para a pesquisa em Internet e na telefonia

TâNIA MARQUES

De meados da década de 1970 à privatização das telecomunicações, em 1998, o Brasil criou siste- mas telefônicos que

nada ficavam a dever aos então utiliza- dos nos países desenvolvidos. O méri- to coube, principalmente, ao Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Tele- comunicações (CPqD), braço tecnoló- gico da holding Telebras, a estatal que gerenciava a telefonia no país. Depois da privatização, o investimento em pes- quisa e desenvolvimento caiu e foi ini- ciada uma onda de importações. De lá para cá, a situação melhorou, mas pode melhorar ainda mais com os recentes desenvolvimentos realizados por vários centros de pesquisa ligados a universi- dades ou a empresas. Amplificadores avançados para operar com transmis- sões telefônicas e de dados, fibras ópti- cas especiais e redes para Internet su- per-rápidas, além de softwares especiais para gerenciar equipamentos e redes de telefonia celular e fixa, são alguns dos novos produtos que podem servir ao país num futuro próximo, evitando importações, além de proporcionar participação mais ativa no mercado in- ternacional de comunicação de voz e dados. "Ainda é preciso agregar valor tecnológico aos produtos brasileiros", comenta o professor Hugo Fragnito, do Instituto de Física da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp), um dos integrantes do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), financiado pela FAPESP.

128 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESOWISA FAPESP 100

"Um avanço relevante são os proje- tos de redes de alta velocidade nas quais é possível testar novas tecnologias em escala muito superior à do laboratório", diz Fragnito. Um deles é a rede do pro- jeto Giga, uma iniciativa do CPqD em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia, que teve apoio da Embratel, Telefônica, Telemar, Intelig e recebeu fi- nanciamento de R$ 54 milhões do Fun- do para o Desenvolvimento Tecnológi- co das Telecomunicações (Funttel). Ela começa a operar em abril, conectando 20 instituições de ensino, pesquisa e de- senvolvimento com tecnologia de rede de Internet à tecnologia WDM (sistema de multiplexação por divisão de com- primento de onda), que expande a ca- pacidade de transmissão das redes de fibra óptica. Com velocidade de até 10 Gigabits por segundo, o projeto Giga é 400 vezes mais rápido que as conexões domésticas em banda larga. Outra rede com essas características é a KyaTera, que faz parte do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia), da FAPESP. "Os pesquisadores das duas redes traba- lham em cooperação", conta Fragnito.

O Tidia possui a própria Internet como objeto de estudos e está reunindo vários grupos de pesquisa especializa- dos em tecnologia da informação, co- municações, controle e automação de laboratório. A eles se somarão grupos de excelência em todas as ciências expe- rimentais para, juntos, desenvolverem projetos de comunicações ópticas, re- des ópticas, redes de acesso a super-ro-

Page 115: Uma década de avanços desenha o futuro

Novo tipo de fibra óptica, desenvolvido na Unicamp/elimina ruídos existentes nas fibras convencionais

Page 116: Uma década de avanços desenha o futuro

dovias de informações, software e hardware de controle de instrumentos. Será um compartilhamento de redes com objetivos de pesquisa e formação de especialistas em desenvolvimento de tecnologia para a Internet.

Colaborar é, aliás, uma das especialidades do Cepof, que mantém parcerias com outros centros de pesqui- sa e empresas de todos os

portes. Pouco mais de um ano atrás, por exemplo, atraiu a Universidade de Bath, na Inglaterra, para o desenvolvi- mento de um amplificador paramétrico a fibra óptica (Fopa, na sigla em inglês) que promete aumentar em centenas de vezes a velocidade da transmissão de dados e voz em redes de longa distância. Apenas outros três centros de pesquisa em todo o mundo estão trabalhando no desenvolvimento desse tipo de ampli- ficador: o Bell Labs e a Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e a Uni- versidade Tecnológica de Chalmers, na Suécia. Hoje o mercado mundial de am- plificadores movimenta aproximada- mente US$ 8 bilhões por ano.

A função dos amplificadores é ga- rantir que os sinais de luz que levam in- formações e se propagam pelos cabos de fibra óptica na forma de laser não percam sua potência inicial. Na década de 1980, isso era feito por equipamentos eletrônicos, que tinham de converter os sinais luminosos em elétricos para, de- pois, reconvertê-los, em um processo que aumentava o risco de falhas. Em 1989, amplificadores ópticos com fibras dopadas de érbio em seu interior pro- duziram uma verdadeira revolução: au- mentaram a banda de transmissão de 1

gigabit (1 bilhão de bits) para 4 terabits (4 trilhões de bits), passaram a operar com múltiplos protocolos de comuni- cação e, de quebra, reduziram tremen- damente o custo das redes. O ampli- ficador paramétrico também deverá custar bem menos que os equipamentos atualmen te em uso, além de prote- ger os investimentos das operadoras em razão de sua capacidade virtual- mente inesgotável.

O equipamento pre- cisa de uma fibra óptica especial, chamada de cristais fotônicos, e a pes- quisa para escolher a mais adequada acabou levando a uma descoberta inesperada - um material que reduz muito o efeito Bril- louin, indesejável resultado da inte- ração do campo elétrico da luz com as ondas acústicas presentes nas fibras, deixando parte da luz retornar à fonte geradora. A descoberta é de Paulo Dai- nese, doutorando do Instituto de Física da Unicamp sob a orientação de Fragni- to. Apresentado em maio na Conferên- cia sobre Lasers e Eletroóptica (Cleo, na abreviatura em inglês), da Sociedade Americana de Óptica, o trabalho rece- beu o prêmio de ser um dos sete me- lhores estudos, entre 5 mil concorren- tes. Detalhe: a fibra, já patenteada, provavelmente poderá ser amplamen- te aplicada nos campos da óptica e da acústica.

Enquanto isso, um processo de pro- dução de fibras ópticas dopadas com ér- bio, ainda não dominado no Brasil, é de- senvolvido na Unicamp pelo professor Carlos Kenichi Suzuki, pesquisador li-

' OS PROJETOS

\

Fibras Ópticas Amplific de Sílica Dopadas com

adoras Érbio

Centro de P e Fotônica (

esquisa em Óptica Cepof), na Unicamp

MODALIDADE

Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)

COORDENADOR CARLOS KENICHI SUZUKI - Sun Quartz

COORDENADOR HUGO FRAGNITO - Instituto de Física da Unicamp

R$ 307.627,00 e US$ 12.700,00

INVESTIMENTO R$ 1 milhão por ano

gado ao Laboratório Ciclo Integrado do Quartzo, da Faculdade de Engenha- ria Mecânica. Com a inovação, Suzuki fundou a empresa Sun Quartz, em 2003, atualmente instalada na Incubadora da Unicamp. O projeto, apoiado pelo Pro- grama de Inovação Tecnológica em Pe- quenas Empresas (PIPE), da FAPESP, deve resultar em um incremento subs- tancial do nível de érbio nas fibras, o que expandirá sua capacidade de comunica- ção. Hoje esse aumento, depois de certo limite, chega a atrapalhar a amplifica- ção dos sinais de luz. "Nosso trabalho é voltado para o controle e a manipula- ção de nanoestruturas das partículas de sílica e germânia, matérias-primas das fibras", conta Suzuki. "Os resultados têm indicado que as características dessas nanoestruturas são elementos decisivos para a concentração do érbio."

A produção das fibras baseia-se em uma tecnologia chamada de deposição axial na fase de vapor (VAD, em inglês),

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Corpos-de-prova para preparo de fibras com nanoestruturas de sílica e germânia

muito empregada no Japão, que, em cinco etapas, possibilita a produção de sílica com alto nível de pureza e aplica- ção potencial em áreas tão diversas como a administração de medicamen- tos e a produção de células solares.

O mercado externo também está na mira da empresa Padtec, de Campinas, única fabricante de equipamentos com tecnologia WDM no Hemisfério Sul. Desmembrada do CPqD no final de 2001, a Padtec oferece produtos para redes corporativas de armazenamento de dados, redes de comunicação me- tropolitanas e de longa distância. No Brasil, fornece para as principais opera- doras e exporta para América Latina, Estados Unidos, índia e Portugal. Em 2003 faturou cerca de R$ 7,5 milhões, dos quais R$ 4,5 milhões foram desti- nados para pesquisa e desenvolvimen- to. Segundo o diretor técnico da em- presa, Jorge Salomão Pereira, dos 75 empregados da Padtec, 15 são enge-

nheiros dedicados exclusivamente à pesquisa e desenvolvimento.

"O desafio do Brasil agora é conquis- tar também maior inserção no merca- do mundial", diz Bruno Vianna (ex-su-

perintendente do Instituto Genius), da Orion Consultores Associa-

dos, especializada em inova- ção, telecomunicações e

energia. Algumas condições para que os conhecimen- tos acumulados e a qua- lidade dos recursos hu- manos comecem a gerar um bom volume de no-

/ vos projetos e produtos, além de divisas, parecem

estar se configurando. Em sua renovação, em 2001, a Lei

de Informática estimulou esfor- ços de pesquisa e desenvolvimento

entre os fabricantes de equipamentos, com incentivos fiscais que provavel- mente serão estendidos até 2019. A criação, em 2002, do Funttel assegurou recursos para a inovação. Mais recente- mente, o governo federal elegeu, como uma de suas prioridades, a área de soft- ware, a alma dos aparelhos telefônicos. Além disso, grandes companhias inter- nacionais vêm aumentando os investi- mentos em pesquisa e desenvolvimento no país e empresas nacionais começam a obter sucesso em estratégias de ex- portação.

Pacote de voz - A importância da Lei de Informática também é destacada por Hélio Graciosa, presidente do CPqD, que em julho de 1998 tornou-se uma fundação privada. Segundo ele, o CPqD registrou quatro grandes con- quistas de lá para cá - a competência no licenciamento de produtos, a habili- dade para desenvolver software para te- lefonia fixa e celular e a capacidade de prestar serviços tecnológicos, com a oferta de estudos, ensaios e consultoria. O CPqD, que se mantém muito ligado às universidades e aos institutos de pes- quisa - tem 30 parceiros nessas áreas -, também trabalha no desenvolvimento de produtos em conjunto com peque- nas companhias. Com 1.500 emprega- dos, agora está voltado para as redes de nova geração (NGN), que transmitem voz em pacotes, com sensível melhoria nos índices de aproveitamento de ban- da. "As operadoras estão começando a fazer encomendas", revela Graciosa.

Com um escritório no Vale do Silí- cio, Califórnia, desde 2000, o CPqD está consolidando sua atuação nos Es- tados Unidos, onde fornece software de suporte para operações e negócios. A partir de 2001 estabeleceu uma série de parcerias de distribuição que levaram seus produtos e serviços a países latino- americanos, Portugal, Espanha, Alema- nha e, mais recentemente, Angola. Atual- mente, mantém 18 grandes projetos de pesquisa. Sua receita, de R$ 185 milhões em 2002, chegou a R$ 205 milhões em 2003 e deve crescer 10% este ano.

Para atender melhor a clientes glo- bais, os grandes fornecedores de equi- pamentos de telecomunicações tam- bém começaram a investir em pesquisa e desenvolvimento no país. A alemã Sie- mens criou, em dezembro de 2003, o Portal de Tecnologias, no qual universi- dades, institutos de pesquisa, empresas de base tecnológica e até inventores in- dependentes podem apresentar pro- postas. "Uma equipe de 45 analistas ava- lia detalhadamente cada projeto", conta Ronald Martin Dauscha, diretor de ges- tão tecnológica corporativa. E já exis- tem quatro propostas que parecem bem viáveis. Entre seus seis centros de pesquisa e desenvolvimento no país, a Siemens emprega 315 pessoas. "Os in- vestimentos, que em 2003 foram de R$ 80 milhões, devem atingir R$ 100 mi- lhões", conta Dauscha. Em maio, a fá- brica da empresa em Curitiba tornou- se a plataforma mundial de exportação de centrais de PABX.

Na Motorola Brasil, a equipe de pesquisa e desenvolvimento, formada por 60 pessoas no fim de 1999, hoje tem 150 profissionais somente na área de software, afirma Rosana Jamal Fer- nandes, diretora de pesquisa e desenvol- vimento da companhia. A empresa de origem norte-americana mantém acor- dos com 17 universidades e diversos institutos de pesquisa, como o Eldora- do, que, fundado por iniciativa sua em 1997, hoje presta serviços para diversas empresas. E incentiva os parceiros a certificar seus processos e produtos - uma condição essencial para a conquis- ta do mercado internacional. De 1997 para cá, seus investimentos em pesqui- sa e desenvolvimento no país somaram US$ 135 milhões. "Todos os celulares Motorola, independentemente de onde forem fabricados, carregam algo brasi- leiro", garante ela. •

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Viagem ao fim do tempo: uma fantasia

MARCELO GLEISER

Quando eu era jovem, costumava construir espaçonaves com partes de naves antigas. Viajava de planeta em planeta, à procura de objetos para a minha coleção. Em uma dessas viagens, cheguei ao enorme hangar do sr. Strõm. Ele era conhecido em toda a galáxia, não só pela sua loja de peças usadas, mas por sua fama de ter sido o pri-

meiro a se aproximar de um buraco negro e escapar com vida, uma história que muitos acreditavam fosse apenas isso, uma história.

Pedi ao sr. Strõm que me contasse a sua aventura. Seus olhos eram dois poços escuros onde nadava a mais profunda tristeza, abismos gêmeos e sem fundo, como dois buracos negros em miniatura. "Eu era o comandante de uma frota construída para explorar a mis- teriosa fonte de raios X conhecida como Cisne X-1", ele começou. "Desde 1970, há mais de três milênios, os astrônomos acreditavam que essa fonte de radiação, a 6 mil anos-luz da Terra, era um sistema binário: uma estrela do tipo gigante azul com 20 a 30 massas solares orbitando um buraco negro."

"Eu comandava a nave CXI e meu irmão caçula, a nave CX3. Deixando de lado os pre- parativos da missão, finalmente chegamos a um mês-luz de nosso destino. A vista era mag- nífica; podíamos ver a gigantesca estrela azul sendo drenada de sua própria essência por um buraco no espaço!

"Devíamos voar em direção ao buraco negro, meu irmão na frente e eu por último. Sabíamos que um buraco negro é circundado por uma esfera imaginária denominada hori- zonte de eventos, que marca a distância de onde nem mesmo a luz pode escapar. A nave de meu irmão deveria se aproximar do buraco negro, enviando sinais luminosos periodicamente; minha missão era captar esses pulsos, analisar sua freqüência e o intervalo entre eles, e depois comparar meus resultados com as previsões da relatividade geral. As naves voaram até uma distância de 10 mil quilômetros do buraco negro; enquanto minha nave deveria per- manecer a essa distância, meu irmão viajaria até cem quilômetros do turbilhão. De lá, ele deveria enviar sinais em radiação infravermelha. Mas recebi apenas ondas na longa freqüência de rádio; a previsão de Einstein, que a radiação perde energia ao escapar de campos gravita- cionais intensos, estava correta. Mais ainda, o intervalo entre os pulsos aumentou bastante: quando visto de minha nave, o tempo estava passando mais devagar para meu irmão. Ele mergulhou até a perigosa distância de alguns quilômetros do horizonte de eventos. Dessa órbita meu irmão deveria enviar sinais de luz visível. Mas tudo o que detectei foram as invi- síveis ondas de rádio; a espaçonave de meu irmão também havia se tornado completamen- te invisível. O outro efeito era a variação na passagem do tempo. A medida que meu irmão se aproximava do buraco negro, o intervalo entre os pulsos de radiação que ele emitia se tor- nava cada vez maior. Se ele passasse do horizonte de eventos, não receberíamos mais nada.

"As instruções de meu irmão eram que ele retornasse após duas órbitas em torno do buraco negro. Mais do que isso, e a espaçonave acabaria por cair, destruída, dentro do abis- mo. Recebi outra mensagem, que, após decodificada, dizia: 'Fim'. Meu irmão havia sido tra- gado pelo buraco negro." Os olhos do sr. Strõm foram inundados por lágrimas saudosas, desesperadas.

"Eu decidi procurá-lo. Talvez a teoria estivesse errada e fosse possível mergulhar além do horizonte de eventos. Conforme a teoria, uma vez que se cruza o horizonte de eventos, o único movimento possível é na direção do centro do buraco negro, conhecido como singu- laridade central, onde a gravidade é infinitamente forte. É como se, dentro do buraco negro, o espaço se tornasse unidirecional, com todas as estradas terminando no mesmo ponto. A não ser, claro, que o buraco negro esteja em rotação. E aquele estava."

Um facho de luz, como uma estrela cadente, passou rapidamente pelos olhos do sr. Strõm. "Segundo a teoria, a rotação do buraco negro distende a singularidade na forma de

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um anel; já no século 20, os astrofísicos obtiveram soluções descrevendo buracos negros em rotação que não terminavam em uma singularidade pontual, mas em uma garganta, conhe- cida como 'buraco de verme', que conectava o buraco negro a um buraco branco, o seu oposto! O que os buracos negros sugam, os buracos brancos expelem.

"Assim que mergulhei no buraco negro, o movimento giratório do espaço arrastou-me para o abismo central como um redemoinho que tragasse um navio. Mesmo que eu não pudesse ver nada, meu cérebro produzia uma profusão de imagens e sons, como se todos os meus neurônios tivessem decidido disparar juntos. Eu vi a minha vida passada e a minha vida futura, entrelaçadas. Essa imagem dividiu-se em inúmeras outras, cada uma determi- nada pelas escolhas que fiz e as que não fiz durante a vida, todos os destinos possíveis con- finados em uma única visão. O tempo, dissociado em fibras, enrolou-se em uma bola que segurei na palma da mão, enquanto o espaço se metamorfoseava em infinitas formas, todas coexistindo em um único ponto. Vislumbrei tudo o que era imaginável, tudo o que era pos- sível e impossível. Compreendi que o que chamamos de impossível depende de como defi- nimos as fronteiras da realidade. E, naquele momento, a realidade não tinha fronteiras. Eu vi meus parentes já mortos e aqueles que ainda não nasceram; me vi, já adulto, conversan- do com minha mãe, embora ela tivesse morrido quando eu era criança. Enquanto me pedia desculpas pela sua ausência, por não ter me visto crescer, por não ter me dado seu amor, era ela que se transformava em criança. Presenciei o meu próprio nascimento e minha mãe me viu morrer. Nossas imagens fundiram-se em um nó, que se transformou em uma lágrima no olho de minha mãe. Quando avancei para abraçá-la, desesperado para tocar sua pele após tantos anos, minha espaçonave foi invadida pela luz mais intensa que jamais vi. Era tarde demais. Minhas mãos atravessaram seu corpo translúcido, e ela desapareceu em meio à minha cegueira branca.

"Eu senti um puxão violentíssimo. Devo ter permanecido inconsciente por um longo tem- po. Quando dei por mim e olhei no espelho, meus cabelos estavam completamente brancos e meu rosto estava coberto de rugas que eu não tinha momentos (momentos?) antes. O com- putador de bordo indicava que eu havia reaparecido a 2 mil anos-luz de distância de Cisne X-l! A única explicação plausível é que eu tenha atravessado um buraco de verme e sido expelido por um buraco branco em um ponto distante do espaço. Segurei o infinito em minhas mãos como se fosse um brinquedo, mas não consegui encontrar meu irmão. Até hoje continuo convicto de que ele tomou um outro caminho no buraco de verme, ressur- gindo em algum ponto remoto do Universo e, talvez, no tempo. Às vezes me sinto ligado a ele por teias que retornam ao turbilhão, onde todos os nossos eus são possíveis."

A narrativa do sr. Strôm me comoveu profundamente. Talvez esse lugar exista e a narra- tiva do sr. Strõm seja verdade. Ou, se ele não existe, talvez um dia será criado. Porque é pre- cisamente na fronteira do conhecimento que a imaginação tem o seu papel mais importan- te; o que ontem foi apenas um sonho amanhã poderá se tornar realidade.

MARCELO GLEISER é professor de Física e Astronomia no Dartmouth College, nos EUA, colunista da Folha de S.Paulo e autor, entre outros, de A dança do Universo.

PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 133

Page 120: Uma década de avanços desenha o futuro

TECNOLOGIA

BIOQUÍMICA

Parceria entre o Centro deToxinologia Aplicada e indústria farmacêutica resulta em analgésico mais potente que morfina

ovos princípios ativos, desco- bertos por um grupo de pesqui- sa paulista, mostraram grande potencial farmacológico para amenizar a dor e controlar a

pressão arterial, como apontam testes feitos com moléculas sintetizadas a partir do veneno da cascavel (Crotalus terrificus) e da jararaca (Both- rops jararaca). Outras moléculas puras extraídas de esponja-do-mar são capazes de reduzir tumo- res, mas não podem ainda ser reveladas porque estão numa fase da pesquisa que exige sigilo.

Desde sua criação, o Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), com sede no Instituto Butan- tan, já depositou seis pedidos de patente. O mais novo trata de uma substância obtida do veneno da cascavel, que revelou, em uma única dose, um poder de analgesia 600 vezes mais potente que o da morfina, efeito que se prolonga por até cinco dias sem efeitos colaterais. A primeira pa- tente, depositada em março de 2001, derivou do estudo não só do veneno da jararaca como do cérebro dessa serpente, onde foram encontra- dos 17 peptídeos, resultantes de uma cadeia de aminoácidos, com propriedades anti-hiperten- sivas batizados de Evasins (endogenous vasopep- tidase inhibitor). As pesquisas foram realizadas em parceria com a indústria farmacêutica nacio- nal, representada pelo Consórcio Farmacêutico (Coinfar), constituído pelos Laboratórios Bio- lab-Sanus, União Química e Biosintética.

Os estudos que resultaram no isolamento das moléculas responsáveis pela analgesia per- correram um longo caminho. Vital Brazil, fun- dador do Instituto Butantan, pioneiro no estu- do das serpentes no Brasil e precursor brasileiro na aplicação médica das toxinas animais, mos- trou o efeito analgésico do veneno da cascavel

no começo do século 20. O professor Antônio Carlos Martins de Camargo, coordenador do CAT, que é um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) criados pela FA- PESP em 2000, lembra que o pesquisador utili- zou em pacientes com dores crônicas o veneno da cascavel diluído, eficazmente. "O veneno uti- lizado era bastante diluído, quase homeopático, mas os pacientes se sentiam muito bem", relata.

Foi a partir dessas observações que pesquisa- dores do Butantan conseguiram fazer uma ca- racterização farmacológica da substância anal- gésica contida no veneno da cascavel, mas não o princípio ativo, ou seja, a molécula ou as molé- culas responsáveis por esse efeito. Isso só se tor- nou possível, segundo Camargo, com a criação do CAT, que possibilitou a montagem da infra- estrutura necessária para o isolamento, a identi- ficação química e a síntese da substância ativa.

Efeitos reproduzidos - Como essas moléculas são componentes minoritários no veneno, iso- lá-las e caracterizá-las é uma tarefa bastante complexa, que requer especialistas no assunto e instrumentos específicos, como o aparelho de espectrometria de massa, fundamental para de- terminar a estrutura molecular. "Depois de vários fracassos, conseguimos chegar a um bom final graças à atuação de pesquisadores do Instituto Butantan, como Yara Cury e sua pós-graduanda Gizele Picolo, e de um pesquisador japonês, Katsuhiro Konno, especialista em purificação que trabalhou conosco durante três anos como bolsista da FAPESP", conta Camargo. "No final do ano passado, conseguimos chegar a uma das moléculas responsáveis pelo efeito analgésico."

A molécula foi isolada, sua estrutura iden- tificada e, em seguida, sintetizada. Testes com-

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134 ■ JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 1C

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provaram que a molécula sintética iso- lada reproduzia os efeitos analgésicos. "É um efeito semelhante ao da morfi- na, mas muito mais potente, duradou- ro e sem efeitos colaterais identifi- cados até o momento. Além disso, o produto é administrado por via oral", ressalta. Já a morfina, que é o padrão de analgesia, atua por um período de tempo curto. Para se obter o mesmo efeito da primeira dose administrada é necessário aumentar a quantidade in- gerida, o que resulta em um efeito cu- mulativo no organismo e, em alguns casos, dependência. Os testes com o novo analgésico foram conduzidos em animais e ainda têm que ser confirma- dos em seres humanos, os chamados en- saios clínicos da fase 3 e 4.

Já nos ensaios pré-clínicos reali- zados com os anti-hipertensi- vos obtidos a partir do veneno da jararaca novas propriedades, que não constam da primeira patente, foram descobertas e pa-

tenteadas. Testes realizados mostraram diferenças importantes entre esses e os anti-hipertensivos dessa classe existen- tes no comércio. Essas diferenças pode- rão melhorar a qualidade do tratamen- to de indivíduos hipertensos.

Muitas vezes descobre-se ainda ou- tra atividade dessas moléculas não rela- cionada com aquela que foi primeiro identificada. É o caso de um dos Eva- sins que influencia a permeabilidade de um canal iônico e modifica a resposta aos estímulos, como ocorre, por exem- plo, no estímulo que leva à contração muscular. Essa propriedade poderá ter outra aplicação terapêutica além da atividade anti-hipertensiva, como no tratamento de doenças que afetam o sistema nervoso central. As novas des- cobertas e também os caminhos per- corridos pela molécula sintetizada den- tro do organismo resultaram em duas outras patentes, depositadas no Brasil, nos Estados Unidos, na Comunidade Européia e no Japão.

Na atual fase da pesquisa, os melho- res Evasins, que têm maior eficácia e menores efeitos colaterais, estão sendo escolhidos para desenvolver os anti-hi- pertensivos. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem trabalhado em duas vertentes. Uma delas trata da busca de formulações capazes de tornar eficaz sua administração por via oral, já

que os peptídeos são destruídos pelo aparelho digestivo. A outra avalia a ação anti-hipertensiva de quatro dos 17 no- vos peptídeos encontrados no veneno da jararaca. Ratos transgênicos com hi- pertensão criados em laboratório rece- bem dosagens de cada um deles e são monitorados em tempo integral.

Resultados promissores - Os resultados obtidos até agora, tanto com o analgési- co como com o anti-hipertensivo, têm sido muito promissores, conforme ates- tam os parceiros da indústria. "Fomos muito além do que imaginávamos no início", diz Cleiton de Castro Marques, vice-presidente do Grupo Castro Mar- ques, que agrupa as empresas Biolab- Sanus e União Química, duas das parti- cipantes do consórcio. O começo dessa parceria teve início com uma conversa entre o professor Camargo e o médico Márcio Falei, diretor médico da Biosin- tética, a outra ponta do Coinfar. "Quan- do ele me falou sobre o tipo de projeto que estava desenvolvendo, vislumbrei a possibilidade de ter em um único local no Brasil a descoberta de novos produ- tos de modo intenso e rápido", relata

Falei. Esse foi o início da parceria entre a indústria farmacêutica e o CAT. "Per- cebemos a possibilidade de ter uma base para desenvolver uma linha de produtos farmacêuticos que eventual- mente poderiam chegar ao mercado", relata José Fernando Leme Magalhães, diretor corporativo de Assuntos Estra- tégicos do Grupo Castro Marques.

O consórcio foi formado porque se- ria mais difícil para cada uma das em- presas individualmente ter fôlego para acompanhar os desdobramentos do projeto. Dentro desse cenário, os em- presários começaram a olhar com mais atenção aos detalhes dos produtos em transformação. Até agora, cada uma das três empresas que compõem o con- sórcio já colocou US$ 1 milhão de re- cursos próprios na pesquisa, totalizan- do US$ 3 milhões. Mas daqui para a frente os gastos serão maiores, com a certificação dos testes e a montagem do dossiê que será encaminhado às agên- cias regulatórias brasileiras e interna- cionais para aprovação do produto.

Essa forma de trabalho e novos in- vestimentos também devem servir a uma das novidades mais recentes saí-

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das das bancadas do CAT e apoiadas pelo Coinfar. O produto, cujos resulta- dos preliminares são animadores, tem propriedades anticancerígenas e é obti- do de uma esponja-do-mar. "Os testes com a molécula pura causaram redu- ção extremamente significativa em al- guns tipos de tumores", relata Camargo.

A esponja é um animal inverte- g^L brado muito simples que vive Lj^ grudado nas pedras e outros i M organismos marinhos. Pa-

^L. J^, ra se alimentar e crescer, ela produz toxinas que afugentam os pre- dadores do lugar onde habita. Sabendo disso, os pesquisadores foram atrás des- sas toxinas para buscar possíveis aplica- ções para elas. Essa molécula foi isolada e sua estrutura determinada pela espec- trometria de massa. O próximo passo é obtê-la na forma sintética. Os estudos são parte de um programa do CAT de desenvolvimento de toxinas de animais marinhos, com aplicação em muitas áreas. "Só para citar um exemplo, o AZT, antiviral usado no tratamento da Aids, foi produzido a partir da toxina de uma esponja-do-mar", diz Camargo.

Com esse amplo leque de pesquisa, o Centro de Toxinologia do Butantan é descrito como uma fábrica de molé- culas por Castro Marques. Com as boas notícias do CAT, a Biolab e a União Química estão empenhadas em investir em pesquisa e desenvolvimento para melhorar sua competitividade. Neste ano, o grupo destinou 5,3% do fatura- mento na área farmacêutica, que em 2003 foi de R$ 419 milhões, para pes- quisa. Portanto, os aportes representa- rão cerca de R$ 22,2 milhões. O inves- timento contempla desde produtos

0 PROJETO

Centro de Toxinologia Aplicada (CAT)

MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)

COORDENADOR ANTôNIO CARLOS MARTINS DE

CAMARGO - INSTITUTO BUTANTAN

INVESTIMENTO US$ 1.300.000

inovadores até o desenvolvimento de novas formas farmacêuticas, novos conceitos e estudos clínicos.

A parceria das empresas com cen- tros de pesquisa teve início há nove anos, com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), e resul- tou no Bandgel, um hidrogel para o tratamento de queimaduras. O produ- to age como barreira de proteção em relação ao meio ambiente, possibilitan- do a rápida recuperação tecidual do lo- cal da queimadura.

Filosofia empresarial - "Nós chegamos hoje num ponto em que temos recebi- do mais propostas do que nossa capa- cidade de investir", relata Castro Mar- ques. Para ele, a pesquisa é de suma importância para a indústria nacional. Desde a entrada em vigor da Lei de Pa- tentes no Brasil em 1996, as indústrias nacionais passaram a se preocupar com a necessidade de desenvolver novos produtos, como fazem as grandes em- presas internacionais. "Temos de inves- tir e criar tecnologia, porque o mercado se constituirá de empresas inovadoras, de um lado, e de empresas fabricantes de genéricos, de similares e de produtos populares, de outro", diz. A mesma filo- sofia norteia a Biosintética, que desde 1993 trabalha em parceria com univer- sidades para desenvolver produtos. Anualmente investe em pesquisa 2% do seu faturamento líquido de cerca de R$ 260 milhões, o que representa cerca de R$ 5,2 milhões.

Segundo Falei, da Biosintética, um dos resultados da parceria com o CAT, além dos promissores fármacos, foi o lançamento das bases para a definição de uma política industrial farmacêu- tica. O primeiro pilar foi a criação da Agência de Gestão da Inovação Farma- cêutica (Agif), que reúne especialistas capazes de fazer uma patente bem pro- tegida e tem como tarefa ajudar a iden- tificar gargalos na rota de transforma- ção da descoberta até o produto.

Para Magalhães, o objetivo da ino- vação é o mercado. E o sucesso é o maior estímulo. "Tenho certeza de que quando um desses produtos inovado- res chegar ao mercado muitas outras empresas também vão querer investir." A capacidade de colocar no mercado um produto novo, de maior valor agre- gado e apelo comercial motiva a con- corrência. •

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 137

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I TECNOLOGIA

AGRONOMIA

Pequenose

poderosos Pesquisadores constatam efeitos protetores do cogumelo-do-sol e indicam forma correta de uso

DlNORAH ERENO

Carnudo e macio ao toque, o fungo Agaricus blazei, conhecido popularmente como cogumelo-do-sol, estimula o sistema imu-

nológico e funciona como poderoso co- adjuvante no tratamento da hepatite C, na medida em que melhora o apetite dos pacientes, que costumam emagrecer muito. Ele também diminui os efeitos colaterais dos medicamentos antivirais, como fadiga e dores musculares. Além disso, é uma excelente fonte de proteínas e vitaminas. Cada 100 gramas do cogu- melo desidratado contém 35 gramas de proteínas, além de ferro, fósforo, cálcio e vitaminas do complexo B. Essas foram algumas das conclusões a que chegou a equipe de pesquisadores coordenada pelo professor Augusto Ferreira da Eira, do Departamento de Produção Vegetal da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, após quatro anos e meio de estudos. Eles verificaram ain- da que muitos dos resultados divulgados pela mídia para o cogumelo-do-sol, co- mo a diminuição de tumores, só são obtidos com o extrato concentrado do fungo e não com comprimidos e chás.

O estudo das propriedades medici- nais do A. blazei e também do Lentinula edodes, cogumelo conhecido por shitake, foi um dos objetivos da pesquisa. A cres- cente procura dos produtores por téc- nicas que garantissem melhores resulta- dos no cultivo desses cogumelos também serviu de incentivo. Financiado pela FAPESP, o projeto já possui resultados agrícolas, principalmente do cogumelo- do-sol, que estão sendo repassados aos

Cogumelos-do-sol prontos para consumo, com o chapéu ainda fechado e aberto, à direita

produtores, concentrados nas cidades paulistas de Sorocaba, Piedade e no eixo oeste do estado (Boituva, Conchas, Lençóis Paulista, Marília e outras).

Consumo tradicional - O A. blazei, como outros cogumelos do mesmo gênero, pos- sui um formato que lembra um guarda- chuva. É originário das regiões serranas da Mata Atlântica do sul do Estado de São Paulo. Na década de 1970 foi leva- do para o Japão, onde suas propriedades medicinais começaram a ser estudadas. Já o shitake fez o caminho inverso. Foi trazido da Ásia por japoneses e chine- ses e aclimatado às condições brasilei- ras. Embora seja o segundo cogumelo mais consumido no mundo, com cerca de 14% do mercado, ele ainda está mui- to atrás do imbatível líder, Agaricus bis- porus, o famoso champignon originá- rio da França, com mais de 50%.

Existem no mundo cerca de 10 mil espécies conhecidas de cogumelos, se-

gundo alguns especialistas, das quais 700 são comestíveis, 50 tóxicas e de 50 a 200 usadas em práticas medicinais. Entre os asiáticos, a tradição de consu- mo medicinal de cogumelos vem de longa data, conforme atestam relatos datados de quase 2 mil anos. E são eles os maiores consumidores do produto brasileiro, segundo os dados do Minis- tério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Apenas no primei- ro trimestre deste ano, de 6.243 quilos (kg) de cogumelo-do-sol seco exporta- dos, no valor de US$ 557.901,00 (US$ 89,36, o quilo), a quase totalidade, ou 6.223 kg, foi destinada ao Japão. Em 2003, dos 20.072 kg vendidos, 19.368 seguiram para o mercado japonês.

Nos últimos anos, o A. blazei tor- nou-se bastante conhecido em função de relatos populares sobre os benefícios proporcionados pelo chá desse cogu- melo, que seria responsável pela recu- peração e melhora do quadro clínico de

138 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Page 125: Uma década de avanços desenha o futuro

I

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pacientes com tumores cancerígenos, quando administrado junto com os tratamentos convencionais, como a ra- dioterapia e a quimioterapia. "Entramos na pesquisa para ver o que é verdade e o que é mentira nos relatos propalados pela mídia", diz Augusto.

Participaram do projeto pes- quisadores ligados a várias áreas, como biotecnologia, imunologia, patologia, bio- química e agronomia, so-

mando, pelas contas do coordenador, cerca de 80 profissionais distribuídos em sete equipes. A primeira tarefa dos pes- quisadores envolvidos no projeto, ini- ciado em 1999, consistiu em verificar se o fungo que seria estudado era exatamen- te o A. blazei. Para isso, foram escolhidas linhagens dos estados de São Paulo, Pa- raná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A análise, feita por mi- cologistas (estudiosos de fungos) brasi- leiros com a participação de israelenses, resultou na proposição de que as linha- gens brasileiras sejam identificadas co- mo Agaricus blazei (Murr.) ss. Heinem ou como uma nova espécie, denominada Agaricus brasiliensis, porque elas são real- mente diferentes das linhagens encon- tradas na Flórida, Estados Unidos, e descritas pelo micologista norte-ameri- cano William Murrill em 1945.0 estudo que identifica a espécie brasileira, enca- beçado por Solomon Wasser, da Univer- sidade de Haifa, em Israel, foi publicado em 2003 no International Journal ofMe- dicinal Mushrooms, ou revista interna- cional de cogumelos medicinais, e aguar- da o parecer de outros micologistas.

Em paralelo a esse trabalho, os co- gumelos obtidos em várias situações de cultivo eram enviados para as demais equipes. O grupo responsável pela ca- racterização bioquímica, coordenado pelo professor Edson Rodrigues Filho, do Departamento de Química da Uni- versidade Federal de São Carlos (UFS- Car), analisou várias substâncias em extratos apolares (ácidos graxos, ou gordurosos, que estão presentes no co- gumelo) e também polares (solúveis em água, como proteínas e aminoácidos). "No caso dos extratos apolares do A. blazei, foram detectadas várias substân- cias, entre elas o ácido linoleico, descri- to na literatura científica como possui- dor de propriedades anticancerígenas em animais", diz Augusto.

Para saber em que fase do cogume- lo o ácido linoleico encontrava-se mais presente, foram analisadas várias linha- gens colhidas na fase jovem, caracteri- zada pelo fechamento da parte supe- rior do fungo, conhecida como chapéu, e na etapa em que ele já está plenamen- te aberto. Segundo Augusto, o mercado elege o cogumelo mais branquinho, fe- chado, para consumo. "Mas nem sem- pre o cogumelo jovem é o que contém mais princípios ativos", completa.

Proteção celular - Os testes, realizados por Ana Paula Terezan, aluna de mes- trado do Departamento de Química da UFSCar, apontaram que em algumas linhagens o ácido linoleico, por exem- plo, está mais concentrado na fase aberta, enquanto em outras isso ocorre na jovem. As variações estavam relacio- nadas à linhagem e ao material usado como cobertura, onde é feito o cultivo, que pode ser turfa, xisto ou a mistura de terra e carvão.

Outra equipe, coordenada por Lúcia Regina Ribeiro, do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu, avaliou a eficiência dos extratos aquosos do cogumelo-do- sol e do shitake em ratos contra tu- mores e outros danos celulares induzi- dos quimicamente. Esse estudo tinha como objetivo avaliar se as tão propa- ladas propriedades medicinais do co- gumelo ingerido sob a forma de sucos ou chás realmente tinham fundamen- to. Os experimentos demonstraram que os extratos aquosos protegem con- tra alterações genéticas das células. "Quando o cogumelo foi moído e in- corporado à ração, o benefício foi o

0 PROJETO

Cogumelos Comestíveis e Medicinais: Tecnologia de Cultivo, Caracterização Bioquímica e Efeitos Protetores dos Cogumelos Agaricus blazei Murrill (cogumelo-do-sol) e Lentinula edodes (Berk.) Pegler (shitake)

MODALIDADE

Projeto Temático

COORDENADOR AUGUSTO FERREIRA DA EIRA • de Botucatu

Unesp

INVESTIMENTO R$ 542.578,00 e US$ 261.003

não aparecimento de tumores", conta Augusto.

As pesquisas também trouxeram novas luzes sobre a forma de extração e a dosagem diária indicada de cogume- los. Alguns produtores recomendam consumir, diariamente, até 40 gramas de A. blazei desidratado, em infusão aquo- sa de 1 litro à temperatura de 100 °C e fervido durante uma a duas horas. Da- dos obtidos pela equipe coordenada por Ramon Kaneno, do Departamento de Microbiologia e Imunologia do Ins- tituto de Biociências da Unesp, contra- riam totalmente essas recomendações. "Os testes mostraram que extratos aquosos do cogumelo-do-sol obtidos por fervura diminuíram a sobrevida de camundongos portadores de tumores cancerígenos, em relação aos tratamen- tos com sucos, provavelmente pelos efeitos hepatotóxicos", relata Augusto. Em função desses resultados, os pes- quisadores estudam doses bem meno- res do que 40 gramas em forma de pó ou na forma de suco.

Segundo Augusto, quase tudo aqui- lo que se fala a respeito de diminuir a progressão de tumores, aumentar a so- brevida de doentes e até contribuir para a regressão tumoral não se comprovou com a ingestão de chás (infusão a quen- te). Esses efeitos podem ser observados apenas quando são utilizadas frações concentradas do cogumelo-do-sol, em que os princípios ativos encontram-se mais fortemente presentes. "Em frações solúveis em oxalato de amônia (extrato ATF), os pesquisadores da área de imu- nologia observaram que os tumores pa- ravam de proliferar. Eles não regrediam, mas estagnavam em determinado pon- to", relata. "Cerca de 80% dos extratos concentrados (ATF) são compostos por betaglucanas (polissacarídeos), que têm realmente efeito controlador do tumor. Ele ressalta que as propagandas dirigi- das para o consumidor utilizam resulta- dos científicos que foram obtidos com extratos concentrados, o que não corres- ponde aos produtos que estão à venda, em forma de comprimidos, por exem- plo. "Apesar de o cogumelo-do-sol ser conhecido há bastante tempo com esse nome, um empresário entrou com o pedido de registro da marca", conta Au- gusto. O caso lembra o do cupuaçu, fruto típico da Amazônia que teve o re- gistro cassado no Japão (veja Pesquisa Fapesp n° 98).

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Shitake cultivado no campo sobre toras de eucalipto

A ugusto lembra que o cogume- /% lo-do-sol tem efeito na neu-

^^^ tralização de radicais livres m M (moléculas ligadas a pro-

^L -A_ cesso celulares degenera- tivos) e funciona como auxiliar impor- tante em alguns tipos de tratamento, como a quimioterapia, porque elimina, em parte, os efeitos colaterais. Quanto à radioterapia, testes da equipe coordena- da pela professora Alzira Teruio Yida-Sa- take, do Departamento de Dermatologia e Radioterapia da Faculdade de Medici- na da Unesp de Botucatu, mostraram que os chás de algumas linhagens são modificadores das radiorrespostas. Se ingeridos antes da radiação, não inter- ferem no tratamento. Entretanto, o mes- mo chá administrado após a radiação torna o indivíduo resistente à radiote- rapia. O efeito radioprotetor também foi observado com os sucos administrados tanto antes como após a radiação. Por- tanto, o tratamento poderá não surtir o efeito desejado se o chá for tomado após a radiação e o suco antes ou depois.

Quando o projeto temático estava na etapa final, Milena Costa Menezes, aluna de mestrado orientada por Car- los Antônio Caramori, da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu, come- çou a avaliar a influência da suplemen- tação dietética com o cogumelo-do-sol

na evolução do estado nutricional e do tratamento da hepatite C em pacientes do ambulatório universitário. Durante seis meses, uma mistura de seis diferen- tes linhagens foi ministrada a cinco portadores da doença, em forma de pó. O estudo acompanhou os pacientes no início do tratamento antiviral, sem o uso do cogumelo, e depois da adminis- tração do novo preparado. O grupo controle recebeu o mesmo tratamento antiviral. Os resultados apontaram que o grupo experimental apresentou me- lhora em todos os efeitos colaterais re- latados - em comparação com o grupo controle - após o primeiro mês de tra- tamento medicamentoso.

Temperaturas alternadas - A outra par- te da pesquisa, que trata da tecnologia de cultivo, também avançou bastante. Antes de o projeto ter início, os produ- tores que cultivavam o cogumelo-do- sol empregavam a mesma tecnologia utilizada para produzir o champignon. No entanto, o cogumelo nativo do Bra- sil necessita da alternância de tempera- turas para frutificar (dez a 14 dias de calor, seguidos de três a cinco dias de frio e, novamente, o mesmo período de calor). Para chegar a essa conclusão, foram reproduzidas, em estufas adapta- das dentro de contêineres, as condições de cultivo de campo. Todas as variáveis foram controladas por um programa

de computador desenvolvido pelos pes- quisadores.

Para o A. blazei, além da escolha de linhagens selecionadas, é necessário es- colher o composto mais propício para o cultivo. Capim, bagaço de cana, fare- lo, estéreo e outros resíduos agroindus- triais são alguns dos substratos utili- zados para inocular a "semente" do fungo. Nessa fase, ele fica em um am- biente úmido, que lembra uma sala mo- fada, mas exala um cheiro peculiar de amêndoa doce. A reprodução se faz com pequenos filamentos finos (hifas) ex- traídos do chapéu do cogumelo. Inicial- mente, o A. blazei era cultivado apenas em canteiros desprotegidos no campo, por isso ficou conhecido como cogume- lo-do-sol. Mas, mesmo ao ar livre, ele é cultivado com uma cobertura de capim e não recebe luz. No caso do shitake, o cultivo é feito em toras de madeira, um método antigo e rústico, mas bastante utilizado por ser de baixo investimento.

Os resultados do projeto temático sugerem que ainda há muito campo de pesquisa para o shitake e o cogumelo- do-sol, embora várias respostas já te- nham sido encontradas. A próxima etapa, pelos planos do professor Augus- to, é direcionar o foco para os princípi- os ativos concentrados nos extratos e correlacionar a intensidade dos efeitos medicinais à época de colheita, substra- to e clima. •

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ITECNOLOGIA

PATENTES

Repasse do

conhecimento Projetos financiados pela Fapemig chegam à indústria e possibilitam retorno financeiro à instituição

SAMUEL ANTENOR

Duas vacinas para uso veterinário, uma contra carrapato e outra antiofídica, que protege o gado do veneno da cascavel, são os dois primeiros produtos com depósito

de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) licenciados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Quando chegarem ao mercado vão render royalties para os pesquisadores, para a fundação e para os institutos de pesquisa deten- tores das patentes. Um terceiro produto com pa- tente depositada, que está em negociação, pode seguir o mesmo caminho das vacinas. É um dis- positivo instalado no interior do difusor de en- trada dos catalisadores destinado a melhorar o desempenho no sistema de descarga dos gases dos motores automotivos e, como conseqüência, reduzir a poluição. As três patentes fazem parte de um grupo de 11 depositadas.

Para organizar e difundir as patentes, a fun- dação criou o Escritório de Gestão Tecnológica (EGT), que patenteia as inovações com potencial de interesse comercial. A experiência segue o mes- mo caminho da FAPESP, que criou o Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec), em maio de 2000, para proteger a pro- priedade intelectual e licenciar os inventos resul- tantes de pesquisas financiadas pela fundação. A FAPESP tem 75 patentes depositadas no INPI.

"Procuramos transferir a tecnologia quando constatamos suas possibilidades de benefício à sociedade e ao crescimento econômico. Por isso buscamos o interesse do mercado em cada tipo de tecnologia, em seu aprimoramento e na im- plementação da escala industrial", diz Naftale Katz, diretor científico da Fapemig até o mês de maio, quando se transferiu para a Fundação Os- waldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro.

A vacina para o controle de carrapatos em bo- vinos foi o primeiro produto negociado com uma empresa, no caso o laboratório mineiro Hertape. Desenvolvida na Universidade Federal de Viçosa (UFV), ela foi composta com 45 dos 650 aminoá- cidos que formam a proteína Bm86 do intestino do Boophilus microplus, espécie comum de carra- pato que ataca os rebanhos bovinos no Brasil. A coordenação do estudo foi do pesquisador Joa- quin Hernán Patarroyo, do Departamento de Ve- terinária do Instituto de Biotecnologia Aplicada à Agropecuária (Bioagro), da UFV, em cooperação com a Fundação de Imunologia da Colômbia. A vacina é a primeira do tipo sintético, feita inteira- mente em laboratório e sem a necessidade de san- gue de animais para o preparo, desenvolvida na América Latina que vai chegar ao mercado. Ela também foi patenteada na Austrália, no México, nos Estados Unidos e na Comunidade Européia.

Em aplicações subcutâneas no gado, a vacina estimula a produção de anticorpos no sangue do

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Testes da vacina sintética que controla o carrapato do gado brasileiro e não apresenta efeito tóxico

animal contra a proteína produzida pelo intestino do carrapato. Ao ingerir o sangue, esses ácaros (os carrapatos são classificados na classe Arachnida, a mesma de aranhas e de escorpiões, na subclasse Acari) não conseguem pro- cessá-lo e ficam debilitados, deixando de colocar ovos e de se reproduzir. "A vacina não apresenta efeito tóxico para o gado nem se acumula nos tecidos do animal. Ela age apenas sobre os carra- patos. Testes efetuados com animais isolados em estábulos demonstraram eficiência de 85%", afirma Patarroyo. Testes em campo, feitos no Centro Na- cional de Pesquisa em Gado de Leite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária (Embrapa), no município de Coronel Pacheco (MG), alcançaram 80% de eficácia.

Financiada pela Fapemig, a pesqui- sa foi iniciada por Patarroyo há dez anos, com o estudo de parasitas que atacam os rebanhos no pasto, causando perda de peso, diminuição na produ- ção de leite e de carne, além da trans- missão de doenças que podem levar à morte dos animais. De acordo com o pesquisador, dados atualizados pelo professor Laerte Grissi, da Universi-

dade Federal Rural do Rio de Janeiro, apontam prejuízos anuais na criação de gado da ordem de R$ 2 bilhões, provo- cados pela ação dos carrapatos.

Inédita no mundo e barata, se- gundo os pesquisadores, a vaci- na foi repassada ao laboratório Hertape por meio de uma oferta pública divulgada em um edital,

a fim de garantir igualdade de condi- ções aos interessados que apresentaram propostas para o seu desenvolvimento. O ganhador firmou com a Fapemig e a UFV um contrato de 20 anos. Durante esse período, a previsão de retorno fi- nanceiro para a fundação é de 6% (di- vididos com os pesquisadores e a UFV) sobre o valor das vendas líquidas do produto. De acordo com Caubi Carva- lho, diretor comercial e sócio do labo- ratório, o interesse na produção da va- cina em escala industrial deve-se, em grande parte, ao fato de o Brasil expor- tar carne bovina para cerca de 120 paí- ses, figurando desde 2003 como o maior exportador mundial do produto. "O la- boratório Hertape é um dos maiores fabricantes de produtos veterinários na América Latina. Vamos desenvolver e

comercializar a vacina em grande esca- la, com previsão de bons negócios, já que se trata de um salto tecnológico no controle desse tipo de praga, cuja infes- tação é muito grande, dentro e fora do país", afirma.

A previsão de produção é de 30 mi- lhões de doses já no primeiro ano. Ini- ciadas as vacinações em massa do reba- nho bovino brasileiro, o diretor calcula ser possível diminuir acentuadamente a população de carrapato dos pastos em cinco a seis anos. O laboratório bus- ca agora fornecedores internacionais de peptídeos (combinações sintéticas dos aminoácidos isolados em laboratório), ainda não produzidos no Brasil. Carva- lho também tem feito palestras para criadores em Minas Gerais, São Paulo e Goiás, onde serão realizados novos tes- tes em campo, em larga escala. Até agosto, serão selecionadas as fazendas para os testes, em um ciclo que com- preenderá dois verões e dois invernos. Somente então a vacina será lançada no mercado. "Já fizemos seu registro no Ministério da Agricultura. Vamos aten- der primeiro os criadores brasileiros e, depois, colocar o produto na Colôm- bia, Venezuela e África do Sul."

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Equipamento instalado no catalisador melhora desempenho do sistema de descarga de gases dos automóveis

O segundo produto pa- tenteado pela Fapemig é a vacina antiofídica para uso veterinário que estimula a produção de

anticorpos contra o veneno da casca- vel (Crotalus durissus terrificus), um dos mais letais. Ela foi desenvolvida pela pesquisadora Thaís Viana de Frei- tas, da Fundação Ezequiel Dias (Fu- ned), vinculada à Secretaria Estadual da Saúde de Minas Gerais. Após reali- zar pesquisas no Centro de Controle de Venenos e Antivenenos da Organização Mundial da Saúde, em Liverpool, In- glaterra, em 1986, a pesquisadora deu início a estudos para a fabricação de uma vacina antiofídica a partir do vene- no dessa serpente comum no Brasil. O desenvolvimento partiu de lipossomas - membranas esféricas produzidas em laboratório - usados como veículos en- capsuladores dos princípios ativos do veneno. Esses lipossomas estimulam a produção de anticorpos e possuem com- posição semelhante à membrana celular da serpente, servindo para levar subs- tâncias terapêuticas no seu interior.

A composição inédita da vacina re- vela um caráter biodegradável e não-tó-

xico, capaz de induzir à imunidade celu- lar. "Estudamos a encapsulação dos ve- nenos de algumas serpentes brasileiras associados a imunoestimulantes, para a produção de anticorpos", explica a pes- quisadora. Esses anticorpos protegem os animais de grandes doses de veneno, até oito vezes o considerado letal, de acordo com testes feitos em laboratório. "A vaci- na é uma ação preventiva porque, por ano, cerca de 1 milhão de cabeças de gado são perdidas no Brasil em decor- rência da picada de serpentes e, nesses casos, a soroterapia não é utilizada de- vido ao alto custo do tratamento", con- ta Thaís. O processo de patenteamento é visto por ela como garantia da proteção do conhecimento para a inovação tec- nológica, assim como retorno financeiro para ser aplicado em novas pesquisas.

A patente da vacina antiofídica foi depositada pela Fapemig em 2002 e para produzi-la em nível industrial foi esco- lhida a empresa Labovet Produtos Vete- rinários, de Feira de Santana, Bahia, que ainda deverá realizar os testes de campo antes de torná-la disponível no mercado.

A aplicação comercial da vacina an- tiofídica é vista com bons olhos por

Fernando Falcão, diretor do laborató- rio. Para ele, com um rebanho bovino em torno de 175 milhões de cabeças, o Brasil já é, por si só, um imenso merca- do. "Pretendemos cobrir até 50% desse total nos primeiros anos da vacina no mercado, com uma produção anual en- tre 80 milhões e 100 milhões de doses", diz. Para tanto, testes serão realizados para avaliar a tecnologia, além de estu- dos técnicos e econômicos, nos próxi- mos seis meses. Após esse período e confirmadas as potencialidades previs- tas, o laboratório fará o registro no Mi- nistério da Agricultura, com vistas também à exportação do produto para Colômbia, Peru, Equador e Venezuela, países da região amazônica e que pos- suem grande incidência de cascavéis.

Verificação rigorosa - A garantia dos resultados obtidos com a produção em nível industrial é um dos alvos da atuação do EGT da Fapemig. No con- trato fechado com as empresas, há precondições que estabelecem como será gerenciado o processo, fixando, por exemplo, desde quanto cada parte envolvida receberá em royalties até como se dará o relacionamento entre

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Vacina antiofídica protege o gado contra o veneno da cascavel. Tratamento mais barato que a soroterapia

elas. "Da avaliação à transferência de tecnologia, tudo é feito com recursos da Fapemig", conta Katz.

Foi seguindo a linha de registrar pa- tentes que Marcello Augusto Faraco de Medeiros e Eduardo Murilo Rosas Arantes, engenheiros mecânicos e pes- quisadores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Belo Horizonte, Mi- nas Gerais, descobriram que os catali- sadores automotivos, constituídos por peças de cerâmica em forma de colméia e metal e utilizados para reduzir as con- centrações dos gases tóxicos que saem dos motores (monóxido de carbono, hidrocarbonetos e óxidos de nitrogê- nio), poderiam ter seu desempenho melhorado com a aplicação de telas no interior do difusor de entrada do equi- pamento, para otimizar esse escoamen- to. Após pesquisa de patentes interna- cionais, descobriram que não havia nenhuma notícia relacionada a telas usa- das em catalisadores.

Sob orientação de Medeiros, que hoje leciona Aerodinâmica no Depar- tamento de Engenharia Aeronáutica da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos, Arantes desenvolveu o arte- fato a partir da tecnologia utilizada na

indústria aeronáutica, nos chamados túneis de vento, que, como os catalisa- dores, possuem expansão brusca da área de escoamento. "Os gases emitidos pelos motores de automóveis não pas- sam pelo catalisador de maneira uni- forme, concentrando-se no centro da peça", explica.

Instalado na entrada do catalisa- dor, o equipamento melhora sua eficiência ao fazer com que os ga- ses passem uniformemente em todas as partes da colméia. "Além

disso, o dispositivo pode reduzir o ta- manho da peça em cerca de 30% e di- minuir seus custos de fabricação. Ele pode ser adaptado a qualquer veículo automotor", diz o pesquisador. Cada tipo de catalisador necessita de uma ou mais telas específicas, mas o componente pode ser feito tanto com material metá- lico como não-metálico, desde que resis- tente ao calor. Outra vantagem é a me- lhora no rendimento do motor, com conseqüente economia de combustível. Ainda sem nome comercial, o disposi- tivo deve chamar a atenção das empre- sas de autopeças e montadoras do setor automobilístico.

Testado nos laboratórios de Me- cânica de Fluidos da PUC mineira, o dis- positivo mostrou-se bastante apro- priado ao uso comercial, inclusive com estudos que apontam para um baixíssi- mo custo de fabricação. "Os dispositi- vos utilizados atualmente são pesados, caros e absorvem muito calor. Já paten- teamos o distribuidor de fluxo por telas e iniciamos o processo de seleção das em- presas para transferir a tecnologia para a indústria", afirma. A escolha deve ser anunciada em dois meses.

A Fapemig também solicita o de- pósito de patentes que não tenham sido financiadas por ela durante as pes- quisas. "Além dos pesquisadores vin- culados a universidades e centros de pesquisa, os inventores independentes também podem contar com o apoio do EGT. Atualmente existem duas pa- tentes oriundas de projetos particula- res sendo requisitadas", diz Katz. Ele tem a expectativa de que esses núme- ros aumentem, sobretudo nas áreas de biotecnologia, agropecuária, engenha- ria mecânica, medicina tropical e pa- rasitologia, em decorrência do próprio perfil do estado e das necessidades de sua economia. •

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I TECNOLOGIA

ENGENHARIA NAVAL

Profunda estabilidade Pesquisadores da USP desenvolvem projeto inédito de plataforma para extração de petróleo em alto-mar

EDUARDO GERAQUE

Em alto-mar, os movimentos causados pela ação das ondas podem se tornar um dos gran- des inimigos das plataformas que extraem petróleo a milha-

res de metros de profundidade, em águas profundas e ultraprofundas. É possível ve- rificar esse fenômeno na bacia de Cam- pos, o maior campo petrolífero brasileiro, onde as ondas do oceano Atlântico são su- ficientes para balançar em demasia as pla- taformas petrolíferas, por maiores que sejam. Esse balanço é desagradável tanto para a estabilidade do sistema como para a segurança dos trabalhadores que vivem em alto-mar. As peculiaridades oceanográ- ficas das águas do litoral brasileiro, onde estão alguns dos maiores campos petrolí- feros em grandes profundidades do mun- do, levaram os pesquisadores do Departa- mento de Engenharia Oceânica e Naval da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP) a um projeto de pla- taforma inovador. O novo e surpreenden- te desenho para sustentar uma planta de produção de petróleo é formado por uma única coluna, e não por várias, como nas plataformas semi-submersíveis.

"Todas as simulações feitas no inédito sistema monocoluna mostraram que os ganhos com movimento, estabilidade e se- gurança são grandes", afirma o engenheiro naval Daniel Cueva, da equipe do profes- sor Kazuo Nishimoto, da Poli, coordena- dor da pesquisa realizada em parceria com

a Petrobras no âmbito do Centro de Exce- lência em Engenharia Naval e Oceânica, formado pela USP, Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Centro de Pes- quisa e Desenvolvimento da Petrobras (Cenpes). Segundo o pesquisador, o proje- to de construir a plataforma com uma co- luna única já resultou em um pedido de patente, por parte da Petrobras, nos Esta- dos Unidos. Em dois anos, a empresa in- vestiu R$ 1,2 milhão no projeto.

O desenvolvimento tecnológico con- siste na criação de uma plataforma do tipo flutuante, sem compartimentos para o ar- mazenamento de óleo. Ela é uma opção para as convencionais plataformas semi- submersíveis, bastante utilizadas no mun- do todo. Dentro da categoria das unidades flutuantes, a Petrobras conta ainda com os navios FPSO (floating, production, storage and offloading ou flutuação, produção, ar- mazenamento e descarregamento). Em outra família estão as plataformas chama- das de jaqueta, fixadas diretamente no fun- do oceânico.

"A MonoBR (como está sendo chama- do o novo projeto de plataforma) vai na direção dos objetivos da Petrobras de in- vestir em alternativas consistentes para cascos de unidades flutuantes de produ- ção de grande porte, que tenham como premissa maior segurança e melhores ca- racterísticas operacionais", explica Isaías Quaresma Masetti, engenheiro do Cenpes

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PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 147

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responsável pelo projeto. Segundo a equipe técnica, a plataforma monoco- luna já passou por todos os rigorosos vestibulares de viabilidade técnica e econômica aos quais um projeto como esse é submetido no âmbito interno da Petrobras. Um dos problemas funda- mentais que a MonoBR conseguiu re- solver foi diminuir as amplitudes dos movimentos da unidade devido à ação das ondas, o que propicia maior flexibi- lidade operacional ao sistema.

Após todas as avalia- ções realizadas durante o período de desenvolvi- mento, o novo conceito foi validado e agora está na lista de alternativas dis- poníveis. Quando nova li- citação for aberta, e as es- colhas das unidades forem determinadas com base nas necessidades de segu- rança, de operação e de custos, a monocoluna já pode ser uma das escolhi- das. O vencedor da licita- ção não tem o poder de vetar ou alterar a escolha tecnológica prévia feita pela empresa. "Explorar petróleo em 3 mil metros de profundidade de água é, em todos os aspectos, uma atividade inovadora e requer muita ousadia técnica, além de responsabilidade", afirma Masetti.

A linha de raciocínio científico I^k do projeto da monocoluna

^^A partiu de discussões que en- ã M volveram conceitos bási-

jL. Ak cos de engenharia naval, alinhados a algumas adaptações de es- truturas utilizadas com freqüência pela indústria do petróleo mundial, mas em uma função diferente. Segundo os en- genheiros envolvidos com o projeto, a localização desses campos no oceano Atlântico, a mais de 1,5 mil metros de profundidade, é uma das grandes difi- culdades para a prospecção de petróleo. O impacto das oscilações não é sentido apenas na altura da superfície, mas tam- bém nos dutos que carregam o óleo da cabeça do poço para a unidade. "Hoje, para grandes profundidades, a utiliza- ção de dutos rígidos de aço, chamados de steel catenary risers (SCRs), passou a ser um dos grandes objetivos", explica

Marcos Cueva, primo de Daniel e tam- bém aluno de doutorado de Nishimo- to. Segundo o engenheiro, os tubos fle- xíveis, chamados de risers flexíveis, estão sendo preteridos devido a algumas limitações tecnológicas para profundi- dades superiores a 1,5 mil metros e por seu custo superior quando comparados com os rígidos.

"O grande problema dos dutos rígi- dos é que eles ficam sujeitos não só aos efeitos da correnteza do fundo do mar,

Monocoluna mantém a plataforma estável

mas também às oscilações da unidade flutuante. Se a plataforma lá em cima também estiver oscilando muito, co- meçamos a ter problemas relacionados à fadiga dos dutos, fato que não apare- ce nos flexíveis devido à natureza dos materiais usados", explica Daniel Cue- va. Para permitir que o sistema se man- tivesse dentro dos níveis aceitáveis de movimento, os projetistas resolveram adaptar um sistema conhecido dos projetistas do setor, mas que nunca ha- via sido usado para essa finalidade. "O 'moonpool', uma espécie de abertura instalada no casco da plataforma, é bas- tante utilizado em embarcações para permitir o acesso de equipamentos de perfuração ao fundo do mar", explica Marcos. "Resolvemos usá-lo como for- ma de diminuir a amplitude dos movi- mentos verticais."

O trabalho de pesquisa e simulação de projetos como o dessa plataforma tornou-se mais próximo da realidade desde que o chamado tanque de pro-

vas numéricas (TPN) foi inaugurado na USP {veja Pesquisa FAPESP n° 73). Além dos tanques físicos, como é o caso do que existe no IPT e o da Coordena- ção dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), no Rio de Janeiro, um conjunto de 120 computadores e uma tela de projeção tridimensional operam em sintonia fina para oferecer aos cientistas condições bastante próximas da realidade. A si- mulação feita no TPN permite aos en-

genheiros fazer observa- ções de todos os ângulos da plataforma. E, inclusi- ve, descer a mais de 1,5 mil metros de profundidade para analisar se os SCRs estão, ou não, oscilando mais que o permitido. "A fadiga nesses materiais é sempre uma preocupa- ção", informa Daniel. Com base nessa e em outras ferramentas computacio- nais exclusivas, desenvol- vidas em função das ne- cessidades do projeto de desenvolvimento da pla- taforma, os cientistas con- seguem afirmar que a Mo- noBR, por exemplo, tem níveis elevados de segu- rança. "Fizemos testes em que até um quarto do vo-

lume da unidade foi alagado, e a plata- forma não afundou", afirma Marcos.

A MonoBR não nasceu apenas a partir de testes virtuais. O protótipo já entrou no tanque paulista do IPT e neste mês de junho vai estrear no Rio de Janeiro. Serão quatro semanas de tes- tes em que a MonoBR será observada no tanque da Coppe, que é um dos maiores em operação no mundo e ideal para o estudo de plataformas. Ele tem 40 metros de comprimento por 30 metros de largura e 15 metros de pro- fundidade. "Se usarmos um protótipo na escala de 1/100, por exemplo, va- mos conseguir observá-lo em uma profundidade de 1,5 mil metros", expli- ca Daniel.

O processo de desenvolvimento, se- gundo os pesquisadores, tem grande importância acadêmica pela maneira como evoluiu dentro da universidade, integrado com as empresas de projetos de plataformas. "Nós fizemos algo que pode ser chamado de projeto concei-

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Plataforma inovadora

Heliponto

Alojamento -

Tanques de lastro Abertura

de"Moonpool"

A abertura instalada no casco

da plataforma, chamada de "moonpool",

foi usada para reduzir movimentos

produzidos pelas ondas

Tanques

tual avançado", explica Daniel. Nor- malmente, projetos acadêmicos como esse ficam apenas na fase conceituai. "Eles não entram na fase do chamado projeto básico e muito menos nos deta- lhamentos, que só ocorrem próximo ao processo de licitação."

No caso da plataforma projetada para a Petrobras, os números que cons- tam dos estudos realizados na USP dão a dimensão exata dos desafios da extra- ção de petróleo das profundezas do oceano. "O nosso projeto prevê a ex- ploração de petróleo a 1,8 mil metros de profundidade. O peso da MonoBR previsto é de 135 mil toneladas e a lar-

gura do casco, por exemplo, é de 95 me- tros", diz Daniel. O preço estimado da plataforma monocoluna é de US$ 500 milhões a US$ 700 milhões, valor bem mais baixo que o das comerciais.

Várias pequenas inovações tecnoló- gicas estão previstas no desenho final. "Essa plataforma tem, por exemplo, o que podemos chamar de simetrias geo- métricas. Isso facilita muito a constru- ção e as inspeções de pontos críticos da estrutura", relata Marcos. Os pesquisa- dores explicam que as dimensões de uma plataforma desse porte não estão relacionadas apenas com as grandes profundidades. Por causa das caracte-

rísticas do petróleo brasilei- ro, de alta viscosidade, a planta de produção precisa aumentar para dar espaço aos robustos equipamentos de extração e de produção. O convés, nesse caso, tem sempre que suportar altas cargas.

Do ponto de vista con- ceituai, as condições hidro- dinâmicas (movimento das ondas e das correntes marí- timas) do mar brasileiro po- dem ser consideradas as grandes responsáveis pelo

desenvolvimento da plataforma de co- luna única capaz de suportar essas con- dições com mais flexibilidade.

Os pesquisadores brasileiros, por- tanto, escolheram um caminho único devido às diferenças ambientais de ca- da região. No mar do Norte, na Europa, por exemplo, as condições de ondas, correnteza, vento e profundidade são diferentes. Segundo Daniel, a discus- são sobre uma coluna única é recente. "Tudo começou no início dos anos 1990. Japoneses, noruegueses e norte- americanos também estão pensando nisso, mas o único projeto realmente adaptado para o Brasil é o nosso." •

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HUMANIDADES

HISTORIA

Pintor holandês ganha enfim seu espaço junto aos mestres flamengos

LUCRECIA ZAPPI

Mesmo que Frans Post (cerca de 1612-1680) tenha de ter espera- do centenas de anos para ser reconheci-

do como um grande mestre holandês, seu século de ouro parece ter chegado.

Há exatos 400 anos do nascimen- to do conde Johan Maurits van Nas- sau-Siegen, o governador-geral que trouxe o pintor em sua comitiva para a colônia holandesa do Recife entre 1637-1644, Post volta a ser mundial- mente discutido e reavaliado. Cada vez mais próximo dos pintores de primeira linha, escapa aos poucos do contexto neutro histórico de pintor- viajante de quadros de qualidade ir- regular. Muito se deve a recentes pes- quisas brasileiras.

Para setembro de 2005, Pedro Corrêa do Lago, presidente da Biblio- teca Nacional e ex-representante bra- sileiro da casa de leilões de arte So-

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Claustro franciscano de Igaraçu (1655), acima à esq.; Cidade do interior (1660), acima; Olinda (sem data), ao lado

theby's, cargo que ocupou por 18 anos, e sua mulher, Bia Fonseca, pre- param uma mostra no Museu do Louvre com sete telas da primeira fase de Post, período em que morou no Brasil e produziu 18 telas, encomen- dadas por Nassau.

No ano seguinte, em 2006, é a vez da Alemanha e da Holanda. O Haus der Kunst, em Munique, or- ganiza uma grande ex-

posição com cerca de 50 quadros do mestre. A curadoria é de León Krempel e, no museu Frans Hals, em Haarlem, na Holanda, é de Pieter Biesboer, para onde segue a mostra no mesmo ano.

Na exposição do Louvre deve ser lançado um catalogue raisonné, com cerca de 160 quadros e 40 desenhos. A princípio, serão duas edições diferen- tes, uma em português e outra em in- glês. "Há oito anos estamos pesquisan- do toda a obra de Post, fazendo um levantamento completo. As telas que podem ser falsas estão sendo analisadas por um comitê internacional que cria- mos", diz Corrêa do Lago.

No comitê, estão Corrêa do Lago, Bia Fonseca, Frits Du Pare, diretor do museu Mauritshuis, em Haia, um dos grandes especialistas do século 17 holandês. Da casa de leilões Sothebys participam o di- retor mundial George Watchner e o di- retor na Inglaterra George Gordon. Am-

bos são especialistas nos "mestres anti- gos". Entre as proezas de Gordon, está a descoberta da tela do mestre flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640), O massa- cre dos inocentes, vendida pela Sothebys, em 2002, por quase US$ 80 milhões.

As telas de Post chegam a custar cer- ca de US$ 200 mil e têm se destacado de uns 15 anos para cá. "Isso porque o es- tudo da obra dele, até então, não tinha distinguido suas quatro diferentes fases", diz Corrêa do Lago. "Sua obra vista como um conjunto só o transforma num pintor irregular."

Repórter - No período em que ficou no Brasil, entre 1637 e 1644, Post repro- duziu fielmente tudo o que via, como

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Page 139: Uma década de avanços desenha o futuro

Detalhe deVista de Itamaracá (1637), ao lado; Cachoeira de Paulo Afonso (1647), acima

um pintor-repórter. Ao chegar ao Bra- sil, aos 25 anos, o primeiro grande con- traste notado por ele deve ter sido a luz tropical. E os temas. O olhar de Post incorporou à nova informação a téc- nica, provavelmente influenciado por paisagistas holandeses de prestígio como Salomon van Ruysdael (c.1602- 1670) e Pieter Molijn (1595-1661), en- tre outros.

"Apesar de Post ter construído toda sua carreira pintando paisagens brasi- leiras, é importante situá-lo na tradição da paisagem idílica. Ele foi influencia- do pela obra de Cornelis Vroom (1591- 1661), que talvez tenha sido seu mestre. O seu tema 'Brasil' é único, mas a inter- pretação está baseada na tradição da

paisagem holandesa-arcádica de Vroom", diz o curador holandês Biesboer.

Segundo ele, as primeiras pin- turas brasileiras são bastan- te documentais e têm uma aproximação muito pura da realidade, mas, nas últimas

telas pintadas no Recife, é notório como Post segue as convenções da paisagem idílica de Vroom, provavel- mente porque isso era muito aprecia- do no círculo de seus clientes.

"Para o Haus der Kunst, a obra de Post tem, sem dúvida, uma importân- cia atual. Ela nos fala diretamente atra- vés de uma utopia preservada com exa- tidão documentária versus uma fantasia

criativa, que são os dois pólos através dos quais a arte se desenvolve até hoje", diz Krempel, que afirma que seus qua- dros revelam um verdadeiro cosmos.

Mas Post não andava desacompa- nhado nesse novo universo. Na comi- tiva de Nassau figuravam, entre cien- tistas e artistas, outros dois pintores dispostos a estudar e a documentar a paisagem brasileira: Albert Eckhout (1610-1666) e Georg Marcgraf (1610- 1644). Eckhout, pintor natural da pro- víncia de Groningen, teve provavel- mente o primeiro contato com a pintura através de seu tio, Gheert Ro- eleffs, e, no Brasil, pintou diversos quadros de plantas, frutas e raças hu- manas.

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"Com a exposição atual da obra de Albert Eckhout, o Mauritshuis o apre- senta como um grande artista. Nas na- turezas-mortas e em alguns bustos de um rei negro isso funciona porque ele pode se concentrar em aspectos artís- ticos e não é obrigado a pintar de uma maneira documental. Eckhout fez o melhor que pôde, nem sempre com sucesso, enquanto Post, com facilidade aparente, deixa fluir de seu pincel do- ces paisagens brasileiras", diz Biesboer.

Filho do pintor de vitrais Jan Jaszoon Post (s.d.-1614), Frans Janszoon Post, nascido em Haarlem, foi provavelmen- te apresentado a Maurits van Nassau através de seu irmão, o arquiteto e pin- tor Pieter Jasz Post (1608-1669). Há poucas evidências, segundo Corrêa do Lago, de que Pieter tenha alguma vez vindo ao Brasil. Nomeado a partir de Pieter, Frans teria sido encarregado de documentar o Brasil, desde a topogra- fia local, a arquitetura militar e civil até cenas de batalha navais e terrestres.

Em telas como Ilha de Itama- racá (1637), Paisagem do Porto Calvo (1639) ou Forte Hendrik (1640) nota-se cla- ramente algumas caracte-

rísticas que marcam a produção de Post: linhas rasas de horizonte com grandes céus que se abrem altos para uma vasta área, em contraposição ao primeiro plano, com vegetação ou mo- tivos meticulosamente pintados.

Há nessas pinturas um certo colo- rido homogêneo de tons rebaixados mais próximo à pintura holandesa do que à cor da paisagem local. Tais com- posições em perspectiva baixa eram comuns a um tipo de pintura panorâ- mica, espacial, desenvolvida na época pelos holandeses, em que a presença do céu expansivo é fundamental. A es- sas telas, Post acrescenta a paisagem do novo mundo. Dessa reunião surgem pinturas informativas da iconografia social presente. Ao mesmo tempo, as paisagens são serenas, reservadas dian- te da exuberância tropical.

Característico da obra de Post era escurecer o primeiro plano e iluminar a região mais distante, da qual resgata uma luminosidade atmosférica difusa. Utilizou simultaneamente diversas técnicas de obtenção da luz na pintu- ra. Entre eles, o claro-escuro, efeito obtido pelo contraste entre a lumino-

Engenho (1661), acima; Carro de boi (1638), na página ao lado

sidade das roupas brancas e o escuro dos escravos negros, sempre a caminho, transportando carregamentos brancos sobre as cabeças.

As 18 pinturas feitas no Brasil vol- taram com Nassau para a Holanda e, posteriormente, em busca de aliança com o rei da França, Luís França, fo- ram expostas para a corte em Versa- lhes em 1679. Acabaram ficando na França, distribuídas em algumas cole- ções reais. Hoje, no Louvre só há qua- tro telas.

"Mais três foram encontradas, res- pectivamente, em 1880, em 1930 e em 1990. Quer dizer, se a cada 50,60 anos uma pintura dessas é encontrada, te- mos um bom prazo para reunir as 11 que faltam", ri Corrêa do Lago, que de- pois observa, com ar grave, que as que faltam "podem ter sido destruídas em catástrofes, em incêndios e nem todas devem estar assinadas".

"Correio" - Um fator curioso que pode dificultar ainda mais a captura

desses 11 quadros restantes da primei- ra fase é que num dos quatro perten- centes ao Louvre, Post assina "Cor- reio". "Ele se divertia traduzindo seu sobrenome para o português. Agora, imagine alguém, no interior da Fran- ça, com um quadro empoeirado no porão e ler 'F. Correio'. Ele não vai achar esse nome nunca em nenhum guia ou dicionário de arte", diz Corrêa do Lago.

De volta do Brasil para os Países Baixos, o artista holandês carrega con- sigo diversos cadernos de esboços fei- tos no Brasil. Mesmo após sua volta à Europa, Post não deixa de pintar vistas tropicais, especializando-se em temas brasileiros.

Segundo Krempel, a "pintura espe- cializada" foi uma característica da pintura holandesa do século 17. Essa necessidade de especialização acabou incentivando também o exotismo de Frans Post e de outros pintores holan- deses. Como exemplo, Krempel cita a escola dos "Bamboccianti" (pintores

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holandeses que retratavam a vida diá- ria na Itália) ou Allaert van Everdin- gen, um holandês que trabalhou em Haarlem, como Post, e se especializou na paisagem escandinava.

Durante os dez primeiros anos na volta para a Ho- landa, de acordo com Corrêa do Lago, Post fornece quadros muito

bonitos, de qualidade excepcional, re- tirados dos esboços: "Ele basicamente 'coloriza' os desenhos e faz 'caprichos paisagísticos', ou seja, um rearranjo no gosto do pintor onde todos os elemen- tos são verdadeiros, mas dispostos iso- ladamente. Essa fórmula da segunda fase, de 'não mentir isoladamente mas mentir no conjunto', se transforma no auge de sua carreira."

No mesmo período, seus desenhos servem também como base para as pranchas gravadas publicadas no vo- lume Rerum per octennium in Brasília, de Gaspar Barleaus (1584-1648). Des-

liga-se de Nassau, mas continua pin- tando paisagens tropicais para as quais encontra mercado. Esta produção rea- lizada distante do motivo, a partir dos estudos realizados na América, toma caminhos diversos.

Até cerca de 1659, as paisagens to- pográficas têm precisão documental. Contudo, é comum encontrar nas ce- nas pintadas na Europa uma certa per- da da serenidade. Post dá nova ênfase para a paisagem tropical ao povoar o primeiro plano do quadro com animais selvagens. Surgem lagartos, serpentes, tatus ou cobras devorando coelhos. A luz difusa também é substituída, aos poucos, pelo contraste de cores mais intensas.

De 1660 a 1669, fase de maturida- de de Post, ou a terceira fase, nota-se um crescente domínio da técnica e dos temas brasileiros, tirando provei- to ao máximo dos elementos exóticos. As pinturas já não são mais espontâ- neas e a preocupação documental dei- xa de existir.

Post demonstra sua grande habili- dade de miniaturista e refaz as compo- sições, "enriquecendo" a paisagem num rearranjo das formas vegetais, animais, em diálogo com elementos topográfi- cos e arquitetônicos imaginários.

A tinta fica mais encorpada e a di- mensão atmosférica é respaldada sobre um fundo cromático em tons de verdes e azuis, na tradição da pintura flamen- ga. Nessa fase de auge comercial, o pin- tor não arrisca em novas composições. São sempre os mesmos temas, "revisita- dos": paisagens com engenhos, com ca- sas ou vistas de Olinda.

Nos últimos anos de sua vida, Frans Post tem uma existência sombria, en- tregue ao alcoolismo e com pouca ca- pacidade para a criação. Seu êxito artís- tico como o maior pintor da paisagem brasileira no século 17, no entanto, fi- cou marcado através da homenagem do amigo Frans Hals (c.1581-1666) que, em meados de 1655, fez seu retra- to. Post morreu provavelmente aos 68 anos, 25 anos depois. •

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Page 142: Uma década de avanços desenha o futuro

I HUMANIDADES

ARTES PLÁSTICAS

RICARDO ZORZETTO

Cooperação entre institutos revelará aos Estados Unidos textos sobre as vanguardas do século 20

Com os olhos voltados para a guerra no Oriente Médio, o preço do petróleo e a oscilação dos mercados internacionais, os Estados Unidos provavelmente não perceberam. Mas está em curso uma

ocupação silenciosa no país, que deve, no mínimo, ampliar o conhecimento dos norte-americanos so- bre a cultura das nações vizinhas de continente. Sem armas nem sangue, a produção artística moderna e contemporânea de origem latino-americana chega para revelar sua riqueza de cores, formas e conteú- dos. Em uma iniciativa pioneira, o Museu de Belas- Artes de Houston (MFAH, na sigla em inglês), Texas, uniu-se a instituições de nove países da América Latina com o objetivo de suprir a carência de informação sobre as artes plásticas de origem latina para um público que tem fami liaridade maior com a arte euro- péia, asiática e africana.

Firmada no primeiro se- mestre deste ano, essa parce- ria prevê o cumprimento de ao menos duas metas. A primeira é recuperar os principais documentos que apresentam, interpretam e analisam os movi- mentos de vanguarda

latino-americanos nas artes plásticas - alguns deles fora de circulação nos seus próprios países de ori- gem, como o trabalho do arquiteto brasileiro Luís Saias sobre a influência africana na produção dos ex-votos de madeira (pinturas em retribuição a uma graça alcançada), publicado em 1939 e fora de catá- logo desde então. A segunda é publicar esse mate- rial de referência na forma de livros em inglês ou em textos na Internet em versões trilíngües - português, inglês e espanhol.

Latinos - Idealizado por Peter Marzio, diretor do museu de Houston, esse esforço multiinstitucional - que recebeu o título Recuperação das fontes críticas para a arte latino-americana e a arte latina (esta re-

ferente à produção dos norte- americanos de origem latina) - deve beneficiar um públi- co bastante amplo: pesqui- sadores, artistas, professo- res e visitantes de museus,

em particular os mem- ^ bros da comunidade

latina nos Estados Unidos que cres- ce ano a ano. A equipe do mu- seu de Hous-

La sordidez, de José Antônio Berni

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Composición madí, de Rhod Rothfuss Jefa, de Xul Solar

„ Totems, de Francisco Matto

0 atirador de arco, de Vicente do Rego Monteiro

Bicho, de Lygia Clark

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El mundo prometido a Juanito Laguna, de Antônio Berni

Mutis por ei foro (cama), de Beatriz González

Cromosaturación, de Carlos Cruz-Diez

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ton - o quinto maior dos Estados Unidos, com um acervo de 45 mil obras de arte - pretende ain- da inserir as informações resgatadas no projeto ou apresentadas em novos estudos nos programas de educação e história da arte do ensino básico e uni- versitário norte-americanos. "Nos Estados Unidos, quase não há livros disponíveis em inglês e espa- nhol sobre a arte latino-americana e a arte de nor- te-americanos descendentes de latinos produzidas ao longo do século 20", afirma o diretor do museu. "Em alguns anos, os professores não terão mais desculpa para não ensinar arte latina", diz Marzio, que calcula em dez anos o tempo necessário para cumprir essas metas e ampliar a coleção de arte la- tina do museu, a um custo de US$ 50 milhões.

Mais que disseminar a arte produzida ao sul da fronteira com o México, Marzio espera criar um ca- nal de comunicação contínua entre os artistas nor-

te-americanos e latinos. "É uma iniciativa ambi- ciosa, mas totalmente viável por causa dos

acordos de cooperação que estamos fechan- do", diz Mari Carmén Ramirez, curadora

de arte latino-americana do MFAH. Em abril, Peter Marzio e Mari Carmén es-

tiveram no Brasil, onde assinaram um acordo de cooperação por cin-

co anos com a FAPESP, que cen- tralizará as atividades rela-

{ cionadas à arte nacional.

í Levantamento - A colabora- ção entre o museu e a Funda- ção prevê a implementação de projetos conjuntos de pes- quisa, promoção de eventos científicos e exposições, inter-

câmbio de informações, publicações acadêmicas, além do intercâmbio de docentes, pesquisadores e estudantes. A aprovação dos estudos brasileiros se- guirá o trâmite dos projetos financiados pela FA- PESP. Ou seja, a Fundação analisará cada propos- ta apresentada e, quando houver mérito, deverá custear o trabalho. "Essa iniciativa tem muito a ver com a FAPESP, em seu papel de estimular o desen- volvimento da ciência, tecnologia e cultura no país", diz Carlos Vogt, presidente da Fundação. Ana Maria Belluzzo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coorde- nadora da participação brasileira, aponta o que con- sidera o principal ganho: "Além do levantamento seletivo dos documentos de cada período da arte moderna e contemporânea, apontaremos as ques- tões que necessitam ser investigadas para que se aprofunde a compreensão da arte no continente".

Peter Marzio começou a imaginar esse projeto há quase 20 anos. Pouco depois de assumir a direção do MFAH, ele viajou em companhia do especialista em literatura hispânica Nicholas Kanellos pelos Es- tados Unidos à procura das melhores obras dos ar-

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tistas norte-americanos de origem latina, a chama- da latino art. Marzio constatou que a produção era grande, mas pouco se sabia a respeito desse movi- mento artístico contemporâneo. Era a indicação de que seria necessário investir em arte latino-ameri- cana nos anos seguintes. Em 1986, Marzio montou uma grande exposição de latino art no MFAH, mas outras prioridades exigiram que o projeto aguardas- se. Há três anos, o museu criou o Centro Internacio- nal de Artes para as Américas (ICAA), atualmente dirigido por Mari Carmén, e reuniu durante três dias 30 curadores e historiadores da arte dos Estados Unidos e da América Latina - entre os quais estava Ana Maria Belluzzo. Desse en- contro saíram as orientações so- bre como impulsionar a arte lati- no-americana e a latino art nos Estados Unidos, origem do pro- jeto de resgate e disseminação do material crítico sobre o assunto.

A penas este mês, o so- g^L nho de 20 anos co- L^^ meça a tomar forma

È m com a exposição JL. JL. Inverted utopias (Utopias invertidas), que exibirá de 20 de junho a 12 de setembro, no MFAH, cerca de 250 obras de 67 artistas de países latino-ame- ricanos - Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, México, Cuba, Porto Rico, Colômbia e Venezuela. De acordo com a equipe do museu, essa é a primeira mostra em grande escala dos movimentos de vanguarda latino-americanos, tão distintos quan- to distantes dos desenvolvidos na Europa e nos Es- tados Unidos. Organizada por Mari Carmén e Héc- tor Olea, a exposição abrange o período de 1920 a 1970 e reúne as obras em seis grupos temáticos: o universal e o vernáculo, que contrapõe os temas na- cionais aos universais; o lúdico e o lutuoso, que rejei- ta a arte pela arte e parte para a crítica às injustiças sociais e políticas; a progressão e a ruptura, com obras abstratas geométricas que incorporam a par- ticipação ativa do espectador; o vibratório e o esta- cionário, no qual cores vibrantes, contrapostas ou não, dão a sensação de movimento; o óptico e o háptico, que joga com o tato e a visão; e o crítico e o engajado, em que as obras fogem aos meios tradi- cionais de expressão, como a pintura e a escultura, para escapar à opressão política das ditaduras das décadas de 1960 e 1970 em países como Brasil, Ar- gentina e Chile.

"Nos 50 anos esquadrinhados pela mostra, os artistas latino-americanos mantiveram diálogo si- multâneo com a arte moderna da Europa e dos Es- tados Unidos", diz Peter Marzio. "Contudo, para

muitos norte-americanos, Utopias invertidas oferece o primeiro olhar sobre a genialidade desses artistas." Segundo a curadora da mostra, a porto-riquenha Mari Carmén, o objetivo da exposição é trazer à tona o que escapa à história oficial das vanguardas conhecida por lá. Os visitantes da exposição podem se surpreender ao deparar com a robustez da tela O Atirador de arcos, do pintor recifense Vicente do Rego Monteiro, pouco conhecido por aqui e possi- velmente ignorado pelo público norte-americano. Como em boa parte de sua obra, nessa pintura Monteiro usa os traços geométricos típicos do cu- bismo de Picasso para exaltar o povo mestiço brasi-

Fachada do edifício Caroline Weiss Law: sede da exposição, em que o Brasil está bem representado

leiro, que ganha corpo e volume na cor ocre. Presen- te também na obra de vários outros latinos, como a do uruguaio Joaquín Torres-Garcia e a do argentino Xul Solar, essa subversão é o grito de liberdade da arte no continente, que, após séculos de influência européia, torna-se madura e autônoma.

O Brasil está bem representado na exposição. O grupo progressão e ruptura é um dos que contam com o maior número de representantes, com obras de Lygia Clark, Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica, por exemplo. Trabalhos nacionais, como Cildo Mei- relles e Antônio Dias, também aparecem em peso sob a temática do crítico e engajado. Ana Maria Belluzzo considera a brasileira tanto na exposição como na recuperação das obras críticas uma opor- tunidade sem igual. "Essa é a chance de a arte latino- americana se estabelecer nos Estados Unidos de uma forma ainda não vista, com autoridade", afir- ma. Talvez agora se compreenda por lá o que Torres- Garcia, o pai do construtivismo latino e autor de um mapa da América Latina em que o Sul aponta para o alto, quis dizer quando afirmou há quase seis dé- cadas: "Nosso norte é o Sul". •

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■ HUMANIDADES

CINEMA

C^J' CTToLLijVJOoa az

Pernambuco Tese relembra o Ciclo do Recife, os jovens que fizeram filmes como os dos americanos para o cinema local

JOANA MONTELEONE

Em 1929, Gilberto Freyre rece- beu uma estranha visita na redação de A Província, um dos mais tradicionais jornais do Recife. O velho homem,

aristocrata da antiga geração de senhores de engenho da Zona da Mata de Pernam- buco, vinha pedir ao então jovem diretor do jornal que colocasse a polícia atrás de umas assombrações que estavam a lhe atrapalhar a vida. Espantado com o pedi- do, Freyre encaminhou o amigo a um psiquiatra. E começou a recolher histó- rias de fantasmas para um livro. Era um sinal dos tempos. A cidade já não era a

mesma. O Recife dos lampiões de azeite rendia-se às luzes fulgurantes da moder- nidade. E mesmo Freyre, grande defensor das tradições nordestinas, não conseguia levar essas histórias a sério. Acabara-se o espaço para histórias ao pé do fogão, contadas pelas "bás" aos sinhozinhos malcriados. Automóveis, sorvetes, aviões e filmes americanos seduziam uma nova geração, ávida pelas emoções do século da velocidade.

Na cidade que fazia questão de es- conder o passado - mudando o nome de ruas, construindo edifícios modernos, abrindo avenidas -, um grupo de jovens

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resolveu fazer filmes como os ameri- canos para exibi-los nos cinemas da cidade. Começava assim um dos mais importantes ciclos do cinema regional do país, até hoje pouco conhecido. A pesquisadora de cinema do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luciana Corrêa de Araú- jo, agora desenvolve uma pesquisa de pós-doutoramento que procura ana- lisar o Ciclo do Recife, identificando o cenário social e cultural em que essas produções foram realizadas.

"Nesse período", diz Luciana, "con- vivem com particular intensidade as ambições de modernidade e desejo de manter as tradições, num processo que se desenrola sob diversos aspectos e que tem entre suas principais manifesta- ções a polêmica envolvendo o sociólogo Gilberto Freyre, que chegaria a escrever o 'Manifesto Regionalista', e o jornalista Joaquim Inojosa, ligado aos intelec- tuais da Semana de 22 e grande entu- siasta e divulgador das idéias moder- nistas no Nordeste." A polêmica toma conta do Recife e vai pautar tanto a pro- dução de filmes como a crítica de jor- nal sobre as películas exibidas nos cine- mas da cidade. As sessões não ocorriam apenas no famoso Cine Royal, sempre

lembrado. "Insisto nesse ponto porque se costuma falar apenas no Royal, mas a pesquisa nos jornais diários mostrou que os filmes eram exibidos em outros cinemas, alguns filmes até percorrendo um circuito de exibição significativo, em salas do centro e dos bairros."

O Ciclo do Recife tem como um dos principais mar- cos a volta do ourives Edison Chagas para a cidade, vindo do Rio de

Janeiro, então capital da República, com a idéia de fazer cinema america- no em Pernambuco. No Rio, Chagas chegara a trabalhar em pequenas pro- duções cinematográficas, onde apren- dera algumas técnicas utilizadas por ele para as produções do Ciclo. Logo ele se junta ao gravador Gentil Roiz, que possuía uma câmera de segunda mão e já escrevia argumentos para fil- mes imaginários. Os dois, ao lado do estudante de engenheira Ary Severo, fundam a Aurora-Film, a primeira e mais importante produtora do Ciclo. Em 1924 já estão filmando o primeiro longa-metragem. "Em pouco tempo, eles conseguem reunir cerca de 30 jo- vens de diversas ocupações, como jor- nalistas, comerciários, artistas, funcio-

Edison Chagas, principal cinematografista do período; e Almery Steves em Aitaré da praia, filmado nas praias pernambucanas

nários, que enxergam na Aurora uma oportunidade de passarem de fãs a atores e técnicos de cinema", conta a pesquisadora.

Inicialmente as produções eram baratas e contavam com a boa vontade dos jovens que gravitavam em torno da produtora. Com o tempo, os custos de produção e distribuição foram au- mentando e a produtora passou a ter sérios problemas financeiros. A Auro- ra-Film faliu duas vezes, mas seus idea- lizadores continuaram a fazer cinema de diferentes maneiras.

O primeiro filme do Ciclo, Retri- buição, estréia em março de 1925. Es- crito e dirigido por Gentil Roiz e com fotografia de Edison Chagas, o filme conta a história, tipicamente holly- woodiana, de um casal que, à procura de um tesouro, luta contra um grupo de bandidos. Compunham o elenco Barreto Júnior e Almery Steves, que mais tarde seria reconhecida como a maior estrela do Ciclo do Recife. O fil- me fez grande sucesso no Cine Royal, local que se tornaria a principal vitri- ne do cinema pernambucano produ-

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zido no período, graças ao co-proprie- tário, o português Joaquim Matos, cuja atuação garantiu a exibição dos filmes sempre em grande estilo.

No período que vai de 1922 a 1931 foram pro- duzidos 13 filmes de en- redo e vários chamados de filmes naturais, "que

é a nomenclatura da época para filmes de não-ficção", segundo Luciana Cor- rêa de Araújo. Logo depois de Retribui- ção, saem Um ato de humanidade e Ju- rando vingar, ambos em 1925. Mesmo com o sucesso comercial de Retribui- ção, a produtora teve de fazer uma pe- lícula comercial para equilibrar os gastos e assim surgiu Um ato de hu- manidade, propaganda da Garrafada do Sertão, do Laboratório Maciel. Nessa fita, Jota Soares - que se torna- ria um nome importante no Ciclo do Recife - estreava como ator, represen- tando um jovem sifilítico que se cura- va milagrosamente com a tal garrafa- da. "É interessante notar que esses filmes de propaganda ajudaram a pro- fissionalizar os jovens cineastas e tam- bém se tornaram o ganha-pão de mui- tos depois que o Ciclo terminou", diz a pesquisadora.

Logo em seguida estreava Jurando vingar, no qual os jovens cineastas ten- tam repetir o esquema do primeiro fil- me com forte influência do cinema norte-americano. Dessa vez, a reação do público não foi tão entusiasmada. Os três resolveram então filmar a pró- pria realidade do Recife. Pensando nis- so, surgiu Aitaré da praia, em 1926 (o filme foi bem preservado e hoje está disponível em DVD). Nele, o pescador Aitaré namora Cora, moça inocente de uma pequena aldeia. Diversos desen- tendimentos separam os heróis até o esperado final feliz. Neste filme, em que participam atores como Almery Steves e Jota Soares, são mostradas tanto as belas praias do lugar como o ambiente sofisticado da aristocracia do Recife. O embate entre tradição e modernidade pode ser visto de maneira evidente na fita que tem uma hora de duração.

O filme foi enorme sucesso e che- gou a ser exibido em outras cidades. A notícia de que existia um grupo em- penhado em fazer cinema no Recife logo chegou ao Rio de Janeiro, com críticas especializadas de jornalistas como Adhemar Gonzaga e Pedro Lima. Isso despertou o interesse de outros empreendedores que queriam fazer cinema. Quatro novas produto-

ras surgiram, a Vera Cruz-Film, a Pla- neta-Film, a Veneza-Film e a Olinda- Film. Ainda em 1925 são produzidos Filho sem mãe, da Planeta, filme perdi- do que, segundo consta, teria a presen- ça de cangaceiros na trama, indicando o aproveitamento dramático de perso- nagens típicos da região.

Picante - Os integrantes da Aurora- Film, apesar das dificuldades financei- ras decorrentes de Aitaré da praia, par- tiram para o mais ambicioso dos filmes do Ciclo do Recife, A filha do advogado, que estreiou em 1926 e tinha duração de 92 minutos. Com ro- teiro de Ary Severo e direção de Jota Soares, o filme é um melodrama em torno de uma picante história de se- dução, que deixaria o escritor Nelson Rodrigues com inveja por não ter cria- do a história. O herói, Helvécio, é filho de um famoso advogado da cidade, o doutor Paulo, e leva uma vida boêmia. Seu pai tem uma amante e uma filha desse relacionamento ilícito, Heloísa. Helvécio, não sabendo que a moça é sua meia-irmã, tenta seduzi-la à força. Na luta que se segue, ela o mata. Nin- guém aceita defendê-la no tribunal, até que um estranho aparece disposto a ajudá-la. No elenco: Jota Soares,

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Guiomar Teixeira, Euclides Jardim, Norberto Teixeira, Olíria Salgado, Fer- reira Castro, Jasmelina de Oliveira, Se- verino Steves. O filme chegou a ser exibido no Rio, mas as dívidas com a produção foram imensas e a Aurora- Film foi à falência pela segunda vez.

A falência não significou que os ci- neastas que criaram a produtora para- ram de fazer filmes. Edison Chagas continuou a filmar na Liberdade-Film, que lançou Dança, amor e ventura, em 1927, e No cenário da vida, em 1930, um drama romântico que seguia a li- nha de A filha do advogado. "Em 1930, encerra-se a produção de filmes de en- redo do Ciclo, em meio à consolidação do cinema sonoro, às dificuldades na exibição dos filmes locais e ao contur- bado momento político e econômico pelos quais passava o país."

Os filmes de enredo, contu- do, representam apenas uma parte da produção do Ciclo do Recife. Os documentários são ain-

da menos conhecidos e mostram a ci- dade em datas especiais, como Per- nambuco e sua exposição de 1924, de Ugo Falangola e J. Cambière, o Carna- val pernambucano de 1926, da Aurora -

Film, O progresso da ciência médica, feito por Edison Chagas, em 1927. No projeto de pesquisa de Luciana Corrêa de Araújo, o Ciclo do Recife é enten- dido dentro de um quadro mais am- plo, que extrapola o campo cinema- tográfico, para se debruçar sobre a sociedade e cultura pernambucana dos anos 1920. "Uma das principais questões que marcam o período é o embate entre tradição e modernida- de." Um dos espaços privilegiados pa- ra se perceber essa tensão são os jor- nais e revistas de época. "Os diários do Recife, as revistas e colunas de cinema

0 PROJETO

Ciclo do Recife, os Filmes, as Histórias

MODALIDADE Bolsa de Pós-doutoramento

SUPERVISORA LúCIA NAGIB - Programa de Pós- Graduação em Multimeios/Unicamp

PESQUISADORA LUCIANA Sá LEITãO CORRêA DE ARAúJO - Programa de Pós- Graduação em Multimeios/Unicamp

Almery Steves, a estrela do Ciclo do Recife, em Dança, amor e ventura; e Guiomar Teixeira, protagonista de A filha do advogado

do Rio de Janeiro trazem uma visão contemporânea capaz de enriquecer e problematizar as leituras feitas poste- riormente", completa.

Os últimos filmes do Ciclo do Reci- fe são exibidos em 1930, mas a produ- ção cinematográfica na cidade conti- nua ao longo das décadas seguintes. Uma produção que se constitui, sobre- tudo, de cinejornais e documentários, que não alcançam a mesma repercus- são dos filmes de enredo realizados na época do cinema mudo. Com o super 8, na década de 1970, o cinema per- nambucano ganha novo fôlego, com realizadores, que também escreviam em jornais da cidade, como Fernando Spencer, Celso Marconi e Geneton Mo- raes Neto. E, a partir da retomada dos anos 1990, a produção volta a se afir- mar para além das fronteiras do esta- do. Surgem filmes como Baile perfu- mado (1987), O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000) e Amare- lo manga (2004), que, assim como a produção do Ciclo do Recife, encon- tram terreno fértil no diálogo entre o moderno e o tradicional. •

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■ HUMANIDADES

EDUCAÇÃO

Sem tempo para o príncipe

Ensino esmerado das filhas de D. Pedro II foi pioneiro num tempo em que mulheres não estudavam

GERMANA BARATA E RENATA SARAIVA

Profissionais bem-sucedidas, que não medem esforços nem tempo para a educação conti- nuada, com cursos de língua, especializações, pós-graduações, MBAs. A emancipação fe- minina do século 21 é reflexo direto da pre-

sença das mulheres na educação formal durante o sécu- lo 20, quando se observou, no Brasil, a predominância das mulheres nas turmas que concluíram a universidade - em 2002, elas representavam 63% dos formandos, se- gundo o Censo de Ensino Superior.

Essa é uma realidade que em pouco mais de um sé- culo jogou terra sobre uma educação voltada para a for- mação exclusiva de mães de família, com ênfase nas ha- bilidades para corte, costura e bordado, alimentando uma sociedade voltada para o domínio dos varões, esses sim incentivados a aprender mais que ler, escrever e contar. Até 1879, as mulheres eram proibidas por lei de freqüen- tar cursos de ensino superior e, no ensino básico, seus conhecimentos restringiam-se à economia doméstica, além de excluírem noções de geometria, limitando o aprendizado da aritmética às quatro operações básicas.

Uma exceção apareceu no coração do Império, com o preparo da princesa Isabel Cristina Leopoldina de Bra- gança (1846-1921) e sua irmã, Leopoldina Teresa (1847- 1871), filhas de D. Pedro II. Elas receberam uma rigo- rosa educação formal, considerada, para os padrões da época, masculina. Das 7 da manhã às 9 e meia da noite, as aulas, ministradas nas dependências imperiais, in- cluíam conhecimentos científicos, principalmente o da química. É o que constatou o pesquisador Carlos Fil- gueiras, químico da Universidade Federal do Rio de Ja-

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A família real em Petrópolis, com Isabel à direita de D.Pedro II: filhas receberam ensino em moldes masculinos

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neiro (UFRJ). Seu estudo, baseado em documentação pertencente à família impe- rial brasileira, guardada no Arquivo de Grão Pará, em Petrópolis (RJ), foi publica- do recentemente na revista Química Nova, vol. 27, n° 2.

Filgueiras mostra que a preocupação com a educa- ção científica das princesas era fruto do interesse do imperador pela ciência em geral e, em particular, pela química. Além de se cor- responder com químicos famosos, como Louis Pas- tem (1822-1895) e Marce- lin Pierre Eugène Berthelot (1827-1907), D. Pedro II realizava experimentos em seu laboratório, na Quinta da Boa Vista, e participava da Academia de Ciências de Paris.

Graça e elegância: moças de boa família deveriam se preparar para representar socialmente os seus maridos

Decisões - O imperador era também apaixonado por fotografia e processos de revelação, como de- monstrou a exposição De volta à luz, apresentada em São Paulo de junho a outubro de 2003. "Existe um debate que diz que o imperador se pretendia um cientista. Considero a discussão fal- sa, pois acredito que ele achava que um governante deveria se interessar por muitos assuntos e acompanhar o pro- gresso das ciências e de suas aplicações, o que facilitaria o processo de tomada de decisões", explica Filgueiras.

Proporcionar uma educação formal rígida às filhas significava para o impe- rador garantir o preparo para a futura governante. Dos quatro filhos que teve com a imperatriz Tereza Cristina, os dois herdeiros homens morreram pre- maturamente, deixando para Isabel, aos 14 anos, a responsabilidade de ser a sucessora do pai. Assim, em 1860, após juramento à Constituição do Império diante do Senado Imperial, a filha mais velha de D. Pedro II recebeu o título de Princesa Imperial.

Quatro anos antes, contudo, o im- perador já se preocupava com a edu- cação de suas herdeiras. Contratou a condessa de Barrai, D. Luísa Margari- da Portugal de Barros, para ser a pre- ceptora das princesas. Era sua missão garantir às meninas uma educação não

diferenciada da recebida pelos ho- mens da elite, mas que fosse combina- da com a recebida por mulheres. Bar- rai também supervisionava o ensino de cerca de 20 disciplinas, podendo, inclusive, impor castigos às meninas, quando necessário.

Inúmeros profissionais de alto ga- barito, alguns com especialização na Europa, dividiam-se no ensi- no das línguas (latim, grego, por- tuguês, francês, inglês, alemão e

italiano), das artes (literatura, piano, desenho e pintura), filosofia, história, álgebra, química, física, zoologia, botâ- nica, mineralogia, geologia, geografia, geometria e cosmografia. "Muitas ve- zes, o próprio imperador tomava o lu- gar dos professores, pois gostava muito de estar presente na educação das fi- lhas", afirma Filgueiras. O rigor tam- bém existia na hora da avaliação, feita por meio de provas e de um detalhado boletim, escrito em francês. Foi através desse boletim que Filgueiras constatou que Isabel era a mais aplicada das me- ninas, destacando-se em química, dis- ciplina pela qual se interessava também fora da sala de aula por força da foto- grafia, como o pai.

Fora das dependências imperiais, a realidade era outra, embora, no decor-

rer do século 19, diversas vozes da socie- dade clamassem pelo aprimoramento e o acesso à educação por parte das mu- lheres. "No início do Império, o que se oferecia às meninas era o ensino do- méstico limitado às primeiras letras e às habilidades manuais, noções de mú- sica e dança, bordados e quitutes casei- ros. Nada de mais, mas também nada de menos do que necessitava a socieda- de de então", explica Eliane Marta Tei- xeira Lopes, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

"Por incrível que pareça, muitas ve- zes a alfabetização era um impedimen- to para que os pais matriculassem suas filhas em escolas. A leitura era vista como menos perigosa - pois era possí- vel controlar a circulação de livros -, mas a escrita, como forma de expres- são, era vista como perigo a que as me- ninas não podiam estar expostas", sa- lienta a professora.

No decorrer do século, cresceu o número de estabelecimentos particula- res destinados ao ensino das meninas. "As escolas, ou simplesmente as aulas, funcionavam nas casas de suas funda- doras e acolhiam limitado número de alunas a quem ofereciam parcos conhe- cimentos", diz Eliane. Também em es- colas religiosas, as filhas da elite apren-

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A mestra e suas discípulas: professoras serviam como exemplo para as alunas, com controle rígido sobre fala e atitudes

diam a leitura, a escrita, noções básicas de matemática e, para complementar, piano e francês.

"As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas, as habilidades cu- linárias, bem como as habilidades de 'mando' das criadas e serviçais, tam- bém faziam parte da educação das mo- ças", explica Guacira Lopes Louro, pro- fessora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além de boa companhia para seus maridos, essas moças precisavam estar preparadas para representá-los socialmente.

As transformações sociais e políticas do Império e, posteriormente, a procla- mação da República levaram natural- mente a mudanças na forma como as mulheres tiveram acesso à educação no século 19. Havia, nas últimas décadas do século, uma preocupação com a mo- dernização da sociedade, a higienização da família, a construção da cidadania dos jovens. Algumas vozes, como a de Benjamin Constant, pretendiam colo- car o ensino a serviço da mentalidade positivista e dos estudos científicos.

"A preocupação em afastar do con- ceito de trabalho toda a carga de degra- dação que lhe era associada por causa da escravidão e em vinculá-lo à ordem e ao progresso levou os condutores da

sociedade a arregimentar as mulheres das camadas populares", explica Guaci- ra. "Elas deveriam ser diligentes, ho- nestas, ordeiras, asseadas; a elas caberia controlar seus homens e formar os no- vos trabalhadores e trabalhadoras do país", continua. Apesar disso, a demo- cratização ampla do ensino para as mulheres só ocorreu no século 20.

A inda que abrisse espaço para g*m a emancipação, a nova vi- ^^^ são da educação femini- È % na em fins do século 19

-A- JBL. não significava a ruptu- ra total da necessidade de educar para o lar. Para muitos, o ensino cristão era essencial e, para outros, o estudo das ciências contribuíam para o fim das superstições, o que resultaria em mu- lheres mais bem preparadas para a ma- ternidade.

Foi assim, entre a visão de uma mu- lher com a pureza maternal de Maria, nos princípios cristãos, e a de uma mu- lher gabaritada pelos conhecimentos científicos, que o magistério surgiu como o primeiro campo de trabalho para as mulheres brasileiras. "Esse fe- nômeno não é só brasileiro. Também na França o magistério foi um impor- tante campo de trabalho para as mu- lheres no século 19", diz Guacira Lopes.

"O magistério era visto como uma extensão da ma- ternidade, o destino primor- dial da mulher." Assim, a docência não subverteria a função feminina fundamen- tal, ao contrário, poderia ampliá-la ou sublimá-la. E as professoras serviam como modelo a suas alunas, exer- cendo um estrito controle sobre suas falas, posturas, comportamentos e atitudes.

Os padrões de ensino para a formação dessas pro- fessoras nos cursos "nor- mais", porém, continuaram bastante semelhantes aos dos tempos em que a edu- cação era voltada apenas para o lar. A economia do- méstica, por exemplo, per- maneceu, agora não mais como uma simples trans- posição dos conhecimentos adquiridos em casa, mas como uma disciplina mais

complexa, apoiando-se em conceitos científicos, adotando uma roupagem es- colar e didática.

Sustento - Também o magistério, em- bora fosse o primeiro passo para a in- serção da mulher no mercado de traba- lho, ainda não rompia a forma como a sociedade era conduzida por homens. Ao ocupar as salas de aulas, as mulheres os desincumbiam do papel de profes- sores, liberando-os para outras ativi- dades mais rentáveis - por exemplo, dirigir as escolas em que elas eram as professoras. Ao mesmo tempo, filhas de famílias menos privilegiadas tinham ali boa alternativa de sustento, muitas vezes a única.

A ruptura total só veio mais tarde, no século 20, com a crescente prolife- ração de mulheres em diferentes pos- tos do mercado de trabalho, cargos pú- blicos, administrativos e ato políticos. Antes, contudo, ficou provada a eficá- cia da educação da princesa Isabel. Ela regeu o Império três vezes e, na ausên- cia do imperador, substituiu o gover- nador com os gabinetes Rio Branco (1871 a 1872), Caxias (1876 a 1877), Cotegipe e João Alfredo (1877 a 1888). Sancionou a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei Áurea, que aboliu a escra- vatura no país, em 1888. •

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LIVROS

Política e drogas nas Américas Thiago Rodrigues Educ/FAPESP 334 páginas / R$ 39,00

A pesquisa chega no momento mais do que necessário e traz uma notável discussão sobre a questão do chamado narcotráfico, discutido aqui sem

os preconceitos, mitos e tabus que costumam revestir a questão e impedir uma boa apreciação do tema. Partindo de uma análise dos antecedentes históricos, Rodrigues mostra como foi montado todo um sistema jurídico e legal sobre o assunto, só piorando as coisas.

Editora Educ (11) 3873-3359 [email protected]

INFIUENZA, A MEDICINA ENFERMA

Influenza, a medicina enferma Liane Maria Bertucci Editora Unicamp/ FAPESP 448 páginas / R$ 32;00

Tema pouco discutido, a epidemia de gripe espanhola que assolou São Paulo em 1918 serve como pano de fundo para discutir o estado dos

serviços de saúde nacionais da época. A pesquisadora revela como, diante das mortes, a população perdeu a confiança na nova e incipiente medicina científica e, por um bom intervalo de tempo, foi obrigada a um convívio forçado com curandeiros, herboristas, rezadeiras e outros, mostrando mazelas ainda não de todo resolvidas no país.

Editora Unicamp (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou [email protected]

A queda do Muro de Berlim Flavia Bancher Ateliê Editorial 136 páginas / R$ 20;00

Uma visão nacional e diferenciada de um fato fundamental que fechou com chave de ouro o século 20: a queda do Muro de Berlim. Mas a autora não se prende apenas

aos eventos, já muito discutidos, que levaram ao fim do muro que separava as duas Alemanhas e as duas formas de ideologia. Bancher também analisa o que significa um fato histórico e suas ramificações. Uma análise muito lúcida e inovadora de um acontecimento.

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br ou [email protected]

Redação científica Paulo Abrahamsohn Guanabara Koogan 272 páginas / R$ 40,00

Um guia para solucionar as eternas dúvidas sobre como escrever teses, dissertações e artigos para revistas especializadas. Com uma linguagem simples e direta, o autor dá uma série

de dicas para estudantes de graduação, pós-graduação, em especial nas áreas de Ciências Naturais, Biologia, Medicina e outras áreas da saúde. O pesquisador ensina o que escrever ou não escrever, o estilo preciso da redação científica, como reunir material e escrever o texto, como desenvolver as idéias, como publicar e fazer um bom texto final.

Editora Guanabara (21) 2221-9621 www.editoraguanabara.com.br ou [email protected]

Língua e realidade Vilém Flusser Annablume Editora 228 páginas / R$ 32,00

Um livro fora de catálogo há várias décadas está de volta numa bonita edição da Annablume. Considerado pelo crítico Anatol Rosenfeld como uma obra magistral, ainda que ele

discordasse de suas teses, Língua e realidade é uma bela discussão sobre a filosofia da língua, escrita por um tcheco em português. No cerne da teoria de Flusser, a noção de que realidade, conhecimento, universo e toda a verdade são aspectos lingiísticos. Leitura recomendada.

Annablume Editora (11) 3812-6764/3031-9727 www.annablume.com.br

§ LIDERANÇAS

DO CONTESTADO

Lideranças do Contestado Paulo Pinheiro Machado Editora Unicamp/FAPESP 400 páginas / R$ 28,00

Em tempos que o Movimento dos Sem-Terra ocupa as manchetes dos jornais, torna-se leitura necessária esse revisitar como se deu e acabou o movimento social do Contestado,

em Santa Catarina e Paraná, entre 1912 e 1926. É uma boa discussão sobre a história social do sertão e de como, a partir de entrevistas com sobreviventes, se pode analisar como foi a luta dos caboclos e sertanejos pelo que eles entendiam como liberdade e justiça.

Editora Unicamp (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou [email protected]

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