uma concepÇÃo musical para as “impressÕes
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
DOUTORADO EM MÚSICA
EXECUÇÃO MUSICAL / REGÊNCIA ORQUESTRAL
ANGELO RAFAEL PALMA DA FONSECA
UMA CONCEPÇÃO MUSICAL PARA AS “IMPRESSÕES
SINFÔNICAS” FESTA DAS IGREJAS,
DO COMPOSITOR FRANCISCO MIGNONE
O uso da Hermenêutica do Ponto de Vista da Regência
SALVADOR
2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
DOUTORADO EM MÚSICA
EXECUÇÃO MUSICAL / REGÊNCIA ORQUESTRAL
ANGELO RAFAEL PALMA DA FONSECA
UMA CONCEPÇÃO MUSICAL PARA AS “IMPRESSÕES
SINFÔNICAS” FESTA DAS IGREJAS,
DO COMPOSITOR FRANCISCO MIGNONE
O uso da Hermenêutica do Ponto de Vista da Regência
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação da
Escola de Música da Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor
em Música, Execução Musical/Regência Orquestral.
Orientador: Prof. Dr. Erick Magalhães Vasconcelos
Co-orientador: Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi.
SALVADOR
2008
UFBA
Escola de Música
Programa de Pós-Graduação
Doutorado em Música
Execução Musical/Regência Orquestral
PARECER/APRECIAÇÃO DA TESE DE DOUTORADO DE
ANGELO RAFAEL PALMA FONSECA
Uma concepção musical para as “Impressões Sinfônicas” Festas das Igrejas, do
compositor Francisco Mignone. O uso da Hermenêutica do ponto de vista da
Regência.
Orientador: Prof. Dr. Erick Magalhães Vasconcelos
Co-Orientador: Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi
Apresentação Pública: 06/06/2008 – Escola de Música
Parecer: Dante A. Galeffi
PARECER/APRECIAÇÃO
Uma concepção musical das “Impressões Sinfônicas” Festas das Igrejas de
Francisco Mignone é o objeto da tese de Angelo Rafael Palma Fonseca. Para tanto ele
recorreu ao uso da Hermenêutica filosófica como forma apropriada para investigar o
fenômeno da interpretação musical do ponto de vista da Regência. Apropriou-se, assim,
do universo gramatical da Hermenêutica como caminho descritivo e propositivo de sua
concepção e execução musical da obra escolhida. O resultado é um texto limpo e
elegante que envolve o leitor no universo histórico da regência e suas peculiaridades e
permite acompanhar o autor da tese em seu caminho exegético denso como regente e
intérprete musical.
No caminho hermenêutico empreendido pelo autor da tese transparece a
maturidade do maestro que reúne em si todos os requisitos para conduzir o
acontecimento musical à sua realização artística. A questão hermenêutica na execução
musical é inerente ao próprio sentido da música. A descrição criteriosa do processo de
interpretação, desde a escolha da obra à sua execução pública, é, contudo, um trabalho
que só pode ser feito por quem reflete sobre o processo em si e procura compreendê-lo
em sua complexidade e irredutibilidade à própria descrição. Interpretar uma obra
musical, ou qualquer outra obra de arte, é sempre um risco e uma possibilidade de
encontro ou desencontro com a virtualidade expressiva da obra. A hermenêutica musical
não pode, então, prescindir do intérprete, que é o agente do acontecimento vivo da
interpretação, que resulta na execução de uma obra. O trabalho do intérprete-maestro se
constitui, então, como apreensão, tradução, compreensão e expressão da obra musical.
Eis a Hermenêutica Musical entendida como Interpretação do ponto de vista do
intérprete. O intérprete, então, é o meio de atualização de uma obra musical escrita. Sem
o intérprete não seria possível atualizar a obra musical do compositor. E para ser
intérprete musical não basta saber ler os sinais de uma partitura, porque toda música é
dotada de um caráter próprio, uma forma diferenciada de ser que é preciso saber
desvelar com a interpretação. É evidente, entretanto, que não há a mínima possibilidade
de um objetivismo ou subjetivismo absoluto em música, assim como em qualquer
evento humano. Isto significa dizer que toda interpretação musical se constitui a partir
de um contexto musical efetivo: inscreve-se em um solo histórico marcado por formas
musicais vivas, mantidas pela vida dos músicos. Para ser intérprete musical é preciso ser
músico e participar ativamente de uma “tradição” musical.
A questão, então, é saber o que significa propriamente “interpretar” a obra de
arte musical? Significa, de qualquer modo, fazê-la soar e ressoar. Mas, em que
condições e a partir de qual perspectiva compreensiva? O que, afinal, qualifica uma
correta execução de uma obra musical consagrada ou desconhecida?
As questões de interpretação levantadas por Ângelo Rafael em sua tese mostram
o caminho formativo do ato de interpretar e sua complexidade irredutível a padrões
objetivos e subjetivos indiscutíveis. Toda escrita musical é sempre discutível, de muitas
maneiras, assim como todo texto escrito é sempre passível de novas leituras. Daí a
importância de uma Hermenêutica Musical do ponto de vista da regência.
Indubitavelmente, trata-se de uma arte sofisticada requerendo do regente uma longa
preparação técnica, epistêmica e artística simultaneamente. E o resultado alcançado em
uma interpretação/execução será sempre único, apesar de poder se repetir a forma
unitária de uma obra musical em base à sua própria textualidade. Mas a repetição da
forma musical codificada não é a repetição de seu acontecimento vivo, que pode ser
sempre surpreendente e imprevisível em sua ênfase ou campo desvelador.
Afinal, o maestro é ou não é imprescindível para o acontecimento da obra
musical orquestral? Na perspectiva de Ângelo Rafael a figura do maestro “não é apenas
responsável em resolver problemas de ordem técnica e/ou musical”, pois além da
unidade musical ele também é responsável pela direção artística, estabelecendo um
método de trabalho produtivo, desenvolvendo o senso profissional dos músicos, zelando
pela eficiência administrativa da orquestra e, de modo fundamental, preservando o bom
ambiente humano, dando equilíbrio psicológico e emocional ao grupo. Trata-se, sem
dúvida, de uma tarefa que requer a fusão em uma só pessoa do vigor físico, da
habilidade técnica, da erudição viva, da maturidade afetiva, da disposição dialógica, da
competência administrativa, da inteligência, da imaginação criadora e da intuição
apropriadora. Eu só não sei se tudo isto é passível de ser ensinado de um ponto de vista
apenas formal ou maquínico. Que isto possa ser transmitido pela convivência e
experiência musical viva, não tenho a menor dúvida. Resta saber se as condições
sistematizadas pelos que criaram excelência musical podem ser reduzidas aos manuais
escritos, sem que seja preciso o esforço interpretativo do músico propriamente dito.
Assim, a figura do regente de orquestra se torna também a possibilidade do
serviço à música, tendo em vista não o destaque de sua poliédrica personalidade, mas o
estar a serviço da música dos grandes criadores musicais. A tarefa do intérprete/maestro
é presentificar no tempo instante o que se encontra apenas sugerido na escrita partitural.
A música, de qualquer modo, é sempre um acontecimento do instante, mesmo quando
se eterniza na fixação de sua escrita, possibilitando que outros possam atualizá-la em
sua concretude vivencial.
O foco da Hermenêutica Musical do ponto de vista da regência é, assim, a
música propriamente dita. A interpretação musical de um regente não pode deixar de
lado a música em seu mistério, em sua insondável presença. Quando isto acontece,
quando a música não vem ao encontro do intérprete e o torna seu meio eficaz, não há
propriamente música, apenas repetição das formas escritas e dos tempos indicados sem
compreensão incorporada da música em sua presença própria.
Segundo o autor, “a aplicabilidade da hermenêutica na música configura-se
como uma estratégia coerente para alcançar bons resultados nos processos
interpretativos” (p. 53). Assim, a hermenêutica congrega em si, como atividade
interpretativa, as diversas dimensões da criação e da execução pública de uma obra
musical. Neste sentido ela é um recurso geral para qualquer processo de interpretação
musical. Serve, assim, como suporte metodológico do ato de ler, interpretar e executar a
obra musical. Portanto, a abordagem hermenêutica realizada pelo autor da tese abre um
vasto caminho formativo que vai além de um recurso técnico pontual, pois se articula
como processo pensante e crítico imprescindível no acontecimento humano em que há
escolha, em que se decide por isso e não por aquilo, em que se toma para si a
responsabilidade de fazer de um modo e não de outro, de justificar de uma maneira e
não de outra as opções de leitura e execução da obra de arte.
A interpretação musical é deste modo, um ato de livre e responsável escolha. Por
isso é preciso saber escolher bem. Quer dizer: saber por que se escolhe a obra que se
escolheu. Pois se o intérprete não ressoa com a obra como poderá ser fidedigna a sua
execução musical? Se ele não tem a sensibilidade e a inteligência para desvelar a
genialidade singular de uma obra, o que esperar de sua execução além do trivial e do
mecânico?
Uma obra musical executável, para fazer sentido deve sempre habitar a vida do
intérprete, de tal forma que dele se torne tão íntimo a ponto de confundir-se com ele. O
intérprete, assim, é uma morada viva da música, lugar em que ela se corporifica e se faz
fenômeno durável na instantaneidade do tempo. Como morada, o intérprete cultiva e
desenvolve a expressão musical em sua concretude inefável, indizível. Este fenômeno,
entretanto, está além de uma explicação causal e naturalista, ou de uma demarcação
epistemológica de cunho idealista ou psicológico da música. A Hermenêutica filosófica
ajuda a tornar o fenômeno da compreensão humana um caminho metodológico seguro
na condução do que é próprio do seu devir permanente.
A compreensão hermenêutica pressupõe como seu ponto de articulação a própria
presença, compreendida como modo de ser da espécie humana em geral. Isto quer dizer
que não é possível interpretar o que quer que seja sem que se tenha consciência dos
limites existenciais do ser humano. A Hermenêutica, então, se articula como medida
humana e para o homem, não sendo uma arte além do que é factível e realizável na
condição humana. Este aspecto ajuda a superar a falsa dicotomia entre interpretação
objetiva e subjetiva do fenômeno musical, porque, para o ser humano, esta separação é
um artifício da razão calculadora, não correspondendo ao seu modo de ser próprio e
apropriado que é sempre uma relação com, um ser-com, uma relação constitutiva da
própria identidade e alteridade humana. O elemento característico do ato hermenêutico,
assim, é a consciência de si na relação com o mundo e com os outros. Isto não significa
subjetivismo e sim condução humana dentro de suas possibilidades efetivas, realizáveis,
vivenciáveis e compartilháveis.
Apoiando-se também na teoria do conhecimento clássica, o autor discorre com
desenvoltura acerca das várias dimensões de conhecimento implicadas no ato da
regência: instintivo, empírico, racional, intuitivo e filosófico. Isto lhe permite descrever
sistematicamente as várias etapas do processo interpretativo, distinguido seus diversos
sentidos e operações.
Por fim, o autor compreende a regência como um exercício hermenêutico,
propondo a ampliação das informações que o maestro/artista deve ter sobre ele mesmo,
a necessária competência na área, sua estruturação mental e sua capacidade humana de
ser carismático e liderar.
A interpretação realizada por Angelo Rafael da obra de Francisco Mignone
recolhe todas as dimensões inerentes à complexa arte da regência na clave metodológica
do “pensamento hermenêutico em música”. Isto se realiza no capítulo 4, em que é
possível ver concretizado o exercício de leitura e interpretação da obra escolhida, em
sua preparação para o ato da realização musical e, após a execução, as novas reflexões
decorrentes da experiência vivida. De maneira metódica e exaustiva, o autor mostra uma
análise da partitura em que aparecem as peculiaridades da composição e os problemas
de interpretação aí presentes. A começar da modelagem retirada dos poemas sinfônicos
de Ottorino Respighi, que dão a estrutura compositiva da obra, e mostram que as obras
de arte sempre estão em diálogo com outras obras de arte, a análise das impressões
Sinfônicas de Mignone segue uma coerência interna significativa, consolidando um
exercício hermenêutico desvelador da força expressiva e criadora da obra de arte Festa
das Igrejas.
Neste sentido, a tese de Angelo Rafael cumpre amplamente os requisitos para a
sua APROVAÇÃO irrestrita, merecendo o indicativo de possível publicação, dada a
originalidade da abordagem e a oportunidade de produção de material didático para a
formação em regência, abrindo campos para se repensar o currículo em regência e
dentro de uma escola musical consolidada por uma vasta cultura de pensamento e ação e
por um singular e criador sentido artístico.
Parabéns a Angelo Rafael e ao seu orientador Erick Vasconcelos pelo belo e
competente trabalho realizado.
Salvador, 06/06/2008
Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi
UFBA-FACED
AGRADECIMENTOS
Ao Deus, início e fim de todas as coisas.
Aos meus pais, Agrípio e Elizabeth, e minhas irmãs
Regina, Verônica e Adalgisa por todo amor, estímulo
e, acima de tudo, pelo referencial espiritual e humano
que sempre me ofertaram em todos os momentos.
Aos meus estimados e competentes, Orientador e Co-orientador, respectivamente,
Prof. Dr. Erick M. Vasconcelos e Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi, pelas
preciosas contribuições quanto ao conteúdo e forma deste trabalho.
Aos meus Professores do curso de Doutorado:
Profª. Dra. Ângela Lühning e Prof. Dr. Jamary Oliveira
pelos conhecimentos musicais a mim fornecidos.
À Sra. Maria Josephina Mignone, pela cordial colaboração na realização deste trabalho.
Aos competentes amigos: Profª. Esp. Ana Nogueira, Prof. Dr. Jarlee Saviano, Prof. Esp.
Marilda Andrade, Prof. Me. Raymundo Machado e Prof. Esp. Raymundo Gouveia por
me auxiliarem quanto às questões técnicas deste trabalho.
Aos queridos amigos e profissionais da música: Arnaldo Almeida, Brasilena Trindade,
Eneida Rebouças, Ênio Antunes, João Luiz Gomes, Leandro Gazineo, Maria da
Conceição Perrone, Moacyr Costa Filho e Zuraida Abud pelos ricos diálogos sobre
música, arte e vida.
Ao Coordenador do curso de Pós-Graduação em Música, Prof. Dr. Ricardo Bordini,
pelas sugestões e soluções acadêmicas.
À Maisa Santos pela colaboração nos processos administrativos da UFBA,
e a Jonathan Cardoso e Wagner de Souza pelo apoio na pesquisa de campo.
À CAPES e FAPESB pela concessão das bolsas de estudo para concretização e
finalização desse projeto.
A todos que, de alguma maneira, ajudaram-me no cumprimento desta etapa.
RESUMO
Neste trabalho apresentaremos uma concepção musical das “Impressões Sinfônicas”
Festa das Igrejas, do compositor Francisco Mignone. O aspecto interpretativo é o foco
principal deste estudo, por isso destacaremos alguns dos muitos componentes musicais
intrínsecos à partitura, indicando possibilidades de interpretação com base numa visão
hermenêutica. Todas as considerações sobre harmonia, melodia, ritmo, textura,
articulação e demais elementos são utilizadas para evidenciar pensamentos do intérprete
acerca da obra. Acreditamos que uma visão hermenêutica da composição, como
também da regência, é de suma importância para identificar e relacionar as informações
musicais e extramusicais relativas à peça e a tal ofício, proporcionando melhor
compreensão, elaboração e realização das etapas de preparação da música, obtendo
assim uma concepção musical consistente. O primeiro capítulo é composto pela
fundamentação teórica deste trabalho, abarcando considerações sobre a regência, a
interpretação e o intérprete. No segundo capítulo serão apresentadas informações
referentes à hermenêutica e um exercício hermenêutico sobre algumas atividades do
campo da regência. O terceiro capítulo é formado pelas informações sobre as
“Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas. O quarto capítulo é dirigido à concepção
musical da obra. Por fim, apresentaremos as considerações finais. Com esta pesquisa,
acreditamos que a utilização da hermenêutica do ponto de vista da regência pode ser
uma poderosa ferramenta de trabalho para o maestro, revelando a ele novas perspectivas
sobre seu ofício e, acima de tudo, sobre sua atuação profissional.
Palavras-chave: interpretação musical, hermenêutica musical, regência orquestral.
ABSTRACT
In this work, we will present a musical conception of the “Impressões Sinfônicas” Festa
das Igrejas (“Symphonic Impressions” Churche’s Party), by the composer Francisco
Mignone. The interpretive aspect is the main focus of this study, so we will highlight
some of the many intrinsic musical components of the score, indicating interpretation
possibilities based on a hermeneutic view. All the considerations about harmony,
melody, rhythm, texture, articulation, and further elements are used to show up the
performer’s thoughts about the work. We believe that a hermeneutic view of both
composition and conducting is highly important to identify and relate the musical and
non-musical information about the work and this craft, providing a better understanding,
elaboration and execution of the music’s preparatory stages, thus achieving a consistent
musical conception. The first chapter comprises the theoretical foundation of this work,
comprehending considerations about conducting, interpretation and the performer. In
the second chapter, information about hermeneutics and a hermeneutic exercise about
some activities in the area of conducting will be presented. The third chapter consists of
information about the “Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas. The fourth chapter
addresses the musical view of this work. At last, we will present the final
considerations. With this research, we believe that using hermeneutics from the
perspective of conducting can be a powerful tool for the conductor, showing him new
perspectives about his craft and, most importantly, about his professional performance.
Keywords: musical interpretation, musical hermeneutics, orchestral conducting.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, pág. 1
1. INTERPRETAÇÃO MUSICAL NA REGÊNCIA
1.1 DA REGÊNCIA, pág. 6
1.1.1 Regência a partir do século XVI, pág. 7
1.1.2 Regência a partir do século XVIII, pág. 9
1.1.3 Regência a partir do século XX, pág. 10
1.2 DA INTERPRETAÇÃO, pág. 15
1.2.1 Fundamentos para interpretação em música, pág. 17
1.2.2 Subjetividade da interpretação em música, pág. 23
1.2.3 Apreensão, Tradução, Compreensão e Expressão em música, pág. 35
1.2.4 Hermenêutica Musical, pág. 36
1.3 DO INTÉRPRETE, pág. 38
1.3.1 Da validade do maestro, pág. 41
1.3.2 Da competência do maestro, pág. 42
2. EXERCÍCIO HERMENÊUTICO NA REGÊNCIA, pág. 47
2.1 DA ORIGEM DA HERMENÊUTICA, pág. 49
2.2 DA EFICIÊNCIA DO PROCESSO HERMENÊUTICO, pág. 53
2.3 DA SELEÇÃO DA OBRA, pág. 53
2.4 DO USO DOS CONHECIMENTOS NA REGÊNCIA, pág. 56
2.4.1 Conhecimento instintivo, pág. 57
2.4.2 Conhecimento empírico, pág. 58
2.4.3 Conhecimento racional, pág. 63
2.4.4 Conhecimento intuitivo, pág. 65
2.4.5 Conhecimento filosófico, pág. 65
2.5 DO USO DOS CONTEÚDOS NA REGÊNCIA, pág. 66
2.6 DO USO DO VERBO NA REGÊNCIA, pág. 68
2.7 DOS ENSAIOS E CONCERTOS, pág. 70
3. INFORMAÇÕES SOBRE “IMPRESSÕES SINFÔNICAS” FESTA DAS
IGREJAS
3.1 REFLEXÕES SOBRE A ORIGEM DA OBRA E O PENSAMENTO DO
COMPOSITOR, pág. 75
3.2 IMPRESSÕES SINFÔNICAS E POEMA SINFÔNICO, pág. 78
3.3 INFLUÊNCIA DOS POEMAS SINFÔNICOS DE RESPIGHI SOBRE
FESTA DAS IGREJAS, pág. 82
3.4 DEPOIMENTO DE MIGNONE SOBRE UMA SIGNIFICATIVA
INTERPRETAÇÃO DA OBRA, pág. 85
4. CONCEPÇÃO MUSICAL DA OBRA, pág 87
4.1 SÃO FRANCISCO DA BAIA (1ª Igreja), pág. 87
4.2 ROSÁRIO DOS PRETOS (2ª Igreja), pág. 104
4.3 O OUTERINHO DA GLÓRIA (3ª Igreja), pág. 114
4.4 NOSSA SENHORA APARECIDA DO BRASIL (4ª Igreja), pág. 123
CONSIDERAÇÕES FINAIS, pág. 134
REFERÊNCIAS, pág. 137
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA, pág. 139
ANEXOS, pág. 144 (os documentos abaixo descritos encontram-se na versão impressa
da tese, disponível na Biblioteca da EMUS-UFBA e no PPGMUS-UFBA)
Anexo A – Transcrição da carta de F. Mignone a Mário de Andrade, pág. 145
Anexo B – Cópia da autorização da Sra. Maria Josephina Mignone, pág. 147
Anexo C – Cópia de programa de concerto contendo Festa das Igrejas, pág. 148
Anexo D – Cópia das páginas iniciais do manuscrito, pág. 149
Anexo E – Cópia da partitura editada, pág. 152
“A música é uma revelação muito mais
sublime do que toda a sabedoria ou filosofia.
Ela é a única introdução incorpórea no
mundo superior do saber, esse mesmo
mundo que rodeia o homem, cujo significado
interior não se concebe por conceitos reais; a
parte formal daquela é simplesmente o
veículo necessário, que revela por meio de
nossos sentidos a vida espiritual”.
Ludwig van Beethoven
1
INTRODUÇÃO
A interpretação musical é um campo de conhecimento que se propõe a decodificar e
executar uma obra a partir da resolução de questões relativas à técnica e elementos musicais
implícitos à partitura em estudo, fundamentando-se nos aspectos de estilo, estética, história,
bem como no contexto sócio-político-econômico-cultural da época que viveu o compositor e
da obra a ser estudada. Considerando o momento atual, verificamos que um complexo
conjunto de saberes são requisitos primordiais para a prática interpretativa e, sob a ótica da
regência, essa inter-relação de áreas é uma característica significativa para o desempenho
deste ofício. Gunther Schuller, no seu livro (The compleat conductor, 1997) comprova que
este pensamento data do período barroco, vide citação seguinte:
It is instructive and fascinating to study the various treatises, pamphlets, articles, books, and writings on conducting that have appeared through the years since Johann Mattheson published his Der Volkommene Capellmeister in 1739, a time when the art of conducting was still in its relative infancy. (...) Mattheson (1681-1764) did not take the title of his book (The Complete Capellmeister, with emphasis on the word “complete”) lightly. Indeed the title page announces that the book will “give thorough notice of all those things which he who would preside over an orchestra with honor and efficiency must know and must know completely”. Mattheson characterized the conductor of his time – at least the ideal conductor – as a broadly educated artist, who was as knowledgeable in literature, poetry, painting, philosophy, and languages as in the various realms of music: harmony, counterpoint, orchestration, composition, and the art of singing.1
Ao longo da história, a prática interpretativa dos regentes tem apresentado uma imensa
gama de possibilidades, já que a formação desse profissional acontece de uma maneira menos
1 SCHULLER, Gunther. The compleat conductor. New York: Oxford University Press, Inc. USA. 1997. p. 67. É instrutivo e fascinante estudar os vários tratados, panfletos, artigos, livros e escritos sobre regência que têm aparecido ininterruptamente nos anos desde Johann Mattheson e sua publicação Der Volkommene Capellmeister em 1739, um tempo no qual a arte da regência ainda estava na sua relativa infância. (...) Mattheson (1681-1764) não toma o título de seu livro (O Completo Mestre de Capela, com ênfase na palavra “completo”) suavemente. De fato o título da capa anuncia que o livro dará informações completas de todas aquelas coisas que aquele que presidiria sobre uma orquestra com honra e eficiência deve saber e deve saber completamente. Mattheson caracteriza o maestro do seu tempo – no mínimo o regente ideal – como um artista amplamente educado, que era tão conhecedor da literatura, poesia, pintura, filosofia e linguagens como dos vários reinos do domínio da música: harmonia, contraponto, orquestração, composição e a arte do canto. (Tradução do autor).
2
sistemática que a dos outros intérpretes. Podemos verificar que, em geral, os instrumentos
musicais possuem “escolas” referentes à técnica e à produção do som ou, no mínimo, um
conjunto de informações razoavelmente organizadas para o estudo sistemático do
instrumento. Diferentemente do canto (que possui a escola italiana, a escola alemã, a escola
francesa e a escola inglesa); do piano (a escola russa, a escola francesa); do oboé (a escola
francesa, a escola alemã, a escola norte-americana) não podemos identificar na regência uma
escola que tenha seus fundamentos musicais denominados por uma prática a partir da
geografia ou localidades. Isto se dá pelo fato do maestro ser um profissional que interage com
vários grupos, de diferentes níveis e em diversos lugares, proporcionando uma intensa troca
de informações entre esse profissional e o conjunto musical ora liderado. Por este fato, o que
encontramos na literatura sobre interpretação em regência, no período que compreende o
século XVIII e o início do século XX, são depoimentos escritos (geralmente em cartas) de
músicos a exemplo de: Ludwig Spohr, Carl Maria von Weber, Richard Wagner, Gustav
Mahler, Otto Klemperer, Bruno Walter, entre outros, onde estes apresentam, comentam e
justificam suas próprias interpretações musicais.
Na regência, observamos que os maestros seguem linhas de pensamento quanto à
técnica (também conhecida por gramática gestual ou técnica de gestos) e, mais
frequentemente, uma tradição interpretativa. Considerando que uma partitura, por mais
informações que possua, nunca reflete, com total fidelidade, a idéia do compositor,
verificamos que as escolas de interpretação no campo da regência seguem tradições
interpretativas que foram estabelecidas por maestros/compositores, tais como: Felix
Mendelsohnn, Carl Maria von Weber, Hector Berlioz, Richard Wagner, Gustav Mahler,
dentre outros. Esses músicos explicitaram suas visões sobre interpretação perante as
orquestras e as transferiram, oralmente, para seus discípulos. Outro fator que tem dado
continuidade a essa transmissão de conhecimentos, e que vem desde o século XIX, é a prática
3
de regentes interpretarem músicas na presença dos autores e, por conseguinte, sofrerem a
influência desses últimos no que diz respeito à maneira de execução em trechos musicais da
partitura.
Apesar de Mattheson (no seu livro Der Volkommene Capellmeister) indicar os
conhecimentos básicos de um regente e de Berlioz, (no livro A Treatise on Modern
Instrumentation and Orchestration) já indicar, através de gráficos, como marcar os
compassos, constatamos que a produção regular de textos sobre regência se fortaleceu a partir
da primeira metade do século XX, com os escritos de: Hermann Scherchen (Handbook of
Conducting, 1ª edição, 1933), Max Rudolf (The Grammar of Conducting, 1ª edição, 1950),
Elizabeth Green (The Modern Conductor, 1961), Gunther Schuller (The Compleat Conductor,
1997), dentre outros regentes/professores que, baseados nas suas próprias experiências e
observações, registraram as suas visões acerca dessa profissão.
No que concerne à música sinfônica brasileira, o pensamento e a prática da maioria
dos regentes que se dedica a esse repertório também segue, basicamente, a tradição das
informações musicais que são passadas na relação professor/discípulo ou maestro/assistente.
Temos de considerar que a pequena quantidade de músicas editadas e disponíveis para
execução, o número não expressivo de publicações sobre o repertório orquestral brasileiro,
bem como as poucas gravações dessas obras são fatores que dificultam o desenvolvimento e a
difusão da área. Outro problema que enfrentamos é o acesso aos manuscritos dos
compositores para estudos mais detalhados e profundos. Por tudo isso, o trabalho sobre
interpretação em música orquestral brasileira ainda se encontra muito incipiente, pois as
pesquisas acerca de tal assunto indicam ser em número absurdamente pequeno em proporção
à quantidade de obras compostas.
A oportunidade de ter o “Bailado” Quadros Amazônicos de Francisco Mignone como
objeto de estudo no meu mestrado, proporcionou-me significativo conhecimento da
4
quantidade e qualidade do conjunto da obra desse compositor, e do estado que se encontram
os originais de tais partituras. O acervo de suas composições (catalogado até então em mais de
780 peças para várias formações e gêneros musicais) foi doado à Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro e ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP pela viúva Maria Josephina Mignone,
e encontra-se, na sua maioria esmagadora, ainda em manuscrito com uma qualidade de leitura
insatisfatória para a pesquisa, estudo e execução em âmbito mais profundo.
A seleção do objeto de estudo para esse trabalho baseou-se na busca de uma obra
significativa do ponto culminante da carreira desse artista. As “Impressões Sinfônicas” Festa
das Igrejas, com argumento de Mário de Andrade, é uma das obras mais expressivas de
Mignone, tendo sido interpretada por maestros de reconhecimento nacional e internacional.
Possuindo um cunho nacionalista, como também era o pensamento de época, esta obra foi
concebida tendo como referência orquestral os poemas sinfônicos Festas de Roma, Fontes de
Roma e Pinheiros de Roma, do compositor italiano Ottorino Respighi (1879-1936), mas o que
Mignone deixa bem claro é que em tal peça ele tenta retratar a atmosfera musical das festas de
quatro igrejas brasileiras, a saber: São Francisco da Baía, Rosário de Ouro Preto (Minas
Gerais), Outeirinho da Glória (Rio de Janeiro) e Nossa Senhora Aparecida do Brasil (São
Paulo).
A partir das informações fornecidas pela partitura, pelos escritos do próprio
compositor, e também pela revisão da literatura, tornar-se-á mais fácil construir uma visão
sistemática e integrada da regência da obra em questão, enfocando a intra-relação e inter-
relação dos seus elementos musicais.
Considerando as atribuições que o maestro necessita para desempenhar o seu ofício
nos tempos atuais (musicista, diretor artístico, administrador, executivo, professor, etc.),
desenvolveremos uma investigação do ato interpretativo, do ponto de vista da regência,
identificando como as reflexões de pensamento e hermenêutas da história ocidental, a
5
exemplo de Friedrich Ernest Schleiermacher (1768-1834), Martin Heidegger (1889-1976),
Luigi Pareyson (1918-1991), dentre outros, podem facilitar a compreensão das interfaces e
intersecções dessa intrincada rede de conhecimentos, que são pré-requisitos na arte da
regência.
Através do reconhecimento da infinidade do objeto e da mutabilidade do sujeito no ato
interpretativo, do aprofundamento na poética do compositor e nas informações referentes à
peça, da apresentação de uma concepção musical para Festa das Igrejas e do exercício
hermenêutico da obra, esse trabalho tem como principal propósito investigar a interpretação
musical do ponto de vista da regência, buscando caminhos que identifiquem e elucidem os
elementos e processos do ato interpretativo que aqui é proposto como uma hermenêutica
musical. Essa pesquisa também pretende estimular a elaboração de textos, artigos e livros em
língua portuguesa, na área da regência, assim como auxiliar o maestro e o professor de
regência na reflexão sobre metodologias de ensino, conteúdos programáticos, dinâmicas de
ensaio, seleção e organização de repertório, administração de grupos musicais, e demais
assuntos relativos à regência.
6
1. INTERPRETAÇÃO MUSICAL NA REGÊNCIA
1.1 Da Regência
Dentro das várias atividades do campo da música a prática interpretativa encontra-se
numa grande zona fronteiriça entre as áreas de conhecimento da teoria e da prática musical.
Estas últimas abarcam, não somente, uma grande carga de conteúdos específicos, mas
também apresentam interfaces, gerando uma terceira área a qual conhecemos como teórico-
prática. Os diversos assuntos deste campo teórico-prático, assim como as inúmeras relações e
abordagens que podemos elaborar a partir dele, é o que nos permite, sob a ótica da regência,
dar continuidade ao processo dialético da interpretação musical. Porém, é importante ressaltar
que o regente sempre expressará o seu discurso artístico juntamente com outros indivíduos,
dirigindo grupos de música, sejam eles bandas sinfônicas, grupos de câmara, coros e/ou
orquestras. Esse fato acrescenta às áreas musicais supracitadas (teórica, prática e teórico-
prática), um quarto campo do conhecimento ao qual identificamos como o das relações
humanas. A intimidade com essa área e suas ramificações, tais como psicologia, antropologia,
sociologia e filosofia, é de suma importância para um bom andamento dos trabalhos do
maestro frente aos conjuntos musicais.
Regência, do latim regentia, implica na ação de dirigir, comandar, guiar, conduzir. Um
grupo quando se reúne para desenvolver qualquer atividade específica necessita de um
direcionamento para alcançar suas metas, e esse direcionamento, na esfera do ato
interpretativo em música, fica a cargo da regência, que consiste em conduzir cantores e/ou
instrumentistas durante a preparação e a realização do momento musical. Apesar de a
regência apresentar seus escritos iniciais mais consistentes a partir do século XVI, é notório
que uma atividade de grupo, quase sempre, pressupõe a existência de um líder, de um guia, de
alguém que indique as diretrizes para se alcançar os objetivos. Logo, mesmo com parcas
informações históricas dos trabalhos que se dedicam à pesquisa da regência, podemos inferir
7
que este ofício data de épocas remotas, a exemplo das “tragédias gregas”, dos rituais divinos e
profanos dos antigos egípcios, dos salmos religiosos dos hebreus (a.C.) e do cantochão da
idade média do nosso mundo ocidental, vide citação abaixo:
The earliest manifestation of conducting is chironomy, i.e., the use of hand signs to indicate melodic motion. Egyptian and Sumerian reliefs dating from c. 2800 B.C. show “conductors” directing players of harps and flutes by means of such signs. The choric dances of Greek antiquity were led by a choreutes who indicated the main beat by an audible downward motion of the foot (...). In Gregorian chant, hand signs were used in order to explain to the singers the melodic motion of “chironomy” neumes.2
A quironomia na música, consiste em comunicar a figuração dos movimentos
melódicos com o uso das mãos e, por esta natureza, ela foi bastante utilizada no canto
gregoriano para dar unidade à métrica, à articulação e à pronúncia dos monges cantantes da
igreja católica do período medieval. Sendo a música desse período eminentemente sacra, nas
quais as composições, geralmente, eram para vozes, o líder ensinava a música aos cantores
com base nos textos da liturgia católica, e orientava-se pelas indicações de altura, acentuação
e respiração contidas no gradual3.
1.1.1 Regência a partir do século XVI
Desde o período renascentista já se têm registros da presença do diretor de coro
guiando os cantores nos gêneros vocais (madrigais, motetos, quodlibet, etc.). Essas obras
vocais apresentavam características composicionais distintas das do cantochão, e uma das
mais significativas delas era a unidade métrica, ou seja, tais composições exigiam uma
pulsação regular nas suas execuções. Esta forma de indicar a regularidade métrica da música
2 APEL, Willi. Harvard dictionary of music. 2.th ed. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1970. p. 197 A mais antiga manifestação de regência é a quironomia, i.e., o uso de gestos manuais para indicar movimento melódico. Relevos encontrados no Egito e Suméria datados desde cerca de 2800 a. C. mostram “regentes” conduzindo harpistas e flautistas através de gestos. Os coros de dança da Grécia antiga eram guiados por um choreutes que indicava a batida principal por um audível movimento descendente do pé (...). No canto gregoriano, gestos manuais eram usados a fim de transmitir aos cantores o sentido melódico da quironomia para a realização dos neumas. 3 Um dos livros de canto gregoriano da liturgia Católica.
8
por meio das mãos foi denominada como tactus, que era utilizado nas práticas musicais
preparatórias das obras, como confirma a citação abaixo.
In the 16th century the normal word for the beat was tactus, which by a natural association also meant the unit of measurement. It was defined by Ornithoparchus (1517) as ‘a motion, indicated by movements of the precentor’s hand, which directs the singing in regular time [mensuraliter]’, and by Vogelsang (1542) as ‘a continuous beat [percussio] or motion made by the precentor’s hand or stick’. The word tactus comes from the verb tangere, which means not only ‘to touch’ but to strike and, like percutere, pulsare and the Greek krouein, was used in classical times to mean ‘to play an instrument’ – originally the lyre, which was ‘struck’ with a plectrum. The use of tactus in the 16th century appears to derive from the 15th century pratice of actually touching either a solid object, in the case a singer who whises to keep himself in time, or the body of a pupil who is receiving instruction. The use of a physical beat for self-instruction survived until the 17th century. Christopher Simpson (1665) said that in order to keep time ‘we use a constant Motion of the hand. Or, if the hand be otherwise employed, we use the Foot. If that be also engaged, the Imagination (to which these are but assistant) is able of itself to perform that Office’.4
Mais tarde, as composições passaram a ter um maior grau de complexidade na
execução em função do aumento do número de integrantes nos conjuntos, pois, a estas obras
vocais, foram incluídas partes para instrumentos, e também pela independência e acentuada
sinuosidade melódica das composições com o advento da polifonia. Esse fato fez com que a
atividade de dirigir grupos musicais no mundo ocidental tornasse imprescindível a existência
de um líder à frente do conjunto. Em muitos casos, a direção desse conjunto musical se fazia
por meio da partitura enrolada batida na mesa ou um bastão percutido no chão, com o intuito
de manter a sincronia entre instrumentistas e cantores. Segundo alguns teóricos, este fato é
4 SADIE , Stanley. The new grove dictionary of music and musicians. 6th. ed., volume 4. London: MacMillan Publishers Limited, 1980. p. 641. No século XVI o termo comum para marcar a batida era o tactus que, através de uma associação natural, também significava a unidade de medida. Ele foi definido por Ornithoparchus (1517) como ‘um gesto, indicado por movimentos da mão do preceptor, que dirige o canto em tempo regular [mensuraliter]’, e por Vogelsang (1542) como ‘uma batida contínua [percussio] ou gesto feito pela mão ou batuta do preceptor. A palavra tactus vem do verbo tangere, que significa não somente ‘tocar’ mas também ‘bater’ e, como percutere, pulsare e o grego krouein, que era usado nos tempos clássicos para significar ‘tocar um instrumento’ – originalmente a lira, que era ‘percutida’ com uma palheta. O uso do tactus no século XVI parece derivar da prática do século XV de se realmente bater em um objeto sólido, no caso de um cantor que deseja manter-se no tempo, ou no corpo de um aluno que está recebendo instruções. O uso do toque físico para auto-instrução sobreviveu até o século XVII. Christopher Simpson (1665) disse que para manter-se no tempo ‘nós usamos o Movimento constante da mão. Ou, se a mão já estiver sendo usada, nós usamos o Pé. Se também o pé estiver sendo usado, a Imaginação (para quais estes são apenas auxiliares) está habilitada a desempenhar esse Ofício’.
9
ilustrado pelo famoso episódio atribuído ao compositor Jean Baptiste Lully (1632-1687), 1º
violino da corte de Luiz XIV que, durante a condução de um concerto, atingiu o próprio pé
com o bastão, adquiriu gangrena e veio a óbito. É interessante notar que, entre os séculos XVI
e XVII, existiam, simultaneamente, dois pensamentos bem definidos acerca da direção de
grupos. Um era a “quironomia” utilizada na condução dos cantos gregorianos, e que
respeitava a liberdade e flutuação do tempo, e também consistia em indicar o sentido musical
em função do texto. O outro era o “tactus”, utilizado para a condução de gêneros vocais que
não prescindiam de uma regularidade métrica, tais quais madrigais, motetos, etc.
1.1.2 Regência a partir do século XVIII
Posteriormente, para se manter a unidade métrica do conjunto, um instrumentista, em
geral o próprio compositor, responsabilizava-se pela condução do grupo com gestos e sinais
silenciosos. Quanto a isso, Cartolano nos diz:
No século XVIII, até princípios do século XIX, o 1° violino – usando o arco – ou o instrumentista de teclado – usando uma das mãos – ou, às vezes, ambos, revezando-se, dirigiam concertos. Essa dualidade de direção, porém, além de deselegante, distraía a atenção do público assistente e não produzia resultados satisfatórios. Sentiu-se, então, ser necessário que a direção fosse entregue a uma só pessoa, com autoridade suficiente para assumir a responsabilidade total da regência. (...) Desconhece-se quem foi o primeiro instrumentista a abandonar o seu instrumento para colocar-se frente à orquestra agitando uma pequena vareta para regê-la. Alguns historiadores apontam Louis Spohr (1784-1859) como realizador de tal façanha quando, em 1820, empunhou a batuta para dirigir uma das suas sinfonias, na Inglaterra. Outros, entretanto, afirmando que a batuta foi usada por Weber (1766-1821) durante um concerto em Dresden, em 1817. Com relação à posição do regente, afirma-se que a primeira vez que este deu a frente à orquestra e as costas ao auditório – como acontece hoje – foi na inauguração do teatro wagneriano de Bayreuth, em 1876.5
Segundo pesquisadores da história da música, a tradição de compositores-maestros era
uma prática muito difundida que vem desde G. P. Palestrina (1526-1494) executando suas
5 CARTOLANO, Ruy Botti. A expressão corporal como elemento de comunicação do regente. 1984. Dissertação. (Mestrado em Artes). Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1984. p. 30-31.
10
missas, J. S. Bach (1685-1750) suas cantatas, G. F. Handel (1685-1759) seus oratórios, W. A.
Mozart (1756-1791) suas óperas. Ela continuou, através de outros renomados músicos, como
L. van Beethoven (1770-1827), C. M. von Weber (1786-1826), L. H. Berlioz (1803-1869), F.
Mendelssohn (1809-1847), R. Wagner (1813-1883), G. Mahler (1860-1911), R. Strauss
(1864-1949) e O. Respighi (1879-1936), dentre outros, porém, nos seus repertórios de
concertos, esses últimos incluíam obras de outros compositores. Essa tradição de
compositores-maestros também ocorreu no Brasil com H. Villa-Lobos (1887-1959), F.
Mignone (1897-1986), C. Guarnieri (1907-1993), C. Santoro (1919-1989), dentre outros, que
assumiram a regência frente às orquestras, até a primeira metade do século XX. Entretanto,
concomitantemente, a figura do maestro exclusivamente como intérprete já aparece a partir da
segunda metade do século XIX, a exemplo de Hans von Bülow (1830-1894), Arthur Nikisch
(1855-1922), Felix Weingartner (1863-1942), Arturo Toscanini (1867-1956), Bruno Walter
(1876-1962) e Wilhelm Furtwängler (1886-1954). A necessidade de existir um profissional
que se ocupe, unicamente, do ofício da regência decorre da significativa complexidade das
composições a partir do século XIX, pois, o desenvolvimento dos gêneros e das formas
musicais, das linguagens composicionais, das técnicas de orquestração, como também o
aumento expressivo do número de músicos no coro e na orquestra, fizeram com que este novo
profissional da música emergisse e se dedicasse ao aprimoramento da arte de dirigir conjuntos
musicais. Essa direção não contempla apenas questões relativas à música, ela requisita um
profissional que possua características que vão além da arte, além do estético, além do “belo”.
1.1.3 Regência a partir do século XX
Até o século XIX os músicos estavam subordinados ao clero e à nobreza, porém,
desde o início de século passado, estes músicos já não se encontravam mais em tal condição
de submissão, e isto foi um dos importantes fatores que levaram a uma reavaliação na
qualidade da relação hierárquica entre o maestro e os músicos (em geral instrumentistas de
11
orquestra). Encontrando-se o músico do período moderno nessa nova situação e também
melhor preparado artisticamente, deu-se a necessidade do maestro possuir uma ampla gama
de informações para dirigir um conjunto musical, logo, a era dos regentes excessivamente
autoritários, detentores de poderes absolutos nas resoluções de todas as questões relativas à
orquestra, anunciava o seu término. Para se manter no ofício da regência, não era mais
suficiente saber todo o conteúdo da obra, do autor, das questões técnicas do grupo e dos
conhecimentos diretamente e indiretamente ligados à música. Essa competência, a partir da
segunda metade do século XX, requisitou um enfoque humano como elemento facilitador
nessa profissão. Nas orquestras, os instrumentistas começaram a expressar a necessidade de
trabalhar num ambiente menos intransigente e ditatorial, e isto, com certeza, produz um
melhor resultado artístico. Harry Price e James Byo apresentam a seguinte idéia a esse
respeito.
Conducting and rehearsal behaviors play a role in establishing an appropriate and effective rehearsal atmosphere. Situations in which conductors provide predominantly positive feedback result in better attitudes, attention, and performance. Fast paced rehearsals are usually the most effective, and comprise frequent and generally brief episodes of teacher talk and ensemble performance. Enthusiastic or dynamic rehearsing features stark contrasts of behavior at optimal times – loud and soft talk, expressive and neutral conducting, group and individual eye contact. Rehearsals should be structured to include processes of diagnosis, prescription, presentation, monitoring, and feedback, with brisk paced and clear directions. Essentially, a conductor should focus on making verbalizations efficient and keeping them to a minimum, while enhancing nonverbal behaviors to include large amounts of eye contact and clear and unambiguous conducting gestures.6
6 PRICE, Harry E.; BYO, James L. Rehearsing and conducting. In: Parncutt, Richard & McPherson, Gary E. The science & psychology of music performance – creative strategies for teaching and learning. New York: Oxford University Press, 2002. Os comportamentos de regência e de ensaio desempenham um papel no estabelecimento de uma atmosfera apropriada e eficiente no ensaio. Situações nas quais regentes fornecem um conhecimento predominantemente positivo, resultam em melhores atitudes, atenção e desempenho. Ensaios em tempos rápidos são, geralmente, os mais eficientes e incluem freqüentes e geralmente breves momentos de uma fala como professor e da execução musical pelo grupo. Ensaio entusiástico ou dinâmico apresenta forte contraste de comportamento em momentos adequados – fala sonora e gentil, regência expressiva e neutra, contato visual individual e coletivo. Ensaios devem ser estruturados para incluir processos de diagnose, prescrição, apresentação, monitoramento e resposta, com orientações vivas e claras. Essencialmente um regente deve se concentrar em fazer verbalizações eficientes e mantê-las a uma quantidade mínima, enquanto realça comportamentos não verbais que incluem grande quantidade de contato visual e gestos claros e precisos na regência. (Tradução do autor).
12
Como apresentado na página 6, constatamos então que a interpretação musical na
regência está fundamentada na reunião de vários campos de conhecimentos da música e de
informações específicas de outras áreas humanas afins, tais como: psicologia, sociologia,
antropologia e filosofia. O eficiente desempenho na regência perpassa pelo domínio particular
de cada um desses núcleos de saberes, por suas intersecções, pelos resultados dessas
interfaces e, sobretudo, pelo entendimento da simultaneidade dos conhecimentos exigidos em
cada etapa do processo de elaboração da concepção musical. Conhecimentos de cunho teórico
(análise musical, técnicas de composição, história da música, estética, etc); conhecimentos
predominantemente cinestésicos (técnica de gestos, técnica vocal, técnica instrumental, etc.);
conhecimentos teórico-práticos (percepção musical, apreciação musical, dinâmica de ensaio,
etc), assim como os temas intrínsecos às relações humanas, tais como: liderança, carisma,
justiça, credibilidade, temperança, etc, devem ser de profunda ocupação de um regente, que já
se encontra suficientemente preparado técnica e artisticamente, e que almeja apresentar
coerência e consistência na interpretação de um dado repertório. Aqui, faz-se necessário
distinguir a interpretação musical da concepção musical do ponto de vista da regência. Essa
concepção musical é um evento da mente (intelectual) e consiste no estudo da obra e do
compositor, no planejamento e organização dos ensaios e, sobretudo, na adequação do
repertório ao local de concerto e ao público. Este último tópico é referente à acústica, que é
um elemento definidor dos tempos na música, pois uma sala de concertos que possua
excessiva reverberação sonora não é a mais indicada para se executar obras em tempos
rápidos, e que também apresentem uma grande complexidade de polifonia e/ou polirritmia. A
excessiva reverberação do som nesse referido espaço físico pode comprometer a sincronia, a
precisão rítmica, o equilíbrio entre as vozes, as nuances de articulação, assim como outras
características musicais implícitas à partitura, em função da audição do músico ser
prejudicada pelo fenômeno acústico. Para solucionar os problemas acima listados a primeira
13
coisa que se faz é diminuir o tempo da música e isso modifica diretamente a concepção
musical pré-elaborada. O oposto também procede, pois peças em andamentos lentos, com
figuras musicais de grande duração ou longas fermatas, não são as mais propícias a serem
executadas em ambientes de pouca reverberação sonora. Durante o processo da concepção
musical, deve-se ter essa atenção sobre a acústica do espaço, verificando a adequação do
repertório ao local de apresentação para, a partir desse ponto, elaborar idéias musicais. Já a
interpretação musical consiste na realização da concepção pré-elaborada, ou seja, é a
manifestação das idéias do regente sobre a música. Além das condições impostas pela
acústica do local de apresentação, deve-se considerar que, diferentemente dos músicos
solistas, um conjunto musical é um “organismo vivo” que reage de várias maneiras e
intensidades às idéias do maestro. Por exemplo, no processo da concepção musical pode-se ter
uma idéia sobre um fraseado para um determinado naipe ou músico da orquestra, mas durante
os ensaios, que é o processo da construção da interpretação musical, isso pode ser modificado
por uma questão técnica e artística do conjunto ou até mesmo por questões acústicas.
A interpretação musical na regência, também tem seguido um conjunto de
informações e regras que obedecem a um sistema de tradição, ou seja, as relações “professor e
aluno” ou “maestro e assistente” estabelecem a continuidade do conhecimento técnico e
interpretativo na área, dando origem ao que aqui denominamos como “Escolas de
Interpretação na Regência”. Desde a renascença, a liberdade para improvisar e ornamentar
uma peça musical era uma constante, mas esta prática acontecia sob a orientação do
compositor. Vasconcelos confirma este fato na citação abaixo:
Desde os primórdios da música instrumental existe uma diferença entre o que o compositor escrevia e o que o intérprete executava, porque havia uma prática que dava ao executante a liberdade de improviso, com inserções de nuances de expressão, principalmente o uso de ornamentos, na música. Naquela época, o compositor participava ativamente da execução de suas músicas em ensaios e concertos, fosse como solista ou como regente. À medida que aumentou o número de executantes e também o número de concertos, nos quais eles, os compositores, não participavam, se viram os
14
mesmos obrigados a achar meios para fornecer dados necessários que pudessem esclarecer suas intenções musicais e limitar os excessos de interpretação por parte dos executantes, em suas músicas. 7
Esse sistema de transmissão das informações artísticas de uma partitura, possui um
significativo grau de importância, porém, uma investigação mais minuciosa das
potencialidades e restrições do que entendemos por interpretação em música, proporcionará
uma melhor identificação e classificação de elementos musicais e extramusicais da obra em
estudo, conduzindo-nos a um processo mais profícuo para a elaboração de uma concepção
musical da obra em foco. No que diz respeito à interpretação musical na regência, a literatura
na área oferece uma bibliografia quantitativamente razoável, porém a abordagem geralmente
é uma descrição de como se realizar uma determinada obra. Existem vários livros que
informam aspectos musicais de uma partitura, como por exemplo: qual andamento escolher
para as sinfonias de Beethoven, qual gesto utilizar para realizar um fraseado em Brahms, onde
começar e terminar um ritenuto em Debussy. Tais depoimentos são valiosos porque muitos
deles relatam a visão artística e musical de maestros, professores e teóricos competentes,
porém, a visão que ora apresentamos é a reflexão sobre a descontinuidade natural e necessária
do ato interpretativo do ponto de vista de regência, ou seja, identificação, correlações e
intersecções dos conhecimentos do regente para interpretar uma obra. Além disso, esse estudo
oferecerá uma perspectiva da regência que pode enriquecer, ainda mais, o sistema de tradição
supracitado. Reconhecendo que a prática da regência se inicia no intelecto, isto é, num estado
de espírito, e auxiliado pelas observações e experiências próprias do ato interpretativo, faz-se
necessário abordar, separadamente, questões relativas à interpretação e ao intérprete para
reconhecer suas possibilidades e limitações. Mas, para manter a coerência do discurso, é
imprescindível reconhecer que esses dois conceitos em questão, formam um “uno”
indissociável, pois a interpretação só existe porque há um interpretante e este só existe porque
7 VASCONCELOS, Erick Magalhães. Objetivismo ou subjetivismo? Revista da Escola de Música da UFBA, Art 021. Salvador, p. 117, 1992.
15
há a necessidade de interpretar. Para alcançar um distanciamento necessário na investigação
da interpretação em música, além dos depoimentos de renomadas personalidades do meio
musical, recorreremos às contribuições dadas pelas áreas humanas, tais como filosofia e
estética.
1.2 Da Interpretação
Primeiramente, acreditamos que é de fundamental importância considerar a
etimologia dessa expressão que dá título ao estudo que desenvolveremos, pois, na condição de
intérprete, devemos conhecer, profundamente, o ato interpretativo com o intuito de identificar
as suas possibilidades e restrições. O maestro Sergio Magnani nos dá uma breve, mas
consistente, visão acerca disso:
Interpretar – ou interpetrar (do latim inter petras = entre as pedrinhas) – denota o ato de descobrir e comunicar os significados que podem estar ocultos por detrás de uma série de significantes fundamentais, (...) Atividade, portanto, de intuição e de técnica, baseada no reconhecimento dos símbolos e dos caminhos misteriosos da sua gênese, a fim de se chegar à tradução dos símbolos em eventos ou fenômenos, em nosso caso, sonoros.8
Chamamos atenção para a palavra intuição, contida na citação anterior. Ela representa
uma relação direta com o objeto, um conhecimento a priori do mesmo, uma visão original.
Não é uma atividade involuntária proveniente do instinto como, vulgarmente, é concebida
pelo senso comum. Entendemos que a intuição necessita da presença integral e efetiva do
objeto, e esta interação entre observador e observado, dá-se de maneira imediata e total, uma
perfeita adequação entre ambos, na qual não existe a possibilidade da dúvida e também não
carece do respaldo da razão. Essa precipitação de respostas imediatas por meio da intuição
também não deve ser confundida com o dogma, que igualmente é um conhecimento a priori,
mas ele (o dogma) é uma informação do objeto imposta ao sujeito por algo extrínseco a este,
ou seja, um movimento de fora para dentro; já no procedimento intuitivo, o intérprete atua
8 MAGNANI, Sergio. Expressão e comunicação na linguagem da música. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. p. 61.
16
ativamente no processo, por vontade própria, constituindo um espontâneo movimento de
dentro para fora que parte do sujeito para o objeto.
Mas, sendo a interpretação uma atividade que se inicia na mente e se precipita na
ligação do interpretante com o interpretado, esta relação é intermediada por sinais, signos e/ou
símbolos que constituem o elo entre as partes desse binômio. Para o evento sonoro, essa
ligação é a partitura com todas as informações nela contidas e as implicações que dela podem
ser inferidas, deduzidas e/ou pesquisadas. Partindo desse pressuposto, é crucial que este
documento musical seja fidedigno à idéia do compositor, assim como ao contexto histórico,
estético e social referente à obra. Porém, para que isso aconteça, necessário se faz valorizar a
qualidade do material elaborado pelo editor, pois esse profissional, que deve ter como pré-
requisito o rigor da informação através de critérios claros e bem estabelecidos quanto à edição
e revisão, é quem fornecerá uma partitura confiável. Thurston Dart nos dá o seguinte
depoimento:
A partitura musical como é conhecida hoje foi desenvolvida durante os dois últimos séculos aproximadamente. Na maioria das partituras publicadas em nossos dias, há indicações completas sobre a instrumentação da música, nuances exatas de dinâmica e andamento, ornamentos, arcadas, fraseados e assim por diante. Se a obra em questão foi escrita nos últimos cem anos, podemos estar certos de que a maioria desses sinais é a expressão autêntica do compositor. Quanto à música mais remota, é mais verossímil que a maioria deles, senão todos, não passem de expressões das opiniões do editor.9
É fato que um bom trabalho de interpretação em música fundamenta-se, inicialmente,
na escolha de uma partitura com edição urtext (original) ou oriunda de fontes confiáveis, que
tenham procedência e credibilidade. E ainda melhor será se o documento for autografado pelo
compositor (fax símile). Este fato diminui, consideravelmente, a possibilidade de dúvidas
quanto às informações objetivas de uma partitura, minimizando, ou até mesmo eliminando,
qualquer possível equívoco entre a idéia do compositor e o referido documento. Na obra Festa
das Igrejas, encontramos um exemplo que ilustra esse fato, pois, numa edição nacional, no
9 DART, Thurston. Interpretação da música. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 13.
17
início da quarta igreja (Nossa Senhora do Brasil), a clave do trombone é apresentada como
clave de fá, mas no original do compositor, ela consta como clave de dó na 4ª linha, tal qual
demonstram os exemplos abaixo, respectivamente:
Exemplo 01
Exemplo 02
Aquela isenção ideal de erros no documento remete ao ato interpretativo toda
responsabilidade do resultado artístico atingido, tudo recai sobre a interpretação e não sobre a
criação. Uma vez confirmada a fidelidade da partitura, o trabalho torna-se menos fadado a
erros primários.
1.2.1 Fundamentos para Interpretação em Música
Tendo a interpretação toda responsabilidade sobre o resultado musical de uma obra,
ela (a interpretação) exige como pré-requisito o conhecimento dos sinais, signos e símbolos
da partitura em sua totalidade e também outras informações que a auxiliem. No campo da
música, não é possível pensar em concepção musical sem estar completamente cônscio das
informações contidas numa partitura, dos significados dos signos, como também das questões
que deles se originam. É condição básica do intérprete não equivocar-se com a significação
dos termos. Refiro-me não apenas à identificação destes mas também às suas possibilidades
18
de realizações. Isso é um elemento universal quando se remete a interpretação de qualquer
natureza. Deste ponto de vista, Abbagnano (1901-1990), citando Aristóteles (384 a.C. /322),
nos revela a seguinte proposição sobre interpretação:
Em geral, a possibilidade de referir um sinal ao seu designado; ou também a operação com que um sujeito (intérprete) refere um sinal ao seu objeto (designado). Aristóteles denominou interpretação o livro no qual estudava a relação dos sinais lingüísticos com os pensamentos e dos pensamentos com as coisas. Ele de fato considerava a palavra como “sinais das afecções da alma que são as mesmas para todos e constituem as imagens dos objetos que são idênticos para todos” e considerava além disso como sujeito ativo desta referência a alma ou o intelecto (De Interpr., 1, 16ª, 1 e segs). 10
Essa condição de decifrar todo e qualquer sinal de uma partitura é crucial para elaborar
uma concepção da música a partir da idéia do compositor. Estes são os primeiros alicerces de
uma interpretação consistente, mas considerando que essa leitura objetiva e direta dos sinais,
não retrata o conteúdo artístico de qualquer obra, é indispensável lançar um olhar mais amplo
sobre esse algo interpretante chamado música.
Considerar a natureza das informações contidas numa partitura é outro aspecto de
grande valor para o ato interpretativo. Sabemos que um fragmento de música (motivo, semi-
frase, frase, etc.) possui uma infinidade de possibilidades no que tange à sua execução, e
qualquer um deles contém em si um sentido quanto ao caráter musical. Entretanto, outros
elementos da partitura (dinâmica, articulação, agógica, etc.) também possuem infinitas
possibilidades de execução, mas não têm um caráter musical intrínseco a eles. Não possuem
um sentido interpretativo. Eles corroboram para a idéia que se quer revelar da obra, realçam o
sentido artístico, mas não são eles responsáveis em conter, nas suas essências, uma idéia
musical. Olhando por esse ângulo, a interpretação deve aproximar-se da absoluta consciência
do que deverá ser valorizado numa partitura. O que deve estar em primeiro plano e o que deve
estar nos planos subjacentes, por exemplo: Quando a harmonia é mais importante que a
melodia? Quando a melodia é mais importante que a harmonia? Quando ambas têm
10 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982. p. 550.
19
importância equivalente? Quando ambas são menos importantes que outros elementos
musicais? Este cruzamento de informações deve ser feito com todos os elementos musicais de
uma partitura para que ocorra a precipitação das possibilidades de realização da mesma.
Seguindo nesta linha de raciocínio, é importante saber que este processo não esgota a
interpretação, propriamente dita. Ele se configura como a decodificação e apreensão do
conteúdo artístico e musical da obra, bem como suas revelações enquanto execução. É um
estágio fundamental e obrigatório, mas demasiadamente objetivo para um conteúdo que
possui grande carga de subjetividade. Essa perspectiva substancialmente sistemática que a
interpretação em música pode sugerir, tem suas bases na tradição do pensamento
excessivamente sistemático de épocas remotas. Severino Boécio (470-480/524-526), entre os
séculos IV e V, apresentou uma visão objetiva do conceito de interpretação e essa doutrina
dominou e formou o pensamento ocidental por toda a idade média, como podemos verificar
na citação abaixo:
Boécio, graças ao qual a doutrina passou para a Escolástica latina, entendia por I. “qualquer termo que significa alguma coisa por si mesma” incluindo por isso entre as I. os nomes, os verbos e as proposições e excluindo as conjunções, as preposições e em geral os termos gramaticais que não significam nada por si mesmos. A referência do sinal ao seu designado era por isso, para ele, o essencial da interpretação. (In Librum de interpr. Editio prima, I, em P. L., 64, col. 295). Nesta concepção, a I. é a referência dos sinais verbais aos conceitos (as “afecções da mente”) e dos conceitos às coisas. As características da doutrina podem ser assim fixadas: 1.ª a I. é um evento que acontece “na alma”, isto é, um evento mental; 2.ª o sinal verbal ou escrito é diferente da afecção da mente ou conceito e se refere a este; 3.ª a relação entre o sinal verbal e o conceito é arbitrária e convencional enquanto que a relação entre o conceito e o objeto é universal e necessária. 11
Essa idéia, que influenciou todo um pensamento de época no qual a música estava
inserida, atesta que a interpretação tem como pressuposto qualquer palavra, expressão ou
11 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1962. p. 550.
20
termo que possua um significado por si mesmo, e atribui um valor maior ao nôumeno12
(realidade essencial) do que ao fenômeno (a realidade existencial), por exemplo: num texto
literário podemos “interpretar” nomes, verbos e proposições, mas não preposições,
conjunções e termos gramaticais, porque estes não possuem significados isoladamente, mas
sim funções. Considerando Boécio, podemos estabelecer um paralelo com uma partitura,
atribuindo aos motivos, temas, frases e períodos musicais coisas que possuem significados em
si, ou seja, possuem um conceito a partir da sua essência, ao ponto que, os elementos de
agógica, articulação, dinâmica, etc. são coisas que possuem funções, não expressando
significados fora de um contexto musical. Como explicitado anteriormente, esse nível de
abordagem no âmbito da música, nos dá, na medida do possível, uma perspectiva objetiva,
direta e confiável para que possamos decodificar os sinais escritos numa partitura com
precisão significativa. Porém, se não atentarmos para o “que” e “como” valorizar os
elementos de uma obra musical, poderemos trilhar caminhos absolutamente diferentes da
idéia do compositor. A doutrina de Boécio é uma associação sistemática, mas não lógica,
pois, sendo o som musical (destituído de palavras) o conteúdo de uma partitura, este se
apresenta de maneira infinitamente mais abstrata que a de um texto literário. Por isso, um
motivo, um tema, uma frase ou um período também não possuirá um significado consistente
se não tiver o seu caráter musical revelado. Através de elementos tais como agógica,
articulação, dinâmica, fraseado, textura, timbre, etc., as possibilidades do caráter musical
desses fragmentos são valorizadas, desvelando assim os caminhos interpretativos.
Essa doutrina, que fundamentou o pensamento sobre interpretação musical na Europa,
tem o seu mais conhecido exemplo musical no canto gregoriano, que obedecia regras rígidas
impostas pela igreja. Mas, apesar dessa visão ter o seu apogeu na idade média, numa menor
intensidade e por razões distintas, ela, de certa maneira, perpetuou-se até o século XIX, com a
12 Conceito apresentado por Immanuel Kant para denominar “a coisa em si” (N.A.).
21
busca dos compositores pela precisão na escrita. Quanto a isso, Vasconcelos nos diz o
seguinte:
Como era muito difícil compositor transcrever adequadamente suas intenções, os intérpretes começaram, segundo Henri Temianka, a “procurar um significado escondido nas notas musicais, sob as notas e além das notas”, o que é uma característica hoje denominada, por alguns estudiosos, como interpretação subjetiva, da mesma forma que no final do século XIX, à interpretação restrita aos detalhes fornecidos pelos compositores, chamou-se de interpretação objetiva ou literal .13
A necessidade de o compositor externar com clareza as suas idéias foi levada ao
extremo no século XX e Francisco Mignone, que, entre 1918 e 1928, viveu na Europa e
estudou no Conservatório Giuseppe Verdi, em Milão, não fugia à regra desse pensamento
então em voga naquele continente. Nas “Impressões Sinfônicas” 14 Festa das Igrejas pode-se
observar a intenção do compositor em ser o mais preciso possível quanto a sua criação. A
utilização do termo “Impressões Sinfônicas” é a busca de um conceito apropriado para um
gênero musical específico no intuito de se estabelecer a fidelidade entre a composição e a
partitura (adiante veremos esse termo mais detalhadamente).
Levando em consideração a natureza subjetiva de qualquer obra instrumental, as
“Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas carregam uma extrema dose de subjetividade
quando se trata da questão interpretativa. Por essa característica pouco objetiva no que tange
ao significado dos seus conteúdos, para construir um discurso musical coerente é necessário
estabelecer relações internas entre os elementos da obra em estudo, elementos estes que
envolvem a morfologia, harmonia, melodia, orquestração, textura, andamento, agógica,
dinâmica, articulação, fraseado, timbre, cor e tantos mais que a partitura ofereça. Esses
elementos se encontram num determinado “espectro”, no qual atuam todos eles em intra-
relação e inter-relação. Na inter-relação o enfoque deve ser dado a como diferentes elementos
13 VASCONCELOS, Erick Magalhães. Objetivismo ou subjetivismo? Revista da Escola de Música da UFBA, Art 021. Salvador, p. 117, 1992. 14 Termo apresentado por Francisco Mignone para contextualizar esta composição (N.A.).
22
musicais se relacionam, por exemplo: na quarta igreja (N. S. Aparecida do Brazil), na secção
das cordas, do compasso 12 ao 14, como a articulação musical que indica acento (>) se
relaciona com a melodia? (ver exemplo que segue).
Ex. 03
Já na intra-relação desses elementos musicais, cada um deles deve ser enfocado em si
mesmo, buscando identificar suas variações, gradações, nuances e, acima de tudo, como e
quando utilizá-las. Por exemplo: como as dinâmicas em pianíssimo das flautas, no compasso
10 e no compasso 28, na terceira igreja da obra de Mignone (Outerinho da Glória) se
relacionam? Estando esses trechos na mesma região, com a mesma indicação de metrônomo e
com uma figuração rítmica não distinta excessivamente, eles devem ser interpretados com a
mesma intensidade? (ver exemplos abaixo)
Ex. 04 (compassos 10-13)
23
Ex. 05 (compassos 28-30)
A busca por essas respostas nos conduz a um detalhamento da peça e, possivelmente,
ao bom entendimento da mesma, porém, considerando a obra como um todo, é necessário
relacionar essas micro-estruturas com as macro-estruturas. Os métodos de indução e dedução
devem ser utilizados como uma “via de mão dupla” a qualquer tempo que seja necessário no
ato interpretativo. Aprofundando ainda mais essa investigação acerca da composição,
questões com maior caráter subjetivo aparecem, tais como: Quais são as possibilidades que se
revelam do caráter musical desses trechos? Qual delas deve ser escolhida? Quais os critérios
para selecioná-las? Questões dessa natureza, baseadas nas informações históricas, estilísticas
e estéticas da peça e do compositor, dão suporte para entender o caráter musical de um
pequeno trecho, como também de toda a obra, e isto permite elaborar uma interpretação
coerente, íntegra e compreensível.
1.2.2 Subjetividade da interpretação em música
Do processo da interpretação musical surge a grande atividade do intérprete em
desvelar a essência da obra, porém, devemos questionar: quais as bases dessa interação? Sob a
ótica de uma interpretação literal essa é uma ligação frágil, superficial e arbitrária que
proporciona uma visão fundamentalmente objetiva e que fatalmente incorrerá em equívocos
interpretativos, pois, relembrando o inter petras (entre as pedras) apresentado na página 15, o
intérprete deve buscar as ligações entre os dados concretos de uma partitura, e esse conteúdo
não se apresenta tão facilmente a alguém que o analise com uma visão rasa e linear.
24
Vimos que ultrapassar a leitura e decodificação de sinais, signos e símbolos de uma
partitura é condição indispensável para a consistência da interpretação, porque a natureza
abstrata do conteúdo da música torna-se o foco em questão. Lançar um olhar preciso, mas
também amplo e flexível, sobre a obra, direciona o ato interpretativo para o encontro dessa
subjetividade. Sem a pretensão de conceituar o que é música ou, até mesmo, apresentar
conceitos que se aproximem de uma descrição, delimitar nosso objeto de estudo, tanto o
quanto seja possível, contribuirá na investigação a que este trabalho se propõe. Por mais
esmero que se tenha na transcrição de idéias para uma partitura, este som organizado, mesmo
por um compositor experiente, que domine técnicas de composição, que se oriente por normas
de instrumentação e orquestração e que possua criatividade suficiente para gerar motivos,
temas e estruturas musicais interessantes, ainda terá uma forte carga de subjetividade, pois a
música, destituída de um texto literário, não representa um significado objetivo e direto.
Friedrich Hegel (1770-1831), para se aproximar do entendimento do fenômeno musical,
estabelece uma relação de comparação da música com outras formas de expressão artística,
como podemos verificar na citação abaixo:
Quanto à questão de se averiguar qual deve ser a natureza da interioridade para se mostrar adequada à sonoridade e aos sons, dissemos já que, tomado em si, como objetividade real, o som, contrariamente à matéria das artes plásticas, é de natureza abstrata. Com auxílio da pedra e da cor, podemos reproduzir as mais variadas formas dos objetos, tal como existem na realidade; com os sons é impossível fazê-lo. Só a interioridade sem objeto, a subjetividade abstrata se deixa exprimir pelos sons. E essa subjetividade é nosso eu absolutamente vazio, nossa pessoa sem qualquer conteúdo. A missão principal da música consiste, portanto, não em reproduzir objetos reais, mas em fazer ressoar o eu mais íntimo, a sua mais profunda subjetividade, a sua alma ideal.15
Obviamente levamos em consideração o contexto no qual Hegel se baseou para fazer
tal afirmação. As artes plásticas (pintura e escultura), na transição do século XVIII para XIX,
buscavam suas inspirações na descrição da natureza e de figuras humanas, assim como a
15 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de estética: o sistema das artes. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997. p. 290.
25
música seguia a tradição de uma simetria quanto à morfologia (resquícios do classicismo). O
elemento abstrato ainda não era o foco principal dessas expressões artísticas visuais; por sua
vez, a música já estava a serviço do ideal dos primeiros compositores românticos de tal
período histórico. Mas, relembrando o conteúdo intrínseco às idéias musicais, a possibilidade
de recombinar os elementos a cada novo instante, é um dínamo que movimenta as matizes da
interpretação de uma obra. Acerca disso, Hegel ainda nos diz:
Porém, em geral, um fragmento de música comporta a liberdade, quer de uma execução firme e bem concluída, de uma observação do que se pode chamar a sua unidade plástica, quer a de digressões mais ou menos consideráveis inspiradas pela vontade e subjetividades vivente; a liberdade de passar de um ponto a outro, de continuar ou de se deter segundo os caprichos do momento, de reprimir isto ou aquilo, para em seguida lançar de novo no caudal tumultuoso. Se, portanto, se deve recomendar ao pintor ou ao escultor que estudem a natureza, não se pode fazer a mesma recomendação ao músico, porque a música não reconhece formas exteriores, sobre as quais ela possa se apoiar. As formas que dimanam das suas regras, leis e necessidades são constituídas por sons, os quais não se ligam intimamente ao caráter do pensamento que expressam, e deixam, do ponto de vista da sua aplicação e execução, um amplo campo à liberdade subjetiva.16
O subjetivismo intrínseco à música não nos afasta de um entendimento da mesma.
Apenas põe diante de nós questionamentos relacionados à sua abordagem e à sua
compreensão. É esta “perfeita imprecisão” do evento musical que mantém e produz as
infinitas possibilidades de interpretações. É fato que uma mesma obra musical, regida pelo
mesmo maestro, com a mesma orquestra, no mesmo local, porém em dois momentos
diferentes, apresentará interpretações substancialmente distintas, porém, artisticamente, uma
não é menos valiosa que a outra, elas apenas diferem entre si. Estamos agora no terreno da
estética musical, porém, sem a necessidade de julgar artisticamente esse ato interpretativo. A
estética é um dos importantes lastros de qualquer interpretação em música, mas o que se
pretende aqui é usufruir dos conhecimentos que esta dispõe e não da sua abordagem. Esta é
uma área extremamente vasta e um aprofundamento neste campo desviaria a reflexão ora
proposta em torno do ato interpretativo. 16 Idem. p. 296.
26
Visto que o abstracionismo é parte integrante desse processo, pois cada indivíduo tem
o seu grau e forma de pensamento quanto à abstração, verificamos que essa complexa sintaxe
dos sons pode ser imediatamente entendida, mas não facilmente explicada – e aqui inquirimos
o “porquê” da necessidade de tal explicação. Como dito anteriormente, esse trabalho é uma
investigação do ato interpretativo do ponto de vista da regência, e, diferentemente dos
cantores e instrumentistas, o maestro necessita, obrigatoriamente, de outros músicos para
expressar sua idéia musical e, para isso, ele também se vale do verbo, logo, a clareza e boa
oratória é parte fundamental do seu ofício; tomando como exemplo a palavra “templo”,
automaticamente somos remetidos a um espaço físico de caráter espiritual, mas já os termos
“mesquita”, “terreiro” ou “igreja”, conduzem nossos pensamentos para detalhes
arquitetônicos desse espaço e também para toda uma cultura na qual esses templos estão
inseridos. Entretanto, o que se pode dizer de um “simples” encadeamento de acordes? O que
representa uma seqüência harmônica de Ré M / Sol M / Lá M / Ré M? Inicialmente é apenas
uma cadência musical, mas infinitas possibilidades de pensamentos são projetadas de acordo
com todos os outros elementos da partitura que ajudarão no entendimento da idéia e na
construção do seu caráter musical. Contextualizando essa reflexão no trabalho então
desenvolvido, elaborar uma interpretação da obra Festa das Igrejas implica em transitar pelo
conhecimento objetivo dos símbolos e pela compreensão subjetiva das possibilidades de
realizações da obra. Mignone fez questão de escrever uma nota introdutória para cada igreja
da sua composição e, entendemos isso como uma tentativa de elucidar a interpretação das
citadas impressões sinfônicas. Contudo, se qualquer música tem, ou não, o poder de descrever
o mundo exterior, é outro questionamento que não se pode perder de vista quando se trata da
interpretação musical, pois optar por uma ou por outra visão definirá o caminho a ser
percorrido no ato interpretativo. Arthur Schopenhauer (1788-1860) contribui para a reflexão
com a seguinte idéia:
27
[...] percebemos que uma das belas artes permaneceu excluída de nossas considerações, e era necessário que assim fosse, pois no encadeamento sistemático de nossa apresentação não havia lugar apropriado para ela: a música. Esta se situa inteiramente isolada das outras. Não reconhecemos nela qualquer cópia, reprodução de uma idéia dos seres no mundo; contudo trata-se de uma arte a tal ponto grandiosa e majestosa, a atuar intensamente sobre o que há de mais interior no homem, onde é compreendida com tal intensidade e perfeição, como se fosse uma linguagem totalmente comum, cuja clareza ultrapassa mesmo a do próprio mundo intuitivo; que certamente nela existe mais do que um exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi, como designava Leibniz, [...]17
Se direcionarmos o nosso olhar para um objeto material qualquer, poderemos
descrevê-lo quanto a sua forma, tamanho, cor, função e outras características que lhe são
peculiares, e estas descrições serão diferentes, porém não excessivamente díspares. Por ser o
som o conteúdo do universo musical, a apreensão do primeiro torna-se um processo
profundamente abstrato, pois se tratando de um objeto imaterial, o elemento sonoro não
oferece muitas referências precisas para o intelecto, entretanto pode proporcionar uma ligação
imediata com as experiências e conhecimentos do interpretante. Considerando então a estreita
ligação da música com o espírito humano e, ao mesmo tempo, o distanciamento dela da
representatividade do mundo através dos sons, como o processo interpretativo pode atingir
uma coerência? Como elaborar um consistente discurso musical? Como abordar o lado
abstrato da música para construir uma interpretação compreensível da mesma? Por esse
caráter essencialmente subjetivo, tais questionamentos e reflexões acerca do fenômeno
musical são de cunho particular, mas, no que tange à interpretação musical na regência, este
processo precisa acontecer de forma inteligível, clara e direta, pois, como vimos
anteriormente, o maestro sempre expressará a sua visão interpretativa de uma obra juntamente
com cantores e/ou instrumentistas. Isso exige do regente para com o grupo musical, uma
técnica clara, precisa e expressiva, como também uma verbalização concisa, direta e fiel à sua
17 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação – III parte. 5. ed. São Paulo: Nova Cultura: Os Pensadores, 1991. § 52: p. 71-72. “Um exercício oculto de aritmética, sem que o espírito saiba que está lidando com números” (Tradução do autor).
28
concepção musical. Esta concepção musical a que me refiro está em busca da clareza dos
elementos subjetivos que não estão facilmente descritos na partitura. Eles formam o universo
abstrato da obra, os componentes que existem “entre as pedras” do inter petras anteriormente
descrito. Logo, o que concerne ao ato interpretativo é voltar o olhar para “quando”, “como”,
“porque” e o “que” se deve evidenciar, ou não evidenciar, na interpretação musical. Quais são
os critérios que fundamentam as escolhas? Solucionar, na prática, esses questionamentos é
uma das tarefas mais intrigantes do maestro frente ao conjunto, para a realização da música.
Para iniciar uma abordagem que busque essas respostas devemos recorrer, mais uma vez, à
ampliação e profundidade de visão já apresentadas. Ter uma visão, simultaneamente, objetiva
e subjetiva sobre a obra em questão é o que se apresenta como caminho a ser desvelado na
interpretação musical.
Reconhecer as possibilidades de realização de uma obra musical é a tarefa que norteia
esse trabalho, e como vimos, a interpretação em música está além da procedência e
confiabilidade da partitura, assim como da decodificação e apreensão desta última. Se a busca
então é da apreensão e entendimento da partitura, essa investigação deve procurar pelo
primeiro instante da mútua adequação entre o interpretante e a obra. A partir desse ponto
nascem os seguintes questionamentos: O que leva um intérprete a selecionar um determinado
repertório? Quais relações se estabelecem desde o primeiro contato dele com a música a ser
interpretada? Em que se baseia essa ligação? Pode-se pensar que o ato interpretativo do
maestro acontece apenas no concerto. Também é possível dizer que a interpretação musical é
resultado dos ensaios. Contudo, é mais pertinente afirmar que uma ação interpretativa é
conseqüência de estudos técnicos, históricos, estéticos acerca da obra e do compositor. Porém,
acreditando que o intérprete é o agente ativo de todo esse processo, pois é ele quem se move
em direção à obra, vale investigar um instante anterior aos momentos de estudos, ensaios e
concertos, que está relacionado com as questões apresentadas neste parágrafo. Questionar o
29
que estimula um intérprete a escolher um determinado repertório ou uma obra é buscar o
primeiro instante de conexão entre eles. A importância desse primeiro momento é possibilitar
uma consciência de todas as fases do ato interpretativo. Uma composição pode estar num
repertório musical sob as justificativas de: beleza, exigência contratual, desafio técnico,
aprimoramento da musicalidade, lapidação da expressividade, resultado de um trabalho de
pesquisa, e tantos outros motivos se tenha para o fato. O que importa, primeiramente, é voltar
a atenção para o instante inicial de contato com a peça para ter clara consciência do motivo
dessa escolha e poder abordá-la de acordo as intenções do intérprete. O caso das “Impressões
sinfônicas” Festa das Igrejas terem sido selecionadas como objeto de estudo desse trabalho,
apóia-se, inicialmente, no fato da produção composicional de Mignone ser conhecida pela alta
qualidade técnica, grande variedade de gêneros e significativa quantidade de composições.
Sendo, esta peça, uma das mais expressivas de todo o conjunto da sua obra, ela pode sintetizar
o pensamento do autor durante um período criativo da sua vida, facilitando assim o
entendimento da poética do mesmo (no 3° capítulo serão apresentados detalhes da obra).
Tanto a poética, no seu sentido mais amplo18, quanto a curiosidade, de modo mais
despretensioso, ambas podem desencadear a interação do interpretante com interpretado, mas
algo fez com que o sujeito voltasse seu olhar para o objeto, e é nesse instante que eles iniciam
uma relação de unicidade, no qual o ente observado (a obra) tem suas possibilidades reveladas
pelo observador (o maestro). Martin Heidegger (1889-1976) apresenta uma ótica da
interpretação que abrange o desenvolvimento e a realização da compreensão, como
instrumento fundamental do entendimento de um dado objeto, e das suas várias formas de
expressão.
Na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades, constitutivo da compreensão, é um poder-ser que repercute sobre a pre-sença as possibilidades enquanto aberturas. O projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se
18 Entendemos que o amplo sentido do termo poética, significa a gama de pensamentos e reflexões que um artista faz da sua própria criação ou da arte em geral.
30
elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração. Nela, a compreensão se apropria do que compreende. Na interpretação, a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa. A interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão.19
A fundamentação do ato interpretativo na compreensão é bastante procedente, pois
não se pode interpretar o que não se compreende, e isso é suficientemente lógico. Mas, o que
podemos observar no discurso de Heidegger é o reconhecimento das possibilidades de
realização do objeto (a pre-sença) já na ação de compreender algo, já no primeiro contato do
sujeito com o objeto. Isso denota a existência de um pensamento a priori acerca da realização
dessas possibilidades do objeto. É uma visão antecipada do que entendemos por interpretação.
Na seguinte citação, verificamos, com mais profundidade, o pensamento do autor.
A interpretação sempre se funda numa visão prévia, (N51) que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. O compreendido, estabelecido numa posição prévia e encarado numa “visão previdente” (vorsichtig) torna-se conceito através da interpretação. A interpretação pode haurir conceitos pertencentes ao ente a ser interpretado a partir dele próprio, ou então reforçar conceitos contra os quais o ente pode resistir em seu modo de ser. Como quer que seja, a interpretação sempre já decidiu, definitiva ou provisoriamente, por uma determinada conceituação, pois está fundada numa concepção prévia. A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições.20
Podemos entender que esse pensamento a priori, na esfera da música, inicia-se já no
processo de seleção de um repertório para um concerto e se finda com a realização desse
programa musical, assim como na simples escolha de uma peça que gostaríamos de escutar de
maneira despretensiosa até o término dessa audição. Essa visão prévia, antes mesmo de nos
apropriarmos da obra com profundidade, está presente já no mero pensamento sobre o objeto
musical (o que não representa o conceito de intuição descrito no início deste capítulo).
Independentemente dessa “atração” ser um desafio técnico-artístico, um prazer estético, ou ter
19 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – parte I. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. § 32, p. 204. 20 Idem. p. 206-207.
31
suas razões oriundas de outras fontes, o que nos faz selecionar uma obra, segundo Heidegger,
configura-se como um ato interpretativo fundamentado no ato da compreensão, podendo este
ser permanente, ou não, com os conceitos intrínsecos à interpretação. Ou seja, ao interessar-
nos por um objeto, ao lançar o olhar sobre algo, mesmo que por curiosidade inicial, neste
momento dá-se início o ato de compreender que, no conceito heideggeriano, pressupõe uma
interpretação. Mesmo que esta visão prévia não possa expressar uma proposição, isso não
implica na ausência de uma interpretação articuladora e, conseqüentemente, num meio de
realização, porque todo objeto de estudo que está ao nosso alcance já é compreendido a partir
da totalidade conjuntural. Essa pré-concepção de um ente, por sua vez, não deve ser
confundida com o conceito do que, vulgarmente, conhecemos como “pré-conceito”, de
projeções afirmativas sem sentido sobre o objeto. Não se pretende, dentro do pensamento do
autor, atribuir significados ao ente compreendido no ato da compreensão, mas, pelo contrário,
o propósito é do sujeito desnudar-se dos “pré-conceitos” diante do objeto, alcançando uma
abertura de visão, para descobrir as possibilidades de realização que o mesmo já oferece.
Dentro do universo musical, esse pensamento afirma que ao interessar-nos por um repertório,
ao direcionar a atenção para uma obra, mesmo que por despretensiosa curiosidade, dá-se aí
um elo entre o intérprete e a peça em observação. Isso é um processo de identificação entre
pares que estabelecem uma relação, na qual automaticamente instala-se o processo de
compreensão que já contém uma visão interpretativa. O importante é notar que uma pré-
concepção, por conseguinte, uma pré-interpretação acontece no ato de compreender algo,
mesmo que, em alguns momentos, ainda não tenhamos total consciência disso. Sob essa ótica,
o autor nos conduz às questões sobre o que nos move em direção a uma determinada obra
musical, o que nos impele a selecionar um repertório específico. Atentos a esses
questionamentos, nós poderemos identificar as possibilidades de realização já contidas no
objeto, no ato da compreensão, e elaborá-las no ato da interpretação.
32
Até então a abordagem sobre interpretação tem sido de maneira conceitual
(entendimento do ato), ou do ponto de vista da sua funcionalidade, ou ainda sobre as
características de cada elemento envolvido num dado sistema interpretativo. Tal fato,
indubitavelmente, possibilita-nos uma maior segurança na reflexão sobre o evento e,
possivelmente, um melhor desempenho na ação de interpretar. Porém, a problematização
clara e explícita sobre interpretação, proporciona maior aprofundamento no tópico em
questão. Acerca dessa problemática, Luigi Pareyson (1918-1991) apresenta o seguinte
pensamento:
A primeira coisa que salta à vista no fenômeno da interpretação é a sua infinidade: a interpretação é infinita quanto ao seu número e ao seu processo. Por um lado, não há interpretação definitiva nem processo de interpretação que, alguma vez, possa dizer-se verdadeiramente acabado: a série de revelações não está nunca fechada, e toda proposta de interpretação é passível de revisão, integração, aprofundamento, e há sempre alguma nova circunstância que a desmente, ou limita, ou corrige: cada vez que se relê uma obra, o processo de interpretação que se mantinha fechado reabre-se, e tudo é recolocado em questão; mesmo aquilo que se conservou da primeira interpretação é profundamente mudado, acolhido num novo contexto e integrado por novas descobertas. Por outro lado, as interpretações são muitas, tantas quantas as pessoas que se aproximam de uma determinada obra, e até mais, se pensarmos nas mudanças a que, no curso da vida, uma mesma pessoa é levada, sob estímulo de novas circunstâncias e de novos pontos de vista: [...]21
A problemática proposta pelo autor nos coloca diante à vastidão das possibilidades
interpretativas, seja quanto aos infinitos aspectos que o objeto a ser interpretado oferece ou
quanto às incontáveis abordagens que podem ser utilizadas pelo intérprete. Esse é um dos
grandes dilemas da prática musical interpretativa. Como visto anteriormente, a tradição é
responsável por uma expressiva quantidade de transferência de informações na regência (ver
página 8). A validade dessa tradição oral entre os regentes é inquestionável, pois ela
representa a experiência acumulada pelo maestro na relação direta com a orquestra, coro ou
banda, é o relato da práxis, é a visão do observador que também é observado e isso é de
21 PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989. p. 165-166.
33
grande valia no âmbito das relações humanas, ambiente no qual um regente sempre atuará.
Por outro lado, essa transferência oral de informações é um método que nos fornece dados
musicais que podem oscilar de uma resposta profunda com justificativa embasada a uma
simples impressão pessoal de quem a apresenta. Tendo a figura exclusiva do maestro se
apresentado mais definidamente no século XIX, em geral, os escritos sobre interpretação em
regência fundamentam-se nas experiências pessoais dos que a exercem, deixando de lado uma
reflexão mais profunda sobre a eficiência da aplicabilidade dos métodos na prática. Essa
infinidade de aspectos que uma obra musical oferece e as múltiplas possibilidades de
concepções do intérprete, decorrentes do seu constante amadurecimento, proporcionam um
campo de inesgotáveis realizações. Visto que pela subjetividade e pluralidade intrínsecas à
relação observador-observado, a interpretação pode não atingir a essência do objeto e perder-
se no conhecimento periférico do mesmo, consequentemente, ela pode forjar idéias e tentar
adicioná-las a este mesmo elemento em questão. Para não seguir tais passos, devemos então
admitir que o conhecimento interpretativo na esfera da música situa-se num campo relativo e
de constantes mudanças. Esse universo infindável das possibilidades de realização de algo se
caracteriza, em primeira instância, como um terreno fértil para as concepções de todas as
linhas de pensamento, porém, aprofundando ainda mais no problema, devemos nos questionar
acerca da natureza e características do que chamamos de interpretação, enquanto elemento de
ligação do intérprete com o interpretado. Sendo a interpretação o elo entre esses pares, e
reconhecendo a infinidade de aspectos de um e as inúmeras abordagens do outro, surge uma
reflexão quanto à validade e a eficiência do que entendemos por interpretação. Quanto a isso,
Pareyson nos diz:
Por um lado, diz-se que a interpretação, por aquela sua natureza que lhe impede de se apresentar como definitiva, é, no fundo, somente uma aproximação: ela nunca atinge o coração do objeto, não faz mais que girar em torno dele, deixando escapar a sua essência profunda e seu íntimo segredo, contentando-se com colher algum aspecto periférico e limitando-se a um conhecimento impreciso e parcial. Por
34
outro lado, diz-se que a interpretação, por aquele seu caráter pessoal, e portanto múltiplo, é o reino da subjetividade e da realidade: ela não nos dá a realidade do objeto, mas a imagem que nós nos fazemos nele, ou com sobrepor-lhe as nossas mutáveis reações e, por isso, vendo-o através de uma lente deformante, ou com o dissolvê-lo na nossa interioridade e, por isso, desconhecendo sua objetiva independência; com isso não fica nenhum critério para julgar as diversas interpretações a para preferir uma à outra, mas elas são diferentes, todas aceitáveis e todas igualmente legítimas. (...) Evidentemente, originam-se dos dois pressupostos seguintes, implicitamente afirmados ou abertamente declarados: em primeiro lugar, que um conhecimento só é pleno e completo se único, de modo que onde os modos de conhecer são muitos não há senão aproximação, e, em segundo lugar, que a natureza pessoal da interpretação é uma condição fatal e intransponível, que confere a todo o nosso conhecimento um caráter irremediavelmente subjetivo. Deste ponto de vista, a notada característica da interpretação, de ser infinita quanto ao número e ao processo, é considerada como uma desvantagem inicial e decisiva; e se a arte é uma das regiões mais vastas do amplo reino da interpretabilidade, por isso mesmo ela vem abandonada às considerações mais imprecisas e aproximativas e aos tratamentos mais subjetivos e arbitrários. 22
No campo da música, essa pluralidade do processo interpretativo permite o surgimento
de concepções musicais de grande coerência, quando a relação sujeito-objeto está em sintonia,
mas também permite o aparecimento de visões interpretativas insuficientemente consistentes,
quando há pouca sintonia entre os entes da relação, em decorrência da falta de critérios e da
exígua reflexão, por parte do intérprete, sobre os desafios e indagações que a obra oferece. No
campo da prática musical, devemos questionar o seguinte: como se dá a interação de um
músico e uma obra? É possível alcançar a essência de uma composição? O que é a essência da
composição? Cada obra musical pertence a um momento histórico único e carrega com ela
inúmeras informações, todas elas legítimas, importantes e que pertencem, unicamente, a ela.
Mesmo que uma música tenha sido concebida com bases em outra, essa obra inspirada
contém em si novos elementos, frutos do seu instante único de concepção e criação, e para
manter a legitimidade desse conteúdo é importante fazer as perguntas coerentes para a
composição. Essas questões devem considerar, concomitantemente, toda carga objetiva e
subjetiva da partitura e então, a partir desse ponto, observar a precipitação das possibilidades
22 Idem, p. 166.
35
de realização do conteúdo musical. Qualquer que seja o método interpretativo, este não deve
impor, a uma partitura, as suas idéias fixas, concebidas antes mesmo de se analisar as
respostas que a obra revela. Devemos reconhecer que estamos num campo de conhecimento
complexo pela sua subjetividade, e esta subjetividade característica da área pode fazer com
que a delimitação do objeto, assim como a escolha do método, seja mal realizada.
1.2.3 Apreensão, Tradução, Compreensão e Expressão em música
Identificar e classificar os elementos musicais de uma obra, e também considerar
como eles podem ser combinados numa performance musical, remete-nos a uma visão mais
ampla do que concebemos como interpretação em música. Para tanto, é necessário que
consideremos quatro conceitos oriundos do latim, intrínsecos ao estudo da partitura e do fazer
musical. Com base nas suas respectivas etimologias, esses termos são apresentados por mim,
como resultado de estudos e práticas que obtive no ofício da regência. São eles: 1) Apreensão,
2) Tradução, 3) Compreensão e 4) Expressão. Apreensão (apprehensio) significa a ação de
tomar, de segurar, de reter. No nosso estudo consideramos apreensão como a maneira que o
intérprete recolhe e se apropria das informações referentes à obra sem a necessidade de
explicação ou valoração do conhecimento apreendido. Por Tradução (traductio) entendemos a
decodificação dos sinais, signos e símbolos do conhecimento apreendido. A transferência de
um sistema a outro sistema. No nosso caso, a mudança do sistema grafado para o sonoro. A
Compreensão (comprehensio) representa o ato de comunhão do conhecimento apreendido e
traduzido com o sujeito. É a fusão do observador com o observado, a co-existência de ambos,
ou seja, a quebra das barreiras entre intérprete e a obra para que estes atuem conjuntamente.
Expressão (expressio) é por nós entendida como a manifestação inteligível e clara das três
ações anteriores. É a ação do intérprete em retirar de si todo o conhecimento apreendido,
traduzido e compreendido, apresentando-o para o mundo extrínseco ao seu ser. Essas etapas
de interação com uma obra musical foram apresentadas de maneira linear apenas para melhor
36
entendimento das mesmas, porém cada uma já contém parte da outra, estabelecem
intersecções, existem por uma conectividade, podendo, até mesmo, todas acontecerem
simultaneamente gerando um campo unificado dessas ações básicas interpretativas e,
ratificando assim a descontinuidade do conhecimento no ato da interpretação musical.
1.2.4 Hermenêutica Musical
Por tudo isso, o processo de estudo envolvendo os quatro estágios supracitados nos
conduz ao que chamamos de “Hermenêutica Musical”. O termo “hermenêutica” tem como
uma de suas supostas origens o mito de “Hermes”. Filho de Zeus e de Maia, Hermes – que
fabricou a primeira lira – andava com incrível velocidade pelos reinos dos deuses, dos homens
e das trevas, possuindo a tarefa de ser o intérprete da vontade do universo divino sobre o
humano. Essa capacidade de transitar, habilmente, por vários mundos, bem como a
velocidade de andar pelos caminhos, deu as bases para a concepção de hermenêutica,
enquanto processo interpretativo de textos bíblicos (exegese) e, posteriormente, conteúdos de
cunho subjetivo. Enfocar a prática musical pela hermenêutica, permitirá uma abordagem mais
contextualizada ao objeto de estudo, já que este possui uma infinidade de aspectos e um olhar
sempre evolutivo.
A pesquisadora Sonia Albano de Lima apresentou um texto sobre hermenêutica na
música, na Conferência Internacional do Brasil de Pesquisa Qualitativa, em 2004, na cidade
de Taubaté. Nesse texto, publicado em 2005, a autora discorre sobre a seguinte idéia:
[...] A pesquisa considera a hermenêutica como um dos métodos de investigação mais eficazes para a compreensão dos procedimentos interpretativos musicais. Partindo do princípio que todo conhecimento humano projeta-se, no mundo, por meio da representação, a música, enquanto linguagem, manifesta-se como uma das formas desse conhecimento. Portanto, exige-se uma compreensão dos fenômenos musicais que habitam a prática musical, os processos de criação e o estudo teórico-musical. [...]23
23 LIMA, Sonia Albano de. Performance: investigação hermenêutica nos processos de interpretação musical. In: RAY, Sonia (Org.): Performance musical e suas interfaces. Goiânia: Editora Vieira, 2005. p. 93.
37
Como vimos até então, os pensamentos apresentados sobre a prática da música
perpassam por uma definição pessoal desses autores no que tange à sintaxe dos sons. Mesmo
sabendo que a investigação das definições para música não esgota a discussão, reconhecemos
a importância do exercício intelectual acerca desta para ampliar e aprofundar a sua visão. Esse
campo especulativo criado em torno do objeto é de grande relevância para a escolha das
abordagens relativas ao mesmo. A música tem participado da história da humanidade desde os
primórdios e a sua utilização varia de acordo a necessidade de cada comunidade na qual ela
está inserida. Especular acerca de um conceito para música não facilitará o ato interpretativo e
sim conduzirá o pensamento a digressões inférteis. Porém, verificar contextos nos quais a
prática interpretativa acontece, proporcionará um enfoque mais claro dos elementos objetivos
e subjetivos da música formando um campo de estudos mais propício para as abordagens de
uma obra.
Acreditando que a música sempre acontece dentro de um contexto humano, no qual
desejos e repulsas acontecem na mente e no corpo dos indivíduos que com ela interagem,
verificamos que lançar uma visão antropológica sobre o evento musical é uma proposta
segura e não restritiva às facetas e nuances que giram em torno desse tema. Sobre isso, Alan
Merriam, no seu livro The Anthropology of Music, publicado em 1964, apresenta e
desenvolve uma classificação funcional dos eventos musicais. São elas: 1) função de
expressão emocional; 2) função de prazer estético; 3) função de divertimento; 4) função de
comunicação; 5) função de representação simbólica; 6) função de reação física; 7) função de
impor conformidade a normas sociais; 8) função de validação das instituições sociais e dos
rituais religiosos; 9) função de contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura; e
10) função de contribuição para a integridade da sociedade. Reitero que o nosso propósito não
é definir um conceito para música, mas sim investigar as suas possibilidades de expressão.
Essa lista suscitou grande especulação na área teórica da música, levando o etnomusicólogo
38
Bruno Nettl, na 2ª edição do seu livro The Study of Ethnomusicology publicado em 2005, a
questionar o conceito de função ali aplicado; e também sofreu considerações de como essas
funções podem direcionar para as diferenças entre signos e símbolos, no estudo apresentado
por Keith Swanwick em seu livro Ensinando Música Musicalmente, publicado em 2003. As
observações de Nettl e Swanwick são abordagens enriquecedoras para o processo de
entendimento da música, mas não nos deteremos nelas para manter o foco da investigação
acerca da interpretação musical. Por isso, sob a ótica da prática interpretativa, verificamos que
tais funções apresentadas por Merriam possuem procedência na classificação e, ainda
podemos nos encontrar, simultaneamente, num estado de espírito que envolva duas ou mais
funções supracitadas. O que temos de observar, na condição de interpretante, é que um evento
musical acontece para um determinado fim, e é isso que devemos ter como um dos principais
focos, para não perder de vista o contexto da performance e suas condições implícitas.
Essa perspectiva antropológica, em interface com a regência, permite-nos analisar, não
apenas o nosso objeto de estudo, mas também as possibilidades de realização que uma obra
musical pode ter dentre os vários contextos das expectativas humanas, formando assim as
bases de uma hermenêutica musical.
1.3 Do Intérprete
A figura do maestro, enquanto intérprete, na cultura ocidental é uma das mais recentes
profissões da prática musical, conforme visto no início deste capítulo. Este profissional que
tem como pré-requisito um consistente conhecimento das áreas de composição, teoria da
música, prática instrumental, como também de outros campos dos saberes afins com a
regência, direciona o seu foco de atuação na direção de grupos. Mas, para diluir qualquer
dúvida quanto à existência do maestro devemos perguntar: qual a verdadeira necessidade do
intérprete? Este indivíduo, que se interpõe entre a obra, músicos e platéia, é ele imprescindível
à realização do evento musical? A tradição de maestro-compositor é mais fidedigna ao
39
conteúdo da partitura do que à de maestro exclusivamente intérprete? Essa é uma questão
antiga e foi exposta por vários estudiosos da música. Acerca do intérprete, Mário de Andrade
dá o seguinte depoimento:
O intérprete revela a obra do músico. Sujeita-se pois inicialmente a uma passividade absoluta que o leva à compreensão da obra do criador. Em seguida adquirida a compreensão deles age ativamente interpretando. Essa parece na realidade ser a verdadeira função do intérprete. E sob esse aspecto a subalternidade dele é muito grande. Recria uma obra alheia. Tem pois que dar a máxima atenção a ela pra não deturpá-la nem prejudicar o criador. A sua sujeição deve ser completa. O seu papel de intermediário nulifica-lhe o valor pessoal, desaparece. Em tese a precisão do intérprete pra que a manifestação musical se realize torna a música a mais precária e a mais prejudicada de todas as artes e como conseqüência deste pensamento o interprete deveria desaparecer. O criador revela a sua própria obra e então o ouvinte se identificará diretamente com o criador. A manifestação, a paga de amor do ouvinte muito se enfraquece porque se biparte entre intérprete e criador, quando não esquece inteiramente o criador e se entrega toda pro intérprete.24
Na citação anterior, ao tratar do intérprete, verificamos que a tentativa de Andrade em
enquadrar a arte da música no processo de expressão das artes plásticas é um ponto de vista
interessante, entretanto inadequado. O pintor, o escultor, o artesão, etc. revelam a sua criação
diretamente para o público, sem intermediários quanto à manifestação da obra. Essas são
expressões artísticas nas quais o criador atua diretamente sobre a manifestação da obra, porém
essa característica não se aplica ao evento musical. Isso, em primeira instância, pode
apresentar uma fidelidade entre criador e obra, mas, na música, o intérprete possui sim,
extrema importância. Apresentamos, anteriormente, grandes músicos da história ocidental que
desempenhavam essa função de compositor e intérprete. Os contextos nos quais esses
músicos atuavam, não só lhes permitia este feito, como também exigia que eles criassem e
interpretassem suas próprias obras, pois era uma cultura daquela época o compositor ser
também instrumentista. Chegou-nos a informação do virtuosismo de Mozart, Beethoven e
Schumann ao piano, pois estes seguiram a tradição européia que consistia na musicalização
através dos instrumentos de teclado. Logicamente que a vantajosa extensão, assim como os
24 ANDRADE, Mario. Introdução à estética musical. São Paulo: Editora Hucitec, 1995. p. 62.
40
recursos harmônicos, melódicos e de dinâmicas do piano-forte, foram fatores que, dentre
outros, contribuíram para a popularidade do instrumento. Entretanto, devemos observar que
esses famosos compositores, apesar de muitos deles terem produzido uma significativa
quantidade de obras vocais, não entraram para história como grandes cantores. Eles também
compuseram concertos para instrumentos de arcos, mas também não foram mencionados,
pelos musicólogos e historiadores, como expressivos músicos dessa família de instrumentos.
Então, podemos inferir que, desde tempos remotos, o domínio técnico para a manifestação do
som é uma tarefa que requer dedicação especial. Exige um tempo relativamente longo de
preparação e uma contínua prática para a manutenção do domínio técnico deste ofício. Na
regência isso não é diferente! Como exposto na página 10, as dificuldades técnicas e artísticas
das composições exigiram o aprimoramento do profissional que dirigia grupos musicais e,
conseqüentemente, o desenvolvimento das informações concernentes a essa prática
interpretativa foram se ampliando cada vez mais. Além de todos os outros conhecimentos
apresentados anteriormente, a qualidade técnica do maestro deve ser um fator de grande
atenção e empenho para um eficiente resultado musical. Logo, segundo a idéia de Andrade,
acreditar que o intérprete é prescindível na música, significa não primar pela qualidade
técnica e artística do evento. Além disso, devemos considerar que observar a si mesmo mostra
um ângulo de visão, e ser observado por outrem nos dá uma diferente perspectiva, uma outra
ótica, uma nova idéia do objeto. Assim também acontece na música! O compositor pode
interpretar sua própria obra magistralmente, mas não podemos negar que o intérprete também
pode interpretá-la com extrema propriedade, além de revelar nuances da música não
valorizadas pelo compositor que, apesar deste tê-la escrito, não enxergará extrinsecamente a
sua criação. Sobre isso Magnani afirma:
A obra musical, assim como qualquer obra de arte, é um “quid” absoluto e irrepetível, fugindo – até – aos condicionamentos do próprio autor, o qual dificilmente será dela o intérprete ideal, por carecer do necessário distanciamento estético. De fato, se até certo ponto é possível falar-se, na ciência do direito, de uma interpretação
41
autêntica da lei, isto é, de uma interpretação dada pelo próprio legislador (embora esta, por sua vez, possa ser diferentemente interpretada), nas artes musicais e representativas isto é impossível.25
Dentro dessa problemática, o maestro é o intérprete que mais possui a sua existência
questionada. Como apresentado na página 13, o conjunto musical é um “organismo vivo” que,
a todo instante, reage às ações musicais, artísticas, psicológicas, emocionais e espirituais do
maestro e de si próprio, proporcionando os conflitos de interesses presentes em qualquer
relação humana na qual “o poder” está inserido.
1.3.1 Da Validade do Maestro
No livro O Mito do Maestro, publicado em 2002, Norman Lebrecht (crítico inglês)
dedica um capítulo, intitulado A Busca de um Semi-regente, à tentativa de alguns conjuntos
musicais que optaram em trabalhar sem a figura do maestro.
Na Rússia, quando o poder foi tomado pelo proletariado oprimido, os músicos das orquestras foram contagiados pelo espírito revolucionário e se uniram para repudiar o jugo dos regentes. Em 1922, músicos de Moscou se reuniram em torno do ex-spalla de Koussevitsky, Let Zeitlin, para formar uma orquestra sem regente. Chamaram-na de Persimfans, um anacrônico de PERvyi SIMFOnicheskii ANSanbl, isto é, Primeiro conjunto sinfônico, e se propuseram como modelo para a futura organização das atividades de concertos na URSS. Os instrumentistas se sentavam olhando uns para os outros, num semicírculo, de costa para a audiência. Nos ensaios, “havia uma atmosfera de oficina gerada por artesãos orgulhosos e congregados na tarefa comum de fazer boa música”, relatou um solista visitante, Joseph Szigeti. “Cada homem tinha o direito de dar seu palpite vez por outra (...) brigas, maledicências, sicofantismo não tinham lugar na organização deles”. Prokofiev ficou surpreso ao constatar que eles eram capazes de enfrentar seus ritmos nervosos sem uma direção; “a única dificuldade reside na mudança de andamento, pois aqui o conjunto todo tinha de sentir a música exatamente da mesma maneira”. Darius Milhaud, outro compositor de cuja obra eles deram a première, observou mordazmente que “um regente teria obtido os mesmos resultados, sem dúvida um pouco mais depressa”. Zeitlin se ofendeu com as críticas, respondendo “não somos contra regentes, apenas contra maus regentes”. Convidado para dar um concerto, Otto Klemperer estava na metade da peça quando lhe mandaram sentar com a platéia, enquanto o Persimfans tocava o resto por sua própria conta. Num discurso de despedida, ele fez a seguinte pergunta retórica: “um regente é realmente necessário?”. Em última análise, continuo da opinião de que [é]. Primeiro, há obras novas de tal
25 MAGNANI, Sergio. Algumas observações sobre o ofício e a arte da regência. Revista da Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA, ART 010, Salvador, p. 19, 1984.
42
complexidade que um desempenho seguro sem um regente é dificilmente possível. Em segundo lugar, por mais precisamente que os detalhes sejam preparados nos ensaios, no concerto propriamente dito há sempre “alguma coisa” improvisada... de outra maneira a execução é maquinal.26
De acordo com a citação anterior, além de perceber como questões políticas interferem
no campo da regência, no âmbito profissional, o que a história apresenta sobre essa atividade
artística é que são grupos de músicos que se reúnem para realizar um repertório de maneira
camerística. Esse pensamento se propagou dando origem a outros grupos, a exemplo de:
Orpheus Chamber Orchestra (criado por Julius Fifer, em Nova York) e Academy of St.
Martin-in-the-Fields (dissidentes da Orquestra Sinfônica de Londres). O primeiro foi fundado
em 1972 e, com reconhecimento da crítica especializada, tem trabalhado com um repertório
que abrange do barroco ao século XX; já o segundo, após a aclamação do público e também
da crítica, passou a ter muitos compromissos profissionais, necessitando de um líder (Levine
Marriner) para direcionar os trabalhos, e, desta maneira, perdendo o seu caráter de orquestra
sem regente.
A figura do maestro não é apenas responsável em resolver problemas de ordem técnica
e/ou musical. Além dessa unidade musical, ele também é responsável por: dar uma direção
artística ao conjunto, estabelecer um método de trabalho produtivo, desenvolver o senso de
profissionalismo dos músicos, zelar pela eficiência dos processos administrativos, e, acima de
tudo, preservar pelo bom ambiente humano, dando equilíbrio psicológico e emocional ao
grupo.
1.3.2 Da Competência do Maestro
Vimos, pois, que a abordagem sobre o ato interpretativo em música coloca a regência
em contato com outras áreas de conhecimento, evidenciando, desta maneira, a sua
multidisciplinalidade. Mas, se essa pluralidade é um fato incontestável, o agente ativo do
26 LEBRECHT, Norman. O mito do maestro: grandes regentes em busca do poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 395-396.
43
processo (o regente) deve estar em consonância com estes saberes pré-requisitados. Esta gama
de conhecimentos é de tal forma, tão ampla e profunda que não se pode delimitá-la. Apesar de
já existirem informações sistematizadas no campo da regência, não é possível afirmar com
exatidão o “que” e o “quanto” se deve saber de cada esfera do conhecimento para ser um bom
maestro. Tal consciência apresenta maior clareza no que se refere aos conteúdos de cunho
mais objetivo (relação entre intérprete e obra), mas quando se trata da área humana, ou seja,
nas relações maestro e orquestra, maestro e público, maestro e instituição, maestro e
patrocinadores, maestro e mídia, isso se torna bem mais complexo. O que se configura como
um sólido caminho para este intérprete é que um conjunto bem selecionado de saberes e suas
interfaces apropriadas, poderão produzir maior êxito na formação da figura do maestro
competente. Em suma, as bases intelectuais desse músico estão fundamentadas em um
complexo de faculdades específicas da área psicológica, humana, emocional e espiritual, além
das capacidades musicais relativas à regência. Nos escritos de Demaree e Moses encontramos
a seguinte contribuição:
Musician, scholar, coach, communicator, educator, diplomat, disciplinarian, executive, planner, budget manager, personal officer, efficiency expert, advocate, publicist, guide, leader, visionary: The ideal conductor combines all these roles in an intricate vocation.27
Este artista, não mais condicionado às funções de compositor-maestro, de
Kapellmeister (compositor-organista-maestro), tampouco às de Konzertmeister (spalla-
maestro), ocupa agora a exclusiva função de intérprete-maestro, com características próprias
bem determinadas. Este “novo” profissional das práticas interpretativas encontra-se, como
vimos no início do capítulo, num campo teórico-prático da música que se relaciona com uma
pluralidade de conhecimentos. Se, a partir das idéias anteriormente apresentadas, a
interpretação e a música estão num campo de extrema subjetividade pelos infinitos aspectos 27 DEMAREE, Robert W. e MOSES Don V. The complete conductor: a comprehensive resource for the professional conductor of the twenty-first century. New Jersey: Prentice Hall, Upper Saddle River. 1995. p. 1. Musicista, estudioso, co-repetidor, comunicador, educador, diplomata, disciplinador, executivo, estrategista, gerente financeiro, administrador particular, perito natural, advogado, publicitário, guia, líder, visionário: o regente ideal combina todas essas funções numa intrincada vocação.
44
do objeto, e esses infinitos aspectos podem ser abordados por perspectivas incontáveis, e
ainda inquirindo o grau de profundidade dessa relação, é fundamental que este sujeito, este
observador, este ente que se apropria de algo, não se perca na vastidão e complexidade do
processo. Para tanto, ele deve ser detentor de faculdades específicas que lhe possibilitem
compreender a dialética musical e alcançar o sucesso na interpretação. No caso da regência,
Swarowsky dá passos estruturais com a seguinte citação:
De aqui debe partir el director cuando se dispone a estructurar la música. (...) Primera condición: Conocimento absoluto de la obra, no solamente del Qué, sino ante todo Del Como y Del Por qué; domínio de la teoria de la música, conocimento de los estilos de épocas anteriores, la cualidad de saber situarse en el mundo de sentimientos y pensamientos de aquellas épocas, observación para reconocer la estructura de la obra, no solo analiticamente, sino tambiém em relación con los hechos individuales y temporales, capacidad de recapitulación y de llamada a la vida en la Idea interna. Estas cualidades capacitarán al director a satisfacer la condición impuesta. (...) Segunda condición del director es el domínio del aparato ejecutante y la facultad de transmissión de sus conocimientos de la obra a los ejecutantes. (...) Como tercera condición se espera de um director de orquesta que tenga la fuerza necesaria para dar disposición formal y a los valores de expresión el grado de consecuencia y de densidad que se corresponda con la idea artística del autor, de forma la obra suene como si hubiese sido interpretada por su autor (“... como si él mismo la hubiese compuesto”, exige Mozart de um intérprete em uma carta del 17 de enero de 1778). 28
É mister dizer que sem o conhecimento artístico o regente não inicia sua carreira, mas
observamos que a ação de dirigir conjuntos musicais ultrapassa as informações mais objetivas
da música e também pressupõe uma forte carga de trabalho prático e intelectual no qual, sem
o domínio desses conhecimentos, o maestro não se estabelece. Esta intelectualidade não é
apenas dirigida à obra, que pertenceu a um contexto de criação e agora pertencerá a um novo
28 SWAROWSKY, Hans. Dirección de orquestra: defensa de la obra. Madrid: Editora Real Musical, 1989. p 81-87. (...) Daqui deve partir o diretor quando se dispõe a estruturar a música. (...) Primeira condição: Conhecimento absoluto da obra, não somente do Que, mas antes de tudo Do Como e Do Por quê; domínio da teoria da música, conhecimento dos estilos de épocas anteriores, a qualidade de saber situar-se no mundo dos sentimentos e dos pensamentos daquelas épocas, atenção para reconhecer a estrutura da obra, não só analiticamente, mas também em relação aos feitos individuais e temporais, capacidade de recapitulação e de chamada à vida na Idéia interna. Estas qualidades capacitarão o diretor a satisfazer a condição imposta. (...) Segunda condição do diretor é o domínio da capacidade do executante e a capacidade de transmissão de seus conhecimentos da obra aos executantes. (...) Como terceira condição se espera de um diretor de orquestra que tenha a força necessária para dar à disposição formal e aos valores de expressão o grau de consequência e densidade que corresponda com a idéia artística do autor, de maneira que a obra soe como se houvesse sido interpretada pelo seu autor (“...como se ele mesmo a houvesse composto”, exige Mozart de um intérprete em uma carta de 17 de janeiro de 1778).
45
momento interpretativo, mas também aos instrumentistas liderados que regularmente
oferecerão ao maestro desafios musicais e extramusicais. Como visto na citação de Demaree
(página 39) forma-se então uma simultaneidade de olhares, porém com foco no humano. O
regente deve ter consciência que o grupo de músicos que ele lidera também é constituído por
uma complexa rede de temperamentos, humores e personalidades, ou seja, todo e qualquer
conteúdo que o “ego” pode produzir. Não se tem uma fórmula ou respostas prontas para
conduzir indivíduos através da música, mas, além da experiência, obter uma visão humana
através da psicologia, sociologia, antropologia e filosofia, seguramente dará ao maestro de
banda, coro e/ou orquestra, uma ampla visão e maiores possibilidades de atuação frente aos
seus liderados. O regente deve exercer, sobre o conjunto musical, a sua autoridade, mas esta
deve ter seu primeiro lastro numa relação de confiança, credibilidade e, acima de tudo,
respeito para que exista uma convergência entre ambos e todos estejam na mesma atmosfera
musical. Bernstein nos relata:
The qualities that distinguish great conductor lie far beyond and above ... [technique]. We now begin to deal with the intangibles, the deep magical aspect of conducting. It is the mystery of relationships – conductor and orchestra bound together by the tiny but powerful split second.29
Esta conexão, que se configura mais como uma simbiose entre maestro e qualquer
conjunto musical, é um dos maiores desafios que a profissão da regência oferece. Todo o
conhecimento, seja ele musical ou extramusical, deve colaborar para a compreensão da obra e
das suas possibilidades de realizações com o grupo; além disso, os estágios de preparação de
um maestro não devem perder de vista a realidade prática, ou seja, o nível técnico, artístico e
humano dos seus liderados. Desta maneira, o regente terá uma maior coerência entre a
29 BERNSTEIN, Leonard. The art of conducting. In: BAMBEGER, Carl. The conductor’s art. New York: Columbia University Press, 1965. p. 270-271. As qualidades que distinguem o excelente regente encontram-se muito além e acima ... [da técnica]. Agora começamos a nos relacionar com o incompreensível, a profundeza do aspecto mágico da regência. É o mistério das relações – regente e orquestra fundiram-se através de uma minúscula, mas poderosa fração de segundo.
46
concepção, verbalização e prática, alcançando assim o resultado artístico esperado desde o
início até o fim de todo o processo relativo à interpretação musical.
47
2. EXERCÍCIO HERMENÊUTICO NA REGÊNCIA
Considerando que a interpretação da obra musical sob o ponto de vista da regência é o
objetivo central deste trabalho, e reconhecendo a hermenêutica como uma abordagem
eficiente para relacionar elementos musicais e extramusicais, apresentaremos a seguir
algumas perspectivas pertinentes à regência sob a perspectiva de uma hermenêutica musical.
Tratando-se de um processo essencialmente subjetivo e descontínuo utilizaremos uma visão,
ora dedutiva e ora indutiva, para estabelecer entrelaçamentos que, em parte, retomarão os três
assuntos desenvolvidos no capítulo anterior (Da Regência, Da Interpretação e Do Intérprete).
Este exercício hermenêutico compreende tópicos que são freqüentes ao ofício da regência,
independente do nível técnico e artístico do maestro e do conjunto musical. Embora seja uma
linha muito tênue, aqui direcionaremos o olhar para a prática da regência e não para o ensino
da mesma, pois embora estejamos tratando da atuação e, consequentemente, da formação em
regência, não será proposta uma metodologia de ensino para a área. Este aspecto pode ser um
dos desdobramentos do trabalho, um dos objetivos secundários. O foco deste trabalho é
identificar, entender, questionar e apresentar caminhos para os vários campos de atuação do
maestro, percebendo que tal visão corrobora para a eficiência da interpretação musical.
No nosso mercado de trabalho o maestro sempre estará lidando com distintas
variantes, que por sua vez requerem diferentes abordagens dentro de um tempo que, quase
sempre, é escasso. Alguns tópicos abordados são de conhecimentos de regentes que já atuam
no mercado, entretanto a literatura da regência, escrita em português, está mais direcionada
para resoluções de problemas musicais, e pouco considera as questões extramusicais como
variantes que atuam diretamente no processo do fazer musical do maestro, pois não
consideramos a orquestra, o coro ou qualquer outro conjunto musical como o “instrumento do
maestro”, assim como o clarinete é o instrumento do clarinetista, a voz o instrumento do
cantor, etc. A orquestra é um “organismo vivo” que possui características humanas,
48
emocionais e espirituais bem específicas e deve ser tratada de acordo com suas
peculiaridades. Logo, a partir das “Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas, sob a ótica de
idéias musicais e filosóficas, queremos refletir sobre questionamentos e possibilidades de
soluções através da identificação, contextualização e correlação dos elementos musicais e
extramusicais da obra, com o intuito de percorrer etapas coerentes para alcançar a concepção
musical pré-estabelecida. Por isso, entendemos que a hermenêutica, pela sua característica de
transdisciplinalidade (relacionar várias formas de conhecimentos e conteúdos no mesmo
processo), possui características condizentes com o trabalho da regência.
A hermenêutica é empregada no estudo da exegese (interpretação de antigos textos
bíblicos) por possuir um amplo e profundo campo de visão que são características importantes
para o entendimento da subjetividade. Este conteúdo subjetivo presentifica a dualidade entre o
real (a essência da “coisa”) e o aparente (as possibilidades de manifestações da “coisa”) e
isso impele o homem à busca de soluções. Numa partitura podemos encontrar apenas signos
da nomenclatura musical (a exemplo de peças barrocas) mas, em outras, além desses signos
musicais tradicionais, o compositor cria novos sinais musicais e também descreve, em
qualquer idioma, a sua intenção artística com o intuito de lançar luz sobre sua idéia (a
exemplo de peças compostas a partir do século XIX). Nesse estágio estamos lidando com três
nomenclaturas diferentes: 1) A grafia tradicional da música; 2) A grafia criada pelo
compositor e 3) A grafia lingüística, todas reunidas num mesmo documento desempenhando
funções diferentes, porém com o mesmo objetivo – tornar clara a idéia do compositor30.
A partir deste ponto deparamo-nos com a escolha do caminho a ser trilhado sobre o
olhar interpretativo apresentado na página 21 (objetivismo ou subjetivismo). McElheran
30 Veremos mais adiante que Mignone se vale de epígrafes para representar seu pensamento artístico acerca das “Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas. Tais informações são de grande importância para sedimentar o caminho do intérprete na elaboração de uma concepção musical da obra.
49
reforça o pensamento acerca dessas duas possibilidades interpretativas acrescentando, a uma
delas, procedimentos a serem realizados referentes à obra e ao compositor.
There are two opposing ideals in music performance. On the one hand, we can be purely subjective and personal in our interpretation of the printed page. On the other, we can conscientiously try to re-create the musical ideas of the composer, aided by his markings on the composition itself and similar works, his expressed views on performance, and our knowledge of the conditions and customs of his day.31
Esses dois pólos são perspectivas procedentes e necessárias para um período da
história que teve suas bases calçadas no positivismo. Algumas questões logo surgem: é
possível ter uma interpretação musical subjetiva que não respeite, minimamente, a idéia do
compositor? Qual interpretação musical objetiva que não possui, mesmo que
inconscientemente, um pouco das idéias do sujeito que a realiza? Tais questionamentos nos
conduzem a buscar na hermenêutica um caminho sólido para o processo interpretativo em
música, acreditando ser ela uma eficiente possibilidade de interação entre conhecimentos e
conteúdos.
2.1 Da Origem da Hermenêutica
Vimos anteriormente que a hermenêutica tem fundamentos na mitologia do deus
Hermes, mas, paralelamente a isso, ela também tem suas bases de entendimento no
pensamento filosófico da antiga Grécia. Aristóteles, na sua obra Órganon, dedicou um
capítulo inteiro ao estudo da interpretação (Peri Hermeneias), no qual ele desenvolve uma
busca pela coerência e consistência do uso preciso da linguagem falada, para exprimir as
paixões32 da alma.
31 MCELHERAN, Brock. Conducting technique: for beginners and professionals. 3th. ed. New York: Oxford University Press, 1989. p. 95. Existem dois princípios opostos na performance da música. Por um lado, podemos ser simplesmente subjetivos e pessoais em nossa interpretação da página impressa. De outro lado, podemos conscientemente tentar recriar as idéias musicais do compositor, ajudados por suas anotações na própria composição e em obras similares, seus pontos de vista expressos sobre interpretação e nosso conhecimento das condições e costumes de sua época. 32 Estado ou condição do espírito que consiste no sofrer uma ação ou ser influenciado por ela.
50
No final do século XVIII, Friedrich Schleirmacher (1768-1834) resgata a utilização da
hermenêutica nos estudos da teologia protestante, como também da filologia clássica. Mesmo
sendo uma atividade que data de tempos remotos e detentora de procedimentos técnicos
específicos, tal processo interpretativo não era constituído como ciência por ainda não possuir
um tratamento sistematizado. É com Schleirmacher que ela extrapola o domínio do
entendimento técnico de textos religiosos, jurídicos, filológicos, etc. e passa a ter um caráter
filosófico considerando que o “compreender” está intimamente ligado ao “expressar” e ao
“pensar”. Essa mudança de paradigma é conseqüência da observação das atividades humanas
feita pelo filósofo supracitado, como demonstra a citação abaixo.
Muitas, talvez a maioria, das atividades que compõem a vida humana suportam uma gradação tríplice em relação à maneira como elas são executadas: uma, o é de modo inteiramente mecânico e sem espírito; outra, se apóia em uma riqueza de experiências e observações e, finalmente, outra que, no sentido literal da palavra, o é segundo as regras da disciplina. Entre estas me parecem incluir-se também a interpretação, desde que subsumo sob esta expressão toda compreensão de discurso estranho. A primeira e mais elementar encontramos não apenas cotidianamente no mercado público e na rua, mas também em muitos círculos sociais onde se trocam modos de falar sobre assuntos comuns, tal que o falante quase sempre sabe com certeza o que o seu interlocutor responderá, e a fala é apanhada e devolvida como uma bola. A segunda parece ser o estágio no qual nós em geral estamos. Assim é praticada a interpretação em nossas escolas e faculdades, e os comentários esclarecedores dos filólogos e teólogos – pois ambos têm o campo previamente cultivado –, contêm um tesouro de observações e informações instrutivas, as quais provam suficientemente o quanto eles são verdadeiros artistas na interpretação, ao passo que seguramente ao lado deles, sobre o mesmo assunto, em parte nas passagens mais difíceis, emerge o mais selvagem arbítrio, em parte a mediocridade pedante insensivelmente omite ou totalmente deturpa o mais belo. Mas, ao lado de todos esses tesouros, aquele que precisa exercer este trabalho sem se colocar no nível dos artistas indiscutíveis e, além disso, ao mesmo tempo deverá na interpretação mostrar o caminho a uma juventude ávida de saber e lhe dar as diretivas, este experimenta o desejo de uma instrução tal que, como metodologia propriamente dita, não somente que ela seja o fruto sempre alcançado dos trabalhos magistrais dos artistas nesse domínio, mas que ela exponha também sob uma forma adequada e científica toda a extensão e as razões de ser do processo.33
33 SCHLEIRMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. 4 ed. São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2003. p. 12.
51
Parafraseando Celso R. Braida, Schleirmacher é considerado o precursor da
hermenêutica moderna por deslocá-la do campo de atuação técnico-científico para os
domínios da filosofia, gerando novas perspectivas e subsídios às idéias de seus sucessores.
Esse feito propiciou a retomada de estudos sobre o tema e também o confronto das idéias de
diferentes momentos da história.
O termo hermeneüo, que tem seu correspondente em nossa língua como “expressar o
pensamento através da palavra”, alicerçou fortemente todo o conceito ocidental no que diz
respeito à interpretação. Alguns hermeneutas se detiveram sobre o estudo das palavras gregas
referentes à hermenêutica e, a partir dos escritos de Richard Palmer, no seu livro
Hermenêutica, Galeffi apresenta a seguinte reflexão:
No antigo uso de tais palavras, Richard Palmer revela as “três orientações básicas”, a partir da forma verbal hermêneuien, “interpretar”, a saber: “1) exprimir em voz alta, ou seja, dizer; 2) explicar, como se explica uma situação, e 3) traduzir, como numa tradução de língua estrangeira.” Em outras palavras, “interpretar”, segundo o uso antigo, pode significar “dizer”, “explicar” e “traduzir”, segundo modos e contextos bastantes específicos. Observemos o “interpretar” no primeiro caso. “Exprimir em voz alta”, ou seja, “anunciar”, “falar”, “afirmar”, “dizer”, “pronunciar”, “proclamar”, “revelar pela palavra”, refere-se sempre a uma situação especial onde um determinado “médium” traz uma “mensagem do destino”. Estamos assim na dimensão do “sagrado”. Este “sagrado”, no modo como se dá pela palavra proferida é o que há de mais essencial nesta acepção do “interpretar”. (...) Consideremos, então, o segundo uso antigo do verbo hermeneuein, que Palmer releva como “explicar”. É claro, a ênfase aqui cai no aspecto discursivo e apofântico do verbo. Fato que pressupõe já a filosofia como acontecimento histórico. Pensemos então no uso que os filósofos, a partir sobretudo de Sócrates, faziam de hermeneuein e seus derivados. É evidente como neste caso tenha se constituído uma compreensão de “hermenêutica” como “Ciência da Interpretação”, Ciência no sentido filosófico do termo. (...) Na abordagem de Aristóteles a “interpretação” se diferencia tanto da “poética” e da “retórica”, quanto da “lógica”. As duas primeiras “ciências” não podem ser compreendidas como “interpretação” porque “tendem a comover os ouvintes”. Já a “lógica” se diferencia da “interpretação” ou “enunciação” pelo fato de provir da “comparação de juízos formulados”, enquanto que a “enunciação” é “formulação dos próprios juízos”. (...) Como diz Palmer, Aristóteles classifica as operações básicas da mente em três tipos, a saber: “1) compreensão simples dos objetos; 2) operações de composição e divisão; 3) operações de raciocínio partindo do conhecido para o desconhecido”. Nesse sentido, a “enunciação”, segundo Aristóteles,
52
recai exclusivamente no segundo nível de operação mental: “Atua no nível da linguagem mas ainda não é lógica; a enunciação alcança a verdade de uma coisa e incorpora-a como juízo. O telos do processo não é agir sobre as emoções (a poética) ou provar uma atuação política (a retórica), mas sim tornar compreensível o juízo”. (...) Observemos, agora, o terceiro uso antigo do verbo hermeneuein, o “traduzir”, ou seja, o “interpretar” como “traduzir”. “A tradução é uma forma especial do processo básico interpretativo de tornar compreensível. Neste caso, tornamos compreensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível, utilizando um médium a nossa própria língua”. (...) Nesse caso, fica evidente a amplitude da compreensão hermenêutica como “traduzir”. Os problemas decorrentes da tradução de textos de uma determinada língua para outra, merecem continuamente atenção dos estudiosos da linguagem. Traduzir é sempre uma operação complexa e delicada. 34
A partir do comentário de Galeffi sobre a concepção de Palmer, que tem suas bases
nas idéias de Aristóteles, podemos questionar qual a importância desse paralelo entre os
filósofos supracitados. A priori, tal superposição de pensamentos de diferentes pensadores
pode sugerir confusão e inconsistência, porém essa intersecção de idéias é, exatamente, um
dos enriquecedores atributos que a filosofia nos oferece, tornando o estudo ou o resultado
mais interessante, mais profícuo e enriquecedor. É este corte transversal, esse ponto de
intersecção de diferentes abordagens sobre o mesmo tema que amplia nossa visão acerca do
elemento aqui pesquisado: a hermenêutica. A citação anterior nos dá direções para pensar
hermenêutica na música, porque reconhecer a simultaneidade dos múltiplos significados no
seu conceito coloca-nos em sintonia com a idéia de Pareyson apresentada anteriormente na
página 33, que é: a “infinidade do processo interpretativo”. Considerando que o objeto
musical é infinito quanto às possibilidades de manifestações dos seus elementos internos, e
que o intérprete possui inúmeras abordagens para realizar tais elementos, a aplicabilidade da
hermenêutica na música configura-se como uma estratégia coerente para alcançar bons
resultados nos processos interpretativos.
34 GALEFFI, Dante Augusto. Hermenêutica do restauro: uma leitura heideggeriana como restauração da questão esquecida: o restauro como “cura”. 1994. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1994. p 147-149.
53
2.2 Da Eficiência do Processo Hermenêutico
O que também se configura como importante questão da abordagem hermenêutica
acerca da obra musical é a eficiência do processo. Em que pode a hermenêutica contribuir
para a elaboração de uma consistente e coerente interpretação em música? Como vimos
anteriormente, no pensamento de Schleirmacher o ato de interpretar está intrinsecamente
ligado ao ato de pensar, logo, o primeiro passo é fazer emergir um conhecimento filosófico
referente à palavra em questão para subsidiar nossa reflexão. Segundo, sendo a filosofia um
campo do conhecimento que gera, investiga e desenvolve conceitos, acreditamos seguramente
que esta ótica pode enriquecer o pensamento musical do intérprete. Também, aplicando essa
linha de raciocínio ao presente trabalho, situar-nos no âmbito dos conceitos e não apenas no
limite dos exemplos das “Impressões Sinfônicas” de Mignone, é outra vantagem que a visão
filosófica apresenta, pois as observações ora desenvolvidas podem ser utilizadas em outras
obras, proporcionando ao leitor a contextualização das informações aqui apresentadas. Por
último, a consciência da origem dos conceitos (etimologia), o entendimento das
possibilidades de relação entre significado e significante (semântica) e a descrição da
manifestação do objeto (fenomenologia) podem contribuir sobremaneira para a interpretação
musical do ponto de vista da regência. São os pontos de intersecção, e também suas
diferenças, entre esses e outros mais conhecimentos que encontramos num processo
interpretativo que subsidiam a visão hermenêutica.
2.3 Da Seleção da Obra
Uma primeira observação é o critério para a seleção da obra ou repertório a ser
interpretado, pois, ao contrário do que possa parecer, essa etapa requer julgamentos técnicos e
artísticos rigorosos. Um grupo musical profissional pode ter indivíduos com um embasamento
artístico (estético e estilístico) aquém da maioria, e este fato pode comprometer a performance
do conjunto, porque esse último pode não ter o nível artístico suficiente para execução da
54
peça. Sabemos que “ler” uma partitura não é “interpretar” uma partitura, com isso o maestro
deve ocupar-se em escolher uma obra que esteja de acordo com as capacidades do grupo
musical. A orquestra pode executar todos os sinais grafados pelo compositor, porém,
desprovida de uma idéia artística, de um conceito musical, ou de um juízo estético, ela não
interpretará a obra, pois não entende o significado dos sinais, signos e símbolos pertinentes à
partitura. Por isso, o maestro deve estar atento às condições artísticas do conjunto, se este
último compreende e está apto a realizar o que está sendo proposto estilisticamente pelo seu
líder. Se este cuidado é pertinente ao conjunto musical, mais ainda o é para o maestro. Este
deve ter profunda consciência das suas habilidades técnicas e artísticas para selecionar uma
obra que seja condizente à sua própria capacidade. Caso isso não aconteça, a execução terá
grandes chances de ser um discurso musical desconexo e sem sentido. Para tanto, a atenção
deve estar voltada para todas as informações referentes à obra, porque o extremo
distanciamento conceitual (a falta de conhecimento dos sinais, signos e símbolos da partitura)
ou a exclusiva proximidade estética (a condição de estar muito próximo da obra apenas pelo
gosto da escuta, podendo comprometer os juízos artísticos) dará ao intérprete uma visão
distorcida do conteúdo da partitura. O que queremos evidenciar é que, conhecer uma música
auditivamente e gostar dela não deve ser o parâmetro principal para a realização da mesma.
Essa proximidade, que se dá através da afetividade e do gosto pessoal, é um olhar
excessivamente passional e não justifica, muito menos respalda, uma interpretação criteriosa.
Tal condição frequentemente confunde os conceitos e negligencia aspectos que podem
contribuir, e muito, para a coerência do pensamento musical, pois ela atribui ao intérprete um
distanciamento extremado das informações subjetivas da partitura e não o coloca em contato
com elementos fundamentais da obra, conduzindo-o a concepções superficiais e imaturas.
Para evitar esse estado incipiente o autoconhecimento faz-se necessário. É o “conhece-te a ti
mesmo” socrático numa constante jornada evolutiva. Isso nos leva a entender o intérprete
55
sempre num estado de devir, vir-a-ser, pois ele, continuamente, alcança seu objetivo nos
processos dialéticos, ou seja, na interação com um elemento extrínseco a ele, não tendo o
sujeito características de subsistência individual. Ruedell nos fala da visão de Ricoeur e
Schleiermacher.
Posição semelhante à de Ricouer também se encontra em Schleiermacher. Já no início do século XIX ele igualmente rejeita o primado do sujeito e defende a linguagem como base de legitimação do pensamento. O sujeito, segundo ele, não serve como ponto de partida filosófico, porque sempre aflora como relação, e não como unidade subsistente. O que, no seu entender, constitui a identidade do sujeito é a consciência de si; é esta que o identifica como tal. Ela, porém, nunca é dada em estado puro. Somente emerge mediante uma consciência de algo – ao pensar ou querer algo – sem, contudo, se confundir com esta. A consciência de si é o que acompanha implicitamente toda consciência objetiva, de modo que ela nunca poderá ser objetivamente tematizada. Ou seja: “todo discurso sobre a consciência de si chega tarde em relação ao seu ser, porquanto é o que já está sempre posto em toda tematização” (Ruedell, 2000, p.37). Consciência de si é, por isso, também sempre consciência de dependência e consciência de seus limites. Tomar consciência de si é tomar consciência de suas relações, que são, ao mesmo tempo, suas condições de possibilidades e de seus limites. É perceber sua unidade ou identidade interior e, ao mesmo tempo, reconhecer intimamente a mutilação dessa identidade, por que sempre dependente.35
Como dito anteriormente, outro importante fator que deve ser considerado no
momento da seleção da obra para um concerto é o local de apresentação. Primeiramente, de
maneira objetiva, consideremos que cabe ao compositor ser o mais claro e preciso possível na
transmissão das suas idéias para a partitura e, baseado nos estágios de apreensão, tradução,
compreensão e expressão (descritos na página 36), cabe ao intérprete ser o mais fiel e
coerente possível na captação das idéias do compositor para elaborar sua concepção musical.
Partindo da premissa que tanto o compositor quanto o intérprete cumpriram suas
funções, a escolha do repertório deve estar de acordo com as características acústicas do local
de apresentação, como explicitado nas páginas 12 e 13. Considerando as “Impressões
35 RUEDELL, Aloísio. Hermenêutica e subjetividade. Uma discussão a partir de Schleiermacher e de Ricoeur. In: OLIVEIRA, Nythamar de; SOUZA, Draiton Gonzaga de. Hermenêutica e Filosofia Primeira. Unijui: Editora Uinijui, 2006. p.11-30.
56
Sinfônicas” Festas das Igrejas, o local para a realização do concerto (Palácio da Reitoria da
UFBA) foi escolhido por apresentar discreta, mas satisfatória reverberação sonora,
característica fundamental para uma boa realização da obra em questão. Do ponto de vista
histórico, poderia ser mais interessante realizar o concerto na Igreja de São Francisco
(Salvador-BA), pois toda a primeira parte das já citadas “Impressões Sinfônicas” de Mignone,
é referente a esse templo. Entretanto, por causa das diferentes texturas musicais contidas na
música (ver compassos 56-64, da 4ª Igreja representada na partitura em anexo), das grandes
variações de dinâmicas – a exemplo de pppp no compasso 45 da 1ª Igreja e fff no último
compasso da obra, ambas na sessão das cordas – este espaço não se apresenta como boa opção
para a realização de tal obra por oferecer excessiva reverberação sonora. Pelo exposto,
pontuamos a acústica como elemento definidor para a seleção de um repertório.
2.4 Do Uso dos Conhecimentos na Regência
Apropriando-nos do entendimento da obra e desenvolvendo a idéia de interpretação
(inter petras) apresentada no final da página 23, a hermenêutica pode proporcionar a
consciência de como posicionar-se perante a obra musical, pois precipitará o “porque
ressaltar”, “quando ressaltar”, “como ressaltar” e “o que ressaltar” numa composição, assim
como a identificação de quais relações são estabelecidas entre os elementos musicais de uma
partitura e quais os critérios para escolher tais relações. Estamos no campo de identificação de
“verdades” e “falsidades” que serão determinadas no processo interpretativo. Porém, no
campo da interpretação musical, “verdades” e “falsidades” são sempre conflitantes, pois
mesmo consciente de que qualquer afirmação na prática da música deve partir de estudos
minuciosos dos vários campos de saberes referentes à obra, inevitavelmente, o intérprete
investigativo e criterioso deparar-se-á com o subjetivismo inerente ao ato interpretativo. Logo,
um dos fatores determinantes da legitimação dessas “verdades” e “falsidades” é a maneira
como elas são alcançadas, o processo intelectual utilizado na busca das informações. Para
57
entendermos melhor tal questão recorreremos, por ora, à ‘Teoria do Conhecimento’36. Nesse
domínio do saber e dentro de uma macro-visão, na regência, a relação entre sujeito e objeto
pode se acontecer de várias maneiras, entretanto aqui apresentamos as seguintes formas de
conhecimentos: instintivo, empírico, racional, intuitivo e filosófico, todos atuando no sujeito
simultaneamente, individualmente ou em pares, com intensidades diferentes no processo de
intra-relação e inter-relação do maestro.
Aqui abrimos espaço para observar que na regência as questões são desdobramentos
da relação sujeito-objeto (maestro e obra), e dessa relação imediatamente verificamos que se
originam outras, tais como: maestro e compositor, maestro e orquestra; maestro e instituição;
maestro e público; maestro e mídia. Vimos que não existem metodologias específicas para
essas relações, pois elas dependem da formação humana e profissional, como também do
caráter e da personalidade do regente. Contudo, a teoria do conhecimento pode elucidar as
formas de interação desse intérprete com os vários campos de atuação da sua carreira. Neste
trabalho, não investigaremos profundamente cada uma dessas relações, mas tangenciaremos
alguns pontos relativos às questões oriundas das relações citadas no início deste parágrafo.
2.4.1 Conhecimento Instintivo
Parafraseando Aristóteles, os sentidos são as portas de entrada para todo e qualquer
conhecimento que chega ao intelecto, logo, em qualquer processo que recorra a este último ou
que se fundamente na atividade intelectual humana, independente do tempo que ela dure ou
do nível e abrangência que alcance, o conhecimento instintivo se fará presente. Então,
observamos que tal atividade humana é parte indissociável de todas as formas de
conhecimentos supracitadas. Ele abre caminho para que as outras formas de apreensão do
objeto aconteçam. Especificamente no campo da regência, para citar um exemplo na relação
com a orquestra, o maestro poderá agir de maneira instintiva para auxiliar o grupo no
36 Ramo da filosofia que trata do estudo das formas do conhecimento.
58
momento do concerto. Na nossa realidade é comum não ter muitos ensaios no local de
apresentação e a acústica é sempre um elemento complicador para o conjunto. A possível falta
de sincronia entre os músicos do grupo durante a apresentação terá de ser corrigida
automaticamente pelo regente e, nesse caso, o reflexo instintivo (percepção musical), é a porta
dessa compreensão para resolver o problema. Além disso e por motivos diversos, nesse ofício
não é incomum o maestro ter apenas o ensaio geral para realizar a obra, ou até mesmo não ter
um ensaio sequer e mesmo assim realizar a apresentação. Essa condição o coloca num estado
de alerta que, inicialmente, será norteado pelo conhecimento instintivo.
2.4.2 Conhecimento Empírico
Ainda dentro da relação maestro-orquestra, algumas considerações devem ser feitas
para lançar luz sobre as possibilidades de sua concretização. O planejamento elaborado em
tempo suficiente que garanta a reflexão e escolha acertada da metodologia para aos ensaios é
algo intrínseco à regência. E por mais detalhado que seja esse planejamento, ele sempre deve
ser visto como uma ferramenta de trabalho extremamente flexível para se adequar ao
contexto. Frequentemente o maestro identifica trechos da obra que exigirão de um
determinado naipe apuro técnico, precisão rítmica e justa afinação na execução. Isso deve ser
identificado nos estudos preliminares da partitura antes mesmo do primeiro ensaio, por isso,
dentre várias cadeiras musicais, destacamos aqui a importância da disciplina Instrumentação e
Orquestração, como também a consciência prática da produção do som de cada instrumento
do conjunto no trabalho orquestral. Mas, o regente pode ser surpreendido no ensaio porque
essa passagem musical que, para ele seria extremamente difícil, para os músicos pode ser
realizada com relativa facilidade e suas observações quanto às questões técnicas sejam
resolvidas rapidamente. Na elaboração e aplicação de tal planejamento é utilizado um
conhecimento empírico no qual o maestro estabelece critérios para os ensaios, mas só a
aplicação do planejamento prévio nos ensaios é que confirmará, ou não, se os trechos
59
selecionados realmente necessitam de atenção especial, ou seja, a experiência é quem vai
comprovar e legitimar essa forma de conhecimento. Esta linha de pensamento fundamenta-se
no seguinte conceito de empirismo:
A diretriz filosófica que faz apelo à experiência como critério ou norma da verdade e que, por isso, assume a palavra “experiência” no significado 2.°. Em geral, tal diretriz se caracteriza pelos traços seguintes: 1.° nega o caráter absoluto da verdade ou, ao menos, da verdade que é acessível ao homem; 2.° reconhece que toda verdade pode e deve ser posta a prova, logo, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada. O Empirismo portanto não se opõe à razão ou não a nega senão nos limites em que a própria razão pretende estabelecer verdades necessárias, isto é, tais que valham absolutamente de forma que seja inútil ou contraditório submetê-las a controle.37
Mesmo assim, essa forma de conhecimento não se basta e pede que outro elemento
entre em campo. Aqui se faz necessário o “bom senso” que também tem seus alicerces na
experiência e convívio nos ensaios, porque sabemos que a mesma orquestra, no ensaio
posterior, já se encontra em outro estado de espírito. Para tornar isso mais claro, pensemos nas
seguintes situações: se percebermos que o grupo está fisicamente cansado, pode ser mais
proveitoso ensaiar uma obra que requeira mais lirismo e expressividade do que passagens
técnicas difíceis; se os músicos estão agitados e dispersos pode ser mais eficiente ensaiar uma
música lenta e de caráter tranqüilo do que outra com características mais esfuziantes; se o
conjunto se apresenta introspectivo e letárgico, ensaiar uma peça de tempo rápido e caráter
alegre pode tirá-lo desse estado de inércia. Obviamente, tudo isso depende de vários fatores e,
principalmente, do repertório, do grupo e do maestro, mas é esse último quem irá direcionar
os trabalhos e conduzirá, ou não, os músicos ao resultado pré-concebido no planejamento dos
ensaios. Esse “bom senso”, que nesse caso representa o conhecimento psicológico do grupo, é
fundamental à carreira do maestro, pois ele garantirá o judicioso e sensato andamento dos
trabalhos. Mas essa característica é algo que se desenvolve com a prática e as diversas
experiências no ramo da regência, não se adquire apenas com livros, congressos ou conversas
37 ABBBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 308-309.
60
informais. Essas situações ajudam a descobrir possibilidades mas não concretizam nem
legitimam o “bom senso”. Ele precisa ser experimentado, logo, subestimar tal forma de
conhecimento é criar uma lacuna na formação do regente. Continuando dentro de uma visão
empírica, porém saindo do campo musical e partindo para a inter-relação maestro e orquestra,
“o carisma” e “a liderança” também são duas peculiaridades do regente norteadas pelo “bom
senso”. Encontrar o equilíbrio entre essas duas formas de expressão humana sempre
dependerá do estado de espírito que o grupo apresenta no momento, assim como da
personalidade e formação do maestro. Essa formação é a gama de conhecimentos referentes
às relações interpessoal e intrapessoal que esse profissional possui com base na experiência e
nas informações oriundas das áreas humanas (psicologia, filosofia, dentre outras).
Considerando que o maestro deve conduzir o grupo musical ao seu mais alto nível técnico e
artístico de realização da obra, sob a ótica da liderança, ele deve lançar mão de estratégias de
ensaios para alcançar tal objetivo. Observemos as seguintes situações: se a orquestra se
encontra apreensiva por motivos quaisquer, pode não ser eficiente dirigir os ensaios de
maneira tensa ou extrapolar os limites da autoridade de líder. Entretanto, caso a dispersão ou
insubordinação aconteça, a autoridade do regente deve fazer o músico reconhecer a sua
função no grupo e a hierarquia nele existente. Com base na experiência adquirida, tanto a
liderança quanto o carisma são características indispensáveis para a eficiência neste ofício.
Não discutiremos neste trabalho se elas são, ou não, uma condição inata do homem, porém
acreditamos seguramente que ambas podem ser desenvolvidas a partir de estudos específicos
de áreas do conhecimento humano, que estimulem a autoconfiança, a autodisciplina, a
coerência, a oratória, a temperança e um elevado poder de observação tanto do grupo quanto
de si próprio. Essas peculiaridades são pertinentes à condição de qualquer bom líder.
Tomemos a citação de Machiavelli para uma reflexão.
(...) assim como aqueles que desenham a paisagem se colocam nas baixadas para considerar a natureza dos montes e das altitudes e, para
61
observar aquela, se situam em posição elevada sobre os montes, também, para conhecer o caráter do povo, é preciso ser príncipe e, para bem entender o príncipe, é preciso ser povo. Receba, pois, Vossa Magnificência este pequeno presente com aquele intuito com que o mando; nele, se diligentemente considerado e lido, encontrará o meu extremo desejo de que lhe advenha aquela grandeza que a fortuna e as outras suas qualidades o prometem. E se Vossa Magnificência, das culminâncias em que se encontra, alguma vez volver os olhos para baixo, notará quão imerecidamente suporto um grande e contínuo infortúnio.38
Essa passagem de Machiavelli evoca a relação existente entre o liderado e o líder. O
olhar externo, direcionado sob criteriosa observação, sempre proporciona ângulos de visão
reveladores de detalhes tanto da música quanto do grupo. Contextualizando tal visão na
regência, durante o evento musical, o maestro deve estar bastante atento às questões da
música e do comportamento do grupo, pois ele não deve perder de vista que a sua principal
função é dar um direcionamento ao trabalho de todos os envolvidos no processo. Estar
cônscio exclusivamente da parte musical não garantirá a eficiência dos ensaios e concertos,
assim como preocupar-se demasiadamente com a disciplina do grupo em detrimento da
realização da obra, também não é o suficiente para alcançar bons resultados. É exatamente o
amplo olhar sobre: a qualidade técnica e artística dos ensaios; a estrutura física para a
realização destes; o planejamento e organização das atividades do grupo; o ambiente
disciplinado e respeito que proporcionarão ótimas condições para alcançar uma boa
performance. Para tanto, antes de tudo faz-se necessário estabelecer, com clareza, as
informações musicais, administrativas, financeiras, dentre outras. Desta forma, todos saberão
o caminho a ser trilhado, assim como o propósito a ser atingido e assim, o maestro terá
maiores chances de contar com músicos determinados, disciplinados e conscientes dos
objetivos. Contudo, apesar de uma aguçada e ampla percepção do que ocorre nos ensaios e
concertos, também pode ser bastante esclarecedor para o maestro estar na condição de
liderado, ou seja, passar pela condição de músico de orquestra ou cantor de coro, não só
38 MACHIAVELLI, Nicoló di Bernardo dei. O príncipe. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1990. p. 4.
62
proporciona inúmeras informações técnicas e musicais, como também gera novas perspectivas
da dimensão do liderado.
O carisma é uma condição que atua conjuntamente com a liderança. Segundo Houaiss,
ele significa “conjunto de habilidades e/ou poder de encantar, de seduzir, que faz com que um
indivíduo (p.ex., um cantor, um ator) desperte de imediato a aprovação e a simpatia das
massas” 39. Esse é um dos conceitos apresentados que julgamos se aproximar do ofício da
regência, e ele retrata, entre as partes, qual o nível estabelecido de empatia (capacidade de se
identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer, de apreender
do modo que ela apreende, etc.) 40. É importante notar que o maestro carismático não é aquele
que satisfaz vontades para agradar a outrem, mas sim aquele que encontra um comportamento
psico-emocional adequado para o momento frente ao grupo musical.
Encontrando o equilíbrio entre as forças do carisma e da liderança, e imbuído de
consistentes informações musicais e extramusicais referentes à obra, o regente terá mais
chances de adquirir credibilidade e confiança dos músicos por que estes reconhecerão nele a
competência técnica, artística e humana necessária para liderar um grupo de músicos.
Podemos observar então que essa confiança que se estabelece entre instrumentistas e maestro
é conseqüência de diferentes áreas do conhecimento. É necessário considerar que o conjunto
musical é um organismo vivo e, em um determinado nível, ele é heterogêneo quanto aos
níveis de informações de cada integrante. Isso faz com que nem todos os músicos do grupo
entendam e/ou concordem com o maestro, mas se o músico confia no regente, ele seguirá as
indicações dadas porque acredita que tais diretrizes o conduzirão a um bom resultado musical.
Isso é uma autoridade concedida pelo músico ao maestro, devido a uma relação de
credibilidade e confiança. Não quero dizer com isso que a orquestra, coro ou banda é uma
39 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. p. 628. 40 Idem.
63
massa humana que segue, sem indagações, as indicações do seu líder. Em alguns casos, é
válido aproveitar as sugestões de fraseados, agógicas, cores ou outros elementos musicais que
um instrumentista, executando um trecho solo dentro da obra orquestral, venha a apresentar
no ensaio. Nos primeiros cinco compassos de Festa das Igrejas (vide exemplo a seguir), a
viola tem um solo que pode ser interpretado de várias maneiras, e isso é uma elaboração
musical do maestro e do chefe de naipe que, neste momento, atua como solista.
Ex. 06 (compassos 01-05)
O que deve ser observado é que o planejamento dos ensaios, assim como a relação do
maestro com a orquestra, encontram-se numa forma de conhecimento empírico, ou seja, tudo
deve ser minuciosamente concebido e estruturado, porém não como verdade última e sim
como informações passíveis de modificações de acordo com as necessidades no momento do
evento musical.
2.4.3 Conhecimento Racional
O conhecimento racional é responsável pela decodificação, conceituação, elaboração e
transmissão dos dados. Ele distingue, correlaciona, compara, sistematiza e torna inteligíveis as
informações em todos os momentos em que o discurso do maestro se faça necessário.
Estamos aqui no domínio do intelecto que pode ser entendido tanto como a capacidade de
pensar (sentido genérico) quanto um procedimento ou técnica do pensar (sentido específico).
O que vale ressaltar é que a atividade intelectual pode ser aprendida e ensinada para se
alcançar os objetivos com o máximo de eficiência. Das muitas facetas que a capacidade
64
intelectual apresenta, destacamos por ora a razão por ser ela a responsável pela sistematização
das “coisas”. Este ângulo de visão se baseia no seguinte pensamento:
(...) O procedimento discursivo é a técnica que mais frequentemente foi considerada própria da razão. Para o procedimento discursivo apela Platão para marcar a diferença entre a opinião verdadeira e a ciência: as opiniões podem dirigir a ação tão bem quanto a ciência, mas tendem a fugir para todos os lados, (...) O Conceito da razão como discurso permite a consideração formal do procedimento racional: isto é, possibilita uma lógica, que é em realidade a lógica tradicional assim como ela foi elaborada pelos filósofos desde Aristóteles até o fim do século XIX. Entendida neste sentido, a lógica é ao mesmo tempo descritiva e normativa: descritiva em relação aos procedimentos próprios da razão, normativa no sentido de que esta mesma descrição vale como regra para o uso correto da razão.41
Esta visão proporciona coerência entre o pensamento, a fala e a ação do maestro
perante o grupo e estabelece o princípio dele não se contradizer de maneira inconsciente. Na
condição de líder ele deve ser um referencial de coerência entre pensamento, verbo e ação
para garantir a clareza e precisão das informações.
Esta atenção não deve apenas estar voltada para o estudo e desempenho da partitura,
assim como na condução dos ensaios e concertos, mas deve também ser aplicada às regras e
normas que todo grupo necessita para conviver de maneira respeitosa, justa e evolutiva. Em
uma apresentação, assim como um músico não deve modificar, inconsequentemente, qualquer
elemento musical da obra ensaiada, da mesma maneira o regente também não o deve fazer.
Isso seria como uma “quebra de contrato”, um rompimento com a concepção musical
ensaiada, uma invalidação das regras musicais pré-estabelecidas para o concerto. Essa mesma
lógica deve ser aplicada às situações extra-musicais, tais como: pontualidade, assiduidade,
disciplina, ética profissional, etc. Em suma, não cumprir com o que foi previamente
estabelecido, sejam questões musicais e/ou extra-musicais, vai de encontro às normas e isso é
extremamente danoso tanto para o maestro quanto para a orquestra. Sendo o regente o
41 ABBBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 794-795.
65
referencial da orquestra, tal coerência confere a ele uma integridade profissional das já citadas
situações (pensamento, verbo e ação) demonstrando sua capacidade de organizar, planejar e
cumprir com o acordado, reforçando assim sua competência como líder.
2.4.4 Conhecimento Intuitivo
A visão original, aquela que tem como conseqüência imediata a resposta sensata para
um determinado contexto é denominada intuição. Tal forma de conhecimento é muito
presente nas relações intrapessoal e interpessoal do maestro, pois visto que ele sempre
expressa suas idéias através do conjunto musical, tais relações podem ser produtivas, ou não,
para o ato interpretativo. A intuição atua além dos limites da racionalidade, na esfera do não
conceituável, no campo do julgamento correto sem o auxílio da razão (como descrito nas
páginas 15 e 16). Quando distinguimos isso, reconhecemos que não existe intervenção do
raciocínio lógico para a escolha da resposta, entretanto, para a eficiência do processo
intuitivo, é importante possuir os conteúdos referentes à área em questão para que a intuição
se manifeste e encontre a resposta. Por exemplo: é sobremaneira mais fácil intuir respostas no
campo das relações humanas, imbuídos dos conteúdos da antropologia, psicologia e
sociologia. Desta forma o regente terá maiores condições de ter uma reação imediata e sensata
aos comportamentos humanos. Se ele estiver desprovido de informações acerca das relações
humanas, dificilmente o processo intuitivo se fará presente e é bem provável que, por
necessitar de respostas imediatas sem o auxílio da razão, atos movidos pelo instinto entrem
em ação no lugar da intuição, e isto não garante que ele encontre as respostas adequadas.
2.4.5 Conhecimento Filosófico
Todas essas formas de conhecimento nos posicionam na atividade filosófica. Quando
tomamos consciência das várias formas de conhecimento, verificamos que a aplicabilidade de
uma visão com base na filosofia, é uma poderosa metodologia de trabalho para este ofício.
Considerando que o regente desempenha as funções de: líder musical cuidando da qualidade
66
dos músicos e da execução da obra; diretor artístico dando a filosofia do trabalho; executivo
elaborando projetos, orçamentos e captando recursos financeiros; referencial humano dando
diretrizes no que tange à questão comportamental dos membros de toda a equipe e
representando o produto artístico frente ao público, mídia e patrocinadores, reconhecemos que
isso exige uma gama de conhecimentos e conteúdos que, com certeza, será melhor
desenvolvida numa interface com a filosofia, por esta considerar, simultaneamente, as várias
possibilidades dos conhecimentos, e também valendo-se da hermenêutica para interpretar e
estabelecer relações entre todos esses saberes.
2.5 Do Uso dos Conteúdos na Regência
Na seguinte tabela apresentamos alguns conteúdos pertinentes à regência. Não se pode
afirmar que o maestro deva ter total domínio de todos os assuntos nela contidos, para depois
atuar no mercado de trabalho. Mas, estes são conteúdos que devem ser simultaneamente e
gradativamente apreendidos em função das múltiplas tarefas desempenhadas pelo regente.
Ver tabela que segue.
67
Tabela 1
CONTEÚDOS INERENTES À REGÊNCIA
Musical Humano Administrativo Lingüístico Geral
Acústica
Composição
Dança
Estética da Música
Alemão Didática
História da Música
Antropologia
Captação de Recursos e
Elaboração de Orçamentos Economia
Instrumentação e Orquestração
Estatística
Literatura Coral
Francês
Literatura Operística
Filosofia
Elaboração de Projetos
Estética das
Artes
Literatura Sinfônica
História das Artes
Inglês
Literatura Sinfônico-coral
História Geral (Mundial)
Percepção Musical
Psicologia
Estratégias de Marketing
Literatura
Práticas Interpretativas
Italiano
Oratória
Técnica Gestual Poesia
Técnica Vocal Política
Teoria da Música
Sociologia
Planejamento de Atividades
Latim
Teatro
Etc... Etc... Etc... Etc... Etc...
Mesmo tendo visto as múltiplas funções desempenhadas pelo maestro e as diferentes
formas de conhecimentos relacionados a tais cargos, a tabela acima apresenta uma base dos
conteúdos inerentes à área. Ela (a tabela) também não esgota os assuntos que o regente deve
ter propriedade, pois não se pode limitar os campos de saberes necessários para o ato da
interpretação em música. Todavia, mesmo não propondo uma metodologia para o ensino da
regência, é mister evidenciar matérias fundamentais para o bom desempenho do maestro
frente ao grupo musical e equipe técnica. A primeira coluna reúne conteúdos específicos de
68
música; a segunda coluna contém matérias humanas que são imperiosas no que diz respeito à
intra-relação e inter-relação, carisma e liderança; a terceira coluna refere-se aos processos
administrativos, executivos e institucionais desempenhados pelo maestro; já os conteúdos da
quarta coluna proporcionam ao regente atuar com profundo domínio em diferentes culturas,
sobre vários repertórios, além de uma vasta capacidade de atualizar-se; os conteúdos da quinta
coluna auxiliam o maestro na utilização de todos os assuntos das colunas anteriores. Porém,
todos esses saberes só possuem sentido quando aplicados de maneira transdisciplinar, ou seja,
quando existe um amplo acesso entre todos os conteúdos e formas de conhecimentos. Nossa
atenção está então direcionada para a identificação, reflexão e desenvolvimento das
possibilidades nos vários contextos da profissão, com o intuito de auxiliar o ato interpretativo.
2.6 Do Uso do Verbo na Regência
No caso da regência já sabemos que o maestro regularmente trabalhará com um
“organismo musical vivo” – coro, orquestra, banda sinfônica, conjuntos de câmara, etc. –
estando ele sempre sujeito aos aspectos humanos, tanto nos ensaios quanto nos concertos. Por
mais intrincada que seja essa relação, ela não deve ser improvisada, mas sim construída a
partir do entendimento da simbiose maestro-grupo e dos conhecimentos e conteúdos que
auxiliem em tal processo. Mas, para alcançar os resultados artísticos pré-concebidos sabemos
que o regente também faz uso da linguagem verbal, por mais precisa e refinada que seja a sua
técnica de gesto. Além dos recursos da gramática gestual, o profissional da regência de
carreira internacional comumente utiliza-se de diferentes idiomas para conduzir o conjunto
em direção ao ideal estético proposto. Tal fato nos leva a entender que, em certos momentos,
ele atua como um educador e deve adequar o seu planejamento de trabalho ao tempo
disponível de ensaio, porém não confundindo esse último com aula de música. Ou seja,
justificativas, explicações, exemplificações devem ser proferidas de maneira suficientemente
breve e comedida para que os músicos apreendam, entendam e executem as idéias que lhes
69
são apresentadas. Quanto mais clara e eficiente for essa comunicação mais rápido ele
alcançará seus objetivos. Para tanto, o maestro precisa ter uma extensa e profunda consciência
sobre seu intento e, acima de tudo, sobre sua metodologia de trabalho, pois, reconhecendo o
som como um objeto imaterial e de extrema subjetividade, assim como a heterogeneidade das
personalidades de todo e qualquer conjunto musical, o ato da fala deve ser preciso, claro e
direto. Veremos mais detalhadamente adiante que Mignone apresenta informações sobre a
terceira igreja (Outeirinho da Glória) de suas “Impressões Sinfônicas”, com a intenção de
transportar para a sua obra o ambiente seresteiro e bucólico dos fins de tardes do Rio de
Janeiro daquele período (1939-42), dando subsídios à sua composição. Para tratar de um
elemento tão subjetivo e abstrato, dentro da atividade da regência, freqüentemente recorre-se
às “imagens musicais”, que são artifícios visuais utilizados para direcionar o conjunto musical
à concepção estética e artística pré-concebida, aproximando-se assim do caráter da obra ou de
trechos desta. Visto isso, podemos verificar que as observações de Galeffi quanto às três
orientações de Palmer sobre interpretação (páginas 52-53) atuam simultaneamente na prática
da regência. A primeira (revelação pela palavra) corresponde, no caso da regência, à
capacidade técnica do gesto e do verbo utilizados pelo maestro para com o grupo. A segunda
(formulação de juízos apofânticos 42) representa a concepção estética do intérprete acerca da
obra e a terceira (tradução da idéia musical) é a habilidade intelectual de transmitir tal
concepção aos músicos e avaliar se as idéias foram entendidas, absorvidas e executadas. Essas
abordagens não encerram o processo hermenêutico do intérprete em música, pois as
considerações sobre retórica e poética da citação são partes importantes da visão
hermenêutica na regência. A poética entra em campo para atuar sobre as emoções e a retórica
provê a eficiência do discurso verbal para direcionar os pensamentos que músicos possuem
sobre a música em questão à concepção do maestro.
42 Pensamento expresso sobre o mundo real passível de ser verdadeiro ou falso (N.A.).
70
Esse exercício hermenêutico na música tem como desafio transformar algo imaterial e
passível de mudanças a qualquer tempo (o som), num discurso inteligível, envolvente e claro.
Essa é a função de qualquer intérprete musical, porém, no caso da regência, uma visão
hermenêutica sobre a obra proporciona desdobramentos de conhecimentos e conteúdos que
são enriquecedores para o ato interpretativo. Isso torna mais consistente a compreensão do
maestro sobre os vários aspectos da regência, principalmente no que diz respeito à intra-
relação e inter-relação, e isso exige dele profundo domínio dos assuntos e extensa propriedade
das formas de comunicação e linguagem.
2.7 Dos Ensaios e Concertos
Como nos outros campos das práticas interpretativas, também na regência, não existe
“mágica” para que o concerto aconteça com o mais alto grau de eficiência técnica, musical e
artística. Seguramente essa é uma situação que sempre dependerá do nível do maestro e da
orquestra, mas também do processo dos ensaios. Se estes foram conduzidos com metodologia
adequada ao conjunto e ao repertório selecionado, e se o planejamento dos trabalhos foi bem
estruturado e coerente com as condições do grupo, as possibilidades de se alcançar êxito na
conclusão das tarefas são grandes. Entretanto, no momento da performance diversas situações
podem acontecer no que tange à relação maestro e orquestra. Já reconhecemos a orquestra
como um “organismo vivo”, e isto isenta o maestro da responsabilidade de alguns elementos
musicais no ato da apresentação, por exemplo: alturas, ritmos, dinâmicas, articulação e
sonoridade. Mesmo sendo esses elementos trabalhados minuciosamente nos momentos
anteriores, o músico não profissional, por diversas razões, pode equivocar-se e não executá-
los no concerto da mesma maneira que foi trabalhada durante os ensaios. Mas, independente
dessas “surpresas” musicais que podem acontecer no concerto, o que destacamos, com
expressivo grau de relevância, é que o maestro deve estar consciente da sua relação com a
orquestra desde a sua preparação para o primeiro ensaio até o fim dos concertos. Nos vários
71
anos dedicados à regência observei ensaios e concertos de incontáveis maestros e destaco,
dentre muitas possibilidades, quatro situações que se apresentaram de forma recorrente nestas
análises. 1ª) Maestro não possui conexão interpretativa com a orquestra; 2ª) Maestro não cede
às limitações técnicas da orquestra; 3ª) Maestro cede às limitações técnicas da orquestra e 4ª)
Maestro encontra-se em total conexão com a orquestra. A primeira representa o caso de
disparidade entre a gramática gestual utilizada pelo maestro e o som produzido pela orquestra,
por exemplo: enquanto a orquestra produz um som com articulações em sttacatto, o maestro
usa gestos em legatto; enquanto a orquestra executa um trecho musical de extrema
dramaticidade o maestro apresenta uma expressão facial leve e divertida; enquanto a orquestra
apresenta uma passagem em alla breve (pulsação da música em tempo binário) o maestro
conduz a orquestra utilizando o gráfico do compasso quaternário. Essas situações denotam
que o regente está mais atento aos seus referenciais mentais do que à performance do conjunto
musical. Isso pode ser fruto de excessiva audição de gravações feitas pelo regente antes
mesmo dele realizar uma concepção interpretativa da obra em execução. Escutar gravações é
uma prática importante, mas esta deve ser feita no momento posterior ao estudo e análise da
peça, pois assim o regente já terá uma compreensão prévia, e não estará tão susceptível às
idéias interpretativas das gravações. A segunda situação indica o maestro que realiza os
tempos da música sem preocupar-se se os músicos podem ou não tocar no andamento regido.
Tal situação é própria de uma visão extremamente objetiva e inflexível e não considera que
para um grupo musical tocar junto deve-se encontrar o andamento propício que, além de
revelar o caráter da obra, também seja possível de ser executado por todos os integrantes do
conjunto. A escolha equivocada do tempo da música, fatalmente comprometerá elementos,
tais como: afinação, ritmo, articulação, fraseado e sonoridade, e tornará a interpretação
confusa, desconexa e incompreensível. Isto geralmente ocorre quando o repertório não está
adequado ao grupo, ou quando o maestro é pouco criterioso nos ensaios. O terceiro caso é
72
representado pelo maestro que aceita as modificações musicais apresentadas pela orquestra e
por ela é regido (isso pode ser fruto de ensaios deficientes ou imaturidade do regente). Em
algumas passagens musicais, o grupo pode acelerar ou diminuir o andamento da música em
detrimento de dificuldades técnicas, e da pouca experiência da prática de conjunto. O
instrumentista ou cantor pode ter uma sólida formação e ser detentor de grandes habilidades
musicais, entretanto, isso não confere a ele eficiência na realização da música de câmara. Este
tipo de formação musical exige do instrumentista ou do cantor, extrema destreza técnica e
elevada consciência dos campos teóricos da música, pois dentro dessa prática, cada um é
responsável pelo seu próprio desempenho, utilizando a percepção musical no sentido mais
amplo para cuidar dos tempos, dinâmicas, articulações, fraseados, e tantos outros mais
elementos. Essa é uma habilidade desenvolvida sempre em conjunto e só é alcançada, a médio
prazo, com o trabalho regular e sistematizado. Chamamos atenção para esse fato pois, mesmo
num coro de 200 vozes ou numa orquestra com 120 instrumentistas, direcionar o músico a
pensar como se estivesse realizando música de câmara ajudará na sincronia dessa grande
massa sonora e no cuidado e atenção para outras informações sobre a partitura. Entretanto,
mesmo estando todo o grupo sincronizado e seguindo precisamente a regência, a mente do
maestro sempre deve estar alguns compassos à frente daqueles que o grupo está tocando, pois
uma das características da regência é o pensamento antecipado. A quarta situação é a que
acreditamos ser adequada para o processo entre ensaios e concertos. A acertada escolha do
repertório, seguida de um processo de ensaios eficientes e também tendo como lastro o
pensamento do fazer musical camerístico, conduzirão a uma “fusão musical” entre maestro e
orquestra no ato da interpretação musical. Para tanto, também é extremamente necessário ter
consciência do propício momento em que a lapidação dos detalhes da partitura deve ser
abandonada em função da grande estrutura da obra. Ou seja, o trabalho técnico sobre arcadas,
articulações, dinâmicas, etc. sempre será de ocupação do maestro, mas a compreensão e
73
conexão das grandes estruturas da obra tem um valor importantíssimo nos ensaios que
antecedem o concerto, pois assim os cantores e/ou instrumentistas terão maiores
possibilidades de entender e realizar o caráter musical indicado pelo maestro.
Investigar a origem e função da hermenêutica, e aplicá-la no processo da interpretação
musical sob a ótica da regência, significa compreender os elementos musicais e suas
interfaces, mas é, sobretudo, desvendar o “instrumento” do maestro: ele próprio! Assim como
o cantor utiliza seu corpo e mente para expressar sua arte, também o regente deve fazê-lo,
porém considerando que este último sempre estará expressando-se através do conjunto
musical, e o grupo responderá de acordo com os atos que o maestro realizar. Tal exercício
hermenêutico é uma proposta de ampliação das informações que esse artista deve ter sobre ele
mesmo, concernentes à competência na área (formação e capacidade profissional), à
estruturação mental (formas de conhecimento e tipos de conteúdos) e à capacidade humana
(carisma e liderança).
Sintetizando, utilizando-se da hermenêutica, a postura do regente ante a obra a ser
interpretada, dentre outras condições e possibilidades, deve ponderar acerca das seguintes
situações: 1) consciência sobre suas próprias competências e limitações, como também sobre
o motivo da seleção da obra; 2) consideração do duplo caráter relativo à música: o “lógico e
direto”, atuando simultaneamente com o “abstrato e indireto”; 3) consciência acerca da
infinidade do ato interpretativo; 4) identificação dos conteúdos objetivos e subjetivos relativos
à partitura, distinguindo suas formas de conhecimentos; 5) valoração de tais conteúdos e
elaboração das suas conexões [inter-relação e intra-relação]; 6) apreensão, tradução,
compreensão dessas informações e expressão de uma concepção musical sobre a obra; 7)
utilização dos conteúdos e formas de conhecimentos na regência; 8) relação com músicos,
instituições, patrocinadores, mídia, público, etc. Contudo, além das etapas anteriormente
descritas, o que genuinamente caracterizará a aplicação de uma metodologia hermenêutica em
74
música é considerar que os estágios intrínsecos ao ato interpretativo geralmente acontecem,
todos ou em pares, simultaneamente e não sequencialmente. O entendimento de tal natureza é
a verdadeira chave para uma eficiente aplicação da hermenêutica musical.
75
3. INFORMAÇÕES SOBRE “IMPRESSÕES SINFÔNICAS” FESTA DAS IGREJAS
3.1 Reflexões sobre a origem da obra e o pensamento do compositor
Para melhor entendermos a origem de Festa das Igrejas lancemos um olhar sobre a
auto-reflexão do compositor, como também os depoimentos acerca dele feitos por Liddy
Chiaffarelli, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Mário de Andrade. Todos esses relatos estão
contidos na autobiografia de Mignone, A Parte do Anjo, escrita na passagem do seu
cinqüentenário. A postura reflexiva, especulativa e conscienciosa deste compositor, torna-se
evidente no livro acima citado:
A minha música deverá ser, dia a dia, mais refinada como técnica, mas clara, franca, facilmente compreensível para a maioria. Devo me preocupar em não permitir, mesmo na técnica, que minha música se enfeite de bisantinices e chinesices que a tornem pesada e de muito difícil execução (quando se tratar de música de conjunto). Na música virtuosística individual posso ir à mais alta virtuosidade, porque meu temperamento natural gosta de esplendor e do brilho; apenas terei de controlar essa virtuosidade, de maneira que ela seja sempre lógica e não se derrame em efeitos demasiadamente conhecidos ou estereotipados. Da mesma forma, devo controlar a minha qualidade melódica, de maneira a não cair no banal ou no demasiado fácil. Tenho uma tendência (tendência, não) uma facilidade muito grande para imitar outros autores. Deverei recusar isso? Absolutamente não. Ninguém é inteiramente pessoal. O que devo é organizar essa faculdade de maneira a me aproveitar do alheio, transformando êsse alheio em aquisição minha.(...) Por exemplo: é incontestável que me aproveitei das obsessões rítmicas de Stravinsky e De Falla, no “Maracatu do Chico-Rei” e em algumas “Fantasias Brasileiras” para piano e orquestra. Ficou ótimo. Esse elemento era prodigiosamente fecundo porque coincidia com a rítmica negro-brasileira, e trouxe mais caráter às minhas obras. Isso nem é imitar, é estudar e...aprender. (...) Então devo-me aproveitar da minha facilidade natural? Está claro que sim! Facilidade não é defeito, é uma das maiores qualidades para o artista. Só que é perigosa, e necessita de controle fino. Só uma coisa se deve repudiar a facilidade; é opor a ela a faculdade da pesquisa. 43
Vimos que o autor está consciente dos seus processos compositivos e Mignone deixa
informações bastante claras acerca da obra em estudo, como veremos mais adiante.
As “Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas são reconhecidas como uma das mais
expressivas obras dentro dos quase setenta anos dedicados à composição de Francisco
43 MIGNONE, Francisco. A parte do anjo. São Paulo: E. S. Mangione, 1947. p. 39-41.
76
Mignone, tendo sido interpretada por Eugene Ormandy com a Orquestra Sinfônica da
Filadélfia, Eugen Szenker com a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), e gravada por Arturo
Toscanini frente à Orquestra Sinfônica da NBC (Nova York), como também pelo próprio
compositor frente à Orquestra Sinfônica Brasileira. Atualmente encontramos gravações com
outras orquestras brasileiras sob a regência dos maestros David Machado, Norton
Morozowicz e John Neschling. Possuindo um cunho nacionalista, como também era o
pensamento de época, esta obra foi concebida tendo como referência orquestral os poemas
sinfônicos Fontes de Roma e Pinheiros de Roma, do compositor italiano Ottorino Respighi.
O Mário de Andrade estava muito empolgado com a vinda do Respighi ao Brasil, em 1928. Respighi regeu uns concertos em São Paulo, depois veio ao Rio, ele levava aqueles poemas, que são mais impressões sinfônicas, As Fontes de Roma, Os Pinheiros de Roma. E o Mário falou que eu deveria escrever coisas como o Respighi, respondi que se ele escrevesse o poema para mim, faria a música. Dias depois ele me apareceu com três, um era Festa das Igrejas, feito exatamente como As Fontes de Roma, e o espírito está dentro da orquestração Respighiana.44
Esta informação, direta do compositor, proporciona extrema certeza dos pensamentos
dele quanto à origem de Festa das Igrejas, contudo, a declaração de Mignone também nos
direciona a dois aspectos que podem gerar questionamentos enriquecedores para áreas de
história, musicologia e etnomusicologia, assim como para o estudo da poética do compositor.
Como dito acima, observemos que a referida composição é fruto de um “poema”, um
argumento em forma de texto escrito por Mário de Andrade. Um olhar mais amplo e profundo
sobre tal fato gera as seguintes questões: Essa relação entre escritores e músicos era uma
prática daquela época? Essa foi uma prática exclusivamente desse compositor e não de outros
daquele período? Apenas essa peça de Mignone foi composta sobre uma idéia encomendada?
Para não afastarmo-nos excessivamente da investigação sobre a obra, não deteremos a atenção
para alcançar tais respostas, porém acreditamos que as perguntas anteriormente formuladas
podem ser desdobramentos deste capítulo, e também são imprescindíveis para compreender
44 MIGNONE, Francisco. Coleção depoimentos. Rio de Janeiro: Museu da Imagem e do Som, 1968. p. 5.
77
melhor o contexto cultural no qual ele estava inserido, como também o conjunto de sua obra.
O pensamento artístico do Brasil naquela época, e a condição de Mignone, quando do seu
retorno ao país, são descritos na citação abaixo de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo. Nela,
Azevedo apresenta a opinião enfática de Mario de Andrade (nos fragmentos de textos entre as
aspas) sobre este compositor, para caracterizar o redirecionando da estética de Mignone ao
nacionalismo brasileiro.
“Ninguém preza mais esse artista do que eu. Torço por ele como torço por aqueles que considero de algum valor. Mas tenho que reconhecer que a situação atual de Francisco Mignone é bem dolorosa e que estamos em risco de perder, perdendo-o, um valor brasileiro útil. Músico se sentindo essencialmente dramático, dotado de uma cultura exclusivamente européia, desenvolvido no ritmo da sensibilidade italiana, Francisco Mignone está numa situação dolorosa. Não encontra libretistas brasileiros que lhe forneçam assuntos nacionais. E se encontrar: o libreto pra ser representado, terá de ser vertido pro italiano, porque ninguém canta em brasileiro neste mundo”. E continua: “Ora diante de tantas circunstâncias, Francisco Mignone se vê constrangido a compor o que? o INOCENTE. É uma peça que prova bem a cultura do músico, as suas possibilidades. Mas que valor nacional tem o INOCENTE? Absolutamente nenhum. E é muito doloroso no momento decisivo de normalização étnica em que estamos, ver um artista nacional se perder em tentativas inúteis. Porque em música italiana, Francisco Mignone será mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa, que ele não aumenta. Aqui ele será um valor imprescindível”. Concluindo assevera que “as circunstâncias históricas do momento, em que valores nacionais que contam em música, Villa-Lobos, Luciano Gallet, Camargo Guarnieri e outros, pelejam entre achados e enganos, para oferecer ao país uma tradição artística nacional, não permitem mais que o INOCENTE seja contado como representação brasileira”. “A música brasileira fica na mesma, antes e depois dessa ópera”. Era um apêlo. E o compositor não foi surdo a esse apêlo. Nesse mesmo ano compõe a Primeira Fantasia Brasileira, para piano e orquestra, que, executada em fevereiro de 1931, por Souza Lima, na Sociedade Sinfônica de São Paulo, funde as reservas que o crítico vinha mantendo para com ele. Mario de Andrade confessa que teve da obra “a melhor das impressões”.45
Com esse dado podemos considerar que Mignone precisou de um determinado
período de adaptação para inserir-se na corrente nacionalista brasileira referente àquele
momento, e provavelmente fosse o tempo necessário para que ele alcançasse maturidade e
45 AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. “Si alza la tela”... In: MIGNONE, Francisco. A parte do Anjo. São Paulo: E. S. Mangione, 1947. p. 10-11.
78
consciência sobre suas composições, pois é importante observar que, a partir da vinda de
Respighi ao Brasil, só depois de 12 anos Festa das Igrejas foi composta. Outro fato que deve
ter influenciado no hiato de tempo entre o argumento de Mário de Andrade sobre Festa das
Igrejas (1928) e a criação dessas “Impressões Sinfônicas” (1940) é que na década de 30,
Mignone mudou-se de São Paulo para o Rio de Janeiro e deteve-se com maior regularidade ao
ofício e ensino da regência. Fonseca diz, “Descontente com a situação musical na cidade de
São Paulo, em novembro de 1933 o compositor fixa residência no Rio de Janeiro onde, no ano
seguinte, substitui Walter Burle-Marx na cadeira de Regência Orquestral do Instituto
Nacional da Música” (FONSECA, 2000)46. A citação abaixo autentica tal contexto.
Outra atividade na qual Mignone se tem dado muito bem é a regência de orquestra. Tendo sido músico de orquestra, filho de um professor de orquestra, fácil foi para ele assenhorar-se dos segredos que a prática ensina. Por ocasião do centenário (1836-1936) de Antônio Carlos Gomes, Mignone foi escolhido pelo Governo Federal, para reger as melhores obras sinfônicas do autor do “Guarany”. Para tanto constituiu-se uma orquestra de 110 figuras que bem ensaiada por Mignone apresentou-se dignamente e correspondeu do alto fim a que era destinada. Esse concerto chamou a atenção dos representantes diplomáticos estrangeiros presentes e motivou um primeiro convite para Mignone ir a Alemanha em 1937 reger um concerto de músicas sinfônicas brasileiras na orquestra Filarmônica de Berlim. Em Berlim, o êxito foi completo e tanto assim que o governo italiano convidou Mignone para reger, em Roma (1938), a orquestra do Augusteo. (...) Convidado pelo Departamento de Estado esteve, em 1942, nos Estados Unidos da América do Norte tendo oportunidade, então, de reger a National Broadcasting Corporation Orchestra apresentando em primeira audição, naquele país, seu poema “Festa das Igrejas”.47
3.2 Impressões Sinfônicas e Poema Sinfônico
Outro ponto que possui significativa relevância é que mesmo sabendo que essas
composições de Respighi são conhecidas como poemas sinfônicos, Mignone as concebe como
“Impressões Sinfônicas” (ver citação de número 44). O que ele idealiza com esse conceito?
46 FONSECA, Angelo Rafael P. da. Uma abordagem morfológica do bailado quadros amazônicos do compositor francisco mignone. 2000. Dissertação. (Mestrado em Música). Escola de Música. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. 47 CHIAFFARELLI, Liddy. Biografia. In: MIGNONE, Francisco. A parte do Anjo. São Paulo: E. S. Mangione, 1947. p. 74.
79
Por que utilizar tal denominação para Festa das Igrejas? Quais outros compositores
utilizaram o conceito de “impressões sinfônicas” para as suas obras? Esse é um conceito
criado por Mignone? Tais questionamentos nos fazem refletir sobre qual visão o autor tinha
sobre sua criação, e isso é um dado importante sobre a obra.
O que primeiramente faz-se necessário é investigar possíveis relações entre “poema
sinfônico” e “impressões sinfônicas”. O primeiro é conhecido, dentro de uma visão geral,
como uma forma de composição para orquestra, normalmente em um único movimento (as
vezes em forma sonata) e possui natureza extramusical. Tal natureza é que o faz pertencer à
idéia geral de “música programática”, ou seja, aquela que usualmente descreve algo ou tem
sua inspiração em fontes literárias. A estrutura compositiva do poema sinfônico é reconhecida
como um importante gênero musical, utilizado a partir do romantismo até às primeiras
décadas do século XX, a exemplo das seguintes obras: Ce qu’on entend sur la montagne
sobre um poema de Victor Hugo (1802-1885) e Les Préludes inspirados nas “Meditações
Poéticas” de A. Lamartine (1790-1869), ambos compostos por F. Liszt (1811-1886) e
estreados em 1848. Essas são peças que consolidaram o pensamento de compor música
sinfônica tendo um texto já escrito como referência. Mas, em seguida, outras obras literárias
serviram de inspiração para vários poemas sinfônicos, tais como: Mazeppa (1851) também de
Liszt sobre texto de Victor Hugo; Hamlet (1857) e Romeo e Julieta (1869) de P. Tchaikovsky
(1840-1893) sobre os textos de Shakespeare (1564-1616).
Tal pensamento de época possibilitou vários compositores a descreverem a vida, o
contexto, personagens ou fatos pitorescos dos seus respectivos países. As primeiras obras a
contribuírem nesse sentido foram os seis poemas sinfônicos de B. Smetana (1824-1884),
intitulados de Mà Vlast (minha pátria) e compostos entre 1874 e 1879. Essa tendência pode
ser observada também nas seguintes obras: In the Steppes of Central Ásia (1880), do russo A.
Borodin (1833-1887); Finlândia (1899), do finlandês J. Sibelius (1865-1957); A London
80
Symphony (1914), do inglês V. Williams (1872-1958); Fontane di Roma (1917), do italiano
O. Respighi (1879-1936), dentre outros. Richard Strauss (1864-1949) deu expressiva
contribuição ao universo dos poemas sinfônicos com as obras Tod und Verklärung (1890),
Till Eulenspiegel lustige Streiche (1895), Also sprach Zarathustra (1896), Don Quixote
(1897) e Ein Heldenleben (1899). Aqui, chamamos atenção para a primeira e última
composição de Strauss acima citadas, pois elas retratam a visão particular do autor sobre dois
temas que não se baseiam em obras literárias, a saber: Tod und Verklärung (Morte e
Transfiguração) que descreve a morte de um artista, e Ein Heldenleben (Vida de Herói)
correspondente a uma autobiografia musical. Nesta mesma linha de pensamento, ele ainda
compõe, em 1903, Häuslichesinfonie (Sinfonia Doméstica), que descreve um dia na vida
familiar do compositor, e em 1915, Alpensinfonie (Sinfonia Alpina), que narra um dia de
escalada nos Alpes. Voltando o nosso olhar para o pensamento de Strauss, essas composições
transportam a concepção de poema sinfônico baseado em obras literárias para um campo
muito mais livre quanto às bases de inspirações.48
Vimos então que Liszt possuía uma visão mais diretamente ligada ao conceito, ou seja,
compor música sinfônica sobre um poema. Já Strauss, apresentava maior flexibilidade,
compondo poemas sinfônicos sobre fatos do cotidiano. Essa liberdade de pensamento
apresentada por este último compositor, provavelmente estimulou a criação de obras sobre
fatos e personagens pitorescos como podemos observar nos poemas sinfônicos: Prélude à
l’Après-midi d’um faune (1894), de C. Debussy (1862-1918); L’Apprenti sorcier (1897), de P.
Dukas (1865-1935); An American in Paris (1928), de G. Gershwin (1898-1937) e a trilogia de
O. Respighi, Fontane di Rome (1917), Pini di Rome (1924) e Feste Romane (1924). Como
verificamos em citação anterior, estas últimas composições influenciaram Francisco Mignone
em suas Festa das Igrejas. O termo “impressões sinfônicas”, utilizado por este último
48 As informações sobre as obras citadas nesse parágrafo, foram retiradas do verbete “poema sinfônico” do Harvard Dictionary of Music.
81
compositor, pode ter seus alicerces em tal liberdade de pensamento sobre a fonte de
inspiração musical. Na pesquisa efetuada acerca do seu conceito, não o encontramos como um
gênero musical definido e assimilado pela história da música, entretanto algumas obras de
reconhecidos compositores do século XX utilizam essa denominação nos seus títulos, por
exemplo: Noites nos jardins de Espanha – Impressões Sinfônicas para piano e orquestra
(Manuel de Falla) / Impressões Sinfônicas Antiche Arie e Danze per liuto, e 4 Symphonic
Impressions – Vetrate di Chiesa: 1.La fuga in Egitto, 2.San Michele Arcangelo, 3.Il
Mattutino di Santa Chiara, 4.San Gregorio Magno (Ottorino Respighi) / Impressões
Sinfônicas: Impressioni dal vero, e Impressões Sinfônicas: Pause del Silenzio (Gian
Francesco Malipiero) e O Espantalho – Impressões Sinfônicas (Francisco Mignone).
Compositores do mesmo período, porém de menor projeção, também se valeram de tal
conceito para denominar suas obras, a saber: Beija-Flor – Impressões Sinfônicas (Raul do
Valle) / Symphonic Impressions of Oman (Lalo Schifrin) / Metropolis: Symphonic
Impressions of a Great City (Clive Douglas) / In the Mountain Country – Symphonic
Impression (Ernst John Moeran) / Symphonic Impressions Prelude and Fugue, for piano
(Alan Bush) / Two Symphonic Impression (Carl Eppert) / Kai–Kyo: Symphonic
Impressions for Orchestra (Kaoru Wada) / Symphonic Impressions of The Music Man
(Meredith Willson) e Seven Symphonic Impressions – for piano (Michael Garret).
Podemos então constatar que tal denominação, apesar de não se encontrar como uma
forma musical reconhecida ou um gênero específico dentro da música, “impressões
sinfônicas” é um título que tem sido usado com mais freqüência nas composições a partir do
século passado, e que denota atmosferas, humores e ambientações de várias cenas, eventos ou
personagens captados pelo compositor. Não estar preso a uma obra literária ou a uma
estrutura musical pré-determinada (tal qual forma sonata como vimos na conceituação geral
82
de poema sinfônico), podem ser as diferenças nas quais Mignone se baseia para reconhecer os
poemas sinfônicos de Respighi como impressões sinfônicas.
O fato é que o autor de Festa das Igrejas estava consciente do que queria alcançar com
sua obra, e na busca por precisão de suas idéias, ele atestou algumas informações acerca da
referida composição, como mostra a citação abaixo:
Neste poema sinfônico o Autor, sem nenhuma preocupação estreitamente descritiva, busca traduzir pelos elementos da música as comoções e idéias que lhe despertam os monumentos católicos e a religiosidade brasileira. Decorre de semelhante concepção o aspecto particular das evocações em que, sem o menor desrespeito o religioso se mistura ao profano, o sacro se confunde com o entusiasmo exterior, a graça e sentimento seresteiro se aliam ao candomblé supersticioso, numa fusão familiar e nossa conhecida, já muito comentada pelos sociólogos e observadores da vida brasileira. Não se trata por tanto de música religiosa, muito embora os efeitos religiosos transpareçam com os seus caracteres tradicionais brasileiros, determinando o clima da inspiração.49
Com a solicitação de Mignone a Mário de Andrade para escrever o poema sobre
argumentos brasileiros (ver citação n° 44, da página 76) e também uma correspondência do
compositor para o autor do texto (ver em anexo D), possivelmente tanto a citação acima,
quanto as epígrafes relativas a cada templo dessa composição foram escritas por Mário de
Andrade, entretanto optamos em não afirmar tal observação por não termos encontrado
documentos que a respaldem.
3.3 Influência dos Poemas Sinfônicos de Respighi sobre Festa das Igrejas.
Apesar de Mignone reconhecer a influência dos poemas sinfônicos de Respighi sobre
sua composição, na pesquisa de campo realizada neste trabalho não foi encontrado carta, texto
ou depoimento escrito de como tal relação se deu. Não sabemos se ele teve acesso às
partituras de Respighi, ou até mesmo, se esses músicos conversaram sobre o assunto. O que
podemos afirmar é que existiu uma proximidade profissional, pois Respighi incluiu uma peça
de Mignone nos concertos que realizou no Brasil, vide citação abaixo.
49 MIGNONE, Francisco. Nota introdutória da primeira página da partitura em manuscrito, 1940. (Anexo A).
83
Depois da bem sucedida experiência da Congada, Mignone abordou mais uma vez os ritmos brasileiros em outra peça sinfônica: O Maxixe, que Ottorino Respighi regeu nos programas que dirigiu, no Rio e em São Paulo, em 1928. 50
Sabendo que Mignone se inspirou na orquestração respighiana (ver p. 75),
observemos então quais instrumentos ele utilizou com o intuito de transportar a sonoridade
dos Pinheiros de Roma e Fontes de Roma, para sua Festa das Igrejas. Apresentamos, logo a
seguir, um quadro com a instrumentação das respectivas peças e incluímos os dados
referentes às Festas de Roma, considerando que tal peça compõe a trilogia de Respighi. Ver
tabela a seguir:
50 AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. “Si alza la tela”... In: MIGNONE, Francisco. A parte do Anjo. São Paulo: E. S. Mangione, 1947. p. 9.
84
Tabela 2: Instrumentação das obras de Respighi e Mignone
O. Respighi O. Respighi O.Respighi F. Mignone Id. As Fontes de Roma As Festas de Roma Os Pinheiros de Roma Festa das Igrejas MADEIRAS MADEIRAS MADEIRAS MADEIRAS
1 01 Flautim 01 Flautim 01 Flautim 01 Flautim 2 02 Flautas 02 Flautas 02 Flautas 02 Flautas 3 02 Oboés 02 Oboés 02 Oboés 02 Oboés 4 01 Corne Inglês 01 Corne Inglês 01 Corne Inglês 01 Corne Inglês 5 -------------------------- 01 Clarinete Pícolo --------------------------- ---------------------- 6 02 Clarinetes (A e Bb) 02 Clarinetes (A e Bb) 02 Clarinetes (A e Bb) 02 Clarinetes (Bb) 7 01 Clarinete Baixo 01 Clarinete Baixo 01 Clarinete Baixo 01 Clarinete Baixo 8 02 Fagotes 02 Fagotes 02 Fagotes 02 Fagotes 9 -------------------------- 01 Contrafagote 01 Contrafagote 01 Contrafagote
METAIS METAIS METAIS METAIS 10 04 Trompas 04 Trompas 04 Trompas 04 Trompas 11 03 Trompetes 04 Trompetes 03 Trompetes 03 Trompetes 12 -------------------------- 03 “Buccine” 06 “Buccine” ----------------------- 13 03 Trombones 02 Trombones 04 Trombones 03 Trombones 14 01 Tuba 01 Tuba --------------------------- 01 Tuba
PERCUSSÃO PERCUSSÃO PERCUSSÃO PERCUSSÃO 15 Tímpanos Tímpanos Tímpanos Tímpanos 16 Triângulo Triângulo Triângulo Triângulo 17 -------------------------- Sinetas Sinetas ----------------------- 18 01 Prato Suspenso 01 Prato Suspenso 01 Prato Suspenso 01 Prato Suspenso 19 -------------------------- -------------------------- 02 Pratos Pequenos ----------------------- 20 -------------------------- Tam-tam Tam-tam Tam-tam 21 Carrilhão -------------------------- --------------------------- Carrilhão 22 01 Campana 02 Campanas --------------------------- 01 Campana 23 -------------------------- Chocalhos --------------------------- ----------------------- 24 -------------------------- Matraca Matraca ----------------------- 25 -------------------------- 02 “Tavolette” --------------------------- ----------------------- 26 -------------------------- Pandeiro Pandeiro Pequeno ----------------------- 27 -------------------------- Caixa Pequena --------------------------- ----------------------- 28 -------------------------- Caixa Grande --------------------------- ----------------------- 29 -------------------------- Bombo Bombo Bombo 30 -------------------------- Xilofone --------------------------- ----------------------- 31 Celesta Celesta Celesta Celesta 32 02 Harpas -------------------------- 01 Harpa 02 Harpas
TECLADOS TECLADOS TECLADOS TECLADOS 33 Piano Piano (a 2 e 4 mãos) Piano Piano 34 Órgão (ad libitum) Órgão Órgão Órgão
ELÉTRICO ELÉTRICO ELÉTRICO ELÉTRICO 35 -------------------------- -------------------------- “Grammofono” -----------------------
CORDAS CORDAS CORDAS CORDAS 36 -------------------------- 01 “Mandolino” --------------------------- ----------------------- 37 Violino 1 Violino 1 Violino 1 Violino 1 38 Violino 2 Violino 2 Violino 2 Violino 2 39 Viola Viola Viola Viola 40 Violoncelo Violoncelo Violoncelo Violoncelo 41 Contrabaixo Contrabaixo Contrabaixo Contrabaixo
85
Podemos verificar que existe significativa relação entre a instrumentação de Festa das
Igrejas e a trilogia respighiana, porém é importante ressaltar que o tipo de orquestração
utilizada por Mignone é que confirma tal influência. A técnica por ele utilizada segue a escola
de orquestração russa, na qual cada família de instrumento desenvolve uma idéia musical
distinta, mas correlacionadas. Os dobramentos das partes musicais acontecem dentro do
mesmo grupo de instrumentos, valorizando o timbre e a sonoridade de cada família
instrumental. O brilho dos instrumentos de percussão (triângulo, prato, etc.) e a agitada
rítmica homofônica nos instrumentos agudos da orquestra (flautim, flauta, violinos, etc.)
também são fortes características dessa escola de orquestração. Tais características são
recorrentes nos poemas sinfônicos de Respighi, que estudou com Nicolai Rimsky-Korsakov,
em São Petesburgo durante o ano de 1900. Mignone estudou com Vicenzo Ferroni, no
Conservatório Giuseppe Verdi, em Milão. Mesmo estudando na Itália, com italiano, Ferroni
estudou em Paris com Massenet, logo possui uma formação francesa, da qual Mignone
fundamentou seus conhecimentos compositivos. Tendo ele um grande poder de observação e
considerando sua capacidade de aproveitar os materiais musicais de seus contemporâneos, o
pensamento orquestral dos poemas sinfônicos de Respighi foram tranquilamente transpostos
por Mignone para as suas impressões sinfônicas.
3.4 Depoimento de Mignone sobre uma significativa interpretação da obra
Quanto às várias interpretações de Festa das Igrejas, Mignone nos dá um breve, mas
precioso relato da visão interpretativa do M° Carlos Alberto Pinto da Fonseca.
Uma carta escrita por Francisco Mignone, em 1976, nos mostra a satisfação deste compositor pelo resultado obtido por Carlos Alberto Pinto Fonseca durante a regência de Festa das Igrejas, poema sinfônico composto nos anos de 1939 e 1940. “Rio de Janeiro, 30-06-1976. Meu caro e jovem colega Carlos Alberto Pinto Fonseca. Estou chegando em casa com a grande alegria de ter ouvido finalmente as minhas Impressões Sinfônicas ‘Festa das Igrejas’, interpretadas tal qual eu desejo e quero. E olhe que essa obra foi regida pelos maestros Szenkar, Toscanini, Ormandy e eu próprio: como autor! Você, Carlos Alberto, captou o espírito da obra e soube dar aquele sabor e autenticidade que ninguém tinha conseguido. Não há dúvida que a sua
86
capacidade diretorial é invulgar e invejabilíssima no melhor e mais amplo sentido da palavra. Obrigado, obrigadíssimo do seu admirador e amigo, Francisco Mignone”.51
Pelo expresso na citação acima, esta foi uma interpretação de Festa das Igrejas
reconhecida pelo compositor. Se tal performance tivesse sido registrada, com certeza seria
mais uma referência para o entendimento da idéia do autor sobre sua obra. Esses subsídios
sobre as “Impressões Sinfônicas” de Mignone, somam-se às informações contidas na partitura
e todas as outras relativas à história geral, história da música, estética e a poética do
compositor, bem como a interface entre elas, para caminhar no sentido de uma hermenêutica
musical, descrito anteriormente nas páginas 74 e 75, construindo assim uma interpretação
mais consistente.
51 SANTOS, Mauro Camilo de Chantal de. Carlos Alberto Pinto da Fonseca: dados biográficos e catálogo de obras. Dissertação. (Mestrado em Música). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2001.
87
4. CONCEPÇÃO MUSICAL DA OBRA
Através do pensamento hermenêutico em música, todo o assunto exposto até então e
suas formas de abordagens devem corroborar para a concepção interpretativa da obra. As
várias capacidades e atividades do maestro servem de lastro para que o concerto seja uma
confirmação do trabalho previsto e realizado nos ensaios. Imbuído dos conhecimentos
musicais e extramusicais referente às “Impressões Sinfônicas” Festa das Igrejas,
apresentaremos uma concepção musical para realização da obra em estudo.
4.1 Igreja de São Francisco da Baía
Apesar de Mignone não considerar suas “Impressões Sinfônicas” literalmente como
música descritiva, ele deixa uma epígrafe para cada uma das igrejas explicitando quais
elementos inspiraram sua composição.
I. SÃO FRANCISCO DA BAÍA. Vozes de órgão ao longe. É dia festivo e na igreja há qualquer cerimônia de que os ecos se perdem ao ar livre, misturados a uma roda de crianças brincando. A evocação é feita do exterior. Há bulício de crentes entrando pelas portas abertas da igreja. A cerimônia atinge aos poucos a sua maior intensidade. O canto chão domina dialogando com outros cânticos corais misturados ao órgão e aos sinos evocados sem a utilização do instrumento, mas apenas pela movimentação das harmonias. Este processo de evocação dos sinos por meio de acordes será sistemático por todo o poema, com exclusão da última parte, em que o timbre é diretamente empregado. Aos poucos a cerimônia termina e volta-se ao ambiente inicial.52
A obra começa com um clima religioso, introspectivo e tranquilo que é sugerido pelo
dobramento dos seguintes instrumentos: harpa 2, celesta, órgão e viola solo. Tais
instrumentos tocam em suas respectivas regiões centrais, com a dinâmica p (piano),
proporcionando uma sonoridade ‘dolcissimo’ como mostra a partitura. Também, a indicação
da unidade de tempo como , o contorno melódico no campo tonal de LÁ
Maior, e a textura homofônica dos primeiros compassos da peça contribuem para uma
ambientação musical religiosa e verdadeiramente contemplativa. Ver exemplo que segue:
52 MIGNONE, Francisco. Nota introdutória da primeira página da partitura em manuscrito de 1940, (Anexo A).
88
Ex. 07 (compassos 01-13)
Essa sonoridade clara e dolcissima é reforçada pelos harmônicos do violino I e violino
II (no 3° compasso), que a tornam mais cristalina nesse ponto. Para se alcançar tal ‘atmosfera
musical’53 é fundamental respeitar as indicações de dinâmica e não exagerar na
expressividade dos crescendo e diminuendo, assim como na velocidade e amplitude do
vibrato da viola. Apesar da indicação andamento como , é possível
realizar esse trecho em um tempo mais lento. Na nossa concepção, a indicação do tempo pode
ser entre , pois, considerando a acústica do local da apresentação, essa pulsação pode
conferir um caráter musical mais tranqüilo.
A partir do compasso 6, o naipe das violas apresenta um novo tema que é sobreposto à
idéia inicial apresentada pelos instrumentos do exemplo anterior. Essa nova idéia musical, que
53 Chamamos de atmosfera musical o clima ou ambiência proporcionada pela escuta da música.
89
igualmente será apresentada pelos violoncelos (no momento imediatamente posterior),
também possui uma construção melódica dentro do campo de LÁ Maior, com estrutura
rítmica de pouca complexidade, numa região entre o Dó 2 e o Fá 4, compreendendo os dois
exemplos que seguem. Estes, representam o naipe das violas e violoncelos, respectivamente.
Ex. 08 (compassos 06-13)
Ex. 09 (compassos 14-20)
Mignone utiliza a melodia na região grave das violas, na qual a sonoridade é presente,
porém escura, e apenas quatro violoncelos tocando a mesma melodia uma oitava acima da
viola, que apresentam brilho e boa projeção do som. O compositor teve o cuidado de
especificar a dinâmica de mf (mezzo forte) para as violas, e p (piano) para os violoncelos no
intuito de alcançar um equilíbrio da intensidade do som entre os naipes supracitados, dando
uma idéia de continuidade da idéia musical, mas a escolha da região desses instrumentos
sugere uma diferenciação dos timbres de cada um deles. Tais tessituras, o contorno melódico
e também o encadeamento tonal dos acordes (ver linha do órgão no exemplo 07) abarcam o
âmbito vocal na tradição católica, e isso pode ser uma alusão aos cânticos dessa tradição
religiosa como citado na epígrafe da página 88. Para manter essa mesma atmosfera musical é
necessário permanecer com igual intenção do vibrato nos compassos iniciais, e a
expressividade moderada para não demonstrar excesso de lirismo ou dramaticidade, apesar da
indicação dos sinais de crescendo e diminuendo. Do compasso 1 ao compasso 20 existe um
90
aumento do volume sonoro na linha melódica pelo acréscimo de instrumentos, a saber: viola
solo, do compasso 1 ao 5; naipe de viola, do compasso 6 ao 13; naipe de viola e quatro
violoncelos, do compasso 14 ao 20. Esse aumento do volume do som deve ser concebido de
forma gradativa para que ocorra uma conexão coerente entre as três partes descritas acima, e
proporcione uma tensão necessária para a próxima parte da música. Com o primeiro tema da
obra, os contrabaixos (em trêmulo), numa dinâmica em pp (pianíssimo), em ponticello, criam
um clima de mistério e avigoram a tensão da atmosfera musical. Observe exemplo abaixo.
Ex. 10 (compasso 14 ao 20)
Tal efeito sonoro terá melhor resultado se os instrumentistas tocarem na metade
superior do arco, bem próximo ao cavalete, com um trêmulo curto e mas rápido. Essa tensão
construída pelo acréscimo de instrumentos e pela agógica de poco ritenuto culmina no
compasso 20. Esse compasso representa uma preparação para outra parte da obra, onde o
autor apresenta uma nova idéia musical com indicação de andamento , assim
como diferentes elementos rítmicos e melódicos. Também, com uma textura homofônica, essa
parte inicia com uma rítmica agitada, numa seqüência de acordes de sétima, em movimentos
descendentes e ascendentes, nos seguintes instrumentos: harpa 1, celesta, piano, violino I e
violino II. Ver exemplo que segue:
91
Ex. 11 (compasso 20-21)
Esses dois compassos antecipam todo o caráter vivo e alegre do trecho musical que vai
do compasso 21 ao 35. Com exceção da harpa, os instrumentos do exemplo acima passam a
dialogar com a família das madeiras (flautim, flauta, oboé e clarineta) e o carrilhão, ainda
sobre acordes de sétima, com variações de articulação e rítmica a cada bloco sonoro
apresentado pelos grupos, como demonstra exemplo abaixo.
Ex. 12 (compasso 23-28)
92
Essa construção promove um efeito sonoro que ratifica o caráter musical agitado,
brilhante e alegre, podendo ser uma alusão à roda de crianças brincando, citadas na epígrafe
referente a essa igreja. Também, chamamos atenção para o dobramento destas figurações
musicais realizadas por grupos de instrumentos pertencentes às mesmas famílias. Este fato
relembra a escola russa de orquestração e torna evidente a sonoridade respighiana que
Mignone transportou para sua obra. Mesmo estando presente esse clima de euforia, do
compasso 21 ao 35, tal passagem não deve ser executada com dinâmica excessiva ou colocada
em primeiro plano, pois a ela, contrapõe-se um tema bastante claro, apresentado pela viola e
violoncelo, que representa a idéia principal dessa parte. Ela deve ser tocada com significativo
vigor, seguir as indicações de região de arco e articulação da partitura (al talone e “>”), mas
com cuidado na pressão exercida do arco sobre a corda para não perder a qualidade sonora.
Ex. 13 (compasso 23 ao 29)
Essa mudança brusca de caráter musical é ainda mais intensificada do compasso 36 ao
39, onde o compositor indica o andamento . Para alcançar maior contraste
entre esse trecho e a passagem anterior, , esta última foi realizada com a
indicação de metrônomo em semínima próxima à pulsação 88 e a primeira com semínima
aproximadamente à pulsação 104. Uma maior diferença entre os tempos dessas partes,
estabelece um contraste mais claro, proporciona mais tensão e aumenta a expectativa pelo
relaxamento, que é preparado com a mudança de textura, a partir do compasso 38, e com o
poco ritenuto do compasso 40 ao 44. No exemplo que segue podemos comprovar tais
informações.
93
Ex. 14 (compasso 38-44)
O esperado relaxamento surge no compasso 45, com um novo tema no campo tonal de
Dó Maior, e é apresentado pelo clarinete e celesta, tendo um contracanto tocado pelo corne
inglês e fagotes. A redução da quantidade de instrumentos nesta parte, assim como os temas
musicais, a dinâmica em pppp (pianississímo) das cordas, o timbre doce do clarinete,
conferem a essa passagem uma textura suave e branda. Para se alcançar tal atmosfera musical,
é fundamental manter a dinâmica das cordas em um volume pequeno, e contextualizar a
indicação da intensidade f (forte) no clarinete solo, ou seja, caso seja necessário, mudar tal
indicação para mf (mezzo forte) ou, até mesmo, mp (mezzo piano). Todo esse contexto segue
a indicação de andamento .
94
Ex. 15 (compasso 45-52)
Esse pedal em intervalo de 4ª justa (na viola, e entre o violino II e violino I) e também
em intervalo de 5ª justa (no violoncelo) sugere uma simulação do timbre do órgão, e para
atingir tal intenção, esse trecho das cordas deve ser tocado sem vibrato e com muita suavidade
na troca de arco. Essa atmosfera musical tranqüila e doce é prolongada até o compasso 79, no
qual é encerrada com os fagotes e a seção das cordas, tendo o violoncelo a melodia principal.
Ex. 16 (compasso 69-79)
95
O Tema exposto pela viola e violoncelo a partir do compasso 24 é retomado, no
entanto em um contexto de música de câmara. Neste novo momento, sob a indicação de più
lento, a flauta solo e celesta apresentam a melodia enquanto o tímpano e o piano executam um
tremulo, sobre a nota fá #, em uma região grave das suas respectivas tessituras. O tema é
construído no campo tonal de Dó Maior, logo a intervenção de uma nota incomum (fá #) à
tonalidade acima citada, articulada em tremulo, numa região grave, propicia uma tensão, e,
está deve ser mantida em segundo plano para não sobrepor-se ao tema, apesar de todos os
instrumentos possuírem igual indicação de dinâmica (pp). Ver exemplo que segue.
Ex. 17 (compasso 80-87)
Essa ambiência musical branda e suave, do compasso 88 ao 98, é subitamente
interrompida pela brusca mudança de andamento para , pelo acréscimo dos
instrumentos de madeira (com exceção do clarinete baixo e contra-fagote) e pela família das
cordas, mas ainda sobre o mesmo tema musical do exemplo anterior.
Do compasso 99 ao 106, o compositor estabelece uma transição com ênfase no
elemento rítmico, inicialmente com acordes alternados de sétima da dominante de Fá # Maior
e Sol Maior, tocados pelas trompas, trompetes e trombones, tendo um trêmulo no triângulo e
96
trinado sobre a nota sol nas madeiras. O contrabaixo reforça a mudança de acordes dos
metais, vide exemplo que segue.
Ex. 18 (compasso 99-103)
Tal trecho musical exprime muita tensão, logo, para se alcançar essa densidade sonora,
a primeira passagem da transição (exemplo 18) deve ser interpretada com especial atenção às
articulações – acentos (>) nos metais e trinado (tr) nas madeiras – mantendo a dinâmica
sempre em fortíssimo (ff ). O trinado deve ser tocado o mais rápido possível e intenso até a sua
resolução, e o poco ritenuto deve ser realizado apenas no segundo tempo do compasso 102.
A segunda parte da transição é constituída por uma sequência de acordes sobrepostos
de lá menor e Sol Maior, executados pelos seguintes instrumentos: carrilhão, harpa 1, harpa 2,
celesta e piano, com uma figuração rítmica que revela vigor e entusiasmo. Neste mesmo
trecho, um intervalo de 5ª justa (dó-sol), é tocado pela viola, violoncelo e contrabaixo, com
97
uma construção rítmica de pouco complexidade. Os acordes de lá menor, Sol Maior e o
intervalo dó-sol executados simultaneamente, podem indicar uma politonalidade, mas também
fazem referência ao campo tonal de Dó Maior, aludindo a uma resolução harmônica entre a
primeira parte da transição – que enfatiza os acordes de Fá # Maior e Sol Maior, como
demonstrado no exemplo 18 – que se concluem no campo tonal de Dó Maior (acordes de lá
menor, Sol Maior e o intervalo dó-sol). Observemos o exemplo abaixo.
Ex. 19 (compasso 103-106)
Tais compassos devem ser tocados com extremo vigor e precisão rítmica, porém com
especial atenção ao balance dos instrumentos. Todos os instrumentos que tocam os acordes de
lá menor e Sol maior possuem timbres brilhante, porém a celesta, apesar de ter boa projeção
sonora, é o de menor volume quanto ao som. Logo, deve-se ter cuidado para que ela não fique
absolutamente suprimida pelos outros instrumentos.
98
Essa transição serve de preparação para a próxima parte da obra e, ao mesmo tempo,
antecipa uma das três idéias musicais desenvolvidas pelo compositor, a partir do compasso
107. A primeira delas é formada pelo elemento rítmico utilizado do compasso 103 ao 106, que
continuará sendo utilizado do compasso 107 até o compasso 122, pelo flautim, flautas, oboés,
corne inglês, clarinetes, 1ª, 2ª e 3ª trompa e o 3º trombone (ver desenho musical abaixo).
Ex. 020 (compasso 107-114)
O clarinete baixo, fagotes, contra-fagote, órgão, violoncelo e contrabaixo apresentam
uma segunda idéia, que é uma seqüência de escalas em Mi Maior, Fá # menor (como mostra o
exemplo que segue), Sol # menor e Si maior, todas com ritmo regular em semínimas. Este é
um elemento musical novo na obra.
Ex. 21 (compasso 107-114)
A terceira idéia é a retomada do tema que foi inicialmente apresentado pelo clarinete e
pela celesta, a partir do compasso 45 (ver exemplo 15), mas nesse trecho é apresentada pelo
violino I, violino II, viola e trompas, no campo tonal de Mi Maior.
Ex. 22 (compasso 107-114)
Essas estruturas musicais sobrepostas, executadas pelos instrumentos descritos em
cada um dos exemplos, na indicação de andamento , e ainda sob a dinâmica
99
f, representam o clímax musical da primeira parte da obra (Igreja de São Francisco da Baía).
Tal seção vai do compasso 107 ao 122, sempre com o mesmo caráter festivo, alegre e
“cantante”. Para sustentar o apogeu desse trecho é importante manter a indicação de tempo
(semínima 112), realizar a primeira idéia com a articulação precisa, o ritmo pontuado e
sempre vigoroso, sugerir uma sutil intensificação de dinâmica nas escalas da segunda idéia e,
sobretudo, não perder o cantabile do tema principal apresentado no exemplo anterior.
A partir do compasso 123, Mignone dá início à finalização da 1ª parte da obra, com a
retomada da estrutura rítmica apresentada no compasso 103 (ver exemplo n° 19) e também
com uma variação do tema do exemplo n° 22. Verificamos tal contexto no exemplo a seguir.
Ex. 23 (compasso 123-130)
Aqui a atenção deve estar voltada para a construção de uma atmosfera musical leve e
moderadamente alegre, para alcançar um estado mais relaxante em comparação à tensão
100
criada por todos os elementos musicais identificados no clímax da passagem. O prato, a
celesta e o piano devem manter a regularidade rítmica e, estes dois últimos instrumentos
devem realizar um decrescendo gradativo, tendo em mente os níveis de dinâmica que vão do
f, mf, mp, p e pp. A variação do tema, apresentado pelas flautas, violino I, violino II e viola
tem que manter a expressividade controlada para sugerir o clima de leveza e alegria branda.
Esse momento musical é prolongado até o compasso 135, porém tornando o som cada
vez mais “rarefeito” (o que Mignone vem a chamar futuramente de sfumato, ou seja,
“esfumaçado”, transformar em fumaça). Apesar de essa passagem conter figuração rítmica
pontuada e grupos de semicolcheias (flautas, violinos e viola), ainda sob a indicação de
, preservar o cantabile na condução melódica dos instrumentos citados logo
acima, resultará em uma ambiência sonora jovial e suavemente ligeira. Tal diluição de textura
vai ampliando-se até o compasso 135, utilizando ainda os mesmos materiais musicais com
variações, porém na direção de uma região grave da orquestra. Esse fato torna-se evidente
com a subtração das flautas, prato, celesta e piano (que tocam na região média aguda do
instrumento) e o acréscimo dos clarinetes (na região média grave), bombo e contrabaixo (com
articulação em stacatto, tocado na ponta do arco). A indicação de dim. Sempre (diminuindo
sempre), o espaçamento do elemento rítmico dos violinos e das madeiras, assim como o poco
ritenuto e as dinâmicas em p (piano) e pp (pianíssimo) auxiliam na transformação da idéia
musical. O cuidado individual de tais componentes, como também a atenção para as inter-
relações desses elementos culminará na atmosfera musical proposta pela partitura. Ver
exemplo que segue.
101
Ex. 24 (compasso 130-135)
O compositor mantém a idéia de diluição sonora, e inicia o último trecho da obra com
um intervalo de 5ª justa (réb-láb) nos fagotes, e um pedal sobre a nota réb no clarinete baixo,
enquanto que as trompas realizam uma figuração rítmica sobre as notas regulares e de caráter
jocoso, sobre as notas fá e mi. Igual pensamento é aplicado às tonalidades de Sib Maior e sib
menor, no compasso 141, dos naipes de viola, violoncelo e contrabaixo. Essas tonalidades
homônimas de Réb Maior e réb menor (compasso 136-139), e posteriormente em Sib Maior e
sib menor (compasso 141-146), surgem de acordo a alternância da terça do acorde. No
compasso 137, o tema exposto pelos naipes de viola e violoncelo (ver exemplo n° 13) mais
uma vez é retomado com pequena variação rítmica e melódica, mas preservando o campo
102
tonal da primeira exposição dele (Dó Maior). Este tema é sobreposto às tonalidades
homônimas ditas acima e mesmo com a tensão gerada pela idéia de bitonalidades (uma
melodia em Dó Maior sobre acordes de Reb Maior e réb menor, e posteriormente sobre Sib
Maior e sib menor), a idéia de tornar o som cada vez mais rarefeito deve ser mantida até o
final dessa parte, para que haja o devido contraste entre as “impressões musicais” da primeira
e segunda igreja. Ver exemplo que segue.
Ex. 25 (compasso 136-146)
Para tanto, mesmo com a indicação de andamento , essa passagem foi
interpretada com semínima = 72 (aproximadamente) para manter um pensamento coerente de
desaceleração do tempo, indicado no compasso 133 (ver exemplo 24). Interpretar tal trecho
com semínima = 126, retomaria um clima de agitação visto que o andamento antecedente a
este é . Tal mudança de caráter e de pulsação não daria continuidade ao
103
pensamento musical de relaxamento iniciado na passagem entre os compassos 133.
Concluindo as Impressões Sinfônicas sobre a 1ª igreja, Mignone, reapresenta o tema inicial na
celesta, órgão, violoncelo e contrabaixo.
Ex. 26 (compasso 147-152)
Nesse último trecho referente à primeira igreja, concluímos a idéia de tornar o som
cada vez mais rarefeito (sfumato) com os compassos finais demonstrados no exemplo acima,
e tudo acaba como começou. Ele também estabelece um elemento de ligação entre as quatro
igrejas, que é representado pelo intervalo harmônico de 2ª maior tanto nas harpas quanto na
celesta, como verificamos nos dois últimos compassos do exemplo acima.
104
4.2 Igreja do Rosário de Ouro Preto – Minas
Agora o autor está dentro do Rosário dos Pretos, e tem uma versão dramática do passado colonial. São os negros escravos construindo o seu templo. Um canto forte e voluntarioso predomina, que é qualquer cousa entre um canto-chão e um canto negro. É uma frase larga entremeada de ritmo e de batuque místico, lamentos de multidões sacrificadas, êxtases e alegrias frenéticas de escravaria. A peça se desenvolve sempre no esplendor áspero dessa visão.54
A visão dramática que Mignone tem sobre a segunda igreja das suas “Impressões
Sinfônicas” é representada, inicialmente, por uma textura musical densa, com elementos que
indicam aflição e ansiedade, sob a indicação do andamento .
Entretanto, o primeiro componente que observamos é a tensão utilizada por Mignone, no final
da 1ª igreja, com uma melodia em Dó Maior sobre os acordes de Réb Maior e depois de Sib
Maior, preparando a chegada ao campo tonal de dó menor e fá menor dessa 2ª parte da obra.
O uso de trêmulos no tímpano, no prato suspenso e no grupo das cordas (com exceção do
contrabaixo) e a articulação em sff (sforzzatíssimo), dentro da dinâmica ff (fortíssimo),
revelam também a dramaticidade do autor. Ver exemplo abaixo.
Ex. 27 (compasso 1-4)
54 MIGNONE, Francisco. Nota introdutória da primeira página da partitura em manuscrito, 1940. (Anexo A).
105
Observemos também que os arpejos descendentes, formados pelas notas fá, dó#, ré, lá,
réb, láb, sib e mi, tocados pelo piano em cada tempo do compasso, soam simultaneamente aos
arpejos em semicolcheias, também descendentes, executados pelas cordas, sobre as notas fá,
ré, réb e sib. Este é mais um elemento musical que corrobora a uma ambiência musical tensa e
sombria.
No 2º e 4º compasso, a dinâmica em ff (fortíssimo) do som grave realizado pelos
clarinetes, clarinete baixo, fagotes, trombone, tuba e piano – que simulam ‘clusters’ 55 – assim
como as fermatas sobre a pausa após essa última intervenção sonora, contribuem para tal
clima. Para gerar tal atmosfera musical, este som deve ser bastante duro e batido como
indicam os sinais de acento (>) sobre eles.
Ex. 28 (compasso 1-4)
As idéias musicais dos dois exemplos anteriores, quando sobrepostas, criam uma
ambiência carregada e nebulosa que se intensifica até o compasso 8, com variações de nota e
ritmo nos ‘clusters’ e diminuição no tempo das fermatas (a 1ª lunga e a 2ª meno lunga). Para
55 Agrupamento de notas tocadas ao mesmo tempo, geralmente em graus conjuntos, com excessiva dissonância.
106
estimular a sensação de angústia, os instrumentos necessitam produzir sons ásperos e
estridentes durante os oitos primeiros compassos.
A partir do compasso 9, parte do material musical utilizado nos primeiros compassos
(intervalo de 4ª justa descendente), mantém a idéia dramática, porém com uma textura e
dinâmica mais brandas, através dos seguintes instrumentos: Clarinete baixo, fagotes, contra-
fagote, trompas 3 e 4, violoncelo e contrabaixo. Os compassos 9 e 10 servem de transição
para uma melodia de caráter lamentoso e consternador, tocada pelo clarinete baixo e fagotes.
A esta frase musical, contrapõe-se uma linha melódica descendente executada pelos
contrabaixos. Ver exemplo que segue.
Ex. 29 (compasso 09-18)
A transição deve ser realizada com bastante ênfase nas articulações (>), e no
andamento , como sugere o autor. As fermatas sobre a respiração não devem ser
excessivamente curtas. Acreditamos que é necessário permitir que o silêncio aconteça para só
depois fazer soar o próximo compasso, para manter a expectativa pelo clima de relaxamento,
que se inicia no compasso 11. A melodia citada é longa (do compasso 12 ao 28) e mantém
sempre o mesmo caráter lamentoso, que alcança um ponto culminante no compasso 20,
confirmado pela indicação de dinâmica f (forte), após um crescendo do corne inglês, clarinete
baixo e fagotes. Este ápice também é indicado pelas regiões agudas dos instrumentos que por
107
ora tocam. Simultaneamente a esse uníssono das madeiras, o naipe de violas apresenta um
contracanto de caráter triste, na região grave do instrumento, enquanto que o contrabaixo
sustenta uma nota pedal em láb e depois em réb.
Ex. 30 (compasso 18-21)
Apesar de tal culminância melódica esse trecho deve ainda conter o caráter expressivo
e doloroso que se iniciou no compasso 12, mas sem se transformar em lírico e forte. Logo, as
madeiras devem interpretar toda essa melodia com o extremo legatto, sem exagerar nas
articulações (acentos), e realizar o crescendo do compasso 18 de forma gradativa até o f do
compasso 19. Esta frase finda no compasso 28, e, a partir do compasso 29, um novo material
musical, com ritmo marcante e caráter agitado, é apresentado em duas texturas. Ver o
exemplo seguinte:
108
Ex. 31 (compasso 29-33)
Essa primeira textura musical, ainda sob o andamento , caracteriza um
novo momento de tensão em relação ao longo canto das madeiras da seção anterior, mas
agora dentro de um clima rumoroso e também dançante pela rítmica apresentada pelo piano e
trompetes. A segunda textura apresenta um pensamento homofônico em dois planos que,
conjuntamente, formam blocos dissonantes, sob a indicação da dinâmica ff (fortíssimo). O
primeiro deles é constituído por blocos de acorde em mudança de oitavas, e para proporcionar
um satisfatório nível de tensão, é fundamental que os acentos (>) sejam tocados com força e
que o som seja mantido após tais articulações. O ritenuto, dos compassos 31 e 35, não deve
ser exagerado para não dispersar a tensão e o bloco homofônico do compasso 33, deve ser
exageradamente marcado. Também, executar bruscamente a mudança de andamento para
, ratificará a tensão musical concebida. Ver exemplo abaixo.
109
Ex. 32 (compasso 31-35)
O segundo plano homofônico é primeiramente representado por notas de longa
duração e, posteriormente, por uma figuração rítmica de caráter marcante e pesado. O
crescendo dos instrumentos de metal, no compasso 33, reforçará a tensão construída pelas
madeiras, violino I, violino II e viola demonstrada no exemplo anterior, por isso ele deve ser
realizado com grande velocidade para partir da dinâmica p (piano) até o mais forte desejado.
Tais informações podem ser observadas no exemplo a seguir.
110
Ex. 33 (compasso 31-35)
A primeira idéia musical dessa segunda parte de Festa das Igrejas é resgatada, a partir
do compasso 36, porém em um outro contexto. O tutti inicial dá lugar a uma textura
instrumental mais leve, radicalmente reduzida ao naipe das cordas com intervenções
alternadas entre os instrumentos de metais e de madeiras. Nos quatro primeiros compassos da
reapresentação da referida temática musical, um recurso de sonoridade é utilizado na obra
pela primeira vez, que é a indicação de col legno dell’arco sulle corde (com a madeira do arco
sobre a corda), nos violoncelos e contrabaixos. Para que tal efeito seja audível, Mignone usou
simultaneamente a esse trecho, apenas o trompete com a indicação da dinâmica em p (piano),
mas sugerimos que os instrumentistas permitam que parte da crina do arco também incida
sobre a corda para que haja mais controle da técnica. A atmosfera musical sombria e
misteriosa é suscitada nessa passagem. Ver exemplo abaixo.
111
Ex. 34 (compasso 36-39)
A partir do compasso 46, a extensa e lamentosa melodia, primeiramente demonstrada
no exemplo 29, é também rememorada. Nessa nova textura, o piano e o naipe de violoncelo
executam notas em graus conjuntos que mais induzem a um murmúrio grave. As dinâmicas de
pp (pianíssimo) e p (piano) associadas, respectivamente, aos instrumentos citados logo acima
devem ser mantidas por todo esse trecho para dar continuidade ao clima misterioso da
passagem anterior. Os violinos e a flauta devem executar o intervalo de semitom o mais
ligado possível para simular um murmúrio com sentido de dor.
112
Ex. 35 (compasso 47-50)
Após a apresentação dessa melodia, a partir do compasso 61, Mignone finaliza a
segunda parte da obra com a apresentação da mesma temática inicial, utilizada para
representar essa igreja, demonstrada no exemplo 27. O pensamento dramático ainda perdura,
e todos os instrumentos são utilizados, contudo de maneira alternada proporcionando uma
textura muito mais leve que a dos primeiros compassos. Com a intenção de preparar a
transição para a terceira parte da obra, tal textura vai se tornando “rarefeita” (sfumato) e
manter a dinâmica com pouca intensidade e realizá-la com as gradações entre pp (pianíssimo)
e ppp (pianissíssimo) das trompas propicia tal textura. Os violinos (I e II) precisam partir
dessa última dinâmica al niente (ao nada), para dar continuidade ao pensamento de
“transformar o som em fumaça”. Com andamento indicado de , o efeito é que
o som deve ir extinguindo-se até atingir o elemento de ligação (intervalos de 2ª nas harpas e
celesta) entre as grandes partes dessas “Impressões Sinfônicas”. Ver exemplo abaixo
113
Ex. 36 (compasso 63-68)
114
4.3 O Outerinho da Glória – Rio de Janeiro
O contraste é completo. O autor, de fóra, contempla o Outeirinho da Glória no Rio de Janeiro e tudo é graça delicada e meiga profanidade. Apenas os acordes, num bimbalhar faceiro, denunciam a presença imaculada da igrejinha. No adro, sentado no muro baixo, uns seresteiros entoam a modinha, enquanto delicados efeitos de timbres, ao mesmo tempo esbeltos e agudos, lançam no ar da noite mansa, o risco flexível das palmeiras. Tudo é serenidade e alegria leve, que a igrejinha abençoa brancamente com a lua.56
O elemento musical que faz alusão à igreja do Outeiro da Glória é o timbre do órgão
que inicia e também finaliza a terceira parte de Festa das Igrejas. Para manter o caráter
introspectivo indicado pelo andamento , os dois primeiros compassos
tocados pelo instrumento acima citado, devem ser interpretados extremamente ligados e com
pouca ênfase nas articulações rítmicas, apesar do caráter levemente jocoso criado entre as
linhas melódicas. A fermata deve ser longa para proporcionar um grande diminuendo no
acorde de lá menor (com 4ª e 9ª) que resolve em ré menor no 3° compasso. Ver exemplos.
Ex. 37 (compasso 1-2)
O decrescendo do órgão no compasso 2 deve indicar, à seção das cordas, a dinâmica em pp
(pianíssimo) do compasso 3. O clima tranqüilo e doce é mantido pela suavidade na mudança
de timbre do violino I, violino II e viola com a utilização da surdina.
56 MIGNONE, Francisco. Nota introdutória da primeira página da partitura em manuscrito, 1940. (Anexo A).
115
Ex. 38 (compasso 3-6)
Mesmo com atmosfera musical afável, o violino I e viola não devem perder a expressividade,
valendo-se do vibrato moderado e de um “gesto musical” que proporcione tensão e
relaxamento a cada dois compassos do exemplo acima. Para tanto, um discreto crescendo no
compasso 3 conduzirá ao cume da frase no 1º tempo de compasso 4, no qual deverá ser
realizado um pequeno decrescendo até o compasso 5, e assim sucessivamente.
Os violoncelos possuem uma linha melódica em pizzicato, de grande âmbito melódico,
de caráter gracioso. Tal articulação (pizz.) deve ser executada com a polpa dos dedos para
emitir um som de cor mais escura, e não com a unha que produziria um som mais estridente.
Até o compasso 9, Mignone faz uma introdução anunciando o material melódico que será
apresentado pelo clarinete, de maneira mais desenvolvida, a partir do compasso 10. Tal
melodia, no campo tonal de ré menor, é de caráter seresteiro e levemente melancólico e para
evidenciar essa nova parte, sugerimos um ritenuto no compasso 9. Ver exemplo abaixo.
116
Ex. 39 (compasso 9-13)
A partir do compasso 17, um terceiro bloco musical é apresentado na seção das cordas,
mantendo a docilidade e brandura, mas com nova sonoridade. A indicação punta d’arco
sfiorando la corda sulla tastiera (ponta do arco friccionando a corda sobre o espelho), para o
violino I, violino II e viola, promove um som mais flautado, suavizando ainda mais a
sonoridade. Toda essa parte deve ser tocada com pouca quantidade de arco e muita precisão
rítmica para demonstrar o caráter ligeiramente dançante.
117
Exemplo 40 (compasso 17-22)
O violoncelo solista pode realizar sua linha melódica com liberdade moderada quanto
à agógica, entretanto a homofonia construída pelos violinos e violas, assim como o naipe de
violoncelos devem manter-se a tempo para oferecer segurança métrica ao solista.
Outra textura homofônica surge na família das madeiras (flautas, clarinetes e fagote 1),
dentro da dinâmica pp (pianíssimo), a partir do compasso 28. Como apresentado
anteriormente (na página 23), sob nossa ótica, essa última indicação de pp se diferencia da
que é dada às flautas, no compasso 10. Neste último trecho musical, tais instrumentos fazem o
acompanhamento para o solo do clarinete, então o pensamento deve ser de uma dinâmica de
pp em 2° plano. No bloco homofônico do compasso 28, o pp deve estar em 1° plano, pois as
madeiras apresentam o contorno melódico que se coloca em destaque frente aos contrabaixos.
Também, Mignone explora o timbre médio das madeiras e por estarem as flautas numa região
de pouco brilho, deve-se ter especial cuidado com o balance entre instrumentos. Ver o
exemplo que segue.
118
Ex. 41 (compasso 28-32)
A viola solo reforça a idéia musical realizada pelo clarinete, a partir do compasso 35, e
também prepara a nova textura instrumental para a retomada do tema citado na página 107.
Esta reapresentação surge no compasso 39, no campo tonal de sol menor, tendo a flauta 1 e
oboé 1 assumindo o solo. Simultaneamente, o naipe de violoncelos retoma a mesma melodia
jocosa e faceira, os clarinetes preenchem a harmonia, enquanto a viola solo apresenta um
novo tema musical. Os materiais musicais formam uma textura heterofônica, por isso
sugerimos que a dinâmica seja tratada de maneira que todas as melodias sejam claramente
escutadas. O exemplo abaixo demonstra tal contexto.
119
Ex. 42 (compasso 39-42)
Do compasso 46 ao 56, o autor utiliza o mesmo material rítmico de caráter dançante,
demonstrado no exemplo 40, para estabelecer uma transição que é conduzida pelos
violoncelos e contrabaixos. Apesar de a dinâmica pp ser indicada a todos os instrumentos, tal
melodia merece especial atenção quanto à expressividade para conduzir a progressão
harmônica das vozes mais agudas desse trecho. O exemplo abaixo demonstra.
Ex. 43 (compasso 46-49)
120
Tal transição estabelece o campo de Sib Maior, no compasso 57, para reapresentar o
bloco homofônico do exemplo 41, sendo agora executado pelas harpas, piano e três
violoncelos solistas. Nesse trecho encontramos a textura mais delicada e cristalina da terceira
parte da obra. O piano toca desenhos melódicos de caráter impressionista enquanto que os
outros instrumentos apresentam o tema homofonicamente. Para alcançar delicadeza e fluidez
em dois planos contrastantes, é necessário que essa passagem seja interpretada
moderadamente ad libitum (com liberdade) para permitir que os efeitos sonoros, produzidos
pelo piano, dialoguem com a homofonia dos outros instrumentos. Ver exemplo que segue.
Ex. 44 (compasso 57-60)
Apenas um compasso estabelece a transição entre essa singela textura musical e a
próxima que se iniciará com muito mais densidade que a anterior, apesar de ainda manter o
caráter seresteiro e levemente melancólico. O tema exposto no exemplo 39 será apresentado
pela terceira vez, porém de maneira mais imponente. O exemplo abaixo caracteriza o fato.
121
Ex. 45 (compasso 66-69)
122
Apesar da mudança brusca de textura, o som dessa massa orquestral que se apresenta a
partir do compasso 67, ainda deve ser afetuoso e de lirismo controlado. Logo, a dinâmica f
indicada para flauta 1, oboé 1 e clarinete 1, assim como a mf para trompas 1 e 3, deve ser
relativa ao som dos outros instrumentos do conjunto que tocam em ppp. A partir do compasso
74, a idéia inicial exposta no exemplo 38, é retomada com pequenas variações rítmicas na
linha do violoncelo, e diferentes conduções melódicas nos violinos.
Ex. 46 (compasso 74-77)
Nesse trecho musical, a dinâmica da melodia dos violoncelos é f, mas ela deve seguir
o mesmo conceito de relatividade no equilíbrio entre as vozes dito no início desta página. Esta
terceira parte finda como começou, utilizando o órgão com o mesmo caráter jocoso do início,
entretanto suprimindo a nona do acorde (nota si).
Ex. 47 (compasso 84-85)
123
4.4 Nossa Senhora do Brasil (Aparecida)
Um bimbalhar glorioso de sinos, o troar dos órgãos múltiplos, numa fusão grandiosa de corais, um brilho festivo e dominador, é a religião nacional transfigurada pela sua maior expressão, nossa senhora da aparecida, nossa senhora do Brasil! Todas as igrejas, desde o igrejó da serra ao templo luxuoso do vale, todas as igrejas acorrem para saudar o santuário da nacionalidade. Todas as populações, os brancos, os pretos, os mestiços, unidos na voz possante da religião em que vivem, acorrem cantando ao santuário sagrado. Tudo é esplendor, eloqüência viva, da raça e de sua crença maior. E tudo canta, tudo consagra e glorifica o santuário sagrado, onde brilha grave e pequenina, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Brasil.57
O esplendor começa nos primeiros compassos da obra, nos quais Mignone utiliza
todos os instrumentos da partitura (com exceção do clarinete baixo, fagote, contra-fagote, tuba
e contrabaixo) e acrescenta, a essa grande massa sonora, a campana (sinos tubulares). Nesta
passagem inicial, a distribuição do material musical por famílias de instrumento, é mais uma
clara confirmação de como Mignone se valeu do pensamento orquestral utilizado por
Respighi, nos seus poemas sinfônicos (As Fontes de Roma e Os Pinheiros de Roma).
Observemos, na sequência dos exemplos abaixo, como ele apresenta suas idéias
musicais em cada família dos instrumentos, nesse trecho inicial da quarta parte da obra.
No segundo compasso, a celesta, o carrilhão e a campana formam um cluster (sobre as
notas dó, ré, mi, fá e sol) nas regiões agudas de suas respectivas tessituras, que são reforçadas
pelas freqüências do prato e do triângulo. Também no segundo compasso, a articulação do
tímpano em sfz (sforzzato), no dó grave, encerra tal som. No quarto compasso, a celesta e o
carrilhão executam uma escala de Dó Maior, em movimentos descendente e ascendente,
gerando um efeito de melódico sobre as notas de longa duração dessa passagem. Ainda nesse
compasso, o triângulo e o prato mantêm as freqüências agudas desse naipe, sendo tal idéia
musical encerrada mais uma vez pelo tímpano.
57 MIGNONE, Francisco. Nota introdutória da primeira página da partitura em manuscrito de 1940. (Anexo A).
124
Ex. 48 (compasso 1-4, naipe de percussão)
As cordas tocam numa região extremamente aguda, com articulação em trêmulo, sobre
a nota dó, compreendendo o âmbito de duas oitavas. Já podemos observar que o som
produzido por esse naipe soma-se ao dos instrumentos de percussão, gerando freqüências
bastante agudas de timbre colorido. Ver exemplo abaixo.
Ex. 49 (compasso 1-4, naipe de cordas friccionadas)
125
As madeiras tocam uma escala de Dó Maior, em intervalos de 3ª, com movimento
ascendente, preparando a tensão que será gerada no segundo compasso, pela articulação em
trêmulo tanto desse naipe quanto das cordas. Ver exemplo que segue.
Exemplo 50 (compasso 1-4, naipe de madeiras)
A harpa 1 e o piano, realizando glissando ascendentes, e a harpa 2 realizando um
glissando descendente, oferecendo maior homogeneidade às escalas tocadas pelas madeiras.
Comparando os dois exemplos, verificamos que tais instrumentos tocam no mesmo instante.
Exemplo 51 (compasso 1-4, naipe de cordas dedilhadas e percutidas)
126
As trompas e trombones, em uníssono, apresentam uma melodia de caráter majestoso
e imperial, que conduzirá toda a massa sonora dos primeiros compassos dessa parte da obra.
Ver exemplo a seguir.
Ex. 52 (compasso 1-4, naipe de metais)
Toda essa massa sonora funciona como uma esfuziante dominante em Dó Maior, que será
resolvida em Fá Maior, no compasso 7. Por isso, é de suma importância que a tensão seja
mantida, principalmente no uníssono das trompas e trombones. Sugerimos que tais
instrumentos realizem os crescendo com muita ênfase (compassos 2 e 4), assim como as
articulações de acentos (>), nos compassos 1 e 3.
Já no campo tonal de Fá Maior, um longo pedal é feito sobre a tônica do acorde,
executado pelo contrabaixo, órgão, tuba, trombones e trompas. Sobre essa nota, os outros
instrumentos de cordas, o piano e as harpas executam uma progressão de acordes, em
movimento ascendente de escalas, que é uma reutilização da idéia musical do exemplo n° 21.
No exemplo abaixo apresentamos tal passagem, representada pelo piano e órgão.
127
Ex. 53 (compasso 7-11)
Tais escalas devem executar um “gesto musical” de intensificação gradativa, ou seja, a
2ª mais intensa que a 1ª, a 3ª mais intensa que a 2ª e assim por diante. Desta maneira se
constrói uma tensão maior para alcançar o auge da idéia musical nessa passagem.
Tal ápice é atingido no compasso 11, e a tensão criada pelos compassos anteriores,
sofre imediatamente um relaxamento em função da condução melódica descendente nas
madeiras, trompetes e cordas. A seguir, o exemplo com um instrumento de cada uma dessas
famílias instrumentais, sobre o pedal da nota fá.
Ex. 54 (11-15)
128
Esse trecho musical é uma pequena transição para o campo tonal de Dó Maior, no qual a
mesma idéia de progressões de acordes sobre escalas (demonstrada no exemplo 53)
novamente acontecerá, no entanto na tonalidade acima citada.
A partir do compasso 21, nos instrumentos de sopro, o compositor explora ritmos de
característica dançante, proporcionando uma atmosfera musical alegre e festiva. Nesta
passagem, é fundamental a execução clara e perfeita dos ritmos, assim como das diferentes
articulações (acento, sttacatto e sforzzato) para conseguir tal efeito.
Ex. 55 (compasso 21-24)
A euforia dançante desses compassos é uma preparação para uma brusca mudança de textura,
caráter musical e timbre. O órgão toca um desenho melódico, que nos remete ao pensamento
do período barroco, pela relação existente entre os intervalos. Após esse solo, a idéia da
progressão dos acordes sobre escalas é retomada pela 3ª vez, na tonalidade inicial.
129
Ex. 56 (compasso 26-30)
Essa passagem deve ser executada em tempo giusto (pulsação regular do tempo musical) com
muita articulação das notas para proporcionar a representação do estilo barroco.
No compasso 40, as trompas reapresentam a melodia majestosa e imperial dos
primeiros compassos dessa quarta parte da obra, porém com variação de notas no final. Ver
exemplo a seguir.
Ex. 57 (compasso 36-39)
Diferentemente da primeira vez, as fermatas sobre as vírgulas de respiração indicam
certa liberdade na execução rítmica dessa frase. O caráter majestoso permanece, entretanto o
pensamento é ligeiramente ad libitum. Os acentos não devem ser exagerados para poder
realizar tal passagem de maneira ligada e com um pouco de expressividade.
A partir do compasso 40, o clima festivo e alegre retorna com uma nova idéia musical.
Os trompetes realizam o solo, enquanto o flautim, as flautas, os clarinetes, o carrilhão, a
celesta e o piano realizam um desenho melódico, em graus conjuntos (ora em semitom, ora
130
em tom), de cunho impressionista. É necessário executar o crescendo e o diminuendo desse
bloco em homofonia, com bastante ênfase para caracterizar tal efeito. O sff (sforzzatissimo)
dessa textura homofônica contrapõe-se, por diferença de um compasso, ao sf (sforzzato) dos
trompetes, criando um deslocamento da acentuação para o tempo fraco do compasso.
Ex. 58 (compasso 40-43)
Essa textura torna-se mais densa a partir do compasso 56, onde Mignone apresenta
quatro idéias musicais sobrepostas. A primeira delas é tocada pelo flautim, flautas, clarinetes,
violino I, violino II e viola e rememora, mais uma vez, o colorido impressionista em função
do desenho melódico, do resultado do timbre feito pelos instrumentos supracitados e
proporcionando efeitos sonoros, como demonstra o exemplo abaixo.
131
Ex. 59 (compasso 56-58)
A segunda, executada pelo carrilhão e celesta, reforça a idéia do exemplo anterior.
Ex. 60 (compasso 56-58)
A terceira idéia, executada pelo violoncelo e contrabaixo, preserva o caráter jocoso e
dançante que é um dos elementos significativos dessa passagem musical.
Ex. 61 (compasso 56-58)
132
A quarta é representada pela homofonia dos instrumentos da família das madeiras
(oboé, corne inglês, clarinete baixo, fagotes e contra fagote) e pelos metais (trompa, trompete,
trombone e tuba).
Ex. 62 (compasso 56-59)
Todas essas idéias musicais justapostas, formam uma textura instrumental rica e de
muito brilho, que foi um pensamento bastante utilizado por Respighi nos seus já citados
poemas sinfônicos. Este é mais um exemplo da influência desse último compositor sobre a
visão de Mignone quanto à orquestração de Festa das Igrejas. Tal massa orquestral deve
manter as características particulares das suas seções instrumentais exemplificadas acima,
pois ela gera uma tensão que prepara o tutti da orquestra a ser alcançado a partir do compasso
133
63. A temática da progressão de acordes ascendente (ver exemplo 21 – Igreja São Francisco
da Baía e exemplo 53 nessa última igreja) é intercalada com o tema da segunda parte dessa
obra (ver exemplo 29 – Igreja Rosário dos Pretos). Nesse novo contexto, tanto a melodia
quanto as escalas apresentam um caráter musical imponente, lírico e demasiadamente
eloqüente. O exemplo a seguir caracteriza tal passagem, mas com a instrumentação reduzida
ao órgão e às cordas.
Ex. 63 (compasso 64-67)
O tempo regular indicado por , o longo pedal do acorde de Dó Maior, a
dinâmica em ff (fortíssimo) e os acentos sobre as notas das duas idéias musicais anteriormente
descriminadas confirmam a ambiência majestosa dessa última parte da obra Festa das Igrejas.
Tal atmosfera musical perpetua do compasso 64 até o final da peça, num clima de júbilo,
glória e suntuosidade.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso investigativo desenvolvido neste trabalho, assim como os conteúdos e
conhecimentos adquiridos no processo de elaboração do mesmo logrou-nos uma visão mais
ampla da prática interpretativa do ponto de vista da regência. Uma pertinente questão – que
sobre outra ótica poderia ser apresentada na introdução – é abordada nessas considerações
finais, é: existe diferença entre “interpretação musical” e “hermenêutica musical”? Caso
afirmativo, qual seria ela? A resposta é sim, pois, à luz da filosofia, a hermenêutica possui o
seguinte significado: “Qualquer técnica de interpretação. A palavra é frequentemente usada
para indicar a técnica de interpretação da Bíblia” 58. Por tal pensamento observamos que a
interpretação contém a hermenêutica, e o entendimento disso pode ser uma mudança de visão
para os profissionais que atuam na regência. Já se sabe da existência do uso sistemático da
hermenêutica no campo da advocacia, economia, psicologia e em demais áreas do
conhecimento humano e, apesar de já existir um pensamento hermenêutico em música, ele
carece de pesquisas mais específicas sobre os diversos ramos oriundos dessa última área de
conhecimento.
No que diz respeito às práticas interpretativas da regência, quase sempre se diz, ou se
ouve falar que o maestro é aquele músico poliglota, de formação sólida, de grandes
conhecimentos teóricos e detentor de habilidades técnicas de instrumentos musicais, ou seja,
de maneira geral, já existe um perfil pré-determinado para este profissional que, obviamente,
varia a cada contexto temporal e geográfico. Tal músico pode absorver conhecimentos
musicais e extramusicais a todo instante e em qualquer lugar, pois, apesar da regência se
estabelecer como a conhecemos apenas no século XX, o ensino desta já possui organização e
sistematização de conteúdos e conhecimentos inerentes à área. Entretanto, a metodologia
ainda se encontra em fase incipiente de desenvolvimento, porque a identificação,
58 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 472.
135
sistematização e prática das informações sobre o ato interpretativo na regência, escritas em
português, são bastante escassas.
Neste momento entra a hermenêutica com procedimentos mais específicos relativos ao
oficio da regência, por possuir a característica primeira de uma investigação minuciosa e
sistemática em áreas de grande subjetividade. Sabemos também que não existe interpretação
definitiva, ou seja, a obra artística é sempre passível de mudança, pois sua conceituação
depende de qual sujeito (o intérprete) e qual objeto (a obra) está se relacionando, como se dá
tal relação e qual contexto ambos estão inseridos. No caso da música, sendo o som um objeto
imaterial e de grande poder de abstração, tal visão hermenêutica pode elucidar a identificação
dos componentes musicais, ampliando assim a consciência sobre eles, e fazer surgir maior
número de possibilidades do ato interpretativo. Com isso queremos dizer que, no que tange ao
maestro e à obra, a consciente “manipulação” dos elementos relativos à partitura – dados de
cunho mais objetivo, tais como: articulações, agógicas, andamentos, dinâmicas, etc.; e dados
com forte carga subjetiva, a exemplo de: estética, estilo, história, poética do autor, etc. – com
uma aguçada atenção acerca das intra-relações e inter-relações desses elementos, podem
oferecer maiores probabilidades na elaboração de um método para conceber e realizar um
discurso musical claro, coerente e inteligível. Também, concernente ao maestro e ao grupo
musical (considerado aqui como um “organismo vivo”), a hermenêutica oferece expressivas
contribuições no campo das relações humanas, visto que o respaldo da psicologia,
antropologia, sociologia e filosofia são fundamentais para a identificação e entendimento do
contexto em que esses indivíduos estão atuando. Dito isso, verificamos que a hermenêutica se
apresenta como uma postura criteriosa, minuciosa, sistematizada e investigativa do
observador ante a coisa observada, e não como uma metodologia pré-estabelecida.
136
Outro setor inerente à regência que também pode ser auxiliado pela hermenêutica é o
campo administrativo dos conjuntos musicais. Os grupos corais e orquestrais que antigamente
possuíam o apoio do clero e da nobreza, ou ainda eram, posteriormente, sediados em
instituições tais como escolas de música e emissoras de rádios, não mais sobrevivem aos
paradigmas do contexto atual. A liderança e o carisma do maestro não são faculdades a serem
utilizadas apenas nos ensaios e concertos. Através de uma investigação hermenêutica, ele
pode se valer delas nas atividades administrativas e burocráticas pertinentes à sua carreira,
mas aqui sugerimos, enfaticamente, que este profissional tenha em mente a necessidade de
uma conduta ética justa e da retidão de caráter, para criar e preservar boas relações humanas
nos ambientes de trabalho. Consideramos aqui o aporte filosófico junto à regência, pois com
ele o maestro poderá reconhecer os conteúdos e formas de conhecimentos inerentes à sua
carreira de maneira mais ampla e profunda. Essa investigação poderá conduzi-lo a um grau
mais elevado de compreensão das suas atribuições, funções, comportamentos e desempenho
frente aos conjuntos musicais.
Também, este trabalho pode gerar pesquisas quanto às questões descritas no segundo
parágrafo da página 77, sobre a relação entre escritores e músicos das décadas de 30 e 40, ou
sobre o contexto artístico brasileiro daquela época, assim como reflexões sobre o currículo de
regência e a formação de maestros.
Finalizando, com esse trabalho esperamos contribuir para a reflexão sobre o ato
interpretativo na regência, suas interfaces com outras áreas de conteúdos e formas de
conhecimentos, e para o desenvolvimento da música no nosso contexto.
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