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UMA BUSCA PELA IDENTIDADE CULTURAL DE ORIGEM QUILOMBOLA NA REGIÃO DO CABULA EM SALVADOR-BAHIA Flávio Oliveira Mota Universidade Federal da Bahia, Bolsista FAPESB. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFBA [email protected] Breno Braga de Souza Freitas Universidade Federal da Bahia, Bolsista CNPq. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFBA. [email protected] INTRODUÇÃO Esse estudo é parte de um processo de pesquisa de mestrado e toma por base uma compreensão geral do processo de apropriação dos territórios das comunidades tradicionais, trazendo como recorte e ênfase o espaço do Cabula, considerado como espaço de uma herança quilombola. Desta forma, utilizou-se como referencial teórico para entender este processo de ocupação histórica no Cabula, os estudos de Rosali Braga Fernandes, a qual resgata em sua tese a ocupação histórica do bairro analisando os agentes na construção deste espaço. Segundo Fernandes, o Cabula, integrante do Miolo de Salvador, localiza-se geograficamente em uma área estratégica, entre a BR 324 e a Avenida Luis Viana Filho (Avenida Paralela) e próximo à região do Iguatemi. O presente trabalho como parte de uma pesquisa de mestrado tem por objetivo, compreender a partir da análise histórica e socioespacial, o processo de ocupação e fixação dos povos negros de origem quilombola na região do Cabula/Salvador-Bahia mediante suas experiências de resistências, perdas e permanências neste território, na busca por uma identidade cultural dos núcleos remanescentes. Na metodologia de elaboração do artigo, propôs-se na primeira etapa levantar dados bibliográficos da ocupação histórica das terras pelas comunidades quilombolas na região do Cabula visando compreender sua origem. A segunda etapa englobou a visita a campo na busca de mapear e catalogar núcleos remanescentes como terreiros e ONGs

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UMA BUSCA PELA IDENTIDADE CULTURAL DE ORIGEM QUILOMBOLA

NA REGIÃO DO CABULA EM SALVADOR-BAHIA

Flávio Oliveira Mota

Universidade Federal da Bahia, Bolsista FAPESB. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFBA

[email protected]

Breno Braga de Souza Freitas Universidade Federal da Bahia, Bolsista CNPq.

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFBA. [email protected]

INTRODUÇÃO

Esse estudo é parte de um processo de pesquisa de mestrado e toma por base

uma compreensão geral do processo de apropriação dos territórios das comunidades

tradicionais, trazendo como recorte e ênfase o espaço do Cabula, considerado como

espaço de uma herança quilombola. Desta forma, utilizou-se como referencial teórico

para entender este processo de ocupação histórica no Cabula, os estudos de Rosali

Braga Fernandes, a qual resgata em sua tese a ocupação histórica do bairro analisando

os agentes na construção deste espaço.

Segundo Fernandes, o Cabula, integrante do Miolo de Salvador, localiza-se

geograficamente em uma área estratégica, entre a BR 324 e a Avenida Luis Viana Filho

(Avenida Paralela) e próximo à região do Iguatemi.

O presente trabalho como parte de uma pesquisa de mestrado tem por objetivo,

compreender a partir da análise histórica e socioespacial, o processo de ocupação e

fixação dos povos negros de origem quilombola na região do Cabula/Salvador-Bahia

mediante suas experiências de resistências, perdas e permanências neste território, na

busca por uma identidade cultural dos núcleos remanescentes.

Na metodologia de elaboração do artigo, propôs-se na primeira etapa levantar

dados bibliográficos da ocupação histórica das terras pelas comunidades quilombolas na

região do Cabula visando compreender sua origem. A segunda etapa englobou a visita a

campo na busca de mapear e catalogar núcleos remanescentes como terreiros e ONGs

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de afirmação dos povos negros representados por meio de tabela e fotografias. Por fim,

buscou-se avaliar na ultima etapa mediante a observação, se os mesmos remanescentes

conservam essa identidade cultural diante das transformações deste espaço.

Resultados preliminares neste espaço apontam possíveis indícios com base nas

características e heranças herdadas por estes povos tradicionais, e da construção de uma

identidade de afirmação afro-cultural a possível existência de um quilombo urbano.

1. CABULA: ESPAÇO DE ORIGEM QUILOMBOLA

O processo de ocupação do Cabula vem desde o período colonial, em que, estes

povos negros foragidos do poder dominante e opressor colonialista, passaram a habitar

este espaço predominado pela mata atlântica onde se refugiaram e se esconderam

criando formas de resistência os quais foram denominados de quilombos, a exemplo do

grupo formado desde o século XVIII como mostra a figura abaixo.

Figura 1. Quilombo do Cabula Fonte: Livro Os Quilombos Brasileiros do Arquivo Público do Estado da Bahia

Segundo Pedreira (1973), essa área do miolo de Salvador se configurou como

um forte e resistente núcleo quilombola frente ao Governo do Estado da Bahia a ponto

de serem fortemente perseguidos visando a sua desintegração e esfacelamento.

Os quilombos de Nossa Senhora dos mares e do Cabula, também localizados nos arredores da cidade de Salvador, foram, como os demais de grande importância e periculosidade. Deles tomou conhecimento o então

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Governador e Capitão General da Bahia, o Conde da Ponte, que de imediato providenciou a sua extinção, mandando, para isso, vir à sua presença, no dia 29 de março de 1807, o Capitão-mor das Entradas e Assaltos do Termo da Cidade do Salvador, Severino da Silva Lessa, ao qual determinou a convocação de uma tropa para a destruição dos referidos núcleos. (PEDREIRA, 1973) No dia 30 me requereu 80 homens da Tropa de Linha escolhidos, e bem municiados, e com os Oficiais de mato e cabos da polícia que lhe pareceram capazes, se cercaram várias destas casas e arraiais na distância de duas léguas desta cidade para os sítios que se denominaram Nossa Senhora dos Mares e Cabula, e com a fortuna de apreenderem setenta e oito pessoas destes agregados, uns escravos, outros forros, e dois dos principais cabeças; houve alguma resistência e pequenos ferimentos, mas nada que mereça maior atenção. (PEDREIRA, 1973)

Convencionou-se aqui chamar de Cabula os diversos grupos quilombolas

situados neste espaço os quais resistiam fortemente ao processo de dominação e se

espalharam em várias áreas do miolo de Salvador, onde geograficamente representa

atualmente os bairros ao entorno do Cabula conforme Beiru:

Os africanos escravizados em Salvador criaram um território próprio de resistência ao poder dos donos das fazendas cujos limites ainda são desconhecidos, o Quilombo Cabula. Atualmente, todos esses bairros juntos continuam sendo uma área de grande concentração de negros. Hoje podemos chamá-los de quilombos urbanos, áreas que preservam muita coisa herdada daqueles guerreiros africanos. Não é á toa que nessa parte da cidade há uma grande concentração de terreiros de candomblé. (BEIRU, 2007)

Segundo Fernandes (2003), a área é de ocupação antiga desde o período colonial

em que se instalaram as comunidades quilombolas, período que originou o nome do

bairro de Cabula, o qual é de origem do idioma banto falado entre os países do Congo e

Angola e que significa mistério, culto religioso secreto, atribuído à área em virtude dos

quilombos aí existentes, como também aponta Santos em outra versão:

[...] o nome deste bairro é de origem africana. Ele afirma que “o termo Cabula vem do quincongo Kabula, que além de ser verbo, é nome próprio, personativo feminino e também o nome de um ritmo religioso muito tocado, cantado e dançado, daí o bairro tomar o nome do ritmo frequente naquela área, sendo suas matas utilizadas pelos sacerdotes quincongos”. (SANTOS ET AL., 2010, p. 210)

Este espaço vem sofrendo profunda transformação ao longo destes anos

conforme aponta Gouveia e Fernandes:

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A configuração espacial do Cabula é resultante de quatro processos: A herança dos antigos núcleos quilombolas, o povoamento inicial através da existência de chácaras destinadas à produção agrícola, a ação do Estado e, nas últimas décadas a atuação do capital imobiliário. GOUVEIA (2010)

A partir da década de 1940 esses laranjais foram sendo destruídos por pragas e as fazendas localizadas na área foram loteadas, vendidas ou mesmo invadidas. Formado inicialmente por ocupação agrícola e caracterizado pelas numerosas chácaras onde se cultivava laranja, o Cabula começa a sofrer alterações já nos anos 1950, sendo que é em 1965-1966 que acontece a abertura da Rua Silveira Martins, principal eixo viário desta região. Foi por volta da década de 1970 que a região do Miolo de Salvador e conseqüentemente, a região do Cabula experimentou uma urbanização mais intensa e passou a ser um local atraente para a construção de conjuntos habitacionais. (FERNANDES, 2003)

Apesar de toda transformação promovida neste espaço e das tentativas de apagar

a história negra afro-cultural de origem quilombola, o espaço do Cabula conserva

profundos traços desta herança que se mistura e se une ao tecido urbano neste período

contemporâneo conforme apontado por Nicolin:

O Cabula hoje se constitui como um lugar que guarda as heranças da ancestralidade africana resguarda os códigos de valores de vida comunal, mas também é aquele que tenta unir tradição à contemporaneidade trazida pelos condomínios habitacionais, pelas edificações de empresas, supermercados, escolas, faculdades. (NICOLINS, 2007, p. 118)

Nesse sentido, não se pode negar em face desse novo espaço criado a existência

de núcleos remanescentes que conservam esta herança e identidade quilombola.

2. CABULA E OS NÚCLEOS DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS

É notório não apenas no Cabula, mas em todo seu entorno observar nestes

diversos bairros, profundos traços e raízes de uma herança historicamente negra os

quais se manifestam na prática cultural da religiosidade, musicalidade, culinária, festas e

danças, bem como, na conservação da mata atlântica aí presente. Entretanto é também

necessário o inicio de um processo de luta e auto-afirmação por parte destes povos se

auto-reconhecendo como pertencente às raízes quilombolas para a construção de uma

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identidade cultural consolidada e busca de um reconhecimento e garantia de direitos

como já afirmava o Boletim Informativo NUER (2005).

O processo social de afirmação étnica, referido aos chamados quilombolas, não se desencadeia necessariamente a partir da Constituição de 1988 uma vez que ela própria é resultante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais que impuseram as denominadas terras de preto, mocambos, lugar de preto e outras designações que consolidaram de certo modo diferentes modalidades de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos. Neste sentido a Constituição consiste mais no resultado de um processo de conquistas de direitos e é sob este prisma que se pode asseverar que a Constituição de 1988 estabelece uma clivagem na história dos movimentos sociais, sobretudo daqueles baseados em fatores étnicos.

Há de fato um grande contingente negro nesta região como aponta dados do

IBGE (2010) disponibilizados ao Fala Bahia, em que, os bairros de maior população

negra absoluta de Salvador são Pernambués em 1° lugar com 53.580 habitantes, tendo o

Beiru/T. Neves em 7°, com 43.523 habitantes e Mata Escura em 18°, com 27.523

habitantes, ambos situados ao entorno do Cabula. Este fato atual contrasta a com seu

passado histórico colonial de ocupação e de intensa migração negra ai chegada depois.

No trabalho de campo foi possível identificar movimentos sociais de afirmação

afro-cultural. Entre eles podem-se destacar os de constantes lutas visando reafirmar esta

herança de origem quilombola no espaço vivido do Cabula, a exemplo das Ongs

Artebagaço Odeart, Associação Mundo Negro e Quilombo Educacional do Cabula.

A Artebagaço Odeart são perspectivas de linguagens mítico-poéticas que apelam

para a episteme africano-brasileira, com o intuito de superar o etnocentrismo que

alicerça as políticas públicas de Educação. A organização avalia a experiência vivida

pelo Grupo Teatral Artebagaço Odeart, num colégio público de Ensino Médio, na área

de Língua Portuguesa, no bairro do Cabula em Salvador, Bahia. A líder representante

Nicolin Sena da Ong Artebagaço Odeart, descreve o papel que realizam por meio da

arte musical ao som dos atabaques, da capoeira, dos trajes, do culto religioso, e da

culinária com os quitutes africanos do acarajé, caruru e etc., buscam por meio desta

linguagem oral e corporal reafirmar sua identidade cultural.

A música e o canto que abrem as atividades artísticas do Artebagaço Odeart, a partir de 2004, se assemelham às táticas políticas quilombolas, que, através

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da linguagem, ao mesmo tempo em que pedem licença aos orixás para realizar a atividade, também convocam seu povo para participar da luta pela afirmação existencial, luta reterritorializada nos textos cênicos do Artebagaço e transmitidos pela força da palavra oral dos atores artebagacianos” (NICOLIN, 2010)

A Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro liderada pelo

presidente Roberto dos Santos, nasce em 1984 (porém registrada em 1990) como uma

forma de preservação pela identidade negra do bairro através da luta pela permanência

do nome Beiru que havia sido alterado para Tancredo Neves. A associação também

lançou em 2007 o livro Beiru, que conta a origem e a história do bairro através de

depoimentos de moradores antigos, documentos históricos, jornais e revistas, e têm

como objetivo promover a interação da comunidade com o bairro, a partir do

conhecimento da própria origem e da história do mesmo.

Segundo RAMOS (2011), a associação “usa também estratégia de comunicação

através do bloco que sai todos os anos com alas de dança afro e com letras de músicas

que denunciam o racismo, preconceito, pobreza, além das mensagens de paz que é

passada a todo o momento, onde os abadás são confeccionados com frases que elevam a

auto-estima e a reafirmação de uma identidade dos moradores do bairro”.

O Quilombo Educacional do Cabula situado nos bairros de Mata Escura e

Engomadeira que atua no fomento à produção do conhecimento através do curso pré-

vestibular prestado aos jovens com o objetivo de melhorar o rendimento dos alunos para

o acesso ao curso superior através das políticas de ações afirmativas.

Também se verificou inúmeros terreiros responsáveis por manter a cultura negra

neste espaço quilombola e que atuam como meios de afirmação dessa identidade

cultural, entre os quais destacamos os mais antigos terreiros: Illê Axé Opô afonjá (São

Gonçalo), o Bate Folha (Mata Escura), o São Roque (Beiru/T.Neves), o Ilê Axé

Kafunji, o Casa de Lua Cheia (Cabula), Odé Lefunji (Engomadeira) e o Casa de

Tiratema (Pernambués), dentre outros, conforme mostra as figuras abaixo:

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Figura 2 - Barracão de Xangô: Ilê Axé Opô Afonjá. Figura 3: Terreiro Bate Folha em Mata Escura Fonte: www.geocities.com Fonte: www.Itecs.unifacs.br

Figura 4: Terreiro Lua Cheia no Cabula Figura 5: Terreiro São Roque no Beiru Fonte: www.terreiros.ceaos.ufba.br Fonte: www.terreiros.ceaos.ufba.br

Verificou-se que alguns destes terreiros estão situados neste espaço da região do

Cabula a mais de um século e se configuram como maior patrimônio cultural de

representação da herança quilombola e maior símbolo de resistência diante das

transformações espaciais no Cabula. A Tabela abaixo mostra o percentual de terreiros

identificados em campo na região quilombola do Cabula.

Tabela: Terreiros situados na Região do Cabula

Bairros N° de Terreiros Percentual (%) de Terreiros no Cabula Arenoso 09 12,0 Arraial do Retiro 01 1,3 Beiru/T. Neves 14 18,7 Cabula 16 21,3 Cabula VI 01 1,3 Doron 0 0 Engomadeira 05 6,7 Mata Escura 09 12,0

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Narandiba 01 1,3 Pernambués 17 22,7 Saboeiro 02 2,7 Total 75 100

Fonte: Mapeamento dos Terreiros de Salvador, 2014

Isto representa também a incessante luta dos povos negros de manterem suas

raízes históricas no cotidiano deste espaço vivido e o desejo de se afirmar enquanto

comunidades tradicionais por direitos que a elas foram negados.

3. AS TRANSFORMAÇÕES NO CABULA NO E SUAS IMPLICAÇÕES SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS

A perspectiva de compreender e analisar as transformações espaciais no Cabula,

surge a partir da proposta de verificar a territorialidade dos povos negros mediante a

existência de elementos identitários que apontam para a concepção de um quilombo

urbano que ainda mantém suas raízes diante das mudanças ocorridas neste espaço.

Leite e Carvalho destacam que, em espaços definidos como “territórios negros”,

ou seja, locais onde se reconhece a presença contínua desses grupos em virtude de sua

ocupação residencial. (Leite, 1990, apud Carvalho, 2004), Desta maneira, a região do

Cabula entra no palco de debate como território quilombola transformado em espaço de

habitação a partir da legislação do Projeto Narandiba que declarada como área de

interesse social para fins de desapropriação pelo decreto estadual nº 25.144, de 12 de

março de 1976.

Um projeto de intervenção do Estado ao apropriar as terras para fins de moradia

das classes médias por meio da implementação do Projeto da URBIS. Isto se fez com a

construção dos vários conjuntos habitacionais populares e extensos na região do Cabula,

que resultou também na ocupação desenfreada das áreas com relevo de padrão irregular,

sobretudo nas áreas de vales através das invasões que recebeu inúmeros migrantes após

a década de 60 em detrimento da expansão urbana de Salvador. Este processo constitui-

se no ponto de partida para a ocupação e valorização da área, sobretudo, com a

construção de sua principal via de circulação a Avenida Silveira Martins conforme

aponta Fernandes:

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A partir dos anos 1970 o Cabula passa a abrigar diversos serviços públicos e privados, como hospitais, escolas, universidades, um grande supermercado, bancos, etc. A localização de tais empreendimentos resume-se ao eixo de cumeada, Rua Silveira Martins, a Avenida Edgard Santos, a Avenida Paralela e o entorno delas. (FERNANDES, 2003)

Este espaço caracterizou-se não apenas como espaço de moradia, mais de

implantação de alguns equipamentos públicos e particulares que atendesse as demandas

da população como Supermercado (atual Bom Preço), empresas de telefonia (atual OI e

Vivo), energia (Coelba) em Narandiba, água (Embasa), universidades (UNEB e Baiana

de Medicina), banco (CEF), escolas públicas (Polivante, Roberto Santos, Otávio

Mangabeira, Visconde de Itaparica e etc.) e particulares (São Lázaro, Favo, Vitória

Régia e Resgate) e os pequenos Shoppings (Plaza, Máster e Conexão), além de

promover o crescimento das áreas ao seu entorno que passaram a agregar pequenas

empresas e serviços com a melhora da infraestrutura dos bairros.

Percebe-se que, a valorização atual do solo urbano por parte do capital

imobiliário tem implementado vários projetos de moradia nesta via a exemplo dos

condomínios Horto Bela Vista, Vila Fiori, Máximos e em frente ao Quartel 19º BC,

além da criação do Shopping Bela Vista que atraíram a chegada de outras empresas a

exemplo das Casas Bahia, Insinuante, GBarbosa, Lojas Americanas, e dos Bancos

Bradesco, Brasil, Itaú e Santander, tornando-o num espaço mercadoria.

Isto tem implicado conseqüentemente no aumento de veículos trafegando nesta

área em virtude da intensa aglomeração dos bairros ao entorno e dessa nova classe de

consumo que aí passa a residir proporcionando um fluxo constante para o uso destes

equipamentos empresariais, comerciais, financeiros e educacionais provocando

problemas de congestionamento à população local e do entorno.

A configuração do espaço concebido pelo poder dominante através da

apropriação deste território de origem quilombola impõe a modificação das paisagens,

nova forma de uso do solo e novo padrão de consumo cultural, ocasionando o

conseqüente esmagamento da identidade cultural negra neste espaço com a recriação de

um “novo” território e “nova” identidade, como aponta Saquet:

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Os elementos principais da territorialização também estão presentes na desterritorialização: há perda, mas há reconstrução da identidade; mudanças nas relações de poder, de vizinhança, de amigos, de novas formas de relações sociais, de elementos culturais, que são reterritorializados; há redes de circulação e comunicação, que substanciam a desterritorialização, o movimento, a mobilidade. (...) os processos de territorialização, desterritorialização, reterritorialização estão ligados, completam-se incessantemente e por isso, também estão em unidade. (SAQUET 2007, p,163)

Nesse sentido, surge um novo território neste processo de reterritorialização que

contém parcelas das características do velho território. Desta forma, a

desterritorialização não pode significar o fim da localidade, mas sua transformação em

um espaço. (HAESBAERT apud TOMLINSON 2006, p. 148-149).

Embora haja ainda uma considerável presença negra neste espaço, percebe-se

que, há poucos grupos sociais como apontados anteriormente, que se consideram

pertencentes à raiz afro-cultural de origem quilombola. Isto revela ter essa

transformação espacial gerado uma crise identitária de relação com o lugar.

CONCLUSÃO

A região do Cabula vem sofrendo grandes transformações de seu espaço ao

longo do tempo levando-o de espaço quilombola à espaço da habitação e do capital

imobiliário. Assim a perca de territórios e a crise de identidade cultural dos povos

tradicionais se configura como a principal característica deste espaço.

A localização dos terreiros aí presentes demonstra a resistência por parte destes

descendentes quilombolas que preservaram ao longo do tempo suas heranças e raízes

culturais. O que estimula a luta pelo reconhecimento destes remanescentes e da

reafirmação de sua identidade.

Não se pode negar que estas transformações no espaço da região do Cabula

fazem dela uma região em crescente expansão econômica situada no circuito do capital

imobiliário especulativo as quais a aproximam das centralidades da cidade de Salvador.

Uma área que praticamente perdeu suas características históricas e culturais. Entretanto,

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deve-se reconhecer a importância das comunidades tradicionais quilombolas que

contribuíram efetivamente para a construção deste espaço.

O Cabula aponta fortes elementos identitários que podem levá-lo a ser

considerado um espaço de vários quilombos urbanos. Entretanto, este deve ser um

constante processo de luta destas comunidades por um direito de reconhecimento de

uma identidade cultural que exprimi e imprimi neste espaço suas práticas culturais.

REFERÊNCIAS

BEIRU, Salvador: Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro, 2007. 68p.: il. (Edição Educativa, n°1) Boletim Informativo NUER/ Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações lnterétnicas- v.2,n.2-Florianópolis, NUER/ UFSC, 2005. FALA BAHIA, IBGE, Ufba, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Universidade Federal da Bahia, Salvador, bairros, 2010. Disponível em: < http://www.ibahia.com/detalhe/noticia/levantamento do IBGE desvenda mitos sobre os bairros de salvador >. Acesso em 28 mar. 2012. FERNANDES, Rosali B. Periferização Sócio-Espacial em Salvador: Análise do Cabula, uma área representativa. Feira de Santana: Sitientibus, 1993. ___________. Las políticas de la vivienda en la ciudad de Salvador y los processos de

urbanizacíon popular en el caso del Cabula. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2003. GOUVEIA, Anneza Tourinho de Almeida. Um olhar sobre o bairro: aspectos do Cabula e suas relações com a Cidade de Salvador / Anneza Tourinho de Almeida Gouveia. - Salvador, 2010. HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização: Do “Fim dos Territórios” a Multiterritorialidade.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. LEITE, I. B. (1990). Territórios de negros em área rural e urbana: algumas questões. Terras e territórios de negros no Brasil. Textos e debates. n. 2. NUER. SC NICOLIN, Janice de Sena Artebagaço Odeart ecos que entoam a mata africano-brasileira do Cabula/Janice de Sena Nicolin – Salvador, 2007.

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PEDREIRA, Pedro Tomás. Os quilombos brasileiros – Departamento de Cultura da SMEC, Arquivo Público do Estado da Bahia – Salvador, 1973. RAMOS, Itaciane. A Segregação Socioespacial em Áreas Urbanas e a Comunicação como fator de transformação entre negros (as) e pobres destas áreas: O Caso Beiru, 2011. SANTOS, Elisabete et. al. O Caminho das Águas em Salvador: Bacias Hidrográficas, Bairros e Fontes. Salvador: CIAGS/UFBA; SEMA, 2010. SAQUET, Marcos Aurélio. Abordagens e concepções sobre território. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.