identidade cultural e multiculturalismo_sueli_meira

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ISSN 1980 7856 – Volume 1 Número 3 – Janeiro a Julho de 2009 EDUEP Editora da Universidade Estadual da Paraíba http://eduep.uepb.edu.br/ A AFLIÇÃO DA BUSCA: IDENTIDADE CULTURAL NA ERA DO MULTICULTURALISMO Sueli Meira Liebig * RESUMO: A questão da identidade vem passando por um processo de transformação que provoca o aparecimento de fenômenos como a crise do multiculturalismo, o fundamentalismo do Islã ou até mesmo as comunidades virtuais da internet. Baseado no pensamento de estudiosos da pós-modernidade como Zygmunt Bauman, Eric Robsbawm, Stuart Hall e Kuame Anthony Appiah & Amy Gutmann, dentre outros, este estudo procura equacionar o problema da incessante busca por uma conceituação do termo Identidade, desenvolvendo reflexões sobre a dinâmica desta conceituação conhecidamente transitória, advinda da inadequação e da fugacidade inerentes aos temas pós-modernos. PALAVRAS-CHAVE: identidade, multiculturalismo, comunidade, , cultura, pós- modernidade. ABSTRACT: The issue of identity has been undergoing a process of transformation that provokes the appearing of phenomena like multiculturalism, the fundamentalism in Islam, and even the internet virtual communities. Grounded in the thinking of post- modern scholars like Zygmunt Bauman, Eric Robsbawm, Stuart Hall and Kwame Anthomy Appiah & Amy Gutmann, among others, this study aims at the equation of the enduring problem of the search for an identity, developing reflections upon the dynamics of this well known transitory conceptualization, that comes out from the unfitness and transience inherent to the post-modern themes. * Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

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A aflição da busca: Identidade Cultural e Multiculturalismo tags: Psicologia, Sociologia, Antropologia

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  • ISSN 1980 7856 Volume 1 Nmero 3 Janeiro a Julho de 2009

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    Editora da Universidade Estadual da Paraba

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    A AFLIO DA BUSCA: IDENTIDADE CULTURAL NA ERA DO MULTICULTURALISMO

    Sueli Meira Liebig

    RESUMO:

    A questo da identidade vem passando por um processo de transformao que provoca o aparecimento de fenmenos como a crise do multiculturalismo, o fundamentalismo do Isl ou at mesmo as comunidades virtuais da internet. Baseado no pensamento de estudiosos da ps-modernidade como Zygmunt Bauman, Eric Robsbawm, Stuart Hall e Kuame Anthony Appiah & Amy Gutmann, dentre outros, este estudo procura equacionar o problema da incessante busca por uma conceituao do termo Identidade, desenvolvendo reflexes sobre a dinmica desta conceituao conhecidamente transitria, advinda da inadequao e da fugacidade inerentes aos temas ps-modernos.

    PALAVRAS-CHAVE: identidade, multiculturalismo, comunidade, , cultura, ps-modernidade.

    ABSTRACT:

    The issue of identity has been undergoing a process of transformation that provokes the appearing of phenomena like multiculturalism, the fundamentalism in Islam, and even the internet virtual communities. Grounded in the thinking of post-modern scholars like Zygmunt Bauman, Eric Robsbawm, Stuart Hall and Kwame Anthomy Appiah & Amy Gutmann, among others, this study aims at the equation of the enduring problem of the search for an identity, developing reflections upon the dynamics of this well known transitory conceptualization, that comes out from the unfitness and transience inherent to the post-modern themes.

    Universidade Estadual da Paraba - UEPB

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    KEY-WORDS: identity, multiculturalism, community, culture, post-modernity.

    RESUMEN:

    La cuestin de la identidad viene pasando por un proceso de transformacin que provoca el aparecimiento de fenmenos como la crisis del multiculturalismo, el fundamentalismo islmico o hasta mismo las comunidades virtuales de la Internet. Basado en el pensamiento de estudiosos de la pos-modernidad como Zygmunt Bauman, Eric Robsbawm, Stuart Hall y Kwame Anthony Appiah & Amy Gutmann, entre otros, el estudio que ora se presienta tiene el objetivo de analizar el perenne problema de la bsqueda por una identidad, desarrollando reflexiones sobre la dinmica de esta bien conocida conceptuacin transitoria, que tiene su origen en la fugacidad y la inadecuacin de los temas pos-modernos.

    PALABRAS-LLAVE: identidad, multiculturalismo, comunidad, cultura, pos-modernidad

    Ligado perspectiva do Estado-nao moderno, o problema da identidade cultural vem suscitando calorosos debates e um sem-nmero de posicionamentos. Vivendo uma realidade onde a globalizao se insere de maneira intensa e os valores tornam-se mais fugazes, a questo necessita ser colocada e revista atravs uma dimenso que no mais suporta os parmetros de conhecimento at ento aceitos. Na era ps-moderna, nossas identidades culturais, sociais, profissionais, religiosas, polticas e at mesmo sexuais passam por um contnuo processo de transformao, gravitando entre o duradouro e o passageiro e acarretando psique do indivduo todas as angustias, inquietaes e aflies que a situao provoca. Comecemos a desenvolver nosso raciocnio a partir da prpria conceituao ou definio de cultura. Grande parte da identificao racial contempornea quer ocorra atravs de formas obviamente regressivas como o nacionalismo branco da Nao Ariana ou de um afrocentrismo radical maneira de um Marcus Garvey ou de um Elija Mohamed, na maioria das vezes se expressa sob formas que aderem a verses modificadas das velhas essncias raciais. Entretanto, o legado do Holocausto e da ultrapassada

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    biologia racista tem levado muitos estudiosos a substituir o essencialismo racial pelo cultural, embora o caminho inverso ainda seja percorrido dentro do contexto do multiculturalismo. O Novo Dicionrio da lngua portuguesa define cultura como

    O conjunto de caractersticas humanas que no so inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram atravs da comunicao e cooperao entre indivduos em sociedade. [Nas cincias humanas, ope-se por vezes idia de natureza, ou de constituio biolgica, e est associada a uma capacidade de simbolizao considerada prpria da vida coletiva e que a base das interaes sociais.] ( FERREIRA, 1986)

    Este o sentido largamente usado pelos antroplogos para definir o termo nos dias atuais. Assim, a cultura dos axantis ou dos bantos, por exemplo, inclui, para tais estudiosos, desde os objetos que eles fabricam at o seu pensamento, sua viso de mundo e os seus atos. Esta definio est calcada no rano de uma idia de cultura ultrapassada e mais atrelada ao conceito de civilizao: esta sim, traduz os rituais, a etiqueta, a religio, os jogos, as artes, os valores morais e estticos que os indivduos engendram e refletem tanto quanto suas instituies a famlia, a escola, a igreja e o Estado, que ao mesmo tempo a modelam e so por ela modelados. Segundo Kwame Anthony Appiah (1998, p. 84), a diferena entre cultura e civilizao residia at meados do sculo XX num certo relativismo cultural - que condenava os atos, hbitos e costumes no familiares aos ocidentais. Mais recentemente, contudo, os antroplogos comearam a enxergar que a coerncia de uma civilizao estaria no modo de percepo de fatores importantes sobre outras sociedades e, finalmente, sobre ns mesmos. At mesmo nas sociedades tidas como mais primrias, h valores, crenas, prticas e interesses associados a diferentes grupos sociais (como por exemplo, os das mulheres em oposio aos dos homens). Pensar numa civilizao como algo coerente seria negligenciar o fato de que tais valores e crenas no so apenas diferentes, mas na verdade opostos. Pior, o que antes era frequentemente diagnosticado como uma viso de mundo coerente e unificada de um determinado povo, posteriormente vinha a ser tido como simples ideologia ou interesse de um

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    grupo dominante. Portanto, essa idia de uma estrutura de valores, crenas e prticas coerentes depende de um modelo de cultura que no mais serve realidade atual. Existe um tipo de sociedade menor, idealizada, tecnologicamente descomplicada a que Appiah chama de face-to-face (1998, p.85), onde a maioria das interaes ocorre com pessoas conhecidas e a qual chamamos de tradicional. Em tal sociedade todos os adultos mentalmente saudveis falam a mesma lngua. Todos compartilham o mesmo vocabulrio, a mesma gramtica e o mesmo sotaque. Mesmo que haja palavras na lngua desconhecidas para alguns como os nomes de algumas ervas medicinais ou a linguagem de alguns rituais religiosos, por exemplo a maioria das palavras familiar a todos os adultos normais. Compartilhar uma lngua participar de um conjunto complexo de expectativas e de compreenses mtuas. As pessoas comungam um entendimento de muitas prticas casamentos, funerais, outros ritos de passagem - e compartilham tambm de uma mesma viso do mundo social e do natural. At os que so cticos sobre elementos particulares de certas crenas comportam-se como se acreditassem nelas, j que a maioria acredita. Uma questo semelhante se aplica a muitos dos valores de tais sociedades. Pode at ser que algumas pessoas e at alguns grupos no compartilhem de certos valores enunciados publicamente e ensinados s crianas. Entretanto, uma vez mais os padres universalmente conhecidos fazem com que ajam em conformidade com o senso comum. Em tal sociedade tradicional podemos falar dessas crenas, valores, signos e smbolos como a cultura comum, amplamente enraizada na sociedade. Agora, os cidados de uma dessas grandes comunidades imaginrias da modernidade a que chamamos de naes no precisam ter, neste mesmo sentido, uma cultura comum. No h um nico corpo de idias e prticas compartilhadas na ndia ou na maioria dos estados africanos contemporneos, por exemplo, como tambm no h nem nunca vai haver uma cultura comum nos Estados Unidos. A razo simples: neste ltimo caso, os Estados Unidos tm sido um pas multilnge e sempre tiveram minorias que no falam e no entendem ingls; sempre tiveram uma pluralidade de tradies religiosas, comeando pelas religies indgenas, a dos puritanos, dos catlicos, dos protestantes, dos judeus e mais recentemente do islamismo, do budismo, do taosmo, etc. No entanto, muitas dessas tradies religiosas so muitas vezes desconhecidas por membros de outros grupos. Mais do que isso, existe divergncias significantes mesmo entre os que falam ingls, de Norte a Sul, e de leste a Oeste, da zona rural para a zona urbana, nos costumes de saudaes, noes de civilidade e um leque maior de outras possibilidades. A noo de que o que mantm os Estados Unidos historicamente unidos apesar da sua

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    vastido geogrfica seria uma cultura comum, no , portanto, socialmente plausvel. A observao de que no existe uma cultura nacional americana comum revela-se como surpresa para muitos, que a tomam como um todo. Existem tendncias em larga escala dentro da vida americana que no so necessariamente participadas por todos os habitantes. Ao mesmo tempo, verdade que existe uma cultura dominante nos estados Unidos; branca, crist, falante do ingls, e identificada com as altas tradies culturais europias e principalmente britnicas. Essa cultura dominante inclui tambm o Governo, os negcios e as elites culturais - mas tambm familiar a muitas outras a ela subordinadas. Desta forma, Os Estados Unidos so uma sociedade de muitas culturas comuns, cunhadas por Appiah como sub-culturas. A priori, os afro-americanos, os sino-americanos e os caucasianos, tidos como grupos tnicos, teriam suas respectivas culturas comuns, que constituiriam fortes identidades culturais dentro do pas. Entretanto, se so identidades sociais importantes porque tais grupos compartilham culturas comuns bastante duvidoso, at porque devemos duvidar do fato de que exista entre eles alguma cultura comum. Dentro do panorama das diferentes culturas com que nos envolvemos, comum que tenhamos entendimentos errneos advindos da ignorncia dos valores, prticas e crenas dos outros, que tendero e at podero gerar conflitos, como por exemplo, paradigmas de estranhamento numa sociedade multicultural onde uma palavra, um gesto, podem ser mal interpretados ou at as querelas sobre assuntos como quem deveria ter a guarda dos filhos num processo de divrcio ou se seria melhor ir a um mdico ou a um curandeiro na busca pela cura. Se mudarmos o foco da nossa abordagem de culturas para identidades, a questo se complica sobremaneira: da surge novos problemas, uma vez que as identidades raciais e tnicas so essencialmente contrastantes e relacionam-se diretamente ao poder poltico e social, da mesma maneira que os gneros relacionam-se com as sexualidades. crucial para a compreenso da questo de gnero e sexualidade o fato de que mulheres, homens, gays e pessoas comuns crescem juntas em famlias, comunidades e denominaes. Na medida em que a cultura comum significa crenas, valores e prticas comuns, homossexuais e heterossexuais, na maioria dos lugares, possuem uma cultura comum: e enquanto h sociedades em que a socializao das crianas estruturada atravs dos gneros em que mulheres e homens possuem culturas visivelmente diferentes -, este no um aspecto das sociedades mais modernas, como afirma Appiah (1998, p.88). Mesmo assim possvel que uma criana branca e uma negra cresam juntas numa

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    mesma famlia adotiva com os mesmos conhecimentos e valores e ainda assim optem por identidades raciais diferentes, em parte porque a sua experincia fora da famlia, no domnio pblico, est fadada a ser racialmente diferenciada. As identidades tnicas so criadas dentro da famlia e da comunidade. Estas, ao lado da cultura de massa, da escola e da universidade so, para a maior parte das pessoas, lugares centrais de transmisso social da cultura. Prticas, idias e normas distintas afiliam-se a cada etnia em parte porque as pessoas querem ser etnicamente distintas: porque muitas pessoas so unidas pelos laos de solidariedade advindos da sua diferena. Na sociedade moderna, normalmente a identidade diferente que aparece primeiro e a distino cultural que criada e mantida por causa dela. As diferentes culturas comuns das identidades tnicas e religiosas so importantes no apenas por causa do seu contedo, mas tambm como marcas daquela identidade. Acerca da questo da identidade nacional, pronuncia-se da seguinte forma o socilogo polons Zygmunt Bauman:

    A identidade nacional, permita-me acrescentar, nunca foi como as outras identidades. Diferentemente delas, que no exigiam adeso inequvoca e fidelidade exclusiva, a identidade nacional no reconhecia competidores, muito menos opositores. Cuidadosamente construda pelo Estado e suas foras... A identidade nacional objetivava o direito monopolista de traar a fronteira entre ns e eles. falta do monoplio, os Estados tentaram assumir a incontestvel posio de supremas cortes passando sentenas vinculantes [sic] sem apelao sobre as reivindicaes de identidades litigantes. (2005, p.28)

    Como entende Bauman, assim como as leis dos Estados passaram ao largo de todas as formas de justia consuetudinria, tornando-as nulas e invlidas em casos de conflito, a identidade nacional s permitiria ou chegaria a tolerar essas outras identidades se elas no viessem a colidir com a irrestrita prioridade da identidade nacional. Pertencer a um determinado Estado era a nica caracterstica confirmada pelas autoridades nos documentos de identidade e passaportes. Outras identidades tidas como menores eram incentivadas a buscar o endosso e a proteo dos rgos autorizados pelo Estado, confirmando assim de maneira indireta a superioridade da

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    identidade nacional baseada em decretos imperiais ou republicanos, diplomas estatais e certificados endossados pelo Estado. Assim, quem tivesse ou pretendesse ter uma outra identidade, teria que passar pelo crivo das instituies adequadas, que dariam a palavra final. Uma identidade no certificada era uma fraude e seu portador, portanto, um impostor. Quando a identidade ressente-se da ncora social que a fez parecer natural, predeterminada e inegocivel, a questo da identificao torna-se endmica para os indivduos que buscam desesperadamente um ns a que possam pedir abrigo. Nos Estados Unidos, no s as barreiras tnicas como tambm raciais so culturalmente demarcadas. Ruth Frankenberg (1993, p. 188) aponta a ansiedade de muitas mulheres brancas que no se vm como etnicamente brancas, e que por isto preocupam-se em no ter um senso de pertena a uma determinada cultura. O fato deveras intrigante, quando se trata de pessoas que vivem, como quaisquer outros seres humanos, dentro de ricas estruturas de conhecimento, experincia, valores, sentidos, gostos e prticas. A razo pelas quais essas mulheres no reconhecem uma cultura peculiar a elas reside no fato de que nenhuma das coisas que realmente integram suas vidas culturais marcadamente branca e lhes pertence de modo exclusivo: as coisas que so marcadamente brancas (o racismo, o privilgio dos brancos) so coisas que elas repudiam. Muitas afro-americanas, por outro lado, tm vidas culturais marcadamente negras, como por exemplo, a maneira como se alimentam, as igrejas que freqentam, as msicas que ouvem e o modo como falam, sendo a sua identidade marcada por diferenas culturais. As afro-americanas no tm uma cultura comum, no sentido de linguagens, crenas, valores, prticas e sentimentos compartilhados (cf.APPIAH, 1998, p. 90), mas muitas das que pensam sobre as raas como grupos definidos por culturas comuns concebem essa identificao de modo diferente: entendem que as mulheres negras compartilham dessa cultura por definio: o jazz ou o hip-hop pertencem a uma afro-americana porque so estilos musicais culturalmente rotulados como negros. Parece-nos, portanto, um contra-senso que o jazz pertena a uma pessoa negra que em alguns casos no sabe absolutamente nada sobre ele, mais completamente ou de modo mais natural ou do que pertence a um jazzista branco. Como observa Eric Hobsbawm,

    A palavra comunidade nunca foi usada de modo mais indiscriminado e vazio do que nas dcadas em que as comunidades no sentido sociolgico passaram a ser difceis de encontrar na

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    vida real. (ROBSBAWM, 1994, p.. 428)

    Ele observa ainda que

    Homens e mulheres procuram por grupos a que possam pertencer, com certeza e pra sempre, num mundo em que tudo se move e se desloca,, em que nada certo. (HOBSBAWM, 1996, p. 40).

    Bauman pertinentemente observa que precisamente quando o conceito de comunidade entra em colapso que a identidade inventada ( 2003, p. 20). Segundo ele, a identidade atrai atenes e desperta paixes pelo fato de ser a substituta da comunidade: do lar supostamente natural ou do crculo que permanece aconchegante por mais frios que sejam os ventos l fora (p. 20). Entretanto, percebe-se a contragosto que nenhuma das duas est disposio neste nosso mundo globalizado, podendo portanto, cada uma delas, ser livremente imaginada . Por paradoxal que possa parecer, segundo o socilogo, a identidade deve negar sua origem, deve negar ser apenas um substituto (2003, p. 20), para oferecer ao indivduo um mnimo de segurana e desta forma desempenhar um papel tranqilizante. Como ele comenta,

    A vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade da construo desta mesma identidade levam os seus arquitetos a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivduos tambm assustados e ansiosos. (BAUMAN, 2003, p.21)

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    Assim, o desejo por identidade vem do anseio de segurana, ele prprio um elemento ambguo. Flutuar sem apoio num espao pouco definido, mum no-lugar, torna-se longo prazo uma condio produtora de alta ansiedade. Usando uma expresso cunhada por Bauman, diria que em nossa poca lquido-moderna, estar fixo, ser identificado, rotulado e engarrafado de modo inflexvel como pertencente a uma determinada identidade torna-se cada vez mais malvisto. Voltando questo da cultura propriamente dita, vejamos o que seria realmente de importncia sobre a sua situao e conceituao: de acordo com Henry Louis Gates Jr. (1993, p. 58), adquire-se o direito de pertencimento a uma determinada cultura que esteja marcada pelas caractersticas da raa ou da nao a qual se pertence, simplesmente por meio da obteno de uma identidade racial. Para os antigos racialistas1, o carter racial de um indivduo estaria atrelado sua prpria essncia. Na sua viso, ao contrrio, a raa no traz consigo a cultura e generosamente se predispe a corrigir a omisso da natureza. to generosa para os brancos quanto para os negros. Porque Homero e Shakespeare so produtos da cultura ocidental, so associados a crianas brancas que deles nunca ouviram falar, no lhes conhecem nem ao menos o nome; e neste esprito generoso esquecemos de que esta gentica cultural 2 priva os brancos do jazz e os negros de Shakespeare. Appiah explora estas questes sobre a cultura - como ele mesmo admite- a fim de mostrar quo insatisfatria a conceituao do termo raa pode ser, ao confundir identidade com cultura. Para ele, devemos estar cientes de que a relao entre as identidades e a vida moral complexa. Entre os liberais, dos quais ele adepto, percebe-se a moralidade pblica como um agente de engajamento de cada um dos indivduos com a sua identidade individual, tendo-se assim uma noo de tica da autenticidade, onde as pessoas tm o direito de ser reconhecidas publicamente pelo que elas realmente so. Se algum autenticamente judeu ou gay, no temos o direito de pedir-lhe que esconda o fato, que passe por algo que na verdade no . Charles Taylor (1994, p. 53) sugere, por sua vez, que chamemos as questes polticas advindas deste fato de poltica do reconhecimento: uma poltica que nos orienta a reconhecer social e politicamente as identidades autnticas dos outros. Como se observa frequentemente, contudo, a maneira como a maior parte das discusses sobre o reconhecimento identitrio acontece gera conflitos sobre a autenticidade e a identidade. Ora, se o que

    1 Para um maior esclarecimento do termo, cf. APPIAH & GUTMANN, 1998.

    2 Gates pretende denominar por gentica cultural a noo de patrimnio cultural num sentido genrico,

    no apenas no caso da raa.

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    realmente importa sobre mim o meu ser autntico e individual, por que to contemporneo falar-se sobre identidade ao nos referirmos a categorias gerais como raa, gnero etnia, nacionalidade e sexualidade, categorias estas que parecem to distantes do indivduo? Qual seria a relao entre esta linguagem coletiva e a crena individual numa noo moderna do ser? A relao entre a identidade individual, por um lado, e a raa e outras identidades coletivas, por outro, parece ser algo em que cada identidade individual parece ter duas dimenses: uma dimenso coletiva, que seria a intercesso de outras identidades coletivas, e uma dimenso pessoal, formada por outros aspectos importantes do indivduo, quais sejam inteligncia, charme, perspiccia, avareza, etc. , que por s ss no constituem a base da identidade coletiva. A distino entre estas duas dimenses identitrias seria, por assim dizer, mais de cunho sociolgico do que lgico. Em cada uma delas estamos falando sobre propriedades que so importantes para a vida social. Entretanto, apenas as identidades coletivas parecem contar como categorias sociais. As identidades lgicas agrupadas sob rtulos como inteligncia, perspiccia, charme ou mesquinhez, por exemplo, no levam as pessoas que compartilham estas caractersticas a constituir um grupo social relevante. O conceito de autenticidade ventral para a conexo entre estas duas dimenses. Assim, Taylor captura o ideal de autenticidade em algumas frases elegantes (cf. TAYLOR, 1984, p.30), mas que enquadram o problema relegando a segundo plano a originalidade das pessoas e das naes. Afinal, em muitos lugares hoje em dia, a autenticidade da identidade individual clama por reconhecimento, passvel de ter uma identidade nacional como componente de sua dimenso coletiva. Na realidade, ser um afro-americano ou um afro-brasileiro, por exemplo, o que enforma ou modela o ser autntico que algum deseja expressar. por procurar expressar-se que estes indivduos procuram abrigo na identidade do pas onde nasceram. Seu enquadramento como um afro-americano ou um afro-brasileiro rende-lhe o reconhecimento daquela identidade coletiva especfica, que requer no apenas a deteco da sua existncia, como na verdade demonstra respeito por ela. Se ao identificar-se com uma ou outra identidade nacional o indivduo resiste s normas e convenes sociais brancas, ao racismo (e talvez ao materialismo ou ao individualismo) da cultura branca, por que ento deveria procurar o reconhecimento dos brancos? A isto Appiah chama de ideal bomio:

    H, em outras palavras, no mnimo uma ironia no modo como um ideal voc ir reconhec-lo se eu

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    o chamar de ideal bomio em que a autenticidade requer de ns [afro-descendentes] a rejeio de muito do que convencional na nossa sociedade e que, no entanto, forma a base de uma poltica de reconhecimento. (APPIAH & GUTMANN, 1998, p.94)

    Mas a ironia no parece ser o nico problema deste ideal bomio. Pelo menos para Appiah, com o qual concordo plenamente, esta noo de autenticidade veio se construindo atravs de uma srie de erros da antropologia psicolgica. Ela falha ao reconhecer o modo como o ser dialogicamente constitudo. A retrica da autenticidade prope no apenas um modo de ser que o indivduo tem de s seu, mas que no seu desenvolvimento ele deve lutar contra a famlia, a religio, a sociedade, a escola e o Estado todas as foras de conveno. Ela falha no somente porque est em dilogo com a compreenso que os outros tm do indivduo, mas tambm porque a sua identidade crucialmente constituda atravs de conceitos e prticas que lhe so fornecidos pela religio, pela sociedade, pelo Estado, e mediada em vrios graus pela famlia. O dilogo d forma identidade que ele desenvolve enquanto cresce; mas a matria prima, por assim dizer, com que ele a forma, provm em parte da sociedade, pelo que Taylor chama de sua linguagem, num sendo amplo. (TAYLOR, 1994, p. 32) 3. Na opinio de Bauman, identificar-se com... significa antes de tudo abrigar um destino incerto, que no se pode controlar. Sendo assim, talvez seja mais prudente portar as identidades como um leve manto pronto a ser despido a qualquer momento ( 2005, p. 36). Lugares antes investidos do sentido de pertena identitria, como o trabalho, a famlia e a vizinhana, so hoje tidos como indisponveis ou indignos de confiana, de modo que improvvel que mitiguem a procura por convvio ou venham a aplacar o medo da solido e do abandono. Surge da a crescente demanda pelo que Bauman chama de comunidades cabide conclamadas a existirem, ainda que s na aparncia, por pendurarem os problemas individuais. Assim,

    Qualquer evento espetacular ou escandaloso pode se tornar um pretexto para faz-lo: um novo inimigo

    3 Esse sentido amplo cobre no apenas as palavras que falamos, mas tambm outros modos de

    expresso atravs dos quais nos definimos, incluindo as linguagens da arte, da mmica, do amor, etc.

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    pblico elevado condio de nmero 1; uma empolgante partida de futebol ; um crime particularmente fotognico inteligente, ou cruel, a primeira sesso de um filme badalado; ou o casamento, divrcio, ou infortnio de uma celebridade atualmente em evidncia. (BAUMAN:2005, p. 37)

    Ainda de acordo com Bauman, as comunidades-cabide so reunidas enquanto dura o espetculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham seus casacos nos cabides. Exemplo perfeito de tais comunidades encontra-se naquela que se formou aps o recente assassinato da menina Isabella Nardoni, em que esto envolvidos o pai e a madrasta, um caso que chocou o pas de Norte a Sul. A curta durao do seu ciclo de vida e a precariedade do compromisso necessrio para o seu ingresso fez desvanecer as marchas, as aglomeraes, os protestos e as pichaes que lhe caracterizaram durante certo perodo. Arrefecido o interesse pelo caso, decorrncia natural do passar do tempo, essa comunidade eventualmente se dissipou, o que a torna diferente da idealizada comunidade solidria e calorosa , pela qual os indivduos lutam ferrenhamente. Parafraseando o suo Max Frisch, Buman define a identidade como a rejeio daquilo que os outros desejam que voc seja (BAUMAN, 2005, P.45). As guerras pelo reconhecimento, ele assegura, quer travadas individual ou coletivamente, em geral se desenrolam em duas frentes, dependendo da posio conquistada ou atribuda segundo a hierarquia de poder. Numa destas frentes, a identidade escolhida se contrape s sobras das identidades antigas, abominadas ou impostas no passado; na outra, as presses de outras identidades impostas (esteretipos, estigmas, rtulos) so enfrentadas e repelidas. H ainda um espao ainda mais abjeto, um temerrio no-lugar, no qual est inserida a alteridade. Pessoas a quem se negou o direito de adotar a identidade de sua preferncia, essa denominada subclasse, mergulhada num poo para alm dos limites da sociedade, v-se negada, a priori, de qualquer outra identidade seno aquela que lhe imposta pelo status quo. Por analogia, o significado da identidade da subclasse resulta numa fatal ausncia de identidade: assim excluda do espao social em que as demais identidades so buscadas, escolhidas, construdas, avaliadas, referendadas ou rejeitadas. Desta maneira, a

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    cultura afro-brasileira ou afro-americana 4 caso signifique o compartilhamento de crenas, valores e prticas, simplesmente inexiste. O que existe so culturas afro-brasileiras e afro-americanas, que embora sejam criadas e mantidas por afro-descendentes, no podem ser compreendidas sem referncia s barreiras de outras identidades raciais, como as dos indgenas, dos asiticos e dos hispnicos. Existe ainda, na viso de Appiah, um outro erro no arcabouo da autenticidade como um ideal, que o realismo filosfico, atualmente mais conhecido como essencialismo: sob este aspecto em particular, a autenticidade refere-se ao ser real enterrado no seu mago, que tem que ser desenterrado a fim de expressar-se. Ns nos equipamos com um kit de opes a ns oferecidas pela nossa cultura e nossa sociedade. Fazemos nossas escolhas, bem verdade, mas no temos o direito de determinar as opes entre as quais escolhermos. Segundo Appiah,

    As identidades que clamam por reconhecimento no quorum multicultural devem ser essencialistas e monolgicas. Mas me parece que um terreno razovel para a suspeio de todo esse falatrio multicultural contemporneo de que as concepes de identidade coletiva que elas pressupem , so na verdade marcadamente explcitas no seu entendimento do processo pelo qual as identidades, quer individuais ou coletivas se desenvolvem. (APPIAH & GUTMANN, 1989, p.96)

    Em todas as identidades coletivas, as falsas teorias desempenham um papel essencial na aplicao dos rtulos; em todas elas a histria complexa, envolve a construo do ser e no pode ser explicada por um apelo a uma determinada essncia. Fugindo um pouco do nosso foco, abramos aqui um parntese para tecer algumas consideraes acerca da complicada exegese do outro e assim possamos melhor nos relacionar com as questes sobre o ns: preciso nos dar-mos conta de que a aflio da busca por uma identidade hoje mais profunda que h tempos atrs.

    4 Detemo-nos especificamente nestes dois pases por configurarem os dois maiores pases escravocratas

    do mundo moderno, e consequentemente com um expressivo nmero de habitantes negros e mestios.

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    Ela proveniente das revolues que naufragam num mar burocrtico e repressor; advm das violncias totalitrias que se escondem por trs de falsos muros revolucionrios e que obstam ao reencontro de si consigo (LVINAS, 1993, p. 94). Assim, o prprio conceito de identidade v-se em xeque, uma vez que seu sentido deveria ser buscado num mundo sem vestgios humanos, que no falseasse a identidade das significaes, num mundo isento de toda ideologia onde, de acordo com Emmanuel Lvinas, eu um outro. Devemos ento aprender a nos defender do desejo da identificao do eu comigo mesmo, superando assim a tentao de reduzir a alteridade ao mesmo, a uma espcie de clone. Enfim, o homem moderno deve escutar a presena do outro, para com ele estabelecer novos laos, numa troca de olhares baseada, sobretudo na responsabilidade pelo outro. Esta responsabilidade pelo outro defendida por Lvinas desemboca na questo do indivduo enquanto sujeito coletivo, com o que retomamos a discusso interrompida no pargrafo anterior. De acordo com Bauman, (2007, p. 7), algumas mudanas de curso seminais e interconectadas esto ocorrendo atualmente, pelo menos na parte tida como desenvolvida do planeta. Estas mudanas criam um ambiente novo e sem precedentes para as atividades da vida individual, que levam a novos desafios: a rpida dissoluo das organizaes sociais, que no mais podem servir de ncora s aes humanas e aos projetos individuais de vida; a separao entre o poder e a poltica, que delegam poderes s foras de mercado, sabidamente volveis e imprevisveis, para a proteo dos cidados; a retrao da segurana comunal do Estado enfraquece os alicerces da solidariedade social, deixando a comunidade merc das possveis permutaes do mercado de trabalho; o desmembramento da histria poltica e das vidas individuais que leva a um esquecimento de informaes defasadas e a um rpido envelhecimento dos hbitos e a uma vida fragmentada; por fim, a responsabilidade de resolver os dilemas gerados por circunstncias volteis e instveis jogada sobre os ombros dos indivduos, que a partir da tero que arcar plenamente com as conseqncias de suas escolhas. Longe de tentar explicar o efeito geral das mudanas listadas acima, Bauman avalia os resultados deste viveiro de incertezas, desnudando alguns dos aspectos que impedem a sua compreenso como tambm a nossa capacidade de enfrentar, tanto individual como coletivamente, os desafios provenientes de qualquer tentativa de control-las. No iremos nos deter, contudo, na priorizao destes aspectos; deixemo-la para uma outra oportunidade. O que nos interessa de perto neste estudo a discusso de outros corolrios que refratem a querela identitria e sua busca nos tempos ps-modernos. Voltando ao pensamento

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    de Appiah, note-se que as questes aqui postadas no se encerram por aqui. Inquietaes que vo alm da identidade tambm se consubstanciam. Segundo ele,

    As grandes identidades coletivas que pleiteiam reconhecimento so acompanhadas de noes sobre como deve se comportar apropriadamente um membro desta ou daquela comunidade. No que exista um modo atrvs do qual os negros possam se comportar, mas certamente existe padres prprios do comportamento do negro. Estas noes provm normas ou modelos flexveis, que desempenham o seu papel sobre os planos de vida daqueles que fazem estas identidades coletivas centrais para a sua identidade pessoal; sobre as identidades daqueles que levantam uma mesma bandeira. ( APPIAH & GUTMANN, 1998, p.97).

    As identidades coletivas, resumindo, geram o que Appiah chama de scripts: narrativas que as pessoas podem usar para enformar os seus planos de vida ou para contar as suas prprias histrias. Na sociedade ps-moderna, ser perspicaz no sugere necessariamente o entendimento da vida sobre a perspiccia. O que quer que se chame de dimenses pessoais de identidade trabalha de modo diferente dos da coletividade. Isto no acontece apenas no mundo ocidental moderno: multiculturalmente, tambm diz respeito a pessoas cujas vidas tm certa unidade narrativa; elas querem ser capazes de contar uma histria de vida que faa sentido. Essa histria sua histria particular dever ser coerente com os padres disponveis na sua cultura para uma pessoa de identidade igual sua. Deste modo, contar uma histria privada que tenha insero na histria mais ampla da comunidade de grande importncia para os que buscam identificar-ser culturalmente. No apenas a identidade de gnero, por exemplo, que d sentido vida de um indivduo: as identidades tnicas e nacionais tambm podem se adequar a uma histria particular dentro de uma narrativa mais ampla. Segundo Appiah, at a mais individualista das pessoas valoriza tal coisa. A explicao para isso reside no fato de que vivemos em sociedades nas quais certos indivduos no so tratados dignamente por serem mulheres, homossexuais, negros, catlicos, ciganos ou judeus, por exemplo.

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    Como j dissemos anteriormente, por serem nossas identidades construdas dialogicamente, as pessoas que portam as caractersticas acima mencionadas consideram-nas centrais mesmo que negativamente para as suas identidades. Nos dias de hoje h um consenso geral de que os insultos dignidade de tais pessoas e as limitaes sua autonomia em nome dessas identidades coletivas so seriamente errneos. Os portadores de tais identidades procuram curar as escaras internas atravs da conscientizao de que essas identidades coletivas no so fontes de limitao e insultos, mas uma parte valiosa da sua essncia humana. Porque a tica da autenticidade nestes tempos ps-modernos lhes ensinam a expressar sem medo ou vergonha o que realmente so, estes indivduos marginalizados esto trabalhando no sentido do seu reconhecimento na vida social como mulheres, homossexuais, negros, catlicos, umbandistas, ciganos, judeus, budistas ou quaisquer outros rtulos. Porque no h, alm do mais, uma razo lgica para o seu tratamento diferenciado no seio da sociedade e porque a cultura continuar do mesmo modo a lhes retratar atravs de imagens degradantes, estes indivduos comeam a se movimentar no sentido de um trabalho de base que os faa resistir aos esteretipos, a desafiar os insultos e a derrubar as restries contra si. Tomando como exemplo o afro-americano do final dos anos 60, depois do movimento Black Power, veremos que ele toma o velho script da auto-averso (que os fazia querer mudar a cor da pele e o cabelo, por exemplo), e trabalha comunitariamente na construo de scripts positivos da vida negra. Dentro desta nova perspectiva, ser um negro recodificado como ter a pele negra, e isto requer, entre outras coisas, recusar-se a assimilar as normas brancas de falar e de comportar-se. Se algum negro numa sociedade racista, tem que conviver constantemente com agresses sua dignidade. Neste contexto, insistir no direito a uma vida digna apesar da negrura no o bastante, uma vez que desta forma se admite a negrura como algo abjeto; preciso que se exija respeito enquanto ser humano negro. Em suma, politicamente correto nos dias atuais lutar por igualdade dentro da diversidade. O respeito requerido pelos negros ou pelos gays deve fundamentar-se na existncia concreta alguns scripts que acompanham estas categorias - se que assim podem ser chamadas - e que fazem parte do prprio modo de ser um afro-descendente ou de se ter alguns desejos sexuais no convencionais. Haver sempre expectativas a serem preenchidas como demandas a ser requeridas. No se trata aqui de substituir a tirania do preconceito pela panacia do paternalismo gratuito. A moderna poltica do reconhecimento requer que a cor da

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    pele e a opo sexual sejam politicamente aceitas como algo natural, que no entre nas dimenses pessoais destes indivduos. As diferenas entre os grupos questo de destaque nos nossos dias, e os que vm alguma possibilidade de conflito entre as liberdades individuais e as polticas de identidade esto corretos. Mas se a identidade racial, sexual ou religiosa pode ser a base da resistncia ao preconceito, ainda temos que estar cientes de que muito h que se caminhar nessa direo. No se pode deixar que essas identidades sujeitem os membros a ela pertencentes a cometerem novas tiranias em seu nome. A ttulo de arremate, resta-nos dizer que as propostas positivas apresentadas por Appiah no seu estudo sobre a questo da identidade no ps-modernismo resumem-se, grosso modo, a trs princpios: a convivncia com identidades fraturadas, o engajamento na causa identitria, e a busca da solidariedade. O frutfero trabalho de construo de identidades coletivas para uma nao democrtica, num mundo de naes democrticas, deve andar lado a lado com o cultivo democrtico e seu encorajamento aqui ou em qualquer outro lugar do planeta. Como no h ainda uma receita infalvel para resolver os problemas suscitados pela agonia da busca por uma identidade, e no h concertos rpidos ou formas livres de risco para lidar com tudo isso, resta aos indivduos confrontarem-se quantas vezes forem necessrias com a tarefa da auto-identificao, que tem pouca chance de ser concluda satisfatoriamente. provvel que os aspirantes a certas identidades fiquem divididos entre o desejo de uma identidade do seu prprio gosto e escolha e o receio de que, uma vez feita a escolha, possa descobrir que no existe na verdade uma porta dos fundos para que escape se tiver de bater em retirada. Consideremos as palavras do terico cultural jamaicano Stuart Hall:

    J que a diversidade cultural cada vez mais, o destino do mundo moderno, e o absolutismo tnico uma caracterstica regressiva da modernidade tardia, o maior perigo agora se origina das formas de identidade nacional e cultural, - novas e antigas que tentam assegurar a sua identidade adotando verses fechadas da cultura e da comunidade e recusando o engajamento... nos difceis problemas que surgem quando se tenta viver com a diferena. (HALL, 1993, p. 353)

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    Assim, deve-se tentar o mximo possvel evitar esse problema. preciso que tenhamos em mente ainda que as identidades de que precisamos em nosso tempo tero que reconhecer ao mesmo tempo a centralidade da diferena dentro da identidade humana e a unidade moral fundamental da humanidade.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

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