a identidade das identidades: um panorama geral sobre a identidade cultural moderna

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS Departamento de Arte Dramática – DAD A identidade das identidades: um panorama geral sobre a identidade cultural moderna Eriam Roberto Schoenardie Orientador: Daniel Fraga Em tempos de relações instáveis e informações múltiplas, falar da identidade como conceito formador de um conjunto de propriedades particulares sobre determinado grupo social é um tanto arriscado. Vivemos uma era em que conceitos biológicos e racistas do século XIX já não são mais suficientes, uma era que é resultado direto do futurismo proposto pelas máquinas do início do século XX. É uma época caracterizada pela teoria da informação, que possibilita a intensificação dos contatos humanos, tornando-os múltiplos e permissivos a interações produtivas em um ritmo acelerado. À nível singular, o que temos em questão é um indivíduo fragmentado, que está além de qualquer concepção acerca de uma identidade fixa. A cultura, por si só, já provém dos contatos entre povos e costumes diferenciados, o que a torna essencialmente híbrida, ou seja, formada por diversas vias referenciais. E é com consciência nesse dinamismo que devemos analisar qualquer obra de arte da contemporaneidade, pois ela provém de inúmeras 1

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Estudo e inquietações sobre a identidade cultural brasileira

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGSDepartamento de Arte Dramática – DAD

A identidade das identidades:um panorama geral sobre a identidade cultural moderna

Eriam Roberto SchoenardieOrientador: Daniel Fraga

Em tempos de relações instáveis e informações múltiplas, falar da identidade como

conceito formador de um conjunto de propriedades particulares sobre determinado grupo

social é um tanto arriscado. Vivemos uma era em que conceitos biológicos e racistas do

século XIX já não são mais suficientes, uma era que é resultado direto do futurismo proposto

pelas máquinas do início do século XX. É uma época caracterizada pela teoria da informação,

que possibilita a intensificação dos contatos humanos, tornando-os múltiplos e permissivos a

interações produtivas em um ritmo acelerado. À nível singular, o que temos em questão é um

indivíduo fragmentado, que está além de qualquer concepção acerca de uma identidade fixa.

A cultura, por si só, já provém dos contatos entre povos e costumes diferenciados, o

que a torna essencialmente híbrida, ou seja, formada por diversas vias referenciais. E é com

consciência nesse dinamismo que devemos analisar qualquer obra de arte da

contemporaneidade, pois ela provém de inúmeras relações diretas e/ou indiretas do sujeito

com as estruturas sociais que o cercam, em uma época de multiplicidade de identidades

passíveis a nossa identificação, ao menos temporariamente. O teatro, neste âmbito, vem como

um quadro expositivo muito rico para uma análise a respeito não só da identidade heterogênea

moderna que se modifica initerruptamente, mas também da tão sonhada identidade nacional.

Porém, definir o que é relevante para a solidificação de uma cultura é uma tarefa

complexa e arriscada. Segundo Nelson Werneck Sodré, as noções do nacional estão

intimamente ligadas ao popular. Bem, sendo assim, não existe uma identidade brasileira em

termos teatrais, pois uma arte que é acessada por somente 1% da população nacional está

longe de poder caracterizar-se como “popular”. Nesse caso a identidade brasileira das últimas

cinco décadas é nada mais nada menos que a telenovela, pois muito da memória coletiva

teatral foi perdida com a explosão midiática do rádio, televisão e cinema, veículos que

acabaram se tornando uma tradição dominante.

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Analisando historicamente, é como se a memória do indivíduo que se volta para o

futuro, só pudesse ser alimentada pela memória de um coletivo que proveio do passado, em

um processo ligado ao espelhamento de padrões. No caso do teatro, a mencionada expansão

da mídia fez com que tal coletivo se delimitasse, a vivência na área passou a ser mínima e

assim sua permanência no contexto social deixou de estar assegurada. Uma vez que a

memória nacional se faz exatamente reflexo do presente, os indivíduos dessa época ignoraram

esse referencial para suas projeções individuais, e tudo que sobraram foram os poucos

profissionais que tinham a arte dramática ligada a suas particularidades naturais.

É importante destacar desde agora que trato identidade da mesma forma que o

antropólogo francês Lévi-Strauss, que dizia esta não passava de uma entidade abstrata sem

existência real. Afinal, esse conceito é ao mesmo tempo intrínseco e irrelevante, pois uma

determinada identidade sempre carregará ecos de outras origens e significados que impedem

que ela possa ser considerada como unificada. Idealmente, seria um sistema de representação

cultural característico de uma nação, inserindo o indivíduo como membro de algo mais amplo.

Porém, o que abala essa teoria é o fato de que lidamos com elementos resultantes não só de

nosso interior nacional, mas principalmente da nossa busca por uma completude de símbolos

e representações exteriores a nossa realidade.

Na atualidade, fala-se muito que tais contatos com o além de nossas fronteiras são

responsáveis por uma descentralização em relação aos centros hegemônicos, que repercute em

certa mesclagem entre sociedades diferentes e que está intimamente ligada ao avanço dos

meios digitais de comunicação. Mas será mesmo que, à nível cultural, essa descentralização é

verdadeira? Na minha opinião, Paris, Berlin ou Londres continuam exercendo mais

influência sobre o Brasil do que vice-versa. Essa sim poderia ser uma conduta associada a

nossa identidade nacional, a demasiada dependência perante as culturas ditas “superiores”. É

uma característica histórica da formação do Brasil que está além do controle do homem

moderno.

Vejamos por exemplo o campo da religião em território brasileiro. Os negros que

vieram escravizados para trabalhar em nossas terras seguiam o candomblé. Já os portugueses,

eram católicos fervorosos. Resultado: hoje o Brasil é o maior país católico do mundo, no qual

cerca de 70% da população se diz de tal religião. Esse simples exemplo ilustra, na verdade, o

conceito de culturas atávicas, aquelas que procuram se expandir e se sobrepor às outras

culturas com que se deparam no seu curso histórico. Por séculos, essa foi a ligação do Brasil

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não só com Portugal, mas com toda a Europa. São essas cicatrizes, essas propensões, que hoje

fazem de nós uma quase colônia americana.

O Brasil de hoje não está simplesmente disposto a se mesclar. Na verdade, ele

precisa disso como forma de complementação de sua identidade, que carece de uma mitologia

fundadora. Há, contudo, uma escassa resistência que poderia comprovar o contrário,

originária da era Anchieta, quando o teatro catequético montado junto aos índios sofreu

diversas influências destes nativos, que mesmo submetidos à direção dos jesuítas,

conseguiram deixar muitas de seus aspectos (estéticos, jamais ideológicos) nos autos

encenados. Essa escassa herança que nos foi deixada, transmutou-se em elementos

encontrados em produções nacionais até nossos dias, como é o caso do emblemático Teatro

Oficina de Zé Celso. Entretanto, mesmo que característico, tal conjunto de sentidos não me

parece suficiente para a formação da pretensa identidade nacional.

É inevitável considerar o Brasil como uma nação que sempre foi vítima de

perceptíveis contaminações com outras culturas. Ora, até mesmo no maior período de

libertação nacional e estruturação de uma cultura própria, este que foi o nosso Romantismo, o

país continuou a importar dramas franceses e óperas italianas. E mesmo adaptando todas estas

obras e tentando fazer com que o povo se familiarize com as mesmas, essas correntes não se

perpetuaram por um motivo sumário: elas não estavam ligadas ao cotidiano do indivíduo

nacional. Prova disso é a vida toda que o empresário Renato Viana dedicou a difundir os

conceitos teatrais modernistas que via no exterior, mas que nunca conseguiu perpetuar em

recinto nacional.

Entrementes, seguindo os já mencionados fluxos de informação da atualidade, o que

exigisse-se do público agora é o desenvolvimento de um gosto crítico pelo híbrido, um gosto

que se desloque continuamente em favor às novas propostas que estarão sempre surgindo

nessa tempestade referencial. A Cia. de Atores, grupo nacional com mais de 25 anos de

formação, parece ilustrar com perfeição o que quero destacar. Ao longo de sua história, esse

grupo foi sempre se apropriando do estudo multicultural aplicado à cena, o que faz de seu

trabalho um exemplo de excelência em termos de renovação de identidade particular. Por

exemplo, mesmo com o seu país de origem não sendo de forma alguma referência em

tecnologia, a Cia dos Atores se apoia em tais recursos cênicos como base da construção de

espetáculos com uma identidade bastante própria, que vai além da nacionalidade.

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Foto André H. Oliveira. Ensaio.Hamlet,de William Shakespeare, direção de Enrique Diaz, 2011.

Um

trabalho como esse vai contra a própria padronização nacional. Afinal, vamos e convenhamos,

é fácil pensar na identidade do teatro alemão como uma unidade, ou do teatro italiano,

levando em conta suas raízes classicistas. Mas pensar em um sistema unificador em um país

com a dimensão espacial do Brasil, considerando as gritantes diferenças sociais entre cada

região, é um equívoco imenso. A identidade nacional deve primeiramente preservar a

diferença cultural, e se existe um fator que é de nossa identidade nacional, esse fator é a

diversidade. Este é sim o país da pluralidade, seja pela sua miscigenação colonial ou pela sua

receptividade ao aceitar influências exteriores. E é então que chegamos ao cerne da questão:

será mesmo necessária a consolidação de uma identidade nacional? Talvez seja melhor pensar

nesse conceito como ele o é em nossa realidade, um misto de tradição e mutabilidade que

resulta em uma riqueza expressiva se não influente para outras culturas, ao menos bastante

significativa para a nossa.

Acho que nossa principal preocupação não deve ser nos apropriarmos de elementos

avulsos e presentes em outras culturas, mas sim os usar de forma errada. Em tempos de um

capitalismo voraz e vertiginoso, tudo pode ser transformado em mercadoria de consumo geral,

inclusive a arte. É perante esse escambo pseudointelectual que, na minha opinião, devemos ter

xenofobia. Uma produção feita aos moldes da plasticidade norte-americana, com o intuito

apenas de conquistar o público como uma cópia nacional do que é feito no exterior; isso sim é

preocupante, pois comprova uma tendência uniformizadora, normalmente amplamente

difundida pela mídia, que converge em uma alienante padronização dos produtos culturais

dirigidos à grande massa.4

Foto Robert Schwenck. Xanadu,de Douglas Carter Beane, direção de Miguel Falabella, 2012.

Contudo, se não colocamos nada de particular em nosso produto, é sinal que não

temos nada que valha a pena ser visto ou escutado. Seria a nossa nação estéril de qualquer

forma de expressão que mereça ser mostrada? Com certeza a resposta para essa pergunta é

negativa. Logo, a cultura brasileira, mesmo que heterogênea, precisa neutralizar as

informações provenientes das fontes que se apropria, aprendendo a dar uma nova roupagem a

esses elementos, deixando-os mais próximos a nossa pátria. Sob uma estética totalmente

cinematográfica que chega a remeter a filmes de Quentin Tarantino, a peça paulista Petróleo

quebra essa escolha ao inserir no texto da montagem um discurso que Delúbio Soares fez no

seu desligamento ao Partido dos Trabalhadores (PT). Assim, por não se calcar nem só no

entretenimento, nem só na política, é que os contrastes acabam ressaltando-se e fazendo com

que, em algumas apresentações, pessoas que não concordam com aquela ideologia imposta

em cena levantem-se e se retirem do teatro. Esse é o verdadeiro caráter da arte, seja ela

brasileira, russa ou somaliana.

Certa vez, ao assistir o DVD “Grupo Galpão em Londres – Romeu & Julieta no

Globe Theatre”, fiquei me questionando: e se o mundo visse mais do Brasil, do que o Brasil

vê do mundo? Tal transnacionalidade seria enriquecedora para ambas as partes, certamente,

pois como sabemos por experiência própria, a incorporação de culturas distintas leva a uma

dinamização do sistema que acaba sempre por confluir em novas agregações culturais.

Contudo, é bastante pretencioso pensarmos em uma imposição fixa frente aos grandes pólos

culturais do mundo, quando na verdade nos alimentamos exatamente dessas tendências

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exteriores em nosso território. Tal teoria não é só extremamente difícil, é também

desacreditada por nós mesmos.

No próprio âmbito acadêmico, por exemplo, vejo uma fórmula muito clara na

montagem de nossos projetos, para que estes “agradem” o público. Desde que entrei no

Departamento do Arte Dramática (DAD) da UFRGS, foram pouquíssimas as produções feitas

por alunos que usavam algo da chamada identidade nacional. E isso por quê? Porque esse tipo

de teatro parece não agradar nem mesmo o brasileiro, quem dirá a classe mais culta e

familiarizada com outros panoramas artísticos. Contudo, esse intimismo é mais uma

apropriação inconsciente da identidade alheia durante o contato entre culturas, do que

necessariamente uma repulsa do brasileiro quanto ao seu sistema de sentidos.

Considero que não há problema em não ser brasileiro na forma como você

desenvolve sua arte. O problema está em não termos uma ideologia condizente com a

sociedade em que estamos inseridos. Para fins de exemplificação, me aproprio de uma das

produções que, assim como Petrólio, também compôs a programação do 7º Festival Palco

Giratório: o espetáculo Adeus à carne, de Michel Melamed. Aqui, vemos claramente a

harmonização de conceitos carnavalescos ligados ao desfile das escolas de samba para uma

criação imagética de caráter bastante internacional, que nos remete até mesmo ao teatro

difundido por Robert Wilson. Contudo, todo esse suntuosismo alegórico não está em cena

gratuitamente, apenas para agradar aos olhos, mas sim para a discussão subversiva de visões

pessimistas (porém reais) de nosso próprio país.

Foto André Mantelli. Adeus à carne,criação e direção de Michel Melamed, 2012.

Na imagem, vemos uma sátira bastante clara acerca da figura das rainhas da bateria, que estariam ligadas a artificialidade e até mesmo dor que os pingos de cera remetem.

Por fim, considero como fantasiosa a proposta de reconhecimento de uma identidade

nacional única, que englobe todas as variações culturais de um povo como o nosso. Afinal, da

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mesma forma como inexiste o conceitual "sujeito cartesiano" e sua identidade subjetiva

imutável por toda a vida, é difícil conceber, pelo menos se tratando de Brasil, uma

padronização cultural que abrange todas as classes, gêneros e raças de pessoas que há séculos

vem se desprendendo da influência de identidades mestras, ao passo que firmam seu

individualismo egocentrista. Certa ideia vem sincronicamente ao encontro da teoria de

sistemas mundiais, fundamentada pelo sociólogo Immanuel Wallerstein em escritos nos quais

afirma-se que

“os nacionalismos do mundo moderno são a expressão ambígua [de um desejo] por... assimilação no universal (...) e, simultaneamente, por (...) adesão ao particular, à reinvenção das diferenças. Na verdade, trata-se de um universalismo através do particularismo e de um particularismo através do universalismo” (WALLERSTEIN: 1984, págs. 166-7).

Podemos dizer que são apenas as diferenças que unificam a identidade cultural de um

país, excluindo completamente a noção de totalitarismo. E embora estejamos indo contra a

organização estrutural a qual nos prendemos por grande parte de nossa história, é

extremamente importante que pensemos estas diferenças como ferramentas de manutenção de

um sistema de contribuições internas, que seriam formadoras de uma grande "identidade das

identidades", a qual apresentaria intensos fluxos de trocas inclusivas que culminariam em uma

lógica de eterna expansão cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

WALLERSTEIN, Immanuel. The Politics of the World-Economy. The States, the Movements and the Civilizations. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. In: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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