uma anÁlise ontolÓgica da experiÊncia de dor em … · sou eu que escolho tê-los presentes! É...
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO
PRETO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE BACHARELADO EM PSICOLOGIA
UMA ANÁLISE ONTOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA DE DOR EM
ATLETAS LESIONADOS: CONTRIBUIÇÕES DA FENOMENOLOGIA
DE EDITH STEIN À PSICOLOGIA
Giovanna Pereira Ottoni
Cristiano Roque Antunes Barreira
Monografia de Conclusão do Programa Optativo
de Bacharelado em Psicologia, apresentada ao
Departamento de Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
USP.
RIBEIRÃO PRETO - SP
2015
Agradecimentos
Essa parecia (apenas parecia) ser a parte mais fácil de todo o trabalho porque
tudo que eu sinto ao terminá-lo pode ser resumido em, simplesmente, gratidão. Gratidão
pelo Mistério desse caminho cheio de rostos sem os quais nada teria acontecido.
Quantos! Muitos! Tantos rostos presentes!
Sempre de um jeito novo tenho me descoberto dependente! Sem poder fugir da
evidência de que eu não me faço, eu sou feita! Feita por esses encontros e por essa
realidade de todos os dias. Feita pelo desejo incontrolável de viver a vida por inteiro! E
ser feliz por inteiro! E sofrer por inteiro! E amar por inteiro!
É a todos aqueles que eu encontrei “inteiros” na sua dor e no seu sofrimento, na
sua felicidade e força, na sua fragilidade e humanidade, que eu agradeço! Àqueles que
me fizeram tocar a profundidade do ser humano. Porque tudo que busquei nesses anos
todos foi o sentido mais verdadeiro de ser humano, de eu ser humana. O que quer dizer
que eu seja humana? O que quer dizer que você, eu, ele, ela, nós, sejamos humanos?
Deixo aqui algumas breves palavras aos mestres que me ajudaram nessa busca
das respostas nesses anos dentro da Universidade:
Agradeço a você Cris, que de forma incansável olhou, acompanhou e esperou
cada um dos meus passos todos esses anos. A primeira esperança que encontrei quando
cheguei na faculdade, há 7 anos atrás, nasceu quando eu via sua forma de estar ali
conosco, de nos fazer refletir, de nos fazer compreender enquanto protagonistas do
“saber” e da realidade. Nessa esperança estava uma certeza misteriosa de que valeria a
pena mudar de cidade e te seguir! E depois arriscar um curso que eu nunca desejei!
Agradeço eternamente a sua cumplicidade e o seu companheirismo sem os quais eu
dificilmente teria topado atravessar o mundo “sozinha”. Obrigada o seu ser!
Agradeço à você Marina, que me acolheu com um afeto e disponibilidade
gratuitos! Eu nunca achei que fosse possível receber tanto enquanto simples “aluna”!
Obrigada me fazer poder viver a experiência mais intensa e bela que já tive na vida:
conhecer o Movimento Comunhão e Libertação. Talvez só com minha vida acontecendo
eu possa um dia chegar a agradecer os frutos da sua presença no meu caminho.
Agradeço a você Miguel, porque foi com você que eu senti a primeira grande
inspiração e o primeiro amor à ideia de tornar-me uma psicóloga! Com a Experiência
Elementar eu tive certeza que a Psicologia poderia servir à nossa mais profunda
humanidade e que eu poderia trabalhar cuidando de “corações” como o meu. Desejo sua
companhia todos os dias nessa formação interminável da vida.
Agradeço a você Carla! Toda a sua abertura às minhas dúvidas e inseguranças, a
sua presença tão próxima que me fez entender concretamente o que é ser uma psicóloga
com tudo o que eu sou e com toda a minha “essência”! Com a sua ajuda eu pude viver
na faculdade uma experiência real de diálogo entre teorias, entre posições acadêmicas,
entre diferenças que sempre se mostravam uma potência! Você foi esse presente que me
fez querer estar ainda mais junto de quem pensa diferente de mim!
Agradeço a você Carmen, que desde 2009 me abraçou com uma simplicidade
alegre e livre! Eu sempre quis estar perto de você! E fazer dois anos de estágio com a
sua “super”visão foi decisivo para essa alegria e coragem de estar me formando!
Obrigada o seu olhar tão atento! Obrigada a sua confiança em tudo que eu estava
fazendo! Você tornou possível que eu verificasse como todo este trabalho de pesquisa é
palpável nos desafios cotidianos da Psicologia na saúde!
Agradeço à vocês: Lícia e Trude! Ao olhar humano que me lançaram nesses dois
últimos anos! À vontade incansável de cada uma em trabalhar por um SUS mais digno
das pessoas e do conceito de saúde para o qual foi criado!
A você Sérgio! Que mesmo distante fisicamente foi uma companhia cotidiana
aos meus dias nesses cinco anos! Você me proporcionou viver o que há de mais
brilhante na Saúde Mental! A sua presença sempre me ajuda a fazer memória do
essencial e eu desejo o essencial a cada instante.
A você, Marina Bazon! Que eu sempre admirei pelo vigor e pela paixão dentro
das aulas e nas supervisões! Ver o quanto você acredita e se dedica ao que faz sempre
foi uma ajuda para que eu não parasse na crítica e nas lamentações diante dos desafios
da nossa profissão!
Katia, Sylvia, Luciana, Regina, Vera e Clarissa! Que beleza ter tido nesses anos
professoras como vocês, que não precisam colocar distâncias para serem uma
autoridade! Eu levo a doçura e leveza de cada uma comigo pra sempre!
E a todos os outros professores e funcionários! Obrigada por me fazerem
entender que a educação de fato nasce das pessoas... dos olhares... da paixão pelo que se
faz e pelo outro que se encontra...
Agradeço aos meus pacientes e às minhas equipes de trabalho nos estágios!
Vocês me deram o sabor de pertencer a uma comunidade empenhada com o bem!
Quanto gosto eu tinha de chegar, olhar nos olhos e abraçar forte cada um de vocês.
Aos meus grandes amigos que sabem serem imprescindíveis a cada palavra que
escrevi. Aos mais longes e aos mais distantes: toda a minha gratidão!
Aos meus familiares que me amam tanto a ponto de me deixarem livre para
amar o mundo!
Meus sinceros agradecimentos a vocês, rostos conhecidos e desconhecidos que
me fizeram amar o Mistério profundo da minha profissão e da minha vida! Que alegria
reconhecer que talvez sem saber me deixaram apaixonada por tudo a ponto de querer
entregar toda minha vida por essa Beleza sem fim. Agradeço a cada um no silêncio do
meu coração e na minha oração! Na memória viva que me faz carregá-los fazendo-me
quem eu sou.
Todos os dias, desde quando acordo, tenho os rostos de cada um comigo! Já não
sou eu que escolho tê-los presentes! É algo maior que eu, maior que os limites do meu
humor e das circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis. É algo maior que a finitude do
tempo presente.
...Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca...
Fernando Pessoa
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Sumário
1. Introdução................................................................................................................9
2. Trajetória................................................................................................................13
3. Por que uma análise ontológica?..........................................................................15
4. Objeto, Objetivo geral e Objetivo específico.......................................................23
5. Método....................................................................................................................23
6. Resultados...............................................................................................................27
6.1. Síntese dos estudos e reflexões a partir das obras selecionadas no percurso.
6.2. Aplicação das análises e fundamentação das práticas:
- Proposta de acompanhamento psicológico: Como a fenomenologia informa uma
clínica em Psicologia do Esporte?
7. Referências..............................................................................................................65
8. Anexos.....................................................................................................................70
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Ottoni, Giovanna Pereira (2015). Uma análise ontológica da experiência de
dor em atletas lesionados: contribuições da fenomenologia de Edith Stein à
Psicologia. Monografia de Conclusão do Programa de Bacharelado do
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. (Orientador: Prof.
Dr. Cristiano Roque Antunes Barreira).
RESUMO
A Psicologia tem se mostrado cada vez mais necessária no âmbito do esporte de alto
rendimento e vem sendo muito explorada por pesquisadores interessados no estudo das
experiências frequentes de lesão vividas por atletas nesse contexto. Dentre os desafios
indicados pela literatura atual encontra-se o de dar ênfase à singularidade do sujeito que
vive a experiência, tomando-a como ponto de partida determinante para atuação e
intervenção do psicólogo durante o afastamento e tratamento fisioterápico. Nesse
sentido, o objetivo geral da presente investigação foi fazer uma análise ontológica da
experiência vivencial desses atletas em acordo com as etapas efetuadas na obra “A
Estrutura da Pessoa Humana” da filósofa e fenomenóloga Edith Stein. Como objetivo
específico visou-se delinear a aplicação da fenomenologia clássica no que tange ao
trabalho do psicólogo dentro do que se designou acompanhamento psicológico,
contribuindo para informar uma clínica em Psicologia do Esporte. O material de análise
foi composto por dez entrevistas semiestruturadas realizadas com atletas lesionados de
alto-rendimento do sexo feminino e masculino, entre 17 e 28 anos, de modalidades
esportivas diversas. O procedimento metodológico pautou-se nas seguintes fontes de
referência: “O Problema da Empatia” (Stein, 1917/1998); “Hermenêutica na situação
clínica: O desvelar da singularidade pelo idioma pessoal” (Safra, 2006); “Experiência
Elementar em Psicologia” (Mahfoud, 2012). Os resultados explicitaram três modos
distintos de vivenciar a experiência ocasionada pela lesão, fazendo emergir aspectos da
individualidade dos atletas que se mostraram determinantes para a intervenção
psicológica. O diálogo e a discussão com as estratégias consideradas mais eficazes na
literatura da área tornaram possível ampliar a compreensão do momento dramático
vivido pelos atletas na condição especificada, articulando alternativas de atuação aos
profissionais responsáveis pelo acompanhamento. Evidenciou-se, portanto, uma
possibilidade de considerar o atleta em sua integralidade de modo a trazer à tona sua
história de vida e suas características pessoais através do modo singular com o qual
vivencia o tratamento. Entende-se, por fim, que este estudo apresenta um
esclarecimento da dinâmica vivida, podendo ser elucidativo para a prática clínica no
domínio de conhecimento que lhe é próprio. (CNPq; FAPESP)
Palavras-chave: Dor, Ontologia, Psicologia fenomenológica, Lesões esportivas.
ESP
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1. Introdução
O esporte de alto rendimento vem sendo estudado por pesquisadores de todo o
mundo, interessados em diferentes aspectos que a sua prática abrange. Dentre estes
objetos de estudos está a lesão esportiva e o período necessário de tratamento visando o
retorno efetivo à prática.
A ocorrência frequente de lesões neste âmbito tem desafiado especialistas de
diferentes áreas do conhecimento e o psicólogo passa a ganhar cada vez mais espaço
frente à problemática (Markunas, 2003, 2007, 2012; Rubio & Moreira, 2007; Rubio,
2007; Weiberg & Gould, 2008; Ottoni, Ranieri & Barreira, 2008; Martínez, 2008;
Abenza, Omedilla, Ortega, Ato & García-Mas, 2010; Silva, Rabelo & Rubio, 2010).
Nota-se, em síntese, que os esforços de pesquisas em psicologia estão voltados à busca
pela compreensão e intervenção mais eficazes para a recuperação do atleta, buscando
trazer à tona os fatores psicológicos associados à ocorrência/prevenção e à reabilitação
de lesões esportivas.
Historicamente, Podlog e Eklund (2007) apontam que a complexidade desse
fenômeno acabou por mobilizar estudos voltados para os aspectos psicossociais da lesão
esportiva, fazendo valer um olhar sociológico e antropológico da saúde frente aos
modelos hegemônicos que vigoravam até então. Esta consideração inova com relação ao
paradigma biomédico que fundamentava as pesquisas nesse campo, mudança
diretamente atrelada à crescente valorização do mercado esportivo – patrocínios,
competitividade, ênfase na performance, etc – que, conforme afirmam Waddington,
Loland e Skirstad (2006), tornou a lesão um fator preocupante com implicações não
apenas para a medicina do esporte. Os mesmos autores argumentam que a insuficiência
do modelo tradicional começou a vir à tona pela necessidade evidente de se
considerarem os componentes sociais e culturais da experiência, tomando-os como
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fundamentais na compreensão do significado que a mesma assume para cada atleta nos
variados contextos de referência. Nas palavras de Martínez (2008):
Até relativamente poucos anos, os esforços se centravam no
tratamento do trauma em si, sendo dada atenção ao processo
terapêutico a partir de uma perspectiva clínica apenas. Contudo,
ultimamente os interesses tem se orientado para o
desenvolvimento de estratégias e propostas multidisciplinares
de intervenção relacionadas com a prevenção e readaptação das
lesões esportivas e do esportista (p. 31, tradução nossa).
A partir da literatura é possível verificar que os desdobramentos das pesquisas
têm levado à elaboração de uma série de modelos e estratégias de intervenção, bem
como a direcionamentos para a atuação do psicólogo (Abenza et. al., 2010). Um
exemplo clássico da área pode ser encontrado nos trabalhos de Weinberg e Gould
(2008), quando os autores enumeram alguns princípios a serem considerados durante a
fase de reabilitação, por exemplo, a (1) demonstração de empatia com o atleta
lesionado; (2) esclarecimentos a respeito da lesão e do processo de recuperação; (3)
aprendizagem, por parte do atleta, de habilidades psicológicas específicas de controle –
estabelecer metas, uso de estratégias de diálogo interior, visualização/mentalizações e
relaxamento; (4) preparo para lidar com retrocessos; (5) apoio social de amigos, pessoas
queridas, técnico, entre outros; e (6) observar recomendações de outros atletas
lesionados (pp. 474). Também tem sido recorrente a indicação de medidas consideradas
mais eficazes para uso durante o tratamento, dentre elas o estabelecimento de metas, as
visualizações e os relaxamentos (Scala, 2000; Weinberg & Gold, 2008; Silva, Rabelo &
Rubio, 2010), diretamente relacionadas aos modelos teóricos desenvolvidos na área
principalmente nestas últimas três décadas (Abenza et. al., 2010). Já a aprendizagem de
habilidades mentais como facilitadora de adesão e recuperação aparece questionada
perante o consenso da área acerca dos resultados de eficácia esperados para o
tratamento (Hamson-Utley, Martin & Walters, 2008).
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Por outro lado, dentre os desafios indicados pela literatura atual, encontra-se
ainda presente a colocação de Brewer (1994) quando afirma ser “essencial uma
abordagem teórica que maximiza a atenção às diferenças individuais em lidar com as
lesões atléticas” (p.97, tradução nossa). Trata-se de uma ênfase no sujeito que vive a
experiência (Loland, 2006; Lurie, 2006; Roessler, 2006), tomando-o como ponto de
partida determinante para atuação e intervenção do psicólogo:
Se a dor do treinamento é admitida como uma constante na vida
do atleta de alto rendimento, por outro lado, a dor da lesão é
vista como insuportável. As razões para essa distinção são
encontradas no discurso de vários atletas, que apontam a
condição de incapacidade gerada pela lesão. Enquanto a dor do
treinamento é geradora de desconforto, a dor da lesão está
associada a inúmeras perdas ocasionadas pelo afastamento dos
treinos e competições. A lesão em si obriga o atleta a alterar
radicalmente sua rotina de trabalho, visto que ao invés de se
dedicar às atividades de treinamento e competições, ele agora é
obrigado a viver uma rotina de reabilitação (Rubio & Moreira,
2007, p.932).
Segundo Lurie (2006), destaca-se que
de acordo com o modelo fenomenológico, ser um atleta tem a
ver com uma forma inteiramente diferente de encontrar o
mundo e, deste modo, uma lesão esportiva não é meramente
algo que atrapalha um atleta a cumprir um objetivo ou satisfazer
uma aspiração (...). Uma lesão esportiva é responsável por
alterar o caminho que um paciente-atleta encontra seu mundo,
freqüentemente no contexto das suas mais importantes e
significativas experiências (p. 208, tradução própria).
Este drama sob a presente perspectiva implica que, não apenas no que tange ao plano da
recuperação física, faz-se imprescindível uma atenção global e individual ao atleta
(Brewer, 1994, 2003; Markunas, 2003, 2007, 2012; Waddington, Loland & Skirstad,
2006; Martínez, 2008; Nesti, 2011).
Reconhece-se a necessidade de se considerar uma atuação profissional que esteja
vinculada aos conhecimentos que iluminam a experiência que estes sujeitos vivem na
condição imposta pela lesão (Ottoni, Ranieri & Barreira, 2008). Nesse sentido, a
Psicologia tem se mostrado cada vez mais uma fonte de recursos, ampliando o interesse
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de pesquisadores em buscar as contribuições deste domínio científico a respeito das
experiências constantes de lesão vividas por atletas. Visa-se nessa empreitada superar o
paradigma hegemônico das ciências naturais, como explicitou Nesti (2011) em seu
trabalho sobre as contribuições da concepção fenomenológico-existencial para
compreensão da ansiedade no esporte.
Somando-se ao panorama vigente da Psicologia do Esporte no Brasil, identifica-
se uma multiplicidade de abordagens que, conforme afirma Rubio (2007), tem
inaugurado na última década novas questões a serem consideradas pelos pesquisadores,
como constata a autora,
(...) muito ainda está para ser feito tanto no que se refere à
formação específica do psicólogo do esporte, como em relação
ao reconhecimento da importância e necessidade desse
profissional nas diversas frentes em que ele pode atuar (p.10).
Neste cenário, pautada na transposição do método fenomenológico clássico para
a investigação em psicologia (Barreira & Ranieri, 2013), a presente pesquisa visou
inicialmente compreender a experiência de dor1 vivida por atletas lesionados de alto
rendimento que se encontravam afastados temporariamente da prática esportiva e em
tratamento.
Os resultados apresentados são provenientes de quatro diferentes projetos
desenvolvidos ao longo de sete anos, sendo que os três primeiros inspiraram-se no
desenvolvimento da Fenomenologia segundo Husserl e o último tem como proposta
metodológica a Fenomenologia segundo abarcada nas obras de Edith Stein: o primeiro
realizou sete entrevistas, sendo quatro delas com atletas de modalidades individuais e
três com jogadores profissionais de futebol de uma equipe renomada em São Paulo. A
partir das primeiras constatações, delinearam-se dois estudos consecutivos a fim de
1 Usamos o termo “dor” seguindo a diferenciação indicada por Lurie (2006) quando se preferiu falar em dor (pain), em vez de lesão (injury) ou doença (illness), “porque dor é um caso borderline [no limite] entre o que pode ser fisicamente localizado e
medicamente diagnosticado e o que é visto pertencendo ao subjetivo, à esfera experiencial que deve ser explorada por outros
significados” (p. 49, tradução própria).
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separar a amostra conforme a modalidade esportiva, buscando averiguar e aprofundar os
achados. Após um ano de projeto dedicado exclusivamente a entrevistar oito atletas de
modalidades individuais, a terceira investigação restringiu-se a cinco atletas de
modalidades coletivas. Por fim, tem-se o quarto e atual projeto conforme será delineado
a seguir.
2. Trajetória
Como referido anteriormente, o presente percurso de trabalho teve início em
2008, quando a partir da primeira investigação nasceu a necessidade de aprofundamento
dos resultados encontrados. Verificou-se ao longo dos primeiros resultados uma
convergência entre os resultados adquiridos nas análises fenomenológicas e aqueles
acessados pela literatura da área. O desafio mostrava-se presente, contudo, na
evidenciação da dinâmica peculiar à fenomenologia clássica que, como afirma
Amatuzzi (2001),
descreve uma essência, a partir de depoimentos concretos de
pessoas falando de suas experiências. O que ocorre é que tal
descrição, se o objeto foi bem escolhido (ou se o recorte da
existência foi bem selecionado), deve possibilitar uma visão
mais clara do assunto, e consequentemente, um posicionamento
mais efetivo na ação (pp. 60-61).
Nesse sentido, o caminho percorrido diferenciou-se dos demais estudos
justamente pela matriz filosófica que o fundamentou, considerando que seu enfoque foi,
desde o início, uma descrição essencial da experiência vivida por estes atletas. O
trabalho realizado não se limitou à enumeração de categorias ou reconhecimento dos
aspectos importantes que estão presentes de forma determinante no fenômeno da dor
conforme vivido pelos entrevistados. O empenho dos últimos dois anos foi de elucidar
sua dinâmica essencial, bem como de, nas etapas finais, delinear uma proposta de
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acompanhamento psicológico que abarcasse os aspectos individuais de cada atleta,
considerando sua história de vida e características pessoais.
Segundo Giorgi & Souza (2010) a aplicação da fenomenologia em psicologia
vem sendo realizada há aproximadamente quatro décadas apoiada na primeira etapa do
método – a análise eidética. Por esse motivo, um dos desafios era o de adentrar o terreno
da segunda etapa, ou seja, da redução transcendental. Isto se justificou porque, seguindo
Husserl, é a partir desta última que o fenômeno passa a ser tomado em suas
possibilidades eidéticas e em termos de atos de consciência (Ales Bello, 2006a),
tornando viável aprofundar as reduções essenciais do fenômeno em sua qualidade
existencial para o nível que Husserl denominou consciência pura (Husserl, 1913/2006;
Ales Bello, 1998, 2000, 2004, 2006a; Peres, 2010). Concretamente, em nosso trabalho,
tal passagem implicou em ampliar a descrição essencial da dinâmica das relações entre
os companheiros de equipe ou familiares, do medo de perder o emprego ou a posição
titular, da tristeza ou frustração, para adentrar uma dimensão anterior – pré-reflexiva –
dessas percepções, por exemplo, no que tange ao ato de vontade, confiança, dor,
corporeidade, desejo, etc, que estão envolvidos nesses movimentos existenciais que
aparecem de forma mais “superficial”2 nos relatos.
Havíamos reconhecido que todas as adversidades enfrentadas pelos atletas na
condição especificada apareciam como expressão de uma adversidade primordial, ou
seja, originária: a vontade impedida pela corporeidade. O modo como essa “essência”3
se traduzia existencialmente nas entrevistas era na forma de um “querer e não poder”,
com todas as consequências que essa impossibilidade trazia para a carreira de um atleta
2 Superficial aqui remete à superfície, entendida segundo a arqueologia fenomenológica, isto é, dentro da operação própria da fenomenologia de escavar os elementos constitutivos da experiência, “a fim de reconduzi-la às fontes últimas, às matrizes” (Ales
Bello, 1998, p.18). Profundidade é sinônimo, portanto, de clareza, e superficialidade indica, ao contrário, obscuridade.
3 As aspas indicam um cuidado com o emprego do termo que tem sido banalizado e vem sendo alvo de críticas à fenomenologia de
Husserl, acusada por muitos de idealista – em sentido genérico – devido ao entendimento de essência distorcido do sentido original
a ela atribuído, a saber, o de fenômeno reduzido, isto é, do fenômeno após a redução (diferente de algo que se encontra por trás).
15
de alto rendimento (planejamento de treinos interrompido, estagnação da visibilidade no
mercado esportivo, risco de perder posição ou ser despedido, etc). Essa evidência foi
particularmente importante para a fenomenologia dentro de sua proposta de reflexão
clara sobre o fenômeno em sua unidade. Assim, perscrutando tal núcleo pela análise
transcendental, isto é, explorando o segundo passo do método, pôde-se compreender
que não se tratava de uma simples adversidade, mas de um “descompasso temporal-
afetivo” na experiência presente. Esclarecendo, entende-se aqui a temporalidade
enquanto horizonte vivido que, no caso do objeto estudado, pôde ser delineado à medida
que se reconheceu a vontade do atleta de retornar à prática encontrando uma barreira
objetiva, explicitando uma espécie de descompasso entre desejo (querer / vontade) –
lançado projetivamente, prospectivamente – e o objeto de desejo (efetividade corporal /
prática / treinos / campeonatos / performance) – afetivamente ligado às experiências
passadas e condicionado por um limite momentâneo (Ottoni & Barreira, 2011).
Foi a partir desses resultados que o presente projeto se consolidou: respondendo
à necessidade de iluminar pela reflexão – conforme sistematizada por Husserl
(1913/2006), Stein (1932-33/2000/2002), Mahfoud (2012) e Safra (2006) – os
elementos presentes, o que permitiu pensar possibilidades de atuação do psicólogo no
sentido de acompanhar o atleta dentro de um horizonte mais amplo e condizente a essa
necessidade de “recompassar” sua experiência.
3. Mas por que uma análise ontológica?
O intuito de trazer esta reflexão é evidenciar e situar o escopo do trabalho que
fizemos. Qual o sentido de fazer uma análise ontológica? Quais contribuições ela pode
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nos oferecer? A quais perguntas ela vem responder? O que queremos dizer com “análise
ontológica”?
Os trabalhos de análise realizados a partir de Husserl desde o início da pesquisa
começaram a fazer emergir uma necessidade que Stein apresentou de modo muito
preciso: “lidar com o fenômeno na sua pura concretude, tomando-o como início da
descrição e, caso a análise exija uma abstração, voltar-se novamente para trás buscando
o fenômeno na sua inteireza, porque justamente interessa conhecê-lo e compreendê-lo
na sua estrutura” (1932-33/2000, p.99). Este movimento de abstração e de retorno às
coisas mesmas se mostrou determinante quando pensamos na contribuição à psicologia.
A exigência de tal movimento nasceu, também, pela natureza do método que
exige de forma incansável uma reflexão sistemática e rigorosa que alcance a essência
das realidades que buscamos compreender. Fala-se em realidades4 para fazer referência
justamente ao resultado dessa descrição minuciosa que delineou as fronteiras tênues dos
elementos presentes dentro do mesmo fenômeno (para no fim obter os “contornos
ontológicos” como fez Stein). Ao identificar algumas categorias que emergiram a partir
dos relatos, começamos a circunscrever determinadas essencialidades que apareciam
configurando de diversos modos a experiência – por exemplo: o elemento de vontade
que em um relato aparece obscurecido pelo ‘elemento culpa’; ou esse mesmo elemento
de vontade que em dado momento se mostra vinculado ao ‘elemento esperança’ e como
4 Citar Husserl pode ser válido para nos ajudar a clarear o porquê de se falar em realidades: “Se o conceito de realidade é tirado das
realidades naturais, das unidades de experiência possível, então “a totalidade do mundo”, “a totalidade da natureza” é, sem dúvida, o mesmo que a totalidade das realidades; identificá-la, porém, com a totalidade do ser, tornando-a, assim, absoluta, é contra-senso.
Uma realidade absoluta vale exatamente o mesmo que um quadrado redondo. Realidade e mundo são aqui justamente designações
para certas unidades válidas de sentido, quer dizer, unidades do “sentido”, referidas a certos nexos da consciência pura, absoluta, que dão sentido e atestam a validade dele, justamente desta e não de outra maneira, de acordo com a essência própria deles. (...) A
alguém que, diante de nossas explanações, objeta que isso significa converter todo o mundo em ilusão subjetiva e se lançar nos
braços de um “idealismo berkeliano”, podemos apenas replicar que ele não apreendeu o sentido dessas explanações. O sentido plenamente válido do mundo, como de todas as realidades, ficou tão pouco comprometido como o sentido plenamente válido do
quadrado ficaria se se negasse que ele é redondo. Não se fez uma “reviravolta” na interpretação da efetividade real, nem se chegou
a negá-la, mas se afastou uma interpretação absurda, que contradiz o sentido, clarificado em evidência, que lhe é próprio. (...) O contra-senso surge somente quando se filosofa e, na busca de uma explicação última sobre o sentido do mundo, não se nota que o
mundo mesmo possui todo o seu ser como certo “sentido”, o qual pressupõe a consciência absoluta, o campo da doação de sentido;
e quando, em estreita ligação não se nota que esse campo, essa esfera ontológica das origens absolutas, é um campo acessível à investigação intuitiva, com uma profusão infinita de conhecimentos evidentes da mais alta dignidade científica”. (Ideias I, Segunda
seção: A consideração fenomenológica fundamental, § 55. pp.128-129).
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em ambos os casos era possível tentar elucidar o sentido que adquiria a motivação
durante o tratamento.
Como foi possível verificar pelos resultados traçados no primeiro momento do
estudo, o primeiro procedimento analítico inspirado em Husserl acabou pressupondo
abstrações que se remetiam, por sua vez, às “clarificações” daquilo que se mostrava na
leitura e releitura dos relatos. Por esse motivo, “voltar para trás” para contemplar a
inteireza do fenômeno se mostrou como condição para uma análise fenomenológica
verdadeira.
Acerca do que entendíamos como ontologia, a citação que consta na nota de
rodapé nos serviu de auxílio, ainda que a colocação de Husserl estivesse inserida num
campo de reflexão mais largo e mais comprometido com uma filosofia e fenomenologia
puras. Isto porque, conseguíamos reconhecer nela algumas distinções precisas que
fazem parte do universo fenomenológico e também do universo ontológico. A realidade
que o filósofo se referia não era aquela natural, isto é, aquela realidade que se poderia
definir enquanto apreensível por nossos sentidos. Quando exemplifica a validade do
quadrado, está justamente se referindo à realidade ideal (um eidos/ideia ou, mais
amplamente, sentido) objetiva na qual ele estava inscrito e podia ser apreendido em
nossa experiência de consciência. O fato de que essa realidade apreendida
evidentemente não se dê da mesma forma que um lápis colocado a minha frente nesse
momento, vem confirmar essa diferença ôntica, ou seja, de realidades ônticas. O que
nos chamava mais atenção era, contudo, a constatação acerca do que Husserl colocava
como “necessidade ideal objetiva de não poder-ser-outra coisa, afirmando que à
essência desta necessidade objetiva pertence uma legalidade pura” (Ales Bello, 2012,
tradução nossa).
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Em outras palavras, o que se queria explicitar era o fato de não podermos dizer
que um quadrado fosse redondo (da mesma forma que ele não pode ser um número e
não pode seguir as mesmas leis que a idealidade dos números delimita). O alcance
intuitivo que nos permitiu captá-lo como quadrado não era proveniente de uma
construção subjetiva que a minha consciência opera, mas sim de um mundo “que possui
todo o seu ser como certo ‘sentido’” (Husserl, 2006, p.129). A idealidade geométrica
talvez possa representar um exemplo distanciado do nosso objeto de trabalho atual,
porém parece-nos exemplo interessante para evidenciar uma intencionalidade que tem
como condição a objetividade e a subjetividade – nem uma e nem outra exclusivamente.
Para tanto, pareceu útil a seguinte citação:
O papel da fenomenologia é descobrir os momentos ‘essenciais
e característicos’ das várias ontologias regionais, ou seja, dos
diversos domínios do saber, onde o termo ‘ontologia’ adquire
um significado totalmente diferente do tradicional de
investigação em torno do ser, apontando não a questão da
essência, mas investigando o que é a realidade de um
determinado domínio do saber. (Ales Bello, 1998, p. 28)
Quando usamos o termo ontologia, portanto, não estávamos buscando fazer um estudo
sobre o ser como uma análise inspirada em Heidegger poderia supor. Quando Ales
Bello (1998) se referia aos domínios do saber, ela advertia que precisávamos entender
com isso uma esfera de conhecimento possível sobre determinadas realidades. Foi
possível reconhecer níveis, ou melhor, certa gradação de “ontologias” às quais Husserl
deu diferentes nomes: Ontologia regional e ontologia formal, por exemplo. A
necessidade para ele era de uma estratificação sistemática, como se encontrava colocada
inteiramente própria ao universo filosófico, à medida que os objetos de conhecimento
passam a ser descritos sob tal perspectiva5. Sendo assim, tinha-se como exemplo
5 A exemplo: Todo objeto empírico concreto se insere com a sua essência material num gênero de material superior, numa esfera de objetos empíricos. À essência de tal esfera corresponde, portanto, uma ciência eidética regional ou, poderíamos dizer também, uma
ontologia regional. {...} Toda ciência de dados reais tem fundamentos teóricos essenciais em ontologias eidéticas. (Husserl, 2006,
citado por Ales Bello, 1998, nota de rodapé, p. 28)
19
simples o fato de que “a geometria, enquanto disciplina ontológica considera [como
necessidade eidética] o momento essencial da coisa, entendida como res extensa, isto é,
na sua forma espacial” (Ales Bello, 2012).
A ontologia que utilizamos recorrendo ao trabalho de Stein abarcou uma
modalidade de articulação que Ales Bello (2012) denominou formal-essencial [formale-
essenziale], “que coloca em evidência a estrutura do real passando através da redução à
essência, portanto, utilizando o primeiro passo do método fenomenológico” (s/d).
Permitiu-nos, assim, colher as estruturas essenciais do ser humano e fazer uso delas não
enquanto resultados, mas segundo o desenvolvimento metodológico e reflexivo que
conduziu a esses dados de essência na experiência dos atletas lesionados. Este
procedimento, como vimos, está diretamente ligado à fenomenologia de Husserl, como
dirá Ales Bello (2012):
A radicalização proposta por Husserl consiste em confirmar a
insuficiência do nivelamento à pura factualidade para se
construir uma ciência; da factualidade se deve apreender uma
necessidade eidética, porque a cada dado de fato pertence uma
essência apreensível intuitivamente através da visão de
essência, Wesenserschauung, que constitui um objeto de nova
espécie. Nisso consiste a redução à essência (s/n).
O empenho em nos dedicarmos a compreender esse esforço filosófico/ontológico de
Stein nas obras estudadas, justificou-se também pelo fato de se mostrar determinante
tanto para o esclarecimento do lugar que a psicologia pode ocupar na ciência, quanto
para nos ajudar a identificar as realidades ontológicas que constituíram nosso objeto de
trabalho. Acima de tudo, tratou-se de um exercício de clareza. Isto porque, a
contribuição peculiar da fenomenologia parece ser justamente essa de distinguir:
entre atos psíquicos e Erlebnisse da consciência6, os primeiros
são realidades psíquicas, os segundos possuem uma idealidade
6Conforme a própria Ales Bello (1998) defende, a tradução deste termo [Erlebnisse coscienziali] corresponde a “experiências
vivenciais” da consciência que para Husserl “se refere aos atos característicos da interioridade do ser humano que vão desde a
20
correspondente e, paralelamente, uma peculiaridade de
evidência. Seja em relação à experiência externa, seja em
relação à interna, é possível delinear a idealidade geral de toda a
unidade intencional que diz respeito à multiplicidade que lhes
constituem. Neste processo regressivo se escava até o nível
antipredicativo e, portanto, à evidência não predicativa que
constitui a verdadeira e própria experiência (ibid).
Esta dependência da experiência foi o ponto-chave sobre o qual partimos juntos aos
atletas enquanto investigação ontológica. Quando falávamos de essência, mais uma vez,
estávamos nos referindo a uma objetividade porque a “essência não é um gênero, se
refere só à generalização. E o “isso-aqui” que preenche a essência de modo concreto é o
indivíduo” (Ales Bello, 2012). Este nível de reflexão lançado sobre um dado fenômeno
no âmbito da psicologia, como foi o caso deste estudo, pôde jogar luzes sobre as
configurações reais possíveis de uma dada individualidade (esteja ela presente na
variação eidética de uma categoria que emerge dos relatos, seja no nível da análise final
que propusemos considerar os aspectos individuais do sujeito no qual o fenômeno
estudado ganha concretude durante a intervenção psicológica). Isto significou, em
outras palavras, que identificar a generalidade essencial que funda a experiência de dor
em atletas lesionados – dispondo-a em categorias como foi feito nas investigações
anteriores (Ottoni & Barreira, 2011) – não era suficiente para pensarmos a atuação do
psicólogo frente à colocação existencial do problema, principalmente se a nossa
preocupação foi mesmo colhê-lo em conformidade com aquilo que a experiência
concreta nos mostra. A direção que assumimos dentro de todo o percurso feito foi a de
retorno à superfície – como se baseados em Husserl tivéssemos nos detido em
perscrutar as camadas mais profundas da escavação (dentro de uma verticalidade) – e de
reconhecimento do entorno. A pergunta neste trabalho final foi, portanto: Como
intervir?
percepção até a recordação, a imaginação, o pensamento e assim por diante, entendidos como elementos estruturais e constitutivos
da consciência” (p.26).
21
Quando chamávamos a atenção para a importância da pureza dos atos descrita
por Stein, estávamos querendo explicitar o caminho com o qual pretendíamos responder
a estas perguntas. A constatação de que o atleta não experimenta apenas sensações
corpóreas atreladas à lesão (como dor, inchaço, falta de mobilidade do membro lesado),
mas também uma mudança na percepção que possui do próprio corpo e que dele irradia,
bem como vivencia o ato de querer (isto é, a vontade) e tem que fazer suas escolhas
presentes (portanto, o ato de julgar), compuseram um universo corporal-psíquico-
espiritual7 correspondente à análise ontológica pretendida. Como descrevemos o ato da
vontade? Como nos ativemos ao ato de liberdade e julgamento durante a experiência de
tratamento? Como apreendemos a afetividade e os estados de ânimo associados a tais
situações vivenciadas? Conseguimos clarear o espaço de contribuição que a psicologia
pode ocupar frente a este fenômeno estudado? São as perguntas que podemos fazer
neste ponto de chegada presente.
Em relação à questão levantada nos relatórios anteriores: Não é possível falar de
psicologia sem definir o que chamamos de psique8. Se o propósito foi contribuir com a
psicologia, devemos saber concebê-la para que esta investigação ganhe espaço neste
domínio do saber. Acerca disso, nos afirmou Ales Bello ao delinear os perímetros desta
ontologia:
a dor ou a alegria que o outro vive deve ser captada, em
primeiro lugar, através de uma percepção ligada aos órgãos da
sensibilidade, mas aquilo que se percebe no seu rosto, remete a
uma profundidade de vida que é impossível comparar com
qualquer objeto físico, visto ou tocado. A dimensão que é assim
7 Ressalta-se que na Fenomenologia o termo espírito/espiritual refere-se “aos atos da compreensão, da decisão, da reflexão, do pensar” (Ales Bello, 2006, p.39).
8 “Poder-se-ia, agora, perguntar, como Edith Stein coloca estas questões na segunda década do século passado, quando ainda não se encontrara uma disciplina que indagasse a dimensão da psique, que mostrasse, realmente como ela é, cientificamente, sem reduzi-la
a uma estrutura de tipo mecanicista de ação reação e associação, como parecia sustentar a nascente psicologia, usando o método das
ciências da natureza? (...) Nota-se como a intenção não é a de eliminar a psicologia em favor de uma pesquisa puramente filosófica, mas, principalmente, mostrar a insuficiência do ponto de vista da psicologia e o das novas ciências do homem, constituídas na
segunda metade do século XIX, tanto com referência à compreensão aprofundada do ser humano, como em referência a justificação
de sua própria constituição. Essas disciplinas precisam de uma pesquisa preliminar que esclareça os momentos fundamentais em que se fundam. No caso da psicologia não se pode deixar de perguntar o que é a psique e se a corporeidade e a dimensão psíquica são
suficientes para compreender o ser humano inteiramente. Tais questões remetem a uma reflexão filosófica”. (Ales Bello, 2009,
pp.14-15).
22
descoberta é o lugar dos afetos, dos impulsos, das emoções, é
aquela que nós indicamos com o termo psique [Seele] (2009,
p.15).
Esta compreensão da psique foi delineada com muito rigor de detalhe nas obras que
estudamos e os fichamentos realizados ao longo do percurso buscaram explicitá-la e
sintetizá-la. Este trabalho [vide anexo A e C] junto aos livros estudados visou sua
aplicação na elaboração da proposta de acompanhamento clínico.
Por fim, um estudo que nos ajudou a lidar com os questionamentos durante a
pesquisa – e que já se encontrava dentro da Psicologia do Esporte – foi o capítulo The
ontology of sports injurie and professional medical ethics (2006) de Yotam Lurie. Ao
assumir uma ontologia heideggeriana, o autor esboça a novidade que uma ontologia –
não especificamente aquela de Stein e Husserl – pode oferecer à compreensão da
experiência vivida por atletas lesionados. Fazendo uma crítica direta ao modelo médico
tradicional, Lurie iniciava seu texto questionando a legitimidade de se tratar um atleta
lesionado da mesma forma que se trataria qualquer pessoa que tenha sofrido uma lesão.
Por quê? Pois se fazia inaceitável uma intervenção que desconsiderasse o contexto e,
consequentemente, o horizonte no qual um atleta profissional encontra-se imerso.
Ainda outra questão nascia: este “contexto”/horizonte está de fato ligado ao que
queremos designar como pertencendo ao campo da ontologia? Buscamos com esta
pesquisa contribuir para explicitar tal afirmação através de um caminho semelhante
àquele de Stein quando buscou oferecer à pedagogia com uma definição mais totalizante
de seu objeto de trabalho. A realização deste estudo em diálogo com a literatura da área
pretendeu, portanto, oferecer uma resposta concreta às perguntas que foram sendo
levantadas no caminho.
23
4. Objeto, Objetivo geral e Objetivo específico
O objeto da presente pesquisa foi a experiência de dor em atletas lesionados
afastados da prática e em tratamento, acessada a partir de dez entrevistas abertas e em
profundidade. O enfoque da investigação foi fazer uma análise ontológica da
experiência vivencial referente à dor em atletas, individuada a partir dos relatos
coletados, em acordo com as etapas efetuadas na obra A Estrutura da Pessoa Humana,
da filósofa e fenomenóloga Edith Stein.
Como objetivo específico visou-se fundamentar a aplicação da fenomenologia
clássica no que tange ao trabalho do psicólogo, explicitando as contribuições do método
para uma compreensão ontológica/existencial da experiência de modo a delinear uma
proposta de acompanhamento clínico a partir da leitura das obras: “O Problema da
Empatia” (Stein, 1917/1998); “Hermenêutica na situação clínica: O desvelar da
singularidade pelo idioma pessoal” (Safra, 2006); Experiência Elementar em
Psicologia” (Mahfoud, 2012).
5. Método
A fenomenologia clássica
A exemplo de outros trabalhos de psicologia que adentram o terreno do esporte
(Barreira & Massimi, 2006a, 2006b; Barreira, 2007; Ottoni, Ranieri & Barreira, 2008),
a presente investigação é de cunho qualitativo e também se pautou no método
fenomenológico de Edmund Husserl (1859-1938) e Edith Stein (1891-1942). O
propósito chave que sustenta sua aplicação é o de remontar as origens dos fenômenos
não no sentido causal – de uma causalidade natural –, mas enquanto apreensão,
24
percepção do “sentido” (Ales Bello, 1998; Amatuzzi, 2003; Andrade & Holanda, 2010;
Nesti, 2011).
Para a pesquisa empírica que foi parte da primeira etapa do percurso o acesso ao
fenômeno estudado se deu pela realização de 20 entrevistas de cunho fenomenológico,
concomitantes a um estudo sistemático da fenomenologia clássica (Barreira & Ranieri,
2013).
Participantes
Seguindo o intuito de caracterização do projeto inicial que deu base à presente
investigação, tem-se uma amostra composta por 20 atletas de alto-rendimento do sexo
feminino (n = 5) e masculino (n = 15), entre 17 e 28 anos, de modalidades esportivas
coletivas e individuais diversas. O critério de seleção dos sujeitos entrevistados foi
somente o afastamento da prática devido à lesão e tratamento. Os atletas acessados
receberam diagnósticos de lesão moderada ou grave, abarcando um tempo de
recuperação de no mínimo 3 semanas e no máximo 8 meses.
Entrevistas
As entrevistas realizadas se delinearam como semiestruturadas, contendo três
questões norteadoras elaboradas previamente: 1.Como foi seu envolvimento com o
esporte ao longo da sua vida?; 2.Como você viveu essa experiência de ter que
interromper a prática e vir se tratar ou como está vivendo?; 3.Quais as suas
expectativas a partir dessa experiência?. As questões se dirigem à experiência vivida,
evitando maior interesse pelos aspectos meramente contingentes e objetivos da lesão
(Amatuzzi, 2001; Giorgi & Souza, 2008; Barreira & Ranieri, 2013). Foram gravadas e
transcritas na íntegra ao longo dos três projetos realizados anteriormente, seguindo os
cuidados éticos exigidos para este tipo de pesquisa. Todos os participantes, portanto,
25
assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, optando por não revelarem suas
identidades.
Análise e descrição fenomenológicas segundo Husserl
O percurso de análise pautada na fenomenologia de Husserl teve início com a
referida redução eidética, realizada na leitura e releitura dos relatos, permitindo
evidenciar os elementos essenciais que compõem o fenômeno de modo a agrupá-los em
categorias, isto é, em unidades de sentido que foram emergindo a partir da leitura das
transcrições (Giorgi & Souza, 2010). Ressalta-se que estas unidades são “constitutivas”
dos relatos e “não apenas elementos isolados” (Holanda, 2003, p.51), sendo que o
escopo final é alcançar com estas unidades a “estrutura geral do vivido” (Amatuzzi,
2003, p.25). Quando se refere à “estrutura geral”, denota-se haver uma constituição
genérica que, embora vivida por cada sujeito na trama de uma historicidade e
pessoalidade, mostra-se identificável como traço essencial presente em todos os casos –
em maior ou menor intensidade.
Tomadas como procedimento metodológico, a análise e descrição compõem os
resultados carregando, ambas, o escopo de reconstrução do fenômeno por meio da
arqueologia fenomenológica que, como indica a expressão, refere-se a uma
operação de escavação nos elementos constitutivos daquilo que
é construído através das operações sensoriais perceptivas que se
nos oferecem já prontas e formam o mundo da experiência.
Trata-se, portanto, de uma indagação regressiva envolvendo
cada uma dessas operações voltadas a determinar o sentido de
qualquer coisa até reconduzi-las às matizes (Archai) para, a
partir destas, remontar às unidades óbvias de sentido que
fundamentam as validades essenciais do nosso mundo (Ales
Bello, 1998, p.18).
A análise ontológica segundo a fenomenologia de Edith Stein
26
Para o presente projeto foram utilizadas apenas 10 das 20 entrevistas realizadas,
as quais compuseram o material de análise conjuntamente ao estudo das seguintes
obras:
1. Stein, E. (2000). La struttura della persona umana. (M. D‟Ambra, Trad.).
Roma: Città Nuova. (Original publicado em 1932-33, Publicação póstuma de
1994). Também a tradução para o espanhol: Stein, E. (2002). Estrutura de la
persona humana. In. STEIN, E. Obras Completas. Escritos Antropológicos y
Pedagógicos. Vol IV. (Sancho, F. J. et al., trad.; Urkiza, J., rev.) Burgos:
Editorial Monte Carmelo; Vitoria: Ediciones El Carmen; Madrid: Editorial de
Espiritualidad. (Originais de 1932-1933).
2. Stein, E. (1998). Il problema dell’empatia (2a ed.). (E. Costantini & E.
Schulze-Costantini, Trads.). Roma: Studium. (Original publicado em 1917).
Também a tradução para o espanhol: Stein, E. (2005). Sobre el Problema de la
Empatía. In Urkiza, J.; Sancho, F. J. (orgs.). (Vol. 2). Obras Completas.
Escritos Filosóficos: etapa fenomenológica. Madrid: Editorial de
Espiritualidad. (Original publicado em 1917).
3. Mahfoud, M. (2012). Experiência Elementar em Psicologia: aprendendo a
reconhecer. Brasília, DF: Editora Universa e Belo Horizonte, MG: Editora
Artesã.
4. Safra, G. (2006). Hermenêutica na situação clínica: O desvelar da
singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo: Sobornost.
Foram realizadas leituras e fichamentos detalhados dos livros de Stein nas traduções
italiana e espanhola, organizados e referenciados por páginas para facilitar a retomada
durante o trabalho [vide anexos]. Após estudar e acompanhar o caminho percorrido pela
filósofa em sua ontologia, os passos foram aplicados na experiência descrita durante as
entrevistas e em conformidade aos resultados encontrados nos projetos anteriores
27
referenciados em Husserl. O escopo atual, portanto, implicou descrever as vivências
conforme emergem nos relatos e segundo a trajetória metodológica evidenciada nas
obras de Stein.
Por fim, deu-se início às aplicações no que tange às possibilidades de atuação do
psicólogo.
6. Resultados
6.1. Síntese dos estudos e reflexões a partir das obras selecionadas no percurso
Como visto, uma vez que as primeiras análises inspiradas em Husserl trouxeram à
tona diferentes elementos presentes no que havia sido delimitado previamente enquanto
“experiência de dor em atletas que se encontram afastados da prática e em tratamento”,
iniciou-se uma empreitada nova para a investigação. A densidade dos relatos solicitava
uma atenção cada vez maior aos elementos que foram emergindo: vontade, incerteza,
medo, escolha, sofrimento, confiança, paciência, tristeza, raiva, culpa, percepção do
próprio corpo, entre outros. A experiência de dor começou a se mostrar sob estes
termos, dentro de uma dinâmica ao mesmo tempo universal e particular (relativa a dado
fenômeno e a dada pessoa que o vivencia, respectivamente). Com estes achados, foram
sendo tecidas as direções assumidas através das leituras e estudos realizados.
Reconhecendo a dinâmica da experiência e os elementos a ela inerentes, nascia a
pergunta: a qual dimensão estes elementos pertencem dentro da constituição do ser
humano (se psíquicos, espirituais ou corpóreos)? Quais as relações que podem ser
traçadas entre eles? Em que nos ajuda clareá-los através de uma perspectiva filosófica?
Como pano de fundo estava a busca por reconhecer uma ontologia, ou seja, os domínios
a eles correspondentes no âmbito do conhecimento. Mas não só, buscava-se também
28
identificar a totalidade do fenômeno a partir da experiência do sujeito que vive esta
condição. As questões norteadoras que vinham à tona diante do trabalho visavam
responder, implicitamente, a essa tentativa de evidenciar o lugar da Psicologia e as
contribuições que ela pode oferecer com o olhar que lhe é peculiar frente às demais
ciências – o que, na maioria das vezes, no campo científico é tomado como óbvio e que,
para uma pesquisa fenomenológica, é posto novamente à prova na epoquè.
A lida com a literatura em Psicologia do Esporte despertou com mais força as
seguintes preocupações: Será que as estratégias colocadas na literatura como mais
eficazes acolhiam o sujeito na sua integralidade? As propostas de intervenção dão conta
desta totalidade da experiência vivida por estes atletas? Qual é esta necessidade,
identificada e partilhada na área, de lançar a atenção sobre o sujeito e suas
peculiaridades? Antes, quem é este sujeito? Quem é este ser humano que vem até nós
dentro de uma relação – implícita ou explícita – de ajuda? Viu-se que os estudos não
estavam interessados diretamente nestas respostas e, por isso mesmo, pouco
iluminavam uma busca de conhecimento que caminhasse neste sentido. Frente a tal
constatação, um movimento reflexivo e paciente ao longo destes sete anos de pesquisa
foi sendo delineado.
Neste trajeto final, o estudo da primeira obra selecionada, “A Estrutura da
Pessoa Humana” [vide ANEXO A], possibilitou uma rica análise do material empírico
composto pelas entrevistas. A utilização do conceito de força vital [vide ANEXO B] foi
de grande ajuda para alargar o horizonte que havíamos delineado a partir de Husserl.
Via-se como este momento imediato de suspensão da prática, imposto ao atleta pela
lesão, exigia uma reorganização das atividades habituais que “conservavam sua força”
(utilizando os termos de Stein). De modo geral, a tristeza que compunha o momento era
o sentimento que ressoava a partir da modificação existencial abrupta, isto é, da
29
interrupção de todo um projeto de vida até então existente para esses atletas. Os outros
sentimentos que emergiam no momento inicial da lesão mostravam-se sempre intensos
e negativos: “um vazio” (S1), “desânimo” (S2), “fica deprimido” (S3), “frustrante”
(S4), “desespero” (S5), “raiva” (S6), “medo” (S7), “se sente um inútil” (S8),
“impotência” (S9). Para exemplificar, tem-se esta fala que expressa numa imagem o
drama vivido: “Pra mim ficar fora do jogo é a mesma coisa de me dar uma facada,
mesma coisa de querer me machucar mesmo. (...) É muito desgastante
psicologicamente, porque não mexe só com o meu querer estar lá dentro, mexe com a
minha mente, que é um querer estar lá e eu não posso. Entendeu? Então mexe com o
nosso coração, mexe com o nosso sentimento que a gente tem de querer estar lá e não
poder estar, por conta de uma lesão, por conta de ter se machucado, entendeu? E não
saber ao certo quando é que você vai voltar” (S10).
Este primeiro momento compareceu de modo muito exigente, antes de tudo, do
ponto de vista psíquico, isto é, no que tange aos afetos e emoções. Entrelaçando tal
constatação aos estudos de Safra (2006), este momento vivenciado pelos atletas parece
assemelhar-se à seguinte colocação do autor:
O que é interessante em nossa experiência enquanto seres
humanos é que tendemos a viver essas interferências no fluxo
da nossa vida como a interferência de um outro. Ouvimos quase
todos os dias nos consultórios analisandos nos dizendo: Veja o
que aconteceu comigo. O que Deus quer de mim? O que mais
Ele quer de mim? Ou seja, a interrupção de nosso fluxo é vivida
como partindo de um outro. Entres essas experiências
encontramos algumas em que o próprio modo de ser da pessoa é
atravessado e reposicionado por aquilo que de repente lhe chega
de fora do mundo. Existem experiências, por exemplo, que
surgem de maneira repentina e que alteram abruptamente o
sentido que a pessoa criava para a sua vida. Independente de a
experiência ser vivida como boa ou ruim, ela é a tal ponto
significativa e intensa, atravessa tanto a pessoa, que o sentido da
sua vida muda de direção. Esta é uma situação muito complexa,
em que o indivíduo se vê em meio a turbulências de sentidos. O
fundamento de sua vida e o sentido que ele construía para si se
perdeu. A pessoa tende a experimentar, nessas condições, uma
crise psíquica e existencial. Por outro lado, ela passa a ter a
30
possibilidade de acessar, por meio da experiência disruptiva, um
saber sobre o existir humano (p.120).
Em convergência ao que parece representar essa “crise psíquica e existencial”, um dos
atletas relata:
“Quando lesionei o meu joelho eu vivi isso, eu estava feliz pra caramba e de repente,
de um dia para o outro, de uma hora pra outra me pego sentado no banco de um carro
com o joelho torcido. Passa o filme da sua vida toda, do que você fez na sua vida toda.
Nada podia te impedir e na outra hora você está ali parado, mal pode andar, mal pode
se mexer direito, tem que depender dos outros. Isso não é legal, mas está melhorando.
Eu tinha vários pensamentos ruins, eu mal conversava com as pessoas, ficava mais
comigo mesmo, mais sozinho e é muito ruim, porque quando você fica sozinho, você
começa a pensar besteira, querendo ou não. Você pensa besteira que se reflete em
besteira. Então decidi mudar, passei a conversar um pouco com as pessoas, conversar
um pouco e se divertir, pra poder ter pensamentos bons, refletir em coisas boas para o
futuro. E é isso que está acontecendo hoje, pensamentos bons, coisas boas estão vindo,
pouco a pouco mas estão vindo” (S1).
Para outro atleta essa dificuldade de enfrentar a “situação complexa” colocada pela
lesão aparece também muito exigente:
“Depende da pessoa você acaba ficando meio piradão, a cabeça fica a mil, será que eu
vou ser mandado embora, o que vai acontecer. Você começa a se preocupar nessas
coisas e acaba meio que deixando de lado o tratamento. Não que de lado, mas acho que
não faz bem pra você ficar pensando muito nisso porque não vai render as coisas sabe?
(...) Vem muita coisa na cabeça e isso não é legal. Eu sei, machucou, aconteceu, não
tem o que fazer mais. Vamos tratar. Se você ficar pensando muito nisso, fica meio
pilhadão, acho que o tratamento não desenvolve bem, não em relação à fisioterapia, ao
profissional, mas em relação a você. Você não se sente bem, você não dorme bem,
sabe? Parece que as coisas não rendem, acho que isso acaba atrasando um pouco o
tratamento, a sua volta” (S8).
Também como exemplo pontual, pode-se notar que durante as análises [vide ANEXO B],
a consequência dessa quebra de fluxo transparecia tanto na “cabeça” que ficava “a mil”,
quanto no sono, porque “você não dorme bem”. Era possível reconhecer que toda a
unidade da pessoa padecia com essa experiência. Do mesmo modo, a busca de uma
resposta para o ocorrido, dos porquês, apareciam ora voltados a esse outro referido por
Safra, ora justificando sentimentos de raiva e culpa de si mesmo. Apareciam, contudo,
31
sempre instaurando uma incerteza vivida de forma muito intensa nos primeiros
momentos do tratamento.
A releitura das entrevistas após o estudo detalhado dessa primeira obra de Stein e
da ênfase ao conceito de força – ambos apresentados em relatórios durante a pesquisa –
começou a despertar o interesse pelos aspectos individuais da experiência: Qual a força
disponível para cada atleta? Quais as fontes de força buscadas em cada caso? Como se
davam os diferentes enfrentamentos assumidos por cada um deles? Este interesse nos
lançava, por sua vez, à procura de obras que viessem a complementar uma compreensão
do que se poderia pensar enquanto acompanhamento clínico diante da experiência
vivenciada. Além da “clarificação” de uma ontologia dessa experiência, isto é, de uma
análise ontológica que trazia à tona os elementos constitutivos do fenômeno, emergia a
demanda por saber se seria possível informar uma intervenção psicológica que os
abarcasse, mesmo que não fosse esse o escopo primeiro da fenomenologia. Em outras
palavras, desejávamos não só compreender a constituição do ser humano, mas aplicar
estes conhecimentos dentro da atuação profissional mesma.
Fazendo um paralelo direto com as preocupações de Stein na obra estudada,
surgiu uma nova e mais ampla pergunta para a nossa investigação: Qual ciência pode
ajudar a lidar com a experiência vivida pelos atletas lesionados? Em quê? Como? As
reflexões da filósofa pautavam-se, como já dito, na própria experiência que o ser
humano faz no mundo, levando-nos a um reconhecimento semelhante: uma orientação
exclusivamente voltada ao mundo material e às suas leis universais mostrava-se como
incapaz de colher o mundo espiritual – a rigor, o mundo humano: a liberdade, as
tomadas de decisão frente aos afetos, os juízos e a própria consciência de si, dos outros
e do mundo. Descortinavam-se, nos estudos de Stein, múltiplas formas de expressão
com as quais uma “interioridade” se “mostrava”, colocando-nos o desafio de
32
compreendermos suas linguagens específicas – não apenas aquelas apreensíveis aos
cálculos ou às observações meramente mecânicas/fisiológicas dos fenômenos.
Saímos à procura destas expressões nas leituras e releituras dos relatos. O estudo
de Safra (2006) nos levou a dar ainda mais atenção à empreitada de pensar uma clínica
com atletas lesionados, colocando-nos o desafio de apreender o que designou como
idioma pessoal, isto é, “a maneira pela qual a singularidade do ser humano aparece em
seu modo de ser, em seus gestos, em sua linguagem e em seu estilo pessoal” (p.20).
Concluíamos junto com o autor, considerando as análises outrora expostas, que uma
“perspectiva racionalista” (Safra, 2006, p.19) também não daria conta deste nosso
objeto de estudo. Na companhia de Mahfoud (2012), apareceu-nos muito relevante a
seguinte colocação, transferida para a pesquisa que fazíamos:
não queremos oferecer um modelo de pensamento por meio do
qual se possa considerar a pessoa. Trata-se mais de um convite
ao leitor a um trabalho de observação atenta para chegar a um
verdadeiro reconhecimento (...). Nisso há uma forte crítica à
maneira com a qual temos feito Psicologia. Frequentemente
privilegiamos um modelo de ser humano a ele mesmo; fixamo-
nos em um aspecto preferido, definindo toda pessoa por aquele
aspecto que preferimos, ou que nos interessa ideologicamente
afirmar. Assim, a abertura para a totalidade se perde,
comprometendo o resultado do conhecimento científico; a
exigência de realização se confunde, comprometendo o
dinamismo propriamente humano tanto da pessoa atendida
quanto do psicólogo (p.30).
Interessou-nos, desde o início, aprender a fazer esse reconhecimento e a apreender este
dinamismo diante da experiência que estávamos pesquisando. Nesse sentido, informar
um acompanhamento clínico para os atletas lesionados a partir da fenomenologia é,
primeiramente, uma tentativa de nos deter àquilo que o próprio fenômeno revela a partir
dos dados colhidos e, possivelmente, também perante uma intervenção psicológica.
A leitura, fichamento e estudo da obra “O Problema da Empatia” [vide ANEXO
C], realizados em seguida no percurso, possibilitou-nos reconhecer e fundamentar a
experiência – sui generis, segundo Stein – de “estar diante da experiência alheia”,
33
remetendo-nos ao que viríamos a encontrar no contexto da situação clínica. As nuances
e os desenvolvimentos da autora nesta obra também enriqueceram o olhar sobre a
experiência dos atletas, agora no que tange à experiência intersubjetiva propiciada pela
empatia. O aprofundamento dessa relação empática desvelou sentidos que possuíam
consequências definidoras do que concebemos aqui como prática clínica, uma vez que
o outro se revela como um outro a partir de meu eu no momento
em que está dado de modo diferente que <<eu>>: por isso um
<<Tu>>; mas este <<Tu>> vive a si mesmo assim como eu
vivo a mim mesmo: por isso <<Tu>> é um <<outro Eu>>. O Eu
experimenta a individualização não pelo fato de que se encontra
diante de um outro, mas pelo fato de que sua individualidade se
destaca no confronto com a alteridade do outro (Stein,
1998/2005, p.121/118).
Nesse sentido, novamente apareceu-nos muito elucidativo o estudo de Safra (2006):
Em nosso vértice de trabalho, para que o analista compreenda
efetivamente seu analisando, terá que tornar seu, no espaço
potencial, aquilo que o paciente diz ou apresenta. O analista,
neste caso, se coloca em uma disponibilidade tal que, naquele
momento, a dor ou a experiência do analisando tornam-se parte
de sua realidade, vivida no registro da transicionalidade.
Enquanto o analista não tornar sua a experiência do analisando,
ou seja, enquanto não puder ver a relação do que essa pessoa
traz com a sua própria vida, só terá uma compreensão
decorrente de um processo de objetificação de seu paciente
(p.143).
Isto quer dizer não apenas a empatia enquanto possibilidade de eu me fazer “Sujeito”9
junto com o sujeito empatizado, mas enquanto via de compreensão das possibilidades
de “ser com” (Mahfoud, 2012, p. 64, 67) o outro, porque “nos interessa estar ali diante
do outro com sua dor, presente, olhando, tendo um amor à pessoa dele, a ponto de
inserir um elemento totalmente novo no horizonte de vida da pessoa, na experiência de
si mesma e do mundo” (p.104).
9 Isto porque Stein definirá da seguinte forma a experiência da empatia: “Trata-se de um ato que é originário enquanto vivido
presente, porém não originário pelo seu conteúdo. Esse conteúdo é um vivido que como tal pode atuar de múltiplos modos, como acontece na vivência da recordação, espera e fantasia. No instante em que o vivido emerge espontaneamente diante de mim, eu o
tenho como Objeto (a exemplo, a expressão de dor que eu posso <<ler no rosto>> de um outro); porém volto à tendência aí implícita
e procuro trazer à datidade mais clara o estado de ânimo no qual o outro se encontra, a partir do momento que me atraí dentro de si, aquele vivido não é mais Objeto no verdadeiro sentido da palavra, porque agora não estou mais voltado àquele vivido mas
identificando-me, estou voltado ao seu Objeto, o estado de ânimo, e estou colocado no lugar de seu Sujeito” (1998/2005, p.77/87).
34
Estas considerações foram de grande valor para situar uma clínica que dê conta
dos fatores em jogo na experiência, entendendo haver nessa perspectiva uma “forte
crítica à maneira de fazer Psicologia”, uma vez que “não reconhecendo tal percurso
humano, inventamos modelos de homem, tomamos um aspecto preferido passando a
definir todo o homem por ele, esvanecendo a abertura para a totalidade e perdendo de
vista a pessoa mesma” (Mahfoud, 2012, p.114). A consequência dessa postura é, ainda
nas palavras de Mahfoud (2012), que “negar tal abertura para a totalidade coincide com
a negação da própria dinâmica pessoal” (p.233).
Aprofundando os estudos dessa segunda obra de Stein, reconhecíamos que a
empatia perpassava um hic et nunc – ainda que não fosse esse seu aspecto definidor.
Um de seus exemplos se fez esclarecedor deste movimento propiciado pelo ato
empático, principalmente quando afirma “não só é [ser] possível captar a expressão do
rosto e gestos, mas também aquilo que nasce do seu íntimo, algo que se ‘esconde atrás’”
(1998, p.71). Isto nos diz que,
ainda que possa ocorrer de eu ver alguém que apresenta um
semblante triste sem estar de fato afligido, posso presenciar uma
pessoa que após fazer um comentário inadequado, fica
vermelho por isso. Posso, nesse último caso, saber ainda que ele
reconhece o fato de ter feito uma observação inoportuna e sente
vergonha pelo que fez (1998/2005, p.71/82).
Esse hic et nunc, portanto, remete a uma motivação e a um juízo que não podem ser
demonstrados enquanto dados sensíveis, isto é, não são expressos de nenhuma forma
segundo uma aparência sensível. Colho, portanto, através [atravessando] dos dados que
me chegam também pela corporeidade alheia. Seguindo esta direção, os
desenvolvimentos de Stein sobre o tema também são utilizados de modo interessante
por Safra (2006):
Para essa autora a empatia é a possibilidade que temos de
acompanhar o circuito de sensibilidade de um outro. Edith
afirma que podemos acompanhar dois circuitos: o circuito da
sensibilidade e o circuito da articulação do pensamento do
35
outro. (...) A possibilidade de acompanhar a expressão
descritiva plástica ou o modo como a corporeidade do outro
aparece permite que realizemos com o nosso próprio corpo o
mesmo circuito descrito ou apresentado. Dessa maneira,
podemos compreender os sentimentos dos nossos analisandos
através do que nos apresentam, se também os acompanharmos
por meio de nossa sensibilidade corporal (p.47).
Acerca destas colocações, Stein nos ofereceu vários exemplos, sendo um deles muito
sintético dentro do que denominou “empatia sensorial”, podendo ajudar a elucidar o
movimento empático que estávamos buscando para informar a situação clínica:
A mão que descansa sobre a mesa não está aí como o livro que
se encontra, ela <<pressiona>> contra a mesa (por certo, mais
ou menos forte), descansa distendida ou estirada, e eu <<vejo>>
essa sensação de pressão ou de tensão segundo o modo de co-
originariedade. Seguindo a tendência de preenchimento,
implícita nessa <<co-apreensão>>, a minha mão empurra (não
realmente, mas <<de certo modo>>) no lugar da mão estranha,
entra nela e assume sua posição e atitude. (...) Minha mão sente
a sensação da mão estranha, mas não de modo originário e
próprio, mas sim <<junto>>, exatamente ao modo da empatia
cuja essência está colocada por nós como distinta da vivência
própria e de qualquer outro tipo de presentificação. Durante
esse transferir-se dentro do outro, a mão alheia está
constantemente percebida como membro do corpo estranho
alheio e também como corpo vivo próprio. É assim que as
sensações empatizadas, em contraste com as próprias, se
destacam permanentemente como alheias (incluindo o fato de
eu poder não estar dirigido a este contraste no modo de atenção)
(p.149/139).
Este “poder estar dirigido no modo de atenção” foi uma das considerações importantes
que buscamos aprofundar nos estudos e na companhia de Safra (2006) e Mahfoud
(2012). Trata-se da atualidade e inatualidade da consciência, importantíssima para a
fenomenologia e muito crucial para pensar o trabalho clínico. Como, na relação
intersubjetiva, estes direcionamentos de consciência podem se dar? Ainda retomando as
palavras de Stein, reconhece-se que
É próprio da essência da consciência o fato de que em cada
instante da experiência vivida o <<cogito>>, o ato no qual o Eu
vive, esteja circundado por um raio de vivências de fundo, pela
inatualidade, as quais não são mais ou não agora cogito e,
portanto, não estão acessíveis à reflexão, mas que podem sê-lo,
sendo necessário que passem primeiro à forma de cogito (forma
36
que pode ser assumida em cada momento). Seriam “’não
atuais’, mas nem por isso não presentes, originárias e, graças a
isso, ativas” (p.171/155).
Entende-se, portanto, que não só estão presentes como podem se tornar alvo de
intervenção. Safra (2006) situa de modo amplo este direcionamento de consciência:
Edith Stein (1950), por meio de uma análise fenomenológica
desta questão, nos diz que se observarmos nossas experiências
ao longo do tempo, veremos que nossas possibilidades se
realizam de maneira puntiforme. Por exemplo, no momento em
que os leitores estão lendo este livro há outras possibilidades de
experiência como cantar, trabalhar no jardim, dançar e assim
por diante, que não podem se realizar nesse exato momento.
Portanto, no cotidiano, somente uma faceta do nosso modo de
ser pode se realizar em um determinado momento. Segundo
Edith Stein, grande parte de nós mesmos e de nossas
potencialidades permanecem na sombra. Ou seja, a cada
instante atualizamos facetas que no momento seguinte voltam à
sombra e assim sucessivamente (p.67).
Ainda seguindo o autor, entende-se ser possível
não evocar o passado vivido, mas nem por isso ele deixa de
estar, de certa maneira, presente. Ele está presente pelo modo
como nos afeta e influencia o que se realiza no agora. Cada
gesto se transfigura pelo passado vivido, mesmo que este não
seja intencionalmente evocado pela pessoa. O que foi vivido e
que não está à luz da consciência está diferentemente presente
como possibilidade de significação e afetação. (...) o ente
humano apresenta aspectos de si mesmo que estão em
potencialidade e não em atualidade, pois em decorrência de sua
condição e de sua finitude só realiza algumas possibilidades de
si mesmo (pp.107-108).
Nesta constatação diante da própria experiência que, com nossa condição, fazemos de
mundo – ou seja, considerando a nossa constituição humana tão bem descrita por Stein
– como a clínica pode servir de ajuda?
Como início das reflexões [vide ANEXO D] suscitadas pelo livro de Mahfoud
(2012), reconhecíamos como tudo que eu posso vir a provocar no mundo, bem como
tudo que o mundo pode provocar em mim, torna-se parte deste fluxo de consciência –
ainda que de forma puntiforme. Havíamos concluído com o autor que a manutenção da
inatualidade dos elementos fundamentais da experiência poderia conduzir a uma
37
alienação (Mahfoud, 2012). Mais do que isso, “vínhamos comentando: a realidade me
provoca e, nessa provocação, vivo uma exigência de bem, uma exigência de afirmação
do ser. E então? O que eu faço com isso? Como me posiciono? Este é o problema da
moralidade. O próprio posicionamento autêntico, original, precisa ser sustentado”
(Mahfoud, 2012, p.119). Entendendo essa moralidade justamente como a capacidade de
responder às provocações que brotam no meu contato com o mundo, ou seja, aos modos
de atualidade e inatualidade que vou assumindo, como a clínica poderia contribuir para
o atleta diante de seu drama? Isto porque, conforme vimos em Mahfoud (2012), há o
risco de vivermos muitas coisas sem trazer à consciência nenhum juízo, posso viver
reativamente e mecanicamente também a atualiadade, ou seja, também o que encontro
presente na minha consciência. Nas palavras do autor:
Fazer experiência de algo não é apenas “provar” fatos e
sensações. Tal concepção gera esvaziamento da personalidade.
Experiência, entretanto, “coincide, sobretudo, com o juízo dado
a respeito daquilo que se prova” (juízo, aqui é tomado no
sentido filosófico, isto é, chegar a afirmar o que uma coisa é).
Portanto, implica uma inteligência do sentido, numa descoberta
do mesmo e não tanto das relações mecânicas (p.38).
Nesse ponto, levantamos a possibilidade de o atleta responder ou não à tristeza que vive
diante da lesão. Também eu, como psicólogo, posso responder ou não àquele
movimento que sinto ao começar a empatizar sua dor, isto é, ao me colocar como
Sujeito de sua experiência. Ela pode me solicitar de modo mais ou menos intenso: está
aberta diante de mim como possibilidade de ser tomada como atualidade ou não. Dirijo
minha atenção a esse elemento ou posso, distanciando-me, propor-lhe friamente alguma
estratégia sugerida pela literatura.
A alienação para o atleta seria, portanto, uma predominância de inatualidades ou
de atualidades não levadas a cabo frente à experiência presente, diminuindo os recursos
que possuo para lidar com o que tenho diante de mim – seja enquanto terapeuta ou
38
como sujeito que padece aquela tristeza. Posso ou não ir a fundo dos sentimentos que
emergem nessa relação intersubjetiva, deixando-me ou não conduzir pelos valores caros
à minha pessoa, valores esses que se encontram indicados por tais sentimentos – como
nos apontaria Stein. Assim, vimos nos estudos que, se permaneço não consciente, isto é,
não tomando como cogito os elementos todos que emergem do meu relacionamento
com uma alteridade (seja ela humana, animal, material, ou mesmo uma lesão), corro o
risco de reduzir a apreensão que faço de <<mim mesmo>> ao agir. Mahfoud (2012) nos
alertava:
(...) posso fazer algo e não fazer experiência: não emitindo juízo
algum sobre o que significou, passo pelas coisas, mas não faço
experiência delas. Assim, há gente que trabalha, porém não
trabalha; lê, mas não lê; tem relações afetivas, mas não tem
relações... Por não saber afirmar o que aquilo significa, por falta
de clareza do que há – naquilo que está vivenciando – de
significativo (Mahfoud, 2012, p. 52).
Desse modo, diferenciando-se do êxito esperado em consonância com a posição
tradicional, Mahfoud (2012) nos salienta o que seria uma contribuição coerente a essa
dinâmica humana que ele nos ajuda a descrever: “Para nós, psicólogos, qual é o
resultado esperado? Nossa posição espera que o sujeito, por estar empenhado na busca
autêntica ordene seus recursos pessoais na relação com seu mundo, e se aproxime
sempre mais de uma unidade; aceite que sua exigência dê uma direção no
enfrentamento dos desafios que a vida coloca” (p.71).
Como busca desses recursos referidos por Mahfoud, o cogito apareceu-nos como
atualidade da consciência, também consciência de <<mim mesmo>>, podendo se tornar
alvo de atenção no acompanhamento dos atletas. Essa abertura para fora e para dentro10
10 Safra (2006) utiliza exatamente estas palavras em uma de suas notas de rodapé: “Denomino espiritualidade o posicionamento existencial do ser humano frente ao seu porvir, que lhe possibilita constituir um sentido para o seu percurso pela vida. Essa faceta
relaciona-se com o fato de que o ser humano é aberto tanto para a sua interioridade quanto para o mundo fora de si. Ele pode sair de
si em direção ao que está para além de si mesmo, sem perder o sentido de si mesmo” (p.20). Esta condição do ser humano, isto é, esta “constituição/estrutura”, é pressuposto consonante também à formulação de Luigi Giussani ao designar a “Experiência
Elementar”, Mahfoud (2012) irá afirmar: “A própria experiência fornece critérios de avaliação que permitem chegar a juízos
pessoais a respeito da correspondência entre tudo o que o sujeito encontra no mundo e na história, e os anseios que constituem sua
39
à qual tão claramente se refere Stein, vivenciadas concomitantemente pelo ser humano
de modo inalienável, implicam a presença ininterrupta do cogito e necessitam dele para
a constituição da pessoa:
Estamos considerando uma unidade. A experiência elementar [o
Sujeito espiritual diante do mundo dos valores nos termos da
reflexão de Stein] suscita em nós sentimento. Prestar atenção
nele é uma possibilidade de tomar a experiência na mão. Como
você se dá conta da experiência elementar? Porque aparece um
incômodo, um desejo, uma revolta, uma indignação, ou um
mal-estar que você não consegue nem nomear mas indica uma
realidade em você, que não é o sentimento. Sem esta distinção
[propiciada, antes de tudo, pelo cogito] você não conseguiria
distinguir um mal-estar por ter comido algo que não lhe fez
bem, de dor no estômago quando presencia uma injustiça. Sem
observar a experiência [tomá-la como atualidade da
consciência, julgando-a], inclusive do ponto de vista do
sentimento [de todo o Sujeito psicofísico], você não saberia
distinguir essas vivências. A finalidade de pontuar e examinar o
sentimento não é exaltá-lo por ele mesmo, é chegar ao
posicionamento [moralidade – Sujeito espiritual] propriamente
pessoal em relação ao que está indicado no sentimento
(Mahfoud, 2012, p.166).
Do ponto de vista da clínica psicológica, foi ficando cada vez mais claro como
estas reflexões apoiadas em Stein, Mahfoud e Safra nos ajudam a entender o que
significa dizer que “o meu posicionamento diante da minha própria experiência [é] o ato
do eu que é fator reconstituidor de minha pessoa e da cultura da qual participamos
(Mahfoud, 2012, p.215). É a colocação de um desafio a nós, psicólogos, e aos atletas
com os quais pretendemos lidar: sair da mera reatividade. Acerca dessa colocação,
novamente se mostrou de ajuda recorrer às reflexões de Stein, precisamente quando se
dedicou à diferenciação entre o homem e o animal:
Também no ser humano reconhecemos uma abertura sensível às
impressões externas e internas, bem como às reações a elas com
atos e movimentos instintivos. E aqui podemos efetivamente
experimentar interiormente, em nós mesmos, que coisa
queremos dizer quando falamos de ‘perceber sensitivo e agir
reativo’. Temos essa possibilidade porque não somos seres
própria pessoa” (p.34). O contato com tal dinâmica que, sem dúvida, abarca toda corporeidade da pessoa, é uma de nossas metas de acompanhamento clínico. Se falamos de um corpo meramente mecânico, como poder-se-ia levar em conta essa “condição
ontológica de abertura” (p.29), nas palavras de Safra, ou essa “abertura à totalidade” como “exigência estrutural” (p.89), nas
palavras de Mahfoud?
40
puramente sensitivos, mas capazes de conhecimento espiritual.
(...) é evidente como não experimentamos as impressões
sensíveis como puros estímulos sensoriais, mas como estímulos
formados objetivamente e inseridos na estrutura de um mundo
feito de coisas, percebível com os sentidos (Stein, 2000/2002,
p.119/p.644).
A isto lançávamos novamente o terreno de alcance próprio à Psicologia, buscando luzes
sobre os elementos da experiência através desse mundo espiritual, do cogito e, ainda,
passando a uma tomada de posição consciente, autêntica e possível frente ao mundo dos
valores e de sua relação com cada <<eu>>, com cada fluxo de consciência, com cada
significado com o qual me deparo na minha experiência vivida e no estar diante da
experiência alheia.
A unidade do ser humano, corpo-psique-espírito que buscávamos já na análise
ontológica, orienta-nos também agora para pensar um acompanhamento clínico.
Começamos a entender que esta unidade, tomada na experiência, extrapolava uma lida
causal com o fenômeno que estudamos. Um exemplo, já situado no caso dos atletas,
ficou presente quando pensamos em falar da motivação para aderir ao tratamento
fisioterápico, relatado pela maioria dos entrevistados como chato, desprazeroso,
parecendo uma “eternidade” (como já trouxemos, uma percepção do tempo diretamente
atrelada a uma vontade de retorno à prática “arrastada” porque parece não se realizar
nas atividades pedidas durante o tratamento). Assim, uma pergunta constantemente feita
aos psicólogos é: Como motivá-los? Chegávamos a essa vida do espírito que não
responde a uma regra perfeita como um objeto responderia ao ser lançado de minhas
mãos, necessariamente assumindo certa direção por mim colocada. Uma das reflexões
de Stein nos ajudou a clarear este mundo espiritual/humano que escapa à tentativa de
enquadre numa perspectiva meramente materialista ou física:
Os atos espirituais não estão juntos uns dos outros sem relação
– semelhantes a um feixe de raios de luz com o eu puro como
ponto de intersecção – mas, ao contrário, existe um brotar
vivido de um ato ao outro, um fluir do Eu de um a outro ato: o
41
que chamamos anteriormente de <<motivação>>. Este <<nexo
significativo>> dos vividos, que se apresentava de modo
heterogêneo no centro da relação causal física e psicofísica, e
que não possuía nenhum paralelo na natureza física, deve ser
totalmente atribuído ao espírito. A motivação é a legalidade da
vida do espírito; o nexo das vivências do Sujeito espiritual é
uma totalidade significativa vivida (originariamente ou de modo
empático) e como tal, é compreensível (Stein, 1998/2005,
p.202/p.179).
Assim, dávamos conta durante os estudos de que precisávamos considerar essa lei de
necessidade distinta, própria aos fenômenos humanos, tomando-a em sua determinação
própria (totalmente outra em relação ao mundo dos corpos físicos). Nos relatos,
manifestava-se a nós com qualidades universais, inteligível, podendo ser alvo de uma
intervenção não só psicológica, mas, como já dito, também alvo da educação e cultura,
como defendido por Stein. Tratava-se de uma legalidade pessoal que, como tal,
colocava a nós, psicólogos, dentro de possibilidades e limites, porque uma vez que não
podemos abdicar da liberdade do sujeito que nos vem pedir ajuda, esta legalidade
correspondente ao mundo espiritual (juízo, decisão, tomada de posição colocado pela
experiência vivida) pode ou não “ganhar corpo” na constituição da pessoa ao longo de
sua vida. O atleta pode ou não se motivar, pode ou não aderir, pode ou não querer
atribuir um sentido para o drama em que está inserido, pode ou não desejar estabelecer
um nexo consciente neste fluxo ininterrupto de vivências que lhe chegam a partir do
contato com o mundo a sua volta.
Nesses estudos, começamos a entender o que poderíamos considerar como um
acompanhamento clínico “totalizante”: aquele que apreenda a pessoa e a experiência de
modo integral. Para tanto, foi ficando claro que exigiria esta consideração de todos os
elementos em jogo e, primordialmente, da liberdade de cada atleta. Entendemos,
também,
não ser possível realizar uma doutrina da pessoa sem uma
precedente doutrina axiológica [dos valores] e sem ser
compreendida partindo de fato de uma doutrina axiológica. À
42
plena hierarquia dos valores corresponderia a pessoa ideal que
sente todos os valores na sua ordem e de modo adequado. A
omissão de certos campos axiológicos ou a modificação da
ordem dos valores, bem como a diferença na intensidade com a
qual vivenciamos um valor e o fato de preferir uma das
possíveis formas de expressão (expressão do corpo próprio, do
querer, do agir, etc), farão resultar outros tipos de pessoas
(Stein, 1998/2005, p.217/191-192).
Esta imersão numa doutrina axiológica, isto é, dos valores, concretamente assumida no
contexto clínico, exige de nós o enfrentamento dessa liberdade, bem como a busca pela
realização pessoal referida por Mahfoud (2012). O caminho que se nos apresenta diante
dos olhos, desde já, é a “retomada das próprias referências experienciais”, uma vez que
assim (em pleno cogito ou em plena luz da consciência), “retoma-se, continuamente, a
construção de nossa própria pessoa e simultaneamente a nossa contribuição à
construção do mundo” (Mahfoud, 2012, p.227).
Todos os estudos e reflexões desdobraram-se de um ponto também retomado por
Safra (2006) ao comentar as contribuições que havia encontrado nos trabalhos de Stein:
Edith era bastante lúcida para a questão de que a antropologia
inerente às diferentes teorias poderia vir a adoecer o ser
humano, questão que tenho observado na situação clínica ao
longo dos anos. Ela alerta para o fato de que cada perspectiva
epistemológica propõe uma concepção antropológica que pode
aviltar o modo de ser humano e, portanto, pode vir a adoecê-lo
em seu ser (p.15).
Na companhia do mesmo autor, perguntávamos: Como conceber uma clínica que
abarque “o modo de ser humano” e o ajude “em seu ser”? Como “ofertar a si mesmo
como morada do Outro” (p.157)? Como permitir “à alma humana acolher aquilo que é
(p.163)”? Entendíamos, juntos, que
Será preciso contemplar a referência do vivido pelo analisando,
que sustenta seu gesto, ao mesmo tempo em que é desejável
compreender qual é o sentido11
que seu gesto abre. Estas são as
duas facetas fundamentais do ponto de vista da clínica. A
experiência nos confirma que quando é possível acompanhar
11“Relembro ao leitor que utilizo o termo significado para tudo aquilo que já foi vivido. Desta forma, o significado do gesto de
alguém é compreendido por referência àquilo que já foi vivido até o momento atual. Ao passo que uso o termo sentido para aquilo
que a pessoa espera ainda viver, ou seja, o posicionar-se em direção ao sonho último” (Safra, 2006, p.123).
43
alguém por estes dois referentes, a pessoa se sente
profundamente compreendida em sua singularidade e como ser
em fluxo (Safra, 2006, p.123).
Tínhamos em mente também as seguintes palavras de Safra (2006): “Todas estas
colocações só tem sentido se compreendermos o trabalho clínico como um caminhar
com o paciente para que ele se aproprie da sua questão originária e possa vir a se
destinar” (p.152). Nas palavras de Mahfoud (2012) isto é colocado como a possibilidade
de acentuar “o caráter teleológico de cada ação, de cada experiência e de cada vivência
de desejo na pessoa” (p.35), uma vez que “tal caráter teleológico, insere cada
experiência pessoal numa relação eu-tu, numa cultura e numa história como condição
para a realização humana do próprio sujeito” (p.35). Para este autor, há uma
desintegração da experiência (e de nós mesmos, consequentemente) se não podemos
“colher a raiz da busca” (p.92). Este trabalho, que a clínica que estamos buscando nos
incita a viver, é “um caminho em contínua construção, a vida toda” (p.96), porque
queremos propor “a possibilidade dessa afirmação de um significado estruturante da
vida em termos correspondentes à nossa própria humanidade” (p.96), à nossa própria
estrutura, diria Stein. E isto, podemos afirmar livremente partindo de nossa própria
experiência, desejamos em todos os momentos.
6.2. Aplicação das análises e fundamentação das práticas:
- Proposta de acompanhamento psicológico: Como a fenomenologia informa uma
clínica em Psicologia do Esporte?
Esta última etapa do trabalho foi pensada e elaborada de modo a contemplar todos
os estudos anteriores. Após explicitarmos as contribuições de Husserl para compreensão
dos elementos essenciais da experiência de dor vivida por atletas que se encontram
afastados da prática e em tratamento, cujos resultados decorreram de dois anos de
44
pesquisa junto ao CNPq, passamos a buscar as contribuições da fenomenologia de Edith
Stein para o estudo, totalizando dois anos de projeto financiado pela FAPESP. O
encaminhamento delineado junto ao pensamento da filósofa voltou-se não mais aos
aspectos essenciais da experiência, mas às possibilidades de apreensão do sujeito que
vive a experiência. Após serem feitas considerações também de cunho
essencial/universal acerca deste sujeito, colocamo-nos frente ao desafio de aplicar as
análises e informar um acompanhamento clínico junto aos atletas.
Os limites de elaboração dessa proposta partindo de entrevistas audiogravadas são
evidentes. Contudo, notamos ao longo do processo de pesquisa que esse podia ser um
esforço muito profícuo (e viável) para conclusão do trabalho, uma vez que as entrevistas
apresentavam um material denso e rico em matéria de descrição da experiência vivida.
Através das leituras e releituras, feitas concomitante aos estudos realizados, começamos
a identificar que a amostra era, de fato, muito variada: seja quanto à faixa etária, sexo,
histórico de lesões, gravidade da lesão, tipos de tratamento recebido, tempo de
afastamento, prognósticos, período do tratamento em que cada atleta se encontrava,
condição socioeconômica; seja quanto aos temperamentos, à força vital e às suas fontes,
aos estados de ânimo dos entrevistados, às formas de enfrentamento, à relação
intersubjetiva estabelecida na entrevista; o que começou a nos convidar, de modo muito
natural e positivo, à pensarmos a situação clínica. A nosso ver, independentemente do
contexto e do público alvo, o que designamos aqui como situação clínica sempre deverá
ser uma condição aberta às diversidades e singularidades de cada pessoa (ao idioma
pessoal nas palavras de Safra).
Após nos debruçarmos sobre as dez entrevistas, identificamos relatos de três
atletas que, abordados aqui concomitantemente, poderiam nos ajudar a explicitar a
importância de se considerar essa singularidade, ou seja, suas características individuais.
45
Esta importância estaria atrelada à preocupação de pensarmos – primeiramente para o
contexto em que estamos situados e, posteriormente, para a Psicologia do Esporte –
estratégias de intervenção eficazes dentro desta perspectiva totalizante que vínhamos
conjugando recorrendo a Stein, Mahfoud e Safra. Como havíamos apresentado já no
projeto, se existem na área muitos estudos que trazem sugestões dos métodos mais
utilizados – visualizações, relaxamentos e autofalas (Scala, 2000) – e mais bem
sucedidos frente à experiência dos atletas, nosso intuito é de dialogar e, possivelmente,
contribuir com essa reflexão presente no seio das pesquisas recentes.
Feitas essas considerações, partiremos apresentando brevemente os atletas que
serão alvo de nossa “clínica fenomenológica”, a começar por seus nomes (fictícios):
Aline, Bruno e João. Aline estava com 20 anos, Bruno com 19 anos e João com 21
anos. Todos os três eram atletas de alto-rendimento e tinham o esporte como profissão –
recebiam por isso. Suas lesões podem ser consideradas graves, sendo que Aline já
estava retornando no 6º mês, enquanto Bruno e João estavam no 8º mês de afastamento.
Aline pareceu muito disponível e animada para a entrevista, demonstrando muita
agitação no momento. Bruno parecia tímido, mas era visível que também estava
disponível. Quanto a João, notava um fechamento que me fazia sentir, nesse primeiro
momento de contato, certa desconfiança da parte dele sobre as razões do meu interesse
em entrevistá-lo. Independente do modo como chegaram para fazer a entrevista, foi
possível estabelecer com todos eles uma “conversa” livre e uma relação intersubjetiva
favorável para o propósito do trabalho.
No início da entrevista, quando perguntados sobre o envolvimento com o esporte
ao longo de suas vidas, João e Aline foram breves com a resposta, enfatizando
praticarem desde pequenos – “desde que eu me entendo por gente” (Aline) – e terem
chamado atenção na escola pelas ótimas habilidades. Bruno foi mais detalhista ao contar
46
sua história, dando referências de pessoas e lugares pelos quais passou até chegar à
equipe atual. Quando feita a pergunta: “Como você viveu essa experiência de
interromper a prática e vir se tratar?”, todos os três pareceram muito mobilizados
afetivamente ao darem suas respostas:
“Ah, foi muito complicado porque eu sempre fui acostumado a treinamento (...) aí
quando vê, no meio do jogo a gente machuca e fica muito tempo parado, é complicado!
Porque a tua rotina praticamente mudou tudo, ficou toda bagunçada. (...) parece que
ficou um vazio na gente...” (Bruno).
O tempo da fala de Bruno nesse momento, mais lenta e pausada, bem como a energia da
voz, menos vigorosa, pareciam-me coerentes com a menção ao vazio que referia ter
começado a sentir. Já Aline, diferentemente, imprimia um ritmo acelerado, bem
pontuado e exclamativo a seu relato:
“No começo eu achei que tinha acabado, que não ia ter como voltar (...) rompeu o
músculo total, como que eu vou correr de novo? (...) Eu pensava nisso! Foi preparar a
minha mente! Eu preparava minha mente! Eu pensava: ‘Quando eu voltar eu vou tá
bem’, se eu pensar positivo agora durante o tratamento eu vou evoluir! Não importa!
Eu vou ganhar! Eu vou conseguir! Vou voltar a correr! (...) porque às vezes pra andar,
era difícil até pra andar! Doía muito pra mim andar... doía muito minha perna. Então
eu pensava: ‘Não! Ta tudo bem! Eu vou melhorar! Eu vou voltar a correr! Isso é só
uma etapa que teve e que aconteceu e agora se eu fizer tudo certinho vai dar tudo certo.
Eu pensava sempre positivo, e eu li na época o livro do Bernardinho, me ajudou muito!
Me ajudou muito mesmo. E eu acho que... foi o que falei mesmo: pensamento positivo
todo tempo”. (Aline).
A segurança de Aline, reafirmada a si própria, contrasta com a intensidade
extrema com que João apresentava sua lesão, colocando-a como um dos piores
momentos de sua vida, algo similar a ser mutilado que se anunciava como um chamado
a desistir do esporte:
“Acho que foi uma das experiências mais ruins da minha vida em relação a... desde os
10 anos eu nunca parei de jogar. O máximo que eu tinha parado de jogar era 15 dias
e... voltava a jogar de novo. E da lesão que aconteceu em setembro, eu torci e desde lá
eu parei. Parei de correr, parei tudo. É uma coisa muito ruim, meio que falta uma parte
da pessoa. Aí... muito... muito... muito ruim mesmo. Pensei em desistir de tudo, desistir
dos estudos, voltar para casa. É... pensei em... parar. Porque é muito ruim, muito ruim
mesmo”. (João)
47
A impressão que eu cheguei a anotar durante a entrevista é que João estava o
tempo todo “engolindo choro”, falando pausadamente por se tratar de algo difícil de ser
comunicado. Aline era visivelmente dinâmica e expressiva em suas falas, respondendo
de modo a dar muitos indícios de envolvimento com esta possibilidade de falar de sua
experiência. Bruno parecia também envolvido, porém de um modo menos sofrido e
mais sereno do que o de João. Assim, a partir das respostas fui retomando algumas falas
que pareciam chamar a um melhor entendimento, tentando perscrutar o sentido com que
eles as estavam dizendo.
Bruno chegou a referir um processo de afastamento “de todo mundo”, relatando
muita tristeza e uma busca por outras ocupações “para não deixar esse lugar vazio”.
João relatou, nesse primeiro momento, ter sido “muito frustrante”, explicitando o
sentido de frustração com a seguinte colocação:
“No sentido de... você querer fazer uma coisa e não poder... de... as pessoas quererem
te ajudar, tipo assim... te levar para um time melhor... para uma coisa melhor e você
não poder responder, porque você responde através do jogo e você tá impossibilitado”.
Tendo relatado estar, antes da lesão, na melhor fase de sua carreira e com alta chance de
chegar à seleção brasileira, João dizia ser “muito triste”, tentando descrever sua tristeza:
“Então. É meu... eu tenho um sonho. A maioria dos atletas tem o sonho de chegar na
seleção brasileira e... eu tava muito próximo. Muito próximo e aconteceu isso comigo.
(silêncio mais longo). É... num dá pra descrever o que eu passei... Não queria que
ninguém passasse por isso. Atleta... eu acho que a pior fase de um atleta é quando ele
tá lesionado, quando ele quer fazer a coisa que ele gosta e não poder fazer... acho
que... é uma coisa muito ruim. E também eu tava longe da minha família...moro longe
da minha família desde os 15 anos e é um fator que pesa bastante... quando você tá
lesionado em relação à família... geralmente quando as pessoas tão lesionadas elas
querem ficar perto da família pra poder ajudar e tal... e eu foi o contrário, eu tive que
ficar afastado porque tinha outros compromissos, faculdade... e foi um fator que pesou
mais ainda. A distância da família... a tristeza... num poder tá com quem a gente
gosta... muitas coisas...”
Quando pedi que me dissesse um pouco mais sobre o que significava esse “que eu não
desejo para ninguém isso”, João me respondeu:
48
“É. Num é uma coisa legal de se desejar para as pessoas... porque é muito ruim. Nossa,
por isso que deve acontecer coisas... as pessoas se desequilibram tal... deve ser por...
por algum desses motivos”. [Como assim?] “Assim, a pessoa se desencanta da vida,
perde a vontade de lutar... deve ser por algum desses motivos... motivos que levam a
pessoa pra baixo. [Esses motivos?] Tipo, você tá quase alcançando uma meta... e você
mesmo entre aspas... (pausa breve) corta mais da metade do caminho... tem que voltar
tudo do começo de novo”.
Ainda tentando aprofundar as respostas de João, com uma pausa de silêncio grande
chegou a me dizer:
“quando você chega ao fundo do poço você tem uma saída... ou você fica lá... até... até
o fim... ou então você volta... é o que eu to fazendo... eu to voltando... aos poucos mas
eu to voltando...” (silêncio)
Sua entrevista foi carregada com este tom de tristeza e com falas muito arrastadas por
essa emotividade.
De modo muito oposto, a entrevista com Aline seguiu com muita empolgação:
“eu tava lá no meu médico lá, ele falou que era pra mim operar a perna... eu falei que
se eu operasse eu não ia voltar mais... ai ele falou, vamos fazer os exames porque
parece que vai ter que operar o músculo. Eu falei: ‘meu Deus! E agora?’ Disse assim:
‘Não, não vai acontecer, não vai acontecer tal... ta tudo certo, é só tratar e ta tudo
certo’. Então foi isso acho que me manteve firme...”
Após ter dito que esta experiência tinha lhe ajudado a amadurecer, questionei o
significado deste amadurecimento e Aline respondeu com a mesma agitação do início:
“tinha um menino na mesma época que eu e eu via a diferença de mim e ele. Ele
tratava totalmente negativo: ‘Ai que bosta! Não melhora mais minha perna! Ta uma
merda!’. E eu falava: ‘Pedro, se você pensar assim não vai melhorar mesmo!’ Ele
falava: ‘Não! Porque eu sou um merda e não sei o que... eu agora não volto mais’, mas
eu quero resultado! Eu pensava: ‘meu Deus eu não posso pensar assim! Se eu quero ser
atleta, eu tenho que jogar tudo isso pro lado positivo!’ E foi o que aconteceu, eu fiquei
seis meses, já perdi as competições mais importante. Pior coisa foi ter visto o
campeonato passar e você não competir sendo que você tinha possibilidade de ficar
entre as três do Brasil. Eu tava muito bem quando eu machuquei! Tava muito bem
fisicamente! Muito bem! Ai depois de tudo isso eu vi, passando três meses, todo mundo
falando: ‘Não! Tem que melhorar! Fazendo tudo certinho!’ E eu seguia a risca tudo
que os fisioterapeutas passavam pra mim e preparar minha cabeça, o livro ajudou
muito também! A minha religião até, porque eu sou evangélica, então eu me fortalecia
com Deus e acreditava que tudo ia dar certo! Então tudo que era negativo eu pensava:
‘Olha o negativo!’ Eu não queria saber das coisas negativas e sim de positivas! Eu não
queria saber das coisas negativas! ‘Mais pra frente você vai ta bem!’ Eu olhava além
daquela lesão, tava olhando já para as competições! Me ajudou muito!”
49
Dando continuidade às entrevistas, podemos começar a reconhecer como vai
ficando cada vez mais nítido as formas de enfrentamento assumidas por Bruno, João e
Aline.
Bruno começa relatando o sacrifício exigido no tratamento (algo que, de modo
mais ou menos explícito, aparece no relato de todos os entrevistados):
“toda a fase de fisioterapia foi muito difícil. Porque você vê que está melhorando, você
vê a sua evolução, mas mesmo assim você num pode ainda voltar a jogar. Porque se
você voltar a jogar talvez pode acontecer uma nova lesão... e você tem que ter
paciência. Paciência sempre... e cuidar.”
Quando lhe peço para me contar melhor sobre como tinha vivido essa paciência, Bruno
respondeu-me:
“Paciência. A primeira coisa é paciência e força de vontade pra voltar a jogar. Porque
não é uma coisa simples... a recuperação é muito tempo, de seis a oito meses... que é
muita coisa. Mais de meio ano de uma vida, vamo falar assim! Que você tem que só tá
voltado pra uma coisa que é a recuperação. Se você não tiver a capacidade de colocar
na sua cabeça que você tem que cuidar pra melhorar, você vai ta com um joelho mais
ou menos que a qualquer hora você pode machucar de novo. Então, desde o começo do
trabalho de fisioterapia, a primeira corrida que você tem que fazer, o primeiro pulo, o
primeiro salto, você tem que ter todo cuidado e confiança. Você sempre tem que ter
confiança do que você ta fazendo. Porque se não tiver confiança no primeiro salto, na
primeira corrida, você ta perdido. Você tem que ter confiança pra levar, pra ter a
recuperação total. [Confiança?] É. Porque tudo que você vai fazer é passo a passo...”
Após detalhar em falas muito claras como foi sua rotina de recuperação, Bruno
chegou a dizer que pensou muitas vezes que não aguentaria e que viveu esses momentos
apoiando-se na confiança, algo que sempre foi seu, tendo buscado um sentido para sua
experiência:
“Ah! Eu sempre fui uma pessoa muito confiante, sempre muito tranquilo em relação a
isso. Eu pensava essas coisas, mas ao mesmo tempo que eu refletia sobre isso, eu
falava: ‘Não! Isso aqui ta acontecendo comigo por algum motivo. Se ta acontecendo
comigo, eu vou lutar, vou ter perseverança que eu vou sair dessa. Porque não vai ser
uma lesão que vai me deixar triste, que vai me deixar abatido, porque... não! Isso
aconteceu comigo, aconteceu. Agora é trabalhar, é fazer fisioterapia, é tratar, é cuidar,
que eu vou daqui um tempo, 6? 8 meses? 10 meses? Num sei. Mas eu vou pegar e vou
voltar. Era só isso que eu pensava, que eu queria voltar”
50
À medida que fui perguntando sobre algumas colocações a fim de tentar
esclarecê-las, Bruno me relatou partes do caminho traçado e sua experiência neste final
do tratamento, além de me falar de suas expectativas com o retorno. Em dado momento,
tendo entendido errado uma de minhas perguntas, chegou a me dizer como tinha sido
fazer a entrevista, sendo que eu continuo a lhe perguntar com mais detalhes para
entendê-lo:
“É, não, foi bastante... assim... eu nunca pensei que eu fosse reviver tudo, toda minha
história da lesão a partir de agora, com as suas perguntas. Eu fui lembrando de umas
lembranças que eu nem pensei que ia lembrar! Mas foi lega! Querendo ou não foi, foi
um momento triste da minha vida, mas foi legal reviver, foi legal lembrar! Mas não
quero voltar a passar isso que eu passei não! Porque não é nada fácil. [se pudesse falar
uma imagem desse período que você ficou afastado, uma imagem mais forte, uma
palavra que fica pra você da sua experiência mesma] Dor. Dor. Porque dói, sofre. Dói a
hora que você machuca, dói na cirurgia, dói na fisioterapia, dói na primeira corrida.
Tudo é uma dor. Você sofre pra voltar. Não é fácil voltar, você passa tudo pra voltar a
jogar. Uma palavra é dor. [o que é esse “você sofre”?] Ah porque só quem machuca,
quem sofreu uma cirurgia sabe o tanto que é difícil, você passar por uma cirurgia, você
não conseguir andar depois dela, chegar a ficar na cama. Depois começar uma
fisioterapia, começar a dar os primeiros passos, começar a dobrar uma perna. E tudo
isso que eu to falando envolve dor, envolve sofrimento, envolve força de vontade,
persistência. Porque se não tiver persistência, força de vontade, você vai ficar nessa:
“Vou num vou... será que vai dar certo? Será que eu vou conseguir? Será que eu vou
machucar de novo?. Mas não! Tem que ter perseverança, tem que ter vontade pra se
recuperar e pra se recuperar você vai sentir dor. Num tem uma outra forma, a não ser
sentir dor. Você vai sofrer, você vai sentir dor, mas, por outro lado, você vai ter uma
coisa em troca. No final de tudo isso você vai ta bem, você vai ta pronto pra jogar, você
vai voltar com os seus companheiros e vai poder se divertir. Eu sempre gostei muito de
jogar e é isso que eu quero pra mim. (...)Uma pessoa que desiste não luta pelos seus
sonhos. Então é lutar, é continuar, vida pra frente, bola pra frente, até... até sei-lá
quando. Desafios todo mundo tem, sempre alguém vai ta do seu lado te ajudando, mas
se você não for você mesmo e não lutar pelo que você quer, você não vai ser nada.
[O que é esse “ser você mesmo” para o Bruno?] Ser o que eu sou? Porque você tem que
viver a sua vida, porque se você depender de outra pessoa pra viver sua vida você não
vai ser nada. Você vai ta vivendo num mundo que não é seu. Você tem que fazer sua
vida, você tem que fazer sua história, fazer seus caminhos, pra você ser alguém na vida.
Porque senão você vai ser só mais um, e ninguém vai lembrar de você. Você não vai ter
amigos, não vai ter um trabalho, você não vai ter um objetivo.”
É interessante observar que, ao fim da entrevista, após ter agradecido e
perguntado se ele queria falar mais alguma coisa, Bruno me disse com aparente
contentamento: “Acho que eu nunca falei tanto na minha vida igual eu falei hoje”.
51
Quanto à entrevista de João, continuei a tentar entender os sentimentos que me
descrevia com comoção. Os pensamentos de desistência foram relatados muitas vezes,
atrelados em suas falas a essa modificação severa de sua rotina e, consequentemente, de
si mesmo:
“eu tava numa situação muito, muito ruim. Perdi peso, perdi muito peso. Perdi acho
que 7 quilos de massa muscular e dali eu só ia pra pior, eu ia piorar, ia parar de jogar,
ia parar de estudar, e isso não é legal. Eu tenho uma meta de vida, eu tenho que no
mínimo tentar cumprir ela. É por isso que, eu me acostumei com o fato de já estar ruim
e ter que melhorar, de um jeito ou de outro tinha que melhorar. É o que eu to fazendo.”
Continuando a tentar aprofundar suas respostas, João seguiu relatando com baixo tom
de voz sua própria experiência, fazendo-me apreender, também por outros sinais, se
tratar de uma experiência de intensa tristeza:
“To melhorando. Antes eu não podia dobrar o joelho e agora eu já dobro, eu não podia
correr, eu to correndo, eu não ia pra academia e agora eu to indo pra academia... mas
nesse sentido de... melhorar fisicamente e espiritualmente to bem melhor... [Como é
esse “melhorar espiritualmente” assim?] É... dizem que o seu pensamento se reflete no
seu corpo... que os pensamentos positivos ou negativos se refletem no seu corpo... isso
eu acho que é bem verdade porque aconteceu comigo... Tipo... passa o filme da sua
vida toda... do que você fez na sua vida toda (...) Nada podia te impedir e na outra hora
você ta ali parado, que mal pode andar... mal pode se mexer direito... tem que depender
dos outros... isso... isso não é legal... (silêncio) isso não é legal (silêncio) mas ta
melhorando. (silencio) ai... (silencio mais longo) eu tinha vários pensamentos ruins,
tipo... eu mal conversava com as pessoas... ficava... ficava mais comigo mesmo... mais
sozinho e... é muito ruim... porque quando você fica sozinho... você começa a pensar
besteira... querendo ou não. Você começa a pensar besteira... e daí... você pensa
besteira que se reflete em besteira... (silencio breve) então decidi mudar... decidi...
passei a conversar um pouco com as pessoas... conversar um pouco... e... se divertir...
pra poder ter pensamentos bons... refletir em coisas boas pro futuro. E é isso que ta
acontecendo hoje... pensamentos bons... coisas boas estão vindo... pouco a pouco, mas
estão vindo... [Como foi esse “passou um filme na cabeça”?] É... eu não sei quanto
tempo leva pra torcer o joelho, num segundo ele sai e volta pro lugar... mas... mas
quando começou a torção... parou... parou tudo e passou um filme tipo... jogando desde
os dez... correndo desde os dez anos... pulando... fazendo a mesma coisa... repetindo
sempre o... sempre o mesmo ato e... nesse mesmo tempo que eu pensei isso... eu pensei
tá impossibilitado. Impossibilitado de fazer tudo isso... meio que... é aí que eu falo que é
uma parte... uma parte da pessoa falta... que você tava sempre fazendo aquilo e a partir
daquele momento você num vai mais poder fazer aquilo por um bom tempo... isso é
muito ruim... isso é o filme que passa... (silencio breve)”.
Pedi então para João me falar mais sobre o que era esse ficar sozinho, algo que
aceitou tentar responder naquele momento e que, a meu ver, parecia solicitador,
colocava-o num movimento de se fazer compreender:
52
“Em relação a ficar sozinho eu sempre fui bem na minha, bem fechado. Eu converso
muito com minha família. Pessoas de fora eu costumo ficar calado. É... e isso por um
lado é bom, por um lado prejudica. Porque quando você tem coisas boas você... você
vai e fala e é tranquilo. Coisas ruins nem... muitas pessoas não estão preparadas pra
escutar coisas ruins... muitas pessoas não sabem como responder a coisas ruins... então
eu ficava muito tempo calado... e eu não gosto de falar coisas ruins pra minha família...
porque... querendo ou não eles vão me ajudar... mas... querendo ou não eles vão ficar
mais triste ainda. Porque eu to triste e eles não vão poder fazer nada... e eu ficava
muito na minha... ficava muito calado. E isso é ruim... mas é o jeito que eu sou, o jeito
que eu escolhi pra tratar a dor do problema que eu tava vivendo... [Como assim pra
tratar?] Tipo... eu... num sei... devem ter pessoas que ficam na mesma situação que a
minha e... que vão pra... pra casa de amigo... que vão pra festa... que vão pra
shopping... que vai fazer ‘n’ coisas... que foi diferente do que eu fiz. Eu ficava em casa
estudando, em casa estudando, em casa estudando... a única coisa que eu fazia... só.
Não me comunicava muito... é bom e é ruim. Acho que pra mim foi bom (fala mais
baixo).”
Sua entrevista foi extensa, com muitas pausas de silêncio alternadas a falas longas em
que ia se colocando, aparentemente com muita sinceridade. João dava indícios de
realmente estar pensando no que eu lhe perguntava e respondia com o que ia
conseguindo pensar naquele momento, uma vez que eu reconhecia certo esforço a partir
da mobilização que as perguntas iam lhe suscitando. Ao falar das companhias, ele
apresentou uma fala mais ambígua, não querendo entrar em muitos detalhes apesar de
ter tentado se fazer claro:
“[O que foi esse “ruim pra mim”?] De ficar calado e ter que se superar sozinho. [Como
assim?] De não poder... não poder pedir ajuda pra muitas pessoas... de ter que se virar
sempre sozinho... é uma... é ruim porque você não pode ter quem... pedir ajuda. Quem
pedir ajuda pra uma pessoa e ela te ajudar. Você vai fazer tudo sozinho por sua conta.
É ruim nesse sentido... você não tem muitas pessoas pra te apoiar, ao teu lado. Por
mais que você esteja... que você esteja num time... nem todas as pessoas estão nas horas
ruins, são poucas as pessoas que estão nas horas ruins... muito poucas... [Como você
viveu, assim, para o João] Como eu vivi? [É.] (silencio intenso) Uma das batalhas mais
difíceis da minha vida... que eu... considero vencida já. Falta só mais um pouco pra ta
vencida. (silencio breve) mais difícil que sair de casa, mais difícil que morar sozinho,
mais difícil que não ter amigos, mais difícil que tudo... (silencio) mais difícil que tudo.
Porque eu lutei contra eu mesmo. [Como assim? Pode falar mais?] Você lutar pra sair
de casa... você vai e meio que desapego... você vai, você tem sua casa... tudo
bonitinho... comida, cama, tudo perfeito... e você vai se desapegar daquilo... é mais
fácil... é uma coisa que não pertence a você que você vai desapegar. Amigos... você tem
poucos... muito poucos... e são do mesmo jeito da casa... você vai desapegando um dos
outros... quando você vai ver você já ta separado, nem percebe... e... a lesão não. A
lesão é sua. Foi você quem... foi você que proporcionou aquilo... querendo ou não eu
tava jogando e eu... tava exposto à lesão... e ela é minha e só quem pode tratar ela sou
53
eu. Não tem como eu me desapegar dela. Ou eu venço a mim mesmo, aquela situação
ou eu... então eu fico preso àquela situação pra sempre. Não tem como se desapegar...
[Como é esse preso... ou vence ou fica preso... como assim?] É... em relação à... vamo
supor... você tem um sonho... você sempre jogou... e você pode deixar se vencer pela
lesão e nunca mais jogar... nunca mais fazer aquilo que você gosta... ou então você
pode dar a volta por cima e voltar a jogar... mesmo que você num volte a jogar como
era antes... mas você volte a jogar, a fazer aquilo que você gosta. Ou você se prende a
ela... deixando ela te privar de muitas coisas... ou você a vence... fazendo o que você
gosta.”
Além de ter começado a falar das dificuldades que teve em se relacionar com alguns
companheiros de equipe, João deixou transparecer de modo evidente uma raiva e uma
culpa frente ao que lhe aconteceu, algo que em suas palavras julga como “imperdoável”
e que chama minha atenção pelo “peso” com que dizia:
“É... (silencio) tipo... o que eu falei... você ta acostumado a fazer a coisa... de todo jeito
fazer a mesma coisa... de vários jeitos diferentes executar a mesma coisa... e um dia
você vai executar aquilo e você erra... é... quase que... é quase que... imperdoável pra
você mesmo errar aquilo que você fazia há dez anos... errar aquilo que você aprendeu
de todos os jeitos... você vai e erra. Erra do jeito mais grosseiro de todos, do jeito que
você se lesiona. Essa é uma coisa muito ruim... que você passa por um tempo a ter
raiva de você mesmo por ter feito aquilo com você. [Como assim... imperdoável?] No
sentido de ter errado. (silêncio) [Como foi essa experiência de...] (silêncio longo). É...
eu não gosto de errar, ninguém gosta de errar. É... muito frustrante... palavra:
frustrante. Você errou o que você fazia desde o início da sua vida. Frustrante. Que
também com o tempo você aprende a conviver com aquilo. Um dia, por mais que você
esteja lá em cima você vai errar e vai ter que voltar tudo do início... foi assim que eu
vi... foi assim que eu decidi voltar a lutar (silêncio).”
A entrevista permaneceu nesta intensidade de afeto, evidenciando o fato de estarmos
falando de assuntos de grande importância na sua experiência presente. Parecia-me que
João não tinha tido em nenhum momento essa possibilidade de falar sobre o que estava
vivendo. Segui tentando compreender novamente o que foi esse enfrentamento
“sozinho” e o que ele estava chamando de “luta interior”:
“Sozinho superar?... (silêncio breve) é... no que diz respeito a... lutar interiormente...
que por mais que você queira os outros não vão conseguir lutar contra o seu interior...
e por mais que os outros falem: ‘melhora!’ Fala o que for. Não importa, eu vou... é
você contra você. Você contra a sua... contra a sua fé.... você contra a sua vontade...
você contra a sua... contra a sua... assim... autoestima... você contra... contra os seus
desejos. Só você. A luta é sua. A maior parte do tempo é toda sua.”
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Apenas no momento final da entrevista, quando lhe pergunto acerca das
expectativas, sinto que João aparentou um pouco mais de ânimo frente ao que estava
vivenciando, tendo feito referência à experiência que poderá passar às demais pessoas
acerca do lhe aconteceu. Desse modo, quando lhe perguntei o que estava chamando de
“vencer”, João me respondeu com um tom de voz mais firme e imponente se
compararmos ao restante da entrevista:
“Dar a volta por cima! Em todos os sentidos. É... (silêncio) você ta impossibilitado de
fazer alguma coisa e você lutar... lutar pra fazer a coisa. Você... você lutar pra
aprender algo novo... você... lutar pra admitir que você era incapaz mas que você pode
ser capaz.”
Após o término da entrevista, João me perguntou se podia ficar com uma cópia
da gravação da entrevista, sendo que lhe respondi “sim” , perguntar as razões talvez
porque já pensava ser um direito seu. Porém, isto me chamou atenção, tinha tido a
impressão que havia sido de fato um momento significativo para ele e este pedido, na
forma como foi feito, parecia confirmar minha percepção.
No caso de Aline, a experiência presente pareceu ter lhe provocado a assumir
uma postura de enfrentamento muito diversa se comparada à de João. Durante a
entrevista, relatou que viveu um susto ao começar a retornar para prática, o que parece
ter abalado momentaneamente sua certeza na recuperação:
“até que eu tava fazendo salto... chegou uma hora que eu bati minha perna assim... pra
pular... embolou tudo... de novo. Daí eu comecei a chorar... eu sentia aquilo muito
forte... daí eu fui conversar com minha fisioterapeuta desesperada... ela falou: ‘Não, é
só uma fase’, ‘Não! Pelo amor de Deus! O quê que aconteceu ai?’ Daí ela falou que
era normal, daí eu fui, fiz um novo tratamento pra perna até fortalecer totalmente. Mas
foi muito disciplina assim, foi disciplina mesmo. Acho que foi fundamental pra mim,
tanto minha alimentação, no dormir, no fazer todos os exercícios que a fisioterapeuta
passa, eu passei em casa. Então foi a disciplina, eu aprendi muito em relação... todo
atleta que liga sucesso de tudo pra você conseguir alguma coisa na vida é a disciplina,
se você for disciplinado, você vai... vai voar longe!”
Aline relatou em muitos momentos ter recebido apoio e ter utilizado diferentes
estratégias para conseguir aderir às exigências do momento, como lembrar do filme que
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havia visto: “Poder Além da Vida”, que conta a história de um atleta em quem, segundo
relatou, teria se inspirado muito. Frente ao medo que começava a sentir com a
possibilidade de retorno e de competir, Aline conta que dizia a si mesma:
“Vamo lá! Atá você enfrentar... porque eu vi que eu tinha perdido cinco meses... pra
mim competir... eu tinha que respeitar meu limite... ia ser muito assim técnica... ia ser
muito mente mesmo... mentalizar pra fazer certo... vou me concentrar!”
A atleta também relatou momentos de dúvidas e questionamentos, parecendo indicar
um movimento de reconhecimento frente a tudo que o esporte havia lhe proporcionado
e ao que desejava como projeto de vida naquele momento:
“Eu não sei... eu via tudo aquilo... eu via que tudo tinha passado... e o quê que acontece
comigo... se eu não... se eu não pensar em competir... se eu não pensar em ta... em ta
entre elas... assim... que eu via que eu tinha possibilidade...(...) assim, até esse ano e
mais o ano que vem... se isso não acontecer assim em dois anos... eu pretendo parar...
porque eu tenho minha vida particular... minha vida profissional que eu quero... eu
quero ter uma carreira profissional brilhante também... não só no esporte... mas minha
vida profissional... hoje assim... com o esporte eu percebi que ele não é tudo... pode
ser.... hoje na minha vida gira de algo principal... mas que me proporcionou a ter uma
mente mais forte... a ser... a ter um caráter mais forte mesmo... uma personalidade mais
forte pra conseguir as minhas outras coisas... minha carreira fora do esporte... a
profissional... de querer ir atrás... e não se conformar com o não... ir atrás de tudo
isso”.
Acerca de suas expectativas, dá ênfase ao que relatou ter aprendido com a lesão:
“Ah! Hoje eu to bem comigo mesma, porque quando você começa, quando você tem
algo bem focado, assim, até na sua vida... eu no atletismo, hoje meu objetivo, minha
meta pra esse ano, é ficar com o troféu Brasil, é ser campeã brasileira, é chegar na
final. Vai ser um desafio porque eu não treinei a prova, mas tenho um bom resultado...
pra correr, pra treinar pra prova! Não sei! Eu ta pensando, eu ta treinando, eu ta
passando por cima de muita dificuldade, mas pensando lá na frente. Eu to bem hoje
comigo mesma, eu to com aquele objetivo focado, passando pelas montanhas que tão
no caminho, pelos obstáculos, mas pensando lá na frente, que vai dar tudo certo, eu to
bem comigo mesma. Assim... quando você ta bem focada, você não é frustrada... hoje
eu não sou frustrada mais... nada pode me frustrar (...) quando você escolhe uma coisa,
tem algo bem focado, tem essa meta, tipo, essa meta ta focada, ta determinada, acho
que num tem, eu penso só em dar certo, assim, em fazer todo o possível pra que dê certo
também. Não é só em dar certo e não fazer o possível, porque a vida não é fácil, acho
que pra ninguém, nem no esporte, não é fácil... então você tem que ter assim... algo bem
focado mesmo. (...) Ah eu faço tudo o possível... eu acho que eu atraio as coisas a
darem certo, assim se eu to querendo correr bem hoje, vou treinar bastante para aquela
prova, vou fazer mais tiros pela cidade, vou assim, melhorar minha alimentação! Vou
preparar mais minha cabeça! Vou acordar mais cedo pra fazer aquilo dar certo, não
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sei! Eu vejo todas as possibilidades estão ai na nossa frente! A gente agarra! Escolhe
as que vão te favorecer. É o que eu faço na minha vida.”
Após situarmos as entrevistas, devemos novamente salientar o fato de se
tratarem de relatos pontuais colhidos em um único contato que não guarda, obviamente,
o mesmo objetivo que aquele de um acompanhamento psicológico. Ainda assim, a
tentativa de traduzir do modo mais fidedigno possível a situação deste encontro com os
entrevistados, pode nos ser de grande valia para reconhecer como poderia ser a investida
clínica para intervenção em cada um dos três casos apresentados. Como visto, são
pessoas que viveram a mesma experiência de modos muito diferentes, ainda que com
semelhanças – estas correspondem precisamente às essências que conseguimos
identificar nas primeiras pesquisas junto à fenomenologia husserliana.
Assim, depois do trabalho realizado nestes anos, como psicólogos orientados
pela fenomenologia, podemos antecipar em nosso horizonte os elementos essenciais
identificados nas análises pensando seu papel na situação clínica. Tal antecipação,
contudo, não é nem um crivo analítico e nem uma substituição conceitual ou técnica da
experiência, mas uma pré-compreensão vazia acerca da condição vivida. É essa pré-
compreensão vazia, ciente de que só a experiência singular do sujeito pode preenchê-la,
que se disponibiliza como abertura atenta para a irrupção das vivências e para a
compreensão da individualidade expressa por cada atleta lesionado. É essa
individualidade, ou singularidade, que aparece determinando o modo único com que tais
vivências afetam a experiência de cada atleta nessa condição. Com as categorias
encontradas podemos brevemente indicá-los a título de exemplo: Aspectos essenciais do
esporte (competitividade, performance, escores, etc); Relações interpessoais (que
podem ser de apoio ou mesmo de prejuízo para a experiência presente – adversário,
companheiro de equipe para quem é possível perder a vaga de titular, etc); Aspectos
circunstanciais (prognóstico, calendário de competições, condições oferecidas para o
57
tratamento, etc); Relação objetiva com o corpo (percepção de dor, inchaço,
incapacidade, medo, etc); Tristeza; Modificação existencial (mudanças na rotina e
atividades exigidas no tratamento); e A lesão como aprendizado (aproveitamento da
experiência presente em termos de amadurecimento pessoal e profissional).
Também podemos buscar jogar luz sobre o núcleo central, perguntando-nos
como essa vontade impedida pela adversidade corporal se desdobra em cada caso
concreto. Para além de uma percepção a priori, essas antecipações podem contribuir
para que o profissional tenha mais presente a complexidade do momento e assuma uma
postura de curiosidade, disponibilidade e atenção com toda a experiência e com os
fatores que ela coloca em jogo.
Em um segundo momento, é possível passarmos ao reconhecimento de que,
mesmo na situação pontual das entrevistas, existem indícios de possibilidade de
acontecer o que Mahfoud (2012) afirma na seguinte colocação:
A companhia humana profissional pode chegar a se constituir
numa referência experiencial à qual a pessoa pode voltar para
retomar seu próprio percurso de elaboração da experiência,
desde sua originalidade. Pode acontecer também que um
relacionamento significativo se mantenha como companhia
estimuladora de posicionamentos autênticos muito além do
relacionamento concreto (p.129).
Já no fato de João ter pedido a gravação está implícita essa referência a qual ele poderá
voltar. Quase como uma metáfora, podemos pensar que o desejo de levar consigo
aquela gravação expressa um querer cuidar do que havia nascido naquele encontro, isto
é, guardar um canal que lhe haviam aberto para escutar “a si mesmo” e reconhecer um
percurso próprio para o qual ele ainda não tinha se voltado dessa forma.
Este movimento de olhar para a própria experiência na companhia de um outro,
possibilitada pelo situação da entrevista, foi visivelmente carregado de novidade para os
atletas (isto se pode notar pela empolgação de Aline, pelo comentário final de Bruno ou
pelo pedido para levar a cópia da gravação da entrevista, feito por João).
58
Safra (2006), aludindo aos escritos de Bakthin (1979), irá dizer que diante do
“sofrimento há um anseio de devir e, desta forma, temos a que nos vincular para que um
percurso se instaure” (p.100). As brechas para responder ao desafio de nos atermos a
este anseio é algo que vai aparecendo ao longo das entrevistas de diversos modos: seja
na incerteza desconcertante e real em relação ao futuro, seja na tentativa persistente de
confiar que tudo daria certo, seja na experiência radical de se ver no fundo do poço.
Entendemos que as entrevistas não deixaram de testemunhar o que nos diz Safra (2006):
“Quando a possibilidade de a pessoa destinar-se fica comprometida, o devir humano se
paralisa e surge uma forma de adoecimento. (...) O sentido é algo absolutamente
singular a cada um de nós. Em suma, o sentido é essa possibilidade que o ser humano
tem de poder destinar algo” (p.81). A meta tão falada por João, o objetivo tão
perseguido por Bruno e o olhar lá na frente de Aline! Não são estes verdadeiros anseios
e pedidos?
Nesse sentido, a situação clínica viria como um início de resposta, uma vez que
concordando com as palavras de Safra (2006): “Apenas o olhar do Outro nos oferta,
esteticamente, a integridade e a totalidade de nós mesmos, pois a visão que temos de
nós mesmos é sempre experiencial e em fluxo” (p.101). Mahfoud (2012), defendendo o
mesmo “olhar”, dirá com outras palavras e já em convergência com Stein:
Nossa energia vital é de gente que se relaciona. Para a energia
vital se atuar de maneira articulada, ela precisa emergir no
relacionamento. Sem relacionamento, a energia vital se
dispersa. Imaginem quantas reações nós temos em cada
segundo, devido a sons, clima, expectativas, ressonâncias
psicológicas... A energia vital toma uma direção num
relacionamento; sem um relacionamento a nossa energia vital se
fragmentaria, estaria numa dispersão tal que não teríamos
condição de permanecer vivos (p.217).
É a possibilidade de saída do poço! É a energia vital de João, dolorida e intensa, diante
de cada pergunta que lhe era feita! A energia que fez Bruno falar tanto de si como nunca
59
havia feito antes! A energia que se podia constatar no gosto de Aline ao falar de sua
experiência! Da mudança de seu caráter! De sua fé!
A nosso ver essa potencialidade do encontro seria alargada no acompanhamento
clínico e pode ser pensada através de outros tipos de perguntas, respostas e
posicionamentos do profissional – se compararmos à postura que precisei assumir como
entrevistadora.
Para tanto, podemos partir de um reconhecimento vivo que os relatos que
acabamos de acessar12
não nos deixam duvidar: “No padecimento, tanto psíquico quanto
físico, desvelam-se para a pessoa algumas das questões fundamentais da existência
humana” (Safra, 2008, p.198). Bruno, Aline e João estão diante de uma dor física e
psíquica, como tentou me fazer entender Bruno: “tudo dói, você sofre”. É certo que
essa experiência lança-os a um “percurso pessoal e na realização do sentido de si
mesmo” (p.198). A leitura de um livro, a identificação com um filme, o reconhecimento
de fontes de força que foram se mostrando decisivos para se manter firme! A sensação
de vazio e a busca por preenchê-lo! A tristeza de ver os companheiros e a escolha de
afastar-se de todos! A busca pelo sentido do que lhe estava acontecendo! A descoberta
do valor da paciência e da necessidade de caminhar passo a passo! O desencanto com a
própria vida! A perda do gosto de estudar, de se alimentar e a insônia! As decepções
com os companheiros e o amor pela família! Toda esta vida acontecendo e emergindo
concomitante ao padecimento.
Entende-se que esta busca, descrita por Mahfoud (2012) partindo da Experiência
Elementar, instaura uma dinâmica de enfrentamento ativa perante um sofrimento que
não só nasce pela impossibilidade de “praticar”, mas por um impedimento de viver
como sempre foi a vida toda, na forma como aprenderam a colher a si mesmos no dia-a-
12 O fato de citarmos quase integralmente as falas vem ao encontro dessa necessidade de dar voz aos nossos sujeitos, o máximo
possível, para podermos acompanhar a experiência, antes de tudo, através de seus próprios “idiomas”.
60
dia. Conseguimos notar que a consequência, isto é, a ressonância dessa ruptura não é
algo próximo do que para um atleta poderia parecer “sedentarismo”, mas um vazio, uma
parte da pessoa que falta. É o horizonte dramático que Lurie (2006) nos ajudava a
identificar em sua ontologia: a lesão para um atleta não pode ser comparada à lesão que
vive uma pessoa qualquer. Como insistia João: “tenho uma meta de vida, eu tenho que
no mínimo tentar cumprir ela. É por isso que, eu me acostumei com o fato de já estar
ruim e ter que melhorar, de um jeito ou de outro tinha que melhorar. É o que eu to
fazendo.” Isto porque, não cuidar dessa meta é como não cuidar dessa parte que está
faltando. Reconhecer essa realidade dos atletas é a via para também começarmos a
destacar o que chamamos aqui de idioma pessoal, porque ser atleta, estar no esporte,
como Lurie (2006) nos ajuda a pensar, é um modo de ser, uma identidade.
Também podemos reconhecer nestas questões os “entrelaçamentos de sentidos”
que compõe “o mundo psíquico e sua corporeidade”, identificando um “corpo humano
[que] alcança este estatuto na presença de alguém. Ele não é simplesmente um feixe de
funções metabólicas: carrega sentidos” (Safra, 2008, p.199). Isto pode nos ajudar a
compreender que uma clínica para Aline, João e Bruno, implica reconhecer que “o rosto
do outro permite que a dor vivida possa ser inserida em uma história, portanto, torna-a
passível de ser narrada. A dor testemunhada na história pessoal encarna-se como
experiência de dignidade! (p.199)”. Assim, a proposta de olhar para a singularidade
coincide com esta procura pela historicidade na qual a experiência vai se
circunscrevendo, ganhando lugar – diria Safra, ainda que não houvesse sido dada a
devida atenção para esta dimensão. Buscar entender essa história junto com cada um
deles, dentro de uma postura genuína de curiosidade, já é uma faceta da clínica que
entendemos como crucial no percurso. Também porque não se pode prescindir dela para
61
acessar esse idioma pessoal de que tanto estamos falando, porque o modo de ser da
pessoa está, como vimos, nesse caminho passado e também em seus anseios futuros.
Esta historicidade aparece em diferentes momentos das entrevistas. Quando os
atletas nos contam sua trajetória dentro do esporte, quando lembram na minha presença
o momento em que se lesionaram, os medos, a confiança, a necessidade de apoio.
Parece ir ganhando corpo uma historicidade já abafada: “eu nunca pensei que eu fosse
reviver tudo, toda minha história da lesão a partir de agora, com as suas perguntas. Eu
fui lembrando de umas lembranças que eu nem pensei que ia lembrar! Mas foi legal!
Querendo ou não foi, foi um momento triste da minha vida, mas foi legal reviver, foi
legal lembrar!” nos dizia Bruno com muita cordialidade. Este pequeno movimento de
reconhecimento dessa historicidade já nos aparece muito ilustrativo da potência que
essa dimensão, trabalhada na situação clínica, pode ir oferecendo à pessoa que está em
sofrimento. Reconhecer-se capaz de reviver uma experiência triste mostra-se
surpreendente! Como se, o fato de que “não é nada fácil”, justificasse que algo assim
não possa fazer parte dessa história que delineia o rosto da pessoa que a viveu. Dor ou
alegria, mas é possível surpreender-se com o fato de que ela faz parte dos contornos do
nosso rosto, a ponto de eu desejar que sirva de exemplo a outros, como finalizou a
entrevista João: “Eu vou poder chegar um dia pra pessoa e falar assim... ser um dia a
pessoa que vai incentivar o outro... poder falar pra pessoa: você pode vencer! Você
pode! Você pode voltar a jogar. A pessoa vai olhar pra mim: ‘Mas por que você tá
falando isso?’ Porque eu já vivi e eu já voltei a jogar... eu vou ter meio que... um ponto
a mais no currículo. Que eu venci. Não que eu fracassei.” Entender que é possível, na
dor e no sofrimento, destinar-se! Segundo Safra (2004),
todas as experiências que produzem uma fratura no ethos fazem
com que a pessoa fique lançada a uma situação sem
comunicação, sem a presença do Outro. Quando essas situações
podem ser alcançadas pelo trabalho clínico, encontram registro
do Outro e passam a estar subordinadas à criatividade da
62
pessoa. O que a originou pode vir a ser destinado. Pode fazer
parte do seu estilo de ser ou parte da sua vocação na
comunidade humana. Ela sabe da solidão na condição humana
(pp. 131-132).
Nossa proposta vem dar concretude, portanto, à constatação de que “frente ao
sofrimento decorrente da experiência de vida a interlocução solidária outorga face
humana ao padecimento, isso possibilita o atravessamento da experiência em direção ao
porvir” (p.202). Isto significa que buscamos favorecer aos atletas essa experiência de se
destinarem, acolhermos suas questões assim como aparecem diante da realidade, sem
precisar nos fecharmos a essa “abertura ontológica” (Safra, 2006), “estrutural e mais
originária em nós” (Mahfoud, 2012). Pois “sem sermos acolhidos no mundo humano
não podemos nos tornar nós mesmos” (p.217). É desse modo que o relacionamento
conosco poderá se tornar “um fator que dá condições” de esses atletas “responderem à
situação difícil”, “poderem compartilhar o significado”, uma vez que “é isso que dá
possibilidade” para eles começarem a se colocar” e tomarem uma “posição pessoal”
(Mahfoud, 2012, p.107).
Frente a essa tomada de posição pessoal, consideramos outra vez a definição de
experiência de Mahfoud, impondo-nos a necessidade de um juízo para que se torne de
fato constitutiva da minha pessoa. Para este juízo, Safra (2006; 2008) nos conduzirá
rumo ao ethos humano, à nossa condição mais originária perante a existência, tomando-
o como o lugar em que vivemos essa condição e onde podemos encontrar uma
“comunidade de destino”.
Este mesmo autor irá afirmar: “a memória do humano cura o ethos!” (2008,
p.204), ou seja, a retomada do coração, da Experiência Elementar diria Mahfoud (2012),
desse centro de onde emana a nossa humanidade e a nossa singularidade: “que é ao
mesmo tempo um núcleo pessoal – identitário – e uma marca interior, o que caracteriza
todo ser humano” (p.39). Quando podemos habitar de novo esse lugar, ambos os autores
63
nos diriam da experiência de surpresa diante de si! “O primeiro ponto é o
maravilhamento que a pessoa vivencia quando se dá conta de que as exigências radicais
são expressões do próprio ser” (p.75). Pois, “por mais inadequadas que as circunstâncias
estejam, havendo a percepção do eu, haverá um maravilhamento” (p.79).
Entende-se que nesta possibilidade de juízo sobre a própria experiência,
favorecida no encontro clínico que estamos querendo indicar, “a personalidade do
homem adquire densidade e consistência exatamente como exigência, intuição,
percepção e afirmação do significado” (p.46). Safra (2006) colocará este processo nos
seguintes termos:
Há um movimento no ser humano que se relaciona ao anseio do
fim (Telos). É a esperança da realização de si, da atualização
daquilo que não foi, para que se possa vir a ser. Denomino este
anseio Desejo de ser [exigência de ser, diria Mahfoud]. O
Desejo de Ser não deve ser confundido com o desejo, como
apresentado na literatura psicanalítica. Desejo de Ser é o desejo
de se realizar aquilo que se é ou, em outras palavras, é o
pressentimento de si mesmo. No momento em que a realização
acontece temos a possibilidade de constituição dos fundamentos
de si ou de facetas de si mesmo. Ou seja, quando uma pessoa
experimenta a atualização de uma possibilidade em que
desdobramentos de ser se realizam, ela já não é mais a mesma,
está existencialmente posicionada de forma distinta (pp.68-69).
Esta atenção ao Desejo de ser, esta consideração perante a exigência de ser que
somos, não vem como proposta substitutiva às técnicas e estratégias frequentemente
utilizadas neste contexto junto aos atletas lesionados. Pelo contrário, vem oferecer um
solo de abertura e contato humanos para que se possa intervir integralmente frente à
experiência que o atleta vive. Como propor a João, tendo nos dado indícios de estar
aprisionado no “fundo do poço”, imaginar-se novamente jogando como antes de se
lesionar? Diante de uma ruptura tão abrupta, como dar-lhe sugestões de “auto-falas”
sem qualquer acolhimento de sua dor e de todos os pensamentos que dela emergem?
Diante da perda do encantamento da vida, como simplesmente propor-lhe
relaxamentos?
64
Estas são as questões que nos ajudam a frisar que estamos propondo um
movimento anterior (e não excludente) às intervenções focadas apenas na adesão ao
tratamento ou na recuperação física. Vimos não se tratar apenas de uma lesão muscular,
mas de uma busca pela realização de si mesmo que perpassa toda experiência do
momento.
Estamos buscando aceitar esse convite próprio à situação clínica de estar diante
de um outro ser humano sentindo uma sincera gratidão, porque “a sua existência tem
algo de grande. Não que se fale disso, mas estar aberto na relação admirado com o
dinamismo autêntico e potente que se instaura, com a experiência que está diante dos
próprios olhos, abre ao outro o caminho para a apreensão experiencial do próprio ser.
Não se trata de um detalhe; admiração da experiência viva é essencial” (p.60). Este
parece ser o nosso desafio também diante de João, Bruno e Aline!
Por fim, concordamos mais uma vez com Safra (2006): “Não se pode
acompanhar, realmente alguém, sem ser profundamente transformado por essa
experiência” (2006, p.168). Toda esta preocupação com o ethos, com o coração, com o
que é “propriamente humano na experiência” (Mahfoud, 2012), faz-nos livres para
acompanhar quem nos pede ajuda, porque é verdade que “a clínica amplia-se ao
compreendermos que na dor e no sofrimento humano apresenta-se uma cristalização
singular da esperança” (Safra, 2008, p. 203). Nenhuma técnica pode nos oferecer essa
disponibilidade para estarmos presentes, abertos à condição do outro, guardando sua
singularidade e fazendo com que seja ela a demandar as intervenções mais apropriadas
em nome de sua destinação mais original.
65
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70
8. ANEXOS
ANEXO A. Fichamento do livro “La struttura della persona umana”
Obs.As notas subsequentes aos trechos apresentados (Obs1; Obs2, e seguintes) dizem
respeito a algumas observações que emergiram concomitantes à leitura e que se
articulam ao objetivo da presente investigação.
Capítulo I – CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA COMO FUNDAMENTO DA
PEDAGOGIA E DO TRABALHO EDUCATIVO
O primeiro capítulo parte da afirmação de que todo o agir humano é guiado por um
logos, entendendo com esse termo “a ordem objetiva dos entes, na qual está incluída
também a ação humana” (p.37/p.561). Tal concepção coloca o homem diante de um
mundo que possui certa ordem objetiva, ou melhor: aquilo que existe possui uma ordem
objetiva (logos) apreensível ao ser humano através do que a autora chamará de
“compreensão viva”, tornando-o capaz de operar na prática conforme um sentido.
Assim, quando utilizamos o sufixo “logia”, estamos justamente buscando captar o logos
de um campo concreto para introduzi-lo, em seguida, dentro de um sistema conceitual
baseado num claro conhecimento – o que Stein referirá precisamente como teoria. Essa
compreensão viva, porém, nem sempre é exigida da mesma forma e nem sempre
implica uma necessidade de clarificação em ideia ou como formulação conceitual.
------------------
Entende-se então que, se o trabalho educativo volta-se ao escopo de formar o homem,
está sempre acompanhado “de uma determinada concepção de homem, da sua posição
no mundo, do seu objetivo na vida, da possibilidade de um cuidado e formação prática”
(p.38/562). Nesse sentido, a pedagogia aparece como “teoria da formação humana” e
implica necessariamente uma imagem de mundo – metafísica – que se conecta, por sua
vez, a uma ideia de ser humano a ela “imediatamente” correspondente. Stein afirmará
que essa concepção e prática podem não ser tomadas conscientemente na ação
educativa ou, ainda, não serem coerentes uma com a outra, mas enfatiza que elas estão
sempre presentes.
O passo seguinte da autora é explicitar as principais concepções antropológicas do seu
tempo e suas consequências pedagógicas: 1. A concepção de ser humano no Idealismo
alemão; 2. A concepção da psicologia do profundo; 3. A existência segundo a visão da
71
filosofia existencial de Heidegger; 4. A concepção de ser humano na metafísica cristã.
Para o propósito da leitura, não vem ao caso explorar os alcances e limites que a autora
descreve, mas entender que o caminho fenomenológico é de clarear o sentido que
perpassa cada uma delas. Essa elucidação faz emergir a necessidade de iluminar teoria e
prática buscando uma compreensão comprometida com a pergunta fundamental: “O
que é o ser humano?”, de modo a levar em consideração todos os fatores em jogo para
que, a partir dessa clareza, seja possível falar de formação. Eu quero formar o homem,
mas qual homem? Quem é esse homem? A tentativa de responder essa pergunta
caminhará como pano de fundo dos demais capítulos.
Observações relativas às traduções:
Na maioria das vezes optamos pelos termos utilizados pela tradução italiana –
antropologie e concezione – àqueles da tradução espanhola – ideia e imagen de homem.
Entende-se que há uma diferença qualitativa que define com mais precisão o sentido
pretendido pela filósofa.
Capítulo II – A ANTROPOLOGIA COMO FUNDAMENTO DA PEDAGOGIA
Stein inicia o capítulo reafirmando a importância que a ideia de ser humano possui para
a ciência da educação e para a ação educativa, mostrando-se urgente à pedagogia.
Assim, “Quem é o homem?” é a pergunta primeira para uma doutrina sobre o ser
humano, entendida comumente como antropologia e que, segundo a autora, pode
assumir significados diferentes. Segundo Stein, em tempos recentes àqueles em que
estava escrevendo, essa palavra era entendida de maneira muito próxima à zoologia e,
portanto, à Ciência Natural. Nessa perspectiva, aparece como a ciência ligada à teoria
da evolução que estuda o ser humano como espécie, do mesmo modo como a zoologia
empenha-se em fazer com a espécie animal. Procura-se compreender a estrutura e
função do corpo (Körper) humano nas suas diferenças em relação aos animais, para
depois levar em conta diferenças de tipo morfológico através da análise das causas
dessas diferenças, das determinações de raça, estirpe, etc. Porém, detendo-se em
descrever os “procedimentos” inerentes a esta visão, o homem aparece como foco de
pesquisa para descoberta das leis que regem essa evolução, levando ao seguinte
questionamento: “Esta Ciência Natural, que oferece descrições morfológicas e enfoque
72
sobre a causa, é aquela antropologia que buscamos como fundamento da pedagogia?
Sobretudo: há um significado pedagógico e qual?” (p.55/p.580). Considera-se a resposta
que afirma ser a formação e educação uma atenção com o ser humano na sua totalidade
de corpo vivente/vivo e anima/alma, sendo para isso também importante um
conhecimento sobre o funcionamento, estrutura e leis de desenvolvimento desse Körper
– devendo saber aquilo que se mostra danoso à sua própria natureza. Porém há
dimensões que abarcam o homem dentro de uma “massa humana”, dentro de um povo,
sendo estas também importantes para a pedagogia no intuito de formá-lo não
isoladamente, mas como parte de um todo. Tomar a Ciência Natural como único
fundamento mostra-se insuficiente para a finalidade de formar o homem, porque ainda
que este seja exemplar de um tipo, não pode ser explicado exclusivamente por tal
constatação. A consequência, segundo a filósofa, seria um esquema geral incapaz de
acolher a individualidade irrepetível que um ser humano é, tornando-se uma redução da
própria influência que o educador poderia exercer. Segundo a autora, para considerá-lo
pertencente a um universo “suprapessoal”, ou seja, portando um significado relacionado
à singularidade, mas também à humanidade inteira, na relação recíproca entre raça e
humanidade, é necessário um critério de juízo que não está dado pela Ciência Natural.
Conclui-se que uma antropologia naturalística fracassa quando precisa apreender o ser
humano na sua concretude, mas uma antropologia que responda a essa exigência
existe? Stein chega então à afirmação de que para tal finalidade, que leve em
consideração o ser humano “individual”, o terreno de reflexão deve ser outro: o da
Ciência do Espírito. Faz-se necessário, portanto, se ocupar com a pergunta acerca de
qual ciência pode ajudar o educador na compreensão dos indivíduos com os quais
precisa lidar. Assim, sua opinião pauta-se na própria experiência que o ser humano faz
no mundo, já que uma orientação exclusivamente voltada ao mundo material e às suas
leis universais é reconhecida como incapaz de colher o mundo espiritual. Por este
último, ainda recorrendo à experiência, implicam-se as múltiplas formas de expressão
com as quais uma “interioridade” se “mostra” e que podemos compreender em sua
linguagem específica. No caso da história, por exemplo, a autora cita aquela
pessoalidade individual que pode ser colhida independente da própria pessoa: na sua
escrita, na sua letra ou modo de se expressar literal.
Stein também recorrerá ao exemplo dos grandes artistas e nomes da literatura que
interpretam e são capazes de refletir sobre as expressões pessoais – uma verdadeira
73
“escola de compreensão” da especificidade individual, ela dirá – tanto quanto os
estudos da psicologia científica. Isto porque, segundo a filósofa, na profundidade desses
mestres de uma arte que alcança a alma (como Dostoiévski e Tolstoi), fica evidente a
força da ação espiritual, que a psicologia muito pouco considerou e que é de grande
relevância à pedagogia. Neste momento os exemplos e desenvolvimentos reflexivos que
a autora vai expondo vão se colocando em confronto com uma consideração apenas
natural dos fenômenos humanos e reforçam a necessidade de uma “nova” antropologia.
Apesar de se buscar a individualidade pessoal, coloca-se a possibilidade de uma
investigação geral também no domínio das Ciências do Espírito. Uma afirmação que
fala do homem enquanto tal, supera essa “individualidade”, levando-se em conta sua
condição humana concreta perante a vida real, reconhece-se aquele logos, isto é, uma
lei de estrutura e do seu ser que todos podem captar. Passa-se a falar então de um
homem na sua qualidade espiritual, com sua apreensão do mundo em um nível
dependente do espírito – nesse ponto, Stein chega a evidenciar a necessidade de uma
ciência do homem como pessoa espiritual: a chamada Ciência do Espírito.
As perguntas que se seguem neste capítulo começam a esboçar um terreno complexo de
conhecimento que, especificamente, vão determinando uma antropologia filosófica que
evidencia os diferentes níveis de análise que uma consideração totalizante e não
naturalista do ser humano. A ética entra na discussão da autora enquanto disciplina
filosófica que se pergunta acerca do valor e do dever. Aquilo que um objeto vale é
determinado por aquilo que ele é, sendo a hierarquia dos valores relativa à ordem dos
entes. Para falar de uma “doutrina dos valores”, portanto, recorre-se à doutrina geral do
ser ou ontologia na qual encontraremos a doutrina filosófica fundamental, a “filosofia
primeira” (p.62). A ciência geral do espírito é uma parte desta ontologia e dentro dela,
por sua vez, descobrimos a antropologia geral vista sob a perspectiva da Ciência do
Espírito. Stein afirma seguindo esta constatação: “Assim, também a antropologia que
exigimos como fundamento da pedagogia, deverá ser uma antropologia filosófica que
deverá, mantendo uma relação viva com a inteira problemática filosófica, estudar a
estrutura do ser humano e sua inserção na forma e na região do ser humano ao qual
pertence. Deverá também responder à pergunta ‘por que diversas ciências empíricas, a
antropologia naturalística e aquela relativa à Ciência do Espírito, estudam o ser humano
a partir de métodos totalmente diferentes’. O sentido e a legitimidade de tais
procedimentos devem ser compreensíveis considerando a pertença do ser humano aos
74
diversos âmbitos da realidade que temos indicado com o nome ‘natureza’ e ‘espírito’”.
(p.62-63).
------------------
O final do capítulo abarcará a escolha do método de trabalho utilizado no
desenvolvimento seguinte da obra. Buscando uma via sistemática a fim de levar em
consideração as coisas mesmas e alcançar, assim, a estrutura, Stein escolhe o método
fenomenológico de Husserl (citando o volume II de Investigações Lógicas). Considera-
se o primeiro princípio de voltar “le cose stesse” através da epochè, ou seja, tomando
como ponto de partida aquilo que experimentamos em nós mesmos e que
experimentamos no encontro com os outros (p.66). O segundo princípio é aquele de
voltar o olhar ao essencial, tomar a intuição não como percepção sensível de uma certa
coisa que está presente aqui e agora, mas como apreensão daquilo que ela é segundo seu
ser próprio e segundo sua essência universal. Portanto, o ato no qual a essência é
apreendida é uma visão espiritual [visione spirituale] que Husserl denominou intuição.
Como a própria autora dirá: aproximaremo-nos de todas essas caracterizações
utilizando-o. Para não estender e dificultar o fichamento, as análises preparatórias que
se encontram descritas brevemente neste capítulo: 1. O ser humano como corpo
material, ser vivo, ser animado, ser espiritual. Microcosmo; 2. O ser humano como
pessoa espiritual: na sua posição social, na sua individualidade; como ser histórico,
comunitário, cultural; 3. Na sua abertura para dentro e para fora; e 4. Como buscador de
Deus, serão retomadas posteriormente durante o aprofundamento já nos seus
respectivos capítulos.
Observações relativas às traduções:
Algumas terminologias distintas:
Critério valorativo – Espanhol / Critério de juízo – Italiano
Individualidade – Italiano / Ser próprio – Espanhol
Ciências Humanísticas – Espanhol / Ciências do Espírito – Italiano
As páginas 586 e 587 em espanhol apresentam diferenças na ordem de exposição da
reflexão e nos termos utilizados se comparadas às páginas 61 e 62 da tradução italiana.
Esta última, aparentemente, faz uso de uma linguagem mais próxima à de Husserl –
sendo, por isso, preferida para o fichamento.
75
Capítulo III – O SER HUMANO COMO COISA MATERIAL E COMO
ORGANISMO
O objetivo principal apresentado pela filósofa logo no início é de examinar o ser
humano na sua corporeidade. Para tanto – Stein justifica – será realizada uma abstração
que toma o corpo na sua especificidade corpórea sem abarcar a totalidade deste
fenômeno no seu aspecto exterior que comunica vida, explicita a presença da alma, do
espírito. No entanto a filósofa já antecipa que este corpo é diferente dos demais, porém
vejamos o porquê desta colocação introdutória:
Se vemos, por um lado, uma massa que possui dimensão e forma tanto quanto outras
“matérias” – permitindo uma união com estas, vemos também um certo fracionamento
que demarca uma formação a qual pertence uma forma própria determinada e fechada
em si mesmo. Esta, podemos reconhecer, não é mais parte dessa massa que se pode
comparar a toda matéria formada, mas constitui um exemplar da espécie humana que se
apresenta numa forma homogênea. A essa forma homogênea, fechada em si mesma,
indivisível e que não pode se unir a outras, Stein chama individualidade (termo que ela
pretende retomar ainda sob outra perspectiva). Para a filósofa esta é uma primeira
peculiaridade que o corpo humano tem em comum com todos os outros organismos –
Stein cita o cristal colocando-o também como puramente material, possuindo uma
forma própria e sendo fechado em si mesmo, não podendo ser dividido sem que perca
sua natureza original. Acrescenta-se, em seguida, uma estruturação em membros,
variada, simétrica e regida em conformidade com leis específicas, uma posição ereta –
diferenciando-se dos animais – além de outros aspectos físicos imediatamente visíveis e
comparáveis aos outros organismos (pp.71-72/596). Podemos falar do mesmo modo da
presença dos órgãos, do seu funcionamento e de sua unidade morfológica, estudados
pela fisiologia e anatomia. Ainda, podemos considerar abstratamente o movimento
externo do corpo humano levando em consideração apenas a regularidade que segue ao
estar submetido a leis externas (como qualquer outro corpo material). Dizer que tal
consideração é abstrata remete, para a autora, ao fato de que o movimento humano
expressa “incessantemente a vida, a alma, o espírito” e essa afirmação também nasce de
um retorno à experiência: se imaginamos uma pessoa que tropeça, como qualquer corpo
a pessoa encontra-se diante de um obstáculo que “vem de fora” mas deseja continuar
seu movimento independente do ocorrido. Evidenciam-se dois movimentos
fenomenologicamente distintos, que obedecem a leis também distintas se
76
considerássemos diante desta situação um simples corpo material. O rosto e as mãos,
como exemplo da autora, aparecem obedecendo a leis próprias que possibilitam
movimentos específicos se comparados às demais partes do corpo no que diz respeito à
facilidade e multiplicidade de seus movimentos: a mudança da cor do rosto, do tamanho
ou brilho dos olhos, entre outros. O mesmo ocorre para os dados acústicos que somos
capazes de captar e que nos dão referência a algo (a buzina do carro, alguém que toque
a campainha...).
O ponto importante aqui é entender que as coisas não emitem sons ou permanecem em
repouso até que lhes seja dado um impulso externo. Isto não ocorre para os homens e
animais, distinguindo-os das coisas meramente materiais. O corpo humano é capaz de ir
além do dado puramente sensorial e percebe sempre algo mais que um corpo
meramente material. É sobre este “mais” que Stein vai começar a se debruçar
sistematicamente, baseando-se nos dados que podemos descobrir na manifestação do
corpo mesmo (p.76/p.600).
Quando voltamos a considerar o corpo humano na sua forma determinada,
reconhecemos um progressivo “formar-se a partir de dentro” que é uma peculiaridade
do ser vivo – aqui Stein retoma Tomás de Aquino e Aristóteles para clarear esse
movimento “interno” como um processo de formação que tem um fim (τελος), que
tende a uma determinada forma. Evidencia-se nesse momento um processo vital que se
diferencia dos outros organismos e coisas materiais (coisas “mortas”) à medida que se
reconhece uma matéria formada que, sem essa forma se torna impossível. A forma vital
faz do corpo humano um organismo e, segundo Stein, quando vem faltar vida a esse,
resta apenas uma coisa material como as outras – isto se vê no declínio da idade e, num
exemplo extremo, com a morte. Neste percurso é possível sintetizar que o corpo
humano como organismo implica: 1. O domínio da matéria mediante a forma vital
interior; 2. A aquisição do material necessário à sua constituição; 3. A tensão das partes
em constituírem-se na totalidade; 4. A geração de outros exemplares da própria espécie.
Importante frisar que o “organismo é um constante movimento, um movimento interior
e um movimento de dentro e de fora” (p.78/p.602). Quando a autora se refere a um
movimento que possui leis próprias, quer indicar que o corpo segue leis da sua
formação interior (o exemplo do tropeço reenvia a esta legalidade), podendo ser
controlado por um centro que se sustenta e se move tendo encontrado aquilo que
provem de fora, mas que, à medida que vai se formando, passa a obter domínio de si –
77
sem deixar, contudo, de estar submetido enquanto corpo material às condições dos
acontecimentos “materiais”.
Observações relativas às traduções:
Considerando a dificuldade de trabalhar em outro idioma que não o português, as
exposições que constituem este capítulo dão início a uma análise refinada e densa que
tentamos fichar nos limites que uma tarefa como essa coloca. As diferenças de tradução
são pequenas e a preferência continua sendo dada, na maioria dos casos, ao texto
italiano.
Capítulo IV- O SER HUMANO COMO SER ANIMAL – O SER ANIMAL
A diferenciação essencial realizada no fim do capítulo anterior acerca do ser vegetal
encaminhou as reflexões para o “ser animal”. Como primeiro aspecto que nos salta à
vista, tem-se a liberdade de movimento no espaço e a capacidade de sentir aquilo que
acontece à sua volta, possuindo também um centro interior de movimento (para autora,
eventualmente se pode considerar mais de um). Ainda que não aconteça da mesma
forma entre todos os animais, Stein enfatiza que o movimento livre caracteriza todos
eles. Este livre possui dois sentidos: está submetido a uma espacialidade, a um
determinado lugar – como as plantas – mas sem uma imposição externa, isto é, parte de
dentro como nos referíamos anteriormente quanto ao ser humano. Porém há uma
diferença importante a ser considerada quando se usa o termo “liberdade”, porque não
significa aqui “arbítrio ou vontade livre”. Esta sutil colocação é determinante para
posteriormente compreendermos melhor o que caracteriza o movimento animal e o
movimento humano, bem como o aspecto animal e o aspecto especificamente humano
quando nos referimos ao ser humano (p.84/p.609). Ainda que o movimento animal
esteja vinculado a leis “férreas”, não é o mesmo que acontece quando lidamos com as
leis mecânicas. Trata-se de um movimento não só proveniente de dentro, mas uma
mudança contínua diante dos estímulos do ambiente externo. Assim, dirá Stein, o
animal mostra-se constantemente solicitado e afetado pelo que lhe chega de fora, mas
não de modo mecânico-corpóreo, ainda que não possa se voltar para dentro
reflexivamente e se trate, portanto, de uma reação àquilo que o solicita: seu movimento
é estimulado pelo externo e se refere a uma atração/repulsão ao “externo”.
78
Tendo esclarecido essa primeira caracterização do ser animal, a autora passa à
consideração do ser “sentiente”, tomando a seguinte definição de sensação: “ser afetado
interiormente e responder reativamente como resultado da percepção daquilo que lhe
acontece enquanto ser vivo” (p.85/p.610). Esta qualidade de corpo vivo “sentiente” é,
para Stein, aquilo que o diferencia de um mero organismo. A autora especifica que não
quer dizer que é “sentiente” porque é afetado por um estímulo, mas porque sente a si
mesmo afetado em cada parte e não apenas superficialmente, mas volta-se para dentro
num encontro consigo mesmo - como abertura “ao interno”. A alma sensitiva é
justamente o que caracteriza o animal, mas essa alma sensitiva implica o movimento e
os instintos que a determinam percebendo-os interiormente. É importante aqui a
colocação literal que a filósofa faz: “Essa interioridade do corpo vivo não se entende
como interioridade-espacial, mas no sentido de interioridade não-espacial, que
propriamente definimos “alma”, então tudo o que caracteriza o corpo vivo possui um
lado animado. (...) Possuir uma alma significa possuir um centro interior para o qual
converge sensivelmente tudo aquilo que provém de fora, do qual brota tudo aquilo que
no movimento do corpo vivo aparece como vindo de dentro. É ponto de troca no qual
chegam os impulsos e do qual partem as reações. E se a vida animal é um inquieto ser
afetado e movido, então o lugar próprio da inquietude é a alma que está destinada a essa
atividade e não se pode subtrair a essa” (p.86/p.611). As consequências dessa reflexão
levam ao reconhecimento de uma unidade equilibrada, onde não se trata de uma
unidade entre duas substâncias, mas de uma matéria formada de maneira viva, cuja
forma, com o tempo, se manifesta na matéria e se exprime interiormente na atualidade
da vida da alma (p.87/p.611-612). Tanto é verdade que a autora exemplifica a
possibilidade de captar também nos animais estados interiores como alegria, tristeza,
medo – uma inteira escala de afetos e movimentos de ânimo, “uma real vida anímica
que nós podemos captar e com a qual podemos estabelecer um contato interior”.
------------------
No tópico seguinte, a autora buscará tratar as diferenças existentes acerca da espécie e
individualidade no ser humano e no animal. Aqui dois pontos podem ser sintetizados de
modo especial: o primeiro refere-se à individualidade no âmbito animal e o segundo à
especificidade que o ser humano introduz a esse respeito. Por mais que o pastor possa
reconhecer cada uma de suas ovelhas ou o cão possa ser tratado quase como um
membro da família – exemplos que Stein utiliza – tratá-los como ser humano ou
79
considerar sua perda “irreparável”, assume uma forma irracional que reenvia a uma
inadequação àquilo que a realidade verdadeiramente é. Se estivéssemos falando do ser
humano e da perda de uma pessoa o caso seria totalmente outro, por exemplo, quando
entendemos uma possibilidade de equiparar a zoologia à antropologia, mas não há para
os animais o que corresponde à “ciência do espírito individualizante”. Como a filósofa
dirá, a legitimidade do paralelismo das fábulas que atribui qualidades humanas aos
animais só pode ser resolvido se devidamente iluminada a estrutura ôntica de um e de
outro (p.89/p.613). Assim, retomando a trajetória, resume-se que aquilo que diferencia a
estrutura animal da estrutura da planta é: 1. Seu caráter instintivo; 2. A sensibilidade; 3.
A existência de um ser psíquico no sentido de uma vida interior atual e de uma natureza
psíquica duradoura.
Reconhecendo na estrutura animal uma interioridade, Stein pretende então examinar a
estrutura da alma, considerando a distinção essencial entre vida anímica atual e
estabilidade duradoura já indicada. A autora se coloca então diante da relação que pode
existir entre ambas. Essa não seria, para ela, uma psicologia animal, mas quer alcançar
uma ontologia da alma animal que é, por sua vez, pressuposto para uma psicologia
empírica. Aqui se faz novamente importante uma tradução mais literal: “Cada
investigação empírica se defronta com casos singulares a partir de uma concepção
determinada que remete à estrutura fundamental do seu objeto, para estabelecer que
coisa se apresenta de tempos em tempos, e é tarefa da fundamentação filosófica das
ciências empíricas elucidar as ideias predominantes” (p.90/p.614). Todas essas
colocações referem-se à problemática e complexa relação que se coloca diante da
relação indivíduo e espécie no reino animal. O que se pode desde já explicitar é a
passagem que se está fazendo por uma “ideia geral de planta”, também uma “ideia de
animal” que prevaleça no âmbito inteiro, considerando a possibilidade de realização
mais ou menos completa de tal ideia. O limite de desenvolver a fundo todos esses
levantamentos filosóficos e fronteiras entre os seres faz com que Stein detenha-se
empenhada em identificar o lugar que o elemento animal ocupa na estrutura do ser
humano.
A análise detalhada que a autora faz acerca do material fônico animal e sua relação com
o humano permite alcançar o campo “involuntário-impulsivo” ou instintivo que parece
caracterizar de maneira peculiar o animal, ainda que sejam reconhecidos traços de
“razão” e intencionalidade que tendem a se aproximar à liberdade humana (p.91).
80
Porém, não é possível encontrar no animal nada que o permita “sair de si”, entrar em
“ação consigo mesmo” ou o emergir/erguer de um eu pessoal-espiritual. Nesse
momento as diferenças são listadas por Stein, por exemplo, no que diz respeito à
linguagem: no caso animal não há qualquer continuidade de discurso ou articulação, os
sinais sonoros dos animais estão ligados de maneira extrínseca e vinculados a um
determinado sistema. A esses elementos acrescenta-se que a falta de um nexo interno do
sentido perde o caráter de racional e, consequentemente, com a impossibilidade de
escolher, se perde o caráter de liberdade em meio à comunicação animal, portanto,
também o que se poderia designar como linguagem (p.93/p.617).
Stein fará algumas definições que parecem importantes em termos de clarificação do
percurso e para que possamos retomá-las nas etapas seguintes:
“Sensibilidade interna” – refere-se às diversas espécies de dados externos sensíveis que
se acrescentam à datidade sensível do próprio corpo vivo (p.93).
“Sensação de sentimentos” – Estados internos suscitados a partir das impressões
externas, que são classificadas com as fundamentais categorias polares de prazer e
desprazer (p.94).
Parece também importante o início do diálogo com Tomás que a leva a fazer a seguinte
constatação: “A vida atual é caracterizada por um contínuo ir e vir de estímulos
externos, estados interiores, impulsos instintivos, etc. Mas, atrás desse ir e vir, existe
qualquer coisa de duradouro que torna possível a atualidade de uma determinada
atualidade. As ações são manifestações de potências (faculdade ou força). Suas raízes
estão na alma que é o princípio de todas as manifestações e atividades vitais do ser
vivente/vivo” (p.94/p.618). Na comparação com a análise do ser animal, juntamente à
doutrina de S. Tomás, novamente Stein evidencia as distinções perante o ser humano:
“No animal a causa da sua abertura ao ambiente no qual vive e do qual depende se deve
à sua sensibilidade, deve confrontar-se com isso para nutrir-se e para defender-se e
buscar se afirmar nisso. Porque o animal é um ser inteiramente corpóreo-sensorial, não
pode impedir essas solicitações, não pode fechar-se frente às impressões externas, nem
impedir os movimentos da alma que são produzidos na sua interioridade” (p.96).
A permanência da pergunta acerca da relação entre espécie e indivíduo se conectará
com a questão sobre a origem das espécies, já que “as espécies existem realiter no
indivíduo” (p.98).
81
Observações relativas às traduções:
Sensibilidade – Italiano / Capacidade de sentir – Espanhol
Interioridade – Espanhol / Ser interior – Italiano
Corpo vivo do animal – Italiano / Corpo animal – Espanhol } Na tradução italiana em
todo o texto se especifica corpo vivo e não apenas corpo.
Vida afetiva – termo específico referido apenas em espanhol, aproximando-se da
definição de “alma sensitiva” em italiano.
Modo de ser próprio habitual ou duradouro – Espanhol / Natureza psíquica duradoura -
Italiano
Capítulo V – PROBLEMA DA ORIGEM DA ESPÉCIE: GÊNERO, ESPÉCIE,
INDIVÍDUO
Este capítulo aparece como uma espécie de apêndice em que Stein compara o trabalho
que vem fazendo àquele da “ciência positiva”, argumentando que o que se propõe é
evidentemente diverso do que acontece nas ciências particulares – física, química,
matemática. O primeiro tópico intitula-se “Filosofia e ciência positiva”, trazendo logo
no começo a seguinte afirmação: “o mundo da experiência com a sua riqueza e
multiplicidade aparece como qualquer coisa da qual as ciências “exatas” procuram
distanciar-se” (p.99/p.624). A utilização de instrumentos vem apurar os sentidos,
porém, sobre o material proveniente da experiência pratica-se uma abstração a fim de
colher o mundo de um ponto de vista determinado. O que a filósofa afirma fazer é lidar
com o fenômeno na sua pura concretude, tomando-o como início da descrição e, caso a
análise exija uma abstração, voltar-se novamente para trás buscando o fenômeno na sua
inteireza, porque justamente interessa conhecê-lo e compreendê-lo na sua estrutura –
por esse motivo os procedimentos se aproximam àqueles das ciências descritivas, dirá
Stein. Também a zoologia, segundo a autora, não se limitou a descrever os dados de
fato, mas quis explicar todos os dados de fatos biológicos mediante a lei física e
química. Assim, continua ela: “encontramo-nos diante da conclusão singular que o
mundo vivo/vivente não é de fato vivo, que a ciência da vida, na sua interpretação da
vida, afastou-se dessa, do mesmo modo no qual o físico explica, no fim de um estudo
sobre as cores e sobre os sons, que o que existe não são cores ou sons, mas apenas
vibrações” (p.100/625). O posicionamento de Stein é muito claro: “A compreensão
natural do homem ingênuo protesta contra esta imagem científica do mundo. E o
82
filósofo se vê convidado a verificar a legitimidade da experiência pré-científica e
científica”. Ou seja, ao filósofo cabe julgar a ciência como uma totalidade e, por mais
que também ele precise se especializar, se proceder de maneira radical se aproximará da
problemática filosófica inteira porque essa está interiormente conexa.
Para poder fazer um trabalho como esse, para poder verificar o sentido de uma ciência
positiva e seu procedimento metodológico, deve lançar um olhar a seu próprio modo de
proceder, isto é, deve refletir. Refletindo ele poderá, em seguida, considerar se tal
procedimento é adequado ao objeto que deve, sendo o caso, se tornar acessível a ele.
Então Stein afirma: “Se o modo de proceder do físico seja adequado só se poderá
estabelecer se existe a possibilidade de lançar um olhar para a estrutura fundamental da
natureza material, que a física sozinha não é capaz de obter, porque, segundo o método
que usa, tal estrutura é antes um pressuposto, um pressuposto objetivo já que, de regra,
a crítica do método é cronologicamente posterior à sua utilização prática, quer dizer,
uma vez que nas etapas iniciais de uma ciência já havia tido lugar uma primeira
reflexão” (p.101/p.626). É seguindo estas colocações que a autora confirmará que só se
for possível construir uma ontologia da natureza partindo de uma perspectiva filosófica,
“se poderá dar vida a uma crítica da ciência da natureza e com isso, a uma justificação
do seu método”.
A reflexão iniciada pela autora acerca do problema da origem das espécies apresenta
um caráter geral que pode, segundo Stein, ajudar a entender o sentido de uma teoria
científico-natural que está intimamente ligada às perguntas inerentes ao ser orgânico e
animal, consequentemente, ao problema da antropologia. A filósofa se limitará à análise
da espécie animal e retomará pontos que já foram referidos anteriormente, introduzindo
uma reflexão mais pormenorizada. Chegará a reconhecer nesse percurso presente que
tudo aquilo que é finito e condicionado, remete a um absoluto como sua origem e,
assim, também a uma formação originária da matéria. O que essas são e o fato de se
mostrarem em meio a uma multiplicidade qualitativa, é para Stein o primeiro dado da
qual parte cada consciência. Portanto, alcançar a estrutura fundamental partindo desse
primeiro dado – de forma acessível à razão – é tarefa de uma análise filosófica radical.
Essa se, encontrará por todos os lados, continua a autora, com o contraste entre forma e
matéria, também com a necessidade de uma formação originária, qualquer que seja o
ponto do mundo real no qual se queira situar.
Quando se coloca novamente a questão acerca da relação entre espécie e indivíduo,
83
Stein levanta duas possíveis argumentações: 1. Cada indivíduo é qualitativamente único
e só possui em comum com outros indivíduos a forma vazia de indivíduo como tal, não
implicando uma hierarquia de forma criada; 2. O extremo oposto seria conceber uma
multiplicidade de coisas perfeitamente iguais que se distinguem só em relação à posição
que ocupam dentro de um sistema ordenado (p.104/p.629). Porém, a multiplicidade de
formas com que nos deparamos na experiência parece não corresponder nem a uma e
nem a outra. Para a filósofa se trata de uma forma vazia dos seres criados como tais que
está cheia de formas universais qualitativamente diferentes, podendo ser indicadas
como gênero do ser. Acerca desse ponto, especificará tal consideração aludindo à
terminologia de Husserl: categorias regionais, isto é, àquelas formas que estão na base
da articulação do mundo real dentro dos âmbitos distintos do ser, como ser material, ser
vivente, etc.
“Mas como entender a universalidade e a singularidade da espécie?” (p.105),
perguntará um pouco mais adiante. Nota-se que o indivíduo que nasce deve e pode ser
considerado uma parte daquele que o gera, mas depois começa a se destacar deste
conduzindo-se a uma existência própria. Trata-se, portanto, de uma nova forma
individual – o que não significa uma nova espécie. Os desenvolvimentos posteriores
pretendem refinar e colocar em jogo os elementos a partir dos quais a hipótese sobre a
origem das espécies e descendência apoia seus argumentos de validade, retomando
algumas fronteiras ainda obscuras dentro da problemática. Importa nesse momento
frisar duas colocações importantes da autora: 1. O indivíduo “de rattione materiae” nos
termos de S. Tomás e 2. O princípio formativo que permite o entendimento de uma
variedade presente na estrutura necessária que, por sua vez, a torna compreensível a
partir da forma originária. A síntese desses pontos está no exemplo da rosa, oferecido
pela própria Stein: É próprio da rosa enquanto tal, ser rosa, amarela ou branca (não
verde ou azul) e essas “cores da rosa” delimitam um espaço de diversas possibilidades
de rosa. No entanto, tem-se preservada uma estrutura necessária não apenas no que se
refere à forma e cor, mas no poder ter folhas mais alongadas, em poder murchar quando
exposta ao sol – o que não se refere precisamente à variedade, mas às condições
materiais sob as quais está “submetida”. Passa-se nesse momento do percurso a
considerar, portanto, as necessidades e as possibilidades essenciais – reconhecimento
crucial dentro de uma reflexão que se insere no terreno de uma investigação de tipo
ontológico (p.116-117). Devido a esta importância, tentar-se-á fazer a tradução mais
84
uma vez direta:
“Para poder compreender isso e toda a pluralidade de fatos relacionados a fim de
alcançar os fundamentos ontológicos últimos, deveremos primeiro possuir uma
compreensão da relação entre gêneros supremos do ser real (coisa material, planta,
animal, etc) e a espécie de diversos graus de universalidade que se encontra entre esses
e os indivíduos: como exemplo tem-se a relação entre planta como tal e as diversas
espécies e “variedades”. Dever-se-ia, antes de tudo, ter clara a estrutura interna desta
ideia de gênero; por exemplo, que é indiscutivelmente próprio da coisa material possuir
cor, forma, extensão, etc, o modo no qual essas qualidades estão em relação entre si e
quando se confrontam com outras, se existe entre elas uma relação necessária, qual
posição se espera da qualidade singular dentro da estrutura global da coisa; a partir daí
deveria emergir o reconhecimento de se há e quais diferenciações essa ideia exige como
necessária ou admite como possibilidade. (Uma distinção necessária é aquela da cor em
uma cor determinada. Para a cor como tal é necessário ser uma cor da escala cromática,
por isso para a coisa é necessário também possuir uma cor que pode ser sozinha
qualquer cor da escala, ou seja, não é necessário que sejam coisas com todas as cores
possíveis. Portanto, é possível afirmar, do ponto de vista da ideia da coisa, que é
“casual” que haja uma determinada cor). Se as ideias de espécie não são diferenciações
necessárias da ideia de gênero, emerge a pergunta acerca do fundamento da espécie”
(p.117-118).
Observações relativas às traduções:
Há neste capítulo a integração de uma folha solta que se encontrava marcada por Stein
como IV 49. Na tradução espanhola foi incluída como nota de rodapé e na tradução
italiana após a nota explicativa, foi adicionada ao corpo de texto do capítulo.
Capítulo VI – O ASPECTO ANIMAL NO SER HUMANO E AQUELE
ESPECIFICAMENTE HUMANO
As questões deste capítulo retomam o caminho traçado até então e começam a explorar
pontos determinantes para o escopo da obra. Interessante que poder falar do substrato
animal no homem, já remete a uma percepção acerca de nós mesmos em um nível que o
animal não é capaz de fazer. Essa é a primeira alerta da autora: “Também no ser
humano reconhecemos uma abertura sensível às impressões externas e internas, bem
como às reações a elas com atos e movimentos instintivos. E aqui podemos
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efetivamente experimentar interiormente, em nós mesmos, que coisa queremos dizer
quando falamos de ‘perceber sensitivo e agir reativo’. Temos essa possibilidade porque
não somos seres puramente sensitivos, mas capazes de conhecimento espiritual”
(p.119/p.644). Essa não é, porém, a intenção do momento, retomará Stein: apenas nos
interessa o que podemos colher com essa “espiritualidade” acerca do que possuímos dos
animais em nós. A descrição que a autora introduz nos primeiros parágrafos é
inteiramente fenomenológica e explicita os atos que, tomados como nos mostra a
experiência perceptiva, começam a delinear uma diferença qualitativa em relação àquilo
que já descrevemos no caso dos animais. Dirá ela: “é evidente como não
experimentamos as impressões sensíveis como puros estímulos sensoriais, mas como
estímulos formados objetivamente e inseridos na estrutura de um mundo feito de coisas,
percebível com os sentidos. Vemos as cores como cores de coisas, escutamos os sons
em um determinado ponto do espaço, experimentamos qualidades táteis como dureza,
etc, dos corpos. Em muitos casos precisamos fazer abstrações desses significados
objetivos e desse estruturar-se das qualidades sensoriais para poder colher a
sensibilidade ‘pura’” (p.119/p.644).
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Stein retomará essas descrições para elucidar aquilo que se coloca numa fronteira tênue
com o ser animal: também nós sentimos as impressões como agradáveis ou
desagradáveis, marcadas pelo prazer ou pela dor; possuímos certos estados de
sentimento geral que não estão ligados a determinadas e precisas impressões sensoriais,
mas podem ser vividas, ao mesmo tempo, através da alma e do corpo vivo, como
estados globais: vivacidade ou “apagamento”, bem estar ou mal estar; experimentamos
em nós um ímpeto de valorização instintiva do significado que pra nós assume aquilo
que encontramos, vivemos em nós as emoções que percebemos no mundo externo, nos
fenômenos expressivos de dor, alegria, medo e raiva. Experimentamos em nós uma
multiplicidade de movimentos da alma que não são ainda aquilo que mais tarde
reconheceremos como “atos espirituais” e que aparece como qualquer coisa que não
podemos negar a presença. Colhemos o ser humano como unidade de alma e corpo vivo
ao mesmo tempo com que colhemos os animais e a isso atribuímos não só movimentos
atuais, mas também características permanentes, corpóreas e psíquicas: sensibilidade
aguda ou fraca, instinto seguro ou inseguro, um temperamento apaixonado e forte ou
tranquilo, etc. Entre essas características permanentes ou faculdades, e os movimentos
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psíquicos atuais existe uma relação determinante. Os movimentos e os atos atuais nos
manifestam também o caráter permanente e “essa relação gnosiológica encontra
fundamento em uma relação ôntica, de fato a vida psíquica atual está fundada
ontologicamente sob as potências, as potências não são fixas e imutáveis, mas se
atualizam constantemente em uma ou outra forma de ser” (p.121/p.646). Essas
atualizações não deixam de repercutir nas potências e ao se atualizarem experimentam
em si mesmas uma certa transformação, como um incremento na facilidade com que se
atualizam e na disponibilidade para se atualizarem. Este exercício vai ao encontro do
conceito de habito ou virtude da Escolástica e, para Stein, essa transformação das
potências em hábito já pode ser vista nos animais – está, segundo a autora, na base do
adestramento.
É nessa relação entre as potências, os hábitos e os atos que se torna evidente a
unidade da alma (p.122/p.646). A filósofa desdobrará a partir das evidências já
expostas a presença dessa unidade. Primeiramente salienta o fato de que não é possível
ao homem uma atualização/desenvolvimento simultânea(o) de todas as suas potências.
Quando sua razão trabalha intensamente, não pode se atentar àquilo que está a sua
volta, do mesmo modo que, estando com o ânimo intensamente agitado, não consegue
trabalhar bem com a razão. A alma, portanto, possui uma quantidade limitada de força
que pode ser orientada em diversas direções, direcionada a uma dada direção, estará
privada das outras possibilidades (o que é possível encontrar analogamente nos outros
organismos, dirá). Assim, podemos novamente citá-la: “o ser humano aparece como um
organismo estruturado de maneira muito complexa, uma totalidade viva unitária
cultivada em constante processo de formação e transformação; uma unidade de alma e
corpo vivo que, ao mesmo tempo, se forma e se configura numa estrutura corpórea
diferentemente articulada e funcionamento variado, experimentando um caráter
psíquico sempre mais rico e estável. O caráter psíquico e o corpóreo se realizam em
uma constante atividade que é resultado de habilidades determinadas que, com o tempo,
acabam por decidir em qual das diversas formas, prefiguradas como possibilidade no
ser humano, se realizarão” (p.122-123/647). As condições de desenvolvimento serão,
nesse sentido, oferecidas em larga medida pelas circunstâncias externas, pelo ambiente
no qual se encontra o ser vivo. Considera-se, porém, que o ser humano também se
encontra sujeito a atualizações que o atrofiam – da mesma forma que o cão com o qual
lido de modo a incentivar seu instinto predador.
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Toca-se então, finalmente, no aspecto especificamente humano!
O que significa dizer que o ser humano é responsável por si mesmo? O que significa
dizer que dele mesmo depende aquilo que é: que ele pode e deve formar a si mesmo. O
que quer dizer esse “ele”, “si mesmo”, “pode”, “deve”, “formar”? “Ele é um ser que diz
de si eu e nenhum animal pode fazê-lo (p.124/648)”. Stein dá o exemplo: “olho nos
olhos de um animal e vejo qualquer coisa que me olha. Vejo dentro uma interioridade,
na sua alma, uma alma que vive o meu olhar e a minha presença. É, porém, uma alma
muda e prisioneira, aprisionada em si mesma, incapaz de ir além de si mesma e de
compreender a si mesma, incapaz de sair de si mesma e se juntar a mim. Olho o ser
humano e o seu olhar me responde. Permite que eu penetre na sua interioridade ou me
rejeita. Ele é senhor de sua alma e pode fechar ou abrir suas portas. Pode sair de si
mesmo e penetrar nas coisas. Quando dois seres humanos se olham, um eu encontra-se
diante de outro eu. Pode ser um encontro que fique apenas na porta ou que adentre a
interioridade e quando é assim, quando é um encontro que abarca a interioridade, o eu
encontra-se frente a um tu. O olhar do homem fala. Um eu dono de si. Dizemos
também: uma pessoa espiritual livre. Ser pessoa quer dizer ser livre e espiritual. O ser
humano é pessoa e isso o distingue de todos os seres naturais” (p.124/p.648).
Tomemos como tarefa primeira compreender a espiritualidade. A filósofa define
espiritualidade pessoal como vigilância e abertura. Isso porque, ela dirá, não sou apenas
um eu, como não sou apenas vivo, mas sou consciente do meu ser e do meu viver, tudo
isso em um único ato. Essa observação da autora é decisiva: “A forma originária do
saber, própria do ser e da vida espiritual, não é aquela de um saber a posteriori,
reflexivo, no qual a vida torna-se objeto do saber, mas é como uma luz pela qual a vida
espiritual como tal vem iluminada. A vida espiritual é também um saber originário que
vê além de si. A consciência de si é abertura para dentro, a consciência desse mais é
abertura para fora. Essa é uma primeira interpretação da espiritualidade” (id).
Mas o que quer dizer liberdade? É o mesmo que dizer: eu posso. O mundo das coisas
não se impõe ao meu olhar, as coisas me convidam a seguir, a observar de diversos
pontos de vista, a penetrar nelas. Posso responder a esse convite e me abrir cada vez
mais, como posso não responder. As coisas me atraem e me provocam, despertam o
meu desejo de possuí-las. Como falado, o ser humano não está abandonado, inerte ao
jogo estímulo-reação; ele pode opor resistência, pode barrar aquilo que emerge nele.
Como dito, a alma da alma é o centro de todo o ser vivo/vivente, é o lugar para onde
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conflui tudo aquilo que penetra vindo do externo e de onde parte todas as reações
instintivas dele provenientes. Isto no ser humano não é, porém, mero acontecer:
enquanto pessoa livre pode ter nas mãos esse centro, pode porque usá-lo ou não é
questão de liberdade. Desse poder enquanto liberdade, nasce a possibilidade do dever.
Poder e dever, querer e agir, estão interiormente conexos/estreitamente ligados
(p.125/p.649-650).
Mas o que significa que o eu deve formar a si mesmo? O eu e o si são a mesma coisas?
Encontramos no eu uma certa reflexividade. Stein introduzirá de forma explícita o
conceito de intencionalidade (ou orientação ao objeto), definindo-a como a forma
fundamental da vida psíquica específica do ser humano, implicando: “o eu que se volta
ao objeto, o objeto visado e o ato no qual o eu, constantemente, vive e se orienta de um
modo ou de outro ao objeto”. Vivemos um mundo que acontece se colocando aos
nossos sentidos e que, mediante esses, nós podemos percebê-lo – portanto, numa
constante correlação sujeito-objeto, como convencionalmente tratada. A estrutura e o
direcionamento dos atos perceptivos, a estrutura regulada da vida intencional
corresponde àquela formal do mundo dos objetos. Perceber os objetos significa
perceber a unidade objetiva formada de maneira determinada. A passagem de um ato a
outro é um progredir no contexto de um só mundo objetivo (p.127).
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O espírito que com sua vida intencional ordena os materiais sensíveis em uma estrutura
e, fazendo isso, abarca um mundo de objetos é a razão ou intelecto, sendo que a
percepção sensível é sua primeira e mais básica atividade. O eu conhece, o eu
“inteligente” experimenta motivações que provém do mundo dos objetos, apreendendo-
lhes fazendo isso com sua livre vontade. O espírito é, portanto, razão e vontade,
conhecimento e vontade estabelecem uma relação de recíproca dependência.
Nesse ponto e segundo o desenvolvimento de Stein, adentramos o mundo dos valores.
O valor não está presente como motivação apenas em referência ao conhecimento e
nem determina uma resposta apenas no nível dos sentimentos. Eles são motivos, mas
em um sentido novo: exigem uma determinada tomada de posição da vontade e uma
ação correspondente. Essa é a forma especificamente pessoal do querer e do agir para a
filósofa. Entendemos, assim, como o ser psíquico não exaure a atividade do eu. O
fundamento ontológico da vida psíquica atual foi visto anteriormente na alma mesma
com suas potências e seus hábitos. Potencialidade, “habitualidade” e atualidade
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encontram-se numa relação funcional, já que as potências delimitam o campo natural de
possibilidade da atualidade e esta, por sua vez, forma o que identificamos como habitus.
Stein retoma todos os desenvolvimentos até aqui expostos para aprofundar a discussão
se detendo a falar da alma, da sua formação pelo eu, da sua relação com a forma e desta
com o corpo. É importante compreender, antes de tudo, que a sua proposta não é lidar
com o eu que Husserl denominou como “eu puro” (o sujeito dos atos pelo qual se
irradia toda a vida da consciência de maneira funcional e que, nesse sentido, está
privado de extensão, qualidade e substância), mas considerar o que se pode encontrar
“até o fundo da alma”. Para tanto, segundo a autora, uma descrição como aquela não
basta. Os desenvolvimentos encontram-se detalhados nas páginas finais do capítulo e
fornecem uma série de exemplos da relação concreta que todas essas “instâncias”
[corpo vivo, forma, alma, eu] podem estabelecer entre si. Essas possibilidades são de
suma importância para o nosso estudo e vão aparecer já sintetizadas no capítulo
seguinte – considerado o mais importante segundo consta na apresentação que Ales
Bello faz da obra – ligadas ao conceito de força.
Observações relativas às traduções:
Vigilância – Italiano / Despertar – Espanhol
Saber de si mesmo – Espanhol / Consciência de si – Italiano
A partir da página 126 do texto italiano a ordem dos tópicos abordados na reflexão, que
estavam expostos na mesma sequência nas duas traduções, não permanece a mesma
quando comparada ao texto espanhol.
Capítulo VII – ANIMA COMO FORMA E ESPÍRITO
Quando referimos à unidade da forma substancial estamos querendo, com esse termo,
indicar que tudo aquilo que uma coisa é nos conduz a uma só forma substancial e que,
então, no ser humano não existe uma pluralidade de formas das quais uma seria
responsável por formar o corpo uma coisa material, outra constituiria o fundamento da
vida orgânica e outra o fundamento da vida animal e espiritual. Sendo assim,
entendemos que a espécie não é um “composto”, mas que os indivíduos nos quais ela se
apresenta demonstram uma estrutura estratiforme. Pergunta-se: É possível entender “ser
vivo” e “ser humano” como relação entre gênero e espécie, assim como a tradição
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coloca? De um ponto de vista lógico é possível, mas não de um ponto de vista
ontológico, já que gênero quer dizer as ideias mediante as quais os diversos âmbitos do
ser se unificam e se distinguem uns dos outros. Quando se fala que o indivíduo é
matéria formada, estamos afirmando que existe na matéria qualquer coisa que torna
possível uma multiplicidade de exemplar da mesma forma. Essa discussão é tênue e
coloca em jogo as definições da tradição e aquela de S. Tomás com a qual Stein faz
referência (não será o caso de abarcá-la para esse fichamento).
O início do capítulo volta-se ao trabalho de levantar todas as objeções e problemáticas
inerentes ao problema da unidade da forma substancial e cita, como exemplo, a
necessidade de explicar o que ocorre diante da fratura de um osso, uma lesão muscular
ou de tecido, provocada por algum instrumento cortante que obedece às leis da
mecânica. A atividade livre, segundo a autora, pode ser vivida também como um
acontecimento puramente material. Isso parece ir contra essa unidade, na medida que a
alma pessoal-espiritual determina amplamente o aspecto corpóreo, mas não pode fazer
isso de maneira exclusiva; inicia a sua existência em um corpo já existente e permanece,
por quanto dure seu ser, submetida à legalidade do corpo material, que em parte se
coloca a serviço da formação espiritual, mas em parte a impede. Na morte ocorre,
segundo Stein, um abandono real do corpo vivo; com a morte o corpo vivo torna-se um
corpo puramente material que mantém ainda durante um certo tempo as características
de corpo vivo, mas que sendo formado mediante a alma, inicia a decompor-se até que
deixe de ser também um corpo material. A alma, portanto, mostra-se como forma do
corpo e ambos só são o que são graças um ao outro. A alma espiritual entra na unidade
da natureza humana ocupando um lugar central e dominante, sendo ela que confere a
tudo o caráter de pessoalidade e de autêntica individualidade, atravessando assim todos
os níveis. Porém, dirá a filósofa: a penetração nessa unidade não determina sua inteira
estrutura ôntica, não podendo ser por isso equiparada à forma substancial – esta última é
o princípio estrutural do ser humano individual na sua inteireza que se mostra, por sua
vez, único, ainda que pressuponha uma série de substâncias como condição de
existência (p.147/p.673).
Citaremos agora algumas definições que a autora fará no tópico destinado a tratar da
essência do espírito:
Intellectus – indica o espírito que conhece; alude-se a uma potência da alma para a qual
podemos empregar o termo “razão” se o tomarmos em sentido amplo e não atrelado à
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linguagem habitual.
Mens – Parte superior da alma, própria da alma humana. Abraça intelecto e vontade
(consciência e tensão espiritual confrontadas com a sensibilidade) e remete a diversas
potências: conhecer, querer, sentir espiritual...).
Spiritus – Etimologicamente significa “hálito”, caracterizada por não ser fixo, pela sua
leveza e pela sua mobilidade, em contraposição à concepção materialista dos primeiros
filósofos gregos que só podiam compreender o espírito enquanto matéria.
Essas distinções vão se fazendo importantes para compreender a estrutura do ser
humano, por exemplo, se entendemos como um ser espiritual ligado a um corpo (como
a alma humana) possui, indiretamente, também um certo vínculo espacial. Esta
consideração é especialmente importante no percurso que Stein fará iniciando com a
“análise” sobre os puros espíritos finitos e infinitos – a saber, anjos e Deus – com o
intuito de chegar a explicitar a unidade existente entre corpo vivo e alma. Mas como
podemos colher tal unidade? Se nos ativermos à observação atenta, reconheceremos a
dependência recíproca entre corpo e alma como um fato inegável. Stein oferece muitos
exemplos nesse sentido: as expressões do rosto e gestos como “linguagem da alma”, o
pouco rendimento intelectual quando se está muito cansado ou em caso de desnutrição,
o aumento da atividade da fantasia com o aumento da temperatura corpórea ou sob o
efeito de estimulantes, entre outros. Tal reciprocidade vem sendo discutida há séculos,
entendida como paralelismo ou interação/paralelismo psicofísico e teoria do efeito
recíproco. A posição de Stein acusa um falso pressuposto para o problema: a afirmação
de que no ser humano estão reciprocamente ligadas duas substâncias. Acerca disso,
reitera não ser possível pensar o corpo humano como uma substância autônoma sem a
alma e vice-versa. Os erros para as duas teorias metafísicas que cita como exemplo são
os seguintes: 1. Colocam a “matéria” e o “espírito” como realidades independentes e
unitárias, enquanto nós devemos considerar como reais os indivíduos e tudo aquilo que
é criado como matéria formada, depois “a realidade” ou “a natureza” como uma inteira
série de formações materiais de diversos tipos; 2. Eles conhecem apenas o dualismo
“matéria” (ou “corpo”) e espírito, e não levam em conta os estados intermediários que
constituem o mundo orgânico e animal.
É preciso seguir as reflexões de Stein para entender como a alma não habita o corpo
vivo como em uma casa, não o veste ou tira como um vestido: “a alma interpenetra
totalmente o corpo vivo e, através desta interpenetração da matéria organizada, não só a
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matéria torna-se corpo vivo permeado pelo espírito, mas também o espírito torna-se
espírito materializado e organizado” (p.156/p.681). Mas em que ponto é possível colher
tal interpenetração?
É a fim de responder a este questionamento que Stein apresenta o conceito de força.
Segundo a filósofa, um princípio fundamental na física e na psicologia que ambas
trataram de eliminar – na psicologia talvez, dirá, devido ao receio de colocar aquilo que
é psíquico em paralelo com aquilo que é físico. Nota-se no ser humano diferentes
intensidades de vida espiritual: há uns que podem viver em constante atividade
intelectual enquanto outros raramente ou nunca poderão alcançar uma semelhante
tensão. Stein afirma que pode ser que um ser humano por natureza não seja capaz de
atuar como outro e que, por natureza, não disponha da mesma quantidade de força
espiritual. Porém também aquele que é mais dotado não é capaz de permanecer um
longo tempo nessa tensão máxima que consegue alcançar, ou seja, sua força é uma
“potência limitada”. Em outras palavras, entende-se que o ser humano não pode
atualizar ao mesmo tempo toda força de que, por natureza, é dotado. “Não pode”
implica certas restrições porque não é possível afirmar que seja impossível, pode lhe
chegar de fora uma força que lhe ajude. Sendo assim, entende-se que a força é uma
espécie de quantum finito que ele deve administrar e é capaz de incrementar. É possível
falar de uma saída de si podendo conservar-se, como uma saída de si sem conservar-se.
O sair de si, dirá Stein, é próprio do ser espiritual. Por natureza estamos abertos aos
homens e necessitamos de um ato próprio para nos fecharmos, seja de modo passageiro
ou duradouro – esse ato não é sempre um ato livre em sentido específico, podendo
ocorrer involuntariamente. É possível, por outro lado, acolher em si algo de outro que
nos faça crescer espiritualmente por esse motivo. Enquanto se opuser à sua ordem
ontológica, o espírito suprime a sua própria força; quer dizer, se dispersa sem poder,
todavia, exaurir seu ser, tornando-se, porém, um ser obscuro e impotente, fechado em si
mesmo.
Nesse sentido, pode-se então falar de “quatro movimentos” de força: conservar,
incrementar, dissipar ou se consumar. Parece que no ser humano a atualidade espiritual
como tal já requer um dispêndio de força, isto é, consome a força natural. Essa força
natural da alma humana está ligada à constituição psicofísica e podemos, assim, falar de
uma força física sem nos referirmos a uma força mecânica, mas orgânica – que se
manifesta no crescimento, na atuação, na capacidade de trabalhar e na capacidade de
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sofrer. A força espiritual e a força física – continuará Stein – não são independentes
entre si: em caso de grande cansaço físico, ou seja, devido a um grande esforço físico, a
atividade espiritual ou não é possível ou só é possível através de um grande esforço.
Acrescenta-se o fato que, segundo o hábito de vida, existe a possibilidade de que a força
já siga uma direção bem determinada ou, como exemplificará a autora, pode ser que:
“no estado de cansaço ou também de fraqueza duradoura, a vontade possa recolher as
“últimas forças” e empregá-las num escopo para o qual “na realidade” não se podia
mais” (p.160/p.683). Pode-se pensar, a partir dessas constatações, quais são as fontes
possíveis pelas quais a força pode ser reintegrada. Considera-se, evidentemente, a
composição e constituição do corpo para que possa existir uma reserva e um “surplus”
para as atividades espirituais. Uma alimentação adequada é essencial nesse sentido e
podemos, em razão disso, produzir força indiretamente não apenas dispondo da força
disponível – o que exigiria, segundo Stein, um aprofundamento na fisiologia. Que o ser
humano esteja situado no mundo material e que possa desse extrair força, coloca
também a possibilidade de que aconteça o mesmo em relação ao mundo espiritual no
qual também ele se encontra inserido. Para isso é preciso, segundo a filósofa, ampliar o
que até então foi referido como espiritualidade. A autora coloca, assim, que ser aberto
deve-se entender no sentido de intencionalidade, de apreensão de algo objetivo e isto
quer dizer que a alma também pode acolher em si qualquer coisa e se apropriar
interiormente. Tudo aquilo que Stein denominou “movimentos de ânimo”, alegria ou
dor, esperança ou medo, etc, possui a peculiaridade de agir sobre o estado vital do ser
humano, incrementando ou consumindo sua força (porém reconhece-se que a força está
sendo utilizada em todos os momentos e que a alegria, que é um manancial de força,
requer também certa quantidade de força empregada). Para a filósofa, o mundo dos
valores positivos constitui uma imensa fonte de força psíquica e os valores são
apreensíveis por nós mediante nossa vida espiritual. Valores como bondade, beleza,
sublimidade, não são pessoas e nem estão vinculados necessariamente a alguém, porém
aparecem como objetos para os sujeitos. Esta colocação é detalhada por Stein através do
exemplo da paisagem natural (p.164/p.689). A filósofa logo se contrapõe a argumentos
que poderiam confundir essa experiência: “a beleza suave e pacífica que nos causa tal
imagem não é uma projeção nossa como alguns estudiosos de estética poderiam
afirmar. Quando nosso estado de ânimo se altera interiormente graças às características
da paisagem, experimentamos essa mudança como nascendo desse confronto. Não nos
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identificamos com os contornos e com as cores da paisagem mais do que com o
contorno e com as cores de um rosto humano que nos lança um olhar luminoso e suave”
(pp.164-165/p. 690). Este movimento não acontece só diante de uma complexa
paisagem, mas também frente a elementos extremamente simples do mundo que se
apresentem aos nossos sentidos: cores, sons e formas. Entendemos, portanto, como o
sentido espiritual aos quais nos referimos assume um sentido mais amplo, isto é, dele
participam também os valores que encontramos – afirma Stein – que podem nos
penetrar e nos fazer alegres, entusiasmados, etc. É possível então compreender um
ponto que Stein havia tocado anteriormente – como é justamente a experiência interna
que nos permite alcançar a natureza própria da alma e como essa espiritualidade em
sentido mais amplo está inteiramente presente na sua formação: “é o nosso interior no
sentido mais próprio, aquilo em nós que se enche de dor e alegria, que se indigna por
uma injustiça e se entusiasma diante de uma ação nobre, que pode se abrir
amorosamente e confiantemente a outra alma ou evita suas intenções de aproximar-se; é
aquilo que não só capta e estima intelectualmente a beleza e o bem, a fidelidade e a
santidade (e em geral, como já foi dito, todos os valores), mas também lhes acolhe em si
e vive deles, se enriquece e cresce em amplitude e profundidade devido a eles” (p.679).
Quando falamos de forma e espírito, não estamos aludindo a algo que seja oposto à
matéria – essa consideração é muito importante para a compreensão da passagem que
Stein fará nesse momento. Há duas possibilidades de compreensão da matéria segundo
a filósofa: a primeira é tomá-la como uma forma vazia que se permite preencher de
diversos conteúdos. Como preenchimento foi identificado aquele que se apresenta no
formato de vida espiritual e que Stein denominou força (Kraft). A outra referência
possível de “matéria” é aquela que ocupa um espaço: que a filósofa especificará como
Stoff. Um exemplo muito especial – que citaremos integralmente pela devida
importância – é usado pela autora quando fala do bloco de granito: “é uma formação
material, isto é, constituída de ‘matéria’ (stoffliches). Nele não percebemos uma
espiritualidade pessoal. Atribuir a ele uma alma e vida é uma mera construção da
fantasia. Porém ele é uma formação, ou seja, é formado. Isso não só quer dizer que
possui uma descrição espacial geométrica, mas que é constituído segundo um princípio
estrutural próprio que chamamos forma ou espécie: não são partes essenciais o seu peso
específico, a sua consistência, a sua dureza; mas também a massa, o fato de que ‘se
apresenta’ como bloco enorme, não está em grãos ou fragmentos. Tudo isso que está
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incluído na forma é mais que um conjunto de qualidades sensíveis. A formação da qual
estamos falando é plena se sentido e chama nossa atenção de modo singular. Essa
irremovível consistência e essa massa não são só algo que se mostra perante nossos
sentidos e que a razão constata como uma realidade. O sentido e a razão se afetam
interiormente; revela-se a nós algo; nesta realidade lemos alguma coisa. Se trata, de um
lado, de um sentido simbólico que encontramos numa formação: ele nos fala de uma
imperturbável estabilidade e de uma segura confiança como qualidade a ela adequada.
Esta interpretação não é arbitrária e casual; são nexos simbólicos precisos, quer dizer, a
argila ou a areia não se deixam interpretar da mesma forma que o granito. Existe,
portanto, um sentido prático que nos interpela (...). O sentido simbólico e o sentido
prático são intrinsecamente conexos, correspondem um ao outro. Em ambos os casos a
realidade vai além de si mesma; se deixa “pressentir” a presença de um espírito pessoal
que está dentro do mundo visível e confere a cada formação o seu sentido; dá a essa
uma forma conforme a posição que ocupa na estrutura do todo. (...) Não existe,
portanto, qualquer formação privada de espírito; de fato, a matéria formada é matéria
permeada de sentido. A forma não é espírito pessoal, não é alma, mas é sentido – sendo
assim, está certo falar de ‘espírito-objetivo’” (p.166-167/p.692-693).
Na diferenciação posterior que fará entre o mundo da natureza – cujos movimentos
obedecem a uma lei de necessidade – e o mundo do espírito pessoal, afirma que
também este último segue uma determinada legalidade. Stein falará que há, se
aprofundamos a descrição, uma legalidade do ser espiritual e uma legalidade nessa
incluída: a legalidade da atividade espiritual. É próprio da atividade pessoal espiritual
ser consciente, direcionada, livre. A pessoa espiritual é livremente ativa, seu agir é
conhecer e querer. Segundo a filósofa, a consciência tem como objeto a verdade e a sua
vontade é orientada ao bem (em cada caso àquilo que se considera bem).
O ser humano está sujeito aos dois mundos: àquele das leis de necessidade e àquele das
leis da liberdade, ambos se interpenetrando de modo peculiar. Para mensurar a força de
um corpo meramente físico recorremos a uma fórmula física, não ocorrendo o mesmo
quando nos referimos à força física do ser humano. Isto porque, como evidencia Stein
em diferentes exemplos, o homem pode dispor voluntariamente da sua força, podendo
empregá-la em uma quantidade menor ou maior. Nota-se que não é o mesmo que falar
de um impulso mecânico e esse fato demonstra como o corpo vivo é permeado pelo
espírito e como a ação espiritual livre influencia o mundo material. Essa relação entre
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vontade e força que eu posso empregar não é imediatamente/diretamente reconhecida e
compreensível – Stein cita exemplos (p.172-173/p.699). O ser humano pode
estabelecer objetivos baseando-se numa reflexão puramente espiritual, mas não pode
realizá-los sem a colaboração do seu corpo. A avaliação da sua força física, que é ela
mesma um ato espiritual, pode entrar no contexto razoavelmente fundado de
estabelecimento que faço de um objetivo. Stein retoma os chamados “estados vitais”
(como a vivacidade e o cansaço) para afirmar que tais sentimentos momentâneos não
são um fundamento suficiente para que uma pessoa avalie sua capacidade de ação,
embora seja o acesso para algo que me chega como “força” – o sentimento pode
enganar, dirá a filósofa. É possível então chegar a uma avaliação mais ou menos
fundada acerca da força que possuo, sobretudo se eu observa-la por um longo tempo e
colocá-la à prova em diferentes circunstâncias. É preciso, segundo Stein, fazer a
seguinte distinção:
1. Entre atos espirituais, realizados livremente e vivenciados no contexto de
motivações racionais, e estados pelos quais me torno consciente como “atos meus”, mas
que não são livremente realizados por mim e nem entram imediatamente em um
contexto de motivações racionais (podem tornar “motivos” só como “objetos” dos atos).
2. Entre estados vivenciados e qualidade permanente que não são vividas
imediatamente, mas experimentamos através daquilo que é vivenciado diretamente. Os
'sentimentos vitais’, como vivacidade e cansaço, e os sentimentos sensíveis como dor
física, permitem que a unidade do corpo vivo e alma seja vivida de maneira mais
imediata. São conscientes, vividos como pertencendo a mim, localizados em todo o
corpo em um ponto específico. O vivido consciente diz respeito a quanto de pessoal e
espiritual existe neles. Os atos espirituais como o pensar, o querer e o agir, não são
vividos como livres, motivados racionalmente, mas possuem algo do “estado”. A força
é uma qualidade permanente de todo ser humano que não é vivida diretamente, mas se
oferece a nós através do que vivemos diretamente. (pp.174-175/p.700).
Existe, porém, uma independência relativa entre força física e espiritual que Stein
exemplifica também de diversas formas nos parágrafos seguintes e que é preciso
considerar.
A autora anteriormente havia tratado do conceito de potência, correlacionando-o ao de
atos. A variedade das potências encontra uma correspondência com a multiplicidade de
atos, especificamente diversos (percepção sensível, o pensar, o querer) e estes, à sua
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volta, com a variedade de objetos aos quais se orientam (coisas, objetos, abstrações,
objetivos). O termo “força” permite entender que as potências não só correspondem ao
conteúdo dos atos aos quais se orientam, mas também que elas são aquilo que torna
possível os atos como “atuação”/trabalho. Stein esclarecerá as consequências desta
constatação: “O plural “forças” indica que na multiplicidade das potências, a força do
ser humano – que pura é uma só – parece dividida e pronta para ser utilizada em
atividades com conteúdos determinados. Pode estar disponível para ser empregada em
uma direção cujo conteúdo é dado pela natureza” (p.176/p.702).
Nesse momento a autora dá alguns exemplos de como a força é limitada e diferente para
cada natureza humana individual, podendo ser empregada também de modo particular
em cada ser humano. Passa-se a evidenciar como a vontade está presente nesse
dinamismo e como em alguns casos ela pode implicar uma tensão de força
extremamente elevada (também a filósofa observa que um mesmo emprego de força
contínuo pode acarretar uma formação duradoura para o desenvolvimento de certa
atividade). A vontade, Stein vai dizer, “aparece como elemento dominante no inteiro
âmbito do organismo psicofísico. Este pode empregá-la com maior ou menor
intensidade a força presente, nesta ou naquela atividade particular, e pode exercitá-la
empregando-a no desenvolvimento de uma tarefa ou de outra, na direção de uma ou
outra disposição, dando forma ao que chamamos de habitus para determinadas
potências. Assim, o desenvolvimento do ser humano depende da capacidade de dispor
de maneira voluntaria da força presente. Esta capacidade, porém, deve levar em conta
aquilo que é dado pela natureza com as atitudes presentes e qualidade de força
disponível” (p.178/p.704).
Inclinação e talento são definidos pela autora de modos distintos e fazem parte de sua
análise acerca do emprego da força:
Talento - significa possuir por natureza a capacidade de fazer algo bem.
Inclinação - significa fazer algo voluntariamente. Normalmente se inclina àquilo para o
qual temos talento e experimentamos satisfação em desenvolver uma atividade
correspondente. A inclinação comporta uma particular estima por aquilo que se faz.
Tais esclarecimentos ampliam o nosso leque de compreensão sobre o dinamismo de
força.
Partindo da união do mundo espiritual à sua fonte de força, pode-se compreender o fato
que um ser humano fisicamente fraco possa levar uma vida espiritual muito intensa. Isto
98
porque ele é capaz de adquirir forças novas a partir do mundo espiritual e utilizá-las
para sua própria vida espiritual (pp.179-180).
A autora irá retomar dentro da reflexão presente um conceito chave: alma da alma.
“Aquilo no qual a alma é em si mesma, pode encontrar a si mesma e se encontra assim
como é, na determinação com a qual se afirma continuamente. É aquilo que a alma
assume interiormente; também quando colhe a si mesma no seu significado e se
confronta com ele, guarda ou solicita força, ou sai à sua procura. (...) Toda tomada de
posição da liberdade vai além da alma a fim de configurar a si mesma existencialmente”
(p.181). Stein continuará sintetizando: “A alma da alma é uma realidade espiritual e a
alma como totalidade é um ser espiritual cuja característica é aquela de possuir uma
interioridade, no centro, da qual essa deve sair para encontrar os objetos e para a qual
deve retornar quando recebe algo de fora. Aqui encontramos o centro da existência
humana” (p.182).
Observações relativas às traduções:
Em alguns momentos, a tradução em espanhol “anímico” refere-se ao termo “psíquico”
na tradução italiana. Demos mais uma vez preferência à italiana em razão da
especificidade do termo psíquico nas considerações de Stein e da fenomenologia.
Paralelismo ou interação – Italiano / Paralelismo psicofísico e Teoria do efeito
recíproco – Espanhol
Força corporal – Espanhol / Força física – Italiano
Matéria (Stoff) – Italiano / Ser material, Material (Stoff) - Espanhol
Qualidade permanente – Italiano / Propriedades permanentes – Espanhol
Capítulo VIII – A PESSOA COMO SER SOCIAL: PERTENÇA DA DIMENSÃO
SOCIAL AO SER DA PESSOA
Este capítulo inaugura uma dimensão ainda não aprofundada no percurso traçado até
aqui. Isso não quer indicar que ela tenha menos importância, pelo contrário, Stein
afirmará que tomar o indivíduo isoladamente não passa de uma abstração, sua
existência é uma existência em um mundo, a sua vida é uma vida em comunidade
(p.187/p.713). Aquilo que o ser humano é no mundo social contribui para determinar de
todo o seu ser psicofísico, não se pode por isso compreender a estrutura da pessoa
humana sem examinar em que medida ela está determinada pelo seu ser social. A
99
filósofa tomará o cuidado de chamar atenção à tendência em voga na sua época de
considerar o ser humano exclusivamente pela sua pertença a um conjunto social,
negando sua personalidade individual. Salienta, portanto, a necessidade de fazer um
exame sério sobre esta dimensão. Nesse sentido, começará esclarecendo múltiplos
aspectos do ser social do homem:
1. Atos sociais
São aqueles atos nos quais uma pessoa se dirige a outras: perguntas, pedidos, ordens.
Geram um contexto de ação supraindividual. Em sentido mais amplo pode-se entender
por atos sociais também as tomadas de posição dirigidas a outras pessoas, como o amor,
o respeito ou admiração, todas constituindo uma resposta a valores pessoais ainda que
não apontem uma relação recíproca. Também uma categoria muito especial que
podemos considerar, diz respeito aos atos capazes de produzir ou anular certas
realidades objetivas no mundo social: uma promessa produz o direito a exigir ser
realizada, desaparecendo apenas com o cumprimento ou quando o destinatário da
promessa abre mão de seu cumprimento. Segundo Stein, todo o direito positivo tem
esse caráter.
2. Relações sociais
Todos os atos sociais pressupõem um contexto de compreensão já existente entre as
pessoas. As relações sociais não são atos de uma pessoa, mas algo que existe entre
pessoas e possuem como seu veículo ao menos duas pessoas. Ressalta-se que só quando
cada uma das pessoas em dado momento mostra à outra qual é sua atitude, quando cada
uma sabe da atitude da outra e responde a ela, só assim pode dizer que existe uma
relação de amizade. Essas pessoas estão em relação mútua: são amigas. Esta relação faz
parte agora de seu ser pessoal e junto a outros fatores se faz determinante para suas
vidas.
3. Formas sociais (comunidade)
Conforme o sentido literal do termo, as relações sociais podem ser consideradas como
“formações”. As comunidades (considerada para a autora um sentido mais amplo de
formação) se referem às formações cujas estruturas fazem as pessoas, os seus atos
sociais e suas relações sociais ocuparem um lugar importante. Podem ser passageiras ou
duradouras. Podem chegar a constituir um “nós” e podem ser pensadas através de
alguns exemplos indicados por Stein no texto.
4. Tipos sociais
100
Um ser humano singular, como membro de uma comunidade, encarna um “tipo
humano”, ele possui na estrutura de seu ser pessoal algo que é comum a todos os outros
que pertencem a essa comunidade e se diferencia de todos aqueles que pertencem a
outra comunidade. Ao mesmo tempo em que há algo de típico em si que corresponde à
sua posição de membro da comunidade e que o torna diferente dos outros membros da
sua comunidade (é pai e não filho/é senhor e não um de seus súditos).
O que seja detalhadamente um tipo e suas condições – externas e internas – a filósofa
tratará em seguida fazendo uso de exemplos precisos que não será o caso explorarmos
agora (p. 191 a 195/p.718 a 722).
Em síntese, os tipos sociais são algo determinado pelo externo, das condições de vida, e
do interno, se por tipo compreendemos aquilo que se pode colher no comportamento de
um ser humano como um todo configurado que o acomuna a outros. Partindo dessa
definição breve, Stein introduz a presença de um significado originário relativo a algo já
formado – se deterá no exemplo dos jovens de Jugendbewegung. Importa frisar que,
para filósofa, aquilo que o ser humano se torna, transformando-se em um novo tipo, não
subentende simplesmente aquilo que ele era, mas também o que era não desaparece
completamente. Trata-se do fato de que aquilo que ele era se forma novamente a partir
daquilo que ele recebe e da posição que ele assume nesse confronto.
Nos exemplos e no desenvolvimento da reflexão acerca dos tipos, Stein retoma a
existência do que chamará “patrimônio inato” que não pode ser confundido com
“matéria prima” no sentido de algo totalmente indeterminado. Patrimônio inato porque
se pensamos em dois irmãos que viveram o mesmo ambiente, os mesmos genitores, os
mesmos amigos e escola, quando ambos saem da casa paterna identificaremos tipos já
totalmente diversos entre os irmãos. A autora dará inicio a uma discussão mais refinada
considerando o problema da hereditariedade, da ciência genética, os aspectos físicos e
psíquicos em jogo, entre outros elementos presentes. Afirma, no entanto, a dificuldade
de determinar em uma pessoa singular aquilo que é “inato” e aquilo que foi formado por
influência do ambiente. Não se pode negar, contudo, que exista por natureza uma
humanidade diferenciada.
A reflexão filosófica que Stein continuará a desenvolver tocará na problemática acerca
do surgimento da alma individual, pessoal e espiritual, afirmando não ser essa algo
hereditário/ditada pela “descendência” ainda que no início esteja fortemente vinculada a
seus genitores ou herde deles determinadas características.
101
Ao entrar no conceito de “tipicidade”/índole típica, a filósofa se deterá na análise
essencial daquele conceito que podemos designar como povo. Brevemente, pode-se
entendê-lo como uma comunidade em sentido mais amplo do termo, quer dizer, uma
formação social na qual pertence uma pessoa individual. Mas o que é necessário à vida
de um povo? Primeiro, nota-se que é próprio do povo possuir uma vida que se distingue
da vida da pessoa singular que a ele pertence. Isso quer dizer que os indivíduos que o
formam nasceram e morreram sem que o povo tivesse se extinguido. Ao povo pertence
uma terra, um espaço da terra que pode ser ocupado desde sempre ou por um tempo
determinado. O povo realiza ações e possui um destino, sendo que todos esses
elementos não são possíveis sem que os seres humanos singulares tomem parte: “o povo
não é uma realidade fora ou além do seu membro, mas “nele”” (p.200/p.728). Não é
necessário, dirá Stein, que todos aqueles que pertençam ao povo tenham consciência do
que o povo é e faz. Acontece que aquele que vive conscientemente como membro do
povo, o seu agir e o agir do outro assumem um sentido que vai além da vida individual.
A filósofa fará distinções precisas sobre o que entende como “vida exterior” e “vida
interior”, traçando dentro desta última, o que indicou como: “autoconfiguração”;
“autoconservação” e “autoexpressão”. Revelam dinamismos que constituem a vida de
um povo, sendo retomados mais adiante na discussão que fará acerca da relação entre a
pessoa singular com o povo. Os exemplos apresentam uma riqueza de elucidação acerca
dessa dimensão na estrutura do ser humano, abarcando as possibilidades de pensar
aquilo que se mostra essencial. Não ficharemos essas variedades, porém
consideraremos que elas estão presentes e foram descritas na reflexão da autora caso
precisemos consultá-las.
Observações relativas às traduções:
Formas sociais – Italiano / Estruturas sociais – Espanhol
Índole típica – Espanhol / Tipicidade - Italiano
Capítulo IX – PASSAGEM DA CONSIDERAÇÃO FILOSÓFICA DO SER
HUMANO À TEOLÓGICA
Como o próprio título afirma, este capítulo marcará a passagem do âmbito filosófico ao
teológico. O que chama atenção é a necessidade dessa mudança ser justificada por Stein
a partir de uma consideração de cunho ontológico, ou seja, em acordo com o percurso
que veio fazendo em toda a obra e em continuidade com os capítulos precedentes. É
102
possível já no primeiro parágrafo reconhecer essa coerência da autora: “Procuramos a
resposta à pergunta: o que é o ser humano? (...) E porque tivemos como escopo
compreender um ser na sua estrutura essencial, definimos esse procedimento como
ontológico. (...) Devemos considerar uma evidência ontológica o fato que o ser humano,
do mesmo modo que todas as coisas finitas, remete a Deus e seria incompreensível sem
esta relação com o ser divino, isto é, seria incompreensível tanto o fato que seja (a sua
existência) quanto o fato que ele seja aquilo que é” (p.215/p.742). Trata-se, portanto, de
levar às últimas consequências tal ontologia.
103
ANEXO B. Análises preliminares
O que se pretende analisar? E por quê?
...Encontramo-nos diante da conclusão singular que o mundo
vivo/vivente não é de fato vivo, que a ciência da vida, na sua
interpretação da vida, afastou-se dessa, do mesmo modo no qual
o físico explica, no fim de um estudo sobre as cores e sobre os
sons, que o que existe não são cores ou sons, mas apenas
vibrações. (...) A compreensão natural do homem ingênuo
protesta contra esta imagem científica do mundo. E o filósofo se
vê convidado a verificar a legitimidade da experiência pré-
científica e científica.
(Stein, 2000/2002, p.100/625).
Stein se refere neste trecho à zoologia que, segundo a própria autora, não se
limitou a descrever os dados, mas quis explicar todos os dados de fatos biológicos
mediante a lei física e química. A citação aparece como exemplo do que as análises
presentes pretendem evitar, caminhando dentro do mesmo propósito da autora quando
afirma lidar com o fenômeno na sua pura concretude, tomando-o como início da
descrição e, no caso da análise exigir uma abstração, voltar-se novamente para trás
buscando o fenômeno na sua inteireza.
Após o trabalho rigoroso de descrever as generalidades da experiência de dor em
atletas lesionados, inicia-se o retorno progressivo à realidade conforme a mesma se
apresenta aos olhos dos atletas e dos profissionais envolvidos. Intenta-se, neste
momento, devolver as cores perdidas “provisoriamente” no empenho de explicitar os
elementos constitutivos do fenômeno conforme o esforço analítico exige. O “remontar
às unidades óbvias de sentido que fundamentam as validades essenciais do nosso
mundo” (Ales Bello, 1998, p.18), próprio da arqueologia fenomenológica, é justamente
esta empreitada que faz emergir como parceira a ontologia.
O material empírico
Nadei, nadei, e morri na praia. (...) Tava muito bem, muito
bem, contente, feliz por tudo que eu estava fazendo no treino, aí
depois morreu na praia, morreu na praia, morreu. (...) Morreu,
104
não podia fazer nada para conseguir aquilo que você estava
pra fazer, é a mesma coisa de você estar dentro de uma casa, e
você abrir a porta e sair. Você está lá na casa com a mão na
maçaneta pra ver, mas você não consegue abrir a porta. Você
está trancado na porta sem poder fazer nada (S4).
Com a devida abertura para a sua dramaticidade, este é um dos relatos mais
tocantes de se ler, seja pela força imagética que o atleta usa para se expressar, seja pelo
conteúdo que a imagem faz vir à tona. Não se pode negar que mesmo quem não tenha
vivido a experiência de estar lesionado, que mesmo quem não seja um atleta, consegue
se aproximar de forma compreensiva do que se passa com esta pessoa que o está
relatando. Ainda que nem sempre se alcance uma expressão clara como essa, entende-se
que este movimento de aproximação é condição para compreender qualquer coisa. A
que nos remete a imagem de segurar uma maçaneta desejando e, ao mesmo tempo, não
podendo abrir a porta? Nós conseguimos, como seres humanos, usar nossa razão para
imaginar e “co(m)partilhar” um sentimento de aprisionamento que, num primeiro
momento, vem preencher de sentido esta experiência que se mostra à minha
consciência. O mesmo acontece frente ao esforço de se nadar e morrer na praia, ou seja,
como não se aproximar do que está querendo ser comunicado com estas palavras? Um
“morreu” carregado de intensidade, insistente, indicando uma grande perda, uma
impotência para mudar a experiência presente. Uma análise ontológica requer esta
proximidade, requer um olhar atento que colha os contornos definidores do fenômeno
sem esvaziá-lo da sua realidade ‘aparente’13.
Durante outra entrevista, este aprisionamento é relatado de forma diferente:
“meio que uma depressão (...) você treina, treina, treina, batalha por aquilo e chega na
hora H e não acontece. Não acontece, não acontece, vira uma prisão mesmo” (S2).
Nela está presente um termo familiar à Psicologia que, não por isso, remete à tristeza de
uma espera não realizada. Em ambos é possível apreender uma vontade impedida: você
querer fazer aquilo que gosta e não poder (S6). O “querer”, o “fazer”, o “gostar”, o
“poder” e o “não poder”, indicam atos específicos que todo ser humano é capaz de
compreender, “visualizar”/intuir com sua razão/espírito – usando termos caros à
Fenomenologia. Debruçar sobre os dados com este “olho espiritual” é o que o
fenomenólogo faz diante dos fenômenos concretos, como Stein fez com o “objeto” da
Pedagogia na obra fichada.
13 Aparente como qualidade do que aparece, isto é, do que se mostra e que pode se tornar objeto de conhecimento.
105
Aprofundar sua análise da estrutura do ser humano, reconhecendo o trabalho
fenomenológico levado a cabo, contribuiu tanto para nos familiarizar com estas
“estruturas” universais, como para nos ajudar neste exercício de abertura àquilo que se
nos manifesta pela leitura e releitura dos relatos. Em quais domínios do saber o querer,
o fazer, o gostar, o poder, estão circunscritos? A qual realidade pertencem?
As análises realizadas nos dois projetos precedentes apontaram esta condição de
“querer” e “não poder” como Núcleo central da experiência vivida pelos atletas, como
uma espécie de descompasso. Contudo, viu-se que esta adversidade primeira de uma
vontade de retorno à prática impossibilitada pela condição corporal, desdobrava-se em
novas e diferentes vivências como, por exemplo, uma modificação na percepção de si
dentro da realidade: “um vazio (...) como se eu ficasse meio perdido no tempo” (S1),
“meio que falta uma parte da pessoa” (S6). Também apareceu desdobrando-se como
questionamento existencial, no sentido de fazer emergir as próprias escolhas: “Esse ano
que eu fiquei lesionado, isso me fez pensar bem, e eu dei muita bobeira, não vou dizer
que eu dei bobeira, mas eu tinha optado por isso, em realmente investir meu tempo
para o atletismo e futuramente estudar, mas hoje eu acho que eu mudei de ideia, acho
não, eu mudei de ideia. Não vejo mais isso, não quero o atletismo mais apenas como a
minha principal e única fonte de renda, sabe? Eu tenho consciência de que se acontecer
alguma coisa, eu tenho aonde escorar, sabe? E hoje eu não tenho isso e futuramente eu
quero ter” (S8).
A percepção que o atleta relata ter sobre o próprio corpo também aparece
complexa, ultrapassando os limites do que se poderia querer atribuir como um
fenômeno simplesmente objetivo/natural ou mecânico: “eu não sei se eu posso, se está
na hora de eu voltar ou não, porque não é o fisioterapeuta que vai falar pra mim:
‘volta!’. Ele só vai ficar fazendo exceções, ele só vai me perguntar o que eu estou
sentindo. Quem vai dizer se eu volto ou não, sou eu! Porque ele não tem como abrir
meu joelho e olhar o que tem dentro” (S10). Nota-se que até a avaliação do
fisioterapeuta sobre a lesão entrelaça-se à percepção que o atleta tem de sua condição,
quer dizer, o que poderia ser colocado como direto e evidente em relação ao estado
físico ou reabilitação da lesão aparece determinado por outros elementos, como o
desejo, a percepção de dor, de desconforto, de incômodo e a incerteza: “Mesmo sentindo
algum tipo de dor eu vou voltar, por isso que eu te digo que eu não podia voltar, mas eu
vou voltar. Eu vou voltar e se eu sentir muita dor eu vou ter que parar de novo. Se eu
106
não sentir muita dor e eu sentir só um desconforto, incômodo, eu vou voltar. Só que aí
eu não sei se realmente eu deveria estar voltando ou não. Entendeu”? (S10).
Essa relação está presente com a mesma multiplicidade de elementos na
experiência que antecede o diagnóstico: “Na hora inchou muito, ficou muito inchado, eu
não conseguia nem apoiar o pé no chão. Aí fui teimoso, peguei, fiz a recuperação,
fazendo fisioterapia mesmo sem consultar médico algum, aí fui, recuperei. No primeiro
jogo que eu entrei, consegui ainda ficar alguns minutos, mas voltando tive outra lesão e
eu já sabia que alguma coisa estava errada, eu já estava esperando” (S1).
Mostra-se com grande evidência uma experiência corporal que não se encerra na
condição física, como o mesmo atleta segue relatando detalhadamente ao falar de suas
expectativas com o fim do tratamento e início do retorno à prática: “Agora que eu estou
voltando, no começo a gente sempre tem um pouco de medo, na fisioterapia a gente
sempre fazia individualmente, nunca tinha uma pessoa te olhando, uma pessoa pra você
tocar uma bola, não tinha uma pessoa pra você se comunicar, agora aqui no
treinamento você tem um companheiro, você tem um time adversário, você tem várias
pessoas que estão te olhando. Aí a gente chega assim em quadra: ‘Será que eu vou
conseguir? Será que eu dou conta? Será que eu ainda lembro de como é que joga?’ Aí
o primeiro passo foi: ‘Não, estou recuperado, tenho a cabeça limpa que não vai
acontecer mais nada’. Porque o primeiro pensamento que a gente sente é: ‘Nossa! Será
que eu vou conseguir? Será que eu estou realmente bom?’. E você entra em quadra
pensando: ‘Nossa! será que eu vou machucar de novo? E se eu machucar de novo será
que eu vou conseguir fazer toda a recuperação de novo?’. Você entra meio assim com
um pé atrás, meio que desconfiado se alguma coisa vai acontecer” (S1). O “corpóreo”
incita a dúvida, gera desconfiança. Em princípio um emaranhado de vivências que, com
a análise, vão podendo ser distinguidas e “clarificadas”.
Ficar diante dos relatos é encontrar essa multiplicidade de atos compondo a
experiência que estamos buscando compreender. O olhar filosófico da fenomenologia
desperta a atenção para a distinção das esferas nas quais tais elementos se inscrevem,
considerando a dificuldade de separação sem que se faça uso da abstração. Abstrair para
fins de clarificação parece adequado apenas enquanto busca pela evidência de sentido,
ou seja, pela compreensão daquilo que se nos apresenta. Neste esforço, por exemplo, a
dimensão espiritual começa a se destacar/descolar da dimensão meramente reativa,
107
psíquica: “O tratamento é chato porque não tem nada de motivante, você tem que fazer
aquilo lá por obrigação, não é nada prazeroso, não está aqui porque quer, mas porque
precisa para poder voltar, porque lá na pista é o mais prazeroso” (S2). A experiência
não se limita ao prazer ou desprazer, às emoções, mas implica o uso do espírito que
decide, independente da impressão imediata “deixada na alma”, aderir ao tratamento na
espera de retorno futuro àquilo que se quer verdadeiramente.
É interessante notar como na fala supracitada é possível colher o sentido
atribuído a motivante: fazer cumprir a vontade que na atual condição está “aprisionada”,
pois é isto que gera prazer, satisfação. Sendo assim, cabe perguntar até que ponto poder-
se-ia referir ao tratamento como motivante na vida do atleta; como pensar uma
intervenção no sentido de “motivá-lo” à adesão; como motivá-lo à fisioterapia. O
próprio atleta em sua colocação explicita o sentido causal que encontrou para se dedicar
à reabilitação: “para poder voltar”. Porém, esta afirmação racional sobre a necessidade
do tratamento não aparece despida de afetividade, como se pode notar em outros relatos:
“É muito triste (...) Ir ao médico uma vez por semana, fazer fisioterapia, não poder
correr que eu mais gosto, para mim que estava todo dia aqui, cinco horas por dia e
agora não pode mais...” (S9).
Entender que o tratamento é condição para o retorno é “espiritualmente”
simples, no entanto, como os relatos evidenciam, para o atleta é uma luta, uma batalha
que precisa ser vencida em meio ao sofrimento, desânimo, frustração, ansiedade: “uma
das batalhas mais difíceis da minha vida” (S6). Ou, como o relato de outro atleta: “deu
aquele baque, aquela situação ruim de achar que dois meses seria uma eternidade,
como está sendo” (S7). Nota-se que a condição de precisar passar pelo que não se quer,
para obter futuramente o desejado, aparece como um “arrastar a vontade”, como se o
atleta pudesse fazê-la nadar contra a maré – no fim, contra a própria vontade – que
acaba por arrastar também o tempo: “parece que não passa o tempo, eu queria muito
estar treinando, só que você tem que esperar o tempo” (S1) que, por sua vez, chega
como “uma eternidade” (S7) porque o objeto ainda é distante, diminuindo a tensão do
momento presente de reabilitação.
Como dito, a percepção dessa exigência de aderir ao tratamento como caminho
para alcançar o que se deseja aparece marcada pela afetividade e juízos, implicando
tomadas de decisão e posicionamentos sobre o que se deve e pode fazer: “eu desanimei
108
bastante mesmo, eu não queria voltar, todo mundo aqui sabe que eu queria parar
mesmo” (S5). Outro atleta também expõe sua dificuldade: “Porque quando você é um
atleta é uma coisa muito dura você machucar, porque você quer voltar a correr e não
pode, aí vai virando aquele bolo, a cabeça vai virando aquela bagunça, você quer
desistir de tudo. Aí tem aquelas pessoas que falam ‘não’, outras que falam ‘sim’. Aí vai
da tua cabeça, você tem que ter a cabeça bem focada naquilo que você quer, se você
tiver a cabeça aberta, aí qualquer coisa que a pessoa fala você desvia os pensamentos
pra outros cantos” (S5).
Neste último relato citado, nota-se a presença da alteridade que se faz, de modo
geral, ponto importante do material. Em todas as entrevistas é frequente a percepção de
um “outro” que entra na experiência de diversas formas compondo o momento,
positivamente – “Não só da família, do quarto, da casa, do apartamento que a gente
fica aqui, eu acho que vem também o apoio das pessoas te incentivando: ‘não, vai
melhorar’!” (S7), “No começo eu achei que tinha acabado, que não ia ter como eu
voltar; foi conversando com a fisioterapeuta que me ajudou a voltar (S5) – ou
negativamente – “Muitas pessoas falaram e entrou num ouvido e saiu no outro porque
essas pessoas não sabiam o que estavam falando e eu sempre gostei de superar
obstáculos, então o que elas falavam podia até ajudar em muitas horas mas em outras
horas atrapalhavam e a maioria das vezes eu lutei por mim mesmo, sozinho, sozinho
com o apoio da família e de um ou dois amigos, que não davam esse tipo de apoio”
(S6).
Interessante como essa relação de alteridade percebida como negativa também
pode ser identificada no que diz respeito à concorrência que o esporte acaba por
implicar, intensificando a experiência de afastamento: “Porque tem pessoas lá que
querem a vaga, lógico, todo mundo quer jogar de titular e eu não quero perder essa
vaga. Então pra mim é um sacrifício estar lá assistindo, não poder estar fazendo a
minha parte, não poder estar correndo atrás dos meus objetivos e tendo que ficar
olhando por conta de uma lesão que eu estou tendo, entendeu?” (S10).
Em muitas entrevistas o elemento culpa aparece ligado à responsabilização
frente ao ocorrido: “Na hora me deu muita raiva. Porque pode ter sido erro meu, na
falta do aquecimento ou na falta do alongamento, ou mesmo o músculo ter dado um
choque. Aí eu vendo elas na frente, aí vem aquela raiva, depois vem o choro” (S5).
109
Como aprendizado um dos atletas coloca: “procurar não repetir a mesma coisa, o
mesmo erro” (S2).
O que chama mais atenção durante esta análise não é tanto o limite no qual essa
atribuição de culpa se funda – visto que os profissionais dificilmente se arriscam em
apontar a causa exata para um evento como esse, ainda que se fale em prevenção e
fatores condicionantes da lesão – mas, evidentemente, o peso que esta percepção
acarreta ao atleta, manifestado na raiva ou no erro: “Você passa por um tempo a ter
raiva de você mesmo por ter feito aquilo com você. (...) Eu não gosto de errar, ninguém
gosta de errar. É muito frustrante, uma palavra: frustrante. Você errou o que você fazia
desde o início da sua vida. Frustrante. Com o tempo você aprende a conviver com
aquilo. Um dia, por mais que você esteja lá em cima você vai errar, e vai ter que voltar
tudo do início. Foi assim que eu vi, foi assim que eu decidi voltar a lutar [silêncio]
(S6)”.
Em sentido contrário da responsabilização, outro atleta elabora o que lhe
aconteceu e também chega à mesma luta: “Eu falava: ‘Não, isso aqui está acontecendo
comigo por algum motivo. Se está acontecendo comigo eu vou lutar, vou ter
perseverança que eu vou sair dessa. Porque não vai ser uma lesão que vai me deixar
triste, que vai me deixar abatido. Porque, isso aconteceu comigo? Aconteceu. Agora é
trabalhar, é fazer fisioterapia, é tratar, é cuidar. Vou voltar daqui um tempo, não sei,
6? 8 meses? 10 meses? Não sei. Mas eu vou pegar e vou voltar. Era só isso que eu
pensava, que eu queria voltar” (S1).
As diferentes elaborações diante de elementos que haviam sido descritos como
essenciais da experiência de estar lesionado e afastado da prática remetem às reflexões
que Stein explicitou em A Estrutura da Pessoa Humana. A dinâmica, tomada em suas
configurações subjetivo-relativas, exige o reconhecimento da dimensão universal e
particular que a filósofa não deixou de apontar em sua “ontologia fenomenológica” do
ser humano. O que é próprio da experiência humana ganha lugar dentro de uma
pessoalidade: um caráter, uma disposição psíquica, um temperamento, uma história de
vida e um fluxo de vivências que circunscrevem o ponto de partida da consciência
frente ao mundo. Percepção, recordação, imaginação, julgamento, valoração, estados
psíquicos, atos/relações/formas e tipos sociais, estão imersos no horizonte do atleta e
podem ou não serem considerados neste movimento compreensivo que uma análise
110
ontológica carrega como finalidade. São diferentes domínios do saber que se mostram
pertencendo à experiência vivida, como Stein foi evidenciando na obra estudada.
O conceito de força
Em uma das entrevistas, retomando uma fala anterior do atleta, seguiram-se as seguintes
perguntas e suas respectivas respostas:
[O que é esse lutar sozinho?]
Não sei descrever. Eu não sei falar. É como eu falei, é uma coisa interior, ou você
vence seus próprios medos, ou então você fica com eles pra sempre. Esse é o sentido do
lutar sozinho.
[Medos?]
Medo que eu tinha antes de descer a escada, depois da lesão. Medo de correr, medo de
tudo. Medo de tudo porque... nossa! Porque eu acho que a dor é um dos traumas mais
difíceis de superar. E eu senti muita dor, muita dor. Tanto que eu chorei. E eu acho que
esse é um dos medos mais difíceis. Eu tinha medo de tudo, medo de andar, medo de
virar, medo de saltar, medo de tudo, medo de tudo e eu tive de supera-los sozinho. Eu
tinha ajuda só que, querendo ou não, se você, vamos supor, se uma pessoa quer te
ajudar e você se fechar, num importa o que ela falar, não vai adiantar porque você vai
estar fechado. E muito tempo na minha lesão eu fiquei fechado. Não importava o que as
pessoas falavam, podia ser a mãe, pai, professor, melhor amigo, não importava. Eu
estava fechado muito tempo, foi no tempo que eu fiquei com pensamentos ruins. Mas
hoje eu estou bem melhor.
[O que são esses pensamentos ruins?]
Você pensar que não vai poder mais jogar, você pensar em desistir dos seus sonhos,
você pensar que a vida não é legal, você pensar que nada é legal, você pensar que tudo
acontece com você.
[Como foi esse momento com esses pensamentos?]
Muito ruim. Muito ruim até porque nesse tempo eu não conseguia dormir direito. Não
me alimentava direito. Eu estudava por obrigação porque eu tinha que passar. E
111
quando você faz coisa sem gostar é muito ruim, você se torna... não sei, é meio que
você vai fazendo e vai fazendo mal pra você. Eu me sentia desse jeito. Eu fazia as
coisas e me sentia mal. Mas com o tempo eu deixei de pensar isso e hoje, hoje é
diferente.
[O que foi esse “deixar de pensar isso”?]
É como eu falei: você está no fim do poço, você vai ficar pensando besteira? Você vai
ficar lá um tempão, vai chegar um dia que você vai cansar daquela situação, de tanto
pensar besteira, de tanto não ver alegria nas coisas. E a única saída é tentar mudar, foi
o que fiz, tentei mudar e mudei, pensar coisas melhores, fazer coisas divertidas, olhar
as coisas com outros olhares, foi o que aconteceu. A única saída para a pessoa sair da
fase ruim é pensar coisas boas, fazer coisas boas. (S6)
O intuito de colocar todo este trecho da entrevista é de evidenciar a correspondência do
conteúdo relatado com o que em seus escritos Stein definiu abarcando o conceito de
força vital, visto que “tudo aquilo que denominamos ‘movimento da alma’, alegria e
dor, esperança e medo, etc, possui a peculiaridade de agir sobre o estado vital do ser
humano, incrementando sua força ou consumindo-a” (p.163). A filósofa centraliza este
conceito como condição de compreender a constituição do ser humano:
A força é uma espécie de quantum finito que a pessoa deve
administrar e é capaz de incrementar. É possível falar de uma
saída de si podendo conservar-se, como uma saída de si sem
conservar-se. O sair de si é próprio do ser espiritual. Por
natureza estamos abertos aos homens e necessitamos de um ato
próprio para nos fecharmos, seja de modo passageiro ou
duradouro – esse ato não é sempre um ato livre em sentido
específico, podendo ocorrer involuntariamente. É possível, por
outro lado, acolher em si algo de outro que nos faça crescer
espiritualmente por esse motivo. Enquanto se opuser à sua
ordem ontológica, o espírito suprime a sua própria força; quer
dizer, se dispersa sem poder, todavia, exaurir seu ser, tornando-
se, porém, um ser obscuro e impotente, fechado em si mesmo
(pp. 162-163, tradução nossa).
Este parece ser justamente o movimento “solitário/interior” que o atleta relata quando
esteve “fechado”, “com pensamentos ruins”. Interessante porque é de fato um
fechamento para o mundo, um ato próprio – aparentemente não inteiramente livre, dada
112
a condição vivida – que lhe deixa “surdo” para o que as pessoas mais próximas
poderiam falar-lhe. Este “ser obscuro e impotente” que Stein salienta parece concordar
com o “fundo do poço”, como se não houvesse mais o que fazer, como se de fato sua
força estivesse suprimida e não fosse possível outro movimento que não este de
“mudar”, pensar e fazer coisas boas.
Esta não parece ser uma resposta incomum à experiência que a lesão provoca na
vida de atletas, em outra entrevista é possível identificar um movimento muito
semelhante:“você cria um mundo só pra você e se, por exemplo, aparecer uma pessoa
pra ajudar, eles vão lá, mas você não deixa entrar nesse mundo. Você fica ali fechado,
sozinho, aí você se sente inútil, se sente parado, você não faz nada, fica parado mesmo
ali no quarto. Eu mesmo já passei por isso de ficar ali: ‘Vamos sair?’ ‘Não, não
quero!’. Ficar na internet, no computador e escutando rádio, mas sempre ali fechado,
eu não queria sair pra nada e vi na hora que eu sai falei: ‘gente! Como que eu perdi
tanta coisa!’ Que passou ali na minha frente e eu não enxergava porque você tampa a
visão. Esse mundo que você cria fecha seus olhos pra ver só aquilo que você quer ver.
A partir do momento que você abre seus olhos, abre seus olhos pra você ver coisas
diferentes você vê que é um mundo diferente que você está vivendo ali. Basta você
querer sair desse mundinho que você criou. Quando você fecha você não vê, fecha os
olhos você não quer ver mais ninguém, sabe? Você quer ficar sozinho, você quer
morrer entre aspas, sozinho, ninguém pra te ajudar” (S9). Impressiona a maneira como
estes dois relatos se aproximam e concordam com a reflexão de Stein para evidenciar o
conceito de força.
Sobre este conceito, a autora dirá ainda que as condições de desenvolvimento do
ser humano – e de sua força vital – serão, como se pode verificar, oferecidas em larga
medida pelas circunstâncias externas, pelo ambiente no qual se encontra o ser vivo.
Acerca deste ponto, ressalta que também o ser humano se encontra sujeito a
atualizações que o atrofiam – da mesma forma que o cão com o qual lido de modo a
incentivar seu instinto predador. Nestas entrevistas fica claro frente à possibilidade
(neste caso dramática e dolorosa) de escolha em permanecer no fundo do poço ou nesse
mundinho – o morrer entre aspas – que, todavia, “cansa” (faz perder a força) porque
deixar em definitivo de ver alegria nas coisas é contrário à vida da alma/à ordem
ontológica, como adverte Stein.
113
Parece importante, neste momento, identificar os “quatro movimentos” de força
que a filósofa nos ajuda a reconhecer: conservar, incrementar, dissipar ou se consumar.
Para ela, a atualidade espiritual no ser humano se mostra como já requerendo um
dispêndio de força, isto é, consumindo a força natural. Essa força natural da alma
humana, por sua vez, está ligada à constituição psicofísica e podemos, assim, falar de
uma força física sem nos referirmos a uma força mecânica, mas orgânica – que se
manifesta no crescimento, na atuação, na capacidade de trabalhar e na capacidade de
sofrer, dirá Stein. Conforme afirmará, a força espiritual e a força física não são
independentes entre si: em caso de grande cansaço físico, ou seja, devido a um grande
esforço físico, a atividade espiritual ou não é possível ou só é possível através de um
grande esforço. Acrescenta-se o fato de que, segundo o hábito de vida, existe a
possibilidade de que a força já siga uma direção bem determinada ou, como
exemplificará a autora, pode ser que: “no estado de cansaço ou também de fraqueza
duradoura, a vontade possa recolher as “últimas forças” e empregá-las num escopo para
o qual ‘na realidade’ não se podia mais” (p.160/p.683). Em uma das entrevistas esse
“recolher as últimas forças” aparece de forma muito interessante: “pra você vencer
alguma coisa, você às vezes tem que negociar com seu corpo. Está correndo e já não
aguenta mais, mas você tem aquela força além do seu corpo, você tem que negociar
com ele pra ele te ajudar, ao mesmo tempo que você tem que trabalhar você tem que
negociar: ‘não! Agora não!’ e não é mais o corpo, é a cabeça, é coração, é ir além do
que você pode. Negociar com o corpo, eu faço muito isso” (S5). É também um exemplo
desta interpenetração da força física e da força espiritual o fato de que aquele atleta,
enquanto estava vivendo os pensamentos ruins, não conseguia dormir e se alimentar
direito, sentindo-se mal de estudar sem sentir gosto pelo que fazia.
Nesse contexto de reflexão, Stein também aponta para as fontes possíveis pelas
quais a força pode ser reintegrada e considera, evidentemente, a composição e
constituição do corpo para que possa existir uma reserva e um “surplus” para as
atividades espirituais. Uma alimentação adequada, ela dirá, é essencial nesse sentido e
podemos, em razão disso, produzir força indiretamente não apenas dispondo da força
espiritual disponível – o que exigiria, segundo a autora, um aprofundamento na
fisiologia.
Que o ser humano esteja situado no mundo material e que possa desse extrair
força, coloca também a possibilidade de que aconteça o mesmo em relação ao mundo
114
espiritual no qual ele também se encontra inserido. Como exemplo, um dos atletas
parece indicar a fonte cujo “surplus” aparece incrementando sua força no momento:
“eu acho que tudo às vezes faz você: ‘será que vale a pena realmente?’ Sabe? Todo
esse sofrimento, a dor lá na pista. Só que você acaba parando pra pensar: ‘É um
négocio que eu gosto, faço isso por amor’. É lógico que amor não enche barriga, mas
acho que isso influencia muito, fazer uma coisa que você gosta, sabe? Fazer uma coisa
que você ama. Isso que não te faz parar, isso que é o legal. E geralmente você vê as
pessoas que entram no atletismo, acabam amando isso aqui de uma forma que você
acaba pensando: ‘ Caramba! Legal você ver isso!’ O que também te ajuda a não parar,
você acaba olhando pra trás e você vê pessoas que passaram por dificuldades maiores
que a sua: ‘Pô, o cara enfrentou coisa pior! Não é por isso que eu devo parar.’ Acho
que tem um tanto de coisa que influencia assim, a não desistir” (S8).
Este é o mundo de valores, o mundo objetivo que Stein afirma podermos
contemplar com “o olhar espiritual”, apreendendo-o no sentido de intencionalidade, isto
é, podendo nos dar conta e nos apropriarmos interiormente. Nota-se que o que se está
referindo como espiritualidade abarca um domínio amplo de potências humanas. Para a
filósofa, o mundo dos valores positivos constitui uma imensa fonte de força psíquica e
os valores são apreensíveis por nós mediante essa vida espiritual. Valores como
bondade e beleza, que não são pessoas e nem estão vinculados necessariamente a
alguém, aparecem como elementos apreensíveis para os sujeitos, tornando-se força
concreta para as ações.
Essa força, portanto, faz parte da natureza própria da alma, dessa experiência
interna que
é o nosso interior no sentido mais próprio, aquilo em nós que se
enche de dor e alegria, que se indigna por uma injustiça e se
entusiasma diante de uma ação nobre, que pode se abrir
amorosamente e confiantemente a outra alma ou evita suas
intenções de aproximar-se; é aquilo que não só capta e estima
intelectualmente a beleza e o bem, a fidelidade e a santidade (e
em geral, como já foi dito, todos os valores), mas também lhes
acolhe em si e vive deles, se enriquece e cresce em amplitude e
profundidade devido a eles (p.679).
Na diferenciação posterior que fará entre o mundo da natureza – cujos
movimentos obedecem a uma lei de necessidade – e o mundo do espírito pessoal, afirma
115
que também este último segue uma determinada legalidade. Stein falará que há, se
aprofundamos a descrição, uma legalidade do ser espiritual e uma legalidade nessa
incluída: a legalidade da atividade espiritual. É próprio da atividade pessoal espiritual
ser consciente, direcionada, livre. A pessoa espiritual é livremente ativa, seu agir é
conhecer e querer. Segundo a filósofa, a consciência tem como objeto a verdade e a sua
vontade é orientada ao bem (em cada caso àquilo que se considera bem). O ser humano
está sujeito aos dois mundos: àquele das leis de necessidade e àquele das leis da
liberdade, ambos se interpenetrando de modo peculiar.
Como exemplo, Stein nos faz refletir o fato de que para mensurar a força de um
corpo meramente físico recorremos a uma fórmula física, não ocorrendo o mesmo
quando nos referimos à força física do ser humano. Isto porque, como vimos no relato
da atleta que continua a correr mesmo quando os músculos não aguentam mais, o
homem pode dispor voluntariamente da sua força, podendo empregá-la em uma
quantidade menor ou maior. Nota-se que não é o mesmo que falar de um impulso
mecânico e esse fato demonstra como o corpo vivo é permeado pelo espírito e como a
ação espiritual livre influencia o mundo material.
Interessante também reconhecer como essa relação entre vontade e força que nós
podemos empregar não é imediatamente/diretamente reconhecida e compreensível. O
ser humano pode estabelecer objetivos baseando-se numa reflexão puramente espiritual,
mas não pode realizá-los sem a colaboração do seu corpo. A avaliação da sua força
física, que é ela mesma um ato espiritual, pode entrar no contexto razoavelmente
fundado de estabelecimento que fazemos de um objetivo. Stein retoma os chamados
“estados vitais” (como a vivacidade e o cansaço) para afirmar que tais sentimentos
momentâneos não são um fundamento suficiente para que uma pessoa avalie sua
capacidade de ação, embora seja o acesso para algo que nos chega como “força” 14 – o
sentimento pode enganar, dirá a filósofa. É possível, contudo, chegar a uma avaliação
14 É preciso, segundo Stein, fazer a seguinte distinção:
1. Entre atos espirituais, realizados livremente e vivenciados no contexto de motivações racionais, e estados pelos quais me torno
consciente como “atos meus”, mas que não são livremente realizados por mim e nem entram imediatamente em um contexto de motivações racionais (podem tornar “motivos” só como “objetos” dos atos).
2. Entre estados vivenciados e qualidade permanente que não são vividas imediatamente, mas experimentamos através daquilo que
é vivenciado diretamente. Os 'sentimentos vitais’, como vivacidade e cansaço, e os sentimentos sensíveis como dor física, permitem que a unidade do corpo vivo e alma seja vivida de maneira mais imediata. São conscientes, vividos como pertencendo a mim,
localizados em todo o corpo em um ponto específico. O vivido consciente diz respeito a quanto de pessoal e espiritual existe neles.
Os atos espirituais como o pensar, o querer e o agir, não são vividos como livres, motivados racionalmente, mas possuem algo do “estado”. A força é uma qualidade permanente de todo ser humano que não é vivida diretamente, mas se oferece a nós através do
que vivemos diretamente (pp.174-175/p.700).
116
mais ou menos fundada acerca da força que possuímos, sobretudo se nós a observarmos
por um longo tempo e a colocarmos à prova em diferentes circunstâncias.
Esta compreensão do dinamismo das forças e da capacidade de avaliação das
mesmas é muito útil para o que foi intuído como recompasso exigido durante o
tratamento. Este recompasso implica, inevitavelmente, esta avaliação que a filósofa
indica, à medida que coloca como critério a própria corporeidade. Quando o atleta já
citado afirma ser ele quem decide a hora de voltar, chegando a concluir “que a dor que
eu sinto é só minha” (S10), essa percepção atual do próprio estado vital está em jogo
podendo, como afirma a autora, eventualmente enganar. Dois atletas mais experientes
parecem insinuar esse “aprendizado” em relação à própria força, mesmo que ela não
esteja tematizada: “Voltar mentalmente bem é não querer atropelar as coisas: ‘Ah! O
médico liberou, o fisioterapeuta liberou!’ Você está bem, está apto a treinar. Eu voltar
e já querer atropelar as coisas, já querer chegar no treino e ficar chutando bola que
nem louco, correndo igual louco, ir na pista de atletismo correr, ir na academia e
pegar bastante peso. Porque quando a gente é mais jovem, eu já tive isso já, quando
libera a gente volta achando que já está 100%, mas fisicamente você não está no ritmo
que eles vem treinando. Então é uma coisa que você tem que voltar sabendo disso,
mentalmente” (S7). É como conseguir ter consciência desses limites em relação à
própria corporeidade e à força correspondente.
No caso da dor física tem-se o seguinte relato: “essa questão da dor acontece
sempre, de estar sempre com dor. E a gente sempre sabe que aquela dor pode piorar.
Então você está com dor, mas ela não pode te impedir, a dor não é um impedimento,
ela não pode ser uma coisa que te bloqueia definitivamente. Você tem que superar
aquela dor e continuar treinando, porque se você pára por causa de uma dor, seu
adversário continua treinando, às vezes com uma dor pior. A gente só pára a partir do
momento que sabe que está realmente machucado e você continuar na atividade vai
ampliar a lesão a ponto de te impedir de praticar o esporte. A dor é uma coisa normal
mesmo, a dor por ela sozinha. Só a hora que tem um diagnóstico de uma lesão” (S3).
Ainda que muitos artigos abordem esta convivência consentida do atleta com a dor do
treinamento, tomando-a como inerente à melhora do rendimento, o que se quer destacar
aqui é a dificuldade de uma avaliação bem fundada. O fato de envolver tantos outros
aspectos circunscritos – por exemplo, quando se imagina e deseja superar a dor do seu
adversário que continua treinando – é um dos pontos para os quais se quer chamar
117
atenção. Esta vontade aliada à força, como Stein fez questão de salientar, acarreta um
limite para a avaliação meramente física. Tanto é verdade que em alguns relatos a
confissão de ter optado por ultrapassar os sinais do corpo está presente como causa da
lesão.
Estas considerações extraídas da obra estudada aparecem como fundamentais na
compreensão do que afirmávamos ser um juízo carregado de afetividade, visto que o
dinamismo da força vital está inscrito nos atos de pensar, agir e querer. Porém, é preciso
também considerar uma independência relativa entre força física e espiritual. Um dos
atletas relata a possibilidade de convivência – aparentemente desarmônica – entre as
forças: “O fato de você se sentir bem dentro da pista, sabe? Você acaba um treino
esgotado e você se sente satisfeito. ‘Ah! Estou com dor, está doendo’, mas falta mais
um: ‘não vamos lá, está acabando!’. Acho que isso é o que mais pesa assim sabe?”
(S8).
Quando Stein trata o conceito de potência, correlaciona-o ao de atos e afirma: a
variedade das potências encontra uma correspondência com a multiplicidade de atos
(percepção sensível, o pensar, o querer) e estes, à sua volta, com a variedade de objetos
aos quais se orientam (coisas, objetos, abstrações, objetivos). O termo “força” permite
entender que as potências não só correspondem ao conteúdo dos atos aos quais se
orientam, mas também que elas são aquilo que torna possível os atos como
“atuação”/trabalho. A filósofa esclarece as consequências desta constatação:
O plural “forças” indica que na multiplicidade das potências, a
força do ser humano – que pura é uma só – parece dividida e
pronta para ser utilizada em atividades com conteúdos
determinados. Pode estar disponível para ser empregada em
uma direção cujo conteúdo é dado pela natureza (p.176/p.702).
Como já foi dito, a força é limitada e diferente para cada natureza humana individual,
mas pode ser empregada também de modo particular em cada ser humano. Em um dos
relatos fica visível como a direção da força pode também ficar dividida, dispersa e,
consequentemente, dissipada. A ausência de atividades com conteúdos determinados
parece ser parte do momento de interrupção do projeto que o atleta havia feito dentro do
esporte, dificultando temporariamente a retomada de um “equilíbrio”: “Eu não vou
saber te explicar fisiologicamente, mas o corpo sente falta da atividade física, por você
118
ser uma pessoa ativa, estar sempre treinando, sentindo dor. Até o fato de você estar
sentindo dor no treinamento eu acho que o corpo sente falta e acaba atrapalhado um
pouco, isso acaba influenciando na sua cabeça, que nem eu falei assim pra você, você
se sente meio que inútil: ‘cara eu não faço nada!’ Eu acordo de manha, ai você vai pra
fisioterapia, vai tratar, faz os exercícios que tem que fazer, aparelho, a tarde faz de
novo. Parece que você não fez nada, sabe? Acho que se você perguntar pra qualquer
atleta que fica um tempo parado ele vai falar que o corpo sente falta daquilo” (S8).
A consequência desse “desequilíbrio”, dessa falta, também é relatada pelo atleta:
“Depende da pessoa você acaba ficando meio piradão, a cabeça fica a mil, será que eu
vou ser mandado embora, o que vai acontecer. Você começa a se preocupar nessas
coisas e acaba meio que deixando de lado o tratamento. Não que de lado, mas acho que
não faz bem pra você ficar pensando muito nisso porque não vai render as coisas sabe?
(...) Vem muita coisa na cabeça e isso não é legal. Eu sei, machucou, aconteceu, não
tem o que fazer mais. Vamos tratar. Se você ficar pensando muito nisso, fica meio
pilhadão, acho que o tratamento não desenvolve bem, não em relação à fisioterapia, ao
profissional, mas em relação a você. Você não se sente bem, você não dorme bem,
sabe? Parece que as coisas não rendem, acho que isso acaba atrasando um pouco o
tratamento, a sua volta” (S8).
Este momento imediato de suspensão da prática impõe ao atleta uma
reorganização das atividades habituais que conservavam sua força, podemos dizer
assim. A tristeza que todos os entrevistados relatam está atrelada a essa modificação
existencial abrupta que, pode-se reconhecer na maioria dos casos, chega também como
“violenta”. Os sentimentos que emergem neste momento – além dessa tristeza referida
por todos os atletas sem exceção – são sempre intensos e negativos: “um vazio” (S1),
“desânimo” (S2), “fica deprimido” (S3), “frustação” (S4), “desespero” (S5), “raiva”
(S6), “medo” (S7), “se sente um inútil” (S8), “impotência” (S9).
Este emprego de força disponível para adesão ao tratamento que a experiência
parece solicitar ao atleta passa pela vontade. Stein afirmará que ela é parte desse
dinamismo, agindo em alguns casos de modo a possibilitar uma tensão de força
extremamente elevada (a autora também observa que um mesmo emprego de força
contínuo pode acarretar uma formação duradoura para o desenvolvimento de certa
atividade). A vontade, Stein vai dizer,
119
aparece como elemento dominante no inteiro âmbito do
organismo psicofísico. Este pode empregá-la com maior ou
menor intensidade a força presente, nesta ou naquela atividade
particular, e pode exercitá-la empregando-a no desenvolvimento
de uma tarefa ou de outra, na direção de uma ou outra
disposição, dando forma ao que chamamos de habitus para
determinadas potências. Assim, o desenvolvimento do ser
humano depende da capacidade de dispor de maneira voluntaria
da força presente. Esta capacidade, porém, deve levar em conta
aquilo que é dado pela natureza com as atitudes presentes e
qualidade de força disponível (p.178/p.704).
Um dos atletas afirma: “Dizem que o seu pensamento se reflete no seu corpo,
que os pensamentos positivos ou negativos se refletem no seu corpo, isso eu acho que é
bem verdade porque aconteceu comigo. Quando lesionei o meu joelho eu vivi isso, eu
estava feliz pra caramba e de repente, de um dia para o outro, de uma hora pra outra
me pego sentado no banco de um carro com o joelho torcido. Passa o filme da sua vida
toda, do que você fez na sua vida toda. Nada podia te impedir e na outra hora você está
ali parado, mal pode andar, mal pode se mexer direito, tem que depender dos outros.
Isso não é legal, mas está melhorando. Eu tinha vários pensamentos ruins, eu mal
conversava com as pessoas, ficava mais comigo mesmo, mais sozinho e é muito ruim,
porque quando você fica sozinho, você começa a pensar besteira, querendo ou não.
Você pensa besteira que se reflete em besteira. Então decidi mudar, passei a conversar
um pouco com as pessoas, conversar um pouco e se divertir, pra poder ter pensamentos
bons, refletir em coisas boas para o futuro. E é isso que está acontecendo hoje,
pensamentos bons, coisas boas estão vindo, pouco a pouco mas estão vindo” (S1). A
vontade aparece na decisão de aplicar a própria força em fontes mais correspondentes
ao momento efetivo. É o que Stein afirma como sendo a união do mundo espiritual à
sua fonte de força, tornando compreensível o fato que um ser humano fisicamente fraco
possa levar uma vida espiritual muito intensa, porque “ele é capaz de adquirir forças
novas a partir do mundo espiritual e utilizá-las para sua própria vida espiritual” (pp.179-
180).
A palavra desânimo é muito expressiva porque acusa justamente essa falta de
ânimo, isto é, de força vital. Sem afirmar um simples voluntarismo, deve-se reconhecer
que, da maneira como cada atleta “reverterá”/“recarregará” essa baixa (S6) que a
experiência de estar lesionado acarreta, participa a liberdade e a própria formação da
pessoa, diria Stein. Isto porque,
120
o ser humano aparece como um organismo estruturado de
maneira muito complexa, uma totalidade viva unitária cultivada
em constante processo de formação e transformação; uma
unidade de alma e corpo vivo que, ao mesmo tempo, se forma e
se configura numa estrutura corpórea diferentemente articulada
e funcionamento variado, experimentando um caráter psíquico
sempre mais rico e estável. O caráter psíquico e o corpóreo se
realizam em uma constante atividade que é resultado de
habilidades determinadas que, com o tempo, acabam por decidir
em qual das diversas formas, prefiguradas como possibilidade
no ser humano, se realizarão (p.122-123/647).
Além de explicitar esta unidade de alma e corpo vivo, uma das entrevistas
chama atenção pela evidência que esse “caráter psíquico” assume: “Tinha um menino na
mesma época que eu que estava em tratamento. Eu via a diferença de mim e ele. Ele
tratava totalmente negativo: ‘Ai que bosta! Não melhora mais minha perna! Está uma
merda!’. Eu falava com ele: ‘Se você pensar assim não vai melhorar mesmo!’ E ele
falava: ‘Não, porque eu sou um merda, eu agora não volto mais’. Mas eu quero
resultado, eu pensava: ‘Meu Deus, eu não posso pensar assim! Se eu quero ser atleta,
eu tenho que jogar tudo isso para o lado positivo’. E foi o que aconteceu. Eu fiquei
metade de um ano, perdi as competições mais importantes, pior coisa foi ter visto o
campeonato passar e você não competir sendo que você tinha possibilidade de ficar
entre as três do Brasil. Eu estava muito bem quando eu machuquei, estava muito bem
fisicamente. Depois de tudo isso eu vi, passando três meses, todo mundo falando: ‘Tem
que melhorar, fazendo tudo certinho’ e eu seguia a risca tudo que os fisioterapeutas
passavam pra mim. E preparar minha cabeça, o livro [do Bernardinho que relatou estar
lendo] ajudou muito também, a minha religião porque eu sou evangélica, então eu me
fortalecia com Deus e acreditava que tudo ia dar certo. Então tudo que era negativo eu
pensava: ‘Olha o negativo’. Eu não queria saber das coisas negativas e sim de
positivas: ‘Mais pra frente você vai estar bem!’. Eu olhava além daquela lesão, estava
olhando já para as competições. Me ajudou muito porque eu voltei e fui campeã
brasileira, melhorei minha marca. É engraçado: Será que foi só mente ou seu corpo?
Que estava bem? Porque meu corpo não estava mais bem, eu tinha ficado cinco meses
parada, então eu acho que foi minha mente, minha cabeça que evoluiu bastante” (S5).
Não se trata apenas do caráter psíquico porque fica explícito que essa busca de
força na religião, no livro e também de um filme que em outro momento da entrevista
disse ter visto no período, implica uma abertura e adesão àquilo que lhe aparece como
mais motivador para a experiência vivida. Esta busca de ânimo para enfrentar e afastar
121
“tudo que era negativo”, esse empenho para se fortalecer – termo que a própria atleta
utiliza – mostra-se voltado ao âmbito dos afetos, sem haver “racionalizações” sobre a
experiência presente. A certeza e confiança aparecem fincadas no desejo de retornar,
sustentado pelo esforço imaginativo que consegue lançá-la para além da lesão, isto é,
para além do momento presente.
Esse recurso dirigido ao nível psíquico (considerando as facetas delineadas pela
ontologia fenomenológica) é base para as estratégias de intervenção mais utilizadas no
âmbito esportivo. A técnica mais descrita na literatura é denominada de visualizações,
seguida pelo relaxamento, ambos tendo como enfoque reduzir as “tensões da alma”,
buscando eliminar o peso das emoções que acabam por, consequentemente,
sobrecarregar os pensamentos. Enquanto as visualizações são projetivas, estimulando a
formação de imagens positivas através do esforço espiritual imaginativo (situando o
atleta numa condição de efetividade corporal, por exemplo), o relaxamento se funda na
tentativa de diminuir essa atividade espiritual – os pensamentos – visando propiciar
calma e sensação de bem-estar. As duas envolvem a corporeidade, mas guardam uma
diferença temporal e espacial significativa: o relaxamento é voltado para o “aqui” e
agora, já a visualização depende de um “não-aqui”/“lá” e um “depois” trazido para o
agora.
Esse recurso de visualização coincide com a resposta que a atleta nos relata ter
dado durante o afastamento da prática e tratamento. A se julgar pelo relato, a eficácia
neste caso foi real e parece indicar melhoria do rendimento – é um indício e não uma
certeza visto que outros fatores podem ter contribuído como, por exemplo, a condição
dos adversários. Acompanhando a entrevista da atleta, fica claro como esta
“visualização” não se limita a uma estratégica de âmbito psíquico/afetivo. Ter o
pensamento “bem focado” passou a refletir toda a rotina da atleta de forma muito
objetiva: “foi muita disciplina, disciplina mesmo, acho que foi fundamental pra mim,
tanto minha alimentação, no dormir, no fazer todos os exercícios que a fisioterapeuta
passava na clínica, eu passei em casa” (S5). Esta reestruturação do dia-a-dia em função
da lesão não é tematizada conscientemente pela atleta, mas vem como resposta
adequada à experiência e àquele descompasso que outros entrevistados com muito mais
dificuldade conseguiram “recompassar”. Adequada porque está de acordo com as
exigências do momento, por mais que os pensamentos estejam “além da lesão”. A
vontade se liga a um objeto ausente que se presentifica na resposta concreta: sono,
122
alimentação, exercícios e visualização da vitória como fonte de ânimo – que, por sua
vez, gera encorajamento. Não se trata de um recurso estritamente psíquico à medida que
seu alcance extrapola o nível dos sentimentos e emoções, acarretando mudanças
objetivas que vem reforçar15 a adesão à reabilitação.
Em princípio, a unidade que Stein elucida em suas análises parece estar
contemplada nesse ciclo que a atleta relata ter vivido durante a recuperação. Porém, esta
unidade que Stein explicita em A Estrutura da Pessoa Humana, não é uma simples
agregação das três esferas que compõe o ser humano: corpo, psique e espírito. A
formação da pessoa – objeto da Pedagogia – implica a compreensão/“escuta” daquela
forma prefigurada já citada. Esta forma que age como bússula no ser humano é a mesma
forma interior que dita à semente de maçã que ela é uma “semente de maçã” e não de
manga, ou melhor, que a realização de seu devir a tornará macieira e não mangueira. No
sentido mais profundo da análise steiniana da alma, esta forma interior coincide com o
conceito fundamental na obra da autora identificado como alma da alma:
Aquilo no qual a alma é em si mesma, pode encontrar a si
mesma e se encontra assim como é, na determinação com a qual
se afirma continuamente. É aquilo que a alma assume
interiormente; também quando colhe a si mesma no seu
significado e se confronta com ele, guarda ou solicita força, ou
sai à sua procura. (...) Toda tomada de posição da liberdade vai
além da alma a fim de configurar a si mesma existencialmente
(p.181).
Stein continuará sintetizando:
A alma da alma é uma realidade espiritual e a alma como
totalidade é um ser espiritual cuja característica é aquela de
possuir uma interioridade, no centro, da qual essa deve sair para
encontrar os objetos e para a qual deve retornar quando recebe
algo de fora. Aqui encontramos o centro da existência humana
(p.182).
A alma da alma é, portanto, o lugar para onde converge aquele questionamento
profundo sobre a própria trajetória, a própria vida, buscando a resposta mais condizente
perante esse centro, essa bússula: “Será que está chegando a hora de parar ou procurar
15 Reforço é um conceito chave para a teoria que embasa estas técnicas citadas. A finalidade é exatamente essa: favorecer a adesão
ao tratamento fisioterápico. O escopo desta abordagem em psicologia não é compreensivo, mas prático, o que justifica a simples
aplicação em prol do resultado visado.
123
outro emprego? Procurar alguma coisa, trabalhar e deixar de ser um atleta, de viver
disso?’” (S7). É onde se colhe os frutos das próprias experiências no sentido formativo,
ou seja, do que de mais pessoal forma aquele que as vive: “com o esporte eu percebi
que ele me proporcionou a ter uma mente mais forte, a ser, a ter um caráter mais forte
mesmo, uma personalidade mais forte pra conseguir as minhas outras coisas, minha
carreira fora do esporte, querer ir atrás e não se conformar com o ‘não’, ir atrás de
tudo isso. Minha cabeça mudou muito, parece que eu amadureci muito nesse tempo de
tratamento” (S5). Que evidentemente não é o mesmo para todos: “Não fico lembrando,
se você não tivesse falado eu nem ia lembrar [da experiência de afastamento], passou”
(S4).
Este núcleo da alma, este centro, aparece na obra de Stein como princípio
definidor da alma e da própria pessoa, como um centro norteador que aponta para a
direção da realização pessoal, tão peculiar a cada ser humano e tão imprescindível na
verdadeira relação intersubjetiva.
Os dados acusam uma ontologia e a ontologia nos reenvia à unidade
A análise dos relatos a partir da fenomenologia de Edith Stein permite que seja
identificada uma ontologia, isto é, um clareamento das regiões do saber que respondem
a dada legalidade e que, por isso, apresentam um modo próprio de ser enquanto
fenômeno passível de conhecimento pelo ser humano. Esta ontologia, por sua vez,
começa a ser via de evidência para a unidade da experiência em se tratando de
apreender a pessoa que a vive. Isto se deve ao fato de que, voltando à realidade
concreta, não se consegue apreender as distinções de natureza dos elementos
componentes daquilo que se mostra à consciência imediatamente, a não ser por um
esforço de abstração sobre a mesma que, inevitavelmente, nos tira da posição natural
dentro do mundo da vida. Como já dizia Husserl, não vivemos cotidianamente esta
postura reflexiva diante de tudo que nos chega como dado.
Fazer uma ontologia propriamente dita é tarefa da filosofia, visto exigir o
trabalho árduo da razão sobre os fenômenos do mundo. Por mais que não se trate de
uma análise ontológica de tudo que se nos apresenta aos olhos, mas especificamente do
124
fenômeno vivido por atletas na condição delimitada neste estudo, reconhece-se que o
exercício é rigoroso e contínuo.
Verifica-se que o intuito de buscar os momentos perceptivos na esfera da
corporeidade conduz, por sua vez, à compreensão do corpo vivo – animado pela
dimensão psíquica – que nos lança, consequentemente, às vivências da esfera do
espírito. Ales Bello (2006) irá afirmar:
A análise das vivências de caráter psíquico (impulsos,
tendências, tomadas de posição espontâneas, instintos) indica
que elas simplesmente nos “acontecem”, estão ali, nos são
dadas juntamente com nossa corporeidade (Stein, 1922/1999a).
A consciência de atos de caráter voluntário, ou atos de caráter
cognitivo, são qualitativamente diferentes daqueles de ordem
psíquica ou de ordem física (p.30).
De fato, quando remontamos às análises até aqui expostas, nota-se essa unidade sem
precisar fazer uso de explicações ou demonstrações lógicas. A perspectiva
fenomenológica de Stein é esta de fincar sobre a realidade a atenção, utilizando como
recurso a própria consciência e sua capacidade de reflexão sistemática sobre dada
experiência. Como esclarece Ales Bello (1998), a descrição fenomenológica é “(1) um
procedimento filosófico sui generis que não pode configurar-se num sentido indutivo,
nem em sentido dedutivo, mas se funda na capacidade intuitiva do ser humano e teoriza
tal capacidade – este é o aspecto reflexivo; (2) não é uma descrição no sentido banal e
superficial de uma enumeração ou de uma catalogação, mas visa captar o significado
das coisas; e (3) não é uma interpretação" (p.35). É neste movimento, portanto, que
Stein fez emergir uma antropologia de base fenomenológica “que começa justamente da
análise das vivências para encontrar uma base não somente para a constituição ou
estrutura do ser humano, mas para a compreensão daqueles territórios que as ciências
humanas e a psicologia buscavam pesquisar” (Ales Bello, 2006, p.30).
125
ANEXO C. Fichamento do livro “Il problema dell’empatia”
L’ESSENZA DEGLI ATTI DI EMPATIA
O primeiro tópico desenvolvido pela fenomenóloga intitula-se “Il Metodo della
Ricerca” e se dedica à definição do percurso de trabalho a partir da fenomenologia.
Nesse sentido, Stein afirma que o escopo do trabalho é de “levar em consideração o
problema da empatia (isto é, de como nos está dado o Sujeito estranho e a sua
experiência vivida/vivência – Erleben), indagando sua essência”. Para tanto, conclui:
“A atitude da qual partiremos é aquela da redução fenomenológica” (p.67/p.79,
tradução nossa). Visto que a fenomenologia busca a “clarificação” e, assim, a fundação
última de cada conhecimento, deve-se deixar de lado toda dúvida e tudo que pode ser
eliminado em relação à constituição essencial do fenômeno. Isto implica, dirá Stein, em
não partir de nenhum conhecimento já dado por qualquer outra ciência que seja. Do
mesmo modo, não se trata de lançar sobre o mundo um olhar natural – próprio das
ciências naturais – que capta toda experiência enquanto facticidade, mas de colocar fora
de circuito o mundo físico e psicofísico, tanto corpo quanto a alma dos homens e dos
animais, para voltar-se ao “campo infinito aberto à investigação pura” (p.68/80). Resta,
portanto, a “vivência da coisa (sua apreensão na percepção ou na recordação ou em
qualquer outra modalidade) e seu correlato, isto é, o ‘fenômeno da coisa’ na sua
plenitude (...) colocar em essência” (p.68/80). Este é o terreno de interesse da
fenomenologia e o gênero de fenômenos que constituem seu objeto.
Stein começa a explicitar o mundo que o “eu” vive, afirmando não ser um mundo só de
corpos físicos, mas também de Sujeitos estranhos, além de mim, dos quais posso ter
conhecimento a partir desta vivência. Afirma, seguindo a reflexão, que “o fenômeno da
vida psíquica estranha existe e é indubitável” (p.70/81). A partir da constatação dada
pela vivência e da consideração por ela possibilitada sobre o fenômeno concreto e
completo, começa-se a ter clareza da diferença marcante entre um individuo psicofísico
e um Objeto físico. Isto porque se revela um corpo não meramente físico (Körper), mas
um corpo próprio (Leib) que possui sensações, pensa, sente e deseja, manifestado dentro
do mesmo mundo fenomênico com o qual nos encontramos frente a frente e com o qual
estabelecemos trocas recíprocas, ou seja, relacionamo-nos. Trata-se de perguntar como
nos é dado tudo o que nos aparece como estando além do corpo físico dado na
experiência externa.
126
Em se tratando das modalidades de datidade com a qual apreendemos os vividos
singulares e concretos desses indivíduos, Stein afirmará que existem muitas formas,
citando a elaboração feita por Lipps (referida como <<relação simbólica>>). Neste
ponto, evidencia que não só é possível captar a expressão do rosto e gestos, mas
também aquilo que nasce do seu íntimo, algo que se “esconde atrás” (p.71/82). Assim,
ainda que possa ocorrer de eu ver alguém que apresenta um semblante triste sem estar
de fato afligido, posso presenciar uma pessoa que após fazer um comentário
inadequado, fica vermelho por isso. Posso, nesse último caso, saber ainda que ele
reconhece o fato de ter feito uma observação inoportuna e sente vergonha pelo que fez.
Tal exemplo, dirá Stein, leva à conclusão de que nem a motivação e nem o juízo sobre
sua consideração podem ser demonstradas enquanto dados sensíveis, ou seja, não são
expressos de nenhuma forma segundo uma aparência sensível.
A compreensão de dados deste tipo é que levarão à consideração mais radical colocada
pela fenomenóloga: “Todos esses dados relativos à vivência alheia remetem a um
gênero de atos nos quais é possível colher a vivência alheia mesma. Sobre tais atos se
funda aquele particular conhecimento que queremos agora indicar com o termo
EMPATIA (Einfühlung) abstraindo-o de todo sentido já atribuído pela tradição
histórica” (p.71/82).
Passando ao segundo tópico “Descrizione dell’empatia comparata com altri atti”, Stein
dedica-se a elucidar o caráter próprio da vivência empática através de sua comparação
com outros atos da consciência pura. Diante do exemplo de um amigo que chega
contando que perdeu um irmão, “tendo eu me dado conta de sua dor” (p.72/82), a
filósofa se pergunta: “Que coisa é esse dar-se conta?”. Salienta-se que não se trata de
buscar “por qual caminho se chega a isso”, mas precisamente compreender que vivência
é essa em que me dou conta de sua dor.
Definindo o que designa de experiência externa, Stein afirma: “é um título para os atos
no qual o ser espaço-temporal e o seu acontecer se dão em carne e osso. Tais coisas
estão diante de mim hic et nunc, voltando-se ora de um lado, ora de outro” (p.72).
Contudo, dirá em seguida: “A empatia não tem o caráter de percepção externa, ainda
que haja semelhança no sentido de que o seu Objeto também se revela hic et nunc”
(p.73/83). Quanto ao seu caráter de originariedade ou não-originariedade – sendo
originárias as vivências presentes compreendidas enquanto tal – a autora conduz a uma
reflexão sobre o modo próprio de datidade dos atos de recordação, espera e fantasia,
127
clarificando cada uma dessas modalidades a fim de diferenciá-las da empatia. Para esta
última, Stein afirmará: “Trata-se de um ato que é originário enquanto vivido presente,
porém não originário pelo seu conteúdo. Esse conteúdo é um vivido que como tal pode
atuar de múltiplos modos, como acontece na vivência da recordação, espera e fantasia.
No instante em que o vivido emerge espontaneamente diante de mim, eu o tenho como
Objeto (a exemplo, a expressão de dor que eu posso <<ler no rosto>> de um outro);
porém volto à tendência aí implícita e procuro trazer à datidade mais clara o estado de
ânimo no qual o outro se encontra, a partir do momento que me atraí dentro de si,
aquele vivido não é mais Objeto no verdadeiro sentido da palavra, porque agora não
estou mais voltado àquele vivido mas identificando-me, estou voltado ao seu Objeto, o
estado de ânimo, e estou colocado no lugar de seu Sujeito” (p.77/87).
Essa colocação de Stein aparece como fundamental para compreender, em seguida, os
três graus de atuação ou modalidade de atuação que toda vivência de presentificação –
ainda que não ocorram todos em cada caso concreto – explicitados: 1) O emergir do
vivido; 2) A sua explicitação preenchida; 3) A objetivação compreensiva do vivido
explicitado. Para tanto, a autora enfatizará que “o Sujeito do vivido empatizado, porém,
não é o mesmo que realiza o ato de empatizar, mas outro – diferentemente no que tange
ao recordar, esperar e fantasiar o próprio vivido – a partir do momento que os dois
Sujeitos estão reciprocamente separados, não se ligam como no caso de percorrer uma
consciência de identidade, uma continuidade de vivências” (p.79/88). Chega-se, a partir
dessas constatações, à conclusão de nos encontrarmos diante de uma espécie de atos
vivenciais sui generis.
Até este ponto da reflexão encontram-se os pontos fundamentais que Stein retomará ao
longo da obra com mais rigor de detalhes e riqueza de exemplos. Os tópicos seguintes
são dedicados ao confronto com outras descrições de empatia consolidadas em sua
época, abordando especificamente a de Lipps, Scheler e Münsterberg. Ainda que o
valor dessas discussões para uma compreensão mais aprofundada do problema da
empatia seja para nós evidente, daremos ênfase a outros momentos da obra que nos
pareceram mais urgentes à pesquisa atual, como é o caso da próxima parte da tese: “A
constituição do sujeito psicofísico”.
LA COSTITUZIONE DELL’INDIVIDUO PSICOFISICO
Stein inicia esta parte de sua tese afirmando se tratar da maior tarefa: “Resolver a
128
questão relativa a como se constituem conscientemente as objetividades da qual se
refere a tradicional teoria da empatia: o individuo psicofisico, a personalidade e os
outros (semelhantes)” (p.119/117). Levantando novamente uma crítica acerca dos
resultados insatisfatórios alcançados até agora pelos autores dedicados ao tema, afirma
que, quanto a este, se nenhuma ciência foi capaz de aprofundá-lo através de uma
investigação verdadeiramente científica, é escopo da filosofia garantir uma justificação
última e conduzir à clareza total – a ela, dirá Stein, não há nenhum âmbito que não
possa ser considerado.
Feitas essas considerações mais gerais, a fenomenóloga parte para a delimitação do que
está chamando Eu puro: “Sujeito da vivência privado de qualidades e não descritível”
(p.120/118). Individualidade, por sua vez, “antes de tudo quer dizer apenas que este Eu
é <<si mesmo>> e não um outro” (p.120/118). Do mesmo modo, “o outro é um
<<outro>> e esta alteridade se manifesta por um modo de datidade. O outro se revela
como um outro a partir de meu eu no momento em que está dado de modo diferente que
<<eu>>: por isso um <<Tu>>; mas este <<Tu>> vive si mesmo assim como eu vivo a
mim mesmo: por isso <<Tu>> é um <<outro Eu>>. O Eu experimenta a
individualização não pelo fato que se encontra diante de um outro, mas pelo fato de que
sua individualidade ou, como nós preferimos dizer, a sua ipseidade/ipseitá-mesmidad
(devemos resguardar o termo <<individualidade>> para outra coisa) se destaca no
confronto com a alteridade do outro” (p.121/118).
Partindo para o próximo tópico da reflexão, Stein afirma que também é possível
considerar este Eu como unidade de fluxo de consciência: “O fato que o Eu puro,
vivendo no presente, esteja ligado a todas as vivências do fluxo constitui uma unidade
deste fluxo, o qual não pode ser interrompido em nenhum ponto. Diante deste mesmo
fluxo de consciência se colocam <<outros>> fluxos de consciência: ao fluxo do Eu se
coloca diante aquele do <<Tu>> e aquele do <<Ele>>. A sua ipseidade e alteridade
funda-se sobre a base daquele Sujeito do qual <<pertence>>; mas esse não é portanto
<<outro>> mas sim <<diverso>>, a partir do momento que um e outro possuem seu
próprio e peculiar conteúdo de vivências (Erlebnisgehalt). Dado que cada vivência
singular de um fluxo está caracterizado de modo especial pela posição que ocupa no
nexo total de vivências, também por esse motivo – além do fato de pertencer a um Eu –
mostra-se qualitativamente diferente. Também com essa diferenciação qualitativa nós
alcançamos agora aquilo que comumente se entende como um Eu individual ou como
129
um individuo” (p.122/119). Chega-se assim, dirá a autora, a uma peculiaridade que
caracteriza naturalmente o fluxo de consciência pelo fato de ser <<si mesmo e não de
outro>>. “A ipseidade e a diversidade qualitativa – individualidade entendida nesse
segundo sentido – constituem juntas um grau superior no progresso até o <<Eu
individual>> comumente compreendido: esta é uma unidade psicofísica de estrutura
peculiar” (p.122/119).
Com o tópico “L’anima” a filósofa acrescenta uma nova colocação à discussão,
afirmando ser possível considerar, antes de tudo, uma unidade individual da psique
enquanto tal, prescindindo do corpo próprio e da relação psicofísica. O fluxo de
consciência, porém, não é “a nossa alma. Mas nas nossas vivências manifesta-se
qualquer coisa que está na base delas e que manifesta suas propriedades constantes
como seu idêntico portador: essa é a alma substancial” (p.123/120). Assim, “na
intensidade dos nossos sentimentos transparecem a passionalidade, na facilidade com a
qual eles aparecem, a emoção do nosso ânimo, etc”. A alma, segue a filósofa, é uma
unidade substancial constituída de elementos categoriais e, nesse sentido, amplia a
reflexão ao afirmar que “também entre as categorias psíquicas está a <<causalidade>> e
a <<variabilidade>>. Esta unidade substancial é a <<minha>> alma, as vivências
através das quais ela se manifesta são <<minhas>> vivências, isto é, atos nos quais vive
meu Eu puro” (p.123/120).
Parte-se, assim, à concepção de corpo próprio/corpo vivo, ou seja, “o passo do psíquico
ao psicofísico” (p.124/121). Contudo, Stein deixará claro que se trata de uma abstração
analítica visto que não se pode separar um do outro uma vez que a alma é
necessariamente sempre alma de um corpo próprio. A autora lança então as seguintes
perguntas: “O que é o corpo próprio? De que modo e como ele se nos dá?”. Propondo
fingir, num primeiro momento, que seja possível tomar o corpo próprio como dado
somente na percepção externa, Stein explicita como seria estranho concebê-lo, não só
enquanto aquilo que eu poderia captar visivelmente, mas também no que se refere às
suas diversas atividades apenas sob esta mirada. A relação deste corpo com o mundo
reclama/exige a apreensão de um sentido à medida que tudo que eu encontro solicita de
algum modo este corpo, solicita uma orientação neste relacionamento. É possível, dirá,
diante de qualquer coisa com o qual me encontro frente a frente, aproximar-me ou
distanciar-me, mas “não podemos nem apreender e nem ver o corpo próprio, nem
mesmo nesse caso poderíamos nos livrar dele, visto que também agora se encontra
130
inevitavelmente na sua plena <<corporalidade própria>> e nós nos encontramos
indissoluvelmente ligados a isso. Esse ser ligado, essa minha pertença a mim mesmo
não pode mais ser constituída em uma percepção externa. Um corpo vivo percebido só
externamente sempre seria só um corpo físico classificado de modo especial,
singularizado, mas nunca <<meu corpo próprio>>” (p.126/122). Essa delimitação de
Stein nos parece importante para o escopo final deste trabalho, o que justifica as
traduções literais de sua reflexão: “Entre os componentes reais da consciência, campo
inalienável do ser, são encontradas as sensações que representam uma categoria
superior específica: as vivências. As sensações de pressão, de dor, de frio são qualquer
coisa que se dão de modo absoluto como as vivências de juízo, de vontade, de
percepção, etc. No entanto, no confronto com todos esses atos, as sensações se
caracterizam de modo peculiar: não emanam, como acontece no caso desses atos, do Eu
puro; não assumem em nenhum caso a forma de <<cogito>>, com o qual volta-se a
algum Objeto e, por isso, refletindo sobre elas, não me é possível chegar a um Eu, visto
que as sensações implicam sempre um <<onde>>, localizadas espacialmente, distante
do Eu, talvez muito perto disso. E esse <<Onde>> não é um lugar vazio no espaço, mas
qualquer coisa que preenche o espaço, e todos esses <<Qualquer coisa>>, nos quais se
manifestam as minhas sensações, encontram-se juntos numa unidade, a unidade do meu
corpo próprio, e nesse Qualquer coisa está ele mesmo, pois estão situados no corpo
próprio” (p.126/122). “O corpo vivo como um todo está no ponto zero de orientação,
todos os demais corpos estão fora. (...) Meu corpo vivo se constitui de duas maneiras:
como corpo vivo sensível (sentiente), percebido corporalmente, e como corpo físico do
mundo externo percebido externamente, sendo que de ambas as apresentações é
vivenciado como o mesmo, conservando um lugar no espaço externo, ou seja,
preenchendo uma parte desse espaço” (p.127/123).
Avançando em suas análises acerca do corpo próprio, a filósofa adentra o tema do
movimento, ou seja, o fato de que “me movo através do espaço” (p.130/125). Este <<eu
me movo>> será destacado por Stein como inteiramente diferente da percepção de
movimento de um corpo a partir de fora. Se me movo, dirá, modifica a imagem que
tenho de meu entorno. Acerca desta constatação, volta-se àquela ligação indissociável
do Eu com o corpo próprio sensível, entendendo que há certa liberdade permitida. A
autora trará como exemplo de liberdade a fantasia, visto que por via dos pensamentos é
possível se separar por esforço de imaginação dessa ligação real. Reitera-se: “O corpo
131
próprio é essencialmente constituído por sensações, que são componentes reais da
consciência e que pertencem ao Eu. Como seria possível um corpo próprio que não
fosse corpo próprio de um Eu?” (p.134/128).
Prosseguindo com o aprofundamento da relação entre alma e corpo próprio, chega-se às
relações causais fenomenais/causais fenomênicas.
“O corpo próprio e os sentimentos” é mais um tópico a ser desenvolvido pela filósofa
que nos aparece como fundamental na compreensão do individuo psicofísico, de grande
interesse a esta investigação. Sua primeira colocação defende com veemência o fato de
não ser “possível separar as sensações emotivas ou sentimentos sensíveis/sentimentos
de natureza sensível das sensações na qual se fundam” (p.135/129). Nesse sentido, “os
sentimentos comuns são sempre vividos como provenientes do corpo próprio, ou seja,
como um influxo favorável ou desfavorável que a condição do corpo próprio exercita
sobre o desenvolvimento da vivência. <<Sentimentos comuns>>, de natureza não
corporal, são os estados de ânimo. Dado que estes não provem do corpo, vamos
distingui-los dos verdadeiros e próprios sentimentos comuns, colocando-os enquanto
um gênero próprio. A alegria e a melancolia não preenchem o corpo vivo, ele não está
alegre ou triste do mesmo modo que se pode dizer que esteja vigoroso ou abatido; (...)
Mas com isso não quer dizer que os sentimentos comuns anímicos/psíquicos e os
corporais/do corpo próprio se desenvolvam em paralelo sem se encontrarem mas, pelo
contrário, suscitam um ao outro reciprocamente” (p.136/130).
Essa dependência que os influxos mútuos do corpo próprio possuem em relação às
vivências uma característica essencial da psique, dirá Stein. Isto porque: “Toda a
psique/o psíquico é consciência ligada ao corpo próprio e neste âmbito se diferenciam
as vivências essencialmente psíquicas (as sensações ligadas ao corpo próprio, etc) das
vivências que apresentam um caráter acidentalmente físico, as <<realizações>> da vida
espiritual” (p.137/130). Retomando, a fenomenóloga sintetiza: “A alma, enquanto
unidade substancial que se manifesta nas vivências psíquicas singulares, tem seu
fundamento no corpo próprio – como mostra o fenômeno já descrito da causalidade
psicofísica e como mostra a essência das sensações – e forma, assim, o indivíduo
psicofísico”. Passa a considerar, nesse momento, o que designou como <<sentimentos
espirituais>>, colocando-os como “extraessencialmente” psíquicos, como não
corporalmente ligados, visto que voltando-se aos fenômenos psíquicos concretos
encontramos fenômenos que não as fundamentam diretamente, mas que mesmo assim
132
se fazem compreensíveis: “O nosso coração paralisa” de alegria, <<se convulsiona
todo>> de dor, palpita inquieto na espera e nos tira a respiração” (p.137/130). Estes
exemplos dados pela filósofa introduzem de modo mais evidente a chamada
“causalidade psíquica”, ou seja, os “efeitos que a vivência, na sua realização psíquica,
provoca no funcionamento do corpo próprio” (p.137/131). Não há, dirá, um indivíduo
que vivencia sentimentos e sensações em sua pureza, ainda que possam ser concebidos
em sua pureza. Da mesma maneira e ampliando, afirmará ser o mesmo que ocorre no
caso de uma causalidade psíquica pura: “Um susto <<me bloqueia o entendimento>>,
isto é, percebo um feito paralisador sobre meus atos de pensamento; ou <<fico
enlouquecido>> de alegria, não sei o que faço, realizo ações sem finalidade alguma”
(p.138/131). Aprofundando estas análises, Stein acrescentará novamente:
“<<Observando-me>> também descubro relações causais entre as minhas vivências e as
capacidades e propriedades/características da alma que nelas se manifestam. Mediante o
exercício, essas capacidades podem ser aperfeiçoadas ou definhadas, assim como
podem ser desgastadas ou revigoradas. (...) Cada capacidade pode ser potencializada
através de um <<training>>. Por outro lado, pode-se alcançar certo grau de <<vício>>
que tem como resultado o contrário. (...) Em todos esses casos se oferece
fenomenicamente um atuar do psíquico sobre o psíquico” (p.139/131). É o caso de se
perguntar, dentro destas constatações, que tipo de atuar/qual espécie de <<influencia>>
se trata e se há possibilidade de chegar a partir desse fenômeno de causalidade a um
exato conceito de causalidade – como na causalidade física – e à legalidade causal em
geral. Avança-se, a partir de tal ponto, ao fenômeno da expressão. A fim de clarear a
elaboração das análises e resultados até então alcançados, Stein faz uma ressalva inicial:
“A relação existente entre sentimento e expressão é totalmente diferente da relação
entre sentimento e manifestação física concomitante” (p.139/132). Porém, com esta
comparação, começa a explicitar sua essência, uma vez que “o sentimento é algo não
fechado em si que está de certo modo carregado com uma energia que deve chegar a ser
descarregada. Essa descarga é possível de diversas maneiras. Um tipo de descarga é
bem conhecido: os sentimentos liberam a partir de si ou, como se diz, motivam atos de
vontade e ações. Exatamente a mesma relação existe entre sentimento e fenômeno
expressivo. O mesmo sentimento que motiva um ato de vontade pode também motivar
um fenômeno expressivo. E o sentimento prescreve, segundo seu sentido, qual
expressão e que ato de vontade pode motivar. Isto porque, segundo sua essência, deve
133
sempre motivar qualquer coisa, ou seja, deve sempre conduzir a uma <<expressão>>,
porém várias formas de expressão são possíveis” (p.140/132). O fato de se tratar de um
fichamento guarda o risco de reduzir a profundidade e amplitude da reflexão. Contudo,
para este momento, faz-se importante destacar essa causalidade e apontar, conforme
Stein mesmo coloca, a possibilidade de controle por parte de nós, “homens civilizados”,
ou seja, a capacidade de dominar, reprimir as expressões corporais de nossos
sentimentos, visto também ser necessário considerar o fato de que estamos limitados em
nossas ações e, por sua vez, também em nossos atos de vontade. Como exemplo do que
está sendo chamado expressão, apresenta-se o caso de um homem <<controlado>> que
apresenta um semblante comedido por motivos sociais, éticos ou estéticos, que tem seu
sentimento “liberado” na forma de atos de reflexão que o convertem em objeto para si
mesmo. Isto é, “a vivência <<termina>> neste caso da reflexão, do mesmo modo que
aconteceria no caso de um ato de vontade ou expressão corporal. Afirmar que a reflexão
debilita o sentimento e o homem que reflete não seja capaz de experimentar sentimentos
intensos é totalmente infundado. Na expressão <<passional>> do sentimento, este
<<termina>> da mesma forma que na reflexão <<fria>>; o modo de expressão não diz
nada sobre a intensidade do sentimento expressado. (...) Entre sentimento e expressão
existe uma conexão essencial e de sentido, não uma conexão causal” (p.142/134).
Tais considerações abrem margem à análise da relação entre vontade e corpo vivo,
próximo tópico a ser abordado pela fenomenóloga, cujo começo está dado com a
seguinte afirmação: "Também a vontade assume grande importância para a constituição
da unidade psicofísica em virtude dos fenômenos físicos concomitantes (as sensações
de tensão e semelhantes), que aqui não consideramos de perto, porque já conhecemos
quando nos ocupamos desses sentimentos. (...) Como se não bastasse, do mesmo modo
que o sentimento, a vontade não é fechada em si mesma, mas exige uma ‘repercussão’.
Assim como sentimento exprime de si mesmo/libera a partir de si mesmo e motiva o ato
da vontade (ou em sentido literal uma outra possibilidade de expressão), assim a
vontade se exprime na ação. O agir é sempre um criar qualquer coisa que não existe. Ao
<<Fiat>> da decisão volitiva corresponde o <<fieri>> do querer e o <<fazer>> do
Sujeito volitivo na ação. Esta ação pode ser uma ação física: decido escalar uma
montanha e me movo em ato nessa decisão. A ação como realização do querer, resulta
ser totalmente determinada pela vontade. Essa, por sua vez, é desejado no seu complexo
e não nos passos singulares. O que eu quero é escalar a montanha e o que para isso é
134
necessário para alcançar tal escopo, se resolve, de certo modo, por <<si mesmo>>. A
vontade se serve de mecanismo psicofísico para completar-se e realizar aquilo que é
desejado, assim como o sentimento se vale do mesmo mecanismo para realizar a
própria expressão” (p.144/135). Esta descrição da vontade em sua dinâmica com o
corpo próprio vai mostrando-se cada vez mais complexa. “Este domínio é vivido
eventualmente passo a passo” o que pode vir a necessitar durante sua realização uma
superação de tendências contrárias: “Se na metade do caminho me sinto cansado, nesse
caso o cansaço oferece uma fonte de resistência contra o movimento. Ela faz pesar os
meus pés que, denegam, por sua vez a ordem de minha vontade. O querer e o tender
agem um contra o outro e exercem um senhorio sobre o organismo. Se prevalece a
vontade, eventualmente cada passo está agora singularmente desejado e a atualização
do movimento é vivida na superação da influência contrária. O mesmo se verifica
também no âmbito da psique pura. Decido fazer um exame e os preparativos
necessários me aparecem como óbvios. Desfalecem minhas forças antes do final e cada
atividade de pensamento requerido deve ser então chamado à vida por um ato de
vontade mediante a superação de uma forte tendência contrária. Assim, a vontade reina
sobre a alma e sobre o corpo próprio, ainda que não sem experimentar uma refutação de
obediência. A vontade encontra um limite no mundo objetivo que si desperta na
vivência/experiência vivida; o voltar-se até um Objeto (dado como Objeto percebido,
sentido ou como no caso presente) adentra o âmbito do querer, mas não adentra no
âmbito do querer apreender um Objeto que não está presente” (p.145/136). Entende-se,
com essa descrição, que a atuação da vontade não é vivida causalmente, mas como uma
operação de espécie própria.
Realizado esse percurso acerca da constituição do individuo psicofísico, passa-se à
consideração do indivíduo estranho. Primeiramente, a autora dedica-se ao estudo do
campo sensorial do corpo próprio estranho. É preciso, nesse sentido, compreender como
este corpo estranho se mostra um corpo próprio e se diferencia dos outros corpos
físicos. Para tal escopo, o único preenchimento possível na passagem da percepção
externa para a percepção do corpo próprio é via presentificação empatizante, afirmará
Stein. “A mão que descansa sobre a mesa não está aí como o livro que se encontra, ela
<<pressiona>> contra a mesa (por certo, mais ou menos forte), descansa distendida ou
estirada, e eu <<vejo>> essa sensação de pressão ou de tensão segundo o modo de co-
originariedade. Seguindo a tendência de preenchimento, implícita nessa <<co-
135
apreensão>>, a minha mão empurra (não realmente, mas <<de certo modo>>) no lugar
da mão estranha, entra nela e assume sua posição e atitude. (...) Minha mão sente a
sensação da mão estranha, mas não de modo originário e próprio, mas sim <<junto>>,
exatamente ao modo da empatia cuja essência está colocada por nós como distinta da
vivência própria e de qualquer outro tipo de presentificação. Durante esse transferir-se
dentro do outro, a mão alheia está constantemente percebida como membro do corpo
estranho alheio e também como corpo vivo próprio. É assim que as sensações
empatizadas, em contraste com as próprias, se destacam permanentemente como alheias
(incluindo o fato de eu poder não estar dirigido a este contraste no modo de atenção)”
(p.149/139). As condições da empatia sensorial são tratadas em seguida, tomadas
também frente à bibliografia dedicada ao tema até então. O exemplo citado, contudo,
nos parece suficiente e essencial para uma consideração analítica posterior.
Parece interessante adentrar o terreno de reflexões dedicadas à imagem alheia de mundo
como modificação da própria: “A imagem de mundo que eu empatizo com a do outro
não é apenas uma modificação da minha em razão de uma diferente orientação, mas é
concebida/varia segundo a característica/condição de seu corpo próprio. Para um
homem sem olhos está descartada a datidade óptica completa do mundo. (...) A mim
estão dadas essas representações vazias e a falta de preenchimento intuitivo [em relação
a sua experiência de mundo]. (...) Aqui se mostra a possibilidade de ampliar a própria
imagem de mundo mediante a imagem dos outros e evidencia o significado da empatia
pela experiência do mundo real externo” (pp.155-156/144). A empatia aparece também
como condição de possibilidade de constituição do meu corpo próprio dirá Stein, uma
vez que partindo do ponto zero de orientação (oferecido nessa vivência sui generis)
devo considerar como referência os outros corpos. A experiência intersubjetiva aparece
com grande força na reflexão, à medida que o mundo que colho empatizando é um
mundo que existe e, perante os outros, é um mundo visto de maneira diversa. “O
mesmo mundo não se apresenta agora meramente assim e depois de outra maneira, mas
sim de duas maneiras diferentes ao mesmo tempo. Apresenta-se diferente não só em
relação ao ponto de vista, mas dependendo também da condição do observador. Assim,
a aparência do mundo se mostra dependente da consciência individual, mas o mundo
que aparece – que permanece o mesmo como quiser e a quem quiser aparece – mostra-
se como independente da consciência. Fechado nos limites do da minha individualidade
não poderia sair do mundo <<tal como me aparece>>, seria sempre pensável que a
136
possibilidade de sua existência independente, que como possibilidade poderia dar-se,
permaneceria não demonstrada. Porém, quando transpasso esses limites com a ajuda da
empatia e chego a uma segunda, terceira aparência do mesmo mundo
independentemente da minha percepção, dou crédito àquela possibilidade. Assim, a
empatia se coloca como fundamento da experiência intersubjetiva, sendo condição de
possibilidade de um conhecimento do mundo externo existente, conforme exposto por
Husserl e de modo semelhante a Royce (p158/145-146)”.
Esse canal empático, que se mostra condição para a intersubjetividade, é colocado como
possibilidade apreensão do movimento alheio, visto que “os movimentos de um
individuo não estão dados como movimentos meramente mecânicos” (p.160/147).
Diferencia-se de modo essencial, nesta reflexão, o fenômeno do movimento próprio e
dos co-movimentos mecânicos. “Assim me aparece o corpo próprio alheio com seus
órgãos como móvel. E a livre mobilidade está estreitamente entrelaçada com os outros
constituintes do individuo. Devemos compreender esse corpo físico já como corpo vivo
para podermos empatizar o movimento vivo” (p.162/149).
A próxima reflexão da fenomenóloga dedica-se aos fenômenos vitais que abarcam, por
sua vez, “um grupo de fenômenos que de modo especial participam da constituição do
indivíduo, à medida que se manifestam no corpo próprio e também enquanto vivências
psíquicas” (p.163/150). Estão incluídos o crescimento, o desenvolvimento e o
envelhecimento, a saúde e a doença, o vigor, a força e o cansaço, o viver e o morrer.
Não daremos ênfase aos aprofundamentos, mas são colocados aqui por motivo de
sistematização e clareamento do percurso de Stein. Parece especialmente importante
acompanharmos sua passagem à causalidade na constituição do individuo, já que
novamente serão explicitados pontos importantes para nossa pesquisa.
“O corpo de um indivíduo estranho compreendido como tal está dado como membro da
natureza física em relação causal com os outros objetos físicos: se é empurrado,
movimenta-se; pressionando-o, comprime-se; se é iluminado, adquire diferentes
colorações, etc. Mas estas relações causais não o definem inteiramente. O corpo físico
alheio é visto, como sabemos, não como corpo físico, mas como corpo vivo/próprio;
vemos que sofre e exerce outros efeitos nos demais corpos físicos. (...) Além desses
efeitos por causas externas, apreendemos efeitos dentro do indivíduo mesmo. Vemos,
por exemplo, uma criança revoltando-se com veemência e logo ficando cansado e
irritado. Então compreendemos cansaço e mal humor como efeitos do movimento. Já
137
vimos como se dão os movimentos como movimentos vivos e o cansaço. Também o
<<mal humor>> o apreendemos empatizando. Assim, não desenvolvemos a sucessão
causal partindo de dados obtidos, mas também pela vivência empatizada” (p.168/153).
Trata-se, dirá Stein, do fato de que “no âmbito psíquico estamos diante de uma
causalidade totalmente nova, que não existe na esfera física” (p.170/154-155).
Delimitando esta novidade, a filósofa afirma: “É próprio da essência da consciência o
fato de que em cada instante da experiência vivida o <<cogito>>, o ato no qual o Eu
vive, esteja circundado por um raio de vivências de fundo, pela inatualidade, as quais
não são mais ou não agora cogito e, portanto, não estão acessíveis à reflexão, mas que
podem sê-lo, sendo necessário que passem primeiro à forma de cogito (forma que pode
ser assumida em cada momento). Seriam “’não atuais’, mas nem por isso não presentes,
originárias e, graças a isso, ativas” (p.171/155). Vários exemplos e desdobramentos são
apresentados pela filósofa a título de “evidenciação” desses níveis de consciência –
atualidade e inatualidade – constituindo as vivências do indivíduo e também a vivência
empática.
As considerações anteriormente feitas acerca dos fenômenos expressivos agora são
recolocadas no âmbito do corpo próprio estranho. Nessa altura da reflexão, a
fenomenóloga novamente faz descrições e diferenciações minuciosas em relação ao que
se encontra dado na bibliografia sobre empatia enquanto signo, símbolo e expressão.
Sua preocupação é a de evidenciar como a percepção externa participa da apreensão do
fenômeno expressivo e, ao mesmo tempo, não é suficiente para a vivência da empatia.
Como afirmará: “O semblante triste não <<tem que>> significar tristeza, da mesma
forma que ficar avermelhada deva significar vergonha” (p.179/162), evidenciando
novamente a peculiaridade da causalidade a qual se refere. Em outro momento, Stein
utilizará a análise sobre a palavra e o seu significado para evidenciar a possibilidade de,
para este exemplo, prescindir do sujeito que a pronuncia para que se colha seu
significado. Porém, “se quero ter a intuição na qual o “falante” apoia sua afirmação e
possuir de forma completa sua vivência de expressão, necessito da empatia. (...) A
passagem à pessoa que fala a aos seus atos pode comunicar também, além da palavra
pronunciada, o sentido da palavra: se é uma pergunta, uma ordem ou um pedido,
remetendo, portanto, à relação entre aquele que fala e aquele que escuta” (p.183/165).
Todas essas vivências em seus desdobramentos conduzem à compreensão da
causalidade enquanto “proceder de uma vivência até outra, visto que tal proceder se
138
vivencia pela mais pura imanência e sem passar pela esfera do objeto”, chamado pela
filósofa de motivação (p.185/166-167). Nas palavras de Husserl citadas pela autora,
essa motivação é “um fluir de uma datidade do Objeto a uma outra datidade”
(p.185/167). Esta consideração mais refinada sobre a causalidade requer um
aprofundamento específico que pode ser mais bem colocado a partir de um caso
concreto, podendo se tornar recurso das nossas analises da experiência vivida pelos
entrevistados e de sua contribuição à intervenção psicológica.
Assim, como momento final de reflexão desta parte da tese, Stein dedica-se à correção
dos atos de empatia que, segundo ela, podem sem dúvida também serem fundados de
forma equivocada. Apresentando alguns aparentes limites à vivência empática – como o
fato de eu não ter vivido algo semelhante à experiência que o outro está vivendo –
considera que “o fato de que a empatia está sintonizada com a unidade de sentido, torna
puramente possível a compreensão da manifestação expressiva por mim desconhecida
na vivência pessoal e que eventualmente nunca tinha chegado a
experimentar/vivenciar” (p.187/168). Os equívocos que podem ocorrer, porém, “só
podem ser corrigos/eliminados através da empatia mesmo” (p.189/170), concluirá. Para
tanto, finaliza a presente reflexão evidenciando o modo como o individuo estranho
participa da constituição do individuo próprio: “Se levarmos em consideração a partir
da percepção externa o nosso Eu psíquico e as suas propriedades, isso quer dizer que
nós vemos a nós mesmos como vemos um outro e como um outro nos vê” (p.190/170).
Essa condição posta em evidência na relação empática é fundamental e constitutiva para
o termo que de modo mais claro será esboçado na última parte de sua tese: ser pessoa.
Agora parece interessante ter presente a seguinte conclusão: “a empatia e a percepção
interna colaboram juntas para me tornar mais claro a mim mesmo” (p.192/172).
L’EMPATIA COME COMPRENSIONE DELLE PERSONE SPIRITUALI
O primeiro ponto tratado por Stein nesta parte final de seu trabalho diz respeito à
definição dos conceitos de Espírito e Ciência do Espírito. O cuidado inicial da autora
foi de explicitar como, apesar de não referidos, tais conceitos estiveram presentes
compondo as análises realizadas. “Consideramos o Eu individual como membro da
natureza, o corpo próprio como um corpo entre os outros, a alma fundada nele sofrendo
e exercendo efeitos, inserida numa relação causal e a consciência como uma realidade.
Porém, não se pode sustentar esta concepção se na sua constituição transparecia já algo
139
que vai mais além desse âmbito. A consciência não se mostrava a nós só como um
evento causalmente condicionado, mas constituindo um Objeto e, colocando-se em
relação com a natureza e frente a ela: A consciência como correlato do mundo objetivo
não é natureza, mas ESPÍRITO” (p.195/173). Dirá Stein que não é o caso de abordar
todos os problemas novos que nascem a partir daí, muito menos de resolvê-los.
Pretende-se, apenas, colocar em evidência sua presença na constituição do individuo
psicofísico. A filósofa começa deixando claro que se o ato de empatia implica a
apreensão de um ato sentiente/sensível, já adentramos o reino do espírito. Uma
definição central para nossa análise diz respeito ao mundo dos valores, descrito pela
fenomenóloga: “Na alegria tem-se diante de si algo alegre; no temor, algo temido; no
medo, algo ameaçador. Os mesmos estados de ânimo possuem seus correlatos
objetivos: para aquele que é sereno, o mundo está imerso numa luz rósea, para quem é
triste em uma acinzentada. E tudo isso nos é dado junto com os atos sensíveis,
pertencendo a eles” (p.196/174). Assim, “temos aqui ao mesmo tempo uma penetração
do espírito no mundo físico, um <<tornar-se visível>> do espírito no corpo próprio
permitido pela realidade psíquica, que emerge como vivência de um indivíduo
psicofísico e que guarda em si a eficácia sobre a natureza física. Isso se manifesta mais
chamativamente no âmbito da vontade. O ato volitivo não possui diante de si só um
correlato objetivo – o desejado – mas a partir do momento em que se realiza, a ação
confere realidade ao desejado e torna-se criativo. O nosso inteiro <<mundo da
cultura>>, tudo aquilo que a <<mão do homem>> formou, todos os objetos de uso,
todas as obras de artesanato, da técnica, da arte, são correlatos do espírito transformado
em realidade” (p.196/174). A fenomenóloga delimitará o campo das Ciências do
espírito (ciências da cultura) enquanto aquelas que descrevem as obras do espírito, mas
não só, como aquelas que perseguem sua origem, o seu nascimento a partir do espírito.
E que fazem isso, ela dirá, não através de uma explicação causal, mas como
compreensão “posi-vissuta/reviviscente” (p.197/175). Existe a necessidade de um
método correspondente ao objeto dessa ciência, que o apreenda em sua particularidade e
diferença em comparação com o método e objeto das Ciências Naturais. Segundo Stein,
a clarificação do método das ciências do espírito é recente, destacando a importante
contribuição de Dilthey para essa discussão.
Passando para a tematização do Sujeito espiritual, a autora afirma: “Se não temos
dúvida de que o sujeito não vê o mundo pelo mesmo <<lado>>, da mesma forma em
140
que não lhe é dado o mesmo emergir das aparências, mas sim que a cada um
corresponde sua peculiar <<visão de mundo>>, então já obtivemos com isso uma
caracterização individual dos sujeitos espirituais” (p.201/179). Esta denominação
<<sujeito espiritual>> vai ao encontro do que comumente nos referimos pelo conceito
de pessoa (p.201/179). Ampliando, Stein afirma: “Os atos espirituais não estão juntos
uns dos outros sem relação – semelhantes a um feixe de raios de luz com o eu puro
como ponto de intersecção – mas, ao contrário, existe um brotar vivido de um ato ao
outro, um fluir do Eu de um a outro ato: o que chamamos anteriormente de
<<motivação>>. Este <<nexo significativo>> dos vividos, que se apresentava de modo
heterogêneo no centro da relação causal física e psicofísica, e que não possuía nenhum
paralelo na natureza física, deve ser totalmente atribuído ao espírito. A motivação é a
legalidade da vida do espírito; o nexo das vivências do Sujeito espiritual é uma
totalidade significativa vivida (originariamente ou de modo empático) e como tal, é
compreensível” (p.202/p.179). Estas considerações ainda serão o campo de análise de
uma realidade espiritual ainda mais profunda: “Um sentimento motiva uma expressão
segundo seu sentido, e este sentido delimita um domínio de possibilidades de expressão,
assim como o sentido de uma parte da frase desenha as possíveis formas de completá-la.
Isto quer dizer que os atos espirituais estão subordinados a uma legalidade racional
geral. (...) Deve-se distinguir esta legalidade racional da legalidade eidética. É próprio
da essência do querer, ser motivado por um sentimento. Um querer que não é motivado
é um absurdo, nem se pensa que um Sujeito, qualquer que seja, queira alguma coisa que
não lhe apareça diante de si como um valor. É próprio do sentido do querer (que coloca
alguma coisa para se realizar) tender a algo que seja possível (isto é, realizável);
racionalmente, portanto, possível” (pp.202-203/180). A ausência dessa racionalidade
será tratada em seguida pela filósofa dentro de uma descrição mais refinada do que
chamou “vida psíquica patológica” ou distúrbios mentais. Sua conclusão é que, em
síntese: “O Sujeito espiritual é, por sua essência, subordinado às leis da razão e suas
vivências encontram-se dentro de uma relação inteligível/compreensível” (p.203/180).
Apesar do caminho percorrido, a fenomenóloga afirmará que ainda não chegamos ao
que se está denominando pessoa. Abordando as vivências de sentimento, retomará a
constatação de um <<eu>> constituído de sentimentos, diferenciando-os das sensações.
“A partir do momento que o sujeito não só percebe, pensa, etc, mas também tem
sentimentos, não é possível que viva apenas em <<atos teóricos>> , porque vivencia a si
141
mesmo, e vivencia os sentimentos como provenientes da <<profundidade do seu Eu>>.
Assim, ao mesmo tempo em que vivencia <<si mesmo>>, pode-se dizer que este Eu,
não é um Eu puro, pois o Eu puro não possui qualquer profundidade. O Eu, pelo
contrário, vivendo no sentimento, apresenta diferentes estratos de profundidade com a
qual se apresenta e que emergem desses estratos” (p.205/p.181).
Retomando as vivências relativas aos sentimentos e estados de ânimo, Stein afirma:
“Sentimentos comuns e estados de ânimo adotam uma posição especial no reino da
consciência, pois não são doadores, mas visíveis como <<colorações>> em atos
doadores. (...) Não possuem nenhum lugar determinado no eu, e não revelam um estrato
do eu, mas o impregnam completamente e o preenchem” (pp.207-208/183). A
diversidade de estratos que os valores e sentimentos podem atingir no Eu, são
abordados com muita precisão na presente reflexão: “Assim, o <<raio de ação>> de um
estado de ânimo suscitado, depende da profundidade egológica do ato sensível – ato que
está em correlação com a grandeza do valor sentido –, ou seja, é traçado o estrato até
onde me é <<razoavelmente>> consentido de deixá-lo penetrar” (p.212/p.187). A
profundidade e o raio de ação dos sentimentos se juntam à duração dos mesmos, dirá a
filósofa, devendo ser separados “a intensidade dos sentimentos da sua profundidade, de
seu raio de ação e da sua duração” (p.213/188). Neste fichamento, alguns elementos
podem aparecer apartados de toda a elaboração da autora, mas são colocados aqui a
título de sistematização e referência para o trabalho seguinte.
“Fica claro que cada sentimento desperta uma determinada intensidade; e que se pode
também compreender que um sentimento mais forte direciona a vontade. A força
efetiva de um sentimento, porém, não podemos entender e nem explicar causalmente.
Talvez fosse possível mostrar que a cada individuo cabe uma medida global de força
psíquica e, em consequência disso, seja possível determinar a intensidade que cada
vivência singular pode pretender. Assim, a duração que corresponde a um sentimento
segundo sua legalidade racional pode superar a <<força psíquica>> de um indivíduo e,
então, o sentimento ou terminará antes do tempo, ou conduzirá a um <<colapso
psíquico>>” (p.213/188). No nível da vontade, tem-se que: “Todo querer se funda sobre
um ter sentimentos e, portanto, cada querer está ligado àquele sentimento do poder
realizar – em todo <<eu quero>> livre e indubitável reside um <<eu posso>>; <<eu
quero mas não posso>> é um nonsense – todo querer atua de duas maneiras na estrutura
pessoal e revela suas profundidades” (p.215/190). Essas colocações da filósofa vão
142
clareando as relações de causalidade psíquica – adentrando o terreno espiritual como é
possível reconhecer nas últimas citações – e a totalidade de elementos em jogo quando
se deseja falar de pessoa. O ponto final de sua reflexão é: “Delineamos sumariamente a
constituição da personalidade. Encontramos nessa unidade de significado que se
constrói inteiramente na experiência vivida/vivência, e se distingue pelo fato que está
subordinada às leis da razão. Encontramos que existe uma correlação recíproca entre
pessoa e mundo, dito mais exatamente, mundo dos valores. Nos basta, para nosso
escopo, ter mostrado essa relação. Disso entende-se que não é possível realizar uma
doutrina da pessoa (sobre a qual aqui não temos nenhuma pretensão) sem uma
precedente doutrina axiológica e sem ser compreendida partindo de fato de uma
doutrina axiológica. À plena hierarquia dos valores corresponderia a pessoal ideal que
sente todos os valores na sua ordem e de modo adequado. A omissão de certos campos
axiológicos ou a modificação da ordem dos valores, bem como a diferença na
intensidade com a qual vivenciamos um valor e o fato de preferir uma das possíveis
formas de expressão (expressão do corpo próprio, do querer, do agir, etc), farão resultar
outros tipos de pessoas” (p.217/191-192).
143
ANEXO D. Primeiras reflexões a partir do estudo do livro Experiência Elementar
em Psicologia: aprendendo a reconhecer
Ao buscarmos sistematizar esta reflexão, reconhecemos três cruzamentos
importantes que poderiam ser referenciados enquanto desdobramentos temáticos e
pontos de trabalho no que tange à elaboração de um acompanhamento clínico. São eles:
1. Dinâmica dos valores e dos sentimentos em sua correlação recíproca com a pessoa; 2.
Unidade e abertura da experiência/vivência na Empatia; 3. Dinâmica da moralidade
como vivência de <<si mesmo>> em ação: o cogito como atualidade da consciência.
1.Dinâmica dos valores e dos sentimentos em sua correlação mútua com a pessoa
Conforme abordado no fichamento de O problema da empatia, Stein traz à tona a
descrição da constituição do Sujeito Psicofísico e do Sujeito Espiritual, traçando dentre
outros, o elo da vontade como um agir frente ao mundo dos valores nos quais a
pessoa/<<o eu>> encontra-se imerso. <<O mundo dos valores/Mundo da cultura>>
arrasta o Sujeito psicofísico pelo sentimento: deseja-se o objeto de valor que aparece
como tal para ele, numa espécie de atração posta pela relação com o mesmo. Os
sentimentos, como outrora dito, emergem dentro de uma pessoalidade e impulsionam o
<<eu>> a certa direção, mantendo sempre estreita sua ligação com os referidos
<<estados vitais>>. Retomando as palavras de Stein: “Fica claro que cada sentimento
desperta uma determinada intensidade; e que se pode também compreender que um
sentimento mais forte direciona a vontade. A força efetiva de um sentimento, porém,
não podemos entender e nem explicar causalmente. Talvez fosse possível mostrar que a
cada individuo cabe uma medida global de força psíquica e, em consequência disso, seja
possível determinar a intensidade que cada vivência singular pode pretender. Assim, a
duração que corresponde a um sentimento segundo sua legalidade racional pode superar
a <<força psíquica>> de um indivíduo e, então, o sentimento ou terminará antes do
tempo, ou conduzirá a um <<colapso psíquico>>” (p.213/188). Assim, a pessoa se
mostra numa primeira e mais imediata relação com a realidade que virá suscitar –
abstraindo – o Sujeito espiritual enquanto posicionamento/ação e juízo (Mahfoud,
2012).
Os sentimentos provocados no encontro com a realidade emergem,
primeiramente, sem uma tomada de decisão da pessoa, isto é, não decido em plena
consciência sentir ou não tristeza pela perda de um ente querido (no exemplo sempre
144
citado por Stein valendo-se da primeira pessoa). Do mesmo modo, o sentimento que
vivencio quando fico sabendo que um amigo passou no exame que tanto desejava, não
depende de uma decisão minha a priori: “vou sentir alegria”, mas reconheço brotar em
mim uma reação primeira que pode variar de pessoa para pessoa, também porque a
minha relação com este amigo pode ser de vários tipos e intensidades – pode ter se
consolidado de um modo mais afetivo ou não, mais distante, talvez, ou marcada por
temporalidades distintas. Este primeiro impacto que suscita o <<meu eu>> e permite
que eu me dê conta de um valor <<para mim>> está diretamente condicionado pela
constituição da minha pessoa – ainda que esteja me dada a possibilidade de colher
atentamente este condicionamento atuando ou não –, bem como pelos modos habituais
com os quais fui educado. Acerca desta “educação”, Stein acrescenta: “<<Observando-
me>> também descubro relações causais entre as minhas vivências e as capacidades e
propriedades/características da alma que nelas se manifestam. Mediante o exercício,
essas capacidades podem ser aperfeiçoadas ou definhadas, assim como podem ser
desgastadas ou revigoradas. (...) Cada capacidade pode ser potencializada através de um
<<training>>. Por outro lado, pode-se alcançar um certo grau de <<vício>> que tem
como resultado o contrário. (...) Em todos esses casos se oferece fenomenicamente um
atuar do psíquico sobre o psíquico” (p.139/131). Nesse âmbito, contudo, tanto Stein
como Mahfoud apontam esta evidência que, como exemplo, poder-se-ia apresentar da
seguinte forma: “que eu experimente preferência por sorvete de chocolate não foi algo
que eu tenha decidido” e, no entanto, revela-me uma dimensão muito própria da minha
pessoa a qual eu posso modificar dentro de certos limites – posso optar em não tomar o
sorvete que me apetece mais, porém não poderei nunca deixar de preferi-lo colocando
outro em seu lugar como de mesmo valor para mim.
O reconhecimento dos valores nasce, dirá Mahfoud (2012), desse choque inicial
da minha pessoa com a realidade. Isso implica também a concepção explicitada pela
filósofa quando descreve de forma profunda essa abertura de relacionamento pessoal
com aquilo que encontro: “A partir do momento que o sujeito não só percebe, pensa,
etc, mas também tem sentimentos, não é possível que viva apenas em <<atos
teóricos>>, porque vivencia a si mesmo, e vivencia os sentimentos como provenientes
da <<profundidade do seu Eu>>. Assim, ao mesmo tempo em que vivencia <<si
mesmo>>, pode-se dizer que este Eu, não é um Eu puro, pois o Eu puro não possui
qualquer profundidade. O Eu, pelo contrário, vivendo no sentimento, apresenta
145
diferentes estratos de profundidade com a qual se apresenta e que emergem desses
estratos” (p.205/p.181). Contudo, como mostra Mahfoud (2012), não estão dados,
porém, de maneira pronta e óbvia, estas profundidades e este <<si mesmo>>. Pelo
contrário, exige um trabalho de atenção constante sobre a minha experiência, sobre a
vivência que <<outro eu>> e o mundo despertam no <<meu eu>>, como tendência a
mover-me em uma dada direção correspondente.
Quando pensamos a atuação da vontade, tomando-a como posicionamento do eu,
não é possível falar de um movimento “cognitivo, meramente intelectual”, mas
transpassado por essa dinâmica dos sentimentos, de uma resposta mais totalizante da
minha pessoa dentro deste mundo dos valores. Se eu respondo com rispidez a um
insulto sem colher esta tristeza que me assola pelo fato de reconhecer no meu amigo um
engano na compreensão de meu ato, assumo uma postura parcial, fragmentada, da
minha própria experiência e das exigências constitutivas da minha pessoa (Mahfoud,
2012). Essas exigências constitutivas evidenciadas na dinâmica da Experiência
Elementar16 marcam uma passagem importante para a presente reflexão. Deixando a
descrição fenomenológica (ontológica) dos atos na esfera da unidade da pessoa – que
vínhamos apresentando até aqui – passamos às possibilidades diversificadas de
apreensão da experiência vivida (totalizante ou fragmentada). Isto porque, se considero
o valor que aquele amigo tem pra mim, nesse exemplo que estávamos traçando,
apreendo-o como parte da minha experiência e não podendo aparecer como um
elemento indiferente à minha tomada de posição frente ao acontecido desagradável
daquela discussão pontual. Trata-se aqui, portanto, de já apontar na reflexão um
posicionamento de valores frente à experiência e não restringir nossas colocações
apenas à descrição de como se dá a dinâmica essencial da experiência.
A busca de aprofundamento no nível das respostas sobre o que e como fazer de
um acompanhamento clínico começa a ser delineado. Considerar as exigências
constitutivas de minha pessoa nos coloca em outro nível de abordagem da pessoa: não
se trata mais apenas de uma ontologia da dinâmica da experiência vivida, mas de uma
antropologia fenomenológica que aborda (também ontologicamente) os valores em sua
16
“Todas as experiências da minha humanidade e da minha personalidade passam pelo crivo de uma ‘experiência original’,
primordial, que constitui o meu rosto ao confrontar-me com tudo [... ao] comparar cada proposta com esta ‘experiência elementar’.
(...) Trata-se de um conjunto de exigências e evidências com as quais o homem é lançado no confronto com tudo o que existe. A
natureza lança o homem na comparação universal consigo mesmo, com os outros e com as coisas, dotando-o – como instrumento de tal confronto universal – de um conjunto de evidências e exigências originais, tão originais que tudo que o homem diz ou faz
depende delas. (...) São como uma centelha que põe em ação o motor humano; antes delas não ocorre nenhum movimento, nenhuma
dinâmica humana” (Giussani, 2009, pp.24-25 citado por Mahfoud, 2012).
146
correspondência pessoal. É justamente nessa passagem que o potencial de intervenção
no nível da cultura, da educação e da psicologia, pode emergir como atuação voltada à
esfera da liberdade, dos esforços de adesão e compreensão na lida com esses valores em
direção à realização pessoal. O horizonte que esta constatação abre ao fazer psicológico
será mais bem delineado no último tópico dessa sistematização, uma vez que abordará o
Sujeito Espiritual como referência à presença do cogito em sua ligação com esse mundo
de experiências correspondentes à pessoalidade que cada experiência faz vir à tona
naquele que a vivencia.
Como descrito nas análises da filósofa, não é possível conceber um sentimento
apartado de um corpo próprio (Leib), isto é, de um <<onde>> ele ganha existência –
ainda que como fenômeno expressivo17 – e possa ser apreendido. Este corpo próprio, por
sua vez, não existe sem que se diga a quem responde, a qual <<eu>> está ligado
indissociavelmente, pois, do contrário, seria um corpo físico (Körper). A emergência
dos sentimentos abre um mundo de valores diante de mim, os quais vão dando
referência ao meu agir e, como num esquema autorreferente, ao reconhecimento de um
<<eu>> que sente, age, é capaz de valorar e pode se tornar cada vez mais claro para
mim. A minha pessoa acontece, em um primeiro nível, neste impacto com este mundo,
em relações mútuas com os sentimentos e os valores que eu posso ir reconhecendo.
Como destacará Stein acerca deste processo de reconhecimento: “a empatia e a
percepção interna colaboram juntas para me tornar mais claro a mim mesmo”
(p.192/172)
2.Unidade e abertura da experiência/vivência na Empatia
Os parágrafos anteriores começaram a oferecer indícios de uma Unidade da
experiência da pessoa (Mahfoud, 2012). Entender que “saltar” o nível de reação –
desconsiderando-o dentro da totalidade da minha vivência – seja uma fragmentação da
minha vivência e do meu eu (que continua reclamando a tristeza por eu ter sido mal
compreendido por um amigo muito estimado), é o primeiro passo rumo à apreensão da
Unidade que toda experiência apresenta. Administrar a minha tristeza com outros
elementos em jogo, dirá Mahfoud, não é o mesmo que buscar encontrar a origem
daquela dor que me toma por inteiro, ou seja: a que esse sentimento me remete. Que se
17
“Sentimentos comuns e estados de ânimo adotam uma posição especial no reino da consciência, pois não são doadores, mas
visíveis como <<colorações>> em atos doadores. (...) Não possuem nenhum lugar determinado no eu, e não revelam um estrato do
eu, mas o impregnam completamente e o preenchem” (pp.207-208/183).
147
possa chegar ao valor é uma primeira etapa porque me referencia: “isto vale, isto não
vale”, “isto corresponde ao meu desejo, isto não responde ao que eu mais anseio”
(Mahfoud, 2012). Deixar de lado o valor inviabiliza a dinâmica: ele me insulta e eu lhe
respondo rispidamente, sentindo a tristeza pela exigência de ser entendido, pela
exigência de justiça que colho por ter sido julgado de forma arbitrária por esse grande
amigo. Mais do que querer me fazer alvo de um juízo justo, ainda reconheço minha
tristeza de estar em desavença com uma pessoa a quem quero muitíssimo bem. Neste
caso, começo a compreende que apenas ganhar a discussão, não corresponde o fato de
que desejo, antes disso, afirmar o quanto eu o quero bem e o quanto aquela amizade me
é cara. Em outras palavras, “ganhar com argumentos a discussão, neste caso” seria um
fechamento à Unidade que aquela experiência anuncia nesse nível mais profundo de
afirmação do outro que me constitui, que é importante pra mim. Posso ficar, portanto,
na reação a um aspecto bastante parcial do valor e não no valor em sua inteireza.
A experiência de estar diante de um <<outro eu>> igual a mim – nos traços
universais delineados por Stein – e, ao mesmo tempo, tão diferente – se tenho presente
essa vivência que colho quando <<me movo>>, <<ajo>>, <<sinto>> – coloca-me a
possibilidade de abertura e fechamento. Ambas as posturas, abertura e fechamento,
conforme desenvolve Mahfoud, nascem dessa apreensão da totalidade que reclama que
sejam considerados os sentimentos, os valores, as decisões que se apresentam a mim
como mais correspondentes frente ao <<meu eu>>. Vejo que me fere continuar a
discutir perdendo de vista o valor daquele amigo e tenho presente toda história que já
vivemos, tendo começado a notar uma não correspondência dessa postura e uma tristeza
que me invade cada vez de modo mais intenso. Esta apreensão, tomada na amplitude da
vivência da empatia, pode me abrir à compreensão do que seja para o outro aquele
momento de conflito. A certeza da nossa amizade, do respeito e estima que possuímos
um pelo outro – vivenciados de modo mais evidente em outros momentos – pode me
abrir para empatizá-lo, para tomar uma decisão frente a um horizonte mais amplo que
não aquele antes só por mim circunscrito. A posição do outro, no exemplo, o amigo, não
apenas seu ponto de vista, mas sua pessoa no relacionamento comigo, participa do
modo como valoro a situação.
Faz-se importante sublinhar esta compreensão das possibilidades que a Empatia
coloca dentro da experiência vivida e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de como o
modo de vivê-la pode me colocar mais pleno na vivência empatizada. Continuando o
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exemplo: Começo, então, a reconhecer no seu semblante indícios de insatisfação
perante aquela discussão e me atento para suas palavras que parecem começar a perder a
agressividade do início. Vejo que respira fundo e penso que é possível que também ele
esteja cansado daquela discussão. Sigo entendendo de forma mais clara que esse
cansaço é <<nosso>> e que nenhum dos dois parecem felizes em meio àquela briga.
Atento-me a esses dados e busco a exigência mais profunda que vai se evidenciando:
afirmar a nossa relação antes de afirmar as minhas razões “teóricas”.
Esses entremeados de vivências do exemplo podem ser mais ou menos
conscientes, confusos, provavelmente dado o calor do momento. Porém, ter em vista os
elementos mais fundamentais que me constituem na relação com o outro – amigo ou
estranho – é uma consequência da minha formação no que diz respeito a essa abertura
empática que pode, como vimos na tese estudada, ser trabalhada, desenvolvida, cuidada.
Concretamente, para Mahfoud tal cuidado não pode prescindir dessa Unidade da
experiência que, levada a cabo, é sempre uma exigência de abertura ao outro e não de
fechamento – visto que me fechando para o mundo, passo a me fechar para <<mim
mesmo>> (Stein, 1998; Mahfoud, 2012).
As observações de Stein nesse sentido são muito interessantes: “A imagem de
mundo que eu empatizo com a do outro não é apenas uma modificação da minha em
razão de uma diferente orientação, mas é concebida/varia segundo a
característica/condição de seu corpo próprio. Para um homem sem olhos está descartada
a datidade óptica completa do mundo. (...) A mim estão dadas essas representações
vazias e a falta de preenchimento intuitivo [em relação a sua experiência de mundo].
(...) [contudo] Aqui se mostra a possibilidade de ampliar a própria imagem de mundo
mediante a imagem dos outros e evidencia o significado da empatia pela experiência do
mundo real externo” (pp.155-156/144). Assim, fazemos experiência sempre de abertura
e de clareza – no caso, a percepção e compreensão do que está acontecendo enquanto
discutimos não se restringe a uma apreensão de sentido criada por mim e só pertencente
à minha consciência (vide p.158/145-146): adentramos um terreno comum, “empático”.
3.Dinâmica da moralidade como vivência de <<si mesmo>> em ação: o cogito
como atualidade da consciência.
Os cruzamentos até agora trabalhados têm uma articulação estreita e em sintonia
com o último item ora sitematizado. À medida que vou colhendo o impacto que a
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realidade exerce sobre <<mim>>/<<meu eu>>, vou reconhecendo-me presente em
ação. O que a minha pessoa suscita no mundo e o que o mundo suscita em mim? Esta
resposta está dada pela ação, isto é, pela atuação do <<meu eu>> dentro do mundo que
pode, como visto no fichamento outrora apresentado, tornar-se objeto da minha
consciência: o cogito. Nas palavras de Stein: “É próprio da essência da consciência o
fato de que em cada instante da experiência vivida o <<cogito>>, o ato no qual o Eu
vive, esteja circundado por um raio de vivências de fundo, pela inatualidade, as quais
não são mais ou não agora cogito e, portanto, não estão acessíveis à reflexão, mas que
podem sê-lo, sendo necessário que passem primeiro à forma de cogito (forma que pode
ser assumida em cada momento). Seriam “’não atuais’, mas nem por isso não presentes,
originárias e, graças a isso, ativas” (p.171/155). Posso, portanto, viver toda a discussão
com meu amigo em um nível meramente reativo: um mal estar “de fundo”, uma
insatisfação “de fundo”, uma dor “de fundo”. Contudo, vão se apagando as luzes sobre a
minha própria pessoa e sobre o que mais se mostra pertencente à minha pessoalidade:
que eu queira bem a ele e deseje sua companhia em minha vida.
Contudo, a manutenção da inatualidade desses elementos tão fundamentais pode
conduzir a uma alienação (Mahfoud, 2012). Isto quer dizer que, em sentido contrário,
tornar a minha vivência cogito é trazer à tona os elementos presentes na experiência,
atuantes na possibilidade que tenho de “entrar na experiência estranha não a tomando
simplesmente como Objeto, mas como Sujeito” (Stein, 1998). O fato de que a Empatia
parta de uma vivência não originária, não é de forma alguma impedimento para que se
viva uma atualidade do cogito. Reconhecer que a alegria do outro me alegra é um dado
que posso “ter nas mãos” ou posso deixar passar; do mesmo modo que perceber o
quanto seu semblante está entristecido naquele momento, pode se tornar alvo de atenção
de minha parte ou mera indiferença.
Usando outro termo, Mahfoud (2012) define a moralidade como responsabilidade,
ou seja, como a qualidade da resposta que exerço quando em dada experiência posso
colher e seguir as indicações que nascem do meu próprio eu: “(...) um posicionamento
diante de algo numa postura justa. É justo o posicionamento que tem a ver com a
totalidade dos fatores em questão: referente ao sujeito e ao objeto. Esse justo não pode
ser definido genérica ou abstratamente, mas precisa se adequar ao específico sujeito e ao
específico objeto. Vínhamos comentando: a realidade me provoca e, nessa provocação,
vivo uma exigência de bem, uma exigência de afirmação do ser. E então? O que eu faço
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com isso? Como me posiciono? Este é o problema da moralidade. O próprio
posicionamento autêntico, original, precisa ser sustentado” (Mahfoud, 2012, p.119).
Nesse ponto, reconheço que posso responder ou não à tristeza que me invade naquela
discussão. Respondo ou não àquela atração que sinto de empatizar, isto é, de me colocar
como Sujeito da experiência de um outro, uma vez que ela me solicita de modo mais ou
menos intenso: está aberta diante de mim como possibilidade de ser tomada como
atualidade ou não. A alienação seria, portanto, uma predominância de inatualidades
frente à minha experiência presente, visto que ela diminuiria os recursos que possuo
para lidar com o que tenho diante de mim – despertando sentimentos, conduzindo-me a
valores caros à minha pessoa. Se permaneço não consciente, isto é, não tomando como
cogito os elementos que emergem do meu relacionamento com uma alteridade (seja ela
humana, animal, material), corro o risco de reduzir a apreensão que faço de <<mim
mesmo>> agindo. Diferenciando-se do êxito esperado em consonância com a posição
tradicional, Mahfoud (2012) salienta o que seria uma contribuição coerente a essa
dinâmica humana descrita: “Para nós, psicólogos, qual é o resultado esperado? Nossa
posição espera que o sujeito, por estar empenhado na busca autêntica ordene seus
recursos pessoais na relação com seu mundo, e se aproxime sempre mais de uma
unidade; aceite que sua exigência dê uma direção no enfrentamento dos desafios que a
vida coloca” (p.71).
Como busca desses recursos, tem-se a presença insistente do cogito enquanto
atualidade da consciência, principalmente no que tange à consciência de <<mim
mesmo>> – advindo de uma relação interpessoal e intramundana – como fonte de
acesso à Unidade da experiência e, portanto, como porta de entrada à profundidade do
problema da Empatia explorado por Stein. Se <<meu eu>> estivesse totalmente
apartado da sua experiência mais constitutiva, sequer apreenderia um outro como
<<outro eu>>. Essa abertura para fora e para dentro à qual tão claramente se refere a
filósofa, vivenciadas concomitantemente pelo ser humano de modo inalienável,
implicam a presença do cogito ininterruptamente e necessitam dele para a constituição
da pessoa: “Estamos considerando uma unidade. A experiência elementar [o Sujeito
espiritual diante do mundo dos valores nos termos da reflexão de Stein] suscita em nós
sentimento. Prestar atenção nele é uma possibilidade de tomar a experiência na mão.
Como você se dá conta da experiência elementar? Porque aparece um incômodo, um
desejo, uma revolta, uma indignação, ou um mal-estar que você não consegue nem
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nomear mas indica uma realidade em você, que não é o sentimento. Sem esta distinção
[propiciada pelo cogito] você não conseguiria distinguir um mal-estar por ter comido
algo que não lhe fez bem, de dor no estômago quando presencia uma injustiça. Sem
observar a experiência [tomá-la como atualidade da consciência], inclusive do ponto de
vista do sentimento [de todo o Sujeito psicofísico], você não saberia distinguir essas
vivências. A finalidade de pontuar e examinar o sentimento não é exaltá-lo por ele
mesmo, é chegar ao posicionamento [moralidade – Sujeito espiritual] propriamente
pessoal em relação ao que está indicado no sentimento” (Mahfoud, 2012, p.166). Do
ponto de vista da clínica psicológica, vai ficando cada vez mais claro com esta reflexão
apoiada em Stein e Mahfoud, que “o meu posicionamento diante da minha própria
experiência [é] o ato do eu que é fator reconstituidor de minha pessoa e da cultura da
qual participamos (Mahfoud, 2012, p.215).
Lança-se, portanto, o terreno do alcance próprio à Psicologia, de uma busca por
luzes sobre os elementos da experiência através do cogito, isto é, uma tomada de
posição autêntica e possível frente ao mundo dos valores e de sua relação com cada
<<eu>>, com cada fluxo de consciência, com cada significado com o qual me deparo na
experiência vivida: “Os atos espirituais não estão juntos uns dos outros sem relação –
semelhantes a um feixe de raios de luz com o eu puro como ponto de intersecção – mas,
ao contrário, existe um brotar vivido de um ato ao outro, um fluir do Eu de um a outro
ato: o que chamamos anteriormente de <<motivação>>. Este <<nexo significativo>>
dos vividos, que se apresentava de modo heterogêneo no centro da relação causal física
e psicofísica, e que não possuía nenhum paralelo na natureza física, deve ser totalmente
atribuído ao espírito. A motivação é a legalidade da vida do espírito; o nexo das
vivências do Sujeito espiritual é uma totalidade significativa vivida (originariamente ou
de modo empático) e como tal, é compreensível” (p.202/p.179).
Essa lei de necessidade, tomada em sua determinação própria (totalmente outra
em relação ao mundo dos corpos físicos), manifesta-se com qualidades universais,
inteligível, podendo ser alvo de uma intervenção não só psicológica, mas, como já dito,
também alvo da educação e cultura. É uma legalidade pessoal que, como tal, coloca o
psicólogo dentro de possibilidades e limites, uma vez que se pode ou não fazê-la
“ganhar corpo” na constituição da pessoa ao longo de sua vida e experiências. O que
poderíamos considerar como um acompanhamento clínico “totalizante”, que apreenda a
pessoa e a experiência de modo integral, exigirá ao final desta pesquisa, sem dúvida, o
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caminho que assumimos junto à Stein: “Delineamos sumariamente a constituição da
personalidade. Encontramos nessa unidade de significado que se constrói inteiramente
na experiência vivida/vivência, e se distingue pelo fato que está subordinada às leis da
razão. Encontramos que existe uma correlação recíproca entre pessoa e mundo, dito
mais exatamente, mundo dos valores. Nos basta, para nosso escopo, ter mostrado essa
relação. Disso entende-se que não é possível realizar uma doutrina da pessoa (sobre a
qual aqui não temos nenhuma pretensão) sem uma precedente doutrina axiológica e sem
ser compreendida partindo de fato de uma doutrina axiológica. À plena hierarquia dos
valores corresponderia a pessoal ideal que sente todos os valores na sua ordem e de
modo adequado. A omissão de certos campos axiológicos ou a modificação da ordem
dos valores, bem como a diferença na intensidade com a qual vivenciamos um valor e o
fato de preferir uma das possíveis formas de expressão (expressão do corpo próprio, do
querer, do agir, etc), farão resultar outros tipos de pessoas” (p.217/191-192). Esta
imersão numa doutrina axiológica, concretamente assumida no contexto clínico, exigirá
o enfrentamento da liberdade, a busca pela realização pessoal referida por Mahfoud
(2012). O caminho? A “retomada das próprias referências experienciais”, uma vez que
assim (“em pleno cogito ou em plena luz da consciência”), “retoma-se, continuamente,
a construção de nossa própria pessoa e simultaneamente a nossa contribuição à
construção do mundo” (p.227).