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UMA ALTERNATIVA PARA A GESTÃO URBANA: O MINISTÉRIO DAS CIDADES E SEUS DESAFIOS. Grazia de Grazia 1 Evaniza Rodrigues 2 A questão urbana começa ser valorizada e politizada em nosso país a partir das grandes mobilizações populares realizadas nas décadas de 70/80. Mobilizações estas, canalizadas para a esperança de alcançar a distribuição da riqueza concentrada nas cidades brasileiras e principalmente, contra o Estado Autoritário, considerado responsável pelo crescimento da concentração de riqueza e poder. A população urbana brasileira, pressionada pelo modelo de desenvolvimento, vinha crescendo desde 1940 a índices extraordinários: 31% (30/40) 45,83% (40/50), 66,66% (50/60), 66,39% (60/70), 54,43% (70/80) por década formando cidades com imensas periferias desprovidas das condições básicas de vida humana. Nesse contexto foram se formando as favelas, os loteamentos irregulares e clandestinos e os cortiços na grande maioria das cidades das regiões metropolitanas. A partir dos anos 70, os índices sobre a população urbana começam a recrudescer, apesar de ainda altos, porém acentua-se por outro lado o quadro de desigualdade: de 80 para 90 o número da população que vivia em favelas passa de 2.248.336 para 5.020.517. Só no Rio de Janeiro a população favelada cresceu nessa década 32%. Os dados do último censo reiteram mais nitidamente o crescimento da desigualdade no país: enquanto as áreas centrais (mais ricas) das oito principais regiões metropolitanas brasileiras cresceram 5% nos últimos dez anos, as periferias dessas mesmas regiões cresceram 30%. O déficit habitacional foi estimado em 1994, pela Fundação João Pinheiro, em 5.6 milhões de moradia sendo que 80% correspondiam aos que ganhavam até cinco salários mínimos. Com os dados do Censo 2000 o déficit foi atualizado e já atingiu 6.6 milhões de moradias sendo que 91,6% correspondem aos que ganham até 5 salários mínimos. O quadro de desigualdade não termina aí: enquanto faltam 6.6 milhões de moradia, 5.030.000 imóveis construídos estão fechados ou vagos. E se for contabilizado o número de glebas urbanizadas que ainda não tem edificação talvez daria para assentar o dobro da população que é contabilizada no déficit habitacional. A população pobre é impelida à ilegalidade para exercer seu direito de morar. Essa ocupação desordenada vai gerando efeitos graves para a própria população que vive nos assentamentos precários que além de viver todas carências urbanas e as dificuldades de acesso à cidade esta população está sempre vulnerável a qualquer catástrofe causada por desmoronamentos, enchentes e etc. 1 Assessora da Fase, Secretária Executiva do Fórum Nacional de Reforma Urbana e coordenadora do Fórum Nacional de Participação Popular. 2 Coordenadora da União Nacional por Moradia Popular, do Projeto Moradia e do Fórum Nacional de Reforma Urbana.

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UMA ALTERNATIVA PARA A GESTÃO URBANA:O MINISTÉRIO DAS CIDADES E SEUS DESAFIOS.

Grazia de Grazia1

Evaniza Rodrigues2

A questão urbana começa ser valorizada e politizada em nosso país a partir das grandes mobilizações populares realizadas nas décadas de 70/80. Mobilizações estas, canalizadas para a esperança de alcançar a distribuição da riqueza concentrada nas cidades brasileiras e principalmente, contra o Estado Autoritário, considerado responsável pelo crescimento da concentração de riqueza e poder.

A população urbana brasileira, pressionada pelo modelo de desenvolvimento, vinha crescendo desde 1940 a índices extraordinários: 31% (30/40) 45,83% (40/50), 66,66% (50/60), 66,39% (60/70), 54,43% (70/80) por década formando cidades com imensas periferias desprovidas das condições básicas de vida humana. Nesse contexto foram se formando as favelas, os loteamentos irregulares e clandestinos e os cortiços na grande maioria das cidades das regiões metropolitanas.

A partir dos anos 70, os índices sobre a população urbana começam a recrudescer, apesar de ainda altos, porém acentua-se por outro lado o quadro de desigualdade: de 80 para 90 o número da população que vivia em favelas passa de 2.248.336 para 5.020.517. Só no Rio de Janeiro a população favelada cresceu nessa década 32%. Os dados do último censo reiteram mais nitidamente o crescimento da desigualdade no país: enquanto as áreas centrais (mais ricas) das oito principais regiões metropolitanas brasileiras cresceram 5% nos últimos dez anos, as periferias dessas mesmas regiões cresceram 30%.

O déficit habitacional foi estimado em 1994, pela Fundação João Pinheiro, em 5.6 milhões de moradia sendo que 80% correspondiam aos que ganhavam até cinco salários mínimos. Com os dados do Censo 2000 o déficit foi atualizado e já atingiu 6.6 milhões de moradias sendo que 91,6% correspondem aos que ganham até 5 salários mínimos. O quadro de desigualdade não termina aí: enquanto faltam 6.6 milhões de moradia, 5.030.000 imóveis construídos estão fechados ou vagos. E se for contabilizado o número de glebas urbanizadas que ainda não tem edificação talvez daria para assentar o dobro da população que é contabilizada no déficit habitacional.

A população pobre é impelida à ilegalidade para exercer seu direito de morar. Essa ocupação desordenada vai gerando efeitos graves para a própria população que vive nos assentamentos precários que além de viver todas carências urbanas e as dificuldades de acesso à cidade esta população está sempre vulnerável a qualquer catástrofe causada por desmoronamentos, enchentes e etc.

1 Assessora da Fase, Secretária Executiva do Fórum Nacional de Reforma Urbana e coordenadora do Fórum Nacional de Participação Popular.2 Coordenadora da União Nacional por Moradia Popular, do Projeto Moradia e do Fórum Nacional de Reforma Urbana.

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Os efeitos da cidade ilegal também comprometem a cidade como um todo por contribuir na maior incidência de inundações recorrentes a cada período de chuva, no incremento dos congestionamentos e desvia recursos públicos de áreas já deflagradas para o enfrentamento das condições de habitabilidade. Portanto, enquanto não tiver políticas nacionais sócio-econômicas e urbanas que estanquem esse processo vamos continuar assistindo o crescimento das favelas, da população de rua, das crianças abandonadas, da violência, dos processos de segregação e de discriminação sexual, de raça, etnia, idade.

O Censo de 2000 aponta que 81% de uma população de 169.799.170 moram em cidades. Esse crescimento está marcado pela grande concentração populacional nas áreas metropolitanas. Os números são eloqüentes: dos 5510 municípios brasileiros, 75% têm menos de 20 mil habitantes, enquanto 49 aglomerações urbanas, das quais 12 regiões metropolitanas abrigam 47% do total da população.

O governo federal responsável por impulsionar um modelo de desenvolvimento baseado na industrialização e principalmente na indústria automobilística sempre fechou os olhos para os impactos criados nas cidades relativos à concentração de renda e a falta de políticas integradas para enfrentar os grandes problemas sociais e urbanos criados. Entendia-se que as cidades teriam que cumprir a função de indutoras do crescimento econômico. As respostas governamentais foram mínimas e desarticuladas até a década 60 e a partir desse período é instituído um planejamento tecnocrata, centralizado à nível nacional, fundamentado a partir de princípios e normas racionalizadoras como panacéia para resolver os problemas urbanos, visto que acreditava-se que as decisões racionais tomadas distantes da população dariam as condições para serem criadas cidades equilibradas. Fazia-se necessário segundo essa visão predominante colocar ordem nas cidades e mudar os hábitos e valores tanto da população como das administrações municipais. O exemplo mais característico ocorrido na maioria das cidades metropolitanas foi a construção de conjuntos habitacionais distantes do acesso ao trabalho e ao conjunto da cidade com o objetivo de “integrar” a população marginal.

Em 1980, a crise monetária, fiscal e financeira, a inflação e os diversos planos econômicos foram subordinando a política urbana a uma condição totalmente secundária expressa ao nível institucional de forma descontínua e fragmentada e atribuindo aos municípios o papel do enfrentamento dos imensos problemas das cidades.

A ausência da questão urbana na agenda política nacional e a falta de interlocutores claros, bem como, a inexistência de uma instância nacional de negociação entre os atores prejudicaram muito a atuação dos governos locais, a participação dos atores sociais na formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a cidade. Essa ausência se refletia na falta de diretrizes gerais para a política de desenvolvimento urbano cuja competência foi delegada à União pela Constituição de 1988. Essa ausência, por sua vez, contribuiu para dificultar ainda mais a integração nacional das políticas bem como no estabelecimento de estratégias que visassem a redução das desigualdades regionais e urbanas.

A construção de mudanças protagonizadas pela sociedade

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A mobilização social realizada por ocasião da Constituinte, pelo Movimento Nacional da Reforma Urbana, conquista o capítulo urbano que corresponde aos artigos 182 e 183 da Constituição.

A retomada da bandeira da Reforma Urbana baseava-se no maior acesso da população aos bens e serviços e na gestão democrática da cidade. Essa luta, responsável por ter colocado a função social da propriedade e da cidade3 na Constituição, foi estimuladora de um grande debate sobre a questão redistributiva, originando a formulação de instrumentos jurídicos e urbanísticos cuja viabilização e concretização a ser efetivada através da participação efetiva da população na construção de um novo padrão de gestão pública possibilitadora do exercício da cidadania.

Os princípios elaborados coletivamente, referenciam esse movimento desde o seu nascimento, são os seguintes:

“Direito à Cidade e à Cidadania”, entendido como uma nova lógica que universalize o acesso aos equipamentos e serviços urbanos, a condições de vida urbana digna e ao usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado e, sobretudo, em uma dimensão política de participação ampla dos habitantes das cidades na condução de seus destinos.

“Gestão Democrática da Cidade”, entendida como forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades submetidas ao controle e participação social, destacando-se como prioritária a participação popular.

“Função Social da Cidade e da Propriedade”, entendida como a prevalência do interesse comum sobre o direito individual de propriedade, o que implica no uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano4.

A expressão desta luta expressa em articulações de entidades dos movimentos populares, sindicados, organizações não governamentais, instituições acadêmicas e técnicos do poder público, principalmente, das regiões metropolitanas, possibilitou a conquista de capítulos urbanos nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas coerentes com a Constituição Federal. Possibilitou uma atuação incessante durante 12 anos no Congresso Nacional para alcançar a regulamentação dos artigos 182 e 183, que culminou na aprovação pelo Congresso Nacional da Lei nº 10.257/2001, denominada “Estatuto da Cidade”.

Atualmente, graças ao Estatuto da Cidade, os municípios podem contar com uma ferramenta preciosa para enfrentar o desrespeito aos direitos urbanos, para legalizar e urbanizar a parte da cidade ilegal, para possibilitar uma gestão democrática, para aplicar a função social da propriedade, para a recuperação, para a coletividade, da valorização imobiliária e para fortalecer o planejamento com participação popular, totalmente esquecido na atual conjuntura.

No entanto, o Fórum Nacional da Reforma Urbana5 está consciente que a luta não terminou sobre a nova lei. Faz-se necessário uma divulgação massiva do Estatuto,

3 Entendido enquanto o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado do espaço público4 Carta de princípios para a elaboração do Plano Diretor, FNRU, 1989, publicada em: DE GRAZIA, Grazia (Org.). Plano Diretor: Instrumento de Reforma Urbana. Rio de Janeiro: FASE, 1990.

5 A coordenação do Fórum Nacional da Reforma Urbana é formada por 15 entidades nacionais que atuam em áreas diferenciadas do urbano. Maiores informações no site: www.direitoacidade.org.br

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capacitar os diversos atores sociais e principalmente os técnicos das Administrações Locais para que se torne realidade e não apenas uma nova lei muito boa. É preciso um grande debate nacional para que os instrumentos disponíveis possam ser usados em conformidade com os princípios da Reforma Urbana, porque do contrário teremos instrumentos bons sendo usados para aumentar as desigualdades e a serviço das camadas sociais que sempre foram favorecidas.

Outras lutas associadas à defesa da Reforma Urbana foram desenvolvidas na década de 90: i) pela aprovação do PL de iniciativa popular que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular protagonizado pelos movimentos populares e principalmente pelas entidades nacionais de movimentos de moradia que cria uma política nacional voltada para a moradia popular com participação social e ii) pela defesa do PL 199 que criava uma política nacional de saneamento, vetado pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso bem como na derrubada de diversos projetos de leis que contribuíam para a privatização dos serviços de saneamento ambiental. A retomada da bandeira da Reforma Urbana, em 1990, necessitava enfrentar um outro desafio relacionado aos programas partidários. Conquistar os partidos políticos para essa bandeira tornava-se fundamental para comprometer os candidatos a todos os cargos para defenderem a Reforma Urbana nos seus programas e na opinião pública. Algumas candidaturas ao nível local conseguiram colocar os objetivos da Reforma Urbana nos seus programas, polarizaram os debates nas campanhas eleitorais e implementaram programas concretos em várias cidades. Ao nível das campanhas nacionais houve dois momentos fortes que produziram as condições fundamentais para a criação do atual Ministério das Cidades: na campanha de Lula a presidente de 1994 e no Projeto Moradia de iniciativa do Instituto Cidadania. Programa Lula 1994

Na campanha a presidente da República de 1989 a participação dos militantes articulados com esta nova bandeira foi um pouco tímida, mas em 1994 uma articulação nacional de militantes do movimento nacional pela reforma urbana ocorre e formula o programa de governo referente a política urbana.

Após o período constitucional era a primeira vez que os técnicos, intelectuais e lideranças dos movimentos sociais das áreas de habitação, saneamento e transporte urbano se uniam para elaborar uma proposta de política urbana nacional.

No programa de governo de Lula, em 1994, no Capítulo V “Mudar a Vida” está expressa a proposta de Política Urbana e Regional. Inicia com a constatação da existência no país de um quadro perverso de extrema desigualdade, desigualdade social e regional. Reconhecia a esfera federal como grande concentradora de recursos, não existindo, portanto, uma política descentralizada, transparente e democrática de alocação dos recursos e de participação da sociedade.

O programa afirmava que a ausência de planejamento democrático para a fixação de prioridades na aplicação de recursos acrescido a centralização administrativa e a falta de controle social, havia alimentado os níveis altos de clientelismo, desperdícios, irracionalidades, a cartelização, as concorrências fraudulentas e as práticas de superfaturamento.

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Para mudar aquela realidade o documento propunha uma ampla Reforma Urbana baseada nos princípios do movimento e que supunha a implementação de uma real democratização e de uma socialização do direito à cidade como fundamental ao exercício da cidadania. Mostra a necessidade da construção de uma Política Urbana articulada com uma nova política econômica, industrial, agrária,de geração de emprego e renda e ambiental.

Segundo o documento essa política necessitava de uma nova estrutura institucional: fazia-se necessário a criação do Ministério da Reforma Urbana com competência de atuar nas áreas de habitação, saneamento e infraestrutura e transporte urbano. Esse novo ministério operaria os recursos destinados a três fundos específicos vinculados a três secretarias nacionais e geridos por conselhos com atribuições específicas. Seria constituído um Conselho Nacional de Política Urbana e Regional – Conpur, composto por representantes do Poder Público e da sociedade (movimentos populares, sindicatos, empresários, universidades, entidades profissionais) e com representatividade regional. A constituição do Conpur exigia também a existência de conselhos nacionais temáticos como de habitação, saneamento e transporte urbano e, portanto, a representação desses conselhos deveriam estar na composição do Conpur. A atribuição do conselho seria elaborar, gerir e fiscalizar a execução de uma política nacional urbana e regional.

O ministério teria como primeira atribuição a elaboração do Plano Nacional de Política Urbana e Regional – Planur – que seria submetido a um amplo debate nacional coordenado pelo Conpur. O grupo que elaborou este programa supunha que um novo governo iria implementar tudo que havia sido conquistado na Constituição e por isso já propunha a compatibilização, entre as competência da União, a elaboração e execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (artigo 21, inciso IX).

O Planur deveria definir critérios de aplicação de recursos, traçar as prioridades de investimentos e definir diretrizes de intervenção para a implementação da Reforma Urbana. Deveria conter principalmente a questão fundiária e a garantia da função social da propriedade, a definição de padrões mínimos de habitabilidade, rever as leis do Inquilinato, parcelamento do solo, de licitações e das cooperativas, definição de normas de financiamento de programas e projetos, definição de uma política de descentralização e de integração com os diversos níveis de governo, capacitação das administrações locais, definição de programas especiais para regiões metropolitanas.

No programa de governo da campanha de 1998, aparece por primeira vez o nome Ministério da Cidade no lugar de Ministério da Reforma Urbana. O novo programa ratifica todos os conteúdos desenvolvidos em 1994 e enfatiza ainda mais a articulação das temáticas urbanas em uma única estrutura institucional.

O projeto Moradia

O Projeto Moradia começa a ser elaborado após a campanha de Lula a Presidente de 1998. É uma iniciativa do Instituto Cidadania e especificamente do Conselheiro da entidade: Luiz Inácio da Silva. O projeto, como o próprio nome está dizendo objetivou formular como foco central uma política de habitação, porém entendendo que não se faz

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uma política de moradia sem realizar as devidas intersecções, principalmente, em desenvolvimento urbano, uso do solo, saneamento e transporte. E deixou claro que não é possível realizar uma política de moradia sem um arcabouço institucional que ofereça as devidas condições para a implantação de tais políticas.

A proposta formulada cria um Sistema Nacional de Habitação que fazem parte: o Ministério das Cidades6, os Conselhos Nacional, estaduais e municipais de Desenvolvimento Urbano, os Fundo de Moradia nas três esferas, a Agência Nacional de Regulamentação do Financiamento Habitacional, os agentes promotores e financeiros, públicos e privados.

A criação do Ministério das Cidades no Projeto Moradia é justificado em primeiro lugar a partir da constatação de um quadro gravíssimo de injustiça social existente nas cidades e que penaliza 81% da população brasileira. O segundo argumento se refere a ausência quase que total de uma política urbana e principalmente da falta de um espaço institucional que se responsabilizasse por esta questão. Desde a extinção do BNH a responsabilidade da política urbana passou por vários ministérios e por várias secretarias que produziram programas fragmentados e descontinuados. Produziram também uma ausência de informações sistemáticas sobre a questão urbana, a falta de quadros técnicos qualificados e a falta de estratégias para enfrentar os problemas urbanos.

Ao Ministério das Cidades caberia, sobretudo, uma ação planejadora, normativa e articuladora, formular Planos Nacionais e criar um Sistema Permanente de Dados sobre a questão urbana e habitacional.

Seria criado um Conselho de Desenvolvimento Urbano, CNDU, ao nível federal articulado com conselhos de Desenvolvimento Urbano nos estados e municípios. O CNDU seria uma instância decisória onde se dariam as definições das diretrizes da política urbana e regional. A sua composição seria tripartite entre representantes do governo, dos setores produtivos e dos usuários.

A proposta inclui também a criação de comitês (câmaras técnicas) para partilhar não apenas o poder, mas as responsabilidades, tais como: reforma urbana, habitação, saneamento e transporte urbano. A sugestão que a mesma composição dos conselhos, tripartite, possa servir também para os comitês.

O projeto Moradia também inclui em sua proposta as conferências em todas as esferas de governo para garantir uma ampla representação e participação de todos os segmentos envolvidos na discussão das cidades, objetivando o estabelecimento de princípios e diretrizes mais gerais que orientariam a atuação dos conselhos.

Os imensos desafios do recente Ministério das Cidades

6 O projeto Moradia modifica de certa forma o conceito mais geral que estava imbuído na noção de Ministério da Cidade, isto é, um ministério que iria ter como objeto central a questão urbana. O Ministério das cidades neutraliza na denominação colocada no plural esse conceito.

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O quadro urbano-social não modificou da época que foram elaboradas as duas propostas de programas de governo, ao contrário os índices expressos pelo Censo 2000 mostraram uma triste realidade onde a pobreza, desemprego, violência e a falta de moradias, equipamentos e serviços públicos aumentaram. Na outra ponta o governo federal conta com um orçamento muito pequeno para enfrentar problemas de dimensões continentais do nosso país. No entanto, mudanças se fazem necessário e com muita urgência.

O primeiro desafio, mas com condições concretas de ser viabilizado, é o estabelecimento de um sistema de participação social, a partir da criação e desenvolvimento do Conselho Nacional das Cidades, Conferências em todos os níveis e Câmaras Técnicas. Os atores envolvidos com a temática urbana têm uma história pequena de negociação coletiva, principalmente com o governo. De 1988 até o período atual dois momentos foram importantes para ter iniciado um processo de negociação coletiva, embora muito limitado: no Comitê criado para preparar a Conferência Internacional Habitat II (1996) e na elaboração do relatório brasileiro de avaliação dos cinco anos após Habitat II (2001). No entanto o Conselho das Cidades só terá densidade se for instituída uma dinâmica de conselhos e conferências estaduais e municipais articulados com o nacional. Será preciso iniciar um processo de comprometimento dos outros níveis de governo para implantar e conquistar caminhos democráticos de tomada das decisões.

A área governamental de política urbana esteve ao longo de vários anos sob a responsabilidade de diferentes órgãos, que jamais conseguiram promover a integração temática ou territorial. Verifica-se uma tendência dominante à fragmentação e a superposição de programas. Assim, o Ministério das Cidades estruturado segundo secretarias nacionais setoriais poderá correr o risco de paralisar diante de tal quadro sem que mecanismos sejam criados para enfrentar a velha fragmentação do debate e da implementação de políticas no urbano.

Caberá ao Conselho uma contribuição efetiva na busca da implementação dos princípios básicos da transversalidade e da integração entre políticas setoriais de habitação, mobilidade urbana e saneamento ambiental, realizando inclusive interfaces com as políticas de segurança pública, saúde, cultura, promoção social, entre outras, visando uma efetiva política de desenvolvimento urbano.

A discussão sobre fundos exige um processo mais longo de aprofundamento, apesar da grande urgência desse equacionamento. Existem demandas sociais para criação dos fundos de moradia, saneamento e transporte, inclusive desta última temática já existem dois – Denatran e CIDES. Por outro lado existe o Fundo de Garantia responsável pelos recursos volumosos para habitação e saneamento. É preciso enfrentar os interesses particulares para garantir um processo articulado de recursos que assegure programas integrados de melhoria da qualidade de vida urbana.

Um grande desafio a ser buscado será a transformação da Caixa Econômica num órgão operador da política urbana traçada no âmbito do Ministério com o Conselho Nacional, visto que da extinção do BNH até o governo anterior por omissão dos vários executivos federais quem ditava as normas, diretrizes para os programas de habitação e saneamento era a Caixa segundo princípios que visavam a defesa da Caixa como instituição financeira. O desafio maior está na adequação da vontade da direção, declarado no discurso de posse do seu presidente, em transformar a Caixa em banco social com a estrutura, função e cultura desempenhados até o presente.

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Há uma demanda realizada pelos municípios que afirmam a falta de uma interlocução objetiva com o Executivo Federal. O novo Ministério ao chamar-se Ministério das Cidades, cria expectativas no plano institucional que vai promover um processo permanente de resposta às demandas das autoridades locais. Como corresponder a essa expectativa sem cair num “balcão de atendimento” onde facilmente se potencializaria a fragmentação quase que estrutural existente, os mecanismos já fortes do clientelismo e impediria a promoção e o fortalecimento da instância local de Governo como instância de um processo verdadeiro de descentralização democrática das políticas públicas.

Contra a cultura da fragmentação das políticas é preciso o cumprimento da função social das cidades, previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Trata-se de implementar um amplo processo de integração das ações e dos investimentos públicos prioritariamente nas áreas de habitação, de saneamento ambiental e transporte urbano – mas também na saúde, na educação, no trabalho, na cultura e na proteção ao meio ambiente, entre outras. Um bom exemplo é a articulação entre o Ministério das Cidades e da Justiça para realizar uma ampla política de regularização fundiária. No entanto é preciso que acúmulos substantivos existentes nas administrações locais e nas organizações sociais não sejam colocados à parte para incorporar propostas neoliberais ditas modernas. O Ministério das Cidades tem o compromisso de potencializar esses esforços para lograr políticas que realmente enfrentem a exclusão. O Ministério ao desejar a construção de cidades mais justas, democráticas e sustentáveis terá que obrigatoriamente estar formulando políticas e soluções para o desenvolvimento regional e das regiões metropolitanas que afetam o desenvolvimento efetivo das políticas nas cidades que visam o combate à desigualdade e segregação social e territorial, à pobreza e a violência, à degradação ambiental. Refletindo a conjuntura social que demandava o desmantelamento do autoritarismo, a nova Constituição ao fortalecer a autonomia dos municípios não tratou com a devida atenção os dois temas ora carentes de institucionalidade política. É preciso estimular o debate e levantar os problemas causados com esta omissão.

Por fim, faz-se necessário enfrentar o desafio do equacionamento, a médio e longo prazo, da formulação de um plano de Desenvolvimento Urbano não submetido aos ajustes e planos econômicos, mas construído democraticamente com a sociedade e realizado a partir da integração das políticas econômicas e de desenvolvimento social.

BIBLIOGRAFIA:

Programa de governo da campanha de Lula – Luis Inácio Lula da Silva de 1994 e 1998Projeto Moradia – Instituto Cidadania – maio 2000, Coordenação Geral: Luiz Inácio Lula da Silva e José Alberto de Camargo.DE GRAZIA, Grazia (Org.). Plano Diretor: Instrumento de Reforma Urbana. Rio de Janeiro: FASE, 1990.