mobral um desarcerto autoritário i

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  • $1i l [$[srurese polcn ecoruutcA soctAl (spES) - NovA FASEN.O 23 VOLUME VII I SETEMBRO/DEZEMBRO 1981

    Editorial

    Paulo A. Schweitzer

    Henrique C. L. Yaz

    Mrio Frana MirandaMarcello C. Azevedo

    Pedro Dalle Nogare

    Jarbas Medeiros

    Vanilda P. Paiva

    3 HEGEL:A ESCRITURA DA HISTORIA

    9 DEUS E A VISO CIENTTICNDO MUNDO

    17 DEUS NO PENSAMENTOCONTEMPORNEO

    29 O PAI DE JESUS CRISTO

    39 EUCARISTIA, RESPONSABILIDADEE PARTILHA

    49 O MARXISMO UM HUMANISMO?

    65 PENSAMENTO AUTORITARIO,HOJE

    MOBRAL:UM DESACERTO AUTORITARIO I

    DOCUMENTOS

    RECENSTSREVISTAS EM PERMUTA

    COLABORADORES

    worcE GERAL DE 1981

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    115

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    141

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  • Mobral:Um Desacerto Autoritrio*

    1.4 Parte

    Vanilda PaivaCentro Joo XXll l

    ,Nos primeiros anos, sob o peso do fracasso de dezenas de experin.cias anteriores de alfabetizao, o Mobral viveu tranqilo. Mas evi-denciado o sucesso, a crtica surgiu com ares avassaladores, pois no* az nada bem impunemente, pois l est a incompetncia a comba-ter o heri, o dolo, aquele que se destaca... Mas a fraude, essa sexiste nas idias, nas palavras e nos gestos dos que tentam inult i lmen-te macular nosso estrondoso sucesso". Arlindo Lopes Correia. Educa'co de massas e ao comuntria. MOB RAL/AGGS, 1979.

    "'O Mobral seria, quando muito, um "vendedor de iluses". lluso pa-ra o adulto que ignora a precariedade do adestramento que recebe eprincipalmente "vendedor de iluses" para anestesiar a conscinciada classe letrada do pas... Ningum ignora que o diplomado do Mo-bral permanece irmo gmeo do Analfabeto". Flexa Ribeiro, depoi-mento na cPl do Mobral. Dro do congresso Naconal, seo ll,16i03/1976 , p.344.

    Ttulo geral de um estudo div id ido em trs paftes, cuja publ icao se in ic ianeste nmero da revista.

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  • Parte I :O Mobral e a legitimao da ordem

    l.la histria da educao dos adultos no Brasil os anos 70 ficarammarcados pela atuao do Mobral. Com efeito, criado a 8 de setem-bro de 1970 como organismo executor de uma campanha alfabetiza-dora (1), o Movimento Brasi leiro de Alfabetizao logou ultrapassar abarreira dos 10 anos de existncia, ao longo dos quais ele manteve odiscurso do xito pretendendo ter reduzido os ndices de analfabetis-mo do pas de 33.6% (1970) para menos de 10% (1980). O xito pro-clamado colocou, porm, a questo relativa sua extino: se sua me-ta original havia sido atingda, se sua misso estava cumprida, no lherestava seno desaparecer. Mas ele levantou igualmente expectativasinstitucionais de sobrevivncia, gerando uma curiosa argumentaoque poderamos designar como "darwinismo insti tucional" (2l,e dan-do origem a uma srie de estratgias para promov-la. Estas estrat-gias - cuja trajetria ainda no est acabada - passaram pelas tenta-tivas de reforar o papel da instituio como instrumento de seguran-a interna do regime e pela ampliao da faixa etria atngida pelomovimento, oscilando - neste caso - entre as propostas de sua trans-formao num movimento de "ao comunitria" ou de "educaocomunitria" e a da sua dedicao preferencial ao pr-escolar.

    O Mobral fo i cr iado pela Lei n9 5.379 de 15 de dezembro de 1967 comoF unclao dest inada a f inanciar e or ientar tecnicamente picgramas de al fa-betizao, sem que esta lei tenha sido levada prtica. Somente em 1970 oMobral se transformou em organismo executor de um programa de alfabe-t izao.

    Ar l indo Lopes Correia, presidente do Mobral entre 1970 e 1981, argumentem favor da sobrevivnvia da insi tu io fazendo uma analogia com os "me-canismos evolut ivos" presentes na natureza e apoiando-se nos enunciadosde Darwin. "O Mobral , como os organismos vivos, d iversi f icou-se e ccns-

    . truiu o seu caminho para o futuro atravs de um processo de seleo natu-ral" de seus programas e atividades. Por terem passado por esta curiosa "se-leo" tais programas estavam marcados pela excelncia e seus resultadosno podiam deixar de ser bons, no havendo porque marcar umadata paraotrmino do Mobral . Ouando no houvessem anal fabetos o Mobral se dedi-cara "educao permanente" da populao, desenvolvendo atividadesque dever iam ir do pr-escolar universidade. Veja-se Correia, A. L. (ed).Educao de massa e ao comunitra. MOBRAL/AGGS, Rio de Janeiro,1979 , p. 25.

    t l )

    QI

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  • A luta travada ao longo dos ltimos anos nos bastidores do poder emtorno da sobrevvncia ou no do Mobral ao seu dcimo aniversro, eque veio parcialmente a pblco atravs da imprensa eml980 at cul-minar com a mudana de seus quadros diretores em 1981, revela asdvdas e desconfianas de amplos setores da tecnocracia sobre os re-sultados apresentados pelo Movimento, deixando ver o quanto eletem sido motivo de controvrsias - desde a sua criao - entre a bu-rocracia do Estado. Entre os profissionais da educao, entre aquelesque pretendem avaliar o movimento a partir de uma perspectiva "tc'nica" que privilega. a "rentabilidade" dos enormes recursos investi-dos pelo pas em tal movimento, reinou sempre profundo ceticismo arespeito dos proclamados resultados do Mobral - seja no que con-cerne alfabetizao, seja no que diz respeito ao possvel impacto deoutras formas de ao do movimento. Mas o questionamento do Mo-bral vai mais fundo. No que concerne alfabetzao no apenas aestabilidade da capacidade de ler e escrever lograda por uma partedos seus alunos e os ndices divulgados que so discutveis. a pr-pria meta da reduo dos ndices que se questiona e, portanto, o pr-prio sentido do movimento que a adota. Do mesmo modo, em rela-o aos demais programas lanados pelo Mobral questiona-se o senti-do e o objetivo das diferentes formas de ao, alm da sua "re-ntabili-dade". Este questionamento das opes do Mobral e de sua prpriexistncia tem sido feito em nome de critrio definidos pela tecno-cracia a partir de uma anlise terica da problemtica e dos resultadosdas experincias anteriores, a nvel naconal e internacional. A com-preenso do porque estes critrios no lograram impor-se nem no mo-mento da criao do Mobral nem ao longo da sua histria exige umadiscusso do significado poltico do movimento.

    O lanamento do Mobral como campanha de alfabetizao de massa,em 1970, prendeu-se diretamente mobilizao poltica canalizadaatravs do movimento estudantil em 1968 e promulgao do Al-5em dezembro deste ano, constituindo-se tal campanha - juntamentecom a expanso do ensino superior - num dos plares da poltica edu-cacional do governo mlitar no perodo. Enquanto a expanso do en-sino superior visava, entre outros objetivos, atender s demandas dasclasses mdias por este nvel de ensino e neutralizar o movimento es-tudantil, o Mobral foi montado como uma pea importante na estra-tgia de fortalecimento do regime, que buscou ampliar suas bases so-ciais de legitimidadd junto s classes populares, num momento emque ela se mostrava abalada junto s classes mdias. Pelo seu carterostensivo de campanha de massa, o Mobral deve ser visto como um

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  • dos "programas de impacto" (ao lado, por exemplo, da Transamaz-nica) do governo Mdici. Organizado a partir deuma logstica militarde maneira a chegar a quase todos os municpios do pas, ele deve-ria atestar s classes populares o interesse do governo pela educaodo povo, devendo contribuir no apenas para o fortalecimento eleito-ral do partido governista mas tambm para neutralizar eventual apoioda populao aos movimentos de contestao do regime, armados ouno. Neste sentido, seu lanamento se subordinou s exigncias da"segurana interna" - que era consistente com a "militarizao" doescalo superior do MEC observada no perodo, com a entrega depostos decisrios a militares,. Mas, atravs do Mobral, o regime defi-niu tambm de maneira clara a sua linha de ao nacional em relao educao popular. Por outro lado ele dedicou vultuosos recursos alfa-betizao da populao adulta e se decidiu por uma ao centralizada enacional em matria de educao de adultos, ao mesmo tempo que des-curou e descentralizou sempre mais o ensino fundamental. Por issomesmo, o Mobral pode ser apontado como sucessor dos programasps-64 em matria de educao de adultos, ou seja, sucessor simulta-neamente da Cruzada ABC (3) como programa alfabetizador, e doProjeto Rondon (4) como "programa de ao comunitria", manten-do ao longo da sua existncia uma orientao anloga quela que pre-dominou nestes programas nos anos 60 e que foram - desde o incio- intensamente criticados pelos profissonais da educao.O "desacerto tcnico" que caracterizou. a estratgia e as opes glo-bais feitas pelo Mobral foi possvel gracas ao regime autoritrio, quepassou por cima do consenso existente nos meios educacioriais coritratal tipo de programa e impediu a sua discusso pblica. Este "desa-certo tcnico" era, porm, a condio para aquilo que os representan-tes do regime viam com um "acerto poltico", ou seja, para a utilza-o de um programa de educao de massa como instrumento paratentar atingir suas metas de ampliao das bases de legitimidade e dereforo da segurana interna do regime. Tentemos aqui explicar asobjees ao programa e a descrena nos seus logros entre os profissio-nais da educao, bem como indicar a forma como o programa se ins-talou e buscou legitimar-se junto opinio pblica e nos meios edu-cacionais, analisar seus resultados quantitativos e as questes ligadas sua sobrevivncia nos anos 80.(3) Sobre a Cruzada ABC veja-se Paiva, Vanilda P. Educao Popular e educa-

    o de adultos. So Paulo, Loyola, 1973, p. 268-282 e 34$352.(4) Ver Paiva, Vanilda. La extensin universitria en Brasil. Nueva Sociedad,

    San Jos, Nr. 15, nov. dic. 1974,p.68-83.

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  • 1. L|ES EMP|R|CAS DO PASSADO

    A desconfiana das campanhas de alfabetizao de massa no surgiudo nada. Est solidamente apoiada sobre a experincia anterior defracasso de inmeros programas do gnero em todo o mundo. Taisprogramas foram lanadosem muitos pases perifricosapsa SegundaGuerra Mundial, estimulados pela Unesco recm criada. Deve-se lem-brar aqui que durante a guerra fortalecera-se a crenadequenaeduca-o das massas residiria o preventivo contra o autoritarismo, contra ostotalitarsmos. Campanhas de alfabetizao que atingissem massiva-mente a popu lao dos pa ses que se integram de forma subordinada aomercado mundial parecem ter sido o correspondente encontrado, paraesta parte do mundo, para os programas de educao e reeducao pol-tica promovidos no ps-guerra em pases como a Alemanha e oJapo.Tais campanhas deveriam contribuir para elevar novas parcelas da po-pulao cidadania polt ica (onde os analfabetos estavam impedidosde votar), ao mesmo tempo em que difundiam ideais democrticos. De-vemos lembrar tambm que o perodo que sucedeu o final da guerrafoi caracterizado pela discusso sobre o desenvolvimento e a necessi-dade de promov-lo nestes pases, acreditanto-se - ento - que a al-fabetizao era impescindvel ao processo que a ele conduzia.

    O resultado das campanhas nos pases onde foram tentadas, inclusiveo Brasi l , foi pouco alentador. A maioria delas entrou rapidamente emdecadncia, extinguindo-se anos depois sem ter erradicado a "chagado analfabetismo" e sem lograr difundir amplamente os ideais demo-crticos. Mas algo se esclareceu nos meios educacionais, que em geralno se notabilizam pela clareza poltica: no era a alfabetizao emmassa que assegurava o funcionamento e a preservao da democraciarepresentativa. Ao contrrio: foi o exerccio desta forma de democra-cia que permitiu ver claramente o equvoco representado por taiscampanhas e denunci-lo, logrando a reduo das propores dessesprogramas e, finalmente, sua extino. Por isso, entre ns, somenteum regime autoritrio - capaz de impedir a discusso livre e a crticaa seus programas - teria condies de impor ao pas novas campa-nhas de massa no velho estilo. Constata-se, assm, que - tendo nasci-do como instrumento de combate ao autoritarismo - tal estratgiaeducativa converteu-se, entre ns, em produto e instrumento do regi-me autoritrio.

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  • Um sucinto balano da experincia anterior brasileira com campa-nhas de alfabetizao de massa mostra-se necessrio para que se possaentender a resistncia dos profissionais da educao a este tipo deprograma (5). As grandes campanhas brasileiras funcionaram entre ofinal dos anos 40 e o incio dos anos 60: foram elas a Campanha deEducao de Adolescentes e Adultos (CEAA) e a Campanha Nacionalde Educao Rural (CNER). Ouando o fracasso de tais programastranscendeu os meios tcnicos e sua decadncia tornou-se visvel, es-pecialmente a partir de meados dos anos 50, multiplicaram-se os pro-gramas de pequeno porte, reStritos e prudenteS, muitas vezes de inici-tiva privada e cuja ao se pautou por critrios bastante distintos da-queles que marcaram as campanhas, anorada solidamente nas lutassociais e polticas da poca. E, quando o governo Goulart pretendeulanar um Plano Nacional de Alfabetizao (PNA), que certamenteesbarraria em muitos dos problemas com que se defrontaram as cam-panhas anteriores, seus organizadores buscaram escapar ao esquemadas camanhas ctssicas. incorporando etementos Brovenientes da ex-

    per-rncra os ff\o-\ner\os res\-os em unitonameno no pefiOO.Alm do mais, tal programa

    - embora vinculado ao Estado - refle-tia as contradies que caracterizaram o perodo finalilo populismode inspirao vargusta e estava a servio da mobirizao em favor dasreformas de base (6).

    Lanada em janero de 1947 a CEAA constituiu-se na campanha demaiores propores j organizada no pas para combater o analfabe-tismo, antes do surgimento do Mobral. o entusiasmo suscitado foienorme. sua meta de 500.000 alunos no primeiro ano de existnciafoi ultrapassada, tendo sido matriculados 6sg.6o5 anarfabetos em to-do o pas. Em termos quantitativos ela chegou a seu auge em 1gS3,quando matriculou em seus cursos a 8s0.68b pessoas. A partir da acampanha entrou em declnio naquilo que ela apresentava como oseu grande trunfo: a quantidade de alunos. Mas o entusiasmo provo-cado pela CEAA j arrefecera desde o incio dos anos 50, quando ain-da se observava forte expanso da matrcula, pois j ento comea-ram a ser percebidas as crescentes dificuldades no recrutamento dosanalfabetos, as elevadas taxas de evaso, o desinteresse das comissesMunicipais constitu das por voluntries, a parca motivao de alfabeti-

    Veja-se Paiva, Vanilda P. Educao popular... op. cit. p. 115-202.lbdem, p. 203-258. Veja-se tambm Manfredi, Silvia. Poltica: educaopopular. 2a. edio, So Paulo, Ed. Cortez, 1981 e Beisgeel, Celso. Estadoe educao popular. So Paulo, Pioneira, 1914.

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  • zadores que - em conseqncia do baixo "pro-labore" - funciona-vam em regime de "semi-voluntariado", a inadequao do materialdidtico populao adulta e s diferentes regies do pas. As infor-maes divulgadas pela CEAA passaram cada vez mais a ser conside-radas pouco confiveis, porque as classes que se iniciavam muitas ve-zes deixavam de existir em virtude da evaso ou da freqncia irregu-lar da maior parte dos alunos, porque em alguns estados e/ou municpios a execuo dos planos era fictcia, porque as informaes ou nochegavam ou eram incompletas e imprecisas especialmente aquelas re-lativas ao interior dos estados. No raro as prprias autoridades edu-cacionais locais denunciaram ser falsa a maior parte das informaesconstantes dos boletins da campanha. O desgaste da CEAA foi de talordem que, no final dos anos 50, ela era apontada nos meios educa-cionais como uma mera "fbrica de eleitores" e o Ministro da Educa-o, tentando defend-la, viu-se obrigado a usar o argumento de queela ao menos servira "para o esclarecimento dos pais quanto neces-sidade da freqncia das crianas escola" e de que era um programa"de pequeno custo".

    Com a convocao do ll Congresso Nacional de Educao de Adultospelo MEC em 1958 o governo Kubitschek reconheceu de pblico ofracasso das campanhas de massa e solicitou aos educadores a "for-mulao de uma doutrina sobre a matria" para orientar o governo eparticulares no planejamento e conduo dos programas de educaode adultos. Por certo que se reconhecia que a CEAA contribuira, jun-tamente com a expanso do ensino elementar possibilitada pela apli-cao dos recusos do Fundo Nacional do Ensino Primrio, para a re-duo dos ndices de analfabetismo observada nos anos 5O (11.17"entre 1950 e 1960) e para a multiplicao do nmero de eleitores(que passou de 7.9 milhes em 1950 para 11.7 milhes em 1960).Mas tornou-se consensual a idia de que a CEAA limitara a sua ao transmisso da tcnica de assinar o nome e de que a alta de oportu-nidade de utilizao das tcnicas eventualmente aprendidas, rapida-mente destrua os efeitos da superficial atuao da campanha, regre-dindo a populao atingida ao analfabetismo. certo que a campa-nha tentou, ao longo de sua histria, transcender a sua "ao extensi-va" ao criar programas como o dos "Centros de Iniciao Profissio-nal" (em funcionamento desde 1951) e ao fomntar a criao de sis-temas rdio-educativos regionais a partir de 1957, mas este tipo deao nunca chegou a ser significativo nem nunca sofreu qualquer ava-liao.

  • Houve, porm, outra tentativa de promover a "ao em profundida-de". Em 1952 desmembrou-se uma parte da CEAA, dando origem Campanha Nacionalde Educao Rural - como conseqncia dasrecomendaes do Seminrio Interamericano de Educao de Adul-tos, realizado no Rio de Janeiro sob o patrocnio da Unesco e daOEA em 1949, de que a "ao extensiva" das campanhas alfabetiza-doras deveria ser complementada por uma "ao em profundidade" aser realizada atravs do desenvolvimento comunitrio. Seu instrumen-to deveriam ser misses educativo-culturais dirigidas especialmentepara as comunidades rurais (7).

    O resultado prtico da realizao do seminrio foi a organizao deuma Misso Rural de Educao de Adultos, como carter experimen-tal, que atuou em ltaperuna (8). Para l deslocou-se uma equipe multi-disciplinar que iniciou seus trabalhos pela investigao dos interessese necessidades locais nas reas de educao, higiene, alimentao, re-creao, agricultura. A tal investigao seguiu-se o "despertamento"da comunidade para seus problemas, realizada atravs de palestras,demonstraes, cursos, reunies, projeo de filmes educativos, pro-gramas radiofnicos, visitas domiciliares. Foram feitos contactos comas autoridades e "elementos representativos da comunidade", com asinstituies pblicas e privadas para que apoiassem a Misso. Gruposforam organizados. Junto a eles os integrantes da Misso promoveramdebates sobre os problemas e planeiaram as atividades a serem desen-volvidas. Nas reunies gerais de moradores foram formadas comissespara o estudo detalhado de problemas especficos (de educao, sa-de, recreao, etc...). No setor de extenso agrcola foram organiza-dos clubes agrcolas, campanhas de combate s pragas, de fomento horticultura; na rea de sade, campanhas de vacinao, cursos de en-fermagem e higiene. Foram promovidos cursos de "formao social"visando "formar uma mentalidade voltada para a resoluo dos'pro-blemas sociais". Como se v facilmente, a metodologia de aproxima-o da comunidade era verticalista; o trabalho desenvolvido estava ei-vado de idealismo e tinha um carter marcadamente assistencialista, oqual era justificado pelos seus promotores como constituindo uma

    Veja-se OEA/UNESCO. La educacin fundamental del adulto americano.Seminrios interamericanos de educacin. Union Panamericana, Washing-ton D.C., 1951.

    Ministrio da Agricultura. Misses Rurais de Educao; a experincia def taperuna. Rio de Janeiro, Servio de Informao agrcula, 1962.

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  • "oportunidade para a realizao do trabalho educativo". A educao,considerada independente das reais condies econmico-sociais, eravista como o elemento fundamental capaz de promover o desenvolvi-mento; a soluo dos problemas comunitrios seria encontrada namedida em que se combatesse a "escassa preparao do homem dointerio/', sem consideraes relativas estrutura social. Para os orga-nizadores da Misso, o "despertamento do esprito comunitrig" (6conscincia do valor da "entre-ajuda") conduziria soluo dos pro-blemas coletivos e elevao dos padres de vida da populao.

    No surpreendem os precrios resultados da Misso, considerados ofi-cialmente como "no conclusivos". Apesar disso, seus avaliadores re-comendaram a utilizao no meio rural, da metodologia de "organi-zao social de comunidades" (inspirada no Servio Social norte-ame-ricano), atravs de Misses Rurais que deveriam atuar sem limite detempo. A experincia da Misso de ltaperuna serviu como exemplo ejustificativa para a criao da Campanha Nacional de Educao Ru-ral, cujo principal instrumento foram as Misses Rurais de Educao(a CNER chegou a manter 18 dessas Msses, especialmente nos Esta-do do Nordeste) e seu mtodo o da "organizao social das comuni-dades". O trabalho era iniciado com a pesquisa darea onde a Missodeveria atuar. Eram consultadas as autoridades locais, os fazendeirose o clero para que dessem seu apoio ao programa; em seguida busca-vam os tcnicos "fazer emergir" a liderana comunitria que, treina-da, auxiliava no desenvolvimento das atividades da Campanha. Estasvisavam a assistncia sanitria. a educao moral e cvica, a educaode base, a introduo de melhorias das tcnicas agrcolas e se desen-volviam atravs dos clubes agrcolas, clubes de jovens, clubes demes, Centros sociais da comunidade, etc., organizadas pelos peritosdas Misses. Buscavam estes "difundir os princpios da auto-ajuda",mas sua permanncia na comunidade no tinha prazo fixado: a Mis-so deveria funcionar at que a "comunidade assumisse os seus pro-blemas e arcasse com a sua soluo" (9). O fracasso das Misses foise tornando claro ao longo dos anos, na medida em que elas no lo-graram "provocar o desenvolvimento" das comunidades onde se ins-

    Para aval iar o trabalho do CNER necessrio consultar os documentos daCampanha. Veja-se, porm, sobre a questo da "organizao social das m-munidades" e sua histr ia entre ns os trabalhos de Rodrigues, lvany Lo-pes. Antlise da dinmica do processo de desenvolvimento de comunidadeno Brasil. Rio de Janeiro, ABSS, 1966, e de Ammann, Safira Bezerra. ldeo-logia do desenvolvimento de comunidade no Brasil. So Paulo,' Cortez eMorais, 1980.

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  • Italaram: elas desapareceram quase sem deixar rastro ao se extinguir oprograma em 1963, no sem ter antes absorvido considervel quanti-dade de recursos.

    A enfatizao pelos organismos internacionais da necessidade de"aprofundar" a ao atravs de programas de desenvolvimento comu-nitrio, de educao comunitfia, era uma tentativa de resposta - noincio dos anos 50 - aos problemas que comearam a ser sentdos nascampanhas alfabetizadoras. medida em que o fracasso destas tor-nou-se indiscutvel, a Unesco lanou-se criao de centros regionaispara o estudo dos problemas ligados ao desenvolvimento comunit-rio. Mas esta estratgia de "aprofundamento" tambm foi deixandover seus estreitos limites, os quais foram reconhecidos parcialmenteao longo dos anos 60 e definit ivamente nos anos 70 - quando aque-les centros foram fechados ou entregues aos governos dos pases on-de funcionavam. Paralelamente mult ipl icaram-se, com apoio da Unes-co, as pesquisas sobre a regresso ao analfabetismo, ao tempo de es-colaridade necessrio fixao dos conhecimentos adquiridos, s cau-sas das elevadas taxas de evaso caractersticas das campanhas alfabe-t izadoras, conduzindo todas elas a um tema central: a funcionalidadeda alfabetizao. Chegou-se concluso, considerando que os ndicesde regresso freqentemente alcanam 9O%, de que s tem sentidoaplicar recursos na alfabetizao, onde o domnio das tcnicas de lei-tura e escrita so funcionais vida dos que as adquirem. Esta funcio-nalidade pode resultar de um cl ima de efervecncia polt ica, na medi-da em que aquelas tcnicas tornam-se importantes nas lutas travadaspelas classes onde se localizam os analfabetos, como bem pudemosver nos movimentos organizados no Brasl no f inal dos anos 50 e in-cio dos anos 60 (10), ou pode ser gerada em situaes ps-revolucio-nrias, quando aqueles instrumentos se tornam necesrios consoli-dao de conquistas polticas e econmicas daquelas classes, como seobservou na campanha cubana (11). Mas a Unesco deteve-se funda-mentalmente, sobre a questo da funcionalidade econmica da alfa-betizao, i que no cabia a ela discutir a estrutura scio-poltica dos

    (10) Um exemplo concreto nos foi dado por um ex-coordenador dos grupos dealfabetizao no nordeste antes de 1964. Segundo ele, o campons partici-pante das ligas, consciente de seus interesses e empenhado na sua luta, es-perava o coordenador na estrada: ele se alfabetizava rapidamente e comqualquer mtodo porque sua motivao era enorme.

    (11) Veja-se Werthein, Jorge e Carnoy, Martin. Cuba: cambio econmico y re-forma educativa (1955-1978). Mxico. Nueva lmagem, 1980.

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  • pases membros. Ora, dependendo das estruturas de produo nasquais os indivduos esto inseridos, a aquisio das tcnicas de leiturae escrita pode ser inteiramente desnecessria, Ela no condio paraa aquisio e domnio dos conhecmentos necessrios vida diria degrande parte da populao dos pases onde tem funcionando campa-nhas de alfabetizao. Alis, o fracasso destas contribuu para a redes-coberta de que o analfabeto no um incapaz e menos ainda um mi-crocfalo, como queria Miguel Couto; para que se conclusse bri-lhantemente que o analfabeto pode muito bem conduzir sua vida,trabalhar, constituir famlia e que a restrio do seu direito ao vototem a ver no com a sua capacidade ou incapacidade de escolher poli-ticamente mas com as necessidades de controle poltico das classesdominantes. Pessoas que no sentem a necessidade de ler e escreverpodem se inscrever em classes de alfabetizao, mas se evadem porfalta de motivao e, quando chegam a alfabetizar-se, faclmente per-dem por desuso aquilo que lograram aprender. A pretenso de alfabe-tizar toda a populao mostrou, assim, ser um objetivo ideolgico de-rivado ou do preconceito injustificado contra o analfabeto ou do de-sejo de alguns pases de apresentarem ndices de analfabetismo seme-lhantes aos que so encontrados nos pases desenvolvdos, supondoque isto os torna mais respeitados na comunidade internacional.

    A defesa dos programas de "alfabetizao funcional" - e paralelo de-sestmulo s campanhas de alfabetizao em massa - surgiu no mes-mo perodo em que se difundiu a economia da educao e as tcnicasde planejamento educacional (12), com a uti l izao das quais se pre-tendia optimizar as aplicaes no setor educacional, evitando o des-perdcio de recursos. Avaliadas a partir desta perspectiva, decidida-mente as campanhas representam uma forma de desperdcio. Em con-traposio a elas, a Unesco passou a recomendar programas de alfabe-tizao restritos a serem realizados nas unidades produtivas, dentrodo horrio de trabalho e em conexo com as possibilidades de usoimediato dos conhecimentos adquiridos: esta seria uma "alfabetiza-o funcional", alternativa para as campanhas e para os programas dedesenvolvimento comunitrio promovidos em contextos nos quaisno se observa uma real transformaco da estrutura scio-econmica

    l12l Deixamos de lado, aqui, a discusso a respeito das dificuldades e fracassosdo prprio planejamento educacional, retendo apenas a idia de que ne-cessrio considerar - antes de lanar um programa - as possibilidades deleoferecer resultados que lustfiquem o investimento em termos de benef-cios trazidos populao qual se destina.

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  • e poltica (13). No entanto, tambm os programas de "alfabetizaofuncional" orientados pela Unesco em diferentes pases do mundoenfrentaram dificuldades de tal natureza que o seu destino no foimuito diverso do das campanhas pois os onze projetos-piloto desen-volvidos a partir de 1967 fracassaram (14). Restou, de toda esta evo-luo, uma enorme prudncia no que concerne a programas de alfa-betizao e de educao de adultos, sendo estimulados somente peque-nos projetos diversificados e com carter experimental. Ao lado disso,aquele organismo internacional continuou na defesa de uma nebulosa"educao permanente" que, pela sua prpria abrangncia e indefini-o, pode servir a iniciativas as mais diversas dos seus pases mem-bros. Do mesmo modo, teve prosseguimento a exortao dos gover-nos para que considerassem seus programas de alfabetizao e educaode adultos a partir de sua rentabilidade scio-econmica, lembrandosempre que o investimento em tais programas tem baixa rentabilida-de e pouco reprodutivo. No poderia, alis, ser muito distinto. Emque pese a profunda desconfiana de todos.os peritos dos programasde affabetizao, educao de adultos, educao comunitria, etc.

    (13) Este tipo de programa chegou a existir entre ns na forma de experincia:a da Companhia do Vale do Rio Doce em Vitria, a que devia incluir Oua-tis e Caxang num projeto conjunto do Grupo de lrrigao do Vale do SoFrancisco/IBRA/COHEBE, alm de proletos ligados Federao das ln-dstrias na Bahia e na Guanabara. Somente no primeiro caso pode-se falarem execuo do programa, com assessoria de um perto da Unesco. Veja-seCia. Vale do Rio Docr'. Projeto experimental de alfabetizao funconals.n.t. Field, . Projeto xperimental {alphabetization fonctionnelle de laCia. Valedo Rio Doceau Brsfl. Unesco 1969.

    ( 1 4) ndices de regresso de at 9O7o foram encontrados entre os freqentadoresdos cursos de alfabetizao dos projetos piloto, trs anos aps a alfabetiza-o, segundo depoimento do Prof. Flexa Ribeiro - exdiretor geral deEducao da Unesco - CPI do Mobral. Yer o Diro do Congresrc Nacio-nat, Seo n, rc/O311976, p. 351. lhdices semelhantes foram encontradosquando da avaliao dos resultados da campanha de alfaberizao realizadana Costa Rica. Apesar disso, o fracasso dos programas s pode ser asumidoom discrio pela Unesco pois, como explica o prof. Flexa Ribero,aor-ganizao no pode melindrar seus pases membros. Assim, mesmo tendoencerrado seus programas de alfabetizao de adultos, alguns pases quize-ram manter tais programas por motivos polticos e "a Unesco no poderiacometer a imprudncia, o gesto pouco amvel, sobretudo, de m poltica,de publicar um documento que fosse fulminante para um dos seus Estados-Membros... Apurar quem fracassou? Para os Estados-Membros e para o or-ganismo s poderia haver um mau resultado poltio". lbidem, p. 351. Fle-xa Ribeiro referia-se concretamente ao fato de que o ex-imperadordo lrinsistiu em manter em seu pas, por motivos polticos, o programa de alfa-betizao i ndependente dos precrios resu tados co lh idos.

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  • que surgem nos diferentes pases - especialmente em se tratando deprogramas de massa - a Unesco continua distribuindo entre eles seuselogios e seus prmios porque lhe cabe apenas fazer recomendaes edar a conhecer as dificuldades, mas no lhe compete desaprovar estra-tgias adotadas pelos seus pases membros (15).2.AS RAZES DO MOBRALDiante da exprincia nacional e internacional das campanhas alfabeti-zadoras e da poltica defendida pela Unesco no final dos anos 60 (ados programas experimentais de "alfabetizao funcional"), comoentender o lanamento de um programa como o Mobral? Na verdadea Fundao Mobral fora criada em 1967 como organismo financiadorde programas descentralizados, devendo funcionar em estreita cone-xo com o Departamento Nacional de Educao (DNE) do MEC. O(15) Segundo algumas publicaes do Mobral o movimento teria recebido, atra-

    vs dos prmios oferecidos pela Unesco e pela avaliao feita do programa,uma "@nsagrao internacional". O prof. Flexa Ribeiro chamou, no en-tanto, na CPI do Mobral a ateno para o fato de que a Uneso uma asso-ciao de governos e que seu objetivo primordial "no a educao, nem acincia, nem a cultura; o objetivo fundamental da Unesco apaz mundial...Ela no pode tornar-se um campo de batalha, nem trazer querelas paradentro do organismo, nas suas relaes com os Estados-Membros". lbidem,p. 357. Por isso, ao ser pressionado pelosgovernostal organismo deve res-ponder

    - mesmo contra a opinio dos peritos - de forma a contentaraqueles que pressionam. Estes comentrios referiam-se exatamente s pres-ses exercidas publicamente pelo ministro Jarbas Passarinho na Confern-cia de Tquio em 1972, que tomou a palavra e fez um protesto formalcontra a falta de referncia ao Mobral no documento ento apresentadopela Unesoo, acusando-a de ser uma instituio de esquerda e de tratar oMobral com suspeio ideolgica. O Diretor-Geral da Unescp sompareceuao local para desculpar.se perante o ministro brasileiro e enviou em seguidaao Brasil uma comisso de avaliao que produziu o documento "O Mo-bral, uma experincia brasileira de alfabetizao de adultos", favorvel aomovimento. Ver o Dirio do Congresn Nacional, seo ll, 18/11/1975,p.7003. Tambm na Conferncia de Perspolis em 1974, os representantesoficiais brasileiros se retiraram como protesto contra a concesso do pr-mio Rehza Pahlavi ao Prof. Paulo Freire. Coube a D. Luciano Duarte repre-sentante do MEB, protestar contra a afirmao do representante da Indiade que o trabalho de erradicao do analfabetismo s tem dado certo nospases socialistas. D. Luciano defendeu ao Mobral, apresentando-o - junta-mente com a campanha promovida pelo lmperador do lr, que o Arcebis-po, em seu depoimento na CPI do Mobral, lembra ser chamado de "Reidos Reis, Esplendor dos Arianos" - oomo exemplo de que possvel terxito com campanhas de alfabetizao de massa nos pases democrti-cos". lbidem . 03/12/75. p.7746-7767 e 25/11/75, p.7344-7345.

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  • propsito do governo ps-64 de retomar a questo da alfabetizao eda educao de adultos, aps o fechamento e/ou restrio dos progra-mas que funcionaram no perodo que antecedeu a derrubada do go-verno Goulart , era visvel em dist intas inic iat ivas: no lanamento daCruzada ABC no nordeste, na aceitao de alguns projetos-piloto de"alfabetizao funcional" sob orientao de um perito da Uneco e naproposio pelo DNE de um "Plano Complementar" ao Plano Nacio-nal de Educao dest inado al fabet izao de adultos e cujas diretr l -zes foram aceitas pelo Grupo Interminister ial que props a cr iao daFundao. O Plano do DNE propunha um programa de al fabet izaode massa mas adotava alguns cr i tr ios tcnicos que resultaram dos en-sinamentos oferecidos pela experincia dos programas da dcada an-terior bem como da preocupao com a rentabilidade do investimen-to. Previa a vinculao das at iv idades al fabetzadoras s pr ior idadeseconmico-sociais e de formao de fora de trabalho qual i f icada, de-vendo a sua execuo iniciar-se nas capitais dos estados com priorida-de dada aos analfabetos entre 1 5 e 30 anos e excluso da populacodd 10 a 14 anos. A Fundao Mobral deveria ser presidida pelo dire-tor do DNE, cabendo-lhe f inanciar 1/3 do custo dos programas de al-fabetizao e educao de adultos, cooperar com movimentos isola-dos de inicat iva pr ivada e or ientar tecnicamente cursos de nove me-ses de duraco para analfabetos (16).

    A desvinculao do Mobral do DNE em julho de 1969 indicava que aorientao tecnocrt ica no seria seguida. Al is, h que registrar queela nunca ul trapassara o nvel dos planos e as portas dos gabinetes.Na prt ica o governo brasi leiro f inanciava, desde 1966, a CruzadaABC - campanha de massa organizada como "programa de impacto"norte-americano que se instalou no nordeste do pas e mais especif i -camente nas reas onde haviam funcionado as LigasCamponesas (17).A Cruzada ABC viu-se prat icamente reconhecida como programaofic ial atravs do convnio f i rmado com o MEC em 10 de agosto de1967, no qual era ressaltada a "perfei ta adequao" entre os seus ob-jet ivos e os da pol t ica governamental . Nada mais natural , portanto,que ela se candidatasse a ser a entidade executora dos programas ofi-ciais de alfabetizao de adultos, prevendo os seus planos a extensodo programa desenvolvido no r iordeste ao conjunto do pas com o(16) Veja-se MEC/DNE. Alfabetizao, exigncia cvica. Rio de Janeiro, 1966.(171 Consulte-se Paiva. V. Educao Popular... op. cit. Veja-se tambm INED.

    A Cruzada ABC: avaliao de um programa de alfabetizao no nordeste.Rio de Janeiro, 1967.

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  • objetvo de alfabetizar dois milhes de adultos at 1970. Ao Mobralcaberia apoi-la f inanceiramente.

    Diversos motivos impediram a realizao do plano proposto pela Cru-zada ABC. A oposo ao programa surgira logo aps o seu lanamen-to, abrangendo os profissionais da educao, o Banco Central (que serecusou a aceitar suas prestaes de contas), parte da burocracia dosdiversos Ministrios e, at onde era possvel na poca, a opinio p-bl ica. A SUDENE, ento sob a direco do general Albuquerque Lima,fez questo de manfestar de pblico o seu descompromisso com se-melhante programa e promoveu, em janeiro de 1967, um seminriosobre "Educao e Desenvolvimento" cujas concluses reforavam oscritrios sugeridos pelo DNE e implicavam numa condenao s atvi-dades da Cruzada ABC (18). Tal programa, cuja existncia se apoiavana "doutrina da interdependncia" tornou-se um pesado fardo parao governo aps a promulgao do Al-5. Como combinar o estmulo asentimentos patriticos, a propaganda do "Brasil Grande", a imagemda nao forte que vive o "milagre econmico" e aspira tornar-se po-tncia mundial, com a existncia de um programa de educao demassa ori;ntado e dr igido por estrangeiros? A Cruzada ABC era, narea da educao de adultos, o correspondente aos convnios MEC/USAID para os diferentes nveis de ensino. Era, porm, poli t icamentemuito mais incmoda porque nela a interferncia externa no se l imi-tava ao planejamento, apresentao de sugestes e presses pela suaoperacionalizao: o programa era implementado diretamente pelosnorte-americanos. As n':cessidades de legitimao do regme a partirde dezembro de 1968 exigiam a "nacionalizao" de tal programa eesta tarefa coube ao Mobral. Sua transformao em meados de 1969inicia um perodo de transio que d conta da liquidao da Cruza-da ABC e lana as bases para um programa nacional executado peloprprio Mobral a partir do ano seguinte.

    (181 Veja-se o Documento Final do l9 Seminrio de Educao e Desenvolvi-mento. Recife, SUDENE, 1967. A razo bsica da generalizada oposio Cruzada era a sua direo pelos norte-americanos. No entanto, as opesfeitas pela Cruzada tambm chocavam os profissionais da educao. Suaatuao como campanha de massa no somente destruiu programas oficiaispr-existentes {como foi o caso da SIREPA na Paraba} @mo a prtica dedistribuio de "Alimentos para a Paz" entre alunos e professores, a cada15 dias, sempre que mantivessem freqncia regular aos cursos, atraia pes-soas alfabetizadas porm famintas e dava ao programa uma forte conota-o assistencialista e "filantrpica" que era colocada a servio da aoideolgica por ele visada.

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  • A tese que defendemos a de que o Mobral o sucessor nacional cjaCruzada ABC, tendo asumido no apenas as suas dvidas mas tambr-a sua estratgia de ao e muitos dos seus objetivos. As linhas mestraspresentes na atuao da Cruzada predominaram nitidamente sobreaquelas propostas pelo DNE: a motivao do poltico-ideolgica doprograma determinou sua orientao, descartando os critrios esbel+cidos pelo MEC. A Cruzada ABC, na verdade, funcionou na regionordeste como a contrapartida conservadora dos movimentos de edu-cao popular do incio dos anos 60, desencadeando na rea umaao ideolgica que visava legitimar a nova ordem junto populaoAtravs do seu programa buscava a ABC difundir uma imagem positi-va dos militares e dos norte-americanos, demonstrar o interesse dosgovernos brasileiro e norte-americano pela "sorte do povo", inculca"nos participantes a convico de que a asceno social possvel eque ela depende fundamentalmente do esforo individual, supondc'que isto contribuiria para minimizar as "tenses sociais" na regioOrientada por protestantes, a Cruzada ABC buscou tambm desen-volver um trabalho de proselitismo religioso, o que era consistentecom o temor provocado pela radicalidade dos jovens catlicos nosanos anteriores e que parecia ameaadora para a ordem social (19). CtMobral perseguiu de maneira anloga o mesmo objetivo de legitinna-o do regime e de minimizao das tenses sociais, mas como p!'o-grama nacional e laico. Distigue-o, no entanto, da Cruzada ABC o fa-to de que ele j no foi montado como contra-ofensiva ideolgica pa-ra neutratizar os efeitos de movimentos anteriores a 1964, mas comcforma de ampliar junto s camadas populares as bases sociais de leg -timidade do regime, no momento em que esta se estreitava junto sclasses mdias em face do Al-5, no devendo ser descartada a hipot+se de que tal movimento tenha siso pensado tambm como instru-mento de obteno de informaes sobre o que se passava nos(19) Em conseqncia do convnio firmado com o MC em 1967 o materiat c .

    dtico da Cruzada passou ataze na contracapa o seguinte texto: "O Ca +gio Agnes Erskrine (colgio protestante dirigido por norte-americanos :um colgio cristo que d orientao Cruzada da ABC. A USAID .-rgo dos Estados Unidos da Amrica que ooopera no desenvolvimentc c,:Brasil. O governo brasileiro interessa-se pela educao de cada cidadcAtravs da pesquisa realizada pelo INED foram colhidas iunto populac:muitas declaraes do seguinte teor: "a ABC se mostra muito propagend 5ta tanto dos protestantes quanto dos americanos" , "h empreguismo e' a'"gf ico" (lugares de professor). Veja-se INED. Cruzada ABC: avaliac :tum programa de alfabetizao no Nordeste. op. cit. No material dict :::aparecia umalio sobre a importncia das Foras Armadas, ressaltano: :seu papel na manuteno da paz e da ordem interna, sem qualquer refe':-cia funo de proteo contra ameaas externas.

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    municpios do interior do pas e na periferia das cidades e de contro-le sobre a populao. Ou seja, como instrumento de "segurana inter-na".

    A perseguio de tais objetivos no era compatvel com uma ao res-trita s unidades produtivas e nem mesmo com programas mais am-plos, porm orientados por critrios como aqueles defendidos peloDNE: fazia-se necessro uma campanha nos moldes clssicos, umaCruzada ABC nacionalizada e atuante em todo o pas. Por isso, o pla-no apresentado pelo DNE no incio de 1970 ao ministro Jarbas Passa-rinho, por solicitao deste no final do ano anterior, no podia seraceito: seu custo foi considerado muito elevado, a durao dos cursos(de 9 meses conforme recomendao tcnica da Unesco em face dasaltas texas de regresso) fo vista como excessiva e o nmero de anal-fabetos a serem atingidos (1 milho e 2QO mil) no correspondia sexpectativas do ento ministro e s necessidades polticas do regime.Em face do conflito, o minstro destituiu o diretor do DNE da presi-dncia da Fundao Mobral e convidou para o cargo, por sugesto docoronel Mauro da Costa Rodrigues, o prof. Mrio HenriqueSimonsen.

    A escolha do novo presidente do Mobral foi uma das providncias to-madas para poder implementar um programa capaz de realizar uma"ae extensiva" alfabetizadora. Sendo o seu lanamento o resultadode uma deciso poltica ligada s necessidades de legitimao do regi-me, no foram grandes as preocupaes com o aspecto tcnco doprograma que se criava - embora a escolha de Simonsen tambm ser-visse para obter algum apoio entre os tecnocratas. A questo funda-mentaf , porm, era como conseguir recursos suficientes para realizaruma campanha de massa. E a soluo deste problema foi facilmenteencontrada por Simonsen, que props a transferncia voluntria parao Mobral de 2% do lmposto de Renda devido pelas empresas: esta so-luo foi aceita - embora o Mnistrio da Fazenda reduzisse aquelepercentual a 1o/o - e oficial izada pelo Decreto-Lei nr. 1.124 de 8desetembro de 1970. Tal fonte de recursos foi complementada com adestinao de 247 da renda lquida da Loteria Esportiva, podendo oprograma contar, j em 1971, segundo clculo do ministro Passarinho,com uma fantstica soma que atingia entre 20 e 25 milhes de dla-res (20). A captao de tal volume de recursos resultou de umesforo(20) O destino destes recursos , no mnimo, controvertido. Em seu depoimen-

    to na CPI do Mobral o ex-mnistro Passarinho pediu uma sesso secreta pa-ra tratar do assunto. Veja-se o Dirio do Congresso Nacional, Seo ll,03/1211975, p.7743.

    .og

  • do ministro Passarinho e de Mario Henrique Simonsen junto ao empr+sariado: atravs de palestras feitas por ambos nas entidades de classeforam convencidos os empresrios a optar pelo Mobral ao fazerem s.rasdedues. E o fizeram na medida em que acreditavam no somen:eque o programa livraria o pas da "chaga do analfabetismo" mas qLisimultaneamente realizaria uma ao ideolgica capaz de assegurar:estabilidade do sfafus quo e permitiria s empresas contar cor r-plos contingentes de fora de trabalho alfabetizada.

    Vejamos, no entanto, como se buscou justificar a criao do Mobral esuas opes.

    3.JUST\F\CAO E CONCEPS DO MOBRALInstalado contra o consenso existente entre os profissionais da educa-o e diante dos "risos de mofa e descrena" (Jarbas Passarinho) daintelectualidade, os responveis pelo Mobral no buscaram legitimaro programa junto aos educadores nem aos intelectuais. lsto no par*cia nem vivel nem necessrio. O programa era politicamente relevan-te para o regime e a deciso de cri-lo foi uma deciso autoritria: tra-tava-se de implant-lo e torn-lo aceito pela opinio pblica e para is-so realizou-se intensa propaganda atravs dos diferentes meios de co-municao de massa. E como os canais de discuso pblica estavarnsob controle, a justificatva para o programa podia ser primria egrosseira: seus responsiveis, na verdade, no se sentiam devedores deexplicaes (21). Alis, do mesmo modo como os convnios MECUSAID e a Cruzada ABC mostraram que internacionalizao daeconomia brasileira correspondia uma crescente internacionalizacoda assessora educatva e ate mesmo da administrao de programasconcretos, o lanamento do Mobral deixou mostra a militarizaco

    l21l Em 1979, na publicao propagandstica organizada com o objetivo de for-talecer as chances de sobrevivncia do Mobral, comenta-se esta ausncia dejustificao do programa como se se tratasse de algo inexplicvel: "Curioso observar que a meta de erradicao de analfabetismo em 10 anos no foijustificada nem explicada em nenhum documento da organizao. Na ver-dade, os documentos dessa poca so poucos e geralmente incompletos,principalmente no que se refere ao planejamento... o clima externo orga-nizao, no incio da dcada de 7O, que existia no pas... influenciou pon-deravelmente nesta primeira e fundamental deciso... O pas pedia e exigiauma campanha gigantesca... para acabar com a chamada "vergonha nacio-nal". Sim, foi uma deciso com forte carga emocional". Castello Branco,Marcelo De Lima. O planejamento no Mobral. In: Correia, Arlindo Lopes.Educao de mass... op. cit. p. 135-136.

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  • por que passou o prlmeiro escalo do MEC: eram militarcs, pocada criao do Mobral, o Ministro da Educao (Cel. Jarbas Passarinho)e o Secretrio-geral do Ministrio (Cel. Mauro da Costa Rodrigues)sendo escolhido para secretrio-executivo do movimento um capeloparaquedista. O afastamento dos profissionais da educao do proceeso decisrio - observvel claramente no rompimento do vnculo Mo-bral/DNE - revela o carter poltico-militar da deciso de lanar acampanha de massa. E, como uma justificao tcnica slida para oprograma no era posvel e os militares que ocuparam os cargos de-cisrios do MEC careciam de formao prvia para atuao no setoreducacional, onde ela apareceu deixou ver o carter arbitrrio e auto-ritrio do programa (22!.

    O ex-ministro da educao admitiu em depoimento na CPI do Mobralque, na poca, foi aconselhado a no lanar o programa. Houve quemlhe dissese: "Abandone os adultos. E faa com que a presso se dpara que, em curto prazo... se chegue universalizao do ensino pri-mrio, porque a a fonte seca". Ele, porm, lanou mo de argumen-tos ticos e do apelo emoo para justificar o Mobral, afirmandoque "cometeramos uma falta bastante grave com relao aos adultosbrasileiros analfabetos. Eles no tem culpa de serem adultos; a culpa nossa". Citando Miguel Couto e deixando transparecer seu precon-ceito contra os analfabetos, ele nos fala do "erro histrico que se acu-mulou" e do qual precisvamos nos redimir - lembrando o palavre-ado e o clima de discusso do assunto na Repblica Velha, que secombina, no entanto, com uma tentativa de justificao econmica. Oanalfabetismo de grande parte da populao adulta comprometeria a"produtividade da empresa nacional", pois homens alfabetizados"seriam parte do processo produtivo com maior produtividade". Porcerto que o ministro no se deu ao trabalho de demonstrar sua tesenem de consultar as pesquisas disponveis sobre o ssunto, pois se otivese feito a questo certamente lhe pareceria mais complexa e con-trovertida. Um ltimo argumento, de natureza poltica, tinha maior

    (22) Pode-se en@ntrar a a explicao para o constante esforo propagandsticodo Mobral: no havendo uma justificao tcnica aceitvel para o programaera preciso apelar para o sentimento. O prprio Mobral reconhece, na pu-blicao de 1979, que o programa lanou mfu de intensa campanha publici-tria com "linguagem apelativa" "visando o envolvimento de cada brasilei-ro e da's comunidaded'. Correia, Arlindo Lopes (ed) Eduao de mas...op. cit. p.72.

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  • manas aquilo que ele supunha que elas dissesem. Vale a pena tomaralguns exemplos que dispensam, porm, anlise ou comentrio.

    Contestando a orientao do DNE e as recomendaes da Unesco fa-vorveis a cursos com nove meses de durao, argumentava ele:

    "O,uanto ao problema da durao de 3,4,5 ou 6 meses um a ques-to, muitas vezes, de viso; durante 9 meses j um desperdcio detempo e economicamente pesado. A rentabilidade dura. Por outrolado, o sofrimento humano de esperar 9 meses para poder se acharem condies de saber manipular o seu pensamento, atravs da mate-mtica, e de aperfeioar-se na leitura de um jornal ou de uma revista, muito tempo para ele. O ser humano tem sempre uma ansiedadeimensa quanto s suas conquistas".

    E ainda sobre o mesmo tema: "Depois da experincia de 70 chega-mos a concluso de que no podia ser nem menos de 3 meses nemmais de 5, porque seno cansava. Dentro de um esguema natural dosaber humano, e dependendo do nvel de cada um, chega a um pontoem que no h mais condies de aspirao; ento fica rebatendo-se omesmo assunto e ocasiona desinteresse. lsso, aqueles aqui presentes,que so doutos ou iniciados em Sociologia ou Antropologia sabem,principalmente, que ns temos um determinado ponto em que noadianta mais colocar nada, porque lotou a capacidade daquele indivduo". O mesmo argumento era utilizado para justificar o precriorendimento do programa e o retorno dos alunos s classes do Mobralpor 2, 3 ou mais vezes. Para o Pe. Spotorno isto ocorria porque "oelemento j est suado e castigado. Em Antropologia, principalmen-te, sente-se isso. O indivduo j no d mais, ele uma tbua fechada,recebe pancada e no responde mais... Mas, na esperana, ele se ins-creve duas, trs ou quatro vezes".

    Anlogo palavreado e raciocnio encontramos na justificao das de-cises que envolviam a utilizao de recursos, como no caso do mate-rial didtico. lnstado a explicar o porque do luxo de tal materal di-zia ele:.

    "Tendo em vista essa necessidade do ser humano de ser que ns fi-zemos no s um material luxuoso mas um rico material que, pela suaquantidade de feitura, saiu barato." Alm do mais, "... precisvamoscativar o aluno, porque o adulto apesar de pobre sabe que existe acor... Dar um livro que no tivesse nenhum atrativo visual - como12

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  • solidez: o sub-produto do Mobral era o reconhecimento da cidadaniados homens que lograsse alfabetizar (23l.

    O nvel da argumentao se deteriora sensivelmente nas declaraesdo Pe. Filipe Spotorno, ex-funcionrio do MEB (24) e do ProjetoRondon e indicado pelo Coronel Mauro da Costa Rodrigues para a Se-cretaria-executiva do Mobral (25), onde permaneceu no perodo quevai de junho de 1970 a abril de 1972. Na verdade, o programa impos-to pela fora no precisava ser justificado pois de outro modo as pes-soas escolhidas para os cargos de responsabilidade deciria seriamoutras. Indagado na CPI do Mobral sobre a implantao do movimen-to na sua gesto o Pe. Spotorno parecia crer na presena de misterio-sas foras que ele mesmo no sabia explicar: teria sido "um verdadei-ro milagre, que no sei como aconteceu". Apesar disso, ele explicitouas razes das decises tomadas para a operacionalizao do movimen-to diante da mesma CPI em 1976, onde viu obrigado a justi-car o luxo do material didtico empregado, as causas da evaso e darepetncia, a durao dos cursos. E o ez sem pejo, pretendendo fa-lar em nome do ser humano em abstrato e atribuindo s cincias hu-

    (23) Consulte-se o depoimento do ex-ministro Jarbas Passarinho CPI do Mo-bral. Dirio do Congresn Nacional, seo ll, 03112175 e 161O3176.

    l24l O Pe. Filipe Spotorno foi afastado do Mobral em 1972 por questes pesso-ais mm Mrio Henrique Simonsen e que parecem estar ligadas utilizaodos recursos do movimento no perodo, oomo sugere o depoimento do se-nador Jarbas Passarinho na CPI do Mobral. Antes de passar pelo Mobral epelo Projeto Rondon ele esteve vinculado ao MEB, a convite de D. LucianoDuarte, exatamente no perodo em que se procedeu "limpeza" idgolgi-ca deste movimento e liquidao da orentao que o caracterizara desdeque fora crado, com a demisso da equipe nacional. O Pe. Spotorno foiafastado do MEB em seguida tambm por motivos ligados utilizao dasverbas do movimento.

    (25) O Projeto Rondon funcionou, em seus primeiros anos, de maneira improvi-sada e claramente assistencialista, deixando de atender a critriostcnicosos mais elementares no trabalho junto s comunidades, em onseqnciada pressa de seus organizadores de realizar atravs dele uma ao ideolgicarpida e eficaz sobre os estudantes na segunda metade dos anos 60. Mas asua forma de atuao na verdade reduziu o seu impacto porque os estudan-tes atingidos partiram para a sua crtica e para a denncia do desperdciode recursos representado pelo programa, obrigando sua reviso. O ProjetoRondon foi organizado e dirigido nos seus primeiros anos pelo CoronelMauro da Costa Rodrigues, secretrio-executivo do MEC quando da cria-o do Mobral. Sobre o Projeto Rondon veja-se Paiva, Vanilda. La extensi-n universitria en Brasil. Nueva Socieda4 op. cit.

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  • aconteceu em outras campanhas - seria o comeo da morte; se eleno sente atrativo se acha desconsiderado, pois sabe que um outromais afortunado consegue ter um livro a cores. E impressionanteque o aluno tenha o sentido de posse, ao ser alfabetizado e receberaquele livro ao qual d um valor inestimvel, Se o livro, ento, seapresentasse em termos de cativ-lo, muito maior ainda seria o apegoque ele teria a esse material que lhe era dado" (26).Os argumentos empregado pelo Pe. Spotorno deixam ver claro queele se viu responsvel por um enorme programa sem um mnimo deconhecimentos gerais e especficos no campo educacional, o que re-fletia o carter estritamente poltico das decises que envolveram oprograma, a improvisao e a falta de seriedade tcnica com a qual oproblema da alfabetizao foi tratado no Governo Mdici. Segundodir anos mais tarde Ar!indo Lopes Correia aquela teria sido a "faseherica" do Mobral, "marcada pelo empirismo nas atividades-meio"(27). Esta fase teria terminado em 1972, quando da substituio doSecretrio-executvo, iniciando-se uma "fase tcnica".

    A falta de legitimidade do programa junto a burocracia estatal e mes-mo aos profissonais da educao governistas, associada aos proble-mas que o programa comeou a enfrentar e a entrever no futuro, pa-recem ter sido fatores decisivos na escolha de elementos provenientesdo IPEA para a sua direo. Arlindo Lopes Correia e Teresinha Sarai-va foram deslocados do Centro Nacional de Recursos Humanos(CNRH) para o Mobral, abrindo um novo perodo na vida do movi-mento, o qual desdobra-se claramente em dois sub-perodos. Entre1972 e 1974 toram recolocados os problemas relativos ao "desacertotcnico" do programa e a discordncia entre os dois elementos prove-nientes do IPEA caracteriza um perodo de transio no qual a ques-to principal a justifcao ou no da orientao adotada at ento,sua continuidade ou reorientaco. Em sntese, a questo era determi-nar se o Mobral devia adotar os critrios recomendados pelos tecno-cratas ou se seguia adiante como programa orientado fundamental-mente por critrios polticos. A vitria desta ltma posio determi-nou o afastamento de Teresinha Saraiva do programa em outubro de1974.(26) Todas as citaes provm do depoimento do Pe. Spotorno CPI do Mo-

    bra. Consulte-se o Dirio do Congresrc Nacional, Seo 11,09/03/76, p.1 26- 1 35.

    l27l Correia, Arlindo Lopes. Mobral - Pedagogia dos homnes livres. In: Correia,A. L., Educao de massa... op. cit. p. 23.

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  • As posies defendidas por Teresinha Saraiva so aquelas que estive-ram presentes em todas as crticas formuladas pela tecnocracia educa-cional ao programa. A dvida a respeito dos resultados da alfabetza-o oferecida pelo Mobral a longo prazo era claramente colocada porela no apenas em funo da pequena durao dos cursos (tendo elaproposto a sua extenso para 6 meses) e dos critrios de avaliao daaprendizagem da leitura e da escrita, mas principalmente em funoda pouca probabilidade de que os alunos atingidos pelos demais pro-gramas e atividades do Mobral fossem os mesmos que frequentavamsuas classes de alfabetizao. Ora, tais atividades e programas haviamsido multiplicadas e diversificadas como forma de evadir a crtica campanha de massa: o ex-ministro Passarinho assegurava que os resul-tados do Mobral eram diferentes dos das demais campanhas realiza-da no mundo - quando ele comeou a tomar conscincia de que ascampanhas haviam falido por toda a parte * exatamente devido aossus programas de "educao continuada". Deste modo, TeresinhaSaraiva questionava no apenas o programa tal como ele existia masmlocava em questo o sentido da sua sobrevivncia, a multiplicaoe a diversificao de suas formas de atuao. Se "sabemos que, narnaoria esses alunos de Educao Integrada no eram os mesmos dosprogramas de alfabetizao" diz ela em seu depoimento CPI do Mo-bra (28), e que isto provavelmente ocorria com todas as demars ativi-dades do movimento, no existia a propalada "educao continuada"e, portanto, a regresso da populao alfabetizada pelo Mobral aomalfabetismo podia ser to elevada quanto aquela indicada por pes-quisas realizadas pela Unesco sobre outras campanhas (at 90%). Seera assim (e ela solicitava o encaminhamento de pesquisas que mos-lnsem a real situao da clientela do Mobral), no havia porque am-p{iar, diversificar nem persistir no movimento: os recm alfabetizadosestavam expostos regresso ao analfabetismo e para propiciar opor-atnidades a uma outra faixa da populao existiam as Secretarias esaduais e municipais de educao, bem como os servios especializa-dos do MEC e outros. Ela sugeria que o Mobral se concentrasse sobrea alfabetizao e educao continuada do contingente atingido peloprograma alfabetizador e que repassasse os recursos sobressalentes aoutros rgos do MEC: "Se o Mobral tem disponibilidade financeiraga realizar este trabalho (educao de crianas, V.P.), transfira osrecursos para quem de direito faa a sua tarefa" (29).fl2$ Depoimento de Teresinha Saraiva CPI do Mobral. Dirio do Congresso

    Nacional,Seo I l, 25n 1 n5, p. 7314.

    l ,Zl) lb idem, p.7019.105

  • Recursos para atividades culturais deveriam ser transferidos para oDepartamento de Cultura do MEC; recursos para a profissionalizao,deveriam ser canalizados para o PIPMO, e assim por diante. Do mes-mo modo, ela sugeria a reviso da destinao dos recursos da LoteriaEsportiva, pois eles poderiam ser aplicados pelos Estados e Municpi-os na difuso do ensino de primeiro grau, ressaltando que o movi-mento deveria ter um carter transitrio e de suplncia, devendo li-gar-se tecnicamente ao Departamento do Ensino Supletivo do MEC eno pretender atuar como organismo paralelo ao Ministrio. Final-mente, ela colocava ainda em questo a "realidade numrica" apre-sentada pelo Mobral, em funo da deficincia das informaes e dosproblemas apresentados na consecuo das metas quantitativas em to-do o pas. Em sntese, Teresinha Saraiva exprimia a posio consen-sual dos profissionais da educao em relao ao Mobral e, ao faz-lo,mostrava como tal movimento repetia a histra das nossas campa-nhas dos anos 50.

    O afastamento de Teresinha Saraiva do Mobral em outubro de 1974mostrou claramente que a tecnocracia educacional perdeu mais umavez a luta dentro do movmento, predominando a orientao que omarcou em seu comeo. No entanto, era preciso agora - quando seanunciava a abertura polt ica, quando se abria possibi l idade de dis-cusso do programa pela opinio pblica - justific-lo de maneiramais aceitvel do que lograra o Pe. Spotorno. E no se tratava de jus-tificar apenas o presente: era preciso tornar legtimas as opes feitasno passado e encaminha a justificao para a sobrevivncia do progra-ma aos seus 10 anos. O engenheiro Arlndo Lopes Correia era a pes-soa indicada para cumprir esta tarefa poltica. Tratava-se de provar dealguma maneira que o governo mil i tar, ao criar o Mobral e lanar noprograma enorme quantidade de recursos, no havia agido de maneirairresponsvel ou improvisada. O,ue, ao contrrio, o Mobral.era produ-to de uma viso articulada do problema educaconal e que seus obje-tivos no eram meramente poltico-deolgicos. Havia que justificar"tecnicamente" o desacerto tcnico do programa, porque a falta des-ta justificao terminava por ating-lo politicamente. Ora, ArlindoLopes Correira conhecia muito bem os critrios adotados pelos tec-nocratas da educao, manejava o jargo e os conceitos da economiada educao, estava a par das pesquisas no campo. Podia, portanto,usar estes conhecimentos para justificar a orientao do Mobral e darcoerncia sua "doutrina". Para isso ele lanou mo, sempre quepossvel e necessrio, de conceitos utilizados pela Unesco quando es-tes lhes pareceram teis; e enfrentou polemcamente as recomenda-106

  • :,es daquele organismo sempre que estas se chocaram com a orienta- adotada pelo Mobral. Ao invs de uma atitude defensiva, ele ape-crr para uma atitude ofensiva. E quando os argumentos faltaram, ele

    :pelou para a emoo, em alguns casos, e para uma atitude agressivajiante de qualquer crtica atual ou futura, desqualificando-a comosubversiva ou de m f. Ele o fez de forma consciente, em nome delces poltcas bem definidas.J,.'n ponto central da polmica em torno do Mobral teve gue ser por: e enfrentado: - a justificao da campanha de massa e a questo da-agresso. O Mobral, segundo ele, teria sido criado "por um ato de?xtrema ousadia" do ministro Passarinho e isto porque "havia a cons-:ncia nacional e havia a deciso poltica do Governo Revolucion-'io de resolver o problema do analfabetismo. E deu-se ento o ato de:r'aco do Mobral... e a concepo de descentralizar e criar a clular,sica para a nossa operao - a Comisso Municipal.". E adeu-se oCesabrochar maravilhoso de toda a populao envolvida num movi--rento de amor ao prximo" (30). Este linguajar que apela para a:moo como instrumento de propaganda do movimento mistura-se3 uma argumentao que utiliza o jargo tecnocrtico. Por um lado,?le repete os argumentos do ex-ministro Passarinho: os gue comba-:em o Mobral revelariam um "profundo desprezo pelo ser humano",'o seriam humanistas, no estariam preocupados com o nosso pobreomem analfabeto, seriam "partidrios da 'eutansia cultural', a ne-lar uma oportunidade que talvez seja a primeira e a ltima para mui-:os irmos brasi leiro ' (31). Por outro lado, ele tenta mostrar queaCeciso de lanar o Mobral como campanha de massa no resultavada ignorncia dos problemas caractersticos deste tipo de programa-So. Ao contrrio: a deciso teria sido tomada consciente e coerente-'ente contra uma orientao equivocada da Unesco. Vejamos um:'echo em que tal forma de justificao feita atravs daquele lingua-er emocional :

    O Mobral floresceu - diz ele - e superou as expectativas, mesmo.sto pela Unesco com ceticismo... porque ns nos lanramos ao tra-ca ho com uma metodologia totalmente distinta da preconizada por:quele organismo. Optamos por um movimento de massa... Mas o

    lb idem , 18/1111975, p. 7009.

    Correia, A.L. Mobral - pedagogia dos homens l ivres. In: Cor-reia, A. L. (edl Educao de massa... op. cit. , 9.24.

    3Ct

    - a \

    1[ l l

    107

  • Mobral teve um sucesso espetacular" t32.. O que propunha a Unescoera a "alfabetizao funcional" e ela - dizia Correia - "definia entocomo a funcionalidade da alfabetizao a integrao do indduo noprocesso de desenvolvimento... Eu me bati contra a adoo desta me-todologia" (33). Realmente, ainda no IPEA Arl indo Lopes Correiacof ocou-se contra a realizao dos projetos de alfabetizao funcionalprevistos para o Brasil em meio a discusses relativas panicipaoda populao nesses projetos, discusses que determinaram a decisodo governo brasileiro de no solicitar a renovao da permanncia doperito da Unesco encarregado de acompanhar as experincas. A ori-entao do perito internacional no atendia s necessidades polticasdo regime, localizando-se a o ncleo da discrdia. Combatendo oprojeto da Unesco e apoiando o afastamento do perito, Correia de-senvolveu uma argumentao para justificar a sua posio, que era in-compatvel com a da tecnocracia do IPEA mas que certamente eramuito adequada defesa da estratgia adotada pelo Mobral. Por isso,sua escolha nada tem de casual como tampouco foi casual que, noconflito com Teresinha Saraiva em torno das mesmas questes tcni-cas, prevalecesse a sua orientao.

    Para justificar suas posies naquela poca e a poltica posta em pr-tica pelo Mobral, Correia d como argumento o fracasso do Plano Ex-perimental Mundial de Alfabetizao: desde o seu lanamento ele lhefizera oposio por consider-lo "elitista" e "economicista". Tal f ra-casso teria permitido constatar a justeza de sua posio - no passadoe no presente - e a fel icidade do "gnio" Mario Henrique Simonsen"ao optar por fazer do Mobral um movimento de massa, pluralista,aberto, descentralizado e dotado de grande universalidade" (34). Noentanto, a conseqncia que os peritos tiraram do fracasso do Progra-ma Experimental foi no a de apoiar a reedio de campanhas demassa mas a de recomendar programas de alfabetizao experimen-tais diversificados e de propores ainda mais reduzidas. Correia sepreocupou em atacar esta posio. Para ele "o experimento na reasocial tem sido geralmente uma fuga diante do problema real", um"f ibi para no tazer". A soluo no estaria nos programas experi-mentais mas na utilizao do "mtodo do ensaio e erro", este sim

    (321 Dirio do Congresso Nacional, Seo ll, 1811111975, p.7015.(33) lb idem, p.7018.(34) Correia, Arlindo Lopes. Mobral pedagogia dos homens livres. ln: Correia,

    A. L. (ed) Educao de mass... op. cit. p. 56.108

  • comprometido com a realidade (35). De tal argumento conclui-se quese deve partir para a ao to amplamente quanto possvel e que noimporta muito se de um enorme ensaio resulte um enorme erro, por-que de qualquer modo estaria atestado um compromisso com a reali-dade. E, como no possvel defender com xito junto opinio p-blica tal metodologia quando esto em jogo vultosos recursos pbli-cos, foi afastada da poltica da instituio o reconhecimento de quede seus enormes ensaios possam ter resultado erros: nos documentosdo Mobral todos os seus ensaios tornaram-se grandes xitos. Tais xi-tos eram grandes na medida em que o Mobral se constituira como"um rgo de ponta" "compelido a tentar onde as outras instituiesso tmidas": graas ao seu "estrondoso sucesso" ele podia "correr ris-cos que amendrontariam outras entidades" (36). Mas, como no erapossvel explicar e mostrar concretamente como aqueles xitos havi-am sido obtidos, seus idelogos freqentemente apelaram para o irra-cionalsmo (37).Para melhor justificar o programa era preciso opor ao conceito defuncionalidade da Unesco um outro conceito que servisse defesa doMobral. Assim, a funcionalidade deixou de estar conectada a possibi-l idades identif icadas de uti l izao do novo conhecimento na vidaconcreta, produtiva, dos que se alfabetizam. A alfabetizao ofereci-da pelo Mobral seria "funcional porque induz (ao aluno) a desco-brir sua funo, seu papel no tempo e no espao em que vive" (38),tonando-se agente e beneficirio do desenvolvimento. Este jogo depalavras no era irrelevante: mantinha-se o jargo corrente nos meiostcnicos ligados educao e ao desenvolvimento social em geral,mas retirava-se qualquer vinculao prvia da alfabetizao s condi-es scio-econmicas dentro das quais vive o aluno. Reeditando demaneira sofsticada o preconceito contra o analfabeto (que no seriacapaz de encontrar sua funo), esta definio jogava para um pero-do post-alfabetizao a descoberta da sua funcionalidade, tornada ta-

    (35) lb idem, p.26.(26) Correia, Arlindo Lopes. Mobral - pedagogia dos homens livres. In: Correia,

    A.L. Educao de mass,. op. cit., p. 49.

    (37) A Fundao Mobral era em si mesma um xito e "noo cientf ica completa para o sucesso. Mas o gnio demonsen - V.P.) no se expl ica". lb idem , p.29.

    (38) Ramos, O.C.A. e Fonseca, M.S.V. Por um sistema dete. lb idem, p. 67.

    se tem uma expl ica-(Mrio Henr ique Si-

    educao permanen-

    109

  • refa e responsabilidade individual daquele que se alfabetiza, o que -alis - inteiramente compatvel com a mensagem difundida pelomaterial didtico do Mobral: a da responsabilidade individual peloxito ou fracasso do alfabetizado em conseguir melhor salrio e me-lhores condies de vida, abstraindo a estrutura sco-econmica e -portanto - as possibilidades objetivas de tal melhoria. Mas, a funcio-nalidade estaria presente no programa do Mobral no apenas em suasconseqncias, mas tambm em seu contedo: o contedo do proces-so alfabetizador deveria partir da experincia de vida do homem. Estanova caracterstica da funcionalidade, que certamente traz mente apedagogia de inspirao exstncialista que - em matria de alfabeti-zao - fcou associada ao nome de Paulo Freire, foi complementa-da, em 1975, com a nova exigncia. A alfabetzao funcional do Mo-bral exigia que o aluno passasse por todos os seus programas - exi-gncia que aparece como uma resposta aos que atacaram o Mobralem funo do problema da regresso ao analfabetismo: a passagempelos diversos programas seria uma forma de impedir a regresso. Pa-ra tornar possvel a realizao de tal exigncia que o Mobral teriacriado seus novos prograrnas, cada um deles "abrindo perspectivas pa-ra o outro"'de maneira a dar ao homem "uma oportunidade de aper-feioar-se cada vez mais de forma global" (39). Esta caracterizaocomplementar da funcionalidade nos remete, porm, de imediato, aodepoimento de Teresinha Saraiva na CPI do Mobral e experinciaemprica de quantos entraram em contacto com os programas do Mo-bral: se a clientela dos diversos programas no a mesma, tal "funcio-nalidade" no existe. Mas, se retornamos caracterizao da funcio-nalidade atravs do contedo dos programas seria interessante reali-zar uma anlise do seu material didtico: - podemos nos perguntar,por exemplo, se os cartazes e recomendaes alimentares do Programade Educao para a Sade ("comer carne todos os dias", cartazescom grandes pedaos de carne, aves depenadas, leite, ovos, etc) temalgo a ver com a experincia de vida das classes subalternas no nossopas.

    O conceito de funcionalidade desenvolvido pelo Mobral cumpre, naverdade, o papel de justificar no apenas a campanha alfabetizadoramas tambm a ampliao e diversficao do campo de atuao domovimento. A ampliao e diversificao seriam condies para a rea-lizao da funcionalidade. Do mesmo modo, ficava atravs dela justi-ficada a sobrevivncia do programa pois, se a funcionalidade depen-

    (39) lb idem, p.69.110

  • dia do novo alfabetizado passar por todos os programas do movimen-to, era preciso que estes continuassem a existir mesmo quando nomais existissem analfabetos no sentido estrito. Tratava-se, pois, de or-ganizar um programa de "educao permente", capaz de garantir ano-regresso dos recm an alfabetizados ao a na lfabetismo.

    J vimos que foi preciso torcer a discusso sobre a funcionalidade pa-ra tornar aquele conceito adequado justificao do Mobral. O mes-mo ocorreu com a questo da regresso. Ao invs de abord-lo comoproblema que atinge as sociedades sub-desenvolvidas, os pases queparticipam de forma subordinada no mercado mundial, o Presidentedo Mobral - lanando mo da literatura que trata do problema a par-tir da realidade dos pases desenvolvidos - considerar a regresso co-mo "uma discusso de ontem". lsto porque estaramos diante de"um fenmeno mais amplo e abrangente que transcende a regresso...a obsolescncia dos conhecimentos e das habilidades adquiridas, ob-solescncia imposta pelo vertginoso avano cientfico e tecnolgico;disfuncionalidade social, porque o mundo moderno exige novas for-mas de comportamento comuntrio; disfuncionalidade polt ica, por-que o pluralismo da sociedade democrtica est a exigir a participa-o de todos ns, para a qual temos que ser treinados cotidianamen-te, pois para participar preciso conhecer os problemas, preciso es-tudar. A regresso uma discusso que perdeu o sentido diante deum fnmeno mais abrangente, mais importante e que gerou a idiada educao permanente, filosofia que o Mobral, talvez ambiciosa-mente, se props a perseguir desde 1972" (40l..Deixando provisoriamente de lado a questo relativa s exigncias do"pluralismo da sociedade democrtica" e ao significado do Mobral,como programa nascido do Al-5, pretender educar os cidados paraa participao - pois esta questo ser retomada adiante - centre-mos nossa ateno sobre a questo da obsolescnca dos conhecimen-tos. Pretender que num pas subordinado estejamos diante da obso-lescncia massiva de conhecimentos e habilidades em funo do avan-lo tecnolgico parece pouco razovel. Mesmo nos pases centrais temsido colocada em questo esta idia, mostrando diversaspesquisasem-pricas que a inovao tecnolgica e a automao nem sempre condu-zem elevao da qualificao nem exigem a aquisio de novos co-nhecmentos e habilidades, e que quando isto ocorre, atinge um peque-no nmero de trabalhadores que so recicladosnas prprias unidades

    (4Ol Dirio do Congresso Nacional, Seo ll, 18/1111975, p. 7015.111

  • produtivas (41). Mas, se nos lembramos que o prprio Correia, em seudepoimento na CPI do Mobral, chama a ateno para o fato de que oMobraf era um movimento eminentemente rural (677o dos alunos doMobral estavam, em 1973, localizados na zona rural), aquela argumen-tao perde completamente o sentido, mostrando o seu carter ideol-gico e de puro e l i teral transplante daquilo que encontramos em l i :vros europeus e norte-americanos sobre o que deve ser a educao nosculo XX. Alis, as idias defenddas por Correa no seu depoimentono so distintas daquelas que aparecem no trabalho que apresentou Unesco em 1973 (421. A encontramos igualmente aquela trans-plantao da problemtica dos pases desenvolvidos, a qual otaz atir-mar que, nos dias de hoje, nos veramos diante da necessidade de"modificar o sistema educativo em funo da evoluo centfica etecnolgica, que obriga a uma sobre-qualificao contnua" ou a"responder aos problemas de lazer", ao mesmo tempo em que defen-de a adoo do modelo norte-americano de transferncia da forma-o profissional s empresas dentro dos pfincpios do "Training WithinIndustry". Desde modo, ele justi f ica o Mobral com o argumento dastransformaes na qual if icao provocadas pela inovao tecnolgicae se descarta ao mesmo tempo das tarefas que supostamente ela trariaao movimento. Oual sera, ento, a tarefa do Mobral? Oual seria o ob-jetivo e o contedo da "educao permanente" a ser realizada pelomovimento, se o treinamento profissional, a reciclagem do trabalha-dor tarefa das prprias empresas? Facilmente conclumos que, ape-sar da tentativa de justificaco econmica do programa, o que adqui-re a consistncia na argumentao nada tem a ver com as exignciaseconmicas e seu atendimento. A educao permanente pretendidapelo Mobral , fundamentalmente, inculcao ideolgica. Esta simera, desde a criao do movi.mento, a sua tarefa principal e por issoele no podia acabar. Era o objetivo do idelogo do Mobral aquele reve-f ado ao Senador Calmon, capaz de assegurar uma ao ideolgica per-manente: "dentro de poucos anos levaremos o Mobral da alfabetiza-o universidade" (43), fazendo dele um verdadeiro sistema de ensi-no paralelo ao sistema regular existente.

    (41l, Veja-se Paiva, Vanilda p. Educao permanente e capitalismo tardio. S/nte-se, Rio de Janeiro, Vol. lV, set/dez 1977, Nr. 11,p. 45-72.

    (421 Correia, A.L. ducation permanente et ducation d'adultes au Brsit,Mo-bral , 1973.

    l43l Dirio do Congresso Nacional, Seo ll, 16/03/1976, p.361.

    112

  • @-

    O carter eminentemente poltico-ideolgico de tal "sistema de edu-cao permanente" torna-se mais claro atravs da leitura do artigopublicado em 1979. L-se a que o Mobral servia para mostrar"queoshomens so cada vez mais irmos, que estamos constuindo uma na-o cada vez mais justa, onde todos tero sua oportunidade, seu lugarao'sol!" (44). Servia ao bom entendimento entre patres e emprega-dos, ao combate luta de classes, promoo da sua conciliao, co-mo se observa na citao das palavras de um usineiro: "Com o tempo(de atuao do Mobral, V.P.) ambas as partes ganharam confiana nodilogo, as arestas foram sendo aparadas, comeou o trabalho conjun-to... O Mobral o meio pelo qual aquees empresrios e suas famliascomungam com seus empregados de um interesse comum, participamdas mesmas festas, comunicam-se. E l, em cada usina, h uma Sub-comisso Municipal do Mobral, dirigida pela esposa, me ou filha do"senhor de engenho", a realizar um trabalho mais profundo de con-tedo humano" (45). O carter de ao ideolgica do movimento fi-ca ainda mais explcito na parte dedicada ao "projeto poltico" doMobral. Esta instituio partria de uma "viso positiva, constutiva,da sociedade e do homem... Ouando ouvimos falar dos chaves docomunismo internacional, da sua chamada 'educao liberadora', dasua 'pedagogia dos oprimidos', ocorre-nos que tudo isso comea com agrande contradio de que o ser humano chamado a figurar dentrode um esquema que tem um objetivo previamente determinado, so-bre o qual esse homem no inf luir de modo algum... Ao contrrio,no Mobral as pessoas discutem com toda liberdade, e sem qualquerdirigismo, as coisas do seu mundo... Nossos livros, nossas cartilhas soconstrudas com palavras corriqueiras do universo lingstico brasilei-ro... Palavras que se prestam discusso dos seus grandes problemas...mas que no contm uma carga de dio nem so desnecesriamentemrbidas... no curso da 'pedagogia dos oprimidos' trata-se de palavrasde cunho revolucionrio que incitam... ao dio entre as classes" (46).Na medida em que perseguisse seu objetivo de conciliar as classessociais fundamentais em todo o territrio brasileiro, realizaria o Mo-bras a sua misso como instrumento da integrao nacional. Dentrodeste esprito entende-se que o material didtico do Mobral difunda aidia da responsabilidade pessoal pelo xito ou fracasso, na medidaem que ela contribui para que cada um ceite sem revolta o destino

    (44l. Correia, Arlindo Lopes. MobralA. L. (ed) Educao de mases...

    (45) lbidem, p. 30.(46) lbdem, p. 50-51.

    - pedagogia dos homens l ivres. In: Correia,op. cit., p. 30.

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  • que lhe coube na estrutura social (47). Compreende-se tambm queem seus programas no haja lugar para a discusso de tal estrutura eque, como resultado final, se pretende obter a legitimao eleitoraldo regime (48).(471 Veja-se Paiva, Vanilda P. Educao popular... op. cit., p.292-298. , no

    quadro da difuso ideolgica que se pode entender os to discutidos en-@ntros de supervisores, trazidos de todas as partes do pas.e reunidos scentenas no Hotel Nacional do Rio de Janeiro, numa aparente demonstra-o de desperdcio de recursos. Tais encontros serviam para reforar os la-os de lealdade para com a direo do movimento, explicando-se deste mo-do a dstribuio entre eles de fotos autografadas do presidente do Mobrale a conduo das atividades em clima festivo mm declara$es pblicas dosque pela primeira vez viam o mar ou viajavam de avio ou visitavam o Riode Janeiro. Escreve claramente Arlindo Lopes Correia sobre a funo dossupervisores: "so eles que mantm intacta a ideologia e a mstica da orga-nizao", possibilitando ao movimento servir como agente da segurana in-terna do regime. Veja-se Correia, A.L. Educao de mass... op. cit., p. 41.

    (481 Em discusso com um grupo de jornalistasdaqual participamosem 1971,em sua residncia, o prof. Mrio Henrique Simonsen justif icou o programaoom o seguinte argumento: "Se no servir para nada, sero votos para aArena".

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