um vampiro no goiás

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UM VAMPIRO NO GOIÁS PERSONAGENS: MULHER VAMPIRO BEATO DOUTOR SECRETÁRIO PREFEITO HOMEM 1 HOMEM 2 Peça em um ato Cena 1 Estão em cena o BEATO, a MULHER e o VAMPIRO, mas os dois últimos não devem aparecer (pode usar blecaute para isso, ou espaço vazio. Em algum momento, o VAMPIRO começa a perseguir a MULHER pelo palco) BEATO (ao som de uma cítara) Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu: um tempo para nascer, e um tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo de se arrancar o que se plantou; tempo para matar, e tempo para curar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo

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Texto de teatro. Realismo Fantástico. Autoral.Reação do poder de uma cidade do interior à invasão de uma criatura mítica, o vampiro.

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Page 1: Um Vampiro No Goiás

UM VAMPIRO NO GOIÁS

PERSONAGENS:

MULHER

VAMPIRO

BEATO

DOUTOR

SECRETÁRIO

PREFEITO

HOMEM 1

HOMEM 2

Peça em um ato

Cena 1

Estão em cena o BEATO, a MULHER e o VAMPIRO, mas os dois últimos não

devem aparecer (pode usar blecaute para isso, ou espaço vazio. Em algum

momento, o VAMPIRO começa a perseguir a MULHER pelo palco)

BEATO – (ao som de uma cítara) Para tudo há um tempo, para cada coisa há

um momento debaixo do céu: um tempo para nascer, e um tempo para morrer;

tempo para plantar, e tempo de se arrancar o que se plantou; tempo para

matar, e tempo para curar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo

Page 2: Um Vampiro No Goiás

de chorar e tempo de dançar; um tempo de amar, e um tempo de odiar; tempo

de guerra e tempo de paz.

Tudo que Deus faz dura para sempre sem que se possa adicionar nada,

nem nada suprimir. Deus procede dessa maneira para ser temido. O homem

tenta tornar humana a natureza, mas a natureza tem seu próprio equilíbrio.

Quem tem caos deve esperar paz, quem tem calmaria deve esperar caos.

Por isso nada é melhor ao homem do que alegrar-se e procurar o

equilíbrio durante sua vida. Todos têm direito de comer, beber e gozar do fruto

de seu trabalho – este é o presente que Deus deu ao homem. Mas Deus

também quer prova-los e mostrar-lhes que quanto a eles, são semelhantes aos

animais. Porque o destino dos filhos dos homens e dos filhos dos animais é o

mesmo, um mesmo fim os espera. Tanto morre um como o outro. A ambos foi

dado o mesmo sopro. A vantagem dos homens sobre o animal é nula, porque

tudo é vaidade. (Para a cítara, começa tambor, por vezes há choro de criança)

A cidade está em desequilíbrio. (A perseguição torna-se mais frenética)

Surge o vampiro, uma força da natureza que busca restaurar a

complementaridade das energias. Sua pele é dura e oca e faz o barulho de um

tambor. Ele espalha a peste entre os ratos e depois entre os recém nascidos.

Logo toda a cidade estará condenada. Homens e ratos, ambos saem de seus

esgotos e agonizam a dor da morte com o último sopro que lhes resta.

(Cessa a música. Blecaute)

Page 3: Um Vampiro No Goiás

Cena 2

Recepção da sala do PREFEITO. Estão em cena o SECRETÁRIO e o

DOUTOR.

DOUTOR: Tenho uma reunião com o prefeito.

SECRETÁRIO: Bom dia, Doutor. Ele está ocupado. Espera 5 minutos.

DOUTOR: Certo... A capital respondeu minha requisição?

SECRETÁRIO: Nada. Eles estão passando por um caos administrativo por

causa do rombo que a última gestão deixou no orçamento.

DOUTOR: Mas que diabo! É muita cara de pau! Caos administrativo? E qual é

a novidade? Sempre tem caos de alguma coisa. Esses burocratas estão mais

preocupado em separar canetas azuis de pretas e colocar a papelada em

ordem alfabética que em agir. E o dever que eles têm com as pessoas?

SECRETÁRIO: Não adianta se irritar, senhor. Fazem nem 2 meses que a

requisição foi enviada. Eles não devem nem ter lido.

DOUTOR: E o nosso prefeito? Já cansei de alertá-lo de que essa condição

sanitária é extremamente perigosa para a população.

SECRETÁRIO: Ele disse que faria ligações solicitando caminhões de lixo das

cidades vizinhas assim que tivesse tempo. Ele está ocupado lidando com o

caos administrativo da prefeitura.

DOUTOR: É impossível trabalhar dessa forma.

SECRETÁRIO: As coisas funcionam diferente do lugar donde você veio. Você

está aqui como estrangeiro, então é melhor se adaptar.

Page 4: Um Vampiro No Goiás

DOUTOR: Ah é? A cidade tem pilhas de ratos que sobem às centenas pelos

bueiros todos os dias para morrer. Você acha isso normal? Pra piorar, ninguém

se coça pra desinfestar as ruas.

SECRETÁRIO: Não! Eu não acho isso normal, mas ao invés de ficar

desesperado, você podia fazer algo que está ao nosso alcance.

(silêncio)

DOUTOR: Nós temos que falar pras pessoas redobrarem os cuidados com

higiene e evitar lugares públicos.

SECRETÁRIO: Evitar lugares públicos? Isso vai ser difícil agora.

DOUTOR: Por que?

SECRETÁRIO: Chegou ontem um beato na cidade. Ele é como um artista, vai

até a praça e conta histórias. Aqui nós damos muita importância ao que esses

homens sábios tem a dizer, principalmente em um momento de natureza em

desequilíbrio.

DOUTOR: Então a gente manda o diabo da polícia pra cima. Não há condições

de adiar os cuidados. Soube do bebê que morreu ontem?

SECRETÁRIO: Você acha que é muito sério?

DOUTOR: Não sei.

SECRETÁRIO: Já sabe o que é?

DOUTOR: Sei, mas ainda não falei em voz alta. E você, sabe?

SECRETÁRIO: Sim, é a peste.

(Luz diminui até ter blecaute)

Page 5: Um Vampiro No Goiás

Cena 3

Sala do PREFEITO. Estão em cena o PREFEITO e o DOUTOR.

PREFEITO: A peste!? Essa praga desse povo agora deu pra ter doença de

rico?

DOUTOR: Não existe doença de rico e doença de pobre.

PREFEITO: Mas você não disse que veio da Europa?

DOUTOR: Sim, das embarcações. Independente disso é uma doença grave e

precisamos tomar as providências profiláticas e sanitárias. Já tem um óbito

com suspeita de peste.

PREFEITO: Por que você suspeita?

DOUTOR: Foi um recém-nascido que morreu com os sintomas. Pele inchada e

azulada.

PREFEITO: Azulada? Teve isso na cidade aí do lado também. Falaram que era

vampiro.

DOUTOR: Como que eu não fui avisado disso?

PREFEITO: Você é secretário de saúde, não caçador de vampiro.

DOUTOR: Você só pode estar de sacanagem comigo…

PREFEITO: Tô, rapaz. Só esqueceram de avisar. Época de eleição é sempre

um caos por aqui.

DOUTOR: (respira fundo) Eu não vou me desesperar (pausa). Olha, a primeira

coisa que a gente tem que fazer é evitar aglomeração pública. Com força

policial se necessário.

Page 6: Um Vampiro No Goiás

PREFEITO: Ih! Se eu dar essa ordem vão fazer minha caveira. Tá na época da

safra. Todo mundo quer sair à noite pra se divertir

DOUTOR: Você não tá entendendo. Estamos sob risco de epidemia.

PREFEITO: Mas então não é justo a prefeitura arcar com tudo! A capital tem

que mandar verba.

DOUTOR: Já mandei um monte de requisição.

PREFEITO: Será que essa é a resposta?

DOUTOR: (com raiva, tira a carta das mãos do prefeito e lê) A cidade está em

quarentena. O exército chega amanhã pra fechar as saídas da cidade.

(Blecaute)

Cena 4

A cena se passa em uma taverna. Há homens bebendo, fazendo barulho e

contando causos. Ao fundo, um piano toca uma música de bar como o clichê

dos filmes de faroeste. HOMEM 1, HOMEM 2 e o VAMPIRO estão em cena.

HOMEM 1: Agora é minha vez de contar uma história! Eu estava jogando

sinuca com um rapaz chamado Artur...

HOMEM 2: Johann, ninguém aguenta mais essa história. Todo mundo sabe

que no final você acaba trepando com sua irmã! Que tédio dessa taverna.

HOMEM 1: Tem um homem que eu nunca vi ali. Talvez ele tenha uma história

nova pra contar.

HOMEM 2: Ei! Ei! Você ouviu nossa conversa?

Page 7: Um Vampiro No Goiás

VAMPIRO: Não pude deixar de ouvir.

HOMEM 1: E aí? Tem uma história pra contar?

VAMPIRO: Sobre o que?

HOMEM 2: Nosso ídolo é o Dom Juan, então qualquer história com mulheres,

sexo e dominação faz bastante sucesso.

VAMPIRO: Não sei....

HOMEM 1: Vai! Não seja tímido, é bom você se enturmar.

VAMPIRO: Tudo bem.

HOMEM 1: Massa!

VAMPIRO: Era noite e eu caçava...

HOMEM 1: Wow! Começou bem.

HOMEM 2: Para com essa mania feia de interromper as pessoas.

VAMPIRO: Foi então que achei minha companhia para a noite.

HOMEM 2: Não interrompa o homem, Johann. Deixa ele contar a história dele!

VAMPIRO: Pernas finas, seios pequenos que cabiam na boca, pescoço longo...

HOMEM 2: Nem pense nisso Johann! Nenhum comentário.

VAMPIRO: Ela andava depressa com fones de ouvido para não ouvir meu

rugido de predador.

HOMEM 2: Sei muito bem o que se passa na sua cabeça, Johann. Você não

consegue me surpreender. Nem se atreva a interrompê-lo, senão ele acaba se

irritando e desiste de contar a história.

Page 8: Um Vampiro No Goiás

VAMPIRO: Corri na sua frente para que me percebesse. Desgraçada! Fez que

não me enxergou.

HOMEM 1: Desgraçada!

HOMEM 2: Johann, pelo amor de Jesus e Nossa Senhora!

VAMPIRO: (histérico) Vocês vão calar a boca? (Quebra duas garrafas, a

música para de tocar) Vamos fazer o seguinte, da próxima vez que o Johann

falar você corta ele e vice versa (entrega as garrafas aos dois).

HOMEM 2: Só assim pra você ficar calado mesmo, né Johann?

VAMPIRO: A desgraçada olha através de mim e vê o cartaz de cinema no

muro. Maldita feiticeira, quero queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem

no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria

pendurá-la de cabeça para baixo, esvaída em sangue.

Elas fizeram o que sou – oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra,

escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da

bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre homem, por que é então?

Se não quer, por que exibe as graças ao invés de esconder? Hei de

chupar a carótida de uma por uma. Estava quieto no meu canto, ela que

começou. Ninguém diga que sou taradinho. No fundo de cada filho de família

dorme um vampiro.

Meu corpo sobre o seu e ela chorava. Peito sobre o peito trocando calor

e seu crucifixo me queimava enquanto eu gozava, mal sentido o gosto de

sangue. Ela implorava olhando em meus olhos e eu disse: “Perdoe a

indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas.”

Page 9: Um Vampiro No Goiás

HOMEM 1: (batendo palmas) Bravo!

HOMEM 2 pula no HOMEM 1. A luz se apaga enquanto ouve-se o som da

briga dos dois.

Cena 5

Sala do Prefeito. Estão em cena o SECRETÁRIO e o PREFEITO

PREFEITO: No início eu até achei que essa peste ia ser uma coisa boa. Eu sou

otimista, vejo as coisas de uma perspectiva positiva. A gente teve um aumento

das remessas da União para a cidade o que é ótimo. Mas 6 meses isolados? 6

meses com o exército nas saídas da cidade feito uns agentes carcerários?

SECRETÁRIO: A epidemia não poderia ter vindo em pior hora. Os boias-frias

que vieram das outras cidade para a safra estão enfurecidos. Qualquer dia um

soldado perde a paciência, mete um tiro na testa de um e começa uma guerra

civil.

PREFEITO: Fé em Deus que a peste dizima eles antes disso!

SECRETÁRIO: Senhor, tenho mais um aviso. O doutor começou a recrutar

voluntários para formar uma força tarefa de combate a peste. Mas ele tem

chamado atenção para necessidade do alistamento ser obrigatório, pois há

muita resistência por parte dos seguidores do beato.

PREFEITO: Oh diabo! Esse beato agora tem seguidores? Aposto que ele já

está de olho na eleição. Então ele acha que pode me passar a perna? Eu não

fui reeleito sendo bobo. O que mais tá acontecendo?

Page 10: Um Vampiro No Goiás

SECRETÁRIO: Bem... Recebemos relatos de uma ocorrência suspeita em um

dos bares da cidade. Chamou atenção dos que estavam no local um homem

sombrio, magro e leve como se sua pele fosse a membrana de um morcego.

Tinha uma estranheza no olhar como que não estivesse acostumado a usar a

visão. Era branco, muito branco. Parecia nunca ter estado ao sol, como se

tivesse sido criado num daqueles castelos frios e úmidos da Europa, sem

nunca sair...

PREFEITO: Pai do céu! Será que é um fiscal do governo?

SECRETÁRIO: Fiscal do governo?

PREFEITO: Branco, europeu, bonito. Só pode ser isso! É uma inspeção

secreta do governo para se certificar que estou tomando os devidos cuidados

com a peste.

SECRETÁIO: Você realmente acha que...

PREFEITO: Presta atenção. Manda alguém retocar as tintas dos meios-fios. Eu

também quero bustos de ferro e de bronze. Um do governador, um da

presidenta, faz uns de gente morta famosa também.

SECRETÁRIO: Mas, senhor, todos os servidores foram deslocados para

serviços de combate à peste.

PREFEITO: Você não entende a gravidade da situação? Liga pro delegado. Ele

tem que descobrir a rotina desse fiscal. A gente não pode arriscar que ele

fiscalize um lugar sujo e com gente feia.

(SECRETÁRIO sai. Encaixaria bem aqui um solilóquio do PREFEITO)

Page 11: Um Vampiro No Goiás

Cena 6

Participam da cena PREFEITO, SECRETÁRIO, DOUTOR e depois o BEATO

SECRETÁRIO volta acompanhado do DOUTOR

SECRETÁRIO: Senhor, me desculpe, ele quis entrar de toda forma!

DOUTOR: O assunto é urgente.

PREFEITO: Deixa que eu me resolvo com o doutor. Vá fazer as ligações que

eu ordenei.

SECRETÁRIO sai. O diálogo dos dois progride em um crescente de energia

DOUTOR: Não se pode mais tolerar esse desrespeito a autoridade. Esse beato

praticamente coloca a cidade contra a medicina!

PREFEITO: Contra a medicina? Isso não pode. Medicina é muito importante,

eu apoio a medicina.

DOUTOR: Querem enterrar os mortos por conta própria e recusam qualquer

assistência que quebre o ritual funerário maluco deles. Um cadáver é um vetor

muito perigoso da doença. Quero nem imaginar o que pode acontecer sem a

assistência adequada.

PREFEITO: Nem eu. Eu sou à favor da assistência. Foi uma das minhas

promessas de campanha.

DOUTOR: A influência do beato na cidade é tenebrosa.

PREFEITO: (num ecstasy exagerado) Menino, você tem jeito pra política!

(Pausa, olha desconfiado) Quais são suas intenções com minha prefeitura,

rapaz?

Page 12: Um Vampiro No Goiás

SECRETÁRIO entra

SECRETÁRIO: Tem uma pessoa aqui que diz ter horário marcado com o

senhor.

PREFEITO: Seu comedor de kiwi desmiolado, você não tá vendo que estou

ocupado?

Entra o BEATO empurrando o SECRETÁRIO

BEATO: Desculpa interromper sua reunião, prefeito. Só vim trazer seu xarope

contra peste. Você tem que colocar debaixo da língua duas vezes... Ah! Agora

que eu vi. Me pede xarope, mas toma os comprimidos desse aí, né?

DOUTOR: O que esse homem tá fazendo aqui? Ele representa todo o

retrocesso que insiste em colocar essa cidade de volta na Idade Média!

BEATO: Você é tão ingênuo, tem um pensamento tão linear... Só consegue

pensar em progresso como destruição do passado.

DOUTOR: É o progresso que faz as pessoas melhorarem de vida, que acha

cura pra doenças e constrói hospitais.

BEATO: Constrói concreto onde estavam as plantas que usamos para produzir

nossa própria cura. Tira nossa autonomia sobre nossa saúde e faz com que a

gente pague para subir no alto de uma torre de tijolos para pegar uma

assinatura. Assinatura de quem? A sua!

DOUTOR: Não me venha com esse discurso hipócrita. Aposto que o prefeito te

pagou muito bem pra pisar nesse concretinho e trazer xarope pra ele. Com o

dinheiro do povo!

Page 13: Um Vampiro No Goiás

PREFEITO: Estou ofendido. Parem de discutir por mim antes que a coisa fique

pior. A gente tem que debater lá fora pra que todos os lados se sintam

incluídos no poder. Mas aqui no ar-condicionado somos todos colegas.

DOUTOR: Não em um momento crítico como esse. Não posso compactuar

com o retrocesso do ser humano, com o sofrimento e a morte.

BEATO: Não é retrocesso. É tradição, herança, conhecimento dos nossos

ancestrais que auxilia em nossas vidas!

PREFEITO: Bem vintage, né? Vintage tá na moda, sabia? (pausa) Vocês estão

ouvindo alguma coisa?

Cena 7

Entra o SECRETÁRIO

SECRETÁRIO: (sussurrando) Sou eu que estou chamando, senhor! Acharam o

tal fiscal.

PREFEITO: (gritando) Por que você tá falando baixo? Eu sou surdo desse

ouvido...

SECRETÁRIO: Porque ele já está vindo e dizem que tem um ouvido muito

bom.

PREFEITO: (sussurra um ganido de medo)

SECRETÁRIO: Eu o espero do lado de fora?

Page 14: Um Vampiro No Goiás

PREFEITO: Sim, senão ele vai pensar que a recepção está abandonada. Mais

uma coisa: tira a lâmpada do banheiro e coloca na escada. Todo dia cai um

naquela escada.

SECRETÁRIO: E se ele quiser ir ao banheiro?

PREFEITO: Aí você pula pela janela. Quem sabe assim a gente ganha tempo...

SECRETÁRIO sai

DOUTOR: Que história é essa?

PREFEITO: Pelo amor de Deus! Está chegando um agente do governo para

me fiscalizar. Eu sei que vocês não gostam de mim, mas, por favor, tenham

compaixão pelo ser humano. Eu roubei, mas não foi por maldade e mesmo

quando eu desvio verba, meu senso de justiça não me abandona. Se tiro

dinheiro da cultura brasileira, é pra ir pra Disney investir na cultura americana.

Ai que saudades de Miami! Foi legítima defesa. Eu não aguentava mais ver

(...)1 e não entender nada!

(Ouve-se um barulho alto. Todos na sala se olham. Entra o VAMPIRO)

1 Colocar o nome de um diretor ou montagem famosa na cidade

Page 15: Um Vampiro No Goiás

Cena 8

Estão em cena o PREFEITO, o VAMPIRO, o BEATO e o DOUTOR.

VAMPIRO: Seu funcionário acabou de se atirar pela janela.

PREFEITO: (ajeita postura e fala em tom sério) O que!? Não é possível... Não

são nem três horas da tarde. Isso vai ser descontado do salário dele com

certeza.

VAMPIRO: Dá pra ver que você se empenha muito na administração da

prefeitura.

BEATO: E o que achou do banheiro?

VAMPIRO: Uma imundice.

PREFEITO: (solta seu ganido)

VAMPIRO: Não descobriram minha identidade em nenhuma outra cidade que

estive.

BEATO: Não sei como. Um galego feito o senhor com certeza não poderia ser

daqui.

PREFEITO: (tentando consertar) Tem jeito de gente importante!

VAMPIRO: Fui pego de surpresa pela quarentena. Acabei ficando mais tempo

que devia na cidade.

BEATO: Andou visitando até os bares, né?

VAMPIRO: Sim.

Page 16: Um Vampiro No Goiás

DOUTOR: Pessoas se aglomerando em lugar fechado, bebendo no mesmo

copo....

PREFEITO: (à parte) Os desgraçados querem me ver morto e estrebuchado

nesse chão.

VAMPIRO: Isso facilita bastante meu trabalho!

PREFEITO: (à parte) Ainda é sarcástico. Eu estou acabado, arruinado; meu

coração não aguenta.

VAMPIRO: Não vou mentir. Fiquei surpreso quando o delegado me abordou e

pediu que viesse à prefeitura. Mas uma vez começado meu serviço, eu não

paro. Vocês não podem comigo.

PREFEITO: Deus me livre de querer entrar no seu caminho.

VAMPIRO: Por que me chamaram aqui então?

PREFEITO: Eu sou um homem que gosta muito de agradar.

DOUTOR: Esse daí oferece propina como quem oferece um copo de água.

BEATO: Só Jesus na causa.

PREFEITO: (gestos consternados, olhando para o BEATO e o DOUTOR) O

mal do mundo é que as pessoas só pensam em si, adoram ver o mal dos

outros.

VAMPIRO: Como assim propina?

PREFEITO: O que? Hã? Não... Não liga pra eles. Um é o primo retardado da

minha esposa e o outro coitado é funcionário público. Propina é crime que me

dá nojo. Mas uma molhadela, que tal? Leva uns cordões de ouro, que tal? (Tira

Page 17: Um Vampiro No Goiás

o seu cordão) Ouro é da nossa cultura, é praticamente um souvenir. Toma,

leva minha aliança.

VAMPIRO: (à parte) O idiota deve estar me confundindo com alguma

autoridade.

BEATO: Você falou alguma coisa?

VAMPIRO: Nada. Estava pensando alto. Prefeito, não quero essa tal de

propina.

PREFEITO: Que isso... Não faça desfeita.

VAMPIRO: Só quero um favor.

PREFEITO: E o que é o prefeito senão um fazedor de favores?

VAMPIRO: Preciso ir à capital (pausa). Entregar... meu relatório.

PREFEITO: (em dúvida)

VAMPIRO: De como essa cidade é maravilhosa!

DOUTOR: O que!?

PREFEITO: (à parte) Isso só pode ser uma arapuca. (Se dirige a todos falando

de modo muito artificial) Eu adoraria ajuda-lo o senhor, mas as regras não

permitem.

VAMPIRO: Podemos abrir uma exceção aqui.

DOUTOR: Você não pode estar falando sério.

VAMPIRO: Estou.

Page 18: Um Vampiro No Goiás

PREFEITO: (fica à vontade e abraça o VAMPIRO) Então vem aqui. A priori

seria dificílimo tirá-lo daqui, mas a gente joga um óleo, aperta um parafuso e a

máquina funciona. Se fosse outro não daria certo, ainda bem qe veio parar na

minha cidade (saindo). Eu tenho talento pra essas coisas. Tem alguém na sua

família precisando de emprego?

VAMPIRO: Na verdade, eu tenho um sobrinho que adoraria trabalhar no

hemocentro... (saem os dois)

Cena 9

Estão em cena o DOUTOR e o BEATO.

BEATO: Se a gente conta ninguém acredita.

DOUTOR: Acredita sim. Isso é super comum.

BEATO: (se dirige a plateia) É mesmo? Vocês conhecem alguém assim?

DOUTOR: Então você é primo do prefeito?

BEATO: Não, nem sei porque ele falou aquilo. Deve ter sido na hora do

desespero. E você, tá fazendo o que aqui?

DOUTOR: Passei num concurso, vim parar aqui. O secretário anterior tava com

rabo preso e resolveu tirar férias em Miami. Acabei sendo nomeado

temporariamente, mas fiquei mais tempo por causa da peste.

BEATO: Tá gostando?

Page 19: Um Vampiro No Goiás

DOUTOR: Você viu como são as condições, né? Se não fosse a peste, eu já

tinha voltado. Tenho uma namorada me esperando em Brasília. Já até pensei

em me valer desse esquema de sair ilegalmente da cidade que o prefeito falou.

BEATO: Sério?

DOUTOR: Sim, é muito ruim estar obrigado a ficar em um lugar em que se é

um forasteiro e não conhece ninguém. Ainda mais com você fazendo o meu

trabalho cada vez mais difícil.

BEATO: A peste tem sido muito dura com esse povo. Não é justo que você tire

o direito dele a sua própria história.

DOUTOR: O que vocês fazem é muito perigoso e pode acabar alastrando a

doença. A peste é nossa inimiga em comum, precisamos nos unir contra ela.

BEATO: Pra sua medicina, pode até ser que a gente seja um monte de

selvagem que não sabe o que faz e que têm práticas que só alastram a

doença. Mas é só isso que a gente tem de sólido! Os ricos estão contentes nos

hospitais lutando sozinhos contra sua própria peste, a morte pra eles é só um

medo, uma questão existencial. Pra maioria das pessoas, a morte é hábito, faz

parte do cotidiano. A única coisa que eles têm pra lutar contra ela é a

solidariedade de seus iguais.

DOUTOR: Eu estou fazendo o melhor que posso para atender essas pessoas,

mas eu reconheço que não é o bastante.

BEATO: Você é uma pessoa boa, Doutor.

Page 20: Um Vampiro No Goiás

DOUTOR: Você também. Acho que é melhor pra todo mundo se a gente entrar

em um acordo. Uma coisa que eu não entendo é esse negócio de vocês

esperarem 7 dias pra enterrar a pessoa. Que diabo é isso?

BEATO: Não fale do Diabo, Doutor. O bicho é atraído quando ouve o nome

dele.

DOUTOR: Desculpa, peguei com minha avó mania de falar isso quando estou

muito nervoso.

BEATO: Por aqui, nós temos o costume de esperar esse tempo para sepultar,

porque o desenlace da alma e do corpo acontece aos poucos e não de uma

vez. Queremos que a passagem do morto seja tranquila.

DOUTOR: Mas o cadáver tem mesmo que ficar no meio da casa?

BEATO: É o lugar mais familiar ao morto.

DOUTOR: Mas que diabo! Não tem como deixar em outro lugar com umas

fotos da família?

BEATO: O senhor praguejou de novo. Cuidado senão vai pagar pela língua.

DOUTOR: Tá bom! E então? Podemos deixar os corpos ao cuidado de

especialistas ao invés de no meio da casa?

BEATO: Vão esperar os 7 dias?

DOUTOR: É muita gente morrendo. Não tem espaço pra deixar 7 dias!

BEATO: Então não tem como.

DOUTOR: Calma. Posso pedir uma obra pra aumentar o necrotério, mas então

você para de dar xarope pras pessoas.

Page 21: Um Vampiro No Goiás

BEATO: Como é que você tem a pachorra de me pedir pra parar de medicar a

população?

DOUTOR: Você não é médico, não tem diploma! Se essa fosse uma cidade

séria, você já estaria preso, não ia medicar nem o diabo!

BEATO: (gritando) O que é que você tem com o Diabo? Droga! Agora até eu

falei, tá vendo?

DOUTOR: O Estado é laico e eu falo diabo quantas vezes eu quiser.

BEATO: Então fique o senhor sozinho com seus comprimidos que eu não vou

ficar aqui escutando desaforo. Vou embora!

DOUTOR: Vá com o diabo! (pega os xaropes que o BEATO havia entregue ao

prefeito) E leva essas porcarias!

BEATO: (já do lado de fora) Dá licença!

Cena 10

Participam da cena o DOUTOR, o SECRETÁRIO e o VAMPIRO

Entra o SECRETÁRIO com muletas

DOUTOR: Você é louco de pular dessa janela só porque o prefeito mandou?

Você não percebeu que esse homem não bate bem da cabeça?

SECRETÁRIO: Não foi por isso que eu pulei!

DOUTOR: O que houve então?

Page 22: Um Vampiro No Goiás

SECRETÁRIO: Uma coisa horrível! O homem que se passa por fiscal do

governo é na verdade...

Entra o VAMPIRO

VAMPIRO: Uma coisa horrível! Uma coisa horrível!

DOUTOR: Minha gente! Alguém vai me falar o que aconteceu?

SECRETÁRIO: (catatônico) Ele...

VAMPIRO: Estávamos andando eu e o prefeito alegremente pela cidade

fazendo molhadelas quando um grupo de populares revoltosos nos abordou.

Uns queriam sair da cidade para voltar pra suas famílias, outros só estavam

com raiva do prefeito mesmo. Então eu fiquei entre eles e o prefeito para

defende-lo. Nesse momento falaram “É disso que precisamos! Um homem de

pulso forte para governar a cidade, um verdadeiro estadista!”

DOUTOR: E então?

VAMPIRO: Eu fui aclamado pela população?

DOUTOR: E o prefeito?

VAMPIRO: Amarraram num poste e estão enchendo de paulada.

SECRETÁRIO: O que a gente faz agora?

DOUTOR: Que barbárie! Ele precisa de cuidados médicos. Vou correr lá e ver

se ainda consigo salvá-lo. (sai)

Page 23: Um Vampiro No Goiás

Cena 11

Estão em cena o SECRETÁRIO e o VAMPIRO

VAMPIRO: Então você queria me delatar, seu sacaninha?

SECRETÁRIO: Longe de mim, senhor. Meu trabalho é servir a prefeitura. Se o

povo lhe aclamou prefeito, sou seu empregado. Você vai assumir mesmo o

cargo?

VAMPIRO: Como que eu vou negar uma mamata dessas?

SECRETÁRIO: E o que quer que eu faça agora?

VAMPIRO: Me acha uma estilista. Eu quero um look fúnebre chocante pra

arrasar no velório do prefeito. (Entra música e blecaute)

Cena 12

No velório do PREFEITO

VAMPIRO: (fala como político, talvez querendo imitar o antigo prefeito)

Cidadãos dessa cidade que me escolheu como seu ditador e que acolhi como

minha. Estamos aqui hoje sepultando um dos maiores heróis que nossa pátria

já teve, o homem que me confiou a continuidade dos serviços prestados em

seus quase dois mandatos. Um mártir da peste e da subversão dos vândalos.

A morte dele foi dura para todos nós, mas nos mostrou o que a cidade

realmente precisava para sair do buraco: PULSO FIRME. Somos todos filhos

desse solo fértil e vamos andar de mãos dadas nessa nova jornada! Gostaria

Page 24: Um Vampiro No Goiás

de contar com todos, pois teremos que fazer sacrifícios para o bem geral de

nossa cidade! Ame-a ou se afogue no rio tentando deixa-la!