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Zésouza UM TREM PARA O NORTE (2008) 1

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  • Zésouza

    UM TREM PARA O NORTE

    (2008)

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  • Ultima semana de novembro, primavera, do ano de mil novecentos e cinqüenta; metade do século vinte. O Inspetor de Policia José atendeu ao telefone:

    - Pronto; delegacia de policia... É ele mesmo... Ta... Tem calma vai dar certo...

    Desligou o telefone, passou a mão no rosto, encostou a porta da delegacia e saiu para ir comprar cigarros. Meia hora depois, voltou, olhou as horas no relógio de parede, caminhou de um lado a outro, acendeu um cigarro, pegou o telefone e discou para a estação central de Porto Alegre:

    - Alô... Aqui é o inspetor de policia, José... Eu quero falar com o senhor agente... Sim... Boa tarde... È que recebemos um telefonema, anônimo, aqui na delegacia avisando que no trem que parte amanhã de manhã para São Paulo, vai acontecer um crime no último vagão... Sim senhor... O senhor também... Eu vou esperar a chegada do Delegado e comunicar a ele e depois volto a entrar em contato com o senhor...

    Soltou o telefone, olhou as horas, parou perto da janela olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado.

    Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado chegou trazendo na mão o resultado do jogo do bicho. Inspetor José, levantou e comunicou:

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  • - Problemas... Recebi um telefonema, anônimo, avisando que vai acontecer um crime no último vagão do trem que sai amanhã para São Paulo...

    Mais preocupado em conferir o resultado do jogo do bicho, o delegado gesticulou e interrompeu:

    - Frescuras!... Coisas de cinema... Telefonema anônimo... Trem... Último vagão...

    - Desculpe... Acontece que o Agente da estação também recebeu o tal telefonema e tem mais: a diretoria da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, também recebeu o tal telefonema...

    O Delegado botou a lista de jogo do bicho no bolso, regalou os olhos e disse:

    - Epa!...Tem gente graúda no meio...

    - Tem... Eles já se comunicaram com o Agente da estação e o Agente já me comunicou... Ele disse: é assunto para a polícia.

    O Inspetor José era o braço esquerdo, o braço direito e o cérebro daquela delegacia, que o Delegado só queria saber de correr chinas e jogatinas. O Delegado sacudiu os braços, olhou para o Inspetor e perguntou:

    - O que se faz?

    Inspetor José tirou um cigarro do bolso, acendeu, olhou as horas, pensou e respondeu:

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  • - Vamos a estação conversar com o Agente...

    Os três de pé, no escritório do Agente o qual gesticulava e explicava:

    -... É o que eu disse; no caso deste trem, o último vagão é um vagão dormitório... Viaja um cabineiro; a função dele é ser camareiro, ele ajuda os passageiros, mantém o vagão limpo... Vigia pequenos incidentes... Mas um poder de policia...

    O Delegado interrompeu:

    - Policiamento preventivo é com a Brigada Militar...

    Inspetor José sacudiu os braços e interrompeu falando com decisão:

    - A Brigada Militar do Rio Grande do Sul só atua no estado, o trem atravessa Santa Catarina, Paraná e São Paulo... São quatro horas da tarde e o trem parte amanhã de manhã... Tem um crime anunciado... Um policial civil acompanha este trem...

    Delegado interrompeu:

    - Difícil fazer uma escala agora...

    Inspetor levantou a mão e continuou:

    - Sou voluntário... Preciso de uma cabine no ultimo vagão...

    Delegado sacudiu a cabeça:

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  • - José, amanhã tu entras de férias...

    - Melhor, assim não interfere na escala... O senhor Agente consegue a cabina e faz a parte burocrática, da minha viagem, junto às ferrovias e eu volto para a delegacia para fazer a nossa burocracia junto a Secretaria de Segurança.

    O Delegado concordou e o Agente saiu foi à plataforma, falou com um Conferente e voltou dizendo:

    - Mandei conferir com o Bilheteiro se há cabine vaga.

    Alguns minutos e chegou o Bilheteiro com papel na mão avisando:

    - Aqui em Porto Alegre não tem mais cabines vagas no vagão da cauda... Mas tem duas reservas para embarque em Santa Maria, que ainda não recebi a confirmação.

    O Agente agradeceu ao Bilheteiro e o liberou pedindo que chamasse o Telegrafista de serviço. O Telegrafista de Fanfa, que estava de serviço em Porto Alegre substituindo um colega doente, chegou à porta do escritório no momento em que o Inspetor José saiu dizendo que ia comprar cigarros. O Telegrafista de Fanfa olhou bem para o Inspetor e depois atendeu ao Agente de Porto Alegre; que pediu:

    - Passa um telegrama para Santa Maria e pede para o Bilheteiro avisar a situação das duas vagas reservadas nas cabinas do ultimo vagão do “paulista” de amanhã.

    O Telegrafista de Fanfa sacudiu a cabeça e saiu, mas ainda escutou o Delegado dizer ao Agente de Porto Alegre:

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  • - O Inspetor José, é um ótimo policial, só que agora depois de velho anda metido com uma mulher muito mais moça que ele e ainda por cima é casada...

    O Telegrafista de Fanfa seguiu pela plataforma da estação sacudindo a cabeça; conhecia a mulher que era amante do Inspetor José; foi namorada dele lá em Fanfa, paixão de muitas noites sem dormir, muito bonitinha, muito safadinha; o abandonou para casar com um homem muito mais velho que ela; um fazendeiro da estação General Neto, fez o marido comprar casa para ela em Porto Alegre, onde passava a maior parte do tempo sozinha e agora andava de casos com aquele policial de cinqüenta e nove anos de idade, ou seja, trinta anos mais velho que ela.

    Inspetor José voltou ao escritório no momento que o Telegrafista de Fanfa retornou e avisou ao Agente de Porto Alegre que os dois lugares reservados em Santa Maria estavam confirmados para dois passageiros procedentes de estações do sul do estado, que já estavam em viagem. O senhor Agente de Porto Alegre olhou para o Delegado e neste momento chegou o Bilheteiro, um pouco afobado, esfregando as mãos e avisando:

    - Cancelaram... Tinha uma cabine, até por sinal; cabine individual, que estava reservada e até já estava confirmada, mas o passageiro telefonou cancelando...

    Manobreiros e Guarda-Freios davam os últimos retoques no comboio que acabava de encostar-se à plataforma da estação central de Porto Alegre. Os primeiros passageiros chegavam à sala de espera. Abriram às bilheterias,

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  • carregadores se movimentavam. Seis horas da manhã de uma sexta feira. O Inspetor José chegou e logo foi para junto do último vagão, queria ver o embarque e analisar todos os passageiros do vagão. O Cabineiro do Ultimo Vagão o recebeu na plataforma, solicitou a passagem, conferiu o numero da cabine e disse:

    - Porto Alegre a São Paulo, cabine um, um.

    O Inspetor José entrou, abriu a cabine; cabine individual soltou a mala, fechou a cabine e voltou para a plataforma da estação.

    Os primeiros passageiros começaram a ocupar os lugares do trem. O Homem Magro, alto, embarcou na primeira classe, ocupou um banco individual; sim os vagões pullmam de primeira classe ofereciam treze lugares individuais, ou seja, uma das filas de bancos, o corredor e a outra fila com bancos de dois lugares, ao todo trinta e nove lugares. O homem magro colocou a mala na porta bagagem e embaixo do banco a cesta de vime onde levava a “galinha de trem” para comer na viagem, iria passar vinte e quatro horas naquele lugar até chegar ao destino a estação de Capo-Erê. Capo-Erê onde o esperava uma velha casa de madeira; entre grandes arvores, com um pátio onde galinhas de angola ciscavam faceiras. Capo-Erê onde o esperava a velha tia com uma galinha de angola cozida no leite. Capo-Erê onde o esperava a prima e suas coxas grossas.

    Aproximou-se do último vagão um passageiro com uma pequena mala, mostrou a passagem ao cabineiro, que conferiu e disse:

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  • - Porto Alegre a Irati, cabine seis, seis.

    - Certo... Não vou embarcar agora... Vou esperar o carregador que foi despachar minha bagagem.

    Olhou o Inspetor José, recostado no vagão, aproximou-se e perguntou:

    - Viaja neste vagão?

    O Inspetor José sacudiu a cabeça e respondeu:

    - Sim... Se Deus quiser, vou até São Paulo.

    - Eu vou até o Paraná, desço em Irati... Eu moro em Irati... Trabalho com erva mate... Sou ervateiro, planto erva mate e tenho um engenho de beneficiamento... Ando em Porto Alegre negociando burros e mulas.

    O Inspetor José gostou da conversa, precisava conhecer os passageiros daquele vagão, sorriu e perguntou:

    - O senhor é ervateiro, mas negocia mulas?

    - É verdade, é que eu tenho dois irmãos que criam burros e mulas... Eles gostam é de trabalhar na criação, aquela coisa de selecionar éguas, escolher um bom jumento pra fazer a cruza, amansar os burros, cuidar os pastos, ou seja: gostam de criar, mas não gostam de sair à busca de negócios... Então eu os ajudo procurando negócios.

    - Mas vem burros do Paraná para o Rio Grande?

    - É que um dos meus irmãos é criador aqui no Rio Grande, no município de Cruz Alta, tem fazenda na estação

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  • Belizário, vamos passar lá logo de noite... E o outro meu irmão é criador no Paraná em Castro... O senhor conhece Castro?

    - Não senhor.

    - Este trem passa lá sábado a tarde.

    O Ervateiro de Irati calou e ficou cuidando os dois passageiros que se aproximaram do vagão da cauda; um moreno, alto, forte, terno branco, chapéu de palha e botinas o outro um loiro gordo e baixo. Mostraram as passagens ao cabineiro e embarcaram para ocupar a cabine quatro. O Ervateiro de Irati sorriu e disse:

    - Os dois são vendedores de mulas, são sócios; um é de Sorocaba e o outro é de Itapetininga... Estavam participando da concorrência a que eu vim... A Secretária da Agricultura quer comprar quinhentas mulas.

    Inspetor José notou que os dois vendedores de mulas não cumprimentaram o Ervateiro de Irati; perguntou:

    - O senhor é amigo deles?

    O Ervateiro de Irati riu e respondeu:

    - Nada... Somos inimigos... No ano passado o Terceiro Exército abriu concorrência pra comprar uma tropa de mil burros... Meus dois irmãos estavam com as tropas muito boas... Tropa feita com Jumento Pêga... Jumentos trazidos de Minas Gerais, dum grande criador no município de Lagoa Santa... E todos cruzados com Éguas Crioulas... Estes dois

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  • que estão ai dentro do trem mais dois criadores aqui do Rio Grande do Sul e outro vendedor que era sócio destes dois, fizeram um negocio sujo... O senhor veja que safados; alugaram campos em Castro e em Cruz Alta, bem perto das fazendas dos meus irmãos e botaram, nos tais campos alugados, burros com anemia infecciosa... Avisaram aos veterinários do exercito que consideraram os dois municípios como áreas contaminadas.

    - E isto prejudicou o negócio de vocês.

    - Sim... Mas Deus não gosta de nada mal feito... Depois disso brigaram entre eles... Um dos criadores de mulas aqui do Rio Grande do Sul matou o outro comprador de mulas... Até vou dizer para o senhor: o assassino vai ser julgado a semana que vem em São Paulo e ele vai viajar neste vagão... Ele vai embarcar em Pinheiro Marcado... E tem mais: o outro criador de mulas, que vai testemunhar contra o assassino, também vai viajar neste vagão ele vai embarcar na estação de General Neto.

    Inspetor José gostou de ouvir a história e quis melhor esclarecimento:

    - O Criador de Mulas de General Neto vai testemunhar contra o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado?

    - Sim... A briga aconteceu aqui em General Neto e o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado ameaçou o Comprador de Mulas de São Paulo dizendo que iria a São Paulo buscar o dinheiro no preço combinado ou mataria o

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  • Comprador... E ele foi e matou o Comprador... A acusação quer caracterizar como crime premeditado.

    Um rapaz com duas malas se aproximou do ultimo vagão e um pouco mais atrás um homem de meia idade com uma mala de madeira. Os dois mostraram as passagens ao cabineiro, que primeiro conferiu a do rapaz e disse:

    - Porto Alegre a Jandira; e a cabine é a dois, dois

    Depois conferiu a do homem e disse:

    - A sua cabine é a mesma dele. A dois, dois

    O Inspetor José esperou os dois embarcarem e perguntou ao Ervateiro de Irati:

    - E estes dois; são criadores de mulas?

    O Ervateiro de Irati riu, sacudiu os braços:

    - Não sei... Não os conheço.

    Movimento na plataforma, carregadores andando apressados, passageiros embarcando, trem cheio. O Ervateiro de Irati avisou:

    - Vou ao vagão restaurante tomar um café.

    Inspetor José tirou um cigarro do bolso e acendeu. O sino deu o sinal que faltavam cinco minutos para o trem partir. Um passageiro, roupa amarrotada, desalinhado, sapatos velhos, barba crescida aproximou-se tímido do ultimo vagão, mostrou a passagem:

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  • - Porto Alegre a Marcílio Dias a cabine é três, três.

    Embarcou vacilante e pediu ao cabineiro:

    - Ensina como é ai dentro do vagão... Sempre viajei na segunda classe.

    O cabineiro o acompanhou até a cabine, abriu a porta e avisou:

    - O senhor viaja neste trem até Porto União da Vitória e lá faz baldeação para seguir até a estação Marcílio Dias.

    Seis e trinta; hora da partida o Agente de Porto Alegre bateu o sino, o Inspetor José embarcou, o Cabineiro do Ultimo vagão sentou no seu canto e conferiu a lista de embarque; embarcaram sete passageiros naquele vagão o resto da lotação embarcaria na viagem. O chefe de trem trilou o apito a locomotiva, uma Mikado; a quinhentas e doze apitou e o trem partiu de Porto Alegre.

    Parada rápida em Navegantes para cruzamento com trem noturno procedente de Santa Maria.

    Logo chegou à estação Diretor Pestana; mais passageiros embarcaram.

    Um grupo de escoteiros embarcou na segunda classe.

    O Engenheiro Construtor de Ferrovias embarcou na primeira classe.

    O Comunista de Canoas, que estava fugindo da policia embarcou na segunda classe.

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  • No vagão de bagagens, carregaram várias gaiolas com pombos correios.

    Parada rápida que a viagem é longa.

    No ultimo vagão na cabine dois, o moço deitado no leito superior perguntou ao senhor de meia idade que ia sentado no leito inferior espiando pela janela:

    - O senhor vai para São Paulo?

    O homem respondeu com muita calma:

    - Vou não... Moço eu sou mineiro... Uai!Eu vou pra Monte Azul... O moço conhece Monte Azul?... É no fim de Minas começo da Bahia... Uai!Termina a linha da Central do Brasil e começa a linha da Leste Brasileiro... O moço já andou nos trem da Leste?

    - Eu não conheço Minas... E eu viajo pouco... Estou fazendo esta viagem que eu vou escrever um livro que a estória se passa neste trem.

    - A, pois, o moço é escritor.

    - É, sou... E o senhor; trabalha com o que?

    - Uai, pois eu sou cafezeiro.

    - O senhor planta café.

    O mineiro deu uma risada e explicou:

    - Rapaz eu vendo é café na beira dos trens lá em Monte Azul... Eu vendo é café preto e bolo de macaxeira... Uai! Que

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  • no norte o povo não viaja com dinheiro pra ta comendo em restaurante... O povo compra as merenda na janela do trem; é milho assado, é café preto, é bolo de macaxeira... O moço conhece a linha de Montes Claros até Monte Azul? Tem a estação de Tocandira... Tocandira vende os biscoitos de araruta... Os melhores biscoitos de araruta do mundo; vende na estação de Tocandira... Eu vendi muito biscoito de araruta quando morei em Tocandira.

    - O senhor nasceu em Tocandira?

    - O moço conhece Quem-Quem?

    - Quem?!

    - Quem-Quem.

    - Mas quem é esse Quem-Quem ?

    - Quem-Quem é uma estação de trem que tem na linha de Montes Claros pra Monte Azul... Uai! Eu nasci e fui menino no Quem-Quem... Eu fiquei no Quem-Quem até meus quinze anos e ai depois eu fui pra Montes Claros... Montes Claros é cidade grande tem uma estação bonita, tem um mercado é capital do norte das Minas Gerais... Em Montes Claros eu fui guia de cego.

    O “P2” chegou as sete horas e treze minutos a Vasconcelos Jardim e os vendedores de pastel o cercaram gritando.

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  • Às sete horas e trinta minutos parou em General Luz. O Ervateiro de Irati voltou do vagão restaurante para o vagão da cauda.

    Parada em Fanfa, novos vendedores de pastel, no vagão de bagagens o Bagageiro e um Guarda-Freio carregaram algumas latas de leite para a estação de General Câmara. O Telegrafista de Fanfa saltou e esperou o trem partir, olhou o vagão da cauda, sacudiu a cabeça; ia dormir que a noite ainda iria a um baile ali em Fanfa e sábado de manhã embarcaria no Noturno de Santa Maria para voltar a Porto Alegre onde iria trabalhar todo o fim de Semana.

    Os Camareiros atravessavam o trem avisando:

    - Chegada em General Neto... General Neto...

    No ultimo vagão o Inspetor José e o Ervateiro de Irati saíram das cabines e ficaram no corredor do vagão para verem o Criador de Mulas de General Neto embarcar. Embarcou; baixo forte, cabelo branco, cortado bem curto; casaco, gravata, bombachas e botas; mostrou a passagem ao Cabineiro:

    - General Neto a São Paulo e a cabine é a cinco, cinco.

    O trem arrancou e o Ervateiro de Irati comentou:

    - A próxima é a estação de Barreto e aí embarca o meu companheiro de cabine.

    Barreto, ponto de baldeação dos passageiros procedentes de Montenegro e da linha de Caxias do Sul.

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  • Um grupo de descendentes de italianos, barulhentos, que iam disputar um torneio de bochas em Cachoeira do Sul, invadiu o primeiro vagão de segunda classe e para passar o tempo improvisaram um jogo de mora.

    O Falso Padre de Cafundó embarcou no ultimo vagão, sorriu, disse bom dia ao Cabineiro e mostrou a passagem:

    - Cafundó a São Paulo, cabina seis, seis.

    Batida de sino, apito do Chefe do Trem, a viagem continuou.

    General Câmara do Arsenal de Guerra; desembarcou o Cabo Armeiro e um grupo de professoras.

    - A chegar a Santo Amaro... Santo Amaro...

    A bonita e histórica vila de Santo Amaro; da primeira classe desembarcou a bonita Professora Loira que logo foi cercada por um grupo alegre de alunos, da segunda classe saltou o grupo de escoteiros e um tagarela gritou:

    - Chegamos para comer mondongo.

    As nove e trinta e três passaram na estação de Pagador Martel onde embarcou na segunda classe, a mulher vestindo bombachas e fumando um palheiro.

    Estação Monte Alegre, o Engenheiro Construtor de Ferrovias abriu a janela e contou o numero de carretas que estavam perto da estação: Vinte e duas carretas, carretas de duas rodas puxadas por duas ou três juntas de bois, carregadas

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  • com sacos de arroz que estavam sendo transferidos para os vagões de carga estacionados na terceira linha do recinto.

    No primeiro vagão de segunda classe embarcou; bombachas remendadas, calçando tamancos, chapéu de palha o Carreteiro de Monte Alegre; que ia visitar uma filha em Santa Maria.

    Parada rápida na estação de Porto dos Dourados onde descarregaram as gaiolas com os pombos correios da Sociedade Columbofilia de Porto Alegre e o envelope com as instruções e horário que o Agente de Porto dos Dourados devia soltar os pombos.

    Dez e vinte e três a estação João Rodrigues. Embarcou a velha bonita acompanhada da moça feia.

    - Ramiz Galvão... Chegar a Ramiz Galvão...

    Ramiz Galvão ponto de baldeação para o ramal de Santa Cruz do Sul a capital nacional do fumo. Na plataforma uma pilha de barris de chope, pilha de rolos de fumo em corda exalando o forte cheiro.

    Jogadores e torcedores do “Couto Futebol Clube” embaraçaram nos vagões de primeira classe que estavam indo a Santa Maria jogar contra o Rio Grandense.

    O Chacareiro de Rincão Del Rey embarcou no primeiro vagão de segunda classe e sentou ao lado do Carreteiro de Monte Alegre.

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  • O moço loiro, elegante, mala cheia de etiquetas de hotéis, embarcou no último vagão, disse um alegre bom dia ao Cabineiro e mostrou a passagem:

    - Santa Cruz a Ijui com baldeação em Cruz Alta... A cabine é nove, nove.

    O moço loiro sorriu e avisou:

    - Vou deixar a mala ai e vou viajar na primeira classe tomando cerveja e olhando as gurias bonitas.

    Largou a mala na cabine, trancou a porta e foi para a primeira classe. O Inspetor José que estava fumando, no corredor do vagão, e cuidando o movimento chegou perto do cabineiro e perguntou:

    - Conhece o moço?

    - Sim... Viaja muito com a gente, gosta muito de festas e cabarés, é o Farrista de Ijui.

    O vento de primavera sopra de leste, o sol brilha nas pedras centenárias do calçamento das ruas de Rio Pardo, a tranqueira invicta; o apito da quinhentas e doze ecoa na cidade. Onze horas e vinte minutos.

    As casas beira trilhos, um grupo de guris soltando pandorgas. Parada em Rio Pardo. A batida do sino. Na plataforma o som da gaita do Gaiteiro Cego e o cheiro de sonhos.

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  • O Ervateiro de Irati desembarcou e caminhou apressado entre os passageiros para comprar um pacote de sonhos.

    Terno branco de linho, chapéu panamá, anel no dedo, bengala, acompanhado de um Carregador com a mala o senhor Advogado embarcou no ultimo vagão e o Cabineiro conferiu a passagem:

    - Rio Pardo a São Paulo, cabine oito, oito, boa viagem senhor.

    O Ervateiro de Irati embarcou o trem já em movimento, pacote de sonhos na mão. No corredor do vagão o Inspetor José fumando. O Ervateiro de Irati disse:

    - Este que embarcou é o Advogado do Criador de Mulas de Pinheiro Marcado...

    - Sim... O tal que vai a julgamento.

    O trem corria nas várzeas do rio Jacui, no vagão restaurante os funcionários apressados davam os últimos retoques para iniciar a servir o almoço. No primeiro vagão de segunda classe o Carreteiro de Monte Alegre perguntou ao Chacareiro de Rincão Del Rey:

    - Até adonde vai o vizinho?

    - Pois até to indo pra Santa Maria...

    - Então bamos apeiar junto, que eu também vou pra Santa Maria... Eu to vindo da estação de Monte Alegre...

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  • - Mas eu conheço Monte Alegre, que uma vez eu fui lá pra uma festa de corridas de carretas...

    - I é mesmo, a gente gosta duma corrida... O senhor é daí da Ramiz Galvão?

    - Não... Eu to vindo do ramal de Santa Cruz da estação Rincão Del Rey...

    - Trabalha com fumo?

    - Já trabalhei; agora eu cuido uma chácara dum comerciante de Santa Cruz... Ele tem a chácara pra passar os fins de semana... Ele gosta muito de tiro ao alvo... Ele tem um pombal, eu cuido os pombos, às vezes ele junta os amigos pra comer arroz com pombo...

    O grupo de jogadores de bochas tomava cerveja e jogava a mora.

    Os campos sendo lavrados; homens com arados puxados por juntas de bois, para plantar arroz.

    Às doze horas e trinta e cinco minutos parou em Bexiga onde a professora bonita embarcou.

    Apitando e batendo o sino o trem chegou a Cachoeira do Sul a bela Princesa do Jacui o município rei do arroz.

    O Ervateiro de Irati bateu na cabine do Inspetor José e convidou para irem almoçar no momento que passageiro, jovem, alto, cabelos crespos, jeito atrevido entrou no vagão com passagem de Cachoeira do Sul para a estação Espalha

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  • Brasas, o Cabineiro do Vagão da Cauda informou o numero da cabine:

    - É a cabine sete, sete.

    O Ervateiro de Irati bateu no ombro do Inspetor José e seguiram atravessando o trem até o vagão restaurante enquanto caminhavam o Ervateiro de Irati contou:

    - Viu o passageiro que embarcou no nosso vagão?

    - Vi... Também é criador de mulas?

    - Não... Pistoleiro e dos bons... É nascido e criado na região de Castro no Paraná... Vivia ali entre Castro e Pirai do Sul... A mãe dele mora numa estação pequena... Um povoado chamado Espalha Brasas...

    - Como é o nome?

    - Espalha Brasas.

    Um pistoleiro no ultimo vagão daquele trem que um telefonema tinha anunciado que haveria um morto. Preocupado o Inspetor José perguntou:

    - Acredita que ele pode matar alguém neste trem?

    O Ervateiro de Irati sacudiu a cabeça, sorriu, pensou:

    - Nunca se sabe... Eu sei que ele trabalha pra gente que tem poder...

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  • Sentados num dos extremos do vagão restaurante o Escritor de Jandira escutava a história do Cafezeiro de Monte Azul:

    - E eu briguei com o cego e fui embora de Montes Claros... O moço conhece Bocaiúva... Cidade boa tem uma estação grande... Perto da estação tem um alambique e eu fui alambicar pinga... Uai! Tem que ter paciência pra fazer a pinga... Eu cortava a cana, esmagava a cana, botava a garapa pra fermentar e depois alambicava... O alambique é duma viúva que ainda mandava eu vender caldo de cana na estação do trem... E pagava bem pouco...

    Naquele momento entraram no vagão restaurante os dois passageiros do vagão da cauda; Vendedor de Mulas de Sorocaba e o Vendedor de Mulas de Itapetininga. O Cafezeiro de Monte Azul parou de falar e ficou olhando os dois que sentaram no outro extremo do vagão, bateu no braço do Escritor de Jandira, apontou:

    - Uai! Aqueles dois é gente que lida com bestas...

    - Com o quê?

    - Moço, lá no norte de Minas nós chama de besta as mulas e os burros que são uns bichos muito inteligentes.

    - O senhor os conhece?

    - É... Que eu fui da Bocaiúva pro Quem-Quem e que lá o meu Padrinho convidou eu pra trabalhar mais ele... Meu Padrinho tinha negócios de compra e vendas de cavalos, burros e jegues... Que ele negociava muito na feira de Pai

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  • Pedro... O moço conhece Pai Pedro?...Pai Pedro é estação na linha de Montes Claros pra Monte Azul, é lugar bom... No domingo, moço, tem a Feira de Pai Pedro... Uai! A feira de Pai Pedro é feira de verdade... Vai que aqueles dois paulistas, que ta sentado ali na ponta deste vagão, foi em Pai Pedro pra comprar burros e deu negocio com meu Padrinho... Um acerto de vinte quatro mulas pra meu Padrinho mandá num vagão de trem pra Sorocaba, que quando a mulas chegava em Sorocaba eles mandava o dinheiro...Vinte quatro mulas escolhidas... Sabe o que deu? Mandaram menos dinheiro que o combinado e mandaram uma carta dizendo que as mulas chegou pesteadas e que morreu dez. Se a mula pesteou na viagem e se morreu no destino nada tava no combinado... O Padrinho é mineiro bom e ficou quieto, e esperou eles com trinta mulas, tudo mulas de lei, só bicho de encher os olhos... Eles foi e lá foi nova combinação, só que mudou que meu Padrinho quis o pagamento lá na feira e prometeu mandar as mulas no trem... Que no caso tinha que esperar um vagão que ia de Montes Claros... Os paulistas pagaram as mulas e foram embora, dois dias depois meu Padrinho carregou trinta mulas no vagão, tudo mula fora do combinado, mula magra, mula velha... Moço os paulistas voltaram em Pai Pedro só que antes tomaram o prevenimento de contratar dois Pistoleiros na cidadezinha de Janauba... O moço conhece Janauba?... Dois Pistoleiros de meia tigela... Moço, coisa feia, tremeu a feira de Pai Pedro, que o Padrinho é homem de muito prestigio naquele chão... Batemos de chicote nos paulistas e nos dois Pistoleiros e eles fugiram pra Janauba... Uai! Este povo nunca mais foi lá no norte...

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  • O jovem Escritor de Jandira despejou cerveja nos copos, sorriu e disse:

    - Estou gostando das estórias da sua terra... Talvez um dia eu escreva um livro...

    Parada na estação Pertile, no recinto muitos vagões sendo carregados com arroz que ali chegava de barcos pelo rio Jacui. No primeiro vagão de segunda classe embarcou um grupo de doze homens, com bagagem simples; alguns sacos com poucas roupas, caixas de papelão com panelas e foices de mão: cortadores de foice que iam fazer a safra do trigo nas lavouras de Erechim. Sentaram juntos e logo improvisaram com as caixas uma mesa para jogarem um torneio de bisca com um baralho velho.

    Os vagões de segunda classe tinham os bancos de madeira, cada banco dois lugares; e um encosto servia para dois bancos, ou seja, a metade dos passageiros viajava de frente para a outra metade, cada vagão levava cinqüenta e seis passageiros.

    O trem correndo entre as estações de Pertile e Jacui, o Inspetor José no corredor do vagão da cauda fumando e conversando com o Escritor de Jandira que contava:

    - Meu companheiro de cabine é Cafezeiro em Monte Azul. Monte Azul é no norte de Minas. Ele vende café nos trens. Ele conta muitas estórias engraçadas, a viagem esta boa. Eu que sou escritor estou gostando...

    - Tu também és Mineiro?

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  • - Não, eu sou paulista, eu moro em Jandira... Jandira é perto de São Paulo.

    Estação Jacui, nas várgeas deste rio, onde a Viação Férrea tinha a oficina dos aparelhos telegráficos. Na chegada do trem a confusão já estava feita; na segunda linha do recinto um vagão de primeira classe, dentro do vagão um caixão de defunto com um cadáver dentro, dois marmanjões, mal encarados, bombachas, botas, lenço no pescoço, chapéu de abas largas, revólver na cintura um em cada extremo do vagão tirando guarda. Vestida de preto, descabelada, uma mulher andava na volta do vagão, xingando e rogando pragas.

    O Agente de Jacui avisou ao Chefe do Trem:

    - Um vagão especial, com um defunto, para levar até Arroio do Só.

    - Bem... Vamos engatar na cauda...

    A mulher de preto chegou ao escritório da estação e disse ao Chefe do Trem:

    - Eu vou naquele vagão. Os filhos do finado não querem que eu vá... Eu era a Amante do Finado, ele morreu na minha casa... Eu vou... Eles tão de olho na herança...

    Os Guarda-Freios deram jeito em efetuar a manobra para engatar o vagão na cauda do trem. Na plataforma da estação a mulher de preto botou a boca no Chefe do Trem.

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  • Vagão engatado, trem pronto para continuar a viagem, a Amante do Finado comprou passagem e embarcou na segunda classe.

    O trem saiu; quatorze horas e vinte e cinco minutos; atrasou cinco minutos em Jacui e continuou até a estação de Estiva com um morto no ultimo vagão.

    No corredor do vagão o Ervateiro de Irati disse ao Inspetor José:

    - Meu companheiro de cabina, aquele padre, esta dormindo dês que embarcou em Barreto... Na etiqueta da mala dele diz que ele vem de Cafundó... Cafundó é uma estação que tem perto de Montenegro... Eu só espero que de noite ele não invente de ficar acordado lendo...

    - É; sendo padre é provável que goste de ler a Bíblia...

    - Padre?... Eu até desconfio que ele seja um falso padre...

    - Testemunha, pistoleiro, falso padre... Nosso vagão vai bem...

    Na segunda classe, quatro cortadores de foice que embarcaram em Pertile jogavam a bisca, outro tocava uma gaita de boca enquanto o Comunista de Canoas contava ao resto do grupo as vantagens do regime comunista.

    A Amante do Finado que embarcou em Jacui sentada defronte o Chacareiro de Rincão Del Rey e o Carreteiro de

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  • Monte Alegre se lamentava e falava mal da família do defunto.

    Estação Estiva o vendedor de pastel gritando ao lado do trem. O passageiro da cabine três escutou o grito, saio ligeiro da cabine e foi para a plataforma do vagão chamar o pasteleiro. Comprou um pastel. O Cabineiro do Vagão da Cauda o informou:

    - Senhor... Desculpe... O trem tem vagão restaurante... Tem refeições; café, gasosas...

    O passageiro sorriu tímido, desapontado e disse:

    - Eu venho com pouco dinheiro... Até chegar em Marcílio Dias é longe... Eu não tava trabalhando... Eu tava na cadeia...

    - Chegando a Restinga Seca... Restinga Seca.

    O grupo de guris jogando bola, as lavadeiras com trouxas de roupa na cabeça, o homem puxando uma vaca com uma corda.

    Sentado na cama, Inspetor José, porta da cabine um aberta, o Cabineiro do Vagão da Cauda chegou e contou:

    - O passageiro da cabine três é ex-prisioneiro...

    - O que?

    - Ele me disse que saiu da cadeia...

    - Para onde ele vai?

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  • - Estação Marcílio Dias...

    Um sujeito entrou no primeiro vagão de segunda classe e o atravessou correndo, estava totalmente nu. O Comunista de Canoas tentou segura-lo, mas não conseguiu.

    Inspetor José pegou o caderno de apontamentos. É temos: pistoleiro, escritor, cafezeiro, ervateiro, ex- prisioneiro, testemunha...

    Estação de Arroio do Só, na plataforma a Viúva do cadáver que vinha na cauda do trem, poucos parentes e muitos curiosos. Agente de Arroio Só nervoso.

    A quinhentas e doze entrou no recinto apitando e batendo o sino, mas antes de parar já a confusão estava formada: A Viúva deu um grito e começou a bradar bobagens. Um gaiato disse uma piada. Curiosos correram para a cauda do trem. A Amante do Finado saltou da segunda classe decidida a fazer lambança.

    O Vendedor de Cuias embarcou com duas malas cheias de cuias no primeiro vagão de segunda classe.

    Na cauda do trem, Viúva e a Amante do Finado se encontraram e formou a confusão. As duas se pegaram a tapas.

    Um Guarda-Freio desengatou o vagão com o defunto do resto da composição.

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  • O Chacareiro de Rincão Del Rey e o Carreteiro de Monte Alegre desceram do trem para assistirem a confusão. O trem seguiu viagem e os dois ficaram no meio da confusão.

    - Santa Maria, saída pela porta da frente... É Santa Maria...

    O apito, da locomotiva, retumbou nos morros que cercam a cidade coração do Rio Grande o centro ferroviário gaúcho. Com seis minutos de atraso o “P2” encostava-se à plataforma. Passageiros descendo, passageiros embarcando, Jornaleiro gritando:

    - A Razão... É a Razão...

    Carregadores dos hotéis gritando o nome dos hotéis. Agitação na plataforma. No escritório da estação o Agente de Santa Maria junto com os dois Chefes de Trem; o que chegou e o que continuaria; ali o trem trocaria sua equipe de funcionários, discutiam se seria necessário engatar mais algum vagão na composição.

    O trem: um vagão para bagagens, o vagão escritório, quatro vagões de segunda classe, o vagão restaurante, cinco vagões de primeira classe e sete vagões dormitório.

    No vagão de bagagens o Bagageiro carregava latas com rolos de filmes, que iria distribuir ao longo do trecho em cidades e vilas que tinham cinema.

    No primeiro vagão de primeira classe, aquele engatado ao vagão restaurante, os Caixeiros Viajantes se acomodavam e marcavam lugares para os colegas que dentro de minutos

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  • chegariam no “Fronteira”. Nos trens os Caixeiros Viajantes procuravam viajar junto o vagão restaurante, ali iam fazer as refeições depois dos outros viajantes e a amizade com o pessoal do vagão rendia boas porções e mais tempo para ocupar os lugares tomando cerveja ou vinho, claro que o pessoal do vagão recebia amostras de remédios, brindes e bugigangas.

    Primeiro na sala do telegrafo, depois no escritório do Agente, na plataforma e por fim a noticia se espalhou dentro do trem; acidente na estação de Maquinista Severo. Bá! Vai ter baldeação? Daqui até lá... Passa em “Severo” à uma da madrugada.

    O Ex Oficial Nazista, com cabelo grande, loiro, farto bigode, óculos escuros, na mão esquerda uma mala, debaixo do braço direito uma grossa pasta de couro, atravessou a plataforma, embarcou no primeiro vagão de segunda classe. O Homem de Terno Cinza cuidou os seus movimentos e embarcou no mesmo vagão.

    A quinhentas e doze foi desengatada do trem e se afastou; logo uma nova locomotiva foi engatada; uma Montain, a oitocentas e trinta.

    No vagão restaurante preparava-se a janta.

    Camareiros examinavam o interior dos vagões, Guarda-Freios examinavam os freios e lanterna sinaleira da cauda.

    Um apito rouco, o bater de sinos e alguém gritou:

    - Chegando o “Fronteira”.

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  • O trem “P32” procedente de Uruguaiana com baldeação em Cacequi onde pegou passageiros das linhas: Cacequi Bagé Rio Grande e Cacequi Santana do Livramento; encostou-se à plataforma atrás do “Paulista” e despejou mais de quatrocentos passageiros. Dezessete horas. Correria, Carregadores apressados. Muita gente aguardaria o “Noturno” para Porto Alegre e muitos seguiriam no “Paulista” que em fração de segundos foi invadido.

    No primeiro vagão de segunda classe o Homem de Terno Cinza, debruçou na janela e fez sinal para a Mulher Misteriosa do Cruz a qual embarcou no vagão e sentou junto ao corredor num lugar onde podia trocar sinais com Homem de Terno Cinza. O Ex Oficial Nazista trocou de lugar e também sentou junto ao corredor e cuidando os dois e por eles sendo cuidado.

    No primeiro vagão de segunda classe, os Cortadores de Foice de Pertile, que já estavam no trem, se acomodaram em seus lugares, o Comunista de Canoas também se acomodou ligeiro já que o vagão foi invadido.

    Terno Azul, gravata escura o Argentino, que vinha de Barra do Quarai e imaginava chegar a Recife sentou no extremo dianteiro do vagão, ou seja, de costas para a viagem e olhando todo o vagão. Na verdade vinha fugindo da Argentina por perseguição política e pretendia chegar ao Recife, onde conseguiria com um Capitão de Navio, navio que carregava açúcar, uma maneira de chegar à Espanha onde pretendia pedir exílio político.

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  • No banco da frente do Argentino, sentaram dois Soldados da Cavalaria. Os dois viajavam de Uruguaiana a Tupanciretã, cansados; adormeceram.

    O casal, ele o Tropeiro de Povinho dos Castilhos e ela a Esposa do Tropeiro de Povinho dos Castilhos se acomodaram num banco do meio do vagão, diante deles sentaram a Viúva de Umbu e Domador de Tiaraju.

    Dentre outros foram ocupando o vagão: a China Gorda de Rio Grande abraçada no Marinheiro de Santos, a China Magra de Livramento, os quatro Esquiladores do Alegrete, o Degolador do Agente Gomes, o Lanceiro de Inhandui, o Futuro Sargento de Freitas Vale, a Família de Plano Alto; casal e oito filhos o último a embarcar o Andarilho que sentou ao lado do Argentino.

    O Andarilho costumava andar sempre a pé no trecho de Passo Fundo a Cacequi, mas tinha uma mania; em Santa Maria ele passava de trem. Nas estações próximas de Santa Maria; Pinhal e Boca do Monte ele trabalhava, conseguia limpeza de pátio, corte de lenha, qualquer servicinho que fosse pago com uma passagem entre as duas estações, naquele dia viajava de Boca do Monte a Pinhal. No pé direito sapato no esquerdo bota, chapéu de palha, furado, calças cheias de remendo, um saco com suas bugigangas, que colocou debaixo do banco, olhou para o Argentino e sentou no lado dele. Por mi madre que pueblito!

    Na Família de Plano Alto a mãe tentava acomodar os oito filhos num banco, alguns entre os bancos. As crianças não

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  • tiravam os olhos de um saco branco que o pai botou no porta-bagagem.

    O grupo de Balseiros do Rio Uruguai, também, entrou no primeiro vagão de segunda classe e logo conseguiram lugares, seis homens que vinham de Itaqui para Marcelino Ramos.

    O Contrabandista de Jaguarão, com uma grande pasta preta debaixo do braço, chegou à porta do último vagão e ficou esperando o Cabineiro. Em seguida chegou o Ceboleiro do Povo Novo e também tendo uma grande pasta preta debaixo do braço. Os dois já tinham se visto na baldeação de Cacequi e foi ódio a primeira vista. O Cabineiro do Vagão da Cauda os atendeu:

    - Jaguarão a São Paulo e Povo Novo a São Paulo... Os dois viajam na mesma cabina; a dez, dez.

    Os dois se olharam sérios demonstrando contrariedade. Embarcaram contrariados.

    Fumando no corredor do vagão o Inspetor José notou e ficou pensativo. O Cabineiro do Vagão da Cauda chegou perto dele e disse:

    - Estes dois vão se matar ai dentro...

    Sonolento o Falso Padre de Cafundó saiu da cabine e perguntou a o Inspetor José:

    - Tem gente no banheiro?

    Na plataforma da estação ainda se moviam passageiros; dois Coronéis do Exercito, um Padre, grupos de Soldados, uma

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  • família de Ferroviários em férias, um Batedor de Carteiras, um Deputado Federal...

    Na primeira classe dois Maquinistas da “Leste”, se acomodaram. Tinham vindo a Santa Maria para conhecerem e operarem a locomotiva “Garrat”; que tinha dois tenderes: tender do carvão e o tender da água, que a Viação Férrea do Leste Brasileiro pretendia negociar com a Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Um deles comentou:

    - Maquinão; enche com a água do São Francisco, lá no Juazeiro da Bahia e vem sem beber água até Salvador...

    Na segunda classe a China Magra de Livramento piscou para o Marinheiro de Santos e a China Gorda de Rio Grande não gostou. Os Esquiladores do Alegrete improvisaram uma mesa com as malas e começaram a jogar o truco. A Mulher Misteriosa do Cruz cuidava o Ex Oficial Nazista que cuidava o Homem de Terno Cinza. Os oito filhos da Família de Plano Alto cuidavam o saco branco no porta-bagagem enquanto a mãe contava para a senhora que estava no banco ao lado:

    - Tive sete filhos tudo homens... Sete homens o mais moço vira lobisomem aí tive que ter mais um...

    Na locomotiva o Foguista jogava carvão na fornalha e o Maquinista cuidava o manômetro.

    O Revisteiro percorrendo o trem, vendendo revistas e bilhetes de loteria.

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  • O Agente de Santa Maria pegou a corda do sino e deu duas batidas; primeiro sinal, cinco minutos para o trem partir. A locomotiva respondeu com um apito.

    No último vagão o Falso Padre de Cafundó disse para o Ervateiro de Irati:

    - Dormi o dia todo, agora vou lá para a primeira classe conversar com os Caixeiros-Viajantes. O senhor pode dormir tranqüilo, a noite toda.

    De pé dentro da cabine um o Inspetor José conferiu suas anotações, saiu e foi ao encontro do Cabineiro perguntando:

    - Aquele passageiro que embarcou em Ramiz Galvão?... O tal Farrista de Ijui... Não vi mais ele...

    O Cabineiro do Vagão da Cauda deu uma risada, sacudiu a mão e respondeu:

    - Ta jogando canastra com os Caixeiros-Viajantes lá na primeira classe... Só vem aqui na hora do desembarque pra pegar a mala.

    O Inspetor José tirou um cigarro do bolso.

    Batida de sino, trilar de apito do Chefe de Trem, apito da locomotiva, bufar dos cilindros. Sino batendo a oitocentas e trinta arrancou. Partiu no horário; dezessete horas e quinze minutos. O trem trocou de prefixo, passou a ser “N2”. Passou o dia correndo de Leste para Oeste no centro do Rio Grande do Sul agora tomava o rumo Norte.

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  • O Chefe de Trem acompanhado de um Camareiro, com um bloco de anotações na mão, entrou no primeiro vagão de segunda solicitando:

    - Passagens, por favor, passagens...

    Conferia, picotava e dizia para o Camareiro: Freitas Vale a Três Corações... Cruz a São Paulo... Santa Maria a São Paulo... Rio Grande a Santos... Bolaxa a Passo Fundo...

    A mãe da Família de Plano Alto levantou e para a alegria dos filhos, tirou o saco branco do porta-bagagem, recomendou que tivessem modos e abriu o saco; seis cabeças de ovelhas asadas, seis cabeças para oito meninos. E o trem correndo, e começou o desacerto pelas cabeças, um empurrou o outro a cabeça de ovelha rolou no corredor do vagão. A mãe pedia modos e eles se empurrando e voou uma cabeça de ovelha que bateu no peito do Argentino e deslizou pela gravata. Que pueblito!

    Parada em Pinhal, dezoito horas e quatro minutos ponto de cruzamento com “P22”, o “Serra”, vendedores cercaram o trem vendendo espetinhos com lingüiça assada.

    No ultimo vagão o Ex Prisioneiro de Marcílio Dias foi até a plataforma do vagão e comprou um espetinho.

    Na segunda classe o Andarilho pegou o saco debaixo do banco e desembarcou. Um mulato, alto, entrou pelo outro extremo do vagão; botas sujas de esterco de gado, bombachas com um remendo na bunda, lenço branco muito encardido no pescoço, chapéu de abas largas, segurando um fardo de arreios no ombro e tinindo as esporas. Botou o fardo de

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  • arreios debaixo do banco, jogou o chapéu pra nuca, sentou ao lado do Argentino, pegou a guampa-cantil que carregava a meia espalda, destampou, bebeu um gole de cachaça e deu um arroto. A China Magra de Livramento disse:

    - Chiqueiro porco.

    Tranqüilo o Peão de Estância de Pinhal disse:

    - Se tu fosse macho te cagava a coice.

    A China Gorda de Rio Grande deu uma gargalhada e o Argentino se encolheu: que pueblito!

    No ultimo vagão na cabine dez o Ceboleiro de Povo Novo, deitado no leito superior abraçado com a pasta preta. No leito inferior o Contrabandista de Jaguarão, também deitado e abraçado com sua pasta preta e com raiva do companheiro de cabine.

    Anoitecia e o vagão restaurante ia cheio.

    Na segunda classe o Peão de Estância de Pinhal, olhou o Argentino, com muita calma enfiou a mão no cano da bota e tirou uma faca, olhou a faca, olhou para o Argentino, experimentou o fio da faca, do bolso da bombacha tirou um pedaço de fumo em corda e calmamente começou a picar.

    A Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos contava para a Viúva de Umbu:

    - Pois bamos pra Aparecida do Norte, que eu vou pagar uma promessa pra Nossa Senhora de Aparecida e na volta à gente que fica uns dias em São Paulo, que eu tenho muita vontade

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  • de conhecer, diz que é uma baita cidade, diz que é cheia de arranha-céus, a eu quero comer o feijão de São Paulo...

    O Domador de Tiaraju riu e interrompeu:

    - Ué! O feijão de São Paulo é diferente?

    - Pois sabe que é vizinho... Que lá em Povinho dos Castilhos apareceu um senhor que era de São Paulo e ele me contava que o feijão deles é feito com torresmo e engrossado com farinha de mandioca... Que ele chamava o meu feijão de feijão do Povinho dos Castilhos...

    A Viúva de Umbu, perguntou:

    - Como é que a vizinha faz o feijão?

    - É com carne de ovelha e abobora...

    - Pois o feijão do Umbu é com charque e batata doce...

    O Peão de Estância de Pinhal fez um cigarro de palha, acendeu, deu uma baforada e tapou o Argentino na fumaça. Que pueblito!

    Na cabine sete do último vagão, o Pistoleiro de Espalha Brasas fechou à porta a chave, pegou a mala, abriu e do meio das roupas tirou a pistola e enfiou por dentro do casaco.

    Na segunda classe o Degolador de Agente Gomes, se remexia e esfregava as mãos; era a crise, era a vontade de matar, era o medo de morrer. Quando jovem entre os anos de mil novecentos e vinte três e mil novecentos e vinte e cinco, tempo da luta entre Maragatos e Chimangos, fez parte de um

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  • grupo de degoladores que agia na região de Pelotas no sul do Estado. Degolas políticas. Depois que o grupo se dispersou, ele, continuou ainda fazendo alguns “servicinhos” a mando dos poderosos. Depois se encostou a uma fazenda na parada Agente Gomes, onde fazia serviços na volta da sede; cortar lenha, capinar pátio, etc. Agora que estava ficando velho andava sentindo as crises, pouco dormia. Aconselharam a consultar um curandeiro em Passo Fundo.

    A China Magra de Livramento se jogou para o lado do Futuro Sargento de Freitas Vale. O moço até que gostou, mas pensou; viajava com pouco dinheiro, alias o suficiente para chegar à cidade de Três Corações em Minas Gerais onde iria cursar a escola de sargentos, não ia se meter com chinas.

    - A chegar a Júlio de Castilhos, é Júlio de Castilhos, por favor, saída pela porta da frente...

    Júlio de Castilhos, antiga Vila Rica que adotou o nome do filho ilustre, o apito da locomotiva e o bater do sino saudando a cidade naquele anoitecer de primavera.

    No último vagão o Ervateiro de Irati e o Inspetor José combinaram em ir ao vagão restaurante jantar:

    - Descemos e vamos pela plataforma que é melhor que atravessar doze vagões.

    Na cabine dez o Ceboleiro de Povo Novo louco de vontade de ir jantar, mas não queria andar com a pasta preta na mão e não queria deixar a pasta na cabine. Estava com fome. Dois dias viajando, saiu de Povo Novo na véspera, sem tomar café, ao passar no Capão Seco comprou um pastel de mingau que

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  • comeu com uma gasosa, durante o resto do dia nada comeu a noite no hotel em Bagé tomou uma canja e foi só o que comeu naqueles dois dias. Vontade de jantar.

    Na cabine sete o Pistoleiro de Espalha Brasas, bateu na pistola, debaixo do casaco, da mala tirou uma toca, enfiou na cabeça e saiu para ir ao vagão restaurante.

    Na segunda classe o Peão de Estância de Pinhal, largou o toco de cigarro de palha no assoalho do vagão, apagou com o salto da bota, levantou, agachou, tirou o fardo de arreios debaixo do banco e saiu tinindo esporas.

    Um mulato, magrinho, baixo embarcou com um pacote debaixo do braço e sentou a o lado do Argentino.

    A Viúva de Embu ensinava a Esposa do Tropeiro de Povinho dos Castilhos a fazer licor de batata-doce, enquanto o Domador de Tiaraju contava ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

    - Pois sou domador, eu moro no Tiaraju é estação do município de São Gabriel... Tou indo a Passo Fundo visitar minha filha...

    Parada rápida em Júlio de Castilhos, batida do sino, apito do Chefe de Trem, partiram.

    O Mulato que estava sentado ao lado do Argentino abriu o pacote onde estava uma galinha de trem; galinha frita e enrolada na farinha de mandioca crua, pegou uma coxa, deu uma mordida e saltou farinha para os lados inclusive atingindo o Argentino. A China Magra de Livramento chegou

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  • perto de Mulato e aceitou o pedaço que ele ofereceu. Ela de pé, o Mulato sentado, os dois comendo galinha e jogando farinha no Argentino.

    Charqueada São João, o maquinista apitando e pedindo passagem, que ali o “N2” não parava. No seu posto o guarda-chaves levantou o lampião amarelo. Na plataforma da pequena estação o encarregado levantou o lampião vermelho. O Maquinista puxou a alavanca do regulador de vapor e segurou a palanca do freio. Movimento no vagão escritório, o trem começou a diminuir a marcha:

    - Ué ele nem para em Charqueada São João...

    O comboio atravessou meio recinto, parando na frente da estação o último vagão. O Chefe de Trem saltou do vagão escritório e correu pela beira do trem. Janelas se abriram e curiosos botaram as cabeças para fora. Na plataforma da estação, o encarregado, um Cabo da “Brigada Militar”, dois soldados e deitado num colchão um ferido. O Encarregado da Parada Charqueada São João explicou ao Chefe de Trem:

    - Um ferido, ladrão de gado, tiroteio com a Brigada... O Cabo quer levar para Tupanciretã...

    O Chefe de Trem sacudiu os braços, até fazer a burocracia, vai me atrasar o trem...

    O Cabo; da “Brigada Militar” disse:

    - Botamos, ele aqui na ultima plataforma, deste vagão, e vamos embora.

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  • O Encarregado da Parada Charqueada São João concordou e o Chefe de Trem disse:

    - Ligeiro...

    Os soldados levantaram o colchão com o ferido e botaram na última plataforma do trem. O Chefe de Trem correu até a locomotiva para ordenar o reinicio da viagem.

    O Cabineiro do Vagão da Cauda ia recostado na ultima porta do vagão olhando o ferido ali na plataforma, acompanhado dos policiais. Este trem, hoje, já carregou um defunto e agora vai levando um moribundo.

    - Estação Tupanciretã... Tupanciretã...

    A luz do farol da locomotiva iluminou a plataforma da estação. O apito rouco da “Oitocentos e trinta” ecoou na pequena cidade.

    O Mulato largou o pacote com os ossos da galinha debaixo do banco, limpou a boca e sacudiu as mãos jogando mais farinha de mandioca no Argentino. O trem parou e ele desembarcou, a China Magra de Livramento disse:

    - Esse entrou no trem só pra comer galinha...

    A China Gorda de Rio Grande, jogada por cima do Marinheiro de Santos, retrucou:

    - Eta língua grande...

    Os dois soldados que viajavam no banco a frente do Argentino acordaram, e desembarcaram.

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  • O Inspetor José e o Ervateiro de Irati voltaram do vagão restaurante para o vagão da cauda.

    Na cabine dez o Contrabandista de Jaguarão adormeceu; abraçado a pasta preta. O Ceboleiro de Povo Novo espiou o companheiro de cabine. Vontade de ir jantar, fome, mas não ia ao vagão restaurante.

    Na cabine dois o Cafezeiro de Monte Azul avisou a o companheiro de cabine que não iria ao vagão restaurante; o Escritor de Jandira resolveu ir ao restaurante.

    Na segunda classe, três velhas embarcaram e sentaram duas na frente e uma ao lado do Argentino. Logo botaram no chão um pequeno fogareiro a álcool, uma foi o “WC” buscar uma chaleira com água. Preparavam o mate doce.

    De Tupanciretã a Cruz Alta, viagem direta; sem parar nas estações do trecho.

    O Ervateiro de Irati resolveu tirar um sono, mas antes pediu ao Cabineiro do Vagão da Cauda:

    - Me chama quando chegar a Cruz Alta, meu irmão esta lá me esperando...

    Na segunda classe, o Lanceiro de Inhandui, um mulato, alto, magro, com oitenta anos, com sono, sacudia a cabeça de um lado ao outro e contava para o moço que viajava a seu lado:

    - Foi na Revolução Federalista, eu lanceiro nas tropas de Uruguaiana... Deu o combate no dia três de maio de mil oitocentos e noventa e três. Me feriram na perna, ferimento

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  • feio, me levaram prum galpão de estância, até tinha outros feridos. Acredita ali eu fiquei me empreguei na estância, casei, criei filhos e até hoje eu moro na estação Inhandui... Vou ver uma neta no Passo Fundo.

    Perto do Argentino as três velhas tomavam mate doce, comiam pipocas e falavam mal da vida alheia. O Argentino, cansado, já ia tonto. Dizia uma:

    - Eu Deus me livre de falar mal da vida dos outros, mas aquela dona é a maior safada de Tupanciretã... Tem gente que diz que ela andou até com o padre...

    - Olhe e eu nem duvido, que aquele padre é safado...

    Enquanto o Tropeiro de Povinho dos Castilhos contava para o Domador de Tiaraju os trabalhos que passava tocando tropas de bois brabos do município de São Borja para a charqueada de Quarai, a esposa dele contava a estória de uma briga:

    - Mas vizinha, umas carreira de cavalo, coisa pequena, que o Povinho é um lugar pequeno, e eu era noiva dele... Mas tinha, lá, uma metida que andava se bobeando e dizendo que ia roubar ele de mim... Mas foi no dia das carreiras, mas enfiei os dedos nos olhos dela...

    O trem correndo, o Cabineiro do Vagão da Cauda, sentado no seu canto, tirando uma soneca, acordou assustado como vulto a sua frente:

    - O colega, não te lembra mais de mim.

    - O... Sim o colega de Benjamin Not.

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  • - Isto mesmo... Vou descer ai da última plataforma.

    - Rapaz! Tem cuidado.

    O outro sorriu e seguiu pelo corredor do vagão. Era ferroviário, trabalhava na usina de tratamento de dormentes na estação de Benjamin Not, estava voltando da casa da noiva em Tupanciretã e como aquele trem não parava em Benjamin Not, ele saltava da última plataforma.

    Benjamin Not, escrito na tabuleta na beira dos trilhos, o Maquinista puxou a corda do apito. Recinto cheio de vagões carregados com dormentes, na plataforma da estação, lampião verde, Agente com o arco com a licença na mão pronto a entregar para o Maquinista. O Cabineiro do Vagão da Cauda foi para a porta do fim do corredor ver o outro saltar. Que perigo. Recinto escuro. Passou a estação e ele saltou; um vulto que correu atrás do trem. O Cabineiro respirou; aliviado.

    Parada José Vargas a sete quilômetros de Cruz Alta, recinto cheio de vagões de carga: para aliviar o recinto de Cruz Alta, lampião verde na plataforma, o trem não para, Encarregado de Parada com licença no arco, um vulto na beira dos trilhos. Correu junto ao trem segurou os balaustres da última plataforma do trem e pulou para o estribo; embarcou o Clandestino de José Vargas.

    Na segunda classe as Linguarudas de Tupanciretã já tinham tomado duas chaleiras de mate doce, comido uns dois quilos de pipoca, falado mal da metade da cidade e deixado o Argentino completamente tonto.

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  • O Ex Oficial Nazista ia tonto de sono, mas sabia que não podia dormir que o Homem de Terno Cinza não tirava os olhos dele.

    No ultimo vagão o Inspetor José, fumando no corredor, viu o Criador de Mulas de General Neto voltando do vagão restaurante.

    - É Cruz Alta saída a porta da frente... Cruz Alta... Aqui desembarcam os passageiros para o ramal de Santa Rosa... É Cruz Alta...

    As luzes de Cruz Alta. Movimento dentro do trem, boa parte da carga ficaria ali.

    A moderna estação de Cruz Alta. Plataforma cheia de gente, o bater do sino e ringir dos freios.

    O Cabineiro do Vagão da Cauda bateu na cabine seis chamando o Ervateiro de Irati.

    Apressado o Farrista de Ijui entrou no vagão pegou a mala na cabina nove, agradeceu ao Cabineiro e se despediu convidando:

    - Vai lá, em Ijui pra tomar cerveja com lingüiça.

    O Inspetor José saiu da cabine um desceu do trem, olhou as horas no relógio da estação: vinte duas horas e dez minutos; estavam no horário. Viu o Ervateiro de Irati abraçando o irmão.

    Do primeiro vagão de segunda classe, desembarcaram os Esquiladores do Alegrete, as Linguarudas de Tupanciretã.

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  • Na primeira classe a noticia entre os Caixeiros Viajantes; a linha ainda esta interrompida em Maquinista Severo. Vai ter baldeação?

    A China Magra de Livramento resolveu espichar as pernas e desembarcou para passear na plataforma da estação. De uma das janelas do segundo vagão de segunda classe o Mentiroso de Azevedo Sodré a viu e ficou interessado.

    Carregadores se movimentando ligeiro, um trem de cargas passou ao lado do Noturno enchendo os vagões de fumaça. Passageiros apressados embarcando.

    No primeiro vagão de segunda classe embarcou, com uma gaita embaixo do braço, o Gaiteiro de Santa Barbara e sentou junto do Argentino. A China Magra de Livramento embarcou e olhou para o gaiteiro dizendo:

    - Oba, bamos tê música...

    A China Gorda de Rio Grande, abraçada no Marinheiro de Santos, interrompeu:

    - Já a sirigaita se refestelou...

    O Mentiroso de Azevedo Sodré trocou de vagão, passou para o primeiro vagão de segunda classe onde conseguiu lugar junto ao Futuro Sargento de Freitas Vale.

    O Degolador de Agente Gomes tremeu o corpo, sentiu raiva, meteu a mão dentro do cano da bota para tocar na faca: ainda mato um dentro desta merda deste trem.

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  • Vinte e duas horas e vinte e seis minutos o Agente de Cruz Alta bateu o sino dando partida para o Noturno. O Clandestino de José Vargas embarcou na plataforma do último vagão.

    Próxima parada em Santa Barbara as zero hora e treze minutos, o Cabineiro do Vagão da Cauda se acomodou no seu canto para tirar uma soneca.

    No primeiro vagão de segunda classe a China Magra de Livramento pediu para o Gaiteiro de Santa Barbara:

    - Hei tche! Toca um troço.

    Tímido o Gaiteiro se encolheu, mas outros passageiros pediram e ele resolveu:

    - Ta bom... Vou tocar um tanguinho...

    Tanguinho? O Argentino se remexeu no banco. Bastavam os dias que tinha passado em Barra do Quarai aguardando que os companheiros de partido fizessem os contatos e conseguissem documentos e dinheiro para ele fugir, e lá tinha escutado muitos tangos. Ele que nos bons tempos que servia e se servia do poder freqüentava as boas casas de tango de Buenos Aires, com as grandes orquestras: “Troilo”, “Darenço”. Na fronteira encontrou tal de “tango de fronteira”, dançado por gaúchos pilchados e se pavoneando. Cantado pelo Negro Cantor de Beleza; Beleza uma estação do ramal de Uruguaiana a Barra do Quarai, que abria o peito pra cantar “Adios Pampa Mia” e tremiam as três vilas da tríplice fronteira: Barra do Quarai, Bella Union e Monte Caseros, ou quando cantava: Um tango de frontera, Pa se bailar la noche entera, em meio à polvadera,

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  • com canha brasileira, e ao son del bandoneio, yo me pavoneio...

    Mas o Gaiteiro de Santa Barbara abriu a gaita fanhosa que retumbou na segunda classe e abriu o peito:

    - Restisflaus de mis tristes, vos que a sido em mi pobre vida paria...

    Pobre do Argentino sentiu dor de estomago.

    O Mentiroso de Azevedo Sodré com os olhos cravados na China Magra de Livramento, contava para o Futuro Sargento de Freitas Vale:

    - Pois eu sou do município de “San Gabriel”, venho da estação do Azevedo Sodré. Na vila do Azevedo Sodré já namorei as gurias todas, nos bailes do Sodré eu sou o pai dos homens e o namorado de todas as mulheres...

    A China Magra de Livramento franziu a testa e disse:

    - Ih! Esse é comedor de égua...

    E o trem correndo passou pela estação de Eurico Martelete. O Pistoleiro de Espalha Brasas entrou no ultimo vagão, o Cabineiro dormia, parou no corredor, olhou para todos os lados, caminhou até defronte a cabine quatro, parou, tirou a pistola de dentro do casaco, olhou o cano, conferiu se estava carregada, empunhou, sacudiu, pensou, sacudiu a cabeça, botou a pistola no bolso, caminhou pelo corredor. Parado num ponto escuro da última plataforma do trem o Clandestino de José Vargas o cuidava.

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  • As vinte e três horas passaram na estação Lagoão e o Gaiteiro de Santa Bárbara prometeu tocar “La cumparsita” o Argentino levantou para ir ao banheiro.

    O Ex Oficial Nazista, sacudia a cabeça para espantar o sono e cuidava a o Homem de Terno Cinza. Enquanto a Mulher Estranha de Cruz o cuidava. Mulher estranha porque na quinta-feira na linha de Cacequi Rio Grande às dez horas e cinqüenta minutos chegou à pequena estação de Cruz onde todo o mundo se conhecia e ela era a primeira vez que aparecia ali e ainda pedindo uma passagem para São Paulo. Tremeu o Agente de Cruz que nunca tinha tirado uma passagem para São Paulo, faltando cinco minutos para o trem tinha que calcular distancia e conferir três tabelas: Viação Férrea, Rede de Viação Paraná Santa Catarina e Sorocabana.

    - A chegar a Santa Barbara... Santa Barbara...

    O Cabineiro do Vagão da Cauda, acordou, levantou, ajeitou o uniforme e se preparou para recepcionar mais um passageiro.

    Para a sorte do Argentino o Gaiteiro de Santa Barbara parou de tocar e começou a preparar-se para desembarcar.

    O Degolador de Agente Gomes olhou para o Lanceiro de Inhandui e sentiu raiva: vontade de degolar este infeliz.

    O Mentiroso de Azevedo Sodré piscou para a China Magra de Livramento e ela sacudiu o ombro dizendo:

    - Mas vai-te enxergar!

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  • No vagão da cauda, vestida de preto, mas muito faceira, loira, embarcou a Viúva de Santa Barbara, O Cabineiro do Vagão da Cauda a ajudou a carregar as malas até a cabine nove.

    O Agente de Santa Barbara avisou ao Chefe de Trem que a linha em Maquinista Severo estava quase desimpedida; as turmas de socorro estavam trabalhando sem descanso.

    O Comunista de Canoas viu na plataforma o velho camarada: o Comunista de Cruzinha; abriu a janela e chamou:

    Desconfiado o Comunista de Cruzinha se aproximou, reconheceu o “camarada” e avisou:

    - Também vou neste trem. Pra onde o camarada vai?

    - Nem sei direito... A policia, de Canoas, ta querendo me prender...

    - Eu também ando me escapando... Eu vou para Cruzinha, lá para a casa da minha mãe...

    No vagão da cauda a Viúva de Santa Barbara pediu ao Cabineiro:

    - Tu me fazes um favor? Compras, no vagão restaurante, uma gasosa? Vou jantar: coelho a Santa Barbara; frito no azeite de oliva e enrolado na farinha de rosca...

    Na segunda classe sentaram perto do Argentino três de uma parceria que ia de Santa Barbara para correr uma carreira de cavalos em Carazinho: famosas as pencas de Carazinho.

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  • O Degolador de Agente Gomes levantou foi ao banheiro, trancou a porta, tirou a faca do cano da bota, examinou, sentiu o fio.

    Na primeira classe os Caixeiros-Viajantes perguntavam: E a linha? Já desimpediu? Tem baldeação?

    O Degolador de Agente Gomes saiu do banheiro, andou devagar pelo corredor e parou perto do Lanceiro de Inhandui, a China Magra de Livramento olhou firme para ele.

    O Ex Oficial Nazista, espichou os braços, levantou segurando a pasta botou a mala em cima do banco, para marcar o lugar e seguiu para o banheiro. O Homem de Terno Cinza fez um sinal para a Mulher Estranha de Cruz, e foi parar perto do banheiro.

    O Degolador de Agente Gomes olhou a China Magra e foi sentar em seu lugar.

    Zero hora e dezoito minutos, no horário o trem saiu de Santa Barbara.

    Há zero hora e quarenta e oito minutos parou em Dois Irmãos, um Caixeiro- Viajante reclamou:

    - Pronto, ele não para aqui... Parou; a linha continua entupida.

    Nos vagões a mesma pergunta: quanto tempo?

    Em Maquinista Severo, com luz de lampiões e do farol de uma locomotiva, homens lutavam para desimpedir a linha. O Agente de Maquinista Severo, conferenciou com o Mestre de Linhas;

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  • - O Noturno já parou em Dois Irmãos.

    O Mestre de Linhas tirou o relógio do bolso do casaco, olhou, olhou o serviço:

    - Quinze minutos; ta desimpedida a entrada do teu recinto.

    O Agente de Maquinista Severo esfregou as mãos:

    - Mando o Noturno avançar?

    Trem parado em Dois Irmãos, o Ex Oficial Nazista voltou do banheiro para o seu lugar, o Homem de Terno Cinza andou pelo corredor do vagão. O tropeiro de Povinho dos Castilhos piscou para a China Magra de Livramento e a mulher dele viu e o beliscou com fúria e força que ele encheu os olhos de lagrimas, mas agüentou firme.

    No vagão da cauda, dentro da cabine sete o Pistoleiro de Espalha Brasas, sentado no leito, pensava e examinava a pistola.

    Na cabine cinco o Criador de Mulas de General Neto, acordou com vontade de urinar.

    Trem parado o Clandestino de José Vargas sentado em cima do ultimo vagão, de noite ninguém o via.

    A pequena plataforma de Dois Irmãos iluminada por um fraco lampião, no escritório Agente de Dois Irmãos e Chefe de Trem aguardando.

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  • O Criador de Mulas de General Neto seguiu pelo corredor até o banheiro, por uma fresta da porta o Pistoleiro de Espalha Brasas o espiou.

    Bateu o sino da estação, alegria entre os passageiros, apitou a locomotiva, zero hora e cinqüenta e três minutos partiram.

    Muita atenção, as luzes dos lampiões, o lampião sinaleiro sacudido pelo Guarda-Chaves. De vagar, noite escura, os curiosos abriram janelas para ver o acidente, mas a noite estava escura. Uma hora e sete minutos passaram bem devagar em Maquinista Severo onde embarcou a história que andou em todos os vagões: Tombaram dois vagões de carga na entrada do recinto e um deles caiu por cima da guarita do Guarda-Chaves, mas ele escapou porque poucos minutos antes do trem chegar o “Fantasma do Guarda-Freio” apareceu para ele e avisou para ele passar para o outro lado dos trilhos. Muitos maquinistas e chefes de trens diziam que em Maquinista Severo havia um fantasma de um guarda-freio que costuma fazer sinais para os trens.

    - A chegar e Pinheiro Marcado... Pinheiro Marcado...

    Chegou; uma hora e trinta e dois minutos. Um passageiro apressado correu a embarcar no último vagão.

    O Advogado de Rio Pardo abriu a porta da cabine oito e parou no corredor aguardando o cliente e companheiro de viagem. O Cabineiro ajudou o passageiro embarcar. Por uma fresta da porta da cabine um o Inspetor José viu o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado.

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  • Na segunda classe o Ex Oficial Nazista, levantou, botou a mala em cima do banco, segurou a mala e foi ao banheiro. A estranha Mulher do Cruz levantou e foi parar perto do banheiro.

    Um grupo de corredores de carreira de cavalos embarcou e se encontraram com o grupo que vinha de Santa Barbara. Ganha o cavalo de Pinheiro Marcado... Ora, ganha o de Santa Barbara, uns sentados, outros de pé se amontoaram no extremo do vagão onde viajava o Argentino e falando alto, e gesticulando, e rindo se desafiavam e fechavam apostas; penca grande em Carazinho, nove cavalos, três ternos, cavalos de Santa Barbara, Pinheiro Marcado, Cruzinha, São Bento, Carazinho, Pulador e Passo Fundo.

    Batida de sino apito e partiram de Pinheiro Marcado.

    No vagão da cauda o Inspetor José, sentou no leito, tirou os sapatos, deitou: vou dormir até clarear o dia.

    O Ex Oficial Nazista saiu do banheiro, voltou para o seu lugar. Os carreiristas, riam, gesticulavam, faziam apostas e deixavam o Argentino tonto.

    Os Balseiros do Rio Uruguai dormiam. A China Magra de Livramento conversava com um dos Cortadores de Foice de Pertile.

    Chegada em Cruzinha ponto de cruzamento com o “N4” que saiu quarta feira de São Paulo. O apito rouco das duas locomotivas.

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  • O Comunista de Canoas e o Comunista de Cruzinha desembarcaram e sumiram na escuridão, ficavam ali onde iriam planejar a salvação da Pátria.

    O Ex Oficial Nazista, levantou ligeiro, botou a mala em cima do banco, segurou a pasta e correu para o banheiro. O Homem de Terno Cinza fez sinal para a Mulher Estranha do Cruz os dois levantaram e ele foi para perto do banheiro.

    Na plataforma da estação o encontro dos dois Chefes de Trem, as informações ao Agente de Cruzinha.

    Na segunda classe, novos carreiristas embarcaram e aumentou a reunião junto ao coitado do Argentino: ganha o cavalo de Cruzinha. Joga cem, conta cinqüenta? O cavalo de Santa Barbara nunca perdeu penca em Carazinho. Sempre tem uma primeira vez. Joga cem contra oitenta? A égua tordilha do Pinheiro Marcado é a dona da penca...

    A batida do sino. O Homem de Terno Cinza segurou a mala do Ex Oficial Nazista; vazia. A Mulher Estranha do Cruz tentou abrir a porta do banheiro; não estava trancada, abriu. O apito das locomotivas. Janela aberta e banheiro vazio. O trem se movimentou; os dois desceram do trem, correndo, embarcaram no outro.

    Duas horas e trinta e seis minutos chegaram a Carazinho, desembarcaram os barulhentos carreiristas.

    O Falso Padre de Cafundó, que viajava na primeira classe jogando canastra com um grupo de Caixeiros-Viajantes, saltou para a plataforma, correu até o ultimo vagão, embarcou, o Cabineiro cochilava, caminhou pelo corredor e

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  • bateu de leve na cabine nove. Sorridente a Viúva de Santa Barbara abriu a porta e ligeiro ele entrou. Pela porta de trás do vagão o Clandestino de José Vargas viu o encontro.

    Na segunda classe o Degolador de Agente Gomes levantou e começou a passear no corredor do vagão. Muitos dormiam.

    Sem os óculos escuros, sem a peruca loira, sem o falso bigode, vestindo outra roupa o Ex Oficial Nazista saiu de entre dois vagões, correu a bilheteria para comprar uma passagem; de primeira classe, só ida até Capinzal.

    Na plataforma da alterosa estação de Carazinho os grupos de carreiristas discutindo e quase deu briga entre o grupo de Cruzinha com o de Pinheiro Marcado. Uma adaga brilhou no ar, policiais da Brigada Militar correram.

    O Mentiroso de Azevedo Sodré disse em voz alta:

    - Num baile que eu vim aqui em Carazinho, eu namorei a filha do prefeito...

    A China Magra de Livramento deu uma gargalhada debochada.

    O mentiroso de Azevedo Sodré ficou vermelho: ainda enfio a mão nos beiços desta galinha.

    O Degolador de Agente Gomes cansou de passear pelo corredor; sentou.

    Duas horas e quarenta e um minutos saíram de Carazinho. Três horas e cinco minutos passaram em Lassance Cunha e as três e vinte e cinco chegaram a Pulador.

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  • O trem vinha parando, na segunda classe o Degolador de Agente Gomes, deu um grito, levantou de um pulo, correu pelo corredor do vagão, desceu do trem e correu para o meio da noite.

    O Camareiro correu a avisar ao Chefe de Trem. No escritório da estação o Agente de Pulador jogou o quepe vermelho para a nuca e disse:

    - Outro... Com este já são cinco... Todos este ano.

    A locomotiva apitou; Maquinista nervoso querendo prosseguir viagem. O Agente de Pulador reclamou:

    - Ta com pressa o outro.

    O Agente de Pulador começou a pegar os formulários para preencher e orientou ao chefe de trem:

    - Veja se o tal tem parentes no trem... Procedência e destino?... Consegue três testemunhas...

    Um galo cantou.

    Chefe de Trem e um Camareiro revistaram as passagens no vagão, conferiram o mapa de passagens e voltaram com as informações:

    - Viajava só... De Agente Gomes...

    - Onde fica isto?

    - Uma estaçãozinha perto de Pelotas, lá no sul do estado... Agente Gomes a Passo Fundo, passagem de ida e volta na segunda classe...

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  • Preenchendo os formulários da ocorrência o Agente de Pulador contou:

    - O primeiro foi no inicio do ano, no trem da manhã; oito horas da manhã, o sujeito vinha na primeira classe, tava tomando café, deu um pulo saiu do trem e sumiu no meio do mato, dez dias depois amanheceu dormindo ai na plataforma... O segundo pulou do “N4” vinha de São Paulo pra Porto Alegre, uma semana depois amanheceu na plataforma de Lassance Cunha... Já andam dizendo que são os espíritos dos que morreram no “Combate do Pulador”, na Revolução de Noventa e Três... A mulher do Telegrafista de São Miguel; que é metida com esse negocio de espiritismo, já veio quatro ou cinco vezes aqui fazer perguntas...

    Com vinte minutos de atraso; as três e quarenta saíram de Pulador. Passaram em São Miguel as três e cinqüenta e três.

    - A chegar a Passo Fundo... Passo Fundo, saída porta da frente...

    As luzes da Capital do Planalto, o apito rouco da locomotiva, entraram em Passo Fundo batendo o sino. Quatro horas e dezoito minutos. Movimentação dentro do trem, boa parte da carga ficaria ali. Alto falantes da estação saudando os passageiros:

    - Bem vindos a Passo Fundo... Atenção senhores passageiros acaba de encostar-se a nossa plataforma trem procedente de Porto Alegre com destino a São Paulo, passando por Erechim, Marcelino Ramos, Capinzal...

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  • O Domador de Tiaraju se despediu da Viúva de Umbu e do casal de Povinho dos Castilhos. O Lanceiro de Inhandui desembarcou. O Mentiroso de Azevedo Sodré antes de desembarcar disse uma piada para a China Magra.

    Terra da fartura, plataforma cheia de pilhas de sacos, caixas e barris com mercadorias, na ponta norte da plataforma; várias gaiolas cheias de perus que gorgolejavam. Carregadores se movendo apressados. Na ponta sul da plataforma o gaiteiro cego, se embalava e tocava na sanfona um “bugio”.

    Abastecendo a locomotiva de carvão e água. Completando as caixas de água dos vagões.

    No vagão da cauda o Falso Padre de Cafundó, saiu da cabine da Viúva de Santa Barbara e voltou para a primeira classe, parado ao lado do trem o Clandestino de José Vargas viu.

    Um Conferente avisou ao Agente de Passo Fundo e ao Chefe de Trem: o Louco de Maquinista Maino esta embarcando no trem.

    - Louco; coisa nenhuma; safado.

    O Louco de Maquinista Maino embarcou no primeiro vagão de segunda classe e sentou ao lado do Argentino.

    Como o trem noturno não parava em Maquinista Maino, ele comprava a passagem até a estação Coxilha, mas quando o trem passava em “Maino” ele acionava o freio de emergência, desembarcava ligeiro e sumia.

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  • As quatro e trinta e cinco o trem saio de Passo Fundo. O sino batendo. Dois Camareiros no primeiro vagão de segunda classe cuidando os movimentos do Louco de Maquinista Maino.

    No ultimo vagão o Ceboleiro de Povo Novo, acordou, olhou o companheiro de cabine. Segurou a pasta e saiu para o corredor a fim de espichar as pernas.

    O Ervateiro de Irati saiu da cabine, os dois se olharam, cumprimentou:

    - É... Bom dia...

    - Bom dia.

    - A gente ta saindo de Passo Fundo, até que vamos quase ao horário... Ainda tenho mais de vinte e quatro horas de viagem pela frente...

    - E eu... Vou pra São Paulo, tenho mais de quarenta e oito.

    - De onde vem?

    - Venho do sul do estado, venho do município do Rio Grande, da estação Povo Novo...

    O Ervateiro de Irati ficou contente, sorriu e interrompeu:

    - Povo Novo... Faz cinco anos eu estive na sua terra, eu meu irmão que mora em Castro... Meu irmão é muito entusiasmado com a história dos tropeiros... Até hoje ele cria mulas... O sonho dele é comprar a fazenda Capão Alto, lá no município de Castro, mas vai ficar no sonho... Ele inventou

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  • de colecionar objetos e relatos dos tempos dos tropeiros... Povo Novo foi um marco no primeiro caminho, que foi feito por Cristovão Pereira, ali é que fazia a travessia da Lagoa dos Patos para pegar o caminho no Estreito entre a Lagoa e o Mar...

    O Ceboleiro sorriu desapontado e disse:

    - Pouco sei dos tempos passados...

    - Meu avo era nascido no Povo Novo... Eu tenho sessenta e dois anos, quando eu nasci o meu pai tinha cinqüenta e três e quando meu pai nasceu; meu avo tinha cinqüenta... Somando temos cento e sessenta e cinco... Estamos no ano de mil novecentos e cinqüenta... Diminui; dá mil setecentos e oitenta e cinco... Único documento que ele tinha era o certificado de batismo na Capela de Nossa Senhora das Necessidades da vila do Povo Novo do ano de mil setecentos e oitenta e cinco. Este documento ele sempre carregou enrolado e dentro de uma garrafa... Era índio, muito bom cavaleiro; andava montado, sentado, deitado, de pé, fazia o cavalo ajoelhar, empinar, deitar... Era amigo do cavalo... Em mil e oitocentos os tropeiros, já tinham abandonado o caminho antigo, usavam o caminho de São Borja a Cruz Alta, que, aliás, diminuiu muito o tempo das viagens, ele veio pra Cruz Alta... E seguiu tropeando de Cruz Alta a Sorocaba... Casou em Cruz Alta... Em Mafra... Em Castro e em Sorocaba... Teve quatro mulheres e com cada uma quatro filhos homens... Dezesseis filhos...

    Na segunda classe o Louco de Maquinista Maino deu com o cotovelo no Argentino e ordenou:

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  • - Cuida quando passa em Arroio Miranda.

    O Argentino não entendeu, mas tremeu. Os dois Camareiros cuidando o vagão. Alguns passageiros desconfiados, a China Magra de Livramento comentou:

    - Ta cheirando a buchicho.

    A tabuleta branca com letras pretas: Arroio Miranda, sinal de apito e a locomotiva apitou. Em seu posto o Guarda-Chaves de Arroio Miranda levantou o lampião verde. Quatro horas e cinqüenta.

    A direita do trem, lá na linha do horizonte a barra do dia, dentro do trem dois Camareiros atentos, o Louco de Maquinista Maino desconfiado e o Argentino nervoso. O Louco olhou para o Camareiro e perguntou:

    - Para em “Maino”?

    Sério o Camareiro sacudiu a cabeça negativamente e afirmou:

    - Só para em Coxilha.

    No ultimo vagão na cabine dez o Contrabandista de Jaguarão, acordou sobressaltado, viu a luz acesa, espiou para o outro leito; vazio, levantou afobado procurando a pasta preta.

    Apito pedindo passagem em Maquinista Maino. Lampião verde na entrada do recinto. O Louco se remexeu, olhou para os dois Camareiros, virou a cabeça e olhou caixa presa na parede frontal do vagão, acima da cabeça do Argentino: freio de emergência: quebre o vidro, puxe a alavanca. O barulho das rodas entrando nos aparelhos de mudanças de vias; o

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  • recinto de “Maino”. Tensão, respirou, olhou os dois, olhou o Argentino, olhou a caixa. Levantou e estendeu o braço para a caixa, um Camareiro o deteve, o Argentino botou as mãos na cabeça e se encolheu no canto. O Louco de Maquinista Maino tentou dar um soco no Camareiro. A China Magra de Livramento deu um grito. A China Gorda de Rio Grande, louca de sono, reclamou:

    - Além de puta é fiasquenta.

    Um Guarda-Freio entrou no vagão para ajudar os dois Camareiros a imobilizarem o Louco de Maquinista Maino, que esperneava e esbravejava enquanto o Argentino quase se urinava de medo.

    Galos cantando; as cinco e vinte o “N3” encostou-se à estação de Coxilha. Dois soldados da “Brigada Militar” entraram no trem para prender o Louco.

    Faltando cinco minutos para as seis chegaram a Engenheiro Luiz Englert. O grupo embarcou no primeiro vagão de segunda classe, cerca de trinta pessoas; brancos, loiros, negros e todos vestidos de branco. Uma negra gorda sentou ao lado do Argentino, duas loiras na frente dele e o resto do grupo ficaram de pé e no extremo do vagão. O Argentino nada entendia e estava tonto com a mistura de cheiros; perfume de flores, cheiro de fumaça, cheiro de pólvora, cheiro de cachaça. Viagem rápida, doze minu