um reporter na china - flavio alcaraz gomes

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U U M M R R E E P P Ó Ó R R T T E E R R N N A A C C H H I I N N A A FLÁVIO ALCARAZ GOMES – 1976 Sobre a Digitalização desta Obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade é a marca da distribuição, portanto: Distribua este livro livremente! Se você tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original. Incentive o autor e a publicação de novas obras!

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Flavio Alcaraz Gomes

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  • UUMM RREEPPRRTTEERR NNAA CCHHIINNAA

    FFLLVVIIOO AALLCCAARRAAZZ GGOOMMEESS 11997766

    Sobre a Digitalizao desta Obra:

    Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.

    A generosidade a marca da distribuio, portanto:

    Distribua este livro livremente!

    Se voc tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original.

    Incentive o autor e a publicao de novas obras!

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    A longa espera

    Levei quatro anos para conseguir um visto de entrada para China - e ltima hora

    quase no embarco devido sabotagem russa. De onde se depreende que a guerra fria entre

    as duas superpotncias comunistas chega a diablicas e tentaculares mincias, como essa

    de uma delas tentar impedir que um simples jornalista de uma Provncia do Brasil conhea

    o territrio da outra.

    Mas comecemos pelo princpio: em novembro de 1971, pouco depois de Nixon ter

    anunciado sua visita Repblica Federal da China, e levando como garantia a palavra e o

    telex do representante da France Press no Rio, monsieur Franois Lara, de que a sua

    Agncia em Paris me obteria em 24 horas a autorizao de viajar para Pequim - me toquei

    para a Frana. Ali, o diretor da F.P., para assuntos da sia, riu na, minha cara, disse que

    monsieur Lara estava completement fou, completamente louco, que a China continuava

    hermeticamente fechada por sua Cortina de Bambu - e que nem eles, jornalistas franceses,

    cujo governo vivia bajulando Mao e Chou, podiam l entrar - quanto mais eu, que alm de

    sul-americano, possua o agravante de ser brasileiro. Assim aconselhou-me que no

    perdesse tempo e voltasse para o Brasil onde, na melhor das hipteses, poderia ainda tentar

    cobrar as despesas da viagem do maluco do Lara. No desisti. Naquela mesma tarde entrei

    na Embaixada da China, avenue George V com minha application para Pequim. Um

    chins gordinho, vestido com um traje cinza, tipo Mao, me recebeu numa sala escura,

    anotou minhas pretenses e endereo e me disse que estava bem, que eu esperasse.

    - Onde?

    - Onde quiser.

    - Quanto tempo?

    E ele, sem me olhar nos olhos, e muito lentamente:

    - Trs dias, trs semanas, trs meses ou trs anos. . .

    Ainda no desisti. No outro dia estava em Londres, tambm na Embaixada da

    China, no me lembro do nome da rua, mas sei ir l, porque fica entre a BBC e a Oxford

    Street. Ali havia mais luz na sala e o (tambm) chins que me atendeu, mais magro e mais

    simptico do que o outro, mas vestindo idntica roupa, perguntou se aceitava um ch,

    enquanto me estendia um cigarro, de evidente origem chinesa. Depois disse que estava um

    lovely day, isn't indeed, que Londres era uma cidade muito bonita, imaginava que Porto

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Alegre tambm deveria ser - e sempre desconversando com relao ao pedido que,

    devidamente preenchido, desde o princpio, insistentemente, eu lhe estendia. Por fim, com

    alguma repugnncia consentiu em agarr-lo; e continuou a falar sobre o clima da

    Inglaterra, ah! como seria bom se um dia Brasil e China estabelecessem relaes

    diplomticas e ele fosse trabalhar em Braslia. . .

    - Mas e a application? Quando terei a resposta?

    A ele repetiu o mesmo que o de Paris, s que em ingls e me fixando o olhar:

    - Daqui a trs dias, trs semanas, trs meses ou trs anos. . .

    Esfriei. Ele sorriu, disse que eu no desesperasse, que as coisas eram assim mesmo,

    pediu que aguardasse s um momentinho, cruzou uma cortina atravs da qual em seguida

    voltou, com um pequeno objeto na mo:

    - Tome, leve, o livro vermelho com os pensamentos de nosso grande presidente e

    lder Mao-Ts-Tung. No deixe de o ler sempre, que ele s lhe trar felicidade.

    - Mas e a application camarada? Quando. . .

    - J lhe disse: trs. . .

    Apertei-lhe a mo mole e suada e dei o fora. No hotel, meti o livro vermelho no

    meio das cuecas sujas, com medo da Polcia no Rio - e no outro dia voltei para o Brasil, via

    Varig, naturalmente.

    Aqui, ento, chegamos ao fim do primeiro captulo de minha, por enquanto,

    desventurosa novela.

    J no Segundo Captulo, ao voltar do Mxico, em maio de 1972, resolvi

    interromper a viagem no Chile, para ver como iam as coisas com o camarada Allende.

    Encontrei Santiago, outrora uma bela, limpa, rica e pacfica cidade, virada do avesso - tal

    qual, alis, vem acontecendo com Lisboa nos ltimos tempos. Num bairro perdido nos

    confins, localizei a embaixada da China. Mandei que o txi ficasse esperando, bati na

    porta, espiaram pelo olho mgico, levaram um tempo para me atender e, para encurtar o

    episdio, a conversa foi exatamente a mesma de Paris e Londres.

    - Mas companheiro, acontece que j cruzei os tais trs dias, trs semanas e trs

    meses que os camaradas mandaram. . .

    E o chins muito srio, pausado e em espanhol:

    - Pero le hace falta an esperar los tres aos, amigo. . .

    A, sim - desisti. Decididamente, no tinha condies para enfrentar a pacincia

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    oriental. E Porto Alegre, outra vez.

    Terceiro Capitulo. Estando eu inocentemente na Rdio Guaba, recebo a visita de

    Hans Mller, representante da Air France em Porto Alegre:

    - Tenho uma surpresa para voc!

    Partindo tal frase do Mller, j me imaginei sem transio tomando meu kir na

    gaiola envidraada de um caf do Boul' Mich fazendo hora para comer uns certos

    escargots e um determinado cordeiro, que s naquele bistrozinho ao lado da Notre Dame

    sabem preparar. . .

    - Viagem a Paris vista, Mller?

    - Que nada, ch. Convite para visitar a China no vo inaugural da Air France! . . .

    Um estalo explodiu em minha cabea e tudo se fez claro e ofuscante como um

    meio-dia de vero em pleno sol: eu havia superado a ltima das provaes chinesas. Os

    trs anos tinham passado. . .

    Isso o que eu pensava. O pior estava por acontecer.

    Quarto Captulo. Na embaixada da China, em Braslia, foram todos muito cordiais

    e amistosos. O mesmo ch, o mesmo cigarro, s que desta feita dois eram meus

    interlocutores, ambos falando um portugus quase perfeito. Entreguei-lhes alguns

    exemplares do Correio do Povo, da Folha da Tarde e da Folha da Manh, todos sorramos,

    afinal era maio, o dia em Braslia estava lindo. . .

    Tomaram umas quantas notas a meu respeito, aceitaram o passaporte, pediram mais

    fotos e pouco tempo depois o documento me era remetido para Porto Alegre, com o sofrido

    visto. Com um pequeno detalhe apenas: eu no poderia embarcar no vo inicial da Air

    France, pois o grupo j estava preenchido, mas somente em fins de setembro, o que seria

    melhor ainda, conforme me esclareceu o prestativo Mller, pois eu pegaria em Pequim as

    comemoraes do l de outubro, data mxima chinesa - o fino em matria de reportagem.

    Disse duas ou trs vezes obrigado, Mller, acompanhei-o at a porta do elevador e comecei

    a me preparar para a aventura. Por descargo de conscincia e para me atualizar na

    geografia, olhei o mapa. L estava, at ento impenetrvel e misteriosa para mim, a China

    Vermelha. Mas, bem ali ao seu lado, a no menos enigmtica Rssia, alis, Unio

    Sovitica, como dizem ser seu verdadeiro nome. E, no caminho entre Paris e Pequim -

    Moscou.

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Ento, quem sabe - e por que no? . .

    Na mesma hora telefonei para o Mller:

    - Posso interromper o vo em Moscou e ficar ali uns trs-quatro dias?

    - No tem problema. S que precisas o visto sovitico.

    - Bom, quanto a isso no vejo dificuldades. Os russos andam to liberais. . .

    - Ok. Ento pede.

    Pedi. E nesse momento tem incio o

    Quinto Captulo.

    Pelo malote da Caldas Jnior e com uma linda carta de recomendao de amigos

    comuns, os diplomatas soviticos em Braslia receberam meu passaporte. Isto foi a 5 de

    setembro, me lembro bem, porque o dia do aniversrio da minha filha. Acontece - e ali

    que comea o drama - que o passaporte j estava carimbado com o visto da China e sua

    data nica e autorizada para cruzar a fronteira: 26 de setembro. Com vinte dias pela frente,

    nunca imaginei que pudesse haver qualquer complicao; e comecei a me preparar para

    uma viagem que me proporcionaria uma viso das duas mes do comunismo internacional.

    Pura ingenuidade, santa boa f. Os dias foram passando, e nada. J estava na antevspera

    da data fatdica - e os russos, moita. Foi ento que, assustado com a demora, telefonei para

    o Aldo Magalhes, nosso representante em Braslia, para que ele informasse embaixada

    sovitica que eu tinha desistido de visitar a Rssia e que, pelo primeiro malote, mandasse

    de volta meu passaporte. No dia seguinte o telex da Caldas Jnior taquetaqueou o seguinte:

    - Aqui Aldo. Quero falar com Flvio.

    - OK, pode falar.

    - Olha, a coisa est difcil. Depois que comuniquei a deciso de no visitares a

    Rssia, o Valentim no me permitiu mais contato com ele. No atende telefone e no me

    recebeu em duas visitas que fiz embaixada, onde inclusive deixei um bilhete pessoal para

    ele. Hoje enviei mensagem pelo telex e continuo insistindo pelo telefone. Estou apreensivo

    com isso, pois entendo que deveria mandar-te o passaporte hoje.

    - Tenho que viajar sexta-feira. Se no, perco o avio. Que diabo! Eles no tm o

    direito de reter o meu passaporte!

    - Eu tambm acho. Penso que seria interessante tu chamares agora o telex e reforar

    meu pedido. Eu marquei, inclusive, quatro horas como limite para me colocarem o

    passaporte disposio, e estou vendo a coisa preta.

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    - Ok. Vou passar o telex. Como , afinal, todo o nome desse Valentim?

    - Valentim Aleshim. Olha, ele me disse que sexta-feira estaria a em Porto

    Alegre, mas ponderei-lhe que no poderamos esperar at l. E nunca mais consegui falar

    com o homem.

    - Grato, Aldo. Vou agir.

    Agi. Em seguida, desci para o telex e liguei para Braslia:

    - Ateno, Aldo. Acabei de falar com o senhor Valentim pelo telefone. Ele me

    prometeu que vai devolver o passaporte. bom que fiques de olho nisso, caso contrrio

    capaz de haver extravio ou coisa que o valha, tu sabes como so esses caras, o peito deles,

    tentarem fazer isso com um brasileiro; e no Brasil. Imagina s o que no praticam l na

    democracia deles. Vou ficar aguardando o resultado das tuas gestes aqui mesmo no telex.

    Passam cinco minutos. Dez. Uma hora. Tudo mais longo, arrastado e agoniante do

    que os trs dias, etc. dos chineses. Mas, de repente, a mquina estala e comea a

    escrever o - uff! - happy end desta edificante novela de pacincia asitica, suspense,

    emoo, persistncia, dio entre as grandes potncias comunistas e, afinal, triunfo do

    mocinho:

    - Amigo Flvio, mais uma vitria da democracia! O Valentim recuou em sua

    prfida atitude e teu passaporte acaba de ser posto em nosso malote, seguindo hoje noite

    para Porto Alegre. Boa viagem! . . .

    E foi assim que, apesar de toda a solerte obstaculizao do social-comunismo revi

    sionista da Unio Sovitica, estou agora apertando os cintos e no fumando, enquanto o

    Boeing da Companhia de Aviao Civil da China se prepara para aterrar no aeroporto

    deserto de Shangai, nesta noite crivada de estrelas vermelhas de 26 de setembro de 1975. . .

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Shangai

    No ltimo degrau da escada do avio, bem naquele que fica junto ao solo, fao uma

    operao de troca-de-passo e acabo pisando com o p direito em territrio chins. So sete

    e meia da noite e um calor opressivo me agride, enquanto sigo para a Polcia e para a

    Alfndega. Olho em todas as direes e, na pista do aeroporto, alm do nosso, s vejo um

    outro avio - um Trident de fabricao inglesa. Minha primeira impresso da China de

    que estou numa terra quente, muito pouco iluminada e num aeroporto interditado. Entro no saguo do prdio, cujas caractersticas, do lado de fora, mal posso distinguir. A direita, por

    detrs de um balco alto, de quase dois metros, sobressaem as cabeas - apenas - de dois rapazes. De seus

    trajes, s percebo os bons verdes, com uma desproporcional estrela de plstico vermelho ao centro. Entrego-

    lhes a declarao especificada de todo o dinheiro que levo, uma relao dos gravadores e mquina

    fotogrfica, nmero de fitas e filmes, e o passaporte. Este somente me seria devolvido em Kwelin quase duas

    semanas mais tarde, j s vsperas de deixarmos a China. Na Alfndega o exame da bagagem rpido, corts

    e sumrios.

    nesse momento que somos apresentados a dois dos scorts que nos acompanhariam durante todo o

    tempo: o senhor Li, que mais tarde concluimos ser uma espcie de comissrio do povo, e o senhor Mi, este

    falando um portugus quase perfeito s que com indisfarvel sotaque alemo. O senhor Li se manifestava

    apenas em chins mas irradiava bonomia, dentro dos seus setenta quilos, socados em metro e sessenta de

    altura. J o senhorr Mi era alto e esguio, e nas maneiras, na postura das mos e no ar encabulado, com que

    coava os cabelos, quando se via embaraado com alguma pergunta - dava a perfeita impresso de um

    seminarista dos bons tempos.

    ele quem traduz as primeiras palavras - formuladas atravs de discurso solene e

    secundadas por palmas dos viajantes - que o senhor Li nos desfere textualmente: - Somos

    representantes da Luching-She, que a Agncia Geral de Turismo na China e queremos

    dar boas vindas aos amigos brasileiros. Entre os povos do Brasil e da China existe uma

    amizade tradicional, sobretudo depois do estabelecimento das relaes diplomticas entre

    nossos pases, o que abriu uma nova pgina em nossa histria. Os amigos atravessaram

    oceanos e montanhas e percorreram uma longa distncia para chegar China e por isso nos

    sentimos muito felizes e alegres com sua presena. Estamos convencidos de que a vossa

    visita vai contribuir desta feita para a promoo da amizade entre o povo brasileiro e o

    chins. A cidade de Shangai que a primeira que visitaro, se localiza na zona subtropical.

    Em agosto faz calor e em janeiro frio. A temperatura mdia anual de 15 graus. Shangai

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    o centro da indstria pesada chinesa, fica na confluncia dos rios Huang-Pu e Su-Zhov e

    tem 11 milhes de habitantes, numa rea de 145 quilmetros quadrados. Em qualquer

    momento, se tiverem alguma critica a nos fazer, que a formulem, pois nosso objetivo v-

    los felizes.

    Nossas malas j foram embarcadas no porta-bagagem de um nibus cinza e dentro

    dele, com o motorista a buzinar incessantemente, percorremos os vinte mal iluminados

    quilmetros que separam o Aeroporto de Shangai do Grande Hotel, onde ficaremos

    hospedados.

    O calor aumenta medida em que nos aproximamos da cidade. Ao cruzarmos os

    primeiros subrbios, ele se torna gelatinoso, mido, gosmento. Diante de casas pobres e

    cinzentas, gente pobre e cinzenta senta em cadeiras de vime, as mulheres com tnica e

    calas compridas e os homens, em sua maioria, de short e camiseta de fsica.

    Carroas transbordando de verdura e puxadas por magros cavalos desfilam nossa

    frente, o motorista do nibus a buzinar cada vez mais freneticamente. Ciclistas, s

    centenas, e logo aos milhares, apenas com muita relutncia, cedem passagem ao carro, que

    meia hora depois nos despeja no ptio interno e despersonificado do Hotel Shangai. Um

    imponente prdio de tijolos vitorianos e aparentes, construdo pelos ingleses no incio do

    sculo e que foi um dos mais famosos da China, servindo de motivos a romnticas histrias

    de Vicki Baun.

    Shangai, desde meados do sculo passado, quando submetida fora de

    canhonaos pelo imperialismo britnico, foi a grande cidade porturia e cosmopolita da

    China e ainda hoje guarda traos desse seu status.

    J no dia seguinte, luz do sol, vamos concluir que ela possui muito mais

    caractersticas europias do que propriamente chinesa. Mas por enquanto estamos no velho

    hotel, os quartos so distribudos no saguo, ns subimos primeiro, as malas vo depois.

    No nos do chaves. Estas ficam em mos de vigias, um em cada andar. O meu o oitavo,

    apartamento 820, com as janelas da direita para o rio Huang-Pu e as da esquerda para a

    Chuan Lu, uma das mais movimentadas ruas da cidade. um quarto enorme e obsoleto, o

    p direito com cerca de quatro metros de altura e com uma rea de pelo mnimo trinta

    metros quadrados, o mau gosto megalmano ingls at hoje pre-Hente na China. .. As

    janelas so protegidas por telas e vidro e este, mesmo fechado, no consegue deter a

    infernal barulheira que vem l de baixo, seja a da buzina dos nibus (pois automveis at

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    ento no vira nenhum), seja a dos alto-falantes dos barcos que sobem e descem o rio num

    desfilar intermitente de procisso. Um descomunal radiador de calefao revela que deve

    fazer frio no inverno, mas em compensao, contra o calor s posso contar com um

    pequeno ventilador de fabricao chinesa, sobre a mesinha de cabeceira, entre as duas

    camas de solteiro postadas no quarto. Alm destas, o parco mobilirio se constitui de uma

    cmoda, to fora de moda quanto os britnicos que a utilizaram; e uma secretaria. Sobre

    ela, dois vidros de tinta e - o que faz com que me transporte em transio para os distantes

    tempos do ginsio do Rosrio

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Pequim noite.

    Pela amostra, e se os dias subseqentes forem mantidos nesse ritmo, tenho a

    impresso de que acabarei desistindo pelo caminho, falta de resistncia fsica, ou ento

    tomando um verdadeiro cursilho de China. Como se ver mais adiante, temo ter sido a

    segunda hiptese a que aconteceu. . .

    O jantar simples, mas chins e abundante: arroz sem sal em tigelas, naturalmente,

    camaro ensopado, uma espcie suspeita de nabo cozido, galinha com pimento e porco

    com abacaxi. A cozinha de Shangai no das mais reputadas na China, cuja tradio de

    gourmandise se concentra em Pequim e em Canto, conforme o guloso leitor ter a

    oportunidade de degustar mais tarde, ao longo dessas andanas que recm iniciamos. A

    ceia termina com seu prato de encerramento que, na China, sempre constitudo por uma

    sopa de massa ou legumes.

    Sobremesas, sentiam muito mas estavam em falta, caf no se aprecia na China,

    em compensao nos servem ch verde, o primeiro de uma srie intermitente que s se

    encerraria ao final da viagem. A ento, mesmo os que fumam se levantam apressadamente

    para conhecer a Loja da Amizade, que fica logo ali, cruzando a ponte e o Parque e onde se

    vendem artigos exclusivamente para os amigos visitantes estrangeiros, como ns.

    So onze da noite e estamos voltando da Loja da Amizade, um prdio de trs

    andares, sem elevador, tipo grande magazine, s que em termos modestos e chineses. Ali

    h o essencial em matria de vesturio, algo de sapatos e sandlias e muito de

    quinquilharias, todas de mau gosto. As antigidades dos Ming ficam para mais tarde e so

    vendidas em casas especializadas, tudo sempre controlado pelo estado. na Loja da

    Amizade que trocamos nossos primeiros dlares, na base de um dlar = 1,90 yuans. O

    yuan, por sua vez, dividido em 100 jiaos. Um jovem operrio em incio de carreira ganha

    35 yuans mensais, que o menor dos oito nveis de salrio, dentro dos quais se enquadram

    todos os chineses. Importante salientar que o que mais ganha no pode ultrapassar em oito

    e no mximo dez vezes o nvel do menor salrio. No h, assim, diferenas flagrantes entre

    ricos (que no existem) e os pobres (que no so miserveis).

    A revoluo de Mao realizou, de fato, uma igualdade que, em parte alguma do

    mundo, o socialismo conseguiu. S que o nivelamento muito por baixo. Em

    compensao, como se ver mais adiante, quando nos embrenharmos nos caminhos da

    economia chinesa, no h desemprego, ningum passa fome e mesmo quem percebe o

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    salrio mnimo de 35 yuans (que equivale a mais ou menos Cr$ 150,00 pelo cmbio atual)

    pode levar uma vida modesta, mas decente, comendo trs vezes por dia, comprando dois

    traje mao por ano e indo ao seu cineminha ou sua operazinha. Nesses, bem como atravs

    de todo e qualquer meio de comunicao por ele tentacularmente controlado, o governo lhe

    aplica sua doutrinao poltica, subliminar ou escancaradamente.

    Embolso os 190 yuans que me deram pelos cem dlares que troquei e compro por

    16 um mao azul acompanhado do respectivo bon, duas camisas e dois pares de meia de

    algodo. Alpargatas ou tnis (que eu precisava, pois s tinha levado roupas e calados de

    inverno) que no consigo. Os chineses, inclusive os homens e mesmo depois da

    revoluo cultural, continuam com ps incrivelmente pequenos, e nmeros acima de 40 so

    fabricados quase que exclusivamente para os amigos visitantes estrangeiros, cujo ltimo

    grupo, constitudo de hordas blgaras, havia levado justamente o meu nmero.

    Entre o Parque da Loja da Amizade e o Hotel h uma ponte de ferro sobre o

    Huang-Pu. So quase onze da noite, mas apesar do chins, de uma maneira geral dormir

    cedo, h ainda muito movimento, principalmente de ciclistas. Sobre o balaustre da ponte,

    esquerda de quem vai para o hotel, vislumbro, em meio ao escurinho, trs casais jovens,

    mais agarrados um ao outro do que em suas bicicletas, postas ao lado. Mi e Li desviam

    abruptamente os olhos da terrvel cena. que o sexo uma das coisas mais proibidas na

    China. Ele deve ser refreado pela mulher at os 25 anos e, pelo homem at os 30, sob pena

    de um ou outro ser considerado revisionista e, como tal, sofrer as respectivas sanes.

    Todos os autores que eu li, todos os estrangeiros que visitaram ou que moram na China,

    com os quais conversei so unnimes a esse respeito. O chins, tanto o homem como a

    mulher, aparenta guardar a castidade at o casamento; e s se casa com licena das

    autoridades competentes - no caso o Comit Revolucionrio - depois de ter cruzado a idade

    mnima limite. At l, deve manter-se assexuado. Isso motivado pelo verdadeiro pavor do

    governo ante a exploso demogrfica, pavor to flagrante que o obriga a uma (tambm

    aparente) poltica de avestruz, a ponto de ter realizado o ltimo recenseamento do pas em

    1953 e de no saber (pelo menos oficialmente) quantos habitantes tem a China. Sinlogos

    criteriosos, contudo, estimam que a populao da nao chinesa, neste quase final de 1975

    anda por volta dos 860-940 milhes de habitantes e que, apesar de todos os empecilhos

    interpostos entre os sexos ditos opostos, o ndice de crescimento demo grfico se mantm

    na assustadora ordem dos 2% anuais. A plula anticoncepcional fabricada e distribuda

    macia e gratuitamente. Rdio, TV, jornais impressos ou murais, alto-falantes e Comits

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Revolucionrios pregam violentamente o controle da natalidade (que eufemisticamente

    denominam planejamento familiar). Mas assim mesmo inmeros casos de rebeldia se

    verificam no s nas cidades como, principalmente, nos campos.

    - O campons o principal problema - me confiou ao longo da viagem um dos

    amigos chineses. E explicou:

    - que eles, por uma tradio instilada pelo maldito Confcio, no param de

    procriar enquanto no lhes vem um filho varo. E h casos de encontrarmos nas comunas

    famlias com oito, dez e at mesmo doze filhos.

    O aborto livre, estimulado e praticado gratuitamente e com anestesia acupuntural.

    Apesar de tudo isso (e esta observao pessoal minha), nunca vi tanta criana em

    parte alguma do mundo como na China - seja nas cidade, seja nos campos. O governo

    insiste e muitas vezes apela para sanes mais ou menos violentas. Nas universidades,

    quando se manifesta algum caso de amor (ou mesmo tentativa de namoro) entre dois

    jovens, eles so denunciados ao Comit Revolucionrio (porque ali como em toda a China

    reina o regime da vigilncia recproca - ou do dedo-duro, para falarmos bem claro) e os

    responsveis, seja por mozinhas-dadas, seja por olhares furtivos, so levados ao Conselho

    de Disciplina, diante do qual, se no se retratarem e prometerem nunca mais olhar um para

    o outro (e muito menos se tocarem) at completar (ele) 30 anos e (ela) 25 - sero punidos

    com a expulso e imediata transferncia para longnquas e separadas provncias. . . Sob o ponto de vista sexual, a China vive sob um verdadeiro regime de terror, iniciado com a

    reeducao das prostitutas e dos homossexuais, que ou se converteram ou foram eliminados fisicamente; e

    que prossegue ainda hoje, com interferncias, at na vida do casal j legitimamente constitudo dentro dos

    mais rgidos pensamentos de Mao-Ts-Tung. Este, para ter um terceiro filho deve pedir licena ao Comit

    Revolucionrio, o qual normalmente nega sua autorizao. Se o casal desobedecer a ordem, o aborto

    sugerido e se no for realizado e a criana nascer, a mulher ou o homem so automaticamente separados, um

    ou outro transferido para um local distante e inacessvel, somente lhes sendo concedida autorizao para se

    visitarem de ano em ano, assim mesmo com a especfica e determinante ordem de no procriar.

    No sexo, como em muitas coisas mais, a China contraria a natureza humana. Mas,

    apesar de todo o terror repressivo, casaizinhos se tocam e se amam nessa noite clida de

    Shangai, sobre a ponte de ferro do Huang-Pu, luz do luar. . .

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Acupuntura

    De repente, me dou conta e comeo rir sozinho: h quanto tempo eu no vivia essa

    situao - comear a engatinhar numa terra estranha. . . So cinco da madrugada de sbado,

    27 de setembro e cansei de me revirar na cama molhada de suor. Mesmo com o ventilador

    virado em minha direo, sinto muito calor. H ainda o toe-toe-toe incessante dos barcos

    subindo e descendo o Huang-Pu, os seus condutores berrando pelos alto-falantes portteis

    presumveis ordens de afastem-se do caminho. Meto-me debaixo da ducha fria,

    cuidando para no escorregar dentro da banheira suja e encardida, esfrego-me

    violentamente com a toalha tambm suspeita, visto minhas blue-jeans e uma camisa de

    algodo que comprei ontem por dois dlares na Loja da Amizade, em cuja frente est

    escrito despudoradamente Shangai, em vermelho. Sento numa das duas poltronas do

    quarto, ao lado de uma mesinha, onde abro a trmica azul decorada com motivos florais

    horrorosos e despejo a gua quente num cilindro de loua, dentro do qual botei antes duas

    colheres de ch de jasmim que vspera o camareiro ali havia deixado numa caixinha de

    lata. Enquanto as folhas de ch vo decantando, comea a clarear. E em seguida tudo

    inundado por uma das constante infernais que deveria me acompanhar por quase toda a

    China: o buzinar dos nibus. Chego at um dos janeles do quarto e, o sol j despontando,

    vislumbro uma cena inacreditvel. Por toda a parte, minha frente, desde a calada

    defronte ao hotel at o parque do outro lado do rio, centenas, seno milhares de criaturas -

    homens, mulheres e crianas - postam-se nas mais variadas posies, praticando bizarros

    movimentos com as mos, os ps e os troncos. a calistenia chinesa, a ginstica praticada

    diariamente - e durante um perodo que vai de meia a uma hora - pela imensa maioria da

    populao, seguindo, naturalmente, os pensamentos de Mao-Ts-Tung. O curioso que

    ningum os comanda, cada um improvisa ou cria seus prprios gestos - o que no deixa de

    ser confortador entre um povo altamente disciplinado e certo, que no deve fazer outra

    coisa seno cumprir a rigidez fsica e moral programada por seus chefes. Fico mais de hora

    a assistir ao fenmeno, at telefonarem que o caf est na mesa. E quando pego o elevador

    para o refeitrio do primeiro andar, no chego ainda a concluir se estou vivendo em

    Esparta ou num disciplinado Colgio Jesuta dos inquisitoriais tempos. . .

    O caf tipo ocidental, composto do propriamente dito ou de ch, acompanhado de

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    torradas, gelias e ovos de pato fritos com fatias de bacon. Sorvo-o sem muita gana, pois

    j havia tomado trs xcaras de ch de jasmim, mas, nesse comeo de dia, no deixo de

    sentir-me feliz, contente, e de certo modo integrado no pas que to gentilmente me recebe.

    que poucos minutos antes, quando me preparava para descer, uma mosca (evidentemente

    revisionista) entrou pela janela, fez vrias piruetas e pousou em meu nariz. No tive a

    menor hesitao nem a mnima dvida me assaltou, em minha consciente e convicta

    determinao - e com violenta bofetada esfacelei o repugnante inseto contra a prpria

    epiderme. Ora, eu sabia que, de acordo com a severa instruo do presidente Mao, cada

    chins tinha a obrigao de matar pelo menos dez deles por dia. Assim eu, mesmo como

    amigo estrangeiro comeava bem o dia, com aquela morte modesta, mas sincera

    homenagem Revoluo Cultural.

    Cheguei mesmo a revelar o episdio a Mi, que com amplo (e amarelo) sorriso

    aprovou minha colaborao e, at mesmo, a comunicou ao comissrio Li, o qual fez-me (e

    Mi pressurosamente traduziu) um pequeno, porm belo, discurso de agradecimento. Dito o

    que, pegamos o nibus e - ousados navegantes em meio a um mar de ciclistas rumamos

    para o Hospital Hu-Chan, anexo n. 1 do Instituto de Medicina de Shangai. Depois do ch

    inicial, na sala de visitas e das explicaes que sempre muito gentilmente nos ministraram

    genericamente - em Shangai h 430 hospitais, com 50.000 leitos, atendidos por 13.000

    mdicos - passaram a particularizar sua situao. O Hu-Chan uma das casas de sade

    mais sofisticadas da cidade, especializada em neurologia, cirurgia em geral,

    endocrinologia, dermatologia, alm de praticar a medicina tradicional chinesa, seja pura

    seja em combinao com a ocidental. 200 mdicos e 700 funcionrios ali trabalham, mas

    no em carter permanente, j que, devido a outro pensamento do presidente Mao, o centro

    de gravidade da medicina deve situar-se no campo. Assim sendo, o Hospital mantm

    permanentemente cerca de 25% de seu efetivo fora dos centros urbanos, atendendo os

    camponeses e, inclusive, cultivando ervas que a medicina tradicional chinesa emprega com

    tanta abundncia e, ao que parece, com muito bons resultados. Como h cinco mdicos

    brasileiros em nosso grupo, as perguntas descem a mincias, mas quando se tornam

    incmodas, geralmente so respondidas por um ah! isso ns no sabemos. No sabiam,

    pois, qual a doena que mais afeta a populao, ignoravam o ndice de enfermidades

    mentais, desconheciam o grau de anemia da populao e as endemias mais presentes no

    pas.

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Mas a respeito de acupuntura, sabiam quase tudo, menos, claro - e isso ningum

    sabe - como funcionava, qual seu embasamento cientfico. Mas que ela agia com eficincia

    pragmtica, isso logo em seguida pudemos ver, ao alto de um salo de cujo piso

    sobressaiam, a uma distncia de dez metros e separadas por uma porta aberta, duas cpulas

    de vidro. L em baixo, duas operaes se desenrolavam. Uma de extirpao de tumor na

    tireide de uma moa de 25 anos de idade e, na outra sala, a de extrao de outro tumor, s

    que no crebro de um homem gordo, cuja fisionomia no vimos, percebemos apenas sua

    cabea raspada, britada por brocas e serras, at o tampo sseo cerebral ser retirado. A

    menina tinha duas agulhas cravadas nas mos e era tudo. Estava descontrada, olhava para

    cima, para ns; e sorria. O homem parecia um porco em matadouro, branco e flcido - e tal

    impresso se acentuou ainda mais, quando, retirada parte de sua caixa craniana, uma

    sangeira medonha cobriu suas feies. No pude (e muito menos os mdicos brasileiros),

    perceber se ele estava dormindo ou acordado. Alguns, os mais cticos, disseram que

    forosamente estava anestesiado ocidental. Mas, a no ser a pequena caixinha que

    transmite uma corrente de eletricidade s agulhas acupunturais, nenhuma engenhoca

    anestsica estava presente nas imediaes. No me lembro bem com quantas agulhas o

    operado-cerebral ora insensibilizado, parece-me que com cinco. Ficamos ali por volta mais

    de hora e no pudemos assistir o resultado das operaes. Mas, segundo nos afirmaram os

    mdicos chineses (e muitos autores ocidentais confirmam), o xito da anestesia

    acupuntural pelo menos igual - e em muitos casos superior - ao obtido pela anestesia

    clssica praticada no Ocidente. E h, sobretudo, a grande vantagem da eliminao

    completa dos acidentes operatrios e ps-operatrios provocados pela ingesto de drogas

    insensibilizantes. A acupuntura, que os chineses j praticavam h mais de 4.000 anos, foi

    desenvolvida depois que os comunistas tomaram conta do poder na China e tem sido um

    dos fatores que mais contriburam para o desenvolvimento da medicina num pas pobre

    que, graas a ela, pode mandar seus mdicos realizar operaes nas regies mais

    desprovidas de recursos, usando apenas um punhado de agulhas pouco diferentes das que

    os ocidentais empregam para aplicar injeo. Como esse assunto sempre me fascinou e

    como j tinha lido muita coisa a respeito, crivei os mdicos chineses com o mesmo nmero

    de perguntas que lhes formularam seus colegas brasileiros. De suas respostas, os leitores

    podero, certamente, tirar suas prprias e- quem sabe? - definitivas concluses.

    Dizem que nos confins da histria, um guerreiro que sofria de dores atrozes nas

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    costas, levou um flechao na perna e ficou com a ponta da arma ali cravada sem poder

    retir-la. Quando voltou para o acampamento, a perna doa, sim, mas a dor lombar que h

    tantos anos o atormentava, havia desaparecido por completo. Especulao vai, especulao

    vem, sculo chega, sculo passa (nunca nos esquecendo que estamos na China, onde o

    tempo no conta) e os curandeiros da poca acabaram por concluir que uma picada, numa

    determinada parte do corpo podia fazer eliminar a dor em outra regio. E assim, sempre

    numa evoluo muito lenta e paciente, foram substituindo as agulhas de slex pelas de

    osso, mais tarde pelas de bronze, ferro - at chegarmos ao estgio atual das de ao. As

    quais, mais recentemente ainda, passaram a ter a cabea cobreada. que as agulhas de

    acupuntura para anestesiar, devem ser constantemente viradas, durante todo o tempo da

    operao. Para evitar tal trabalheira, os modernos cientistas chineses decidiram aplicar em

    cada agulha uma diminuta corrente eltrica contnua, fornecida por quatro pilhas comuns,

    dessas que se usam em rdios transistores, passando a eletricidade a fazer o mesmo efeito

    da anterior manipulao. Assim, com um custo praticamente zero, a medicina chinesa

    anestesia pacientes das mais melindrosas operaes, inclusive as de corao extra

    corpreas. Para um pas pobre e doente, fcil depreender-se o benefcio que tal

    proporcionou. Desde a Revoluo de 1949 para c (e essa estatstica, sim, eles sabem e

    revelam), mais de um milho de operaes por acupuntura foram realizadas com sucesso

    superior a 90%. Quase todas as partes do corpo humano podem ser insensibilizadas, com

    exceo de algumas zonas no ventre profundo. Assim mesmo todas as intervenes

    ginecolgicas so realizadas com acupuntura, sem que a paciente sinta qualquer espcie de

    dor. A acupuntura (do latim acus = agulha; punctura = picada) - que como quase toda a

    medicina tradicional foi semi-esquecida desde que os ocidentais comearam a dominar a

    China - foi revivida por Mao-Ts-Tung e seus companheiros, durante a guerra que

    moveram a Chiang Kai-Shek, por razes principalmente objetivas e pragmticas.

    Escondendo-se nas montanhas, sem recursos, sem medicamentos e sem anestsicos, e com

    centenas e s vezes milhares de soldados feridos, Mao vislumbrou na acupuntura e nas

    ervas o nico remdio para os males fsicos de seus guerreiros.

    E a cincia (ou arte? ou mistrio? ou bruxaria?) da acupuntura, juntamente com o

    tambm ressuscitado emprego das ervas medicinais para a cura de doenas e de feridas,

    desempenhou um papel muito mais importante do que se possa imaginar para a vitria

    militar do comunismo na China.

    Atualmente (e sempre por ordem do governo) a acupuntura uma das pesquisas

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    mdicas prioritrias na China. S que at agora, ningum sabe como funciona. Mas

    funciona.

    Por enquanto (e sabe l Deus at quando) h apenas teorias sobre a maneira como

    as agulhas inibem a dor no corpo humano. Dessas, a em maior voga de que o homem

    (como de resto todo o universo) regido por dois princpios, um passivo e outro ativo. O

    ativo o Yang, que representa o dia, a luz, o vero, o calor, o seco, o exterior, o homem e o

    trabalho. O outro, o passivo, o Yin, que traduz a noite, a escurido, o inverno, o frio, a

    umidade, o interior, a mulher e o descanso. O rompimento do equilbrio entre o Yang e o

    Yin, no caso especfico do corpo humano, que provoca as doenas. Essas, sempre

    segundo os filsofos acupunturistas chineses, podem ser combatidas (como a medicina

    ocidental o faz), com drogas; mas a os mdicos apenas estaro destruindo

    momentaneamente um hspede indesejvel (no caso um vrus, um micrbio ou um bacilo),

    ao passo que a porta de entrada para tais inimigos - com o rompimento entre nossos

    princpios ativos e passivos - continua aberta e qualquer um deles,- mais cedo ou mais

    tarde, por ali poder entrar. .. Ora, a acupuntura restabelece (eles no sabem como) o to

    desejado equilbrio, fazendo com que novamente o Yang e o Yin se reconciliem e o ser

    humano se livre de seus males. . .

    - Isso no est parecendo um pouco demais conto da Carochinha, Mi?

    Mi no sabe traduzir a Carochinha, mas transmite ao mdico- o significado da

    pergunta. Samos agora da sala das cpulas sob as quais as operaes prosseguem e

    estamos tomando ch (de jasmim), fumando cigarros chineses conversando com trs

    mdicos, mais dois membros do Comit Revolucionrio do Hospital, tudo supervisionado

    pelo delegado do Comit do Partido Comunista.

    Os mdicos respondem que, incrementado como foi pelo governo, o estudo da

    acupuntura progrediu muito, mas sempre no terreno emprico. Atualmente j foram

    detectados, catalogados e so manipulados 361 pontos nevrlgicos, cada um

    insensibilizando uma regio do organismo. Em casos de emergncia (como o o da

    preparao dos mdicos de ps-descalos - que por sinal, juntamente com a medicina

    tradicional chinesa, merecero um captulo parte nessas histrias) pode-se formar um

    acupunturista em at cem dias, em cujo perodo ele chega a conhecer os pontos

    elementares. Como regra geral, o estudo e a preparao de um acupunturista competente

    pode estender-se de um a dez anos. As primeiras lies so de anatomia-neurolgica em

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    bonecos, onde os pontos so assinalados em preto e vermelho, dependendo de sua

    importncia. Depois, nas experincias prticas, o manequim coberto de cera e o estudante

    deve aplicar as agulhas exatamente nos locais que lhe forem sendo indicados. A percia dos

    acupunturistas diablica e dificilmente erram a pontaria. Uma vez espetadas as agulhas,

    quinze minutos mais tarde, a rea dolorida (ou a ser insensibilizada) est completamente

    isolada. A prova disso eu fui ter mais tarde quando, no Hospital da cidade de Chang-Sha,

    juntamente com um mdico brasileiro fui crivado de agulhas, as quais, se bem que

    doessem em sua aplicao, eliminaram por completo no s as dores que me afligiam (ah!

    quase todas!) bem como uma insnia que me perseguia desde que desembarquei na China.

    - Mas isso no se trata de sugesto, doutor? - quer saber um dos Santos Toms

    brasileiros. Ou, quem sabe, de hipnose?

    A pergunta feita em francs que o chins entende e responde sem hesitar:

    - No acredito. verdade que o paciente preparado psicologicamente antes da

    operao, ficando convicto de que todo o receio de dor do qual ele possa ser tomado (e que

    no fundo no passa de mero sentimento burgus) no o deve perturbar. Que ele deve

    confiar nos pensamentos do nosso grande presidente Mao-Ts-Tung e que no sentir

    absolutamente nada.

    - Eu no te disse que era coisa de chins; e de chins comunista? - me sussurra um

    mdico do grupo, do qual j comeo a aprender o nome e a cincia.

    - Olha, no sei no. Pelo que eu estou informado, eles operam criancinhas com

    meses de idade e at mesmo animais - e ambos pelo que me consta (e at prova em

    contrrio) ainda no esto influenciados pelo livrinho vermelho do grande lder. . .

    O mdico brasileiro no se conforma:

    - Doutor, a partir de que idade um ser humano pode ser sensibilizado pela

    acupuntura? H, na China, casos de realizarem operaes com agulhas em animais sem

    que esses sintam dor?

    - Em princpio, temos operado crianas com apenas trs meses sem nenhuma

    manifestao dolorosa por parte delas. E em laboratrios, ces e gatos so acupunturados e

    depois at mesmo dissecados sem que demonstrem qualquer sensao.

    O ch termina, a conversa tambm.

    sada, o mdico carioca pede a Mi que o leve a uma farmcia e ali compra por

    menos de 30 dlares, um equipamento completo de acupuntura, inclusive a caixa eltrica e

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    dez jogos com os nove tipos de agulha empregados na anestesia chinesa. Eu, mais modesto

    e menos mdico, compro apenas um boneco com os 361 pontos, mais um jogo de nove

    agulhas.

    Total, nunca vi feitiaria sem feiticeiro - nem feiticeiro sem aprendiz. . .

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    pera de Pequim

    Durante os quinze dias em que visitei a China, no tive um nico perodo de

    descanso nem de intimidade comigo mesmo - ou um dia livre para compras, como as

    agncias de turismo fazem constar em seus tentadores, mas nem sempre realistas,

    prospectos de viagem. De manhzinha cedo at noite o bate-bate era incessante e

    ininterrupto - e a ordem de nosso programa, determinada com antecedncia, foi

    rigorosamente cumprida. Assim, sem percebermos, fomos sendo sub-repticiamente

    minados pela mesma espcie de lavagem cerebral que dia e noite transmitida a

    novecentos milhes de chineses, por todos os meios de comunicao existentes e que, sem

    exceo, so manipulados pelo governo. Os veculos empregados para nos ministrar esse

    verdadeiro cursilho de China eram constitudos por nosso guias, primordialmente, e em

    poes menos macias, pelos livretos, catlogos e revistas que nos forneciam. Havia,

    tambm, uma certa dose de udio-visual, esta felizmente de curta durao, como foi o caso

    da pera de Pequim, a que assistimos na noite imediata nossa chegada no principal

    Teatro de Shangai. Nenhum de nosso grupo se surpreendeu, portanto, quando certa altura

    da viagem passamos a nos referir a Mao-Ts-Tung como o presidente Mao (alguns, mais

    sensveis chegaram a dizer o nosso grande presidente Mao) e a Chou-en-Lai como o

    camarada Chou, ou ento o glorioso Primeiro Ministro Chou. . .

    Passamos a abominar os soviticos como membros da camarilha revisionista

    chefiada pelo abjecto Brejnev; Kruchev se tornou sinnimo de traidor abominvel da

    causa das massas socialistas, o social imperialismo russo nos pareceu muito mais

    solerte e perigoso do que o imperialismo americano, este afinal em melanclico recuo no

    mundo inteiro, desde que foi aplastado pelo herico povo do Vietn do Norte, nosso

    amigo e nosso irmo.

    Ao fim da primeira semana de viagem, muitos achavam at agradvel o zurrar dos

    alto-falantes que subiam aos nossos quartos, outros acreditavam cmodo, espartano e

    edificante no ter nenhuma bebida gelada ou ar condicionado e dormir imersos em nuvens

    de mosquito. Mas vi a coisa ficar feia mesmo e que estava na hora de acordar quando,

    depois de uma visita a uma fbrica, e sabedor que os chefes de servio pediam que seus

    salrios fossem rebaixados e se igualassem aos dos subalternos para apressarmos o

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    socialismo e diminuirmos a diferena entre as classes - um bem sucedido corretor de

    imveis no Rio de Janeiro, tido at ento como o mais reacionrio dentre ns, disse que

    estava certo, que era aquilo mesmo e que, quando chegssemos ao Brasil, deveramos

    proceder da mesma forma.

    - Mas qual a tua Michel? ests ficando louco? - atirei-lhe com veemncia e cheio

    de medo que sua argumentao alucinada chegasse aos ouvidos do meu patro, l na

    longnqua Porto Alegre. . .

    - Louco nada, seu. V s quem mais feliz: eles ou ns? Todos certinhos,

    vestidinhos iguais, comendo a mesma coisa, lendo o mesmo livrinho vermelhinho,

    ganhando parelho, dormindo e acordando hora exata, sem ter que gastar com psicanalista

    (que aqui no h), sem se preocupar em pagar imposto de renda (que aqui no existe), sem

    se importar com o aumento da gasolina (que todos andam de bicicleta), sem temer

    resfriado (que aqui no tem gelo), sem ter ressaca (que no se encontra usque nem de

    contrabando), sem ter que fazer dieta (que a comida toda contadinha), sem. .. A esta

    altura e j cercado por um considervel grupo de patrcios, felizmente ofendidos e

    despertados de sua prpria lavagem cerebral pela sbita catarse do companheiro, Michel

    salvo seguramente de um linchamento (ou tentativa de) por Mi, que se embrenhou em

    nosso meio para dizer-nos, com seu inconfundvel sotaque sino-germnico, que senhorres

    est na horra de irr para a perra de Pequim.

    A pera de Pequim, bem como todas as representaes teatrais e televisionadas,

    faz parte da bateria de instrumentos de que o governo se vale para lavar o crebro do povo.

    Todas as exibies, todos os temas, todas as canes so de fundo poltico. De um lado, os

    bandidos, representados pelos imperialistas, que ora tiram o plo dos japoneses, ora dos

    americanos e ultimamente muito mais dos russos; e do outro os mocinhos, tendo frente

    um heri legendrio do exrcito vermelho, no caso o camarada-soldado Ta-Chun, que

    acaba salvando os aldees ou a mocinha, perseguidos e espoliados, matando os inimigos

    das massas ou, na melhor ou mais caridosa das hipteses, aplicando-lhes um tratamento de

    reeducao anti-revisionista.

    Entramos no recinto com o espetculo j comeado, justamente numa dessas partes

    crticas. Nosso nibus tinha atrasado, to grande a multido que o cercara momentos antes

    para ver os amigos estrangeiros. A custo abrimos alas e entramos numa platia formada

    por mais de duas mil pessoas, em sua quase totalidade chineses. As nicas excees

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    ramos ns, um grupo de blgaros e outro que me pareceu de escandinavos. Aquela noite,

    como reforo para ajudar a Mi e Li, tinha chegado de Pequim uma nova intrprete: Lu,

    moa baixinha e gordinha que falava portugus quase to bem como ns (e, para ser

    franco, melhor do que muitos do grupo) e que sentada em nosso meio ia traduzindo as

    cantorias.

    L no palco, a mocinha, vtima das perseguies imperialista chorava, cantava e

    contava em tons agudos a sua histria:

    _ Sou filha de um caador que fugiu diante da perseguio dos bandidos

    imperialistas e espoliadores (choro). Papai jogou-se num abismo e mame e eu nos

    escondemos nessas matas. Desde ento fingi de muda e s ando com roupas de rapaz.

    (choro e gestos). Espero que agora com tua presena e a do Exrcito Libertador, oh! Ta-

    Chun, o sol ilumine de novo nossas montanhas, os bandidos revisionistas (e imperialistas)

    sejam eliminados e eu possa me vestir de moa outra vez e voar para o alto, afim de ver o

    extermnio dos inimigos das massas. (A platia explode em aplausos. Ns tambm).

    Ta-Chun responde em cantos e gestos hericos, o fuzil na mo:

    (Novos e histricos aplausos no princpio, meio e fim)

    - Oh! pequena e desamparada Tchau-Pao! Cada uma de tuas palavras me despertou

    grande indignao. Neste mundo os oprimidos tm um registro com dvidas e com saldo

    (positivo). Devemos nos vingar! A dvida de sangue deve ser eliminada com sangue!

    Vamos matar esses abutres e o povo se libertar, levantar a cabea e o sol aparecer por

    sobre essa montanha encoberta. (hurras chineses entre os assistentes).

    Daqui em diante sigamos o salvador, que o nosso grande presidente Mao, seu

    Livro Vermelho e o invencvel Partido Comunista da China, esmagando os vermes scio-

    imperial-capitalistas e mudando a fisionomia desses lugares. Ento os bonitos dias sero

    mais bonitos ainda.

    Dito o que, Ta-Chun e seus soldados saem em perseguio da camarilha

    revisionista inimiga que debanda desordenadamente, deixando mortos e feridos a estertorar

    pelo palco inteiro. No deu para ver se Ta-Chun chegou a casar com Tchau-Pao porque o

    entusiasmo foi to grande na platia, toda ela de p, batendo palmas e vibrando gritos de

    aplauso - que perdi a viso do palco e dos acontecimentos. Mas tudo me leva a crer que

    sim, que se casaram e que foram felizes para sempre, mesmo porque Tchau-Pao aparentava

    muito mais do que vinte e cinco anos e Ta-Chun tinha ares de quarento, o que, de acordo

    com o pensamento do grande presidente Mao autorizaria o enlace. Desde que, claro,

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    prometessem no procriar mais do que dois filhos.

    Aquela noite assistimos a um pot-pourri dos principais trechos das sete peras,

    bals e representaes teatrais exibidas na China. Sim, porque todo o repertrio de bal,

    pera e teatro chins se resume a este nmero: sete. Assim, a China que, antes da

    Revoluo Cultural possua um repertrio autorizado de 50.000 ttulos de obras de teatro,

    bal e pera, viu esse nmero reduzido para 35 em 1964 e posteriormente para sete.

    Apenas sete. Esses dados so confirmados pelo parlamentar e escritor francs Alain

    Peyrefitte em seu livro Quand la Chine S'veillera, aos quais acrescenta que em Shangai

    no so oferecidos ao Pblico mais do que cinco peas, interpretadas ou filmadas, nos

    ltimos trs anos. A assistncia aos espetculos tida como ato poltico, portanto como

    uma obrigao. A quase totalidade dos filmes anteriores Revoluo Cultural foi proibida.

    A criao pessoal foi abolida, pois denotava a busca de renome. As nicas sete peas de

    teatro, bal ou pera admitidas na China so obras de equipe, sob a direo da camarada

    Chian Ching, mulher do presidente Mao.

    O povo reeducou os lderes do trabalho literrio e artstico e reorganizou os quadros

    de escritores e de artistas. O nmero total desses, antes da Revoluo Cultural, se elevava a

    duzentos mil.

    De onde se depreende que, de fato, se tratou de uma revoluo cultural. Sem dvida

    nenhuma.

    O que acontece na pera, se repete na televiso (que opera geralmente apenas trs

    horas por dia, das 18,30 s 21,30h), com exceo dos domingos, quando h um horrio

    infantil matutino. Os mesmos temas, as mesmas histrias, as mesmas mensagens. H casos

    de certos filmes ou tapes que so repetidos, durante mais de ano, semanalmente e no

    mesmo horrio - e que, por incrvel que parea, continuam atraindo os telespectadores que

    se concentram diante dos 250.000 aparelhos de TV, que existem em todo o territrio

    chins. A quase totalidade desses televisores pertence a organizaes, cooperativas ou

    grupos de famlias que moram no mesmo edifcio e que os postam em sala comum.

    Noticirio no h, o que existe apenas um que outro documentrio sobre os fatos do

    governo. TV a cores no vi nenhuma, a no ser na Feira Permanente de Shangai, onde

    alguns prottipos nos foram exibidos.

    Comecei a falar sobre os temas das peras e quase me perco no meio do assunto,

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    mas podem crer que h fundadas razes para tal. que depois da pequena e desamparada

    Tchau-Pao ter sido salva pelo herico e intimorato Ta-Chau, representaram ainda a

    Engenhosa Conquista da Montanha do Tigre, Nas Comunas, Graas ao Pensamento de

    Mao a Primavera Chega Mais Cedo, a. . . Bem, para ser absolutamente veraz, devo

    confessar que a essa altura adormeci profundamente (numa imperdovel e tpica atitude de

    pequeno burgus-revisionista) e somente fui acordado pelo barulho obsceno de meus

    prprios roncos, conforme est documentado em gravao que simultaneamente eu ia

    fazendo, mas que de jeito nenhum botarei no ar para no ofender os amigos chineses. Os

    quais, como se viu, tm grande considerao por sua pera e um enorme respeito e

    obedincia pelas mensagens que ela, to artstica e engenhosamente pode, deve e sabe

    transmitir.

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Crtica e Autocrtica

    Pela primeira vez, nessa madrugada de domingo, 28 de setembro, comeo a sentir

    que, de fato, estou na China - e ignoro por qu. Shangai, tirando sua populao (mas o que

    seria de uma cidade sem seus habitantes?) no tem muitas caractersticas asiticas. No

    mximo poderia ser uma cpia amarela de muito mau gosto de uma Londres, como a

    quiseram e em grande parte a construram os britnicos em fins do sculo passado e no

    comeo deste.

    Acordei, como na vspera, s cinco, quando o dia j se ia desenhando em meio a

    cmulos cor-de-cinza. Tomei meu ch, assisti ginstica do povo l em baixo nas

    caladas, jardins e no prprio leito da rua semi deserta de nibus e fiquei percorrendo o

    dial de meu radiozinho de pilha, na v esperana de captar algo em ingls. A maioria dos

    broadcastings emitia palavras, das quais volta e meia - e nica e exclusivamente - eu

    pescava apenas um que outro som semelhante a Mao-Ts-Tung. As emisses de msica

    eram raras, e ou orquestradas ou cantadas dentro do montono ritmo chins. Numa rdio

    captei algo parecido com um som de ginstica, comandada ao piano, e foi tudo. Perto das

    seis o sol venceu as nuvens e apareceu, e fiquei fazendo hora para o caf que abria somente

    s sete. Foi a que me senti no em Shangai, mas na China; e no na China como outro pas

    a conhecer, mas como uma concepo de vida e de filosofia completamente estranhas a

    tudo o que eu poderia imaginar por mais que tivesse lido e ouvido falar a respeito. E passei

    a imaginar que emoes no me aguardariam ainda nos quatorze dias restantes quando, a

    ento, mergulharia no miolo e nas profundezas do pas. Hoje, por exemplo, devemos seguir

    para Pequim, logo depois de visitarmos a Feira Industrial da Cidade, da qual iremos direto

    para o aeroporto. E em Pequim, to logo desembarcarmos j nos aguarda um novo e, pelo

    jeito, mais intensivo programa. s 6h30min ponho a mala no corredor, defronte porta do

    quarto, como me haviam mandado, e, diante da chatice da programao das rdios, no

    tenho outro recurso do que me quedar sentado a ler o Livrinho Vermelho, numa edificante

    e chinesa atitude de fazer o tempo passar proveitosa e respeitosamente. . .

    Num megatrio construdo pelos russos que o denominaram (antes da briga)

    Palcio da Amizade Sino-Sovitico e que (depois da briga) foi rebatizado como Feira

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Industrial Permanente de Shangai, os chineses exibem o que de melhor produzem o

    artesanato e as indstrias leves e pesadas instaladas na regio. Na verdade, e pelo que vi-

    mos durante quase trs horas de caminhada por seus pavilhes, h ali quase tudo que a

    moderna tcnica produz, desde aparelhos eletrnicos altamente miniaturizados, at

    gigantescas turbinas hidrulicas ou trmicas. Em salas que se sucedem, num crescendo de

    valorizao do material apresentado, vimos trabalhos incrivelmente meticulosos em

    enormes peas de marfim e de jade, brinquedos que no perdem para os japoneses e

    bonecas no menos belas e perfeitas do que as espanholas. H uma seo dedicada

    medicina com especial nfase acupuntura (e ali) projetam uma operao extracorprea de

    corao, com anestesia feita exclusivamente pelas agulhas); outra aparelhagem cirrgica

    e odontolgica, outra ainda ao equipamento pesado de rdio e TV (muito semelhante -

    seno cpia - dos modelos RCA), alm de exposio de tratores, caminhes e dos dois

    modelos de automvel fabricados no pas: o Shangai, calcado no Cadillac, modelo dos

    anos 50 e o Bandeira Vermelha, hbrido do nosso Opala com o Dodge.

    Pela manh a Feira permanece aberta s para os estrangeiros, cabendo a parte da

    tarde ao povo. O recinto limpo, arejado e muito claro. Esttuas em corpo inteiro de Mao

    (algumas com mais de trs metros de altura e quase todas brancas) nos acenam por toda a

    parte, com seu brao direito levantado, inclusive na sala final, dedicada como sempre ao

    ch e aos cigarros, onde em companhia do Mi e do comissrio Li me sento agora para a

    indefectvel sesso de crtica e auto crtica. Espiando Mao (e com certeza nos espionando),

    retratos de Stalin e Lenin se alam ao alto das paredes.

    Como fiz durante todas as visitas que realizei na China, levei o gravador comigo. E

    registrei no s a maioria das explicaes de nossos guias, durante a caminhada pela

    Exposio, como tambm a conversa que, naquele momento, tive com Mi e com Li. Duas

    semanas mais tarde, j s vsperas de deixar a China, quando voltvamos os trs de uma

    visita principal comuna de Canto, Li disse para Mi e este me traduziu o pensamento do

    chefe: o de que eu no deveria utilizar a conversa que tivramos ao final da nossa recorrida

    pela Feira de Shangai. - Pode dizer a ele que no tem perigo, Mi. S a usarei para

    apontamentos. Precisa e literariamente como passo a fazer agora:

    - Aceita ch? - pergunta Mi.

    - Obrigado. Aceito. de jasmim?

    - . E cigarros?

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Em todos os recintos de conversa h, sobre as mesas, latinhas redondas contendo

    cigarros de fabricao chinesa, seja de fumo claro, seja de tabaco negro. No so maus,

    apenas um pouco doces e meio enjoativos, semelhantes aos ingleses.

    - No. Obrigado, Mi. Prefiro os meus, so americanos. Li, pressuroso acende o meu

    e depois o seu.

    - Olhe - digo eu, iniciando a crtica e autocrtica - sabe que eu acho que vocs

    fumam demais? . . .

    Sorrisos de ambos (depois da traduo). Ainda eu:

    - Quantos cigarros fumam por dia? Quarenta? Sessenta?

    - Nem tanto. Mas bastante.

    - O presidente Mao fuma?

    Mi hesita, consulta Li e depois responde bem baixinho:

    - Sim.

    - Onde vocs cultivam o tabaco?

    - Em quase todas as provncias.

    - Quanto custa o mao?

    - Mais ou menos 50 centavos. ( caro, se levarmos em conta o baixo nvel salarial

    da China, cujo mnimo no ultrapassa 35 yuans). H inmeras marcas de cigarro chins,

    todas elas produzidas e comercializadas pelo Estado. Mas voltemos conversa:

    - A Revoluo Cultural foi em 1966, no foi?

    - Foi.

    - Quantos anos durou?

    Mi traduz para Li, ambos riem:

    - Ainda continua. . .

    - Mas aquela histria dos guardas-vermelhos ainda no acabou?

    - No. At hoje existe. S que os guardas-vermelhos continuam a exercer suas

    atividades nas escolas.

    - Ainda h revisionistas na China?

    - Sim. Mas agora ns realizamos campanhas de crtica para prevenir o

    revisionismo, pois como o presidente Mao falou, temos que lutar no uma vez, no

    algumas vezes, mas dezenas de vezes para manter a revoluo proletria na China. No

    passado conseguimos algum progresso, mas na verdade estamos ainda na via do

    desenvolvimento. Conquistamos o princpio de autonomia e de independncia, mas ao

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    mesmo tempo precisamos aproveitar as tcnicas avanadas do mundo.

    - Ainda existem classes na sociedade?

    - Existem classes.

    - Que espcie de classes?

    - Existe ainda a burguesia proletria.

    E eu, em sincero tom de surpresa:

    - Ainda existe? . . .

    - Burgueses ainda existem. Vivem.

    - Burgueses do passado, com certeza. . .

    - Mas tambm nascem novos burgueses.

    A o que que vocs fazem?

    - Fortalecemos a ditadura do proletariado, efetuando a sua reeducao. A luta entre

    o proletariado e a burguesia vai durar longo tempo, estendendo-se por todo o perodo do

    socialismo.

    J estamos no terceiro cilindro de ch (e como deveria eu denominar algo que no

    xcara nem caneca?) e minha inquisio segue firme, Mi s respondendo depois de

    consultar Li.

    - Como encaram vocs a Unio Sovitica?

    - Hoje em dia a Unio Sovitica j um pas social-imperialista. Antigamente era

    socialista sob a direo de Lenin. Quando o elemento revi sionista e traidor Kruchev subiu

    ao palco do poder, ele a transformou em uma nao imperialista e revisionista.

    - E Brejnev tambm?

    - Tem razo.

    - Quem o mais perigoso para a China: o imperialismo dos Estados Unidos ou o

    imperialismo da Rssia?

    - Ns encaramos o problema no apenas da posio da China. Qualquer pas

    imperialista sempre oprime e explora outros pases do terceiro mundo. Por isso, uma

    nao, seja social-imperialista ou imperialista, sempre perigosa para os outros povos.

    Encaro o comissrio Li e digo-lhe em portugus:

    - Muito inteligente a sua resposta.

    Ele ri, dando-me a perfeita impresso de que compreendeu o que eu disse. Tempos

    depois, ouvindo vrias vezes a gravao, passei a desconfiar de que Li (o qual, segundo fui

    informado mais tarde, tinha j acompanhado cinco visitas de grupos estrangeiros China)

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    era bem capaz de entender ou at mesmo falar algo de portugus e, por convenincia,

    fazia-se de sonso. Sabe-se l, enfim, o que passa pela cabea de um chins. . . Depois da

    risada ele fala com Mi e este prossegue:

    - Sem dvida, na etapa atual o social imperialismo da Unio Sovitica estende mais

    as mos para todo o mundo, com mais ambio de ocupar e de explorar os outros povos.

    Por isso, nos dias de hoje mais perigoso do que o norte-americano.

    - Por que vocs permitem a existncia de colnias estrangeiras como Hong Kong e

    Macau?

    - Esse problema foi produzido no passado, quando o povo no tinha direitos e era

    dominado pelos senhores feudais que assinaram tratados desiguais. Tanto Hong Kong

    como Macau constituem territrios inalienveis da China. Quando e de que maneira vo

    ser libertados isso depende da situao. . .

    O ch termina e, momentaneamente, o assunto tambm. Os amigos brasileiros

    aproximam-se de ns e Li diz que est na hora de seguirmos para o aeroporto.

    Em hora e meia e num Boeing da CACC trocamos o calor pegajoso de Shangai

    pelo friozinho seco, temperado e reconfortante de Pequim. Fazia muito calor quando

    embarcamos e as aeromoas (todas de tranas, blusas brancas, com colarinho fechado e

    calas azuis de boca larga) nos entregaram um objeto preto, retilneo e no identificado. Os

    mais inteligentes descobriram, depois de meticuloso exame, que no era nada de comer,

    mas sim uma ventarola, para fazer s vezes de ar condicionado que o avio no possua. . .

    Campos quadriculados, reas cobertas de verde at o limite do horizonte, gua por

    toda a parte, depois so as nuvens a encobrir o caminho e ento j o aeroporto de Pequim.

    Esse sim moderno e movimentado, com indicadores de chegada e partida e enormes fotos e

    esttuas de Mao, alm de suas citaes em vermelho sobre fundo branco, de um lado em

    chins, do outro em ingls.

    Embarcamos num nibus, as malas vo mais tarde em outro. Nosso objetivo

    largar a bagagem de mo no Hotel e seguir imediatamente para o Estdio Operrio, onde

    deveremos assistir a um desfile e o final do campeonato de futebol (!) da China. Por uma

    alameda asfaltada, com rvores de sentinela ao longo de todos os seus trinta quilmetros,

    rumamos para o centro de Pequim, que desde o primeiro momento nos parece ser

    simptica e acolhedora. Ampla, ela de fato . Somente sua praa principal - a Tien An Men

    - comportaria em seu interior e juntas, a Praa Vermelha de Moscou e a Concorde de Paris.

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    Suas avenidas sofrem (ou so beneficiadas) pelo mesmo gigantismo. So todas concretadas

    e, diferena de Shangai, os ciclistas no so os nicos donos das ruas, estas tambm

    compartilhadas por automveis.

    O movimento enorme - e todo em sentido contrrio ao que seguimos. gente que

    vai para o Estdio; e j vi que vamos chegar atrasados, o que de fato acaba por acontecer.

    Quando ali entramos uma hora mais tarde, o desfile das bandas, que o que nos

    interessava, j tinha terminado. Estavam em campo duas equipes de futebol, uma de blusa

    amarela, como a da seleo do Brasil, a outra vermelha, como a do meu Internacional. A

    primeira representando Canto e o colorado, Pequim

    Mas o espetculo valeu sobretudo pelo colorido da platia, em grande parte tomada

    por militares e, tambm, pela viso do estdio - to grande quanto o do Internacional -

    completamente tomado por uma gente de fisionomia to estranha, mas naquele momento,

    to parecida com a nossa, em seu entusiasmo e fanatismo.

    E naquele fim de tarde de Pequim cheguei a me convencer de que na terra, bem no

    fundo mesmo, todos os homens do mundo, se quisessem, poderiam ser amigos e - quem

    sabe? - at mesmo ser irmos. Pelo menos em seu interesse pelo futebol. . .

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    A nobre arte da tortura

    Depois do calor amaznico de Shangai, bom caminhar, agora que so quase dez

    horas da noite e o frio ameno e amigo, pela avenida Fusin Men Wai, em direo praa

    Tien An Men, ciclpico centro geogrfico de Pequim e do mundo chins. O movimento

    discreto e silencioso. Mesmo os nibus so mais discretos e mais silenciosos que os de

    Shangai, isto , no so tomados por aquela psicose da buzina, que desde a madrugada at

    noite atordoa a cidade, que deixramos no princpio da tarde. Pequim, pelo menos em seu

    centro, ampla, desafogada e limpa. Ciclistas deslizam, ora isolados, ora em grupos

    compactos, ora aos casais. Todos vestem a mesma roupa Mao, diferente apenas na cor: o

    azul, em Pequim, o mais presente do que o cinza. No somos olhados com a mesma

    curiosidade de que ramos alvo em Shangai. Pequim muito mais cosmopolita e ali o

    estrangeiro deixou de ser o bicho raro e escasso no mercado. H dezenas de embaixadas

    dos mais desencontrados pases do mundo e uma mdia mensal de mil turistas visita a

    capital. No vemos bares nem bbados. Nunca, nesses quinze dias de China, vimos

    bbados. Mais tarde, descobrimos um que outro barzinho, o povo bebendo discretamente

    sua cerveja morna - e foi s. Um par de tendas abertas, vendem frutas e sementes tostadas.

    A avenida est profusamente iluminada, os gigantescos retratos de Mao, Stalin, Lenin, e do

    Dr. Sun Yat-Sen, proclamador da Repblica (em 1912) e Pai da Ptria (at segunda

    ordem), cercados de lampadazinhas multicores, como aquelas que antigamente iluminavam

    Igrejas do Brasil por ocasio das festas de seus santos.

    s dez horas, certamente desligadas por um comando nico, todas as luzes se

    apagam, menos as das luminrias da avenida. Os ciclistas aceleram o pedal, os transeuntes

    escasseiam - e voltamos proteo e ao abrigo do Hotel das Nacionalidades.

    Administrativamente a China se divide em 21 provncias, cinco regies autnomas

    e dois Distritos Federais: Pequim e Shangai.

    A raa predominante a han (ou seja, os chineses), cujo nome oriundo da dinastia

    do mesmo nome que existiu do sculo II Antes de Cristo ao sculo II de nossa era. Os han

    falam o idioma oficial do pas, que o mandarim, e se constituem aproximadamente 95%

    da populao. Apesar dessa esmagadora predominncia, a China um pas de minorias

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    nacionais, cujo Instituto - um prdio cinza claro, localizado no meio de um parque todo

    arborizado, comeamos agora a visitar. Depois das clssicas apresentaes, a clssica sala

    de ch. Este, ao contrrio do que nos serviam em Shangai no de jasmim, mas de folhas e

    colorao verde. nessa ocasio que aprendo minha segunda palavra em chins (ou han):

    tch) ou seja, o nosso ch. A primeira foi ontem, ainda no aeroporto, quando descobri no

    sem surpresa que obrigado ch-chi, com acento agudssimo no i, para evitar qualquer

    mal-entendido.

    O Sr. R e a Senhora R, representando o Comit Revolucionrio e o Comit do

    Partido, nos recebem muito amveis, cercados por um grupo de gente moa fantasiada de

    trajes regionais. Uns representam a Monglia, outros o Tibet, a Coria, o Miao - num total

    de 54 minorias, que somam em toda China cerca de 50 milhes de habitantes. Eles se

    espalham por aproximadamente 60% do territrio chins e, diferentemente dos governos

    anteriores, que sistematicamente os perseguiam, os minoritrios hoje so estimulados a

    falar sua prpria lngua, preservar seus costumes e usar os trajes tpicos de cada uma de

    suas regies. O Instituto das Nacionalidades procura ser uma demonstrao viva e prtica

    dessas intenes. Estudam ali 1.500 alunos e alunas representando todas as minorias, desde

    a de maior populao, que a T'chouang, que conta dez milhes de almas at a Razakh,

    com menos de mil integrantes. A primeira se localiza na regio autnoma de Guang Xi,

    nas imediaes do Vietn e a ltima na Manchria. Ao contrrio do que estabelece para a

    maioria do povo chins, que por bem ou por mal obrigado a limitar a natalidade, a

    poltica de Mao com relao s minorias oposta: elas so estimuladas a ter mais filhos,

    afim de no correr o perigo de extino. Tal poltica parece que j funcionou, tanto que a

    nacionalidade de Razakh, que em 1949 estava em vias de extino, praticamente dobrou

    sua populao desde que os comunistas tomaram o poder. Por esse detalhe bem podemos

    deduzir quo assustador seria ou ser o nmero de chineses, caso no sejam mantidas

    enrgicas medidas governamentais de planejamento familiar.

    Escoltados pelos camaradas R-R e cercados por um grupo colorido de rapazes e

    moas trajando as mais bizarras vestes, comeamos a caminhar pelas dependncias do

    Instituto. Ali, inteiramente subvencionados pelo governo, os jovens das minorias

    (escolhidos e designados por suas coletividades no caso pelo Comit Revolucionrio e pelo

    do Partido) cumprem um curso universitrio no qual especializam-se no idioma han, em

    msica, belas artes ou bal, em histria e formao de lideranas. Em todo o momento e

    por toda a parte os professores do Instituto lhes acenam com a tenebrosa lembrana do

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    passado pr-revolucionrio, quando as minorias eram massacradas pelos senhores feudais e

    pelos imperialistas estrangeiros. H um Museu no Instituto, o qual passamos a visitar, que

    pouco fica a dever (e talvez at mesmo supere) o pior dos filmes de horror. Ali esto,

    cuidadosamente preservados dentro de vitrinas, crnios humanos de minorias perseguidas,

    que seus opressores faziam com que elas (escravizadas) usassem como tigela, juntamente

    com flautas feitas de ossos e tambores de pele humana. H a mmia enegrecida de um

    escravo, localizada no Tibet, juntamente com milhares de outras e a explicao para sua

    preservao simples: os Lamas empregavam os corpos (muitas vezes vivos) da minoria

    tibetiana, para servir de alicerce a seus palcios. . . Tal sistema, segundo nos traduzem

    nossos intrpretes, foi mantido pelo Dalai Lama at bem recentemente - at 1959. H mais

    ainda: a fotografia de integrantes de minorias com o nariz, as orelhas e os dedos cortados, a

    cena sendo impassivelmente assistida por um circunspecto cidado ingls, ao lado dos

    mandarins detentores do poder - e h, sobretudo, uma certa tortura (os detalhes e as

    imagens reproduzidas), que a todos apavorou. A vtima do castigo era amarrada diante de

    um caldeiro com leo fervente. A ento comprimiam-lhe a parte superior da cabea com

    um pesadssimo capacete de pedra, cuja presso fazia com que os olhos do infeliz

    saltassem fora das rbitas. Os carrascos recolhiam numa espcie de colhero de sopa os

    dois globos oculares, mergulhavam-nos imediatamente no azeite em ebulio e com uma

    percia digna do melhor acupunturista, tornavam a botar os olhos fritos em suas respectivas

    cavidades, para deter a hemorragia que havia comeado. . .

    Assim sendo no de se estranhar que ns, no Ocidente, aliemos o termo tortura

    aos seus mais habilidosos e tradicionais cultores: os chineses. Chegaram eles a tal requinte

    que a transformaram em nobre e cultivada arte. Segundo Jacques Lavier *, professor do

    Instituto de Acupuntura de Formosa, em todos os tempos, a tortura foi considerada uma

    necessidade na China. As inquietudes sociais contnuas obrigaram os reis a pratic-la para

    manter uma paz relativa em seus estados. Os carrascos se transformavam em verdadeiros

    artistas e transmitiam seus segredos de pai para filho, professor a aluno. A arte atingiu a tal

    estgio de perfeio, que a vtima a ser supliciada, quando se apresentava diante de seu

    carrasco, fazia questo de agradecer com antecedncia (e com toda a etiqueta e cerimonial

    da poca), pelos processos artsticos a que iria ser submetida, e cujo justo valor ela iria

    certamente apreciar, se bem que fosse indigna de tamanha honra.

    O carrasco protestava: no, muito pelo contrrio, ele que estava envergonhado de

    (*) JACQUES LAVIER Lcunpucture chinoise Veyser, paris, 1974

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    possuir to escassa cincia a colocar disposio de to distinto cliente) ao qual pedia

    perdo por suas possveis insuficincia. Naturalmente, ele se esforaria ao mximo para

    propiciar ao seu paciente os sofrimentos os mais atrozes e o mais demoradamente possvel,

    mas a ilustre condenado ficaria por certo decepcionado por seus miserveis talentos.

    Cumpridas essas formalidades, passava-se aos atos - e o infeliz era minuciosamente

    esfolada, eventrado e estripado: literalmente, era dissecado vivo, ele sempre agradecendo -

    aos berros lancinantes - e o carrasco sempre se desculpando, com voz bondosa e humilde.

    Mdicos assistiam cerimnia, seus bons cuidados eram requisitados, no para a

    diminuio das dores do suplicado, mas para que esse permanecesse vivo; e bem

    consciente. No era raro ver-se um infeliz ser submetida tortura durante vrias dias

    seguidos antes de conseguir deixar este baixo mundo, as carrascos se superando em seus

    refinamentos. . .

    Depois da almoo (que quase ningum tocou, por bvias razes), fomos ao

    Zoolgico ver o smbolo animal vivo da China, o urso panda, espcie em extino, que os

    chineses tratam com um conforto que no tributado nem ao mais importante amigo

    estrangeiro. Em enormes gaiolas de vidro, dotadas de ar condicionado (que no vi em

    nenhuma parte do pas, a no ser em residncias de diplomatas estrangeiros, e em alguns

    hospitais e museus) os pandas, que so de plo branco com patas pretas, parecidos com

    botas e uma espcie de mscara, tambm negra, cercando seus olhos, dormitavam sua

    sesta. Eram indiferentes as centenas de visitantes, especialmente soldados e crianas que,

    de to entusiasmados ante sua viso, chegavam a aplaudi-los.

    Volto para o hotel. segunda-feira, 29 de setembro, so 4 h da tarde. Depois de

    complicados clculos, chego concluso de so 5 h da madrugada no Brasil: est, pois, na

    hora de confirmar o circuita que havia pedido ontem noite para realizar o primeiro

    broadcasting para a Rdio Guaba.

    Ser a primeira vez que uma emissora do Brasil falar da China - e no nego que

    me sinto assustado diante da responsabilidade.

    Toca para a telefonista (que no entende nem sequer ingls) e depois de quase uma

    hora de agonia, acaba ligando para o Mi.

    - Que deseja senhorr Gomes?

    - Ora, Mi: falar para o Brasil, como j te pedi anteontem. .

    - Sem dvida.

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    Os minutos, logo os quartos-de-hora e ento as horas vo passando, eu

    dependurado na linha, suando frio.

    - Como Mi?

    - Sem dvida.

    Eram seis da tarde (j s 7 da manh no Brasil) - e ainda nada.

    - P Mi: no agento mais essa agonia. Vai dar para falar ou no?

    - Sem dvida, confie nos pensamentos do presidente Mao.

    E desliga de novo.

    E foi assim, tal qual fazem certos fanticas americanos e tal qual fazia o

    carismtico Sinh Badar da Jorge Amado, os quais para inspirar qualquer deciso (ou

    para dela saberem antecipadamente o resultado), abriam ao acaso uma pgina da Bblia -

    foi assim, que tambm ao acaso abri o maldito Livrinho Vermelho. Ca no pensamento

    final do Captulo XXI:

    Na China antiga, havia uma fbula intitulada O Velho Bobo que removia

    montanhas. Conta que, faz muito tempo, vivia no norte da pas um ancio conhecido como

    o Velho Bobo das montanhas da norte. Sua casa dava para o sul, e sua frente, obstruindo

    a vista, se elevavam grandes montanhas. O Velho Bobo resolveu levar seus filhos para l e

    remover a montanha com enxadas. Outro ancio, conhecido como Velho Sbio, ao v-los

    trabalhando, riu e disse:

    - Que loucura! absolutamente impossvel que vocs, to pouca gente, consigam

    remover montanhas to grandes! . . .

    O Velho Bobo respondeu:.

    - Depois que eu morrer, meus filhos continuaro. Quando eles morrerem, meus

    netos continuaro; e depois seus filhos, os filhos de seus filhos e assim indefinidamente.

    Embora muito altas, essas montanhas no crescem; e cada pedao que delas tiramos as

    torna mais pequenas. Por que, pois, no poderemos remov-las?

    Tendo refutado a idia errnea do Velho Sbio, o Velho Bobo continuou

    escavando, dia aps dia, sem desistir de sua inteno. Deus, comovido, enviou a terra dois

    anjos, que botaram as montanhas nas costas e as removeram. Hoje, sobre o povo chins,

    pesam tambm duas grandes montanhas, uma que se chama imperialismo e a outra

    feudalismo. Devemos elimin-las, e preservar em nossa deciso e trabalhar sem cessar:

    tambm comoveremos a Deus. Nosso Deus no outro seno as massas populares e o

    Partido Comunista da China. Se eles se levantam e cavam junto conosco - por que no

  • Um reprter na China Flvio Alcaraz Gomes

    poderemos eliminar essas montanhas?

    Fecho o Livrinho Vermelho, intrigado. No mesmo momento toca o telefone:

    - Al Pequim? Al Pequim?

    E de novo, mais alto e mais forte:

    - Al Pequim? Al Pequim? Fala rapaz! Estamos ouvindo!...

    Bendito Livro Vermelho! Sbio e herico Velho Bobo! Grande Presidente Mao!

    Nobre e forte e positivo seu pensamento, que removeu montanhas de obstculos e oceanos

    de empecilhos entre meu quarto de hotel em Pequim e nossos transmissores de Porto

    Alegre.

    No outro lado do mundo, a Rdio Guaba me ouvia com som local.

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    Revisionismo

    Pequim, embandeirada e enretratada, aguarda a grande data nacional, que

    transcorre amanh, 19 de outubro de 1975, assinalando o 269 aniversrio da vitria

    comunista e instalao da Repblica Popular da China. Delegaes de todas as provncias e

    dos mais longnquos pontos do mundo - especialmente do terceiro mundo - lotam as ruas,

    os parques, as praas e os museus, com o colorido de seus trajes tpicos e a alegria, muitas

    vezes espalhafatosa (como o caso das delegaes da Itlia e do Mxico), de seus gestos e

    das suas discusses. Para decepo de muitos, no consta no programa nenhum desfile

    armado, seja de mquinas, seja de homens. Apesar disso, Pequim est literalmente tomada

    por soldados do Exrcito Vermelho, todos de aspecto saudvel, todos vestindo o mesmo

    uniforme verde, com duas pequenas faixas encarnadas na gola. Rarssimo o que usa

    sapatos. Nenhum com botas. Em sua imensa e quase inteira totalidade, calam tnis verdes

    com bicos pretos. Nenhum usa gales ou qualquer coisa que possa distinguir o soldado do

    oficial e este do do general. So quase todos jovens e no tem aparncia blica.

    - No te iludas com a aparncia - me diz o dr. Ren. Foi por acreditar na mesma

    aparncia ablica dos vietnamitas, que os americanos perderam a guerra na Indochina.

    A despeito da presena militar macia, no h qualquer vestgio de opresso

    militar, como sentem aqueles que j estiveram na Rssia. Ali, segundo concluso de todos

    os meus amigos, o ambiente quase irrespirvel, no s devido grosseria dos militar,

    como sua prepotncia. Na China no percebi nada disso - muito pelo contrrio. O

    soldado parece brotar diretamente da massa popular; e, como ela, amvel, gentil e

    atencioso para com o amigo estrangeiro.

    Em todo o caso, l como c, aparncias h. . .

    J disse em outro captulo, que minha primeira (porm sincera) homenagem

    Revoluo Cultural chinesa aconteceu em Shangai, quando ali trucidei uma mosca que

    escapara dos pensamentos de Mao-Ts-Tung. Pois, em Pequim aconteceu coisa

    semelhante, s que em dimenses (e colaborao) mais avantajadas. Como devssemos

    permanecer quatro dias na capital, resolvi despejar o contedo de minha mala e mandar

    lavar a roupa suja. Que por sinal pouco adiantou, pois voltou da lavanderia quase nas

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    mesmas condies. Ao efetuar tal operao - oh! surpresa eis que emerge, do fundo da

    valise, furiosa e tonta barata, de colorao visivelmente russa, que imediatamente ruma

    para o banheiro. No meio do caminho, um certeiro e valente sapatao gacho cortou a sua

    execrvel carreira, aplastando-a com um estalo. Orgulhoso da faanha acomodei o cadver

    dentro de um mao de cigarros vazio e, pleno de jbilo, telefonei para Mi:

    - Vem c que tenho uma surpresa para ti, camarada.

    Asitico e comunista convicto, mas nem por isso menos curioso do que qualquer

    vivente burgus, minutos depois Mi batia delicadamente porta:

    - O senhorr Gomes me