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Nova Economia ISSN: 0103-6351 [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Marques, Rosa Maria; Euzéby, Alain Um regime único de aposentadoria no Brasil: pontos para reflexão Nova Economia, vol. 15, núm. 3, septiembre-diciembre, 2005, pp. 11-29 Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400437540001 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Nova Economia

ISSN: 0103-6351

[email protected]

Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil

Marques, Rosa Maria; Euzéby, Alain

Um regime único de aposentadoria no Brasil: pontos para reflexão

Nova Economia, vol. 15, núm. 3, septiembre-diciembre, 2005, pp. 11-29

Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400437540001

Como citar este artigo

Número completo

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Sistema de Informação Científica

Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_11-29_setembro-dezembro de 2005

Um regime único de aposentadoria no Brasil:pontos para reflexão

Rosa Maria MarquesProfessora do Departamento de Economia

e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP

Alain EuzébyProfessor do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble

ResumoEste artigo discute, numa primeira parte, oconceito de aposentadoria de base, sua dife-rença em relação à renda mínima garantida eà proposta do Banco Mundial, e o de aposen-tadoria complementar, que está associada àaposentadoria de base. Na segunda parte, àluz da discussão anterior, relaciona o conceitode aposentadoria de base à realidade brasilei-ra, mostrando as dificuldades de sua implan-tação, bem como o rebaixamento do teto e aadoção de um sistema único. Também o arti-go associa o baixo nível de cobertura ao pa-drão “latino-americano” do mercado de tra-balho brasileiro e à ausência do Estado naregulamentação e controle das relações so-ciais, e sugere formas para sua ampliação.

AbstractIn the first section, this article discusses the

concept of base retirement, its difference in

relation to secured minimum income and to the

World Bank’s proposal, and complementary

retirement, which is associated with base

retirement. In the second section, in keeping with

the previous discussion, it relates the concept of

base retirement to Brazilian reality, showing the

difficulties of its implementation, as well as the

lowering of the retirement ceiling and the

adoption of a unified system. This article also

associates the low level of coverage to Brazil’s

Latin American-style work market and the

omission of the State in terms of regulation and

control of social relations, and it suggests new

ways to augment coverage.

Palavras-chaveaposentadoria de base,regime único, piso e tetopara aposentadoria,nível de cobertura.

Classificação JEL I31, I38.

Key words

retirement base, unified system,

retirement base and ceiling,

level of coverage.

JEL Classification I31, I38.

1_ IntroduçãoA idéia de empreender uma reforma pre-videnciária que promova a unificação dosdiferentes regimes atuais – do setor pri-vado da economia, do funcionalismo pú-blico federal, do Judiciário, da magis-tratura, dos militares e dos deputados fe-derais e dos senadores, entre outros, nãoé nova. No Brasil, na metade dos anos1990, essa proposição foi encaminhadaao Congresso Nacional pelo deputadofederal Eduardo Jorge,1 então do Partidodos Trabalhadores. O que animava suaproposição era a idéia do tratamentoigual no campo da aposentadoria, inde-pendentemente, portanto, do gênero, daatividade exercida pelo indivíduo e desua inserção ao mercado de trabalho dosetor privado ou do setor público.

Em outros países, também essadiscussão não é nova, seja porque há muitofoi implementada, seja porque faz partedas proposições atuais de diversos gover-nos. Além disso, essa preocupação tam-bém faz parte, há bastante tempo, da agen-da do Banco Mundial no campo social.

No caso brasileiro, a implementa-ção de um regime único para a aposenta-doria não é tarefa fácil. Ao contrário,além das fortes reações políticas e sindi-cais que certamente ocorrerão, há diver-sas dificuldades estruturais de natureza

econômica que não podem ser desconsi-deradas. Ademais, sua formação históri-ca e social é resultado de processos com-pletamente distintos daqueles dos paísesque promoveram a construção dos atuaissistemas de cobertura do risco velhice,nos quais os critérios de acesso à aposen-tadoria são iguais para todos.

Apesar dessas dificuldades, a pro-posta de um regime único já estava pre-sente no programa de campanha de LuizInácio Lula da Silva e, com ênfase, foiutilizada na discussão da reforma previ-denciária do funcionalismo público. Hojeessa proposição não aparece com desta-que na agenda governamental, mas conti-nua integrando a idéia de proteção socialdefendida pelo governo Lula. Numa si-tuação política mais adequada, certamen-te sua discussão retornará com todos osseus contornos.

Este artigo tem um duplo objeti-vo: auxiliar no levantamento das dificul-dades e dos constrangimentos que umaeventual proposta de unificação dos regi-mes venha a enfrentar; e considerar as di-ferentes formas institucionais que umaproposta de equalização no tratamentoda aposentadoria possa assumir. A prin-cipal preocupação que move essa contri-buição é a convicção de que reformas co-mo a da aposentadoria – que alteram

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1 Eduardo Jorge éatualmente secretário daSecretaria de Verde e MeioAmbiente do município deSão Paulo.

significativamente a maneira como as pes-soas se relacionam com sua renda da vi-da ativa e inativa, com impacto presente efuturo sobre o padrão de consumo e depoupança – exigem um processo de dis-cussão que considere não apenas os as-pectos econômicos e financeiros envolvi-dos, mas também os conceitos de justiçasocial e de solidariedade, princípios bási-cos da construção da cidadania em qual-quer país democrático.

A preocupação em tratar os traba-lhadores de forma igual no momento daaposentadoria evoca questões que tan-genciam a simples proposta de um regi-me único. Por isso, a primeira parte desteartigo discute o conceito de aposentado-ria de base, salienta suas diferenças comrelação à renda mínima garantida e à pro-posta do Banco Mundial; discute o con-ceito de aposentadoria de base no interi-or do atual RGPS e a necessidade dainstituição de uma aposentadoria com-plementar à aposentadoria de base. A se-gunda parte procura estabelecer a ligaçãoentre os conceitos discutidos na primeiraparte e a realidade brasileira. Nela sãoabordadas questões relacionadas à apli-cação de uma aposentadoria de base oudo rebaixamento de teto, a garantia dopiso sem anterior contribuição e a receitafiscal, o nível de cobertura e a implanta-ção de um regime único.

2_ A aposentadoria de base:concepção e relaçõescom outras propostas similares

2.1_ A concepçãoA garantia de uma aposentadoria de baseapresenta certa relação com o conceito decidadania, mas, como exploraremos maisadiante, apenas a um conceito restrito,que reconhece a cidadania com base noexercício do trabalho. Seu fundamento éque todo cidadão, independentemente desua trajetória no mercado de trabalho,tem direito a uma mesma renda de subs-tituição no momento em que sua capaci-dade para o trabalho diminui, isto é, quan-do da velhice. O montante pago a títulodessa renda de substituição, chamado devalor da aposentadoria, reflete a percep-ção da sociedade em relação ao que seja oadequado para um indivíduo viver digna-mente quando aposentado. Essa percep-ção é, como não poderia deixar de ser, re-sultado das diferentes pressões e forçassociais presentes na sociedade.

O financiamento da aposentado-ria de base pode se realizado por meio decontribuições de empregados e empre-gadores ou mediante o aporte de recur-sos fiscais ou, ainda, de uma combinaçãode tributos – contributivos (não apenas afolha de salários, mas incluindo as demaiscontribuições sobre faturamento e lucro

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líquido) e fiscais – tal como preconizadona Constituição de 1988 no capítulo daSeguridade Social. Contudo, como a apo-sentadoria de base está associada ao con-ceito restrito de cidadania, entendendo ovalor a ser recebido como uma renda desubstituição, isto é, que está associada atrabalho anterior, não se justifica que adespesa seja financiada por toda a socie-dade. Na medida em que as contribui-ções constituem rendas diferidas dos tra-balhadores, muito embora as empresaspossam repassar os custos de suas con-tribuições aos preços, a aposentadoria debase deve ser financiada por elas.

Os fundamentos que estão subja-centes ao direito à aposentadoria de basesão: a sociedade salarial, isto é, a do tra-balho, e a justiça social. A sociedade sala-rial constitui o fundamento primeiro, umavez que o acesso ao beneficio pressupõea perda de capacidade laboral.2 A justiçasocial é realizada pelo exercício da solida-riedade, na medida em que o conjuntodos trabalhadores financia a aposentado-ria de base. Dessa maneira, os trabalha-dores de mais baixa renda não são estig-matizados, como pode ocorrer quando ovalor leva em consideração a capacidadecontributiva. Note-se que o conceito dejustiça social, tal como o da cidadania,presente na aposentadoria de base, tam-

bém é restrito, já que se resume a con-siderar um valor base de aposentadoriapara todos, desde que tenham previa-mente trabalhado.

2.2_ A aposentadoria de basee a garantia de uma renda mínima

A aposentadoria de base não pode serconfundida com a renda mínima garanti-da, visto que o critério de acesso de cadauma delas tem fundamento diferente. Namedida em que o acesso à aposentadoriade base somente é conferido a quem ti-ver anteriormente trabalhado, trata-se deum direito obtido pelo mérito, o de tertrabalhado, e por isso está estreitamenteassociado ao mundo do trabalho ou àsociedade salarial. A cidadania (conceitorestrito), presente no valor da aposenta-doria de base, significa que, independen-temente da renda e da capacidade contri-butiva do trabalhador, lhe será pago ovalor de base.

A renda garantida é apresentada,na literatura internacional e brasileira, comdiversas nuanças e justificativas (Mar-ques, 1997 e Suplicy, 2002). De maneirageral, contudo, é defendida como um di-reito a que todo cidadão tem em qualquermomento de sua vida. Nesse sentido, o di-reito decorre diretamente do conceito decidadania, e não está condicionado a tra-

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2 Na sociedade salarial,o exercício de uma atividaderemunerada encontra seucontrário no desempregoe na velhice.

balho anterior e à perda da capacidade la-boral na velhice.

Tanto a garantia de uma renda mí-nima como a de um valor de base para aaposentadoria constitui um instrumentode redistribuição de renda em favor dossegmentos menos favorecidos da popu-lação. No entanto, enquanto na aposen-tadoria de base a distribuição de renda éfinanciada pelos trabalhadores e ocorreentre eles, a renda mínima garantida en-volve toda a população. Por isso seu fi-nanciamento somente pode ser pensadoem termos de recursos fiscais, uma vezque é essa a única maneira de excluir apossibilidade de a carga recair apenassobre um dos segmentos da sociedadeou sobre apenas um fator de produção.

2.3_ A aposentadoria de basee a proposta do Banco Mundial

A proposta do Banco Mundial para o ris-co velhice foi apresentada, pela primeiravez, em seu relatório “Envejecimientosin crisis: políticas para la protección delos ancianos y la promoción del creci-miento”, de 1994. Nesse relatório, a ins-tituição defende que o Estado deve-serestringir, no campo da aposentadoria, agarantir modestos valores, e que essespodem ser estendidos a todos ou focali-zados nas pessoas de baixa renda, median-

te teste de meios. Tal como é destacadopor Beattie e McGillivray (1995), a prefe-rência do Banco Mundial fica com a se-gunda alternativa, já que o objetivo pri-meiro do banco é construir um sistemade três pilares, como ficou conhecido naliteratura de políticas sociais. Dessa for-ma, a proposta de uma aposentadoriade valor relativamente baixo, dirigida pre-ferencialmente ao setor de baixa rendada população, é completada por um regi-me complementar obrigatório privado,de contribuição definida, e por uma pou-pança facultativa.

A concepção do Banco Mundial,cujo “balão de ensaio” foi a reforma rea-lizada no Chile, tem por fundamento a“crença” de que um sistema de pensõescapitalizado eleva a poupança nacional,o que estimularia o investimento produ-tivo e o crescimento econômico. O se-gundo fundamento é pensar que a con-corrência do mercado determinará maioreficácia na gestão. Em relação ao finan-ciamento, a aposentadoria de base teriacomo fonte recursos fiscais; a aposenta-doria complementar, a contribuição ex-clusiva dos trabalhadores.

Tendo em vista o tempo decorri-do desde o início da implantação da re-forma chilena, já dispomos de elementossuficientes – são inúmeros os artigos que

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fazem um balanço da aplicação dessaexperiência – para dizer que, pelo menosno que se refere à proteção social,3 au-mentou a situação de desamparo, sen-do crescente a quantidade de aposenta-dos que, no momento da aposentadoria,não acumularam fundos adequados para“comprar” uma aposentadoria de baseno setor privado, o que determina seu re-torno ao Estado. Essa situação caracteri-za aquilo que se chama verdadeiramentede privatização financiada pelo Estado.

No conjunto da América Latina,sob a tutela do Banco Mundial, 12 paísesreformaram seu sistema de aposentado-ria entre 1981 e 2004: Argentina (1994),Bolívia (1998), Chile (1981), El Salvador(1997), México (1997), Peru (1992), Uru-guai (1996), Colômbia (1993), Costa Rica(2000), Nicarágua (2000), Equador (2001)e República Dominicana (2003). Segun-do Ferranti e outros (2002), ao analisa-rem as primeiras experiências empreen-didas, os regimes reformados obtiveramsucesso significativo nos primeiros anos deatividade, sob o ponto de vista do volu-me de ativos administrados pelas Caixasde aposentadoria privada e do rendimen-to bruto. Ao mesmo tempo, contudo, osautores (que claramente se manifestamcomo favoráveis aos regimes privadoscapitalizados) destacam que as reformasnão possibilitaram a redução da pobreza

entre as pessoas idosas, e que o númerode contribuintes continua extremamentebaixo. Em outras palavras, as reformasnão atingiram os objetivos sociais decla-rados pelo Banco Mundial, mas possibili-taram o desenvolvimento de novo cam-po de acumulação na América Latina eoriginaram reformas no setor financeiro.

Destaque-se que o próprio BancoMundial, em seu relatório “La promesade seguridad de los ingresos en la vejezen América Latina”, disponibilizado em2004, concluiu que as reformas empreen-didas não foram bem-sucedidas no que serefere à ampliação da cobertura, isto é, nopropósito da universalização. Além disso,entre outros aspectos, sugere que os go-vernos prestem mais atenção para asse-gurar que os planos de pensão privados“ofereçam aos trabalhadores filiados e asuas famílias a melhor cobertura possívela preços competitivos”. Na linguagemmuitas vezes cifrada dessa instituição, issosignifica o reconhecimento de que o ní-vel de cobertura não é o mais adequado.

2.4_ A aposentadoria de baseno atual Regime Geralda Previdência Social

A introdução do piso correspondente aum salário mínimo pela Constituição de1988 – e que foi mantido na reforma rea-lizada posteriormente – guarda certa

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3 Também outros aspectosnão se comprovaram,tal como a eficácia domercado na gestão dosFundos, entre outros.

relação com a concepção de uma aposen-tadoria de base, tal como descrita ante-riormente. Contudo, essa relação expres-sa-se tão-somente na garantia de que ovalor mínimo da aposentadoria a ser per-cebido não pode ser inferior ao saláriomínimo,4 diferindo em relação aos ou-tros aspectos.

Sem entrar no mérito se seu valoré ou não adequado, interessa aqui desta-car que não é desprezível o número da-queles que recebem o piso correspon-dente a um salário mínimo, sem que suaparticipação direta no financiamento dosistema, isto é, sua contribuição ao lon-go da vida ativa, permitisse-lhe, em ter-mos atuariais, uma aposentadoria de va-lor igual ao salário mínimo. Entre eles,

encontram-se trabalhadores rurais quenunca contribuíram,5 mas também traba-lhadores urbanos com salário correspon-dente ao salário mínimo.6

Nesse caso, a garantia de uma apo-sentadoria de base é praticada conquantovalor mínimo, restrito àqueles sem capa-cidade de contribuição suficiente. Alémdisso, o piso foi financiado pelas contri-buições desde o início, de maneira que,na prática, foram e são os trabalhadoresdo mercado formal de trabalho que sus-tentaram sua implantação. Tendo em vis-ta que os trabalhadores rurais, mesmonão tendo contribuído anteriormente, ti-veram direito ao piso de acordo com oentendimento de que nenhum trabalha-dor poderia receber aposentadoria me-nor do que o salário mínimo, teria sidomais apropriado e adequado, como con-trapartida desse reconhecimento, que fos-sem financiados por recursos fiscais. Nocaso dos rurais, como será visto a seguir,o volume arrecadado a título de sua con-tribuição fica bastante aquém das suasdespesas. Contudo, o entendimento deque melhor seria garantir o piso tomando-se por base recursos fiscais não decorredessa situação, e sim do entendimento deque o piso, nesse caso e quando associa-do a trabalhador que contribuiu sobreum salário mínimo, assemelha-se ao con-ceito de renda mínima e, por isso, deveriaser assim financiado.

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4 Em 2005, novamenteestá em pauta a discussãosobre a vinculação do pisoao salário mínimo. Parauma análise da importânciade sua manutenção, verMarques (2005).5 A extensão do piso aosrurais, por força daConstituição de 1988, garantiuesse direito a trabalhadores queanteriormente não haviamcontribuído. Atualmente, oesforço contributivo do setorrural corresponde a 2% dareceita bruta dacomercialização da produção

(redação dada pela Lei n. 9.528,de 10 de dezembro de 1997).No Brasil, tal como em outrospaíses, essa contribuição é dedifícil fiscalização.6 É importante destacarque não se está aqui falandodos benefícios pagos pelaLei Orgânica de AssistênciaSocial (LOAS) às pessoascom 65 anos ou mais e aportadores de deficiênciaque lhes impeçam de tervida independente ou detrabalhar, cuja rendafamiliar per capita é inferiora 25% do salário mínimo.

A comparação entre a receita decontribuições oriunda da clientela rural ea despesa com benefícios da mesma cli-entela, largamente formada por aposen-tadorias de valor igual ao salário mínimo,mostra a magnitude da “distribuição derenda” que é realizada entre os trabalha-dores integrantes do RGPS. Segundo opróprio Ministério da Previdência Social,depois de instituído o piso, a receita decontribuição dos rurais nunca represen-tou mais do que 13% do total da despesacom os benefícios rurais até 1997 (Orne-las, 1999). Essa relação foi de 9,8% em1998 e de 6,3% em 2000. Em 2003, noentanto, a capacidade de “autofinancia-mento”7 do regime rural melhorou, pas-sando a representar 13,8% do total dadespesa com seus benefícios.

2.5_ A necessária complementaçãoda aposentadoria de base

Uma aposentadoria de valor base pres-supõe a existência de um regime com-plementar de aposentadoria, o qual po-de ser público ou privado, facultativoou obrigatório, por capitalização ou re-partição, financiado somente pelos tra-balhadores ou também pelos emprega-dos e empregadores.8

Nunca é demais repetir e enfatizaro que diferencia a aposentadoria em regi-

me de repartição das do tipo seguro. Aprincipal diferença reside no fato de elaser financiada por contribuições obriga-tórias que são definidas como coletivasna sua natureza. Essa diferença implicaque não há, portanto, correspondênciadireta ou imediata entre o esforço contri-butivo do trabalhador (o que ele paga aolongo da vida ativa) e o que ele irá rece-ber quando, por exemplo, se aposentar.A proteção organizada pelo Estado, daqual o RGPS é um exemplo, constitui umsistema de solidariedade coletiva, não maise não menos do que isso (Euzéby, 1997).Contudo, para os críticos desse sistema, anão-correspondência perfeita entre as con-

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7 O leitor não deve concluirdessa constatação que osautores sejam favoráveis ao“desmembramento” daSeguridade Social brasileira.Muito pelo contrário, não sósão seus defensores, porentenderem que a proteçãosocial deve ver o indivíduo nasua totalidade, isto é, na suanecessidade de cobertura aorisco velhice, doença, morte,etc., como são conscientesde que a Seguridade Socialnão deixou, em momentoalgum após sua criação,de ser superavitária. Paramaiores detalhes sobre isso,

ver, por exemplo, Marquese Mendes (2004).8 Este artigo não aborda asdiferenças de princípios e deorganização entre os regimespúblicos e os privados, comcontribuição patronal ou semela. Embora essas diferençassejam fundamentais,principalmente no que dizrespeito à solidariedadepresente nos regimes derepartição e ausente nos decapitalização, elas não são aquianalisadas, em razão daurgência de maiores reflexõessobre a instituição de umregime único no Brasil.

tribuições e o benefício é suficiente mo-tivo para justificar sua substituição porqualquer outra forma de poupança priva-da ou de seguro, que obedeçam às leis demercado. Eles não compreendem, ou nãoconsideram relevante, que a aposentado-ria pública, em regime de repartição, éum mecanismo de solidariedade baseadono princípio da distribuição de renda.

O fato de esse mecanismo ser im-posto pelas autoridades públicas aos in-divíduos e às famílias é outro alvo de crí-tica e justificativa para sua eliminação.No passado, quando os sistemas públi-cos estavam para ser implantados, o de-bate foi intenso e prevaleceu, tendo emvista o peso dos sindicatos e dos partidosvinculados aos trabalhadores, a concep-ção solidária obrigatória.9 Sem querer re-tomar essa discussão, registre-se apenasque a poupança privada, realizada livre-mente pelo indivíduo, tem alguns “in-convenientes” tais como:

a. é baseada na responsabilidade in-dividual, na qual cada um atuaconforme vê e compreende suasituação, portanto de acordocom sua visão sobre a que riscosestá exposto;

b. a poupança somente é possívelentre os indivíduos e as famíliascom suficiente renda disponível;

c. faz parte da natureza humana, emuns mais do que em outros, terforte preferência para viver o pre-sente e não se precaver com rela-ção a futuras necessidades ou vi-cissitudes que possam ocorrer.

Dessa compreensão derivou a constru-ção de uma proteção social obrigatória esolidária. É interessante lembrar, uma vezque auxilia a compreender melhor a ex-tensão dessa concepção, que o direito àrenda, em caso de perda de capacidadelaboral (seja por velhice, invalidez, sejapor doença e desemprego), está inscritona Declaração dos Direitos Humanos,aprovada em 1948 pela Assembléia Geraldas Nações Unidas (Euzéby, 1997).

É essa forma de pensar a proteçãoaos riscos que explica por que, no interiorde um sistema solidário, é possível o paga-mento de um piso acordado na sociedademesmo àqueles que, através de seu esfor-ço contributivo, não teriam “direito” a ele,se fosse levada em consideração a lógicado mercado e o cálculo atuarial, tal comoé o caso do piso de um salário mínimo noBrasil. Seria desnecessário dizer, mas ésempre importante reafirmar que, em po-líticas públicas, um regime solidário é, porprincipio, um regime de repartição. A soli-dariedade ocorre entre as gerações e os in-tegrantes de uma mesma geração.

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9 A literatura é extensasobre essa época. Paraquem quiser se aprofundarsobre o processo deformação dos sistemasde proteção social nosprincipais paísesdesenvolvidos, sugere-se aleitura de Esping-Andersen(1991). Este artigo,embora pequeno, resumebem o processo.

Ainda em relação à complementa-ção da aposentadoria, a mesma necessida-de surge quando o sistema, embora pú-blico, contributivo e de repartição, com oconcurso dos trabalhadores e dos empre-gadores, tem como teto do benefício a serpago valor relativamente baixo com rela-ção aos salários dos trabalhadores ativos.Esse é o caso da França, onde o regimecomplementar é obrigatório, de reparti-ção, administrado de forma conjunta pe-los trabalhadores e pelos empregadores efinanciado por meio das contribuições des-ses dois segmentos. Vale lembrar, no en-tanto, que, quando a obrigatoriedade foiintroduzida, em 1972, isso não provocounenhuma mudança substantiva, visto queos regimes complementares já abrangiamlargamente a maioria dos trabalhadores.

O exemplo da França serve parailustrar quando é apropriada a utilizaçãode regimes complementares obrigatóri-os: quando os valores pagos a título deaposentadoria representam parcela pou-co significativa da renda/salário dos tra-balhadores. Em outras palavras, quandoo regime geral tem teto relativamentebaixo, tanto para o valor da aposentado-ria a ser pago como para a contribuiçãodo trabalhador.

3_ Questões a ser consideradaspara a adoção de um regimegeral de aposentadoria no Brasil

3.1_ Aposentadoria de baseou rebaixamento do teto?

A adoção de uma aposentadoria de basefinanciada por recursos fiscais está forade cogitação no Brasil, no momento. Issoporque o governo eleito, a princípio, nãopode aumentar o nível de despesas, umavez que enfrenta a restrição do superávitprimário, seja por exigência do FundoMonetário Internacional, seja porque oelegeu como variável-chave da trajetóriafutura da economia brasileira. Com mui-to mais razão, se pensarmos em garantir,na velhice, uma renda digna para todos,financiada por recursos fiscais.

Considerando apenas a aposenta-doria de base, mas financiada mediante re-cursos fiscais, e se, por hipótese, entender-mos que seu valor base corresponderia aodo salário mínimo, isto é, se o atual piso vi-esse a ser a referência para o valor base, ovolume de recursos necessários seria extre-mamente alto: em dezembro de 2003, noatual RGPS, foram pagos 21,9 milhões debenefícios. Deste total, 12,1 milhões cor-responderam a aposentadorias, e 5,5 mi-lhões a pensões por morte.

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Uma seguinte alternativa seria a dereduzir o teto dos benefícios pagos peloregime atual (mantendo o financiamentomediante contribuições), na perspectivade um regime geral e da implantação deum regime complementar obrigatório. Nopassado recente, não foram poucas aspropostas que sugeriam a restrição do te-to a 3 ou a 5 salários mínimos. Todas elas,no entanto, tinham como objetivo intro-duzir a aposentadoria complementar obri-gatória e capitalizada. Eram motivadaspela idéia de que isso possibilitaria a for-mação de substancial poupança nacionale o desenvolvimento do mercado finan-ceiro. Essas proposições não receberameco na sociedade por diferentes motivos,entre eles o fato de não considerarem oenorme custo de transição que deveriaser financiado pelo Estado.

Deixando de lado esse aspecto fun-damental e, portanto, raciocinando ape-nas como exercício, a pergunta que deve-mos fazer é se o leque de renda abrangidopelo atual sistema RGPS é inadequadoou não. Do lado da contribuição do tra-balhador, temos atualmente quatro ní-veis de alíquotas que variam entre 7,65 a11%, e o teto corresponde atualmente aR$ 2.508,72. Do lado dos valores pagosem termos de aposentadoria, o mínimocorresponde a um salário mínimo, e omáximo a R$ 2.508,72. O de que precisa-

mos saber, e o Ministério da Previdênciae Assistência Social (MPAS) dispõe dessainformação, é quanto representam aque-les que contribuem para o sistema comsalários acima de 3 salários mínimos, naprimeira alternativa, e quanto represen-tam aqueles com salários ou renda acimade 5 salários mínimos. Do lado dos bene-fícios, sabemos que, em 1999, por exem-plo, do total dos benefícios concedidos,81,3% correspondiam a até 3 salários mí-nimos. Junto à clientela rural, esse per-centual atingia 99,5% e, entre a urbana,73,3%. Para esse mesmo ano, quando ovalor é ampliado para até cinco saláriosmínimos, a participação dos benefíciosalcançava 86,3 e 99,9%, respectivamente,para as clientelas urbana e rural. Aindanesse mesmo ano, o valor médio dasaposentadorias recebidas no Estado deSão Paulo era de 2,9 salários mínimos.

Esse conjunto de informações de-monstra que os valores das aposentado-rias do atual RGPS, na medida em queguardam certa relação com a capacidadecontributiva, são tão baixos quanto os sa-lários da maioria da população brasileira.Ante a realidade desses dados, qual opropósito e a eficácia de uma propostade redução de teto?

Dessa maneira, parece inadequa-da, para a realidade brasileira, tanto aadoção de uma renda digna para todos na

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velhice (mantida a restrição da geraçãodo superávit primário) como a reduçãodo teto. Da discussão inicial a que se pro-pôs este artigo, permanecem, contudo,três aspectos. O primeiro deles é que, nointerior do atual RGPS, o piso de um sa-lário mínimo constitui um valor de apo-sentadoria de base que está garantindoesse nível mínimo de aposentadoria paraquem nunca contribuiu (ou tinha baixacapacidade de contribuição) e que estásendo financiado em parte pelas contri-buições dos trabalhadores, consistindo emuma redistribuição de renda entre os tra-balhadores. Tal prática não é a forma ma-is apropriada e mais justa, principalmentequando se leva em conta o nível dos salá-rios dos trabalhadores brasileiros.

Por isso, um governo que desejasse avan-

çar na construção de uma proteção social pode-

ria resgatar o princípio de justiça social e de so-

lidariedade no sentido mais amplo, garantindo

o financiamento do piso, tal como em outros pa-

íses, através de recursos fiscais. Havendo restri-

ções orçamentárias, essa seria a oportunidade

de introduzir uma contribuição de solidarieda-

de, aos moldes do que existe na França. Dito de

outra forma, reparar a injustiça atualmente

existente, que faz a sustentação do piso recair

apenas sobre o trabalho, significa exigir que o

conjunto da sociedade financie o piso daqueles

que nunca contribuíram.10

O segundo aspecto diz respeito ase podemos, de fato, dizer que o Brasildispõe da cobertura do risco velhice. Em1998, de acordo com Pinheiro (2000), acobertura, considerando todos os regi-mes, atingia apenas 40,9% da populaçãoocupada, pouco superior à do México e àdo Equador (36%) e longe da existenteno Uruguai (69%) e nos países da OCDE(mais de 90%). Um ano antes, cerca de62% da população ocupada não contri-buíam para o RGPS, e 56% não contribu-íam para nenhum tipo de Previdência.Vale lembrar que o desenvolvimento domercado informal é crescente nos anosde crise e estagnação: entre 1991 e 2001,a participação dos assalariados sem car-teira de trabalho passou de 20,8% para27,1%, e, dos chamados autônomos, de20,1% para 23%, segundo o IBGE. Nes-se mesmo ano, 40,7 milhões de ocupadosdo setor privado da economia não eramcontribuintes do RGPS ou de qualquertipo de outro regime, o que correspon-dia a 57,7% da população ocupada nessesetor, nesse ano.

Esses dados, que refletem a rea-lidade de nosso mercado de trabalho,mostram o verdadeiro desafio que ogoverno deveria enfrentar no campo daaposentadoria: como aumentar o nívelde cobertura no País.

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Um regime único de aposentadoria no Brasil22

10 A França instituiu, em1991, a Contribuição SocialGeneralizada (CSG) –também chamada decontribuição de solidariedade.Na origem, a CSG consistiaem 1,1% calculado sobretodas as rendas, cujaarrecadação era vinculada aosbenefícios destinados àsfamílias. Dois anos depois, aalíquota passou a 1,3%, e adestinação de sua receita foiampliada, abrangendo acobertura do risco velhice,mais especificamente a rendamínima velhice para aquelesque não contribuíramanteriormente. Em1997/1998, a alíquota foiaumentada para 4,1%, e suaarrecadação começou a sertambém destinada ao riscodoença (Euzéby, 1991;Sterdyniak e Villa, 1998).

Essa realidade – de grande pre-sença do trabalho informal – é um traçocaracterístico dos países da América Lati-na, que, ao contrário da Argentina, doUruguai e do Chile, tiveram trajetória di-ferente no passado, no que se refere aopeso político dos trabalhadores na defi-nição de seus direitos.11 No caso brasi-leiro, objeto deste artigo, um dos maio-res desafios é trazer para a formalidadeo assalariamento sem carteira de traba-lho, mas também os autônomos. E osmotivos que ocasionam tal situação sãobastante diferentes.

A existência de contingente signi-ficativo de assalariados sem carteira assi-nada é sinal, em primeiro lugar, da fracapresença do Estado na regulação e nocontrole da economia e de suas relações.Os empregadores que não assinam a car-

teira de seus trabalhadores estão, na mai-or parte das vezes, na ilegalidade, no quediz respeito a suas outras obrigações, es-pecialmente em relação ao fisco. O se-gundo grande motivo, entre outros, é afraqueza relativa da organização dos tra-balhadores brasileiros vis-à-vis os do Co-ne Sul, já citados. Nas categorias de tra-balhadores onde há uma tradição de lutae o nível de organização é grande, dificil-mente encontraremos tamanho peso dotrabalho informal. Diante disso, somenteo esforço conjunto do Estado e dos tra-balhadores poderá alterar essa realidade.Buscar as formas para que os controlessejam efetivos é tarefa do novo governo.

Quanto aos chamados autôno-mos,12 a tarefa é ainda mais complexa,uma vez que envolve componentes deoutra natureza. Isso porque a adesão ao

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11 Atualmente, tendo em vistaa implementação de políticasneoliberais, os três países sedefrontam com o mesmoproblema, com uma baixa taxade contribuição e de coberturada Previdência Social. Talvez asituação mais emblemáticaseja, hoje, a da Argentina.Mesmo no Chile, onde aimplementação de um regimeprivado e de capitalização poralgum tempo foi anunciadacomo o exemplo exitoso

da “modernidade”, acobertura das Administradoras

de Fondos de Pensiones (AFPs)não passa de 40%, e adificuldade de incorporar osinformais é significativa

12 A Lei n. 10.666, de 8 demaio de 2003, definiu acontribuição do autônomo,bem como de todos queintegram a categoria decontribuinte individual, comosendo 20% sobre o salário de

contribuição. A proposta deemenda constitucional daPrevidência, chamada de PECParalela, sugere a reduçãodessa alíquota para 11% sobreo salário mínimo, quando nãofor o caso de trabalhador queeventualmente presta serviçosa empresas. Em 22 de junhode 2005, o senador RodolphoTourinho (PFL-BA)informava ao plenário queapresentaria à Comissão deConstituição, Justiça e

Cidadania (CCJ) seu parecernas próximas 48 horas. Entreoutras modificações, a PECParalela – Proposta deEmenda Constitucional77A/03, encaminhadana sua primeira versãoao final de 2003 –, buscaminimizar os efeitos dareforma da Previdência dosetor público, encaminhadapelo governo Lula.

RGPS, ou a qualquer outro regime, é vo-luntária, o que determina a necessidadedo enfrentamento tanto da imprevidênciadaqueles que tendem a considerar que ofuturo, quando a velhice fizer valer a suaforça, está muito longe, quanto da falta deconfiança que o brasileiro tem, em geral,em relação as suas instituições. Na histó-ria da construção dos sistemas de prote-ção social, o primeiro aspecto, presenteem qualquer segmento da população, foiresolvido mediante a instituição da obri-gatoriedade. O segundo, isto é, a seguran-ça em relação à instituição da proteção so-cial pública ou dos regimes de seguro paraa aposentadoria foi construída ao longodo tempo de demonstração efetiva de suaproteção. Em relação a isso, o fato de oBrasil, durante os últimos 16 anos, estardiscutindo a reforma e promovendo mo-dificações na legislação relativa à aposen-tadoria e aos demais benefícios – seja doRGPS, seja do funcionalismo público –contribui para a perda de confiança em re-lação ao sistema público.

Uma “solução” para instituir a obriga-

toriedade seria exigir que em todas as atividades

onde habitualmente precisa-se informar o núme-

ro do registro geral, isto é, da identidade, fosse in-

formado do número de registro ao regime público.

Para essa medida entrar em vigor, seria dado um

prazo que possibilitasse os acertos devidos (para

as empresas registrarem seus trabalhadores e pa-

ra os autônomos se inscreverem no sistema). No

caso dos autônomos, seria lhes exigido apenas

uma adesão contributiva que lhes garantisse, no

futuro, o piso da aposentadoria. Medida desse tipo,

por mais autoritária que seja, precisa, no entanto,

do amplo apoio da população e de seus diferentes

segmentos. Campanhas esclarecedoras e o engaja-

mento de setores, tais como o comercial, o bancá-

rio, o de lazer, entre outros, são fundamentais.

3.2_ Um regime único para todosA proposta de promover a unificaçãode todos os regimes em um regime geralnão é nova, como mencionado na intro-dução deste artigo. À parte pela razãode os proventos serem significativamen-te mais altos em alguns segmentos, taiscomo entre os juízes, os deputados e ossenadores, por exemplo, há a idéia, bas-tante difundida entre a população brasi-leira, de que os funcionários públicossão privilegiados, visto que, até há poucotempo, todos tinham garantido que o va-lor de sua aposentadoria corresponderiaa seu último provento.

O fato de os funcionários públi-cos terem um regime próprio não é umarealidade apenas brasileira. Quando sevolta o olhar para outras experiências fo-ra do Brasil, verifica-se que isso não éuma formação institucional única, carac-

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Um regime único de aposentadoria no Brasil24

terística do processo histórico do País.Constata-se, por exemplo, que, na maio-ria dos países membros da Organizaçãode Cooperação e Desenvolvimento Eco-nômico (OCDE), os funcionários fede-rais são cobertos por regimes de apo-sentadoria particulares e especialmenteconcebidos. Esses regimes são totalmen-te independentes ou complementares aoregime geral nacional. Eles concedem van-tagens, em relação ao sistema dos traba-lhadores do setor privado, que variam depaís a país. Há casos em que, em um mes-mo país, co-existem vários regimes, quecobrem as diferentes categorias de funci-onários e empregados do Estado.

Na maioria deles, consistem de re-gimes de repartição, financiados pelo or-çamento do Estado e, em todos eles,os regimes dos funcionários públicos sãoanteriores aos dos trabalhadores do setorprivado da economia. Aliás, é interessantenotar que tanto os sistemas de aposenta-dorias legais de base quanto os comple-mentares derivam do sistema de aposen-tadoria profissional do setor público. Issoporque o Estado foi o primeiro emprega-dor a organizar a cobertura das necessida-des de seus funcionários e dependentes,desenvolvendo sistemas para o caso develhice, invalidez, entre outras situações.

Segundo relatório divulgado pelaOCDE (1997), a maioria de seus países

membros construiu a proteção social dosfuncionários do Estado considerando queas aposentadorias são rendas prolongadas,mas reduzidas, pagas pelo orçamento doEstado, assim como o são os proventosdos funcionários. Nesse caso, os funcioná-rios que tinham sido agentes do Estado navida ativa continuavam a ser assim consi-derados quando aposentados. Isso não im-plica que os funcionários do Estado nãocontribuam para o financiamento de suaproteção. O que se quer aqui destacar éo fundamento que originou o tratamentoconcedido aos funcionários públicos, a deque seus trabalhadores permanecem funci-onários públicos por toda a vida, enquantoativos e enquanto inativos.

Essa concepção, segundo esse re-latório, está fundada no fato de as regrasque governam a função pública diferiremem todos os aspectos daquelas que regemas relações entre empregadores e empre-gados no setor privado. Para começar, osfuncionários exercem a autoridade públicamais do que simplesmente a representam.Isso acarreta uma série de obrigações e sa-crifícios, entre os quais a razão de os sa-lários serem geralmente mais baixos,quando comparados ao do setor privado,para igual nível de qualificação e respon-sabilidade. Para compensar essa situação,o Estado se comprometeu a cobrir asnecessidades dos funcionários pelo res-

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tante de suas vidas. Nesse sentido, a es-tabilidade, tão falada como um privilé-gio dos funcionários públicos, estende-separa toda a vida do funcionário público ederiva, historicamente, do caráter da fun-ção exercida pelo servidor. Isto é, as con-dições de emprego e os regimes de apo-sentadoria corres- pondentes fazem parteintegrante das regulamentações aplicáveisàs suas funções.

Na medida em que o beneficio deaposentadoria é considerado uma rendaque se prolonga para o período de inati-vidade do funcionário público, a base decálculo é, geralmente, o provento de fimde carreira, e seu valor corresponde, emmédia, a 75 – 80 % do provento líquido.Dessa forma, conquanto renda prolon-gada, a aposentadoria lhe garante umnível de vida similar àquele de quandona ativa. Vale dizer que, quando os fun-cionários públicos contribuem para o fi-nanciamento de seu regime de aposen-tadoria, os valores aportados consistemsomente em aproximações, já que não hánenhuma relação com o valor da aposen-tadoria, dado que essa é considerada umarenda prolongada.

Considerando esses princípios erealidades dos países da OCDE, verifi-ca-se o grau de complexidade das ques-tões que estavam envolvidas quando ogoverno Lula encaminhou em 2003 (e

conseguiu aprovar) modificações subs-tantivas no regime de aposentadoria dosservidores brasileiros. Essa complexida-de torna-se mais aguda ainda quando ohorizonte perseguido é a criação de umsistema único, que não faça distinçãoentre os trabalhadores do setor privado eos do setor público.

Mas serão os funcionários públi-cos realmente privilegiados? Para res-ponder a essa questão, seria importanteque se abandonasse a análise da simplescomparação entre os valores das apo-sentadorias vis-à-vis o último salário ouprovento e se passasse a focalizar a com-paração entre a totalidade da renda obti-da durante a vida ativa e a inativa (quan-do aposentado) dos dois segmentos detrabalhadores. Embora não seja propó-sito deste artigo a realização desse exer-cício, vale destacar quais questões deve-riam ser levadas em conta na elaboraçãodesse cálculo. São elas:

1. quanto maior o nível de qualifi-cação e experiência, maior é a di-ferença entre os salários pagospelo setor privado e os proven-tos pagos pelo governo federal;

2. as alíquotas das contribuições dostrabalhadores do setor privado sãoprogressivas e submetidas a umteto, enquanto que a dos funcio-

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Um regime único de aposentadoria no Brasil26

nários públicos federais, antes dareforma, e sem exceção, consistiade 12% sobre o total do provento;

3. os trabalhadores do setor privadopodem, no momento da aposen-tadoria, ter acesso ao seu Fundode Garantia de Tempo de Servi-ço (FGTS), o que, evidentemen-te, não é devido ao funcionáriopúblico, uma vez que ele contacom a estabilidade.

Considerando essas informações,nossa hipótese é a de que seria bastanteprovável que, calculada a renda do “ci-clo de vida” dos trabalhadores do setorprivado e dos funcionários públicos, pa-ra igual nível de qualificação, os valo-res, devidamente atualizados, tenderiama ser próximos.

Esses elementos indicam a neces-sidade de uma melhor reflexão sobre pro-posições que tendam a tratar da mesmaforma os funcionários federais e os tra-balhadores do setor privado em matériade aposentadoria. A simples idéia de igual-dade de tratamento não parece adequa-da, já que deixa de considerar que as si-tuações de inserção são verdadeiramentediferentes, isto é, não há como tratar deforma igual situações desiguais.

A instituição de um regime úni-co deveria ser concomitantemente acom-

panhada pela mudança do estatuto dofuncionário público, de forma que suasobrigações e deveres se igualassem às dotrabalhador do setor privado. Em outraspalavras, seria necessário que o funcioná-rio público deixasse de ser funcionáriopúblico dentro dos termos explicitadosacima. Resta saber se isso é possível deser feito e mesmo desejável.

4_ Notas conclusivasA proposição da unificação dos regimesno Brasil suscita discussões sobre a perti-nência da adoção de uma aposentadoriade base, a necessidade de ser promovidaa ampliação da cobertura do risco velhicee sobre a diferença de estatuto entre osfuncionários públicos e os trabalhadoresdo setor privado.

Tendo em vista a realidade brasilei-ra, a ampliação da garantia do risco velhicepara todos enfrenta o constrangimento,no momento definida pelas autoridadesgovernamentais como intransponível, daexigência de realização de superávit pri-mário. Por outro lado, a adoção de umaaposentadoria de base, implicando a re-dução do teto atualmente existente paraos benefícios, também não parece muitoadequada. Para tal proposição ser im-plantada, o valor da aposentadoria de base

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necessitaria ser extremamente baixo emrelação aos valores atualmente pagos peloRGPS, por exemplo. Isso porque a parti-cipação relativa do número de benefícioscompreendidos nas faixas até 3 ou 5 salá-rios mínimos é extremamente significativa.

Seria desejável, no entanto, que adespesa correspondente ao piso de umsalário mínimo, pago a quem nunca con-tribuiu, fosse financiado por recursos fis-cais. Tal modificação, além de corrigiruma injustiça (a de que a redistribuiçãode renda, que garante o recebimento dopiso por aqueles que nunca contribuí-ram, está sendo financiada somente pe-los trabalhadores), seria o embrião deuma futura etapa, aquela do reconheci-mento de que todos têm direito a umarenda digna na velhice.

Para a ampliação do nível de cober-tura junto aos ocupados, seria necessárioque o governo buscasse formas de aplica-ção do princípio da obrigatoriedade aochamado setor autônomo, que, ao mesmotempo, pudessem servir de instrumentode efetivo controle do cumprimento da leino setor empregador que não registra acarteira de seus trabalhadores. Por maisautoritário que possa parecer para alguns,o princípio da obrigatoriedade foi aqueleque permitiu o surgimento dos regimespúblicos, tais como os conhecemos.

Em relação aos privilégios dos fun-cionários públicos, argumento para suaintegração a um regime geral, sugere-semaior reflexão. Para isso propõe-se o aban-dono da simples comparação dos valoresdas aposentadorias em relação aos saláriose proventos, e a adoção da comparaçãoentre a renda percebida durante a totalida-de do ciclo de vida. É nosso sentimentoque, para o mesmo nível de qualificação,as rendas tendem a ser iguais.

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Referências bibliográficas

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