um princÍpio de conversa: pensar a docÊncia e as … um princÍpio de conversa... · no primeiro...
TRANSCRIPT
UM PRINCÍPIO DE CONVERSA: PENSAR A DOCÊNCIA E AS POLÍTICAS
DE FORMAÇÃO COM A ESCOLA PÚBLICA, COMPARTILHAR FAZERES E
SABERES NA PRODUÇÃO DO CURRÍCULO
Alexandra Garciai
Neila Espíndolaii
RESUMO
O espaço de formação docente precisa ser pensado como permanente, no sentido das
interlocuções necessárias à produção de conhecimentos que se fazem tanto com as
pesquisas no campo da educação quanto na interlocução entre os professores nas escolas.
O texto é fruto da análise das ações formativas implicadas na produção do currículo de
um processo de formação empreendido com dezessete municípios da serra fluminense
entre os meses de janeiro a dezembro de dois mil e treze por ocasião da implementação
de ações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Esse processo
foi registrado com o auxílio de diferentes instrumentos e ferramentas, para que
pudéssemos, não apenas empreender o trabalho, como, avaliá-lo com os professores
orientadores e refletir sobre os aspectos teóricos-práticos enunciados pelos princípios e
pelo trabalho no que se refere aos saberes docentes e sua produção. A partir desses
registros, é possível abordarmos alguns desses aspectos nesse texto. O trabalho narra e
analisa experiências e estratégias desenvolvidas durante a formação para discutir a
contribuição do espaço-tempo dos encontros entre professores e entre universidades e
escolas nas produções político-pedagógicas políticas voltadas para a formação. Busca,
ainda, pensar o compromisso político e epistemológico da universidade na interação com
as políticas oficiais além de pensar a produção instituinte de saberes, valores e práticas
no currículo de uma experiência de formação.Afina-se, quanto à metodologia, a uma
pesquisa-formação e busca, com isso, evidenciar e discutir as articulações de saberes que
acionam/produzem os espaços de formação pautados em diálogos universidade-escolas e
na produção coletiva de reflexões e intervenções.
Palavras-chave: Currículo. Espaços Coletivos. Processos Formativos.
O trabalho docente na contemporaneidade é impactado por demandas que
extrapolam o cenário da sala de aula. Diante das constantes demandas, geralmente
associadas a políticas governamentais e raramente das demandas e do tempo de cada
local, os professores são impelidos a adequar-se a mudanças de cunhos diversos. Fazendo
parte de uma empreitada nem sempre sua, ficam as escolas e seus sujeitos com a tarefa
de implementar “alternativas” que possam ao mesmo tempo ser vistas de longe – isto é,
que se verifiquem em larga escala – e realizar-se em curto prazo.
O espaço de formação docente precisa ser pensado como permanente, no sentido
das interlocuções necessárias à produção de conhecimentos que se fazem tanto com as
pesquisas no campo da educação quanto na interlocução entre os professores nas escolas.
Entendemos que tal compreensão nos traz a possibilidade de compartilhar e produzir
saberes e práticas de forma mais coletiva e solidária como lógica constitutiva do trabalho
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303943
docente. A discussão que realizamos aborda as ações formativas implicadas na produção
do currículo de um processo de formação empreendido com dezessete municípios da serra
fluminense entre os meses de janeiro a dezembro de dois mil e treze por ocasião da
implementação de ações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).
Narra e analisa experiências e estratégias desenvolvidas durante a formação para discutir
a contribuição do espaço-tempo dos encontros entre professores e entre universidades e
escolas nas produções político-pedagógicas políticas voltadas para a formação. Afina-se,
quanto à metodologia, a uma pesquisa-formação e busca, com isso, evidenciar e discutir
as articulações de saberes que acionam/produzem os espaços de formação pautados em
diálogos universidade-escolas e na produção coletiva de reflexões e intervenções.
Consideramos para o trabalho de formação no Polo da Região Serrana do Rio de
Janeiro que os processos formativos acontecem nas trajetórias do exercício da profissão
e se confundem com a própria vida do professor (Nóvoa, 2007) e sua produção identitária.
Este é um processo que ocorre em múltiplos contextos (Alves, 1998) nos quais o professor
está social e culturalmente inserido e com os quais os saberes e valores que opera ao fazer
escolhas e dar sentido às suas práticas são permanentemente produzidos. Entendemos que
esse movimento precisa ter espaço garantido e orientado para sua discussão, de modo a
potencializar o processo e a permitir a reflexão intencional, política e metodológica sobre
suas bases e suas possíveis implicações, propiciando a que se construam novos
conhecimentos e ações. É na potencialização e na consolidação desse espaço-tempo para
que as interrogações, trocas e reflexões possam emergir que investimos buscando
fortalecer os diálogos que podem convergir com os processos formativos e respoder às
questões que nos colocamos sobre a educação, a escola básica, a alfabetização e a
formação de professores na contemporaneidade.
Nesse sentido, entendemos que o papel da universidade junto às políticas oficiais
extrapola a mera implementação e se faz na caracterização político-pedagógica e
instituinte do currículo produzido com o trabalho junto aos professores. A produção de
uma política, segundo Ball e Bowe (1992), é dinâmica e referenciada em diferentes
contextos que se relacionam no que chamamos de “implementação”. Os autores apontam
a articulação desses contextos através do ciclo de políticas – ferramenta de análise que
auxilia a comprender a articulação entre os contextos: da prática, de influência e da
produção de textos na produção das políticas. Entendemos que esse movimento pode ser
intensificado pelo compromisso que a universidade assume ao intervir no que seria a etapa
de implementação de uma política oficial. Essa compreensão, ao nos mostrar a
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303944
interpenetração dos contextos na produção das políticas, mostra, ainda, como são
incontornáveis e instituintes os processos de significação que as práticas sociais e
culturais acionam.
A ação de formação desenvolvida no Polo esteve, assim, implicada em pensar o
compromisso político e epistemológico da universidade na interação com as políticas
oficiais além de pensar a produção instituinte de saberes, valores e práticas no currículo
de uma experiência de formação. Nesse sentido, as intervenções de natureza política-
epistemológica que deram forma às ações precisam ser entendidas como produtoras de
políticas e de currículo no que se refere aos saberes, sentidos, valores e práticas
partilhados/tecidos no processo. O debate com relação às noções de currículo e sobre a
produção dos currículos foi o fio condutor dos sentidos, saberes e valores envolvidos na
produção política e curricular da formação no polo. Na leitura dos documentos de
apresentação e regulamentação do pacto podemos notar que as noções de currículo com
as quais a proposta opera privilegiam entendê-lo em sua materialidade, ou seja, o objeto
currículo que pode ser descrito e operado segundo sua descrição, servindo a diferentes
fins na construção de um projeto de sociedade e de sujeito. Apesar de outras noções
estarem presentes no documento, suas apropriações se diluem em função desse sentido.
No primeiro volume da coleção intitulado: “Currículo na Alfabetização:
concepções e princípios” (MEC, 2012) o texto segue uma linha explicativa que busca
apresentar os princípios para o desenvolvimento do currículo na alfabetização. No
decorrer dos textos que a unidade apresenta as reflexões acerca do currículo centram-se
em discussões sobre “O que ensinar”, expressão não raramente presente nos volumes e
destacada no título de um dos capítulos do primeiro volume: “Concepções de
alfabetização: o que ensinar no ciclo de alfabetização” (MEC, 2012, pág. 17). A ideia de
currículo associada a uma questão de planejamento e organização de conteúdos também
está fortemente marcada pelo modo como é apresentada a síntese da discussão sobre
“Direitos de aprendizagem”, conceito central no material que serve de base à organização
dos cursos de formação dos professores orientadores e alfabetizadores. A expressão
associa-se ao acesso a conhecimentos propriamente ditos ou aos que estariam envolvidos
em promover a construção de habilidades e competências entendidas como de direito para
uma educação de qualidade. Por fim, os direitos são elencados em quadros ao final dos
volumes da unidade 1, principalmente.
Com base em tal compreensão, o desenvolvimento de nosso trabalho preocupou-
se em interrogar essa noção subjacente à expressão “Direitos de aprendizagem”, tal como
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303945
aparece nos cadernos de formação (MEC/SEB, 2012a). Buscamos com isso evitar uma
compreensão limitadora do termo currículo afirmando que o conhecimento não constitui
objeto ao qual se tem acesso, mas sim que é produzido em movimentos complexos que
envolvem interações entre os sujeitos, as culturas e processos de significação.
Entendemos que um currículo é um espaço onde se produzem políticas, sentidos e se
disputam, entre os tantos sentidos produzidos, as imagens e representações de
“identidades sociais”. Defendemos que tais compreensões são fundamentais para que o
professor possa compreender o que efetivamente os alunos estão produzindo nas
atividades pedagógicas e possam, com isso, intervir nessa produção, com ela dialogando.
Entendemos que o modo como os processos de formação de professores podem ser
compreendidos interfere na concepção e produção dos currículos para a formação docente
e na reflexão sobre a produção efetiva dos currículos.
Desse modo, discutimos com o grupo constituído por oitenta e oito professores
das redes dos municípios do polo – responsáveis no pacto pela orientação-formação de
professores alfabetizadores em suas cidades – a concepção de currículo como produção.
Devido às questões levantadas sobre as concepções de currículo e ao formato adotado por
muitas ações e programas nacionais voltados para a formação de professores, geralmente
identificado pela expressão formação em cascata (Gatti, Sá e André, 2011), consideramos
importante discutir: o que se produz com os processos formativos; o que está implicado
em uma proposta-política de formação.
Os princípios e fudamentos teórico-metodológicos a que nos referimos na
sequência desse texto, refletem o trabalho produzido com os professores do polo. Em
nossos princípios de formação elegemos concepções e práticas que pudessem, assim,
contribuir com os processos formativos no sentido de afirmar os sujeitos desse processo
como ativos na produção de sentidos dos currículos e, portanto, co-responsáveis na
produção das políticas, sentidos e valores que as práticas educativas mobilizam. Os
princípios produzidos pela equipe do Polo “Região Serrana” dialogam e interrogam os
princípios colocados no material do MEC para o trabalho de formação com os
orientadores e alfabetizadores e com os princípios discutidos com as demais equipes dos
polos que formam a equipe do Rio de Janeiro. Constituem, assim, uma assinatura do Polo
com relação ao modo como, a partir da análise das políticas oficiais, dos aspectos
epistemológicos e metodológicos que assumem e de nossas compreensões e lutas no
campo da formação e da alfabetização, pensamos o trabalho na formação com os
professores da Escola Básica.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303946
São tais princípios: Diálogos universidade-escolas: a valorização dos saberes
produzidos pelos professores em suas práticas; As narrativas e a sistematização dos
conhecimentos produzidos pelos e com os professores; A experiência e a produção do
currículo; O compromisso político com a escola pública e a alfabetização dos alunos das
classes populares; As práticas como espaço de produção político-emancipatório; Os
textos culturais como recurso didático e estético; Ouvir as vozes da escola; Vivenciar os
princípios de formação nos processos formativos propostos. Os termos presentes nos
princípios sinalizam as disputas pelos sentidos de docência, formação, conhecimento e
currículo. Entendemos que a produção política não se dá em esferas exteriores à nossa
atuação. Ela é alimentada, também, por nossas práticas e sentidos que
carregam/produzem, a resistência às ditas "políticas oficiais" e ao que elas portam - em
termos de intencionalidades, valores e ideologias. Portanto, essa produção se realiza no
campo da afirmação, em nossas práticas, das produções micro-políticas cotidianas de
nossas intencionalidades, valores e saberes.
A produção do currículo com os professores do Polo, procurou, nesse sentido,
garantir espaços de encontros múltiplos que permitissem produzir deslocamentos de
representações demeritórias e fatalistas quanto às escolas e suas possibilidades
(GARCIA, 2010). Ao mesmo tempo, recorremos aos espaços dos encontros para
compartilhar os sentidos de docência e escola vividos pelos professores, que emergem ao
partilharem suas experiências, angústias, conflitos, histórias. Diferentes questões
levantadas nessa produção expressam preocupações simultaneamente políticas e
pedagógicas que se negociaram nos processos formativos vivenciados.
“Por que nossos alunos não aprenderam como esperávamos?” “Quais
são nossas responsabilidades?” “Quais não são?” “Que estratégias de
trabalho docente melhor se adequam aos nossos alunos e a que pessoas
desejamos formar?” “Como avaliar sem reprovar?” “É preciso fazer
prova para avaliar?” “O que cada um pensa sobre estes pontos?” “A que
conclusões chegamos?” “ Que compromissos podemos assumir?iii”
Destacando algumas dessas interrogações que atravessaram a formação de uma
das turmas de Orientadores de Estudo do polo percebermos como tais questões dão forma
à preocupações surgidas no trabalho dos professores em seu dia-a-dia nas escolas.
Também, precisamos considerar, ao discutir os processos formativos e seus currículos, a
pertinência de que essas preocupações sejam expressas, compartilhadas e formuladas para
que contribuam com a produção de saberes docentes e escolhas político-pedagógicas na
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303947
produção dos currículos. Esse foi um processo que buscamos registrar com o auxílio de
diferentes instrumentos e ferramentas, para que pudéssemos, não apenas empreender o
trabalho, como, também, avaliá-lo com os professores orientadores e refletir sobre os
aspectos teórico-práticos enunciados pelos princípios e pelo trabalho desenvolvido no que
se refere aos saberes docentes e sua produção. A partir desses registros, foi possível
abordarmos alguns desses aspectos nesse texto a título de “um princípio de conversa”.
Tomamos por base as questões por nós apontadas na primeira parte do texto quanto à
formação, os objetivos da discussão e o processo vivido-narrado por uma das autoras
como formadora responsável por uma turma, como também os registros do
acompanhamento da formação no polo e das conversas com os professores orientadores
e coordenadores municipais ao longo da formação, pela outra autora como supervisora
responsável pelo polo.
Durante as discussões realizadas com uma das turmas - “Gonzaguinhaiv” – vários
momentos propiciaram que emergissem questões como as destacadas. Considerando os
princíos do trabalho e da produção do currículo nos processos formativos, as estratégias
buscaram responder de forma coerente a esses princípios. Com o grupo sempre em roda,
buscou-se iniciar as discussões/estudos sempre a partir de conceitos latentes, presentes
nas falas das orientadoras, de suas expectativas e de experiências que algumas das
professoras-orientadoras se dispunham a compartilhar. A partir daquilo que emergia,
promoviam-se os diálogos com os autores e teorias propostos pela equipe do polo para
cada um dos encontros.
Ao analisarmos a estratégia, percebemos que exigia um trabalho
permanentemente atento às compreensões tecidas pelo grupo. Por vezes percebia-se que
um ponto não tinha sido compreendido da maneira como esperávamos. A intervenção
diante dessas situações procurava manter a ideia de uma produção mais coletiva e
horizontalizada, sem que se impusessem as contribuições teóricas devolvia-se a questão
ao grupo em forma de problematização das compreensões, reformulando-se a abordagem
de noções e conceitos e, principalmente, buscando no próprio grupo a contribuição dos
parceiros para relacionar aquele novo conhecimento à experiência. Podemos considerar
que esse era um exercício implicado em rever o discutido e dar vida às teorias. Também,
confrontá-las com as práticas, experimentando suas contribuições de forma a pensar, a
partir delas, seus limites e a necessidade de formularmos questões que permitam produzir
outros conhecimentos teóricos que visem responder às novas questões colocadas pelos
desafios enfrentados por aqueles que vivem a escola cotidianamente.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303948
Outro aspecto que percebido nessa análise refere-se aos momentos em que
abordávamos temas polêmicos, nos quais havia divergência de concepção, como na
discussão dos métodos de alfabetização, quando buscávamos relacionar as diferenças dos
métodos com aquilo que se esperava alcançar com os estudantes. O que se confrotava não
eram as posições divergentes, mas os próprios temas com relação aos métodos, estratégias
e tipo de trabalho que mostravam-se mais orientados para alcançar objetivos mais amplos
na educação. Esse processo permitia ouvir as diferentes vozes em suas dissonâncias, sem
que o diálogo levasse à anulação de ideias ou práticas, mas mobilizando as revisões e
questionamentos dos objetivos, princípios e ações. Nesses momentos as reflexões
coletivas também necessitavam se debruçar sobre determinados jargões que repetimos
em nossos discursos e vemos presentes em muitas políticas voltadas para a educação.
Embora muitas vezes guardem objetivos políticos socialmente relevantes, os jargões
acabam por esvaziar-se desses sentidos por repetições de formulações esteticamente
desgastadas e pouco problematizadoras. O que queremos, afinal, quando falamos em
“formação de cidadãos críticos e autores de suas histórias”? O que entendemos por
“formar cidadãos”? Esse processo, não era tranquilo ou consensual mas, buscava-se
dialogar debatendo os diferentes “pontos de vista”. Algumas vezes, também, as premissas
das diferentes posições precisavam vir à tona, num exercício ora de tradução entre
diferentes sentidos, valores e visões de sociedade, ora de deslocamento desses elementos
nos embates, das concepções e posições iniciais. É importante destacar, que o objetivo
dos diálogos e questionamentos era o exame das premissas e implicações dos diferentes
discursos, posicionamentos e saberes que possibilitasse a cada um a produção de
compreensões, saberes e práticas afinados com os entendimentos políticos e pedagógicos
que defendiam.
Segundo Larrosa (2004), na sociedade contemporânea a experiência é,
frequentemente, substituída pela opinião. Com isso, os processos de produção cotidiana
de conhecimentos e valores também sofrem essa prática social (cultural) da busca de
opiniões, nas quais pautam-se alguns discursos e ações. Quando a informação e a opinião
se sacralizam, muitas vezes num esforço pela hegemonia do pensamento, o sujeito reduz-
se a um suporte informado da opinião pública ou individual. Um sujeito incapaz de
experiência (Larrosa, 2004), posto que opinar reduz-se, com frequência, a estar contra ou
a favor de uma informação que recebemos.
Estamos permanentemente empenhados em fazer coisas e esse fazer,
especialmente quanto ao trabalho, associa-se ao mudar as coisas. Nesse afã que nos
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303949
impossibilita parar, marcante da profissão docente, são raras as oportunidades de que algo
nos passe. Assim, a relevância de buscar-se espaços e recursos de deslocamento das
concepções e representações de docência, bem como de fugir a respostas essencialistas e
universalizantes para pensar a formação docente vai ao encontro da ideia de, com nossas
pesquisas e ações na formação de professores, criar um espaço epistemológico, político e
metodológico capaz de reabilitar os sentimentos e as paixões enquanto forças
mobilizadoras da transformação social (SANTOS 1995, p. 332).
Uma das compreensões a que pudemos chegar, revisitando todo esse processo nos
leva a reconhecer, nas múltiplas experiências diárias, fragmentos de histórias vividas e
possibilidades de criação de diferentes histórias que se potencializam nas negociações de
sentidos e através dos diálogos que acionam as redes de saberes-fazeres em um coletivo.
Ao compartilhar as memórias de alfabetização, por exemplo, cada orientador ou
orientadora pôde colocar-se na posição de autor de sua história e do seu trabalho. Ouvir
as experiências vividas pelos companheiros da turma promoveu também o respeito à
alteridade necessário para quem atua com os professores. Consideramos, assim, que
relatar e ouvir experiências possibilitou um rico movimento de repensar as práticas de
trabalho. Segundo relatos apresentados pelas orientadoras, realizar esta atividade em seus
municípios também provocou e instigou as professoras a reverem seus conceitos e
práticas. Uma das orientadoras registra assim a participação nas discussões:
(...) E um dos momentos mais marcantes tanto nos encontros no meu
município quanto em minha formação é perceber que quem mais tem
contribuído em meu crescimento são aquelas pessoas com uma história
de vida “menos favorecida”. Elas se colocam e contribuem de forma
muito mais consistente à luz das teorias. Enquanto pessoas “ditas” mais
esclarecidas ficam procurando palavras para se colocarem, quero dizer
“falar bonito” e nem sempre se fazem compreendidas, pessoas mais
simples relatam com humildade fatos e informações que realmente
fazem parte do cotidiano de nossas escolas e com um grau de
esclarecimento incontestável. E assim, me levam a refletir sobre a
concepção de linguagem em nossa formação. É inacreditável como tal
conceito se fez presente nesses momentos de formação.(E.)
Afirmamos que ao operar os sentidos políticos, metodológicos e epistemológicos
do documento oficial que serve de base à formação dos professores orientadores, os atores
envolvidos na produção das políticas efetivas de formação são também autores da
produção curricular que emerge com o trabalho dos membros do polo. Pensar os campos
de conhecimento a serviço das questões políticas e sociais exige da universidade pública
reiterar seu compromisso com a escola pública. Também traz para nós, professores,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303950
implicações no modo como entendemos a produção dos currículos nos processos de
alfabetização e os diálogos necessários com os sujeitos que fazem as escolas a cada dia e
suas questões. Um currículo como espaço de produção cultural e política é o espaço da
opção, da criação e da afirmação daquilo que apostamos e investimos como política de
educação e conhecimento. O currículo produzido com o polo permitiu que muitas ações
fossem planejadas, compartilhadas e efetivadas nos municípios e entre eles, desde a troca
de sugestões de dinâmicas que mobilizam os professores, ao planejamento das formações
e de projetos. Pensar os processos formativos a partir das produções e experiências das
pessoas que dão vida e sentido às escola consiste num exercício processual de fazer e
pensar a formação docente e os currículos. Um processo onde a experiência e a teorização
das práticas curriculares e formativas podem ser entendida a partir do desafio que nos é
colocado no fazer cotidiano das escolas de ler um mundo móvel e multiforme (Calvino,
1996).
“E há quanto tempo não tínhamos uma política de Estado para formação de
professores em Alfabetização?!” Muitos professores, embora tenham existido ações
recentes voltadas para a formação e, em especial, para professores alfabetizadores, não
guardavam lembranças dessas ações terem alcançado muitos dos municípios do Polo.
Nesse sentido, vários professores, no papel de orientadores de estudos, sentiram-se
valorizados com o espaço e os processos desenvolvidos, apesar dos inúmeros problemas
operacionais com os quais tivemos que lidar e que muitas vezes comprometiam a
formação, além das tantas questões políticas, epistemológicas e metodológicas que o
programa suscitou entre pesquisadores e professores no país.
Estar junto a outros colegas, ser ouvido, ouvir, pensar junto, compartilhar
experiências, entre tantos outros movimentos provocados e possibilitados pela ação foram
alguns dos sentimentos evocados pelos professores em suas avaliações. Consideramos
que é importante salientar a partir dessa experiência o compromisso necessário às
políticas em educação da garantia e do investimento em espaços-tempo de formação e de
lógicas para políticas voltadas para formação continuada que permitam o protagonismo
dos professores na produção coletiva de outros-novos sentidos para o fazer-saber docente,
renovando o compromisso político com a escola pública permanentemente. Entendemos,
portanto, que é possível pensar os processos e ações formativas que nos possibilitem
novas modalidades de socialização/formação pessoal e profissional [em] (...) coletivos
entendidos como espaço de reflexão e intervenção, de socialização de experiências
(PRADO e CUNHA, 2008, pág. 133/134).
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303951
Dentre os sentidos que mais emergiram nas avaliações dos professores ao final
desse processo, o sentido político certamente foi uma “marca” da experiência vivenciada
e do currículo produzido com o Polo. É o que podemos destacar na avaliação de uma das
professoras:
(...) o meu envolvimento com o PNAIC, me fez deletar todas e
quaisquer intenção do governo, seja ela com o intuito de perpetuar o
ciclo do analfabetismo, ou maquiando resultados por meio de índices
que apontam apenas a quantidade de aprovados e não a qualidade do
ensino ofertado. Decidi acreditar e fazer o que realmente precisa ser
feito: repensar, rever, reformular e propiciar caminhos para novas
práticas escolares. E foi assim que trabalhamos nesse semestre,
pensando em somente em oferecer o melhor para nossos alunos, daí a
importância de estarmos em busca de conhecimentos, não medimos
esforços, passamos por várias dificuldades para buscarmos informações
para nossos professores. Nossos encontros em Friburgo nos tem
propiciado estarmos melhores preparados para suprir as necessidades
dos nossos professores. (A.)
Ainda sobre o movimento produzido sob os efeitos dos processos vivenciados na
formação e com os saberes e sentidos que o currículo pôde tecer a partir das diferentes
redes de saberes-fazeres dos professores que compunham o Polo, nos chamou a atenção
a mobilização política. Diante das questões que emergiam nas discussões com relação aos
espaços de formação e os compromissos políticos com a educação, tivemos relatos de que
em algumas localidades foram desenvolvidas ações que para os professores refletiam
posicionamentos e conquistas políticas importantes. Algumas gestões municipais
assumiram o pacto como política de governo local, implementando o pagamento de
bolsas para professores regentes responsáveis por turmas em ano de escolaridade não
contempladas no âmbito do Programa Nacional. Outra ação relatada por orientadores de
estudo e que se destacou foi a inclusão de diretores das escolas municipais e orientadores
pedagógicos nas discussões.
A necessidade da superação dos limites colocados pela cisão entre prática e teoria
nos modos de pensar a escola e a formação docente torna-se, desse modo, fundamental
para entender-se a escola como espaçotempo prático e da prática (ALVES, 2002) em que
a teoria é tecida ao mesmo tempo em que se busca criar soluções para atender a problemas
em uma dada circunstância e contexto, locais e datados. Essas “respostas” e os saberes
que com elas emergem são, assim, provisórios e parciais, mas de grande importância para
entender a produção dos conhecimentos nos cotidianos das escolas. Portanto, a
(re)valorização da prática, tão comum em textos e pesquisas que defendem o cotidiano
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303952
como espaço-tempo de criação configura-se como uma defesa da indissociabilidade entre
os conhecimentos teóricos e os práticos (GARCIA, 2012).
Quanto a isso, analisando o trabalho desenvolvido, é possível considerarmos que a
produção curricular procurou aliar as práticas pedagógicas à necessidade de discussão
coletiva das políticas desenvolvidas nos municípios em relação à alfabetização, em
relação à formação dos professores, em relação à carga horária de trabalho docente, em
relação à organização da carreira do magistério, em relação à educação. O exercício de
adentrar essas questões poderia ser entendido como “frentes de atuação da equipe”, o que
de fato foram na operação dos princípios da formação no polo. Sobretudo, o currículo
produzido com essas frentes esteve implicado em viver no processo de formação a
complexidade e a indissociabilidade dos aspectos políticos-epistemológicos-
metodológicos da educação e do fazer pedagógico.
Consideramos, assim, que os currículos que mobilizamos podem contribuir para
tecer com os professores sentidos que reinventem as noções de docência, de escola e de
alfabetização na interação entre professores, que se estendam em nossas redes formativas
aos alunos e às escolas. Desse modo, os Currículos são entendidos como espaçostempos
(ALVES, 2008) de problemas, interrogações e experiência, aproximações solidárias de
saberes, em diálogos com as práticas cotidianas. Defendemos, no contexto dos debates e
pesquisas sobre a formação de professores, a escola pública e o currículo, a necessidade
de que as políticas oficiais de educação sejam pensadas em sua totalidade, não se
restringindo a políticas voltadas para níveis e segmentos em separado e pautadas na
valorização, interlocução e produção com as práticas docentes dos conhecimentos e
ferramentas do processo educacional, tendo em vista uma escola de todos e para todos. É
um pouco desses aspectos, entre tantos outros que poderímos destacar no trabalho
realizado e aqui parcialmente revisitado e analisado, que vemos emergir em imagens e
narrativas dos currículos produzidos com os professores que deram vida e identidade ao
trabalho político e pedagógico do Polo Região Serrana.
Referências:
ALVES, N. Trajetórias e redes na formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A,
1998.
BALL, Stephen J., BOWE, Richard (1992). Subject departments and the
“implementation” of National Curriculum policy: an overview of the issues. Journal of
Curriculum Studies, v. 24, n. 2, p. 97-115.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303953
BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional.
Pacto nacional pela alfabetização na idade certa: currículo na alfabetização :
concepções e princípios : ano 1 : unidade 1/ Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Brasília : MEC, SEB, 2012a.
CALVINO, I. A palavra escrita e a não-escrita. In: FERREIRA, M. M e AMADO, J.
(Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas,
1996.Calvino (1996)
GARCIA, A. Sentirfazerpensar: Nilda Alves e a formação de professores. PROPEd:
Revista Teias v. 13 • n. 29 • 21-34 • n. especial • 2012.
GARCIA, A. Composições e enredamentos nos currículos: a produção cotidiana de
sentidos com a formação de professores. Revista Teias (UERJ. Online) , v. 11 n. 23: Rio
de Janeiro, 2010.
GATTI, B. A. Políticas docentes no Brasil: um estado da arte. GATTI, B. A. SÁ, E. B
e ANDRÉ, M. D. – Brasília: UNESCO, 2011.
LARROSA, J. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
NÓVOA, A (org).Vidas de professores, 2ª Ed.Portugal, PortoEditora, 2007.
PRADO, G. V. T. e CUNHA, R. Práticas de co-ordenação e Co-formação nas escolas:
encontros entre coordenadores e professores. In: VICENTINI, A. A. F. et alii (Orgs).
Professor-formador: histórias contadas e cotidianos vividos. Campinas: Mercado das
Letras, 2008.
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995.
i Professora adjunta da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ). Membro do Grupo de Trabalho: Currículo (ANPEd). ii Professora das Séries Iniciais e membro do Conselho superior do Colégio Pedro II. iii Questões levantadas por professores participantes e pela equipe de formação do Polo. iv Para o cadastro das turmas na plataforma do pacto foi solicitado que cada formador escolhesse um nome
para sua turma. Os nomes escolhidos para as turmas do Polo Região Serrana foram: Gonzaguinha; Cartola;
Clara Nunes; Candeia. O fato de serem os nomes-homenagens ligados à música e cada uma das escolhas
feitas já nos permitiria desfiar outra discussão a respeito dos currículos como produção-composição e
quanto ao que há de sentido coletivo compartilhado nessa produção.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303954