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1 Um porto, dois mares, três redes: um estudo sobre Gades e sua inserção nas redes mediterrânicas BRUNO DOS SANTOS SILVA * “Aqui vivem os homens que constroem os maiores e melhores navios mercantes, do Atlântico e do Mediterrâneo, apesar de, em primeiro lugar, a ilha em que vivem não ser muito grande, e, em segundo lugar, eles não ocupam muito território no continente em frente à ilha, e terceiro, não são tão afortunados na posse de outras ilhas; de fato, eles vivem sobretudo no mar, embora alguns fiquem em casa ou ocupem seu tempo em Roma(ESTRABÃO, 3.5.3) Ao tratar de Gades em sua Geografia, Estrabão apresenta uma cidade de mercadores que se destacam na construção e no manejo de navios que realizam o contato marítimo entre o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo. Em outras partes de sua obra, o autor diz que a cidade foi fundada após uma série de expedições fracassadas, promovidas pela cidade fenícia de Tiro, estimuladas por um oráculo (ESTRABÃO, 3.5.5). Estima-se que, desde o início do I milênio a.C., os fenícios procuravam por metais nessa região, especialmente estanho e prata. Gades ou Gadir, na língua fenícia teria surgido como um entreposto desse povo para manter contato com a população local, os tartessos. É interessante notar que, passados vários séculos, a importância estratégica da cidade não mudara. A proposta dessa apresentação assim como de nossa pesquisa de doutorado é analisar as transformações de uma cidade, a qual é, ao mesmo tempo, mediadora do contato de duas grandes porções de água e “nó” de três redes que se estabelecem ao longo do I milênio a.C. Em outras palavras, a rede comercial e colonial fenícia, a rede que coloca em contato o litoral atlântico e o interior da Turdetânia (escala regional) e a rede de domínio romano sobre o Mediterrâneo têm em Gades um de seus principais nós. Esta apresentação é uma tentativa de expor e discutir uma das questões centrais de nossa pesquisa de doutorado, que propõe um estudo do contato entre a cidade de Gades e o vale do rio Guadalquivir. Pretendemos, nesse texto, analisar quatro fontes escritas que abordem e descrevam este contato: a Geografia de Estrabão terá papel * Doutorando da Universidade de São Paulo Departamento de História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

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Um porto, dois mares, três redes: um estudo sobre Gades e sua inserção nas redes

mediterrânicas

BRUNO DOS SANTOS SILVA*

“Aqui vivem os homens que constroem os maiores e melhores

navios mercantes, do Atlântico e do Mediterrâneo, apesar de, em primeiro

lugar, a ilha em que vivem não ser muito grande, e, em segundo lugar, eles

não ocupam muito território no continente em frente à ilha, e terceiro, não

são tão afortunados na posse de outras ilhas; de fato, eles vivem sobretudo no

mar, embora alguns fiquem em casa ou ocupem seu tempo em Roma”

(ESTRABÃO, 3.5.3)

Ao tratar de Gades em sua Geografia, Estrabão apresenta uma cidade de

mercadores que se destacam na construção e no manejo de navios que realizam o

contato marítimo entre o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo. Em outras partes de

sua obra, o autor diz que a cidade foi fundada após uma série de expedições fracassadas,

promovidas pela cidade fenícia de Tiro, estimuladas por um oráculo (ESTRABÃO,

3.5.5). Estima-se que, desde o início do I milênio a.C., os fenícios procuravam por

metais nessa região, especialmente estanho e prata. Gades – ou Gadir, na língua fenícia

– teria surgido como um entreposto desse povo para manter contato com a população

local, os tartessos.

É interessante notar que, passados vários séculos, a importância estratégica da

cidade não mudara. A proposta dessa apresentação – assim como de nossa pesquisa de

doutorado – é analisar as transformações de uma cidade, a qual é, ao mesmo tempo,

mediadora do contato de duas grandes porções de água e “nó” de três redes que se

estabelecem ao longo do I milênio a.C. Em outras palavras, a rede comercial e colonial

fenícia, a rede que coloca em contato o litoral atlântico e o interior da Turdetânia (escala

regional) e a rede de domínio romano sobre o Mediterrâneo têm em Gades um de seus

principais nós.

Esta apresentação é uma tentativa de expor e discutir uma das questões centrais

de nossa pesquisa de doutorado, que propõe um estudo do contato entre a cidade de

Gades e o vale do rio Guadalquivir. Pretendemos, nesse texto, analisar quatro fontes

escritas que abordem e descrevam este contato: a Geografia de Estrabão terá papel

* Doutorando da Universidade de São Paulo – Departamento de História Social, Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas.

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central em nossa abordagem, uma vez que é a fonte que gerou a maior parte das

questões caras à nossa pesquisa; Guerras na Espanha (História Romana) de Apiano,

que influenciou grande parte das interpretações feitas acerca da presença dos Bárcidas

na Espanha; História de Roma de Tito Livio, que coloca Gades no radar político de

Roma; e Pró Baldo de Cícero, que, definitivamente, apresenta um cidadão da cidade

como ator político relevante nos assuntos políticos de Roma no século I a.C.

A breve análise dessas fontes será contrastada com uma importante discussão

teórica acerca do conceito de integração. Procuraremos articular a análise de nossas

fontes com os vários debates sobre a expansão do poderio romano, particularmente em

direção às terras do oeste do mar Mediterrâneo.

Este texto, assim como a presente pesquisa, deriva de uma das conclusões de

nossa dissertação de mestrado. Nela procuramos analisar os livros III e IV da Geografia

de Estrabão, em que o autor descreve a península Ibérica e a Gália, respectivamente.

Nossa intenção era discutir o papel de Roma nas transformações vividas pelas regiões

nos séculos I a.C. a I d.C., época de elaboração da Geografia. O debate acerca da

Romanização dessas duas regiões norteava a pesquisa, e nos fez chegar à conclusão de

que, a partir da leitura desta fonte em especial, havia um processo de integração em

pleno vapor no período em questão. As regiões litorâneas possuíam cidades que

tornavam as populações polite/iaj – termo tradicionalmente traduzido como civilizadas.

Em decorrência de toda carga ideológica que este termo carrega – fruto das políticas

imperialistas do século XIX – propusemos traduzir este termo por “viver em cidades”.

Assim, concluímos que os povos no litoral dessas regiões já viviam em cidades – e

carregavam consigo todas as implicações políticas, culturais e sociais decorrentes –,

especialmente em razão da presença de povos como os gregos e os fenícios; e o interior

das duas regiões era marcado pela recente urbanização, fruto da presença romana.

Havia, dessa forma, um processo de integração, começado por povos do leste do

mediterrâneo e em realização pelos romanos naquela época.

Para chegar a esta conclusão mais genérica, o estudo da região da Turdetânia foi

extremamente importante. Na Geografia de Estrabão, essa região possui litoral e

interior intimamente conectados. Propusemos, a partir dessa observação, que a região,

para o autor, estaria completamente integrada, isto é, teria as regiões litorâneas e

interioranas conectadas por uma série de fatores, principalmente em virtude da

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existência de cidades que se relacionavam intensamente. Vejamos essa questão com

mais calma.

Quase todo capítulo 1 do livro III da Geografia é dedicado a descrever, em

detalhes, a Turdetânia. Começando pela caracterização do litoral, Estrabão apresenta as

fronteiras físicas dele e ressalta que aquela é abastecida pelos dois maiores rios da

península: o Anás (Guadiana) e o Baetis (Guadalquivir). A importância deste último faz

com que alguns chamem a região de Baetica, enquanto outros preferem Turdetânia, em

razão do povo que ocupa a região, os Turdetanos, que Estrabão classifica como os mais

sábios da Ibéria, uma vez que possuíam um alfabeto próprio com o qual podiam

registrar suas histórias antigas, seus poemas e suas leis (Estrabão 3.1.6).

Nas partes 3.1.7, 3.1.8 e 3.1.9, o litoral entre o Cabo Sagrado e os Pilares de

Hércules é descrito. A costa é uma região rica na produção de peixe salgado e em

entrepostos comerciais, como Menlaria e Belon. Há ainda a cidade de Gades –

extremamente rica, segundo Estrabão –, que fica em uma ilha próxima do continente

(Estrabão 3.1.8) – as ilhas são descritas no capítulo 5. Ao finalizar o primeiro capítulo,

Estrabão apresenta o restante do litoral, na direção dos Pilares. Próximo ao Cabo

Sagrado, ele destaca o porto e o templo de Menesteus, os estuários de Asta e Nabrisa,

duas cidades importantes do litoral, além da cidade de Ebura e o santuário de Artêmis

(Estrabão 3.1.9).

Podemos dizer que o geógrafo de Amásia apresenta um quadro que aponta a

pesca e o comércio como principais meios de produção de riqueza na região costeira. O

contato com o norte da África é destacado (Estrabão 3.1.8). E, à exceção de Gades, não

é mencionada relação direta entre as cidades do litoral e Roma.

O capítulo 2 também é dedicado à Turdetânia, entretanto, a narrativa agora se

desloca para o interior. Estrabão começa apresentando as fronteiras internas da

Turdetânia, as quais são a oeste e a norte o rio Anas; a leste, a Carpetânia e a Oretânia; e

ao sul, sua própria costa. Ele usa a palavra xw/raj para diferenciar o interior do litoral, e

afirma que, juntos, litoral e interior possuem mais de duzentas cidades (Estrabão 3.2.1).

As maiores estão, segundo o autor, localizadas nas margens dos rios, nos estuários ou

próximas ao mar. As mais importantes são Corduba – fundada por Marco Cláudio

Marcelo (século II a.C), segundo o geógrafo – e a cidade de Gades. Esta última é

considerada importante em virtude do comércio e do contato com os romanos; já aquela

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primeira, em função da qualidade do seu solo e por ter sido a primeira colônia dos

romanos.

Há todo um trecho dedicado aos rios Anás e Baetis, e este último exerce

importante papel de navegação e contato na região. Além de torná-la “a mais fértil do

mundo” (Estrabão 3.1.6), o Baetis é um facilitador natural que conecta o litoral

especialista em navegação e comércio ao interior rico em minérios (Estrabão 3.2.3).

Para o geógrafo, é exatamente isso que transforma a Turdetânia em uma região

tão rica: sua fácil locomoção e a possibilidade de cultivar produtos na terra e/ou retirá-

los das montanhas para exportá-los facilmente. A riqueza que primeiro atraíra os

Fenícios para lá – e o autor frisa que eles ainda habitavam a região em seus dias

(Estrabão 3.2.13) –, fora outrora conhecida por Homero, que ouvira relatos de um povo

riquíssimo chamado Tartessos ocupando a região (3.2.13). Homero também era a fonte

de Estrabão para saber que Hércules lá estivera, e que uma série de coincidências entre

os relatos de Odisseu e os nomes da região levavam-no a acreditar que este último

também a visitara (3.2.13). Os fenícios eram os informantes de Homero, de acordo com

Estrabão, uma vez que já haviam se instalado na região muito antes dos gregos saberem

de sua existência, e de lá só saíram expulsos pelos romanos, na guerra contra os

Bárcidas – que invadiram a Turdetânia em busca de metais preciosos1. As últimas três

seções do capítulo 2, assim, formam o bloco que apresenta o passado greco-fenício,

contado por Homero, e uma fonte respeitada e defendida por Estrabão.

Em termos gerais, podemos afirmar que há uma especialização do litoral e uma

do interior. Outro diferenciador é o período em que receberam as primeiras cidades: o

interior passa pelas transformações do presente de Estrabão, isto é, provocadas por

Roma, enquanto o litoral possui cidades desde tempos remotos. Dessa forma, Estrabão

constrói a descrição de maneira que aquilo que torna a Turdetânia única e diferente do

resto da Ibéria é, primeiro, a existência destas duas formas de riqueza combinadas e,

segundo, os importantes rios que promovem o contato entre elas (3.2.8).

Fizemos no mestrado uma análise numérica de quanto espaço Estrabão dedica

em sua obra para a descrição do litoral e do interior. Nestes termos, numericamente, o

litoral se sobrepõe ao interior. Portanto, podemos dizer que Estrabão passa muito mais

tempo descrevendo cidades litorâneas como Gades, Cartago Nova, Terraco, Empório,

1 Aqui as fontes de Estrabão são Anacreonte e Heródoto.

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do que as transformações dos povos do interior. As cidades litorâneas, apesar de

possuírem algum grau de relação com Roma, principalmente no presente de Estrabão,

têm suas transformações muito mais marcadas pela presença de outros povos do

mediterrâneo, que não exclusivamente os descendentes de Rômulo. Gades, no capítulo

5 do livro III, ocupa, sozinha, três quartos do espaço dedicado à descrição das ilhas

próximas à península Ibérica.

Ao juntarmos essa divisão proposta para a Turdetânia à dedicação de Estrabão

para Gades, podemos concluir que, nesse processo de difusão da vida em cidades, as

transformações no espaço litorâneo merecem destaque. Portanto, podemos inferir que,

além de se verificar uma forte interação entre litoral e interior, verifica-se também uma

divisão importante: enquanto o litoral tem sua história de transformações intimamente

ligada a gregos e fenícios, o interior é dominado por cidades romanas. Constatamos,

assim, o deslocamento de uma forma de viver específica, que vai do litoral (no passado)

para o interior (no presente). Nesse sentido, a Turdetânia seria o modelo acabado e ideal

de um processo de integração – facilitada, como dissemos, pela fartura de recursos

naturais disponíveis.

Nenhuma das outras fontes que escolhemos faz descrição tão detalhada dessas

regiões. No entanto, sua importância está na localização de Gades e do vale do

Guadalquivir (Turdetânia) no processo de ampliação do poder de Roma sobre o

Mediterrâneo. Apiano e Tito Lívio são os principais escritores que descrevem as

Guerras Púnicas após a conquista da Ibéria por Roma.

Apiano, em meados do século II d.C., procurou fazer uma grande narrativa da

história de Roma. Na parte correspondente às Guerras na Espanha – contra os Bárcidas,

e outros povos da região – de seu História Romana, o autor coloca Gades como um dos

principais portos de entrada dos cartagineses e dos romanos para a península nos

séculos III e II a.C. – período das Guerras Púnicas (App. Hisp. 5.28; App. Hisp. 6.31;

App. Hisp. 7.37; App. Hisp. 10.58; App. Hisp. 11.65). Um trecho, em particular, chama

atenção pelo julgamento de valor com relação aos generais cartagineses que o autor faz:

Ele (Hamilcar) associou-se ao seu genro Hasdrubal, cruzou os estreitos (de Gibraltar)

até Gades e começou a pilhar o território dos Ibéricos (ta\ Ibh/ron), ainda que estes

não tivessem feito nenhum mal a eles. (App. Hisp. 1.5)

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Antes mesmo dessa afirmação mais contundente, no mesmo capítulo 1, o autor

destaca a riqueza da região, e como ela atraiu povos desde períodos muito remotos,

como celtas, fenícios e “saqueadores” cartagineses (App. Hisp. 1.1 e 1.2). Destaquemos

também que uma das características ressaltada por Apiano é a grande quantidade de rios

que facilitam a navegabilidade pela região (App. Hisp. 1.1).

Gades aparece para Apiano como um porto extremamente importante e

estrategicamente localizado. No contexto da guerra que levou Roma para fora da

península Itálica, dominar a cidade e obter o controle marítimo e terrestre da região foi

extremamente importante. Entretanto, a visão positiva do autor com relação à presença

romana, que expulsou os vilões Bárcidas da região, ecoa até hoje em algumas análises

históricas. Vejamos, por exemplo, o que diz o historiador francês William Seston, em

seu artigo “Gadès et l'empire romain” (1980):

Os primórdios da instalação dos romanos na Bética são bastante conhecidos

por muitos estudiosos, incluindo o Sr. Sanchez Albornoz. Eles, em parte,

refletem a situação de Gades no Império de Roma. Os gaditanos tinham

sofrido muito com o regime dos Bárcidas. Ao fundar Cartagena, Asdrúbal

instalara uma base alternativa para a presença púnica em Espanha. Além

disso, ao tentar tornar-se uma espécie de rei helenístico, como evidencia de

forma irrepreensível uma série de moedas, era óbvio que ameaçava o regime

oligárquico tradicional dos fenícios que predominava em Gades. Por fim, a

guerra Hanibálica arruinou grande parte do comércio gaditano no

Mediterrâneo, fechando os mercados italiano e grego, enquanto aumentava

a cobrança de impostos para os Bárcidas. (...) Libertados da opressão dos

bárcidas, abandonados por Cartago, os gaditanos viram sua única salvação

em um acordo com os romanos, oferecido à Bética. Eles se entregaram ao

conquistador. (SESTON, 1980: 399)

Para evitar reproduzir a tentativa de exaltação do poder romano feita por Apiano

e a emissão de qualquer juízo de valor, como a feita por William Seston, atentar-nos-

emos ao quadro geral apresentado pela fonte: as guerras que ocorreram na região por

volta dos séculos III e II a.C. foram uma série de disputas pelo controle de uma região

rica em recursos minerais, a qual atraía povos distintos desde tempos imemoráveis.

Nesses embates, a cidade de Gades e seus habitantes desempenharam papel bastante

importante.

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Tito Lívio, escrevendo na mesma época de Estrabão, ao tratar das mesmas

Guerras Púnicas de Apiano, também coloca Gades como uma cidade estrategicamente

importante para as duas forças em disputa. O templo de Hercules gaditano (Melqart)

ganha destaque no trabalho de Lívio (Liv 21.21.9) como ponto de referência para visitas

de generais que buscavam a proteção do deus antes de suas campanhas. Além desses

destaques, temos também a lembrança de que, no ano 199 a.C., o povo de Gades pediu

aos romanos que não enviassem governadores para a cidade, para que eles pudessem

manter sua autonomia, como havia sido acordado entre a cidade e L. Marcius Septimus

no momento de sua rendição (Liv 32.2.6).

Tendo a importância que aparentemente possuíam, a cidade de Gades e sua

população ganharam papel de destaque nas tramas políticas da república romana. Nas

guerras civis do século I a.C., por exemplo, uma figura importante no desenrolar das

contendas entre Júlio César, Crasso e Pompeu fora o gaditano Lucio Cornélio Balbo,

pelo menos é o que nos diz Cícero, em seu Pró Balbo. O texto é uma defesa que o autor

faz de Balbo perante a acusação de uso ilegal da cidade romana. Balbo teria recebido

este privilégio após auxiliar alguns generais romanos em suas guerras contra Sertório.

Para defender o pertencimento de Balbo à comunidade de cidadãos romanos, Cícero

destaca a importância que a cidade teve na luta contra os cartagineses e nas guerras

contra os povos da Ibéria. Ao longo de seu texto, este autor procura apontar os acordos

traçados entre Roma e Gades desde o século II a.C. para lembrar ao Senado que os

gaditanos possuíam direitos, e que Balbo poderia, sim, ser nomeado cidadão romano,

em razão dos préstimos pessoais e urbanos (Cic. Balb. 14 - 16).

Essas breves análises, associadas às conclusões que propusemos em nossa

pesquisa de mestrado, nos dão a dimensão da importância dessa cidade e da região em

que ela está inserida. Fundada por fenícios de Tiro por volta do século IX a.C2, esta

cidade sempre esteve em constante contato com o interior da Turdetânia, principalmente

em decorrência de sua proximidade com os rios Guadalete e Guadalquivir. A

importância dos rios ficou clara nos relatos apresentados.

2 Há um grande debate acerca da data de fundação de Cádiz. Não entraremos neste mérito no artigo, mas

o debate pode ser lido em Aubet, M. E. “The Phoenicians and the West: Politics, Colonies and Trade”

(1994) e Salmonte, F. J. L. “Nueva história de Cádiz” (2011).

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Destacados, então, o contato entre litoral e interior e a importância de Roma nos

desdobramentos da vida da cidade e de sua população a partir do século II a.C.,

precisamos, agora, discutir como essa última questão vem sendo trabalhada pela

historiografia, e como podemos avançar com as questões levantadas pela análise da

história de Gades.

Além das fontes escritas, evidências materiais também atribuem aos romanos

uma importante participação nas transformações vividas pela cidade. Questionar-se se

estas transformações são fruto exclusivamente da presença romana é adentrar no debate

da Romanização, o qual tem raízes no século XIX. O grande historiador e epigrafista

Theodor Mommsen foi um dos primeiros a utilizar a ideia de que as transformações

feitas pelos imperadores romanos foram benéficas para os povos dominados (SILVA,

2011). Outros autores do pré-II Guerra Mundial, como Francis Haverfiled e Camille

Julian, também assumiram tal visão positiva sobre a atuação de Roma fora da península

Itálica – provavelmente devido ao paradigma do Estado Nação e de sua defesa como

entidade passível de levar a civilização para os cantões bárbaros do mundo3.

Nos últimos cinquenta anos, desde as guerras de independência na África e na

Ásia, e dos movimentos de contra-cultura dos anos 1960, uma imensidão de pesquisas

passou a questionar essa visão monolítica da atuação romana, procurando dinamizar a

análise do contato entre Roma e outros povos. Entre eles, podemos destacar: Martin

Millet, que enxerga uma política externa de Roma voltada para alianças com os povos

das diversas regiões conquistadas, apresentando uma espécie de “autorromanização”,

um projeto das elites locais de adotar os hábitos dos romanos com a finalidade de

manterem-se no topo da hierarquia social (MILLET, 1990: 38); e o professor Greg

Woolf, que apresentou, ainda nos anos 90, uma proposta de análise interessante acerca

da difusão de um tipo-ideal pelos romanos buscando cooptar as elites locais (WOOLF,

1998: 54), embora tenha mudado sua abordagem recentemente, procurando analisar, por

exemplo, a expansão do império como criadora de um “middle ground” em que várias

identidades se relacionam em diferentes formas e níveis, em que a criação e a

reprodução de lendas sobre os povos bárbaros assumem papel relevante (WOOLF,

2011: 113).

3 Trabalhei mais a fundo este tema no artigo Romanização e os séculos XX e XXI: a dissolução de um

conceito, publicado em 2011 na Revista Mare Nostrum, n. 2.

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Outras abordagens, como as que procuram pensar a romanização como uma

experiência subjetiva vivenciada nas cidades romanas chamada de Roman-ness

(REVELL, 2009: 153 e 192), ou mesmo que propõem estudos regionais (MATTINGLY

e ALCOCK, 1997), também foram bastante frutíferas. Entretanto, um dos trabalhos que

revolucionou os estudos sobre romanização foi o livro Rome’s Cultural Revolution

(2008), do professor Andrew Wallace-Hadrill. Neste, a romanização é tida como um

conjunto de processos de troca de códigos dentro de um único fenômeno: o aumento do

consumo e da luxúria provocado pela expansão do modelo de viver em cidades

(WALLACE-HADRIL, 2008: 301). Em seu trabalho, o professor atenta para a questão

cronológica das diferentes etapas do consumo nesse mundo greco-romano: o final da

república aparece como o momento do auge da importação dos produtos helênicos

promovidos pelos negotiatores itálicos, seguido por um período em que Augusto

procurara naturalizar/harmonizar a ratio grega com a consuetudo romana, que seria a

marca da romanitas, evidenciada, entre outros espaços, nos banhos públicos. Assim, no

início do Império, ficaria evidente que a romanitas gerara uma demanda interna nas

províncias, e essa seria a revolução provocada pelos romanos: intensificar o consumo a

patamares até então inimagináveis, provocando, com isso, alterações profundas na

maneira de viver, falar e interagir das populações locais (WALLACE-HADRIL, 2008:

315-355).

Uma vez que Gades é tida como uma cidade que se integra ao comércio

mediterrânico em razão da presença romana, a proposta de Wallace-Hadril de analisar

as mudanças nos hábitos de consumo pode ser muito bem aproveitada. Como se

comportava a elite local antes da presença romana? A passagem de um considerável

número de ânforas pelo porto de Gades, transportando produtos do interior da

Turdetânia para Roma, pode ter provocado quais alterações na cidade? É possível

comparar este período ao período de domínio fenício?

A análise de Wallace-Hadril, acompanhada por outros historiadores, dá às

cidades um papel de destaque na trama da romanização. Estudos urbanísticos, isto é, das

transformações pelas quais muitas cidades passaram com a presença romana, ou mesmo

de novas cidades construídas por estes, são cada vez mais essenciais para se pensar a

expansão do poderio itálico. Para exemplificarmos, tomemos duas grandes obras que

tratam desta questão.

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Completando quase vinte anos, a coletânea “The development of towns in

Iberia” é um conjunto riquíssimo de capítulos que abordam a questão urbanística na

península ibérica, desde o período do bronze até as primeiras décadas de criação do

império romano. Editado em 1995 pelo renomado arqueólogo inglês Berry Cunliffe e

pelo especialista em península Ibérica, Simon Keay, este livro nos é particularmente

interessante, pois, diferentemente de outras análises, coloca as fundações fenícias, entre

as quais está Gades, como parte das transformações urbanísticas da região. Em seu

capítulo, Simon Keay nos mostra como a presença dos romanos variou ao longo dos

séculos: no decorrer do período republicano, aproveitaram a estrutura urbana anterior

(fenícia, grega e cetibérica) para promover uma participação na obtenção da riqueza

local. Já a partir dos tempos de Augusto, desenvolveu-se uma identidade cultural

romana que visava ao desenvolvimento de uma ideologia imperial e à dominação

completa dos povos locais (KEAY, 1995: 322-323).

Se o livro anterior traz de relevante a diversidade urbanística da península

Ibérica, podemos dizer que “The City in the Roman West”, dos pesquisadores Ray

Laurence, Simon Cleary e Gareth Sears, é uma das mais completas obras que

aprofundam a questão das cidades romanas na península (além das outras províncias

ocidentais). Preocupados com as transformações arquitetônicas e com a construção de

monumentos, os autores defendem a ideia da criação de um padrão urbanístico romano

(calcado nas influências gregas e itálicas) que vai se espalhando “por conquista ou por

osmose” por todo o ocidente até o III século d.C. (LAURENCE, CLEARY & SEARS,

2011: 11). Em consonância com as já citadas obras de Louise Revell, David Mattingly e

Susan Alcock, estes pesquisadores levam em consideração o experimentar a vida na

cidade, e as consequências que este fato pode ter. Entretanto, Laurence, Cleary e Sears

pretenderam, com a seguinte obra, enfatizar os aspectos mais importantes do padrão

urbanístico romano, em vez de explorar o peso deste fato no processo de romanização.

Assim sendo, enfático ou não no debate acerca da romanização, o estudo das

transformações das cidades vem se mostrando bastante relevante.

Outro ponto importante para este texto é o contato desta cidade com as regiões

interioranas. Há muitos autores que analisam a presença de Roma no interior do vale do

Baetis, e como esta modificou as dinâmicas produtivas e comerciais da região,

principalmente com o transporte feito pelos rios.

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Não há muitos estudos acerca da mobilidade no mundo antigo, muito

provavelmente em razão da dificuldade documental. Entretanto, estudos como o

“Corrupting Sea” de Peregrine Horden e Nicholas Purcell (200) e “Greek and Roman

Networks in the Mediterranean” (2009), coletânea editada por Irad Malkin

conjuntamente com Christy Constantakopoulou e Katerina Panagopoulou, apresentam

breves análises sobre esta questão, mas tendo o transporte marítimo como foco. Em

todos esses estudos, especialmente no último, a teoria das redes está presente.

Normalmente, o mar – e aqui o Mediterrâneo possui papel central – é tido como o

espaço de deslocamento de pessoas, mercadorias, ideias, modas, hábitos, que formam

rotas de um ponto ao outro, podendo cada encontro das rotas estabelecidas funcionar

como chegada e saída de outras rotas. Cada um desses encontros é chamado de nó, que

originam redes de variados tamanhos, podendo ser amplas, como o mar Mediterrâneo,

ou mais reduzidas, como o mar Egeu – a depender da escala da análise.

Em todos esses trabalhos, as cidades, os portos, os templos, e vários outros

espaços são vistos como nós, e podem ser analisados à medida que a dinâmica da rede à

qual eles pertencem se modifica. A conectividade de um nó é essencial para entender a

dinâmica das transformações que se dão nestes espaços (MALKIN,

CONSTANTAKOPOULOU e PANAGOPOULOU, 2009). Assim sendo, se pudermos

tomar a cidade de Gades como um nó na rede mediterrânica dominada por Roma a

partir do século II a.C., pensar acerca da dinâmica de contato desta com o interior da

Turdetânia, através do vale do Baetis, mostra-se bastante promissor.4

Um trabalho que pode servir de parâmetro para essa análise que pretendemos

esmiuçar aqui é o trabalho de Michel Dietler com Marselha e o vale do rio Ródano.

Ainda que não faça uso do conceito de redes, Dietler, no livro “Archaeologies of

Colonialism” (2010), se propõe a pensar no contato entre duas regiões: a

desembocadura do rio Ródano e o vale deste rio mais ao interior. Mais próximo dos

conceitos de “middle ground” e “colonial encounters”, o autor busca discutir o consumo

e as trocas comerciais e culturais entre vários atores sociais que se relacionaram com a

região ao longo dos séculos VII a.C. e I d.C. A proposta de Dietler, de pensar o contato

4 Um dos elementos que nossa pesquisa pretende apresentar de novidade ao debate é pensar o rio como

um importante espaço de conectividade.

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entre duas regiões ao longo do tempo e mediadas por um rio, parece-nos bastante

interessante.

Finalizaremos essa parte do texto atentando para um conceito ainda em

construção, mas já largamente utilizado por historiadores da Antiguidade: a integração.

Todos os modelos teóricos anteriores pretendem, ao fim e ao cabo, tratar do fenômeno

da integração que se deu em algumas regiões do globo. Decorrente do fenômeno

moderno de integração global, ou globalização, pudemos perceber que, seja por

exclusividade de Roma (Romanização), seja porque o mar Mediterrâneo possui

microecologias que dependem umas das outras para existir (HORDEN & POURCEL,

2000), desenvolve-se um fenômeno paralelo em partes do globo, principalmente a partir

do I milênio a.C. O professor Norberto Guarinello propõe pensar este fenômeno

estudando a articulação de fronteiras internas de determinadas sociedades com

fronteiras externas a elas, decorrentes de transformações sistêmicas. Dessa maneira,

“o processo de integração submete, ao longo do tempo e em escala

cumulativa, as fronteiras locais e a vida local a fronteiras mais amplas, a

uma unidade mais extensa, a um sistema de diferenças em escala maior, que

lhes oferece, de fora, suas próprias identidades e seu sentido.”

(GUARINELLO, 2013: 55).

Submetamos nossas considerações acerca das fontes que descrevem as relações

de Gades com as várias redes que se apresentam. Sua fundação próxima da

desembocadura do rio Guadalquivir é fruto da construção da rede fenícia que se

estabelece em princípios do I milênio a.C. Assim sendo, as comunidades locais,

majoritariamente aquelas habitantes do vale do Guadalquivir, têm suas fronteiras

internas modificadas pelo surgimento e crescimento de uma rede mediterrânica que

coloca em contato cada vez mais intenso duas regiões espacialmente distantes. Gades

surge então como um nó importante para essa rede que integra os povos que habitam as

margens deste mar.

Por volta do final do milênio, as fronteiras internas da cidade passam por uma

série de transformações: surgimento de uma considerável elite equestre5; problemas

políticos locais que são desdobramentos da participação em assuntos políticos externos;

5 “Eu tenho ouvido que em um dos nossos recentes recenseamentos, havia 500 homens gaditanos

classificados como Equestres” (ESTRABÃO, 3.5.3)

13

recepção de estrangeiros para frequentar o mais importante templo da região; etc. À

medida que Roma cria fronteiras mais amplas, transformando e unificando a rede

mediterrânica, Gades é afetada, e, em escala regional, também é afetado o contato entre

essa cidade e o interior do continente.

Podemos concluir afirmando que o estudo desta cidade, a partir do referencial

teórico da teoria das redes e da integração, é-nos muito útil e frutífero. Primeiramente,

pois nos afasta das abordagens que fazem juízo de valor acerca da presença deste ou

daquele povo como agente histórico. Em segundo, pois nos permite ter uma visão dupla

de um mesmo processo: localmente, como os habitantes de determinadas regiões

reagem a transformações que lhes são externas, e, de maneira inversa, como as

mudanças em determinados nós de redes em plena modificação funcionam como

evidências da formação de um processo de integração (quase) em escala global –

oikouméne.

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