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Biografia Carlos Saura “Saura, o demolidor da fronteira entre as artes” Neusa Barbosa Carlos Saura (4 de Janeiro de Janeiro de 1932, Atarés, Huesca, Aragão Espanha) Um dos grandes cineastas espanhóis da modernidade, ao aragonês Carlos Saura podem ser atribuídas ao menos duas façanhas: ter saído da sombra vigorosa de Luis Buñuel (1900- 1983), criando obra própria, e aberto janelas entre o cinema e outras artes - dança, teatro, pintura - de uma forma completamente original. Favoreceu-o nessa última característica, sem dúvida, ter nascido num ambiente artístico, dominado pela mãe pianista e o irmão pintor. Adolescente, Saura iniciou-se na fotografia. Aos 18 anos, já tinha uma câmera 16 mm na mão, com a qual fez pequenas reportagens. Mas o cinema falou mais alto. Em 1952, inscreve-se no Instituto de Investigaciones y Estudios Cinematograficos, onde vem a descobrir a técnica e a teoria da profissão, ao mesmo tempo em que frequenta aulas ocasionais de jornalismo, aliás, uma de suas paixões marginais, que alimenta o veio neo-realista da primeira fase de sua obra. Com o curta La Tarde de Domingo faz sua conclusão de curso, iniciando a carreira de professor no mesmo instituto em que se formou, profissão em que permanece até 1963 - quando é demitido pelas suas tendências políticas, abrindo um período de enfrentamento com o regime franquista que duraria até a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, e marcaria profundamente a filmografia do realizador. Depois da média-metragem documental Cuenca (1958), Saura parte para uma primeira longa-metragem, Los Golfos, límpido retrato da delinquência juvenil em Madrid que foi exibido no Festival de Cannes de 1959, introduzindo seu nome no circuito internacional. Já o seu próximo trabalho, O Pistoleiro sem Lei e sem Alma (1963), um relato picaresco da figura de um fora-da-lei do século XIX, foi mutilado pela censura. Pressionado por este problema político, Saura parte para a alegoria e o simbolismo, que dão o tom desta nova fase de sua obra, a partir de La Caza (1965). Temas como a família, a memória e os efeitos daninhos do puritanismo e da repressão permeiam os seus novos filmes: Peppermint Frappé (Urso de Prata no Festival de Berlim); Stress es Tres, Tres (1968); La Madriguera (1969). El Jardin de las Delicias (1970) será o primeiro filme a evocar directamente a Guerra Civil Espanhola, desafiando o silêncio imposto pelo franquismo sobre a virulência da sua vitória sobre os republicanos, em 1939. A Prima Angélica (1973) - Prémio do Júri no Festival de Cannes - vai mais longe, ousando colocar em primeiro plano o ponto de vista de um vencido naquela guerra que dividiu tão fragorosamente a Espanha. Este é, também, o período em que a sua então esposa, Geraldine Chaplin, será sua actriz-fetiche, actuando em oito dos seus filmes. Cria Cuervos (1975) marca o início de uma fase de grande repercussão internacional e também de um período em que Saura será o roteirista de seus trabalhos. Quase tão forte será o impacto de Elisa, Vida Minha (1977), onde os temas da criação, memória e morte se entrelaçam profundamente. A morte de Franco, em 1975, abre um período de grande liberação para a Espanha. Livre do peso da censura, o diretor aborda sem rodeios os temas políticos em Olhos Vendados (1978), Mamã Faz 100 Anos - indicado ao Oscar de filme estrangeiro - e Doces Momentos do Passado (1981). Superado o capítulo franquista, Saura renova sua energia criativa noutras direcções, retomando a via do realismo social em Deprisa, Deprisa (1981), com o qual vence o Urso de Ouro no Festival de Berlim. A seguir, mergulha na inspiração vital da dança flamenca, uma das raízes mais profundas da hispanidad, a partir do poderoso Bodas de Sangue (1981), inspirado na peça de Federico García Lorca. Carmen (1983) redescobre o encanto imortal da bailarina cigana criada por Prosper Merimée e vence o troféu de Melhor Contribuição Artística do Festival de Cannes, além de obter para o realizador a sua segunda indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O Amor Bruxo (1986) completa a trilogia flamenca, composta com a decisiva parceria do bailarino Antonio Gades. Se a veia política não se esgotou e brota com um misto de contundência e sentido de humor em Ai, Carmela! (1990), a dança ressurge em diversos trabalhos de plasticidade e energia eletrizantes, onde o diretor desafia as fronteiras entre a ficção e o documentário: Sevillanas(1992), Flamenco (1995) e Tango (1998, nova indicação ao Oscar de filme estrangeiro). E a pintura que ele descortinou tão cedo com a assistência do irmão merecerá um clássico como Goya em Bordéus (1999), em que a crónica dos últimos dias de um dos maiores pintores da Espanha dá oportunidade a uma recriação de sua obra pelos meios técnicos mais apurados e distintos - inclusive a genial reconstituição da série Os Desastres da Guerra pela arte teatral do grupo La Fura del Bals. Em 2001 faz Buñuel y la mesa del rey Salomón, seguido de Salomé (2001) e finalmente, em 2004, El Séptimo Día. Aos 72 anos*, se está longe de ser uma unanimidade, Saura é, com certeza, um dos artesãos mais completos da cinematografia mundial. *75 em 2007

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Page 1: Biografia Carlos Saura - · PDF file... (Urso de Prata no Festival de Berlim); Stress es Tres, ... Cria Cuervos (1975) marca o início de uma fase de grande ... bailarino Antonio Gades

Biografia Carlos Saura

“Saura, o demolidor da fronteira entre as artes”Neusa Barbosa

Carlos Saura (4 de Janeiro de Janeiro de 1932, Atarés,Huesca, Aragão Espanha)

Um dos grandes cineastas espanhóis da modernidade, aoaragonês Carlos Saura podem ser atribuídas ao menos duasfaçanhas: ter saído da sombra vigorosa de Luis Buñuel (1900-1983), criando obra própria, e aberto janelas entre o cinemae outras artes - dança, teatro, pintura - de uma formacompletamente original.

Favoreceu-o nessa última característica, sem dúvida, ternascido num ambiente artístico, dominado pela mãe pianistae o irmão pintor. Adolescente, Saura iniciou-se na fotografia.Aos 18 anos, já tinha uma câmera 16 mm na mão, com a qualfez pequenas reportagens. Mas o cinema falou mais alto.Em 1952, inscreve-se no Instituto de Investigaciones yEstudios Cinematograficos, onde vem a descobrir a técnicae a teoria da profissão, ao mesmo tempo em que frequentaaulas ocasionais de jornalismo, aliás, uma de suas paixõesmarginais, que alimenta o veio neo-realista da primeira fasede sua obra.

Com o curta La Tarde de Domingo faz sua conclusão decurso, iniciando a carreira de professor no mesmo institutoem que se formou, profissão em que permanece até 1963- quando é demitido pelas suas tendências políticas, abrindoum período de enfrentamento com o regime franquista queduraria até a morte do ditador Francisco Franco, em 1975,e marcaria profundamente a filmografia do realizador.

Depois da média-metragem documental Cuenca (1958), Sauraparte para uma primeira longa-metragem, Los Golfos, límpidoretrato da delinquência juvenil em Madrid que foi exibido noFestival de Cannes de 1959, introduzindo seu nome no circuitointernacional. Já o seu próximo trabalho, O Pistoleiro semLei e sem Alma (1963), um relato picaresco da figura de umfora-da-lei do século XIX, foi mutilado pela censura.

Pressionado por este problema político, Saura parte paraa alegoria e o simbolismo, que dão o tom desta nova fasede sua obra, a partir de La Caza (1965). Temas como afamília, a memória e os efeitos daninhos do puritanismo eda repressão permeiam os seus novos filmes: PeppermintFrappé (Urso de Prata no Festival de Berlim); Stress es Tres,Tres (1968); La Madriguera (1969).

El Jardin de las Delicias (1970) será o primeiro filme a evocardirectamente a Guerra Civil Espanhola, desafiando o silêncioimposto pelo franquismo sobre a virulência da sua vitóriasobre os republicanos, em 1939. A Prima Angélica (1973) -Prémio do Júri no Festival de Cannes - vai mais longe,ousando colocar em primeiro plano o ponto de vista de umvencido naquela guerra que dividiu tão fragorosamente aEspanha. Este é, também, o período em que a sua entãoesposa, Geraldine Chaplin, será sua actriz-fetiche, actuandoem oito dos seus filmes.

Cria Cuervos (1975) marca o início de uma fase de grande

repercussão internacional e também de um período em queSaura será o roteirista de seus trabalhos. Quase tão forteserá o impacto de Elisa, Vida Minha (1977), onde os temasda criação, memória e morte se entrelaçam profundamente.

A morte de Franco, em 1975, abre um período de grandeliberação para a Espanha. Livre do peso da censura, o diretoraborda sem rodeios os temas políticos em Olhos Vendados(1978), Mamã Faz 100 Anos - indicado ao Oscar de filmeestrangeiro - e Doces Momentos do Passado (1981).

Superado o capítulo franquista, Saura renova sua energiacriativa noutras direcções, retomando a via do realismosocial em Deprisa, Deprisa (1981), com o qual vence o Ursode Ouro no Festival de Berlim. A seguir, mergulha nainspiração vital da dança flamenca, uma das raízes maisprofundas da hispanidad, a partir do poderoso Bodas deSangue (1981), inspirado na peça de Federico García Lorca.

Carmen (1983) redescobre o encanto imortal da bailarinacigana criada por Prosper Merimée e vence o troféu deMelhor Contribuição Artística do Festival de Cannes, alémde obter para o realizador a sua segunda indicação ao Oscarde melhor filme estrangeiro. O Amor Bruxo (1986) completaa trilogia flamenca, composta com a decisiva parceria dobailarino Antonio Gades.

Se a veia política não se esgotou e brota com um misto decontundência e sentido de humor em Ai, Carmela! (1990), adança ressurge em diversos trabalhos de plasticidade eenergia eletrizantes, onde o diretor desafia as fronteirasentre a ficção e o documentário: Sevillanas(1992), Flamenco(1995) e Tango (1998, nova indicação ao Oscar de filmeestrangeiro). E a pintura que ele descortinou tão cedo coma assistência do irmão merecerá um clássico como Goya emBordéus (1999), em que a crónica dos últimos dias de um dosmaiores pintores da Espanha dá oportunidade a uma recriaçãode sua obra pelos meios técnicos mais apurados e distintos- inclusive a genial reconstituição da série Os Desastres daGuerra pela arte teatral do grupo La Fura del Bals.

Em 2001 faz Buñuel y la mesa del rey Salomón, seguido deSalomé (2001) e finalmente, em 2004, El Séptimo Día.

Aos 72 anos*, se está longe de ser uma unanimidade, Sauraé, com certeza, um dos artesãos mais completos dacinematografia mundial.

*75 em 2007

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Flamenco

Espanha, 1995, 99’Realização Carlos SauraFotografia Vittorio StoraroMúsica Isidro MuñozProdução Juan Lebrón Producciones, Canal + españa,SogepaqIntérpretes Paço de Lucía, Manolo Sanlúcar, Lole y Manuel,Remédios Amaya, José Menese, Ketama, etc.

Para os que acreditam que a função da crítica é tão somenteservir de indicativo se devemos ou não ir ao cinema, resolvamoslogo a questão: vão ver Flamenco! Para os outros, que crêemque a crítica deve estabelecer um diálogo com o espectadorde forma a engrandecer a experiência de ver um filme, podendoprincipalmente ser lida após a assistência do mesmo, continuemlendo. Isso porque é completamente impossível tratar-se deFlamenco sem que se comece pelo plano final. Não é um filmede suspense, que faça tanta diferença assim saber comotermina mas ainda assim há os que não gostam de saber, entãoque fiquem avisados.

Isso dito, o plano final de Flamenco é uma das maiores ideiasde Saura, que fecha completamente o sentido de seu filme,para os que ainda não tenham entendido. Porque pode-sefacilmente chamá-lo de "teatro filmado", o que seria umprofundo absurdo, ou ainda de filme de "variedades", comnúmeros musicais e coreografados. Pois bem, é o plano finalque dissipa qualquer possibilidade de leitura como esta.Após filmar durante quase duas horas vários artistas ecompanhias apresentando a música e dança flamenca, acâmara de Saura (ou seria melhor dizer, de Vittorio Storaro)sobe para revelar as estruturas do galpão onde tudo aquilofoi filmado. Mas, ela não se contenta com este movimento,e segue subindo, rumo a uma janela quase no teto, e por elasai, como que mergulhando na cidade lá fora. É um planoque diz muito, provando que linguagem é discurso. Com ele,Saura afirma: isto que vocês viram até agora é ummicrocosmo daquilo lá fora, da Espanha. Vejam as nossasruas, entendam o nosso povo. O flamenco pode ajudar, massozinho não consegue resumir tamanha complexidade.

O plano por si só vale um filme, mas ele somente é o pontofinal em duas horas do mais puro êxtase, da completa magiaque é assistir a perfeita simbiose entre cineasta e fotógrafo,entre criador e obra, entre artistas e a câmera. Porque o quepoderia soar simples ou até mesmo redutor (cineasta filmamanifestação artística) é tornado sublime pelo olho de Storaromisturado ao conhecimento de Saura do que filma. Porquese pensamos no trabalho em conjunto com Tango vemos adiferença: neste último, Saura não está no terreno que tantoo apaixona e que lhe permitiu criar a trilogia de Carmen,Bodas de Sangue e Amor Bruxo. Em Flamenco (anterior aTango, é bom que se diga), Saura demonstra que não precisade trama ficcional. O flamenco por si só é composto de dramao suficiente para sustentar um filme.

Mas, é óbvio que precisaria ser um crítico muito limitadopara falar do filme como se fosse uma realização meritosade cineasta e fotógrafo somente. O facto é que os artistasem cena não são menos do que excepcionais. A cada número

aumenta o desejo de que o filme dure para sempre, de quedepois de um venha sempre outro, tamanha a variedade deemoções contida nas apresentações. O flamenco é sofrido,dolorido, humano acima de tudo. Os rostos dos seus cantores,os corpos dos seus bailarinos, a expressão dos seus músicossão as maiores revelações do sublime da arte e do serhumano. E a grande virtude de Storaro aliás está aí. Aocontrário do que acontece muitas vezes em Tango ou emGoya, aqui o seu trabalho estético não existe para sermostrado, mas para acentuar e detalhar as nuances dasperformances perante as lentes, seja em grandes planos,em movimentos, em planos gerais. Com sua lente, ele revelacada sentimento, cada emoção dos artistas focados.

E, acima de tudo, o flamenco possui a força de uma civilizaçãopor trás de si, é representação folclórica no que esta palavrapossa ter de mais característico. Cada movimento daquelesvem embrulhado em História, em narrativa, em paixão, emorgulho, em completa representação de um povo.

Este brilhante Flamenco é um filme tão excepcionalmentebelo, intrinsecamente cinematográfico sem deixar de sercompletamente teatral, mas essencialmente, um documentoriquíssimo deste género musical.

Eduardo Valente Crítica ao filme Flamenco.

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Fados (em apresentação)

Portugal/Espanha, 2007, 88’Realização Carlos SauraDirector Fotografia José Luis López-LinaresImagens de Lisboa por Eduardo SerraSom Daniel BekermanFigurinos Isabel BrancoCoreografia Patrick de Bana & Pedro GomesMontagem Julia JuanizProdutores Ivan Dias, Luís Galvão Teles, António SauraProdutor Executivo Carlos Medrano, François GonotGravação da Banda Sonora Original EMI MUSICProdução Fado Filmes & Duvideo(Portugal)Co-produção Zebra Producciones (Espanha)Em Co-produção Câmara Municipal de Lisboa / Egeac(Portugal); Instituto do Turismo De Portugal; TviE o Apoio de Eurimages; Programa Ibermedia (Espanha);Icaa (Espanha); Tve (Espanha); Ico (Espanha); Antena 1Distribuição Lusomundo

Carlos Saura encerra com “FADOS” uma trilogia dedicada às3 formas de expressão musical urbanas do século XX depoisde Flamenco e Tango, este último candidato ao Óscar daAcademia de Hollywood de Melhor Filme Estrangeiro em 1998.

Um realizador conceituado e universal que recolhe a maispura expressão do povo português e a dá a conhecer a todoo mundo, como cartão de visita da nossa identidade cultural,sob a forma mais mediática: o cinema.Este final, seguindo a estrutura narrativa e estética deSevilhanas, Flamenco, Salomé e Ibéria irá um pouco maisalém na procura do realizador de conjugar fotografia e

coreografia com os diferentes géneros musicais. Será umfilme realizado em estúdio como os anteriores em que asucessão de quadros musicais será sempre orientada tantopela cronologia evolutiva da canção lusitana como pelasopções estéticas de Carlos Saura em cada momento. Orecurso a projecções e retro projecções reais de fotografiase filmes em cenários minimalistas compostos por espelhose painéis fazem esta ponte entre dois universos: o real e ointangível. Conformar-se-á assim um espaço cénico elásticode acordo com as circunstâncias de cada actuaçãoperfazendo a continuidade de uma actuação para outrasempre que necessário…

“FADOS”, vai buscar as suas origens brasileiras (Lundunse Capoeiras) coreografadas para o efeito e lança asinevitáveis pontes, pela voz de consagrados cantores, comÁfrica (Lura) e Brasil (Caetano Veloso e Chico Buarque). Asrecentes experiências de diálogo entre o Flamenco e o Fadoserão também ouvidas (Miguel Poveda e Mariza no canto eAida Gómez no baile).

Entre os nossos mais destacados fadistas teremos Carlosdo Carmo, Mariza, Camané e Argentina Santos, mas tambémtraremos os mais novos que carregam e reinventam atradição: Ricardo Ribeiro, Ana Sofia Varela, Carminho, CucaRoseta entre outros…

Fados e não apenas um Fado que reavive, desta forma, onosso passado de miscigenação cultural que deve ser umexemplo para o futuro.

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Fado e SauraCarlos do Carmo, Novembro de 2004

O Fado suscita sentimentos tão vários como a indiferença,o preconceito, o escárnio, a culpa, coexistindo com a paixão,o arrebatamento, a viagem ao fundo da alma e alguns dedifícil explicação. Fiz do Fado uma causa da minha vida etenho-lhe dado o melhor de mim. Sorvo a informação sobrea sua tradição oral e tenho um profundo respeito e admiraçãopor aqueles que me antecederam e me deixaram as estradasonde dou asas à minha permanente inquietação sob a suasimples forma poética e na sua misteriosa forma musical tãogenuína e, ao mesmo tempo, tão frágil. Sem falsa modéstiatenho-me sentido muitas vezes reconhecido, o que acrescentadimensão à minha responsabilidade de sonhar mais fadospara o Fado. Aprendo todos os dias com a vida a coexistir,sem arrogância, com os despeitados, que nada fazem masque tudo criticam (antes de começar por si próprios).

Nos últimos dez anos, depois da Lisboa 94 Capital Europeiada Cultura, escreveu-se mais sobre Fado, de várias formas,do que durante muitas décadas anteriores. O contributo quecada um dos elementos deste universo vem dando, atravésda sua experiência pessoal, coloca-nos perante um acervoque é, insofismavelmente, um património que merecereconhecimento. Com humildade, é nosso dever apresentarà UNESCO um trabalho sério, rigoroso, convincente, destapérola a que chamamos Fado. Depois, continuar a fazer otrabalho de casa e deixar às gerações vindouras informaçãoclara e que sedimente a paixão que nós, os da “tribo” doFado, sentimos.

Quem sou eu para falar de Carlos Saura? Um grandeadmirador, ponto final. A obra deste grande cineasta ehomem de cultura, por onde passa a sua visão do Tango edo Flamenco, ficaria incompleta sem o seu olhar sobre oFado. Falámos com ele, cantámos, vários de nós, para quesentisse as diferenças que fazem o todo, demos-lhe discosde várias gerações. Sabemos do seu grande entusiasmopara um projecto que nos parece de dimensão mundial.Penso que a materialização deste sonho não tem derrotados.

Ivan Dias

Ivan Dias é o autor e produtor da série de televisão PovoQue Canta (actualmente em exibição na RTP), homenagema Michel Giacometti e ao trabalho sobre a música popularportuguesa que este realizou há 30 anos. Para preparar umepisódio dedicado ao fado, Ivan Dias teve vários encontroscom Carlos do Carmo. Um dia, para se inspirar, decidiu levarpara esse encontro dois filmes de Carlos Saura, Flamenco(1995) e Tango, no me Dejes Nunca (1998). "Pensámos quepodíamos fazer um episódio um pouco diferente a nívelestético." Mas ao fim do dia tinham uma ideia completamentediferente e se o próprio Saura realizasse um filme sobre ofado? Ivan Dias deslocou-se então de propósito a Madridpara propor a Saura "completar a trilogia da canção urbanaibérica do século XIX". O entusiasmo do realizador espanholsuperou todas as expectativas.

O passo seguinte foi trazer Saura a Lisboa. "Levámo-lo aouvir fado vadio e fado profissional, inundámo-lo com discos",revela Carlos do Carmo. "E insistiu tanto que até eu tiveque cantar para ele!" O fadista é consultor do projecto eaguarda apenas que Saura escreva o argumento para depoislhe indicar "quais os cantantes e tocantes que mais seadequam". Se os nomes de Mariza e Camané lhe parecemconsensuais, pela sua qualidade e por representarem umanova geração do fado, Carlos do Carmo espera poder incluirtambém "nomes das gerações mais antigas, como ArgentinaSantos". E não exclui a hipótese de ter um papel mais activono filme, como por exemplo ser narrador.

Nos últimos anos, Carlos Saura tem rodado vários filmesrelacionados com a música e a dança espanholas, comoSevillanas (1992), Flamenco (1995), Tango, no me DejesNunca (1998), Salomé (2002) e Ibéria, anunciado em Cannese ainda em preparação. Segundo Ivan Dias, produtorexecutivo de Fados (título provisório), este será um"documentário criativo", muito próximo de Flamenco.

O filme é uma co-produção da Zebra Producciones, deAntonio Saura, com a Duvideo, de Ivan Dias, e a Fado Filmes,de Luís Galvão Teles, incluindo participação brasileira (aVideofilmes, de Walter Salles) e francesa. Segundo GalvãoTeles, o orçamento de Fados ultrapassa os três milhões deeuros. O português Eduardo Serra será o director defotografia e a rodagem deverá decorrer em Lisboa noprimeiro semestre de 2006.

Eurico de Barros e Maria João CaetanoDN Online de 21 de Maio de 2005

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Tango (No me dejes nunca)

Espanha, 1998, 115’Realização e Argumento Carlos SauraFotografia Vittorio StoraroMúsica Lalo SchifrinDirecção artística Emílio BaldasúaVestuário Milena Cañonero, Beatriz de BenedettoProdução José María Calleja de la Fuente, Allejandro Bellabapara Alma International Pictures/ Argentina Sono FilmIntérpretes Miguel Ángel Solá (Mario Suárez); CeciliaNarova(Laura Fuentes); Mía Maestro(Elena Flores); JuanCarlos Copes(Carlos Nebbia); Carlos Rivarola(Ernesto Landi);Sandra Ballesteros(María Elman); Óscar CardozoOcampo(Daniel Stein); Enrique Pinti(Sergio Lieman); JulioBocca(Julio Bocca); Juan Luis Galiardo(Angelo Larroca)

Mario Suarez (Miguel Ángel Sola), autor e director teatral,apesar da fama está em crise. Abandonado pela mulher,refugia-se nos ensaios de um espectáculo que prepara, sobreo tango. Angelo Larroca (Juan Luis Galiardo), o mafiosoprodutor e também bailarino frustrado, sugere a Mario quedê o papel principal à sua protegida (Mía Maestro).Impressionado com o real talento e beleza da jovem, eletorna-se seu amante.

Prémios:Recebeu uma indicação ao Óscar, na categoria de MelhorFilme Estrangeiro. Recebeu uma indicação ao Globo de Ouro,na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Ganhou o PrémioTécnico do Grande Júri no Festival de Cannes. Ganhou oPrémio Goya de Melhor Som, e foi ainda indicado na categoriade Melhor Fotografia.

Tango é um filme que apresenta a paixão dos espanhóispela dança, e a renovação dessa paixão quando crianças seesforçam em aprender. Mais que uma dança, o tango é umaexpressão da tradição e de um modo de vida. A primeirametade do filme concentra-se em apresentar vários númerosde danças e um painel geral do sentimento da dança empessoas bastante diferentes, embalados por uma trilhasonora típica e a exuberante fotografia em tons “calientes”de Vittorio Storaro.

As virtudes do filme aparecem na segunda faceta do filme.Aos poucos, Tango revela-se um ensaio intimista e quaseem tom confessional dos meandros da vida do própriorealizador Carlos Saura, uma grande lenda do cinemaespanhol. É exactamente aí que o filme se torna interessantepara os amantes do cinema, porque no fundo o filme torna-se menos um pseudo-documentário sobre os efeitos dotango no coração dos espanhóis para mostrar na verdadeuma visão particular de Saura sobre os efeitos da dança nasua vida pessoal. Pois essa visão pessoal é de facto o máximoque um realizador pode apresentar sobre uma coisa. O filmetorna-se tão intimista que no fundo é um filme sobre osdilemas presentes da vida do próprio realizador, impondo-se sobre o tema inicial de apresentar o tango. Isto é, Saura,agora, não tem a visão pretensiosa de fazer um filme sobreo tango, mas apenas um filme que mostre a sua visão pessoal,como a dança se tornou uma parte indissociável da sua vida,ou seja, a paixão pela dança como parte integrante e activade sua vida presente.

O que impressiona nesse relato é a maturidade de Sauraem olhar-se no espelho, sem medo de se expor e mostrarsuas fragilidades. E para compreendermos isso, temos quepensar sobre a posição de Saura no actual cinema espanhol.

Saura sempre foi considerado o principal realizador do país.Os seus filmes de alegorias políticas, como Ana e os Lobos,Cria Corvos e Mãe Faz Cem Anos, deram-lhe projecção emtodo o mundo. Entretanto, em meados dos anos 80, apopularidade de Saura com os críticos começou a declinarpaulatinamente. Os próprios filmes sobre danças nãoreceberam boas impressões, culminando com seus últimosdois filmes, Táxi e Dispara!, que receberam termos bastantenegativos dos críticos. Além disso, o surgimento de um outrocineasta espanhol fez com que o nome de Carlos Saura fosserelegado para segundo plano. Hoje, quando se pensa emcinema espanhol, pensa-se imediatamente em PedroAlmodovar, que herdou o lugar de destaque antes ocupadopelo Saura. Além dele, cineastas como Aranda e Lunaganharam prémios importantes em festivais espalhadospelo mundo. Saura anda esquecido e desprestigiado.

E esse é exactamente o encanto de Tango, onde Saura admitea sua decadência, mas sem abandonar sua integridade comoindivíduo, e mantendo-se coerente com o seu passado. Assim,Tango é um relato confessional de um autor que não temmais nada para provar para ninguém. O realizador-personagemde Tango é portanto um alter-ego do próprio Carlos Saura.No filme, o personagem é um realizador respeitado mais emfunção de seu passado do que propriamente do seu lugar deprestígio actualmente. E esse cenário de decadência no filmeestá bastante relacionado com um sentimento de decadênciafísica, um envelhecimento. A virilidade é um sentimentobastante presente no cinema espanhol, e no povo espanholem geral. A própria dança reflete isso. Os movimentos docorpo são no fundo um jogo de sedução com o parceiro, umasensualidade em exibir o corpo e usá-lo como um instrumentode manifestação de um sentimento de viver. Por isso, o filmemostra em uma ocasião idosos que buscam um sentido paracontinuar vivendo nos passos da dança. Mas Saura sabe muitobem que o mais difícil é a transição, que nunca écompletamente suave.

O começo do filme é portanto o instante em que Saurapercebe seus limites: ele está em fim envelhecendo, e nãoparece preparado para esse momento. Mas a partir doinstante em que Saura vê o seu envelhecimento comserenidade, ele recupera um novo equilíbrio, e consegueacenar para o futuro com uma nova possibilidade.

Cada vez mais claramente Saura fala de si mesmo, mostrandoos seus dilemas e o seu decadentismo para o público deuma forma honesta e delicada. Vemos o realizador no filmea trabalhar num projeto com as figuras de Goya, quandosabemos que o próximo filme de Saura em seguida a Tangofoi de facto sobre o pintor espanhol. Em seguida, Sauraapresenta aos produtores (e ao público) o melhor númerode dança do filme. O produtor obviamente não gosta, dizque é muito ousado e político, e que Saura deve modificaro final pessimista para agradar ao público, tornar o númeromais leve. Percebe-se então que o produtor respeita asideias de Saura que mantém sua integridade artística, masas diferenças de perspectiva são muito grandes.

Tango é um filme nostálgico, quase como uma despedidade Saura. Mas a virtude do filme é que finalmente Sauradesistiu de tentar agradar aos críticos e agora ele querapenas fazer um filme que mexa com as emoções do público,um filme sobre a sua paixão para o cinema.

Arcelo Ikeda, crítica ao filme Tango

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Iberia

Espanha, 2005, 99’Realização Carlos SauraFotografia José Luís LópezMúsica Roque BañosProdução Álvaro LongoriaIntérpretes Sara Baras, Antonio Canales, Marta Carrasco, AídaGómez, Enrique Morente, Estrella Morente, Gerardo Nóñez, JoséAntonio Ruiz, Manolo Sanlúcar, Rosa Torres Pardo, etc.

Uma celebração que une a disciplina, a destreza e a paixãodo flamenco com a música clássica, o ballet e a dançacontemporânea. Ibéria dá continuidade ao projecto de umcinema não-narrativo do realizador Carlos Saura, ondeperformances de artistas como Sara Baras, Aida Gomez eEnrique Morente são a própria razão de ser do filme. Aorealizador cabe não trair o ritmo interno da música e dadança, e fazer com que a câmara se torne, ela mesma, maisuma entre os performers, levando-nos a um mergulho numuniverso de criatividade, drama e paixão. Acompanhamosensaios, preparações e o gradual nascimento dos diferentesactos, ao longo de um dia e noite de música e dança.

Inspirado pela música do compositor espanhol Issac Albéniz(1860-1909), o filme complementa uma série de trabalhosmuito bem recebidos do realizador Carlos Saura, comoFlamenco e Tango.