um olhar feminino sobre o abandono humano o olhar da narradora, a miséria do homem, que assemelhava...

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Programa de Pós-Graduação em Letras Doutoranda: Gisele Centenro Orientadora: Dra. Glória Carneiro do Amaral Um olhar feminino sobre o abandono humano Análise do conto O Homem de Sohia de Mello Breyner Andresen Trabalho final para a disciplina "A constituição do romance moderno", ministrada pela Profª. Dra. Glória Carneiro do Amaral São Paulo Maio de 2016

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Page 1: Um olhar feminino sobre o abandono humano o olhar da narradora, a miséria do homem, que assemelhava ter cerca de 30 anos. Nesse mesmo momento, o homem, em gesto de súplica, olhou

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Programa de Pós-Graduação em Letras

Doutoranda: Gisele Centenro

Orientadora: Dra. Glória Carneiro do Amaral

Um olhar feminino sobre o abandono humano Análise do conto O Homem de Sohia de Mello Breyner Andresen

Trabalho final para

a disciplina

"A constituição do

romance moderno",

ministrada pela

Profª. Dra. Glória Carneiro do Amaral

São Paulo

Maio de 2016

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Sumário

1 - Objetivo _____________________________________________________ 03

2 - Introdução ___________________________________________________ 03

3 - Síntese de O Homem ___________________________________________ 04

4 - A descrição do abandono sob um olhar feminino _____________________ 06

5 - Pobreza existencial e linguagem libertadora _________________________ 11

6 - Considerações finais ___________________________________________ 14

7 - Bibliografia __________________________________________________ 15

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1 - Objetivo

A partir dos anos 1950, o novo romance apresenta novas composições formais,

segundo Sandra Nitrini, com alguns escritores dando ênfase à função da linguagem,

tratamento que se reflete no modo de contar uma história e na constituição de

personagens. O objetivo desta análise é investigar a exploração da função da linguagem

no processo de descrição sob o olhar feminino no conto O Homem, escrito por Sophia de

Mello Breyner Andresen em 1959 e publicado juntamente com outros seis contos, em

1962, no livro Contos Exemplares, cujo título é referência explícita, conforme citação no

início da obra, às Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes.

2 - Introdução

Sophia Breyner viveu sob a ditadura militar, sob a ditadura Salazarista (Estado Novo)

e sob o processo de abertura democrática iniciado com a Revolução dos Cravos em 1974,

em Portugal. Dentre os temas de destaque em sua obra poética, em sua coletânea de

contos e em suas peças de teatro, há um misto de imagens inspiradas na natureza (o mar,

a terra, a água), na mitologia greco-romana, na filosofia cristã e nos valores e amores

portugueses (triunfos pela busca, navegações, amizades exemplares), dentre outros. Há

também críticas sociais evidentes em muitos dos seus textos, tanto na poesia como na

prosa.

A coletânea de contos da autora é pequena: sete contos reunidos, como já dito em

Contos Exemplares (O Jantar do Bispo, A viagem, Retrado de Mônica, Praia, Homero, O

Homem e Os Três Reis do Oriente), publicado pela primeira vez em 1962, ainda sem

inclusão do último conto citado em parentêses, o qual foi escrito em 1965; cinco contos

no livro Histórias da Terra e do Mar (História da Gata Borralheira, O Silêncio, A Casa

do Mar, Saga e Vila d'Arcos), de 1984; o Anjo do Timor, de 1991; e Quatro Contos

Dispersos (O Carrasco, Leitura no Comboio, O Cego e Era uma vez uma Praia

Atlântica), de 2008.

Há semelhanças entre temas e composição da escrita dos contos O Homem,

selecionado para esta análise, e Homero, que o precede na edição de Contos Exemplares.

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Em ambos a consciência da personagem-narradora domina a unidade dramática. O leitor

é levado a acompanhar o deslocamento no tempo e no espaço da ação narrada

exclusivamente sob o ponto de vista de uma personagem-narradora de gênero feminino.

A estrutura dois dois contos tem parecência com a técnica da qual se vale um

fotógrafo, ao captar um momento vivido por um ser/objeto em determinados tempo e seu

contexto, excetuando-se o fato de que nas narrativas há o movimento registrado e narrado

pelo foco da personagem-narradora em tom lírico.

Todavia, enquanto Homero tem sua referência na palavra poética grega, personificada

pelo "velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio", que, embora resista à

insensibilidade do mundo moderno, está em conflito com a incompreensão humana, O

Homem, como veremos a seguir, liga-se ao passado pela presentificação do mito cristão

da morte de Jesus na cruz.

3 - Síntese de O Homem

Um fato ocorrido muitos anos antes do momento do início da narrativa é o mote

central do conto O Homem. Narrado em primeira pessoa do singular, esse fato faz parte

das memórias da personagem-narradora, que as compartilha com o leitor com

linearidade, mantendo a lógica das relações entre tempo passado e presente.

A personagem-narradora não se apresenta fisicamente nem à sua identidade em seu

discurso narrativo, embora torne evidente ser mulher pelo uso, por exemplo, de adjetivos

femininos ao se referir a si mesma, recurso utilizado pela primeira vez no oitavo

parágrafo do conto ("Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem".).

No centro da cidade, onde muita gente transita pelas ruas, no fim do mês de

novembro, por volta das quatro horas, a protagonista, segundo sua própria narrativa,

sentiu-se atraída pela beleza de uma criança loira, que avistou no colo de um homem mal

vestido, caminhando devagar pela calçada. Depois de passar por ambos, ela voltou o

olhar para novamente apreciar a criança e, então, ao reparar com mais atenção no

homem, também descrito como muito belo, decidiu parar. A aparência dele denunciava,

sob o olhar da narradora, a miséria do homem, que assemelhava ter cerca de 30 anos.

Nesse mesmo momento, o homem, em gesto de súplica, olhou para o céu, ato narrado

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como emblemático pela protagonista, o qual causou nela a impressão de que ele precisava

de ajuda e de que ela poderia ajudá-lo. Entretanto, ela lembra que não fez nada por eles e,

mesmo refletindo comovidamente sobre a situação do homem miserável com a criança ao

colo, conta que seguiu sua caminhada, não revelando ao leitor especificamente de onde

vinha e para onde ia.

Sem conseguir se desvencilhar da imagem do homem olhando para o céu, conforme

detalha na narrativa, a protagonista procurou em seus pensamentos imagens associativas

para o gesto do homem miserável olhando para o céu e, então, venho à sua mente ("no

meu espírito", escreve ela) as palavras "Pai, Pai, por que me abandonaste?" (únicas

inserias com travessão no conto), supostamente ditas por Jesus no epílogo de sua

crucificação. O arrependimento por não ter oferecido ajuda tornou-se mais intenso nessa

hora e, imediatamente, a protagonista decidiu retornar até eles.

Este é o momento do clímax do conto. Quanto tentou se aproximar do homem e da

criança, no meio da multidão, uma tragédia aconteceu. O homem caiu no chão, com

sangue escorrendo pela boca; a criança, chorando, caiu com ele. Um círculo de pessoas se

formou rapidamente em torno de ambos, impedindo a passagem da protagonista até eles,

de acordo com suas lembranças. Ela não conseguiu ver em detalhes o que se passou na

sequência, mas viu uma ambulância se aproximar. Desfeito o círculo de pessoas, notou

que o homem e a criança não estavam mais caídos na rua. Ela retomou então à sua

caminhada para destino desconhecido dos leitores, sem mais nada narrar sobre o

episódio.

A narradora finaliza o conto com um parágrafo, em monólogo interior de quatro

frases – "Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso

lado. Pelas ruas" –, incluindo, pela primeira vez em todo a narrativa, o leitor ou receptor

de sua história na ação narrada, ao fazer uso do pronome possessivo "nosso".

4 - A descrição do abandono sob um olhar feminino

A importante função da descrição no conto O Homem salta aos olhos do leitor no

primeiro enunciado. Escreve o sujeito narrador: "Era uma tarde do fim de Novembro, já

sem nenhum Outono". Ou seja, o clima já era do frio do inverno. O conto começa,

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portanto, pela descrição do cenário onde o drama se desenrolará e isso não acontece

gratuitamente.

A descrição do cenário urbano, escuro e frio da cidade sem nome do conto, em cujas

ruas homens caminham aos empurrões e carros transitam em velocidade, é essencial para

tecer a atmosfera do enredo, intensificando a percepção da situação difícil enfrentada

pelo homem miserável que carrega a criança loira e será descrito, adiante, pelo sujeiro

narrador.

O mês de novembro citado é um novembro qualquer, sem data espercífica, embora

saibamos que se trata de um contexto da era moderna pela inclusão dos carros no cenário.

Novembro faz parte, portanto, do fluxo de consciência de um olhar onisciente que,

voluntariamente, faz um recorte na realidade ao seu redor quando se concentra

especificamente na criança loira, primeiro, e no homem que a segura, depois. Novembro,

mesmo sendo um mês qualquer do calendário, é fundamental para compor "o quadro" do

dia sem sol, nem chuva, mas frio porque já é inverno e porque já está anoitecendo

("Deviam ser quatro horas da tarde...").

A contradição entre o horário pontulmente citado e a inexistência de uma data

específica para o episódio narrado ao leitor surge, neste início do conto, como uma

astúcia enunciativa do sujeito enunciador que não revelerá sua identidade feminina ao

leitor nos primeiros sete parágrafos do conto. Em vez disso, o sujeito narrador, em

linguagem que se distancia da oralidade, mas não se reveste de caráter formal ao adotar

um tom lírico, está camuflado numa cidade qualquer, numa rua qualquer, num dia de

novembro qualquer, sem apresentar suas características como personagem-narradora

construída, embora inserida na ação a partir do quarto paráfrafo ("Eu caminhava no

passeio, depressa.").

Neste início do conto, a personagem-narradora é uma pessoa qualquer, sem

identidade definida e assumida. Sobre a marcação do tempo, sabemos somente que

novembro, no conto, procede um outubro, precede um dezembro e tem clima muito frio.

Por sua vez, a personagem caminha, depressa, como os demais homens que se empurram

pelas ruas, sem sabermos de onde ela vem, onde ela está exatamente e para onde ela vai.

A personagem-narradora faz parte da massa de cidadãos que, concentrados em si

mesmos, se locomovem dirigidos por seus próprios interesses, sem prestar conta uns aos

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outros de suas intenções, sentimentos, ideologias.

O desvio narrativo que faz com que esse sujeiro narrador comece a se constituir como

indivíduo, que faz com que sua voz atinja um grau de significado descritivo relevante na

comparação com os demais homens que simplesmente caminham no cenário urbano do

conto, é um movimento singelo mas que possui força dramática suficiente para, num fiat,

dar início à trama: o sujeiro narrador deixa de estar imiscuído à multidão quando se

posiciona atrás de um homem "muito pobremente vestido".

Ainda sem revelar seu gênero feminino, a partir desse novo ponto de vista, o sujeito

narrador passa à segunda etapa do processo de descrição na narrativa, agora desviando o

olhar que antes abarcava o todo do cenário – natureza, objetos, seres – para se fixar um

recorte muito espercífico dessa realidade que está sendo revivida em memória narrativa.

Ele começa a descrever a criança loira que vai ao colo do homem muito pobre que avista

na calçada, mais uma vez lançando mão de uma astúcia enunciativa para criar um jogo de

sentidos e significados com as palavras dirigidas ao receptor/leitor: "uma daquelas

crianças cuja beleza quase não se pode descrever". Não se pode descrever, entretanto,

estabelecendo um jogo de negação e afirmação com fins estratégicos de persuasão, o

enunciador fará exatamente isso no enunciado a seguir: "É a beleza de uma madrugada de

Verão, a beleza de uma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza de uma

inocência humana".

Sob o olhar do sujeiro narrador, a criança é vista e sentida, portanto, como uma

antítese do cenário até então descrito porque:

– ela se sobressai dentre tantos homens que transitam, depressa, aos empurrões pelas

ruas, permanecendo parada no colo do homem pobre;

– o loiro dos cabelos da criança contrasta com as pedras escuras das paredes da

cidade e com a cor de frio do céu, alto e desolado, com a ausência do sol;

– a beleza da criança aquece as sensações a ponto de criar uma imagem de contraste

entre Verão e Inverno, entre Primavera e Outono;

– a beleza da criança tem a inocência humana que não está presente nos semblantes

da multidão que caminha apressada, mas sim no aconchego com o ser pobre que a acolhe.

Os elementos descritos vão compondo, portanto, um quadro formado por antíteses na

relação entre o entorno do sujeiro narrador e a criança no colo do homem pobre, próximo

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dele. É por meio desta antítese que o narrador convida o

leitor a compreender a necessidade que ele sentiu, naquele

momento do episódio, de olhar para a criança novamente,

voltando sua cabeça para trás depois de ter avançado no seu

caminho, como se quisesse realmente apreciar um quadro ou

uma escultura.

Para ilustrar este registro descritivo, podemos recorrer às

esculturas barrocas do espanhol Pedro Duque y Cornejo,

uma delas tendo como tema o santo franciscano, de origem

polonesa, Estaniaslau Kostka, denominado o "anjo da infância"; outra inspirada em São

José, ambas acervo da Igreja São Luis, em Sevilha.

Também podemos recorrer, no universo imagético, ao "Cristo muerto sostenido por

um ângel", óleo sobre tela do italiano Antonello de Messina,

exposta no Museo del Prado, em Madri, na Espanha.

A terceira importante etapa no processo de descrição na

narrativa tem início quando, ao voltar a cabeça para olhar a

criança novamente, o sujeiro narrador muda seu foco, desta

vez concentrando-se na figura do homem pobre. Para tecer

esta descrição, o ponto de vista do sujeito narrador também

muda, pois, agora ele não está mais atrás, mas assim à frente

do homem que segura a criança no colo.

Atraída pela imagem do homem, a protagonista para de

andar. E para descrevê-lo, o campo ótico inicial são as

expressões do rosto: "Era um homem extaordinariamente

belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam

inscritos a miséria, o abandono, a solidão". Em seguida,

definirá sua pobreza pelo estado da roupa e da sua magreza;

do cabelo castanho-claro sem corte, dividido ao meio; da

barba sem aparar. "Estreitamente esculpido pela pobreza, a

cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do

que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de

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solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para

o céu", escreve a personagem narradora.

Mais uma vez, o enunciado seguinte estabelece um jogo com o receptor/leitor, cuja

estratégia linguística é gerar expectativa em relação à descrição do gesto feito pelo

homem miserável: "como contar o seu gesto?" Apesar da reflexão sobre a

impossibilidade de realizar essa tarefa, de imediato o sujeito narrador começa a fazê-lo,

retornando ao princípio do conto, em movimento circular, como se quisesse retroceder a

um passado ainda mais longíquo, e repete a descrição do céu alto, cor de frio e, agora,

também "sem resposta" ao apelo do homem necessitado.

Este movimento de retorno circular à descrição do céu, que ganha mais uma

caracterização, agora metaforizado ao representar um ou mais entes sobrenaturais

capazes de dialogar com um ser humano, embora permaneça em silêncio, compõe um

momento de suspense na trama, com dois encaminhamentos: o acontecimento factual

reatualizado pelo narrar das memórias do sujeito narrador, ocorrido numa tarde qualquer

de um novembro qualquer, numa rua de uma cidade qualquer; o acontecimento histórico-

cristão do momento em que Jesus tenta, sem resposta, dialogar com Deus, no epílogo da

crucificação, em Calvária (Gólgota), nos arredores de Jerusalém, que deu origem ao mito

da ressureição após sua crucificação que, como dogma, deve ser celebrado pela aliança

no comungar do sacramento da eucaristia na religião católica.

"O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite,

já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta. [...] Caminhava muito

direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta", descreve a personagem

narradora, concluindo a cena com uma metáfora poética: "Mas o céu eram planícies e

planícies de silêncio".

Introduzindo uma breve pausa na narrativa, no enunciado seguinte a personagem

deixa aflorar, subjetivamente, um pouco de si mesma ao leitor, revelando seu estado de

espírito em relação ao episódio e que ela é uma mulher. "Tudo isso se passou num

momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do

seu olhar e dos seus gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de

mim. Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem."

Na sequência, a descrição volta a tecer o vai e vem apressado da multidão e a

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narradora chama atenção para o fato que não conseguiu estabelecer nem contato visual

com o homem miserável que a estava impressionando tanto com seu gesto. "Sentia a

cidade empurrar-me e separar-me do homem", escreve a narradora, manifestando o

caráter psicológico do conto, cuja narrativa prossegue sob total domínio da sua

consciência.

Ela acrescenta ainda que não havia no local ninguém que enxergasse aquele homem

como ela o estava enxergando, isto é, o enunciado induz o leitor a refletir que no

momento da enunciação – aquele que antecede o drama narrado –, a perspectiva do

enunciador era única: um ponto de vista traduzido por um olhar feminino atencioso,

curioso e sensível em face de acontecimentos ao seu redor. "Ninguém o via caminhando

lentamente [...] e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria."

Os homens da multidão que figuram no relato não davam importância à criança e ao

gesto suplicante do homem miserável que caminhava dentre eles, num novembro

qualquer da história da humanidade da era moderna. Todavia, ele conseguiu prender a

atenção da narradora que, por sua vez, ao tecer a narrativa, consegue prender a atenção

dos seus leitores não somente centrada no episódio que está narrando, mas também

diretamente sobre a figura da criança e do homem, englobando as representações

metafóricas e míticas associadas às suas identidades.

A narrativa tem, portanto, um poder simbólico de celebração eucarística quando a

narradora atinge a finalidade de compartilhar com leitores/receptores a visão extasiante

que teve daquela bela criança loira no colo do homem miserável em ato de súplica.

Atingido esse objetivo, a descrição começa a ceder lugar em importância, na

narrativa, ao fluxo de pensamento interno da personagem-narradora, revelando novas

informações sobre si mesma – a construção psicológica da personagem é fortalecida.

Caminhando pelo tom da linguagem confessional, a narradora questiona a essência da

realidade humana, atestando que ela é "dinâmica e mutável"1, em compasso com as

perspectivas dos novos romancistas analisados por Sandra Nitrini.

1NITRINI, Sandra. Em busca do novo romance francês. In: Poéticas em confronto. São Paulo: HUCITEC,

1987, p. 57.

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5 - Pobreza existencial e linguagem libertadora

Segundo José Luiz Fiorin, "o discurso crítico se constitui a partir dos conflitos e das

contradições existentes na realidade"2, enquanto a linguagem pode ser instrumento de

libertação ou de opressão, de mudança ou de conservação. Quando a personagem

narradora de O Homem afirma "agora penso no que podia ter feito", o advérbio "agora"

cria um efeito de distanciamento entre o enunciado da narrativa em primeira pessoa que

revela o estado de espírito da protagonista num fictício hic et nunc e os enunciados que

narram o episódio da criança e do homem miserável reatualizados pela sua memória,

instaurando ainda um efeito de verdade factual. Este enunciado em primeira pessoa do

singular e verbo "pensar" conjugado no presente do indicativo também dá início ao tom

de confissão que a narradora começa a adotar por meio de estratégias de linguagem a

partir do 13º parágrafo, pressupondo que o receptor/leitor acompanhará este monólogo

interior como o faria um juiz, ainda que suas considerações sobre o comportamento da

narradora permaneçam indizíveis.

A sequência de acontecimentos rememorada gerou conflitos internos para a

personagem, no passado, segundo a narrativa. Conflitos que ainda não foram resolvidos

no presente da narrativa, mas que tentam ser justificados pelo caráter de contradição do

qual é composta a existência humana. "Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a

alma e as mãos pesadas de indecisão", confessa a narradora, acrescentando "só sabia

hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade

empurrava-me e um relógio bateu horas".

Diante da imagem de desespero do homem com a criança que somente ela captava

por intermédio do gesto dele dirigido ao céu, em vez de agir, aproximando-se deles, por

exemplo, para ofertar apoio no lugar do céu que, metaforicamente, se calava, a narradora

diz que simplesmente não fez nada e, ainda, sentindo-se constrangida por notar que

pessoas começavam a prestar atenção nela em razão de sua parada súbita, aparentemente

sem justificativa, decidiu retomar seu caminhar, imitando o mesmo comportamento

alheio da multidão ao dar as costas tanto para a beleza da criança, como para a feiúra da

2FIORIN, José Luiz Fiorin. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1997, 5ª ed, p. 44 e p.74.

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miséria humana.

"Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do homem

continuava suspesa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação confusa de que nele

havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia", narra a protagonista, reforçando a

descrição do seu estado de conflito. A expressão de "infinita solidão" do homem não a

abandonou, enquanto ela buscava internamente – não na realidae objetiva – uma resposta

para o incômodo psicoemocional que seguia com ela.

A resposta encontrada pela protagonista, em ato reflexivo, estabelece uma

contradição no âmbito da filosofia e da praxis, pois, a narradora não revela um nome, não

descreve uma nova imagem nem enuncia uma afirmação. A resposta é apresentada a ela,

em monólogo interior, e por ela, em seu discurso dirigido ao leitor, sob a forma de

pergunta: "– Pai, Pai, por que me abandonaste?".

Célebre por ser creditada, nos evangelhos de Mateus e Marcos, a Jesus Cristo nos

momentos finais da crucificação, a pergunta não tem resposta e traduz, pela linguagem, o

sentimento de opressão e abandono não somente de Cristo, mas de todo ser humano que

perece injustamente diante de outros seres humanos que não atuam para salvá-lo, nem

demonstram sensibilidade pela dor da vítima.

Reflexão filossófica e religiosa semelhante também está contida, no universo bíblico,

no Livro de Jó (Antigo Testamento), onde lemos debates sobre a grandeza dos propósitos

de Deus e sobre a existência humana, pontuadas por culpas conscientes e inconscientes.

A pergunta-resposta é, sob a perspectiva da narradora, uma tomada de consciência

sobre o comportamento social alheio às dores do outro, o que faz emergir nela o

sentimento de culpa. Todavia, ao purgar esse sentimento de culpa, a narradora relata ter

sido impelida a retornar e ofertar ajuda ao homem. O tempo, porém, como vemos no

conto, é implacável e, assim como no quadro de Goya, "Saturno devorando a un hijo",

devora as chances da protagonista se redimir. Ela luta, sem êxito, para chegar até eles

novamente, correndo, como se este ato humanitário, ao ser concretizado, pudesse mudar

o rumo do drama contado, evitando uma tragédia, e, simultaneamente, empoderar a

linguagem, tornando-a libertadora, para que o mito, reescrito com final feliz,

transformasse a realidade e a perspectiva dos homens sobre consciência social, mudando

a tradição dos lamentos e pedidos de socorro não atendidos para um novo constructo

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social, efetivamente balizado pelo mandamento "amai-vos uns aos outros".

O homem miserável caiu morto, com a criança chorando. Uma ambulância se

encarregou de removê-los do local. O movimento da cidade retornou ao normal, após o

tumulto em torno do incidente, e a protagonista retomou sua caminhada, impotente

novamente diante das circunstâncias.

A pobreza existencial dos muitos homens sem nomes que circulam pela cidade e a

pobreza social do homem com a criança loira que também não tem identidade são fonte

de conflito insolúvel para a narradora que, no início do conto, olha para a criança loira

como se olhasse para a representação da esperança. Esta é a relação que se estabelece

entre ela e a realidade social na qual vive.

Ela encontra, porém, passados muitos anos, uma nova resposta para seu conflito

interior. "Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso

lado. Pelas ruas", afirma ao finalizar o conto. Inspirada pela imagem que se formara no

seu espírito e recuperada pelo questionamento "Pai, Pai, por que me abandonaste?", a

protagonista, assim como o Cristo suplicante, como Jó, faz uso da linguagem para atuar

em favor da transformação da realidade desumana identificada. Ela compõe um conto,

revive um fato simbólico lançando um convite para que outros cidadãos também o

revivam com ela e, desse modo, mais uma vez presentifiquem o mito religioso-cristão

que tem seu clímax na ressurreição, após Cristo assumir os pecados da humanidade.

Embora morto fisicamente, o homem miserável é eternizado pela narradora por meio

da linguagem literária e, ainda que o conflito existencial permaneça, há a esperança, por

crença ou fé, na sobrevivência da criança, sob o aconchego de outros braços solidários,

de uma outra família e, por analogia, sobrevive a esperança na recuperação da inocência

perdida pela humanidade no olhar um pelo outro, um no outro, um para o outro, e no

porvir de uma era pautada pela justiça.

6 - Considerações finais

Se Deus é a imagem do retorno, da coerência advinda do caos, do desfalecimento e

do eterno renascer, sendo o homem criado à imagem de Deus (e vice-versa), o discurso

filosófico unido ao discurso mítico abrem caminho, pelas temáticas do niilismo e do

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existencialismo, para a compreensão da resignação humana às vozes anteriores que

conformam uma tradição.

Sob a configuração de discurso literário, as discussões assim tematizadas podem

adquirir uma função social, apontando um ou mais erros, falhas que ameaçam a harmonia

entre os seres humanos de qualquer era ou que impeçam que haja uma militância em sua

busca e a seu favor.

Neste conto que analisamos, assim como no poema O Cristo Cigano, da mesma

autora, analisado anterirmente, os discursos narrativos abrangem a realidade objetiva e a

subjetividade dos seres humanos, provocando reflexões que apelam à razão e aos

sentimentos dos leitores. Em ambas as obras há um jogo de ambiguidades que estimula a

imaginação, a associação e a contraposição de ideias, como a oposição entre um Deus

silencioso no céu e um homem silencioso, em posição de súplica, na Terra. Tanto no

conto como no poema, um fato fictício é mote para a restauração de um mito,

presentificado não no campo religioso ou sagrado, mas sim na esfera do profano.

O homem miserável relegado ao abandono e o cigano assassinado são transfigurados,

sob o ponto de vista de um narrador de primeira pessoa onisciente, em deuses que

enfrentam momentos de sacrifício. A ligação entre o profano e o mítico sagrado é

constituída pelas metáforas da linguagem literária, como no trecho "O homem levantou a

cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para dar e se

volta para fora procurando uma resposta: A sua carra escorria sofrimento. A sua

expressão era simultaneamente resignação, espanto e pergunta".

Com essa visão feminina do homem em súplica, a narradora cria para si e para os

leitores deuses momentâneos a serem experienciados pela palavra, estando o leitor

situado na consciência da personagem narradora e protagonista.

O objeto de seu foco de atenção somente tem significado, sob essa concepção

estética, diante ou sob a "posse" de uma consciência, revelando-se um caráter intencional

narrativo que não refuta a diversidade das ideias sobre o mundo, sobre o relacionamento

entre os homens e sobre o relacionamento entre homens e objetos, mas tenciona expor,

fazendo uso da transposição dos mitos para o discurso literário, uma perspectiva singular,

ainda que a polissemia e a polifonia sejam intrínsecas a esse discurso que embute a

história de um comportamento exemplar de virtude.

Page 15: Um olhar feminino sobre o abandono humano o olhar da narradora, a miséria do homem, que assemelhava ter cerca de 30 anos. Nesse mesmo momento, o homem, em gesto de súplica, olhou

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7 - Bibliografia

Obras analisadas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O Homem. In: Contos Exemplares. Lisboa:

Assírio & Alvim, 2014.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Homero. In: Contos Exemplares. Lisboa:

Assírio & Alvim, 2014.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra Poética. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

Fundamentação teórica

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Capítulos 4, 5 e 6. São Paulo:

Editora Hicitec, 2010, 14ª ed.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo:

Martins Fontes, 2003, 4ª ed.

BUTOR, Michel. O espaço no romance. In Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BUTOR, Michel. O uso dos pronomes pessoais no romance. In Repertório. São Paulo:

Perspectiva, 1974.

CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1972.

CAMPAGNON, Antoine. O Mundo. In: O demônio da teoria: literatura e senso comum.

Trad. Cleonice Paes Barreto Morão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996.

FIORIN, José Luiz Fiorin. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1997, 5ª ed.

FIORIN, José Luz. As figuras de pensamento: estratégia do enunciador para persuadir o

enunciatário. São Paulo: Alfa. Acesso em abril de 2016 pelo www.scribd.com.

NITRINI, Sandra. Em busca do novo romance francês. In: Poéticas em confronto. São

Paulo: HUCITEC, 1987.