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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Bruno Henrique Muniz Souza Bolsista CAPES II DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis Belo Horizonte 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Bruno Henrique Muniz Souza

Bolsista CAPES II

DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO

Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de

Assis

Belo Horizonte

2014

Bruno Henrique Muniz Souza

DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO

Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de

Assis

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para

obtenção do título de mestre em Literaturas de Língua

Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Ivete Lara Camargos

Walty

Belo Horizonte

2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Souza, Bruno Henrique Muniz

A848m.Ys Das flores ao verme: cenas de corrosão : análise dos espaços burgueses em

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis / Bruno Henrique

Muniz Souza. Belo Horizonte, 2014.

112f.:

Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty

Dissertação (Mestrado)- Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Mémorias Póstumas de Brás Cubas -

Crítica, interpretação, etc.. 3. Literatura brasileira - Crítica e interpretação, etc.. 4.

Espaço na literatura. 5. Classe média. 6. Melancolia na literatura. I. Walty, Ivete

Lara Camargos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de

Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-3

Bruno Souza

DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO

Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de

Assis

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para

obtenção do título de mestre em Literaturas de Língua

Portuguesa.

__________________________________________________________________________

Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) – PUC Minas

__________________________________________________________________________

Eduardo de Assis Duarte (UFMG − Letras)

__________________________________________________________________________

Audemaro Taranto Goulart (PUC Minas − Letras)

__________________________________________________________________________

Melânia Silva de Aguiar (PUC Minas − Letras) – Suplente

Belo Horizonte, 25 de abril de 2014.

AGRADECIMENTOS

À professora Ivete, pela confiança em meu trabalho desde os primeiros anos da minha

vida acadêmica até agora, com as valiosas orientações ao longo deste estudo.

Aos integrantes do grupo “Da rua: olhares sobre histórias da literatura brasileira” pelo

estreito diálogo ao longo de toda a minha trajetória acadêmica.

Com especial gratidão, aos professores do Programa de Graduação e Pós-graduação,

cujos ensinamentos, desde o ‘triângulo da enunciação’ até as teorias vistas em meu mestrado,

ecoam a todo instante nesta pesquisa.

À CAPES, pela bolsa de pesquisa que tornou possível a realização deste trabalho.

Aos meus pais e irmão, pelo apoio incondicional e por me mostrarem o valor da

leitura e dos estudos.

Aos meus amigos, Valéria, Rodrigo, Vinícius, Lorena, Letícia, Lilian, Guilherme por

tornarem essa caminhada muito mais tranquila ao me fazerem perceber que eu nunca

caminhava só.

À Dayse, minha amada namorada, com seus belos ‘olhos de ressaca’ que iluminam

não só este trabalho, mas principalmente a minha existência.

À minha amada família.

Aos meus amados avós Sebastião e Araci (in memorian).

Ao grande Machado de Assis, bruxo do Cosme velho, por nos fazer refletir sobre os

vários vermes presentes em nossa sociedade e, principalmente, presentes em nosso próprio

ser.

Remorso Póstumo

Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,

Em teu negro e marmóreo mausoléu, e não

Tiveres por alcova e refúgio senão

Uma cova deserta e uma tumba chuvosa;

Quando a pedra, a oprimir tua carne medrosa

E teus flancos sensuais de lânguida exaustão,

Impedir de querer e arfar teu coração,

E teus pés de correr por trilha aventurosa,

O túmulo, no qual em sonho me abandono

- Porque o túmulo sempre há de entender o poeta -,

nessas noites sem fim em que nos foge o sono,

Dir-te-á: "De que valeu, cortesã indiscreta,

Ao pé dos mortos ignorar o seu lamento?"

- E o verme te roerá como um remorso lento.

Charles Baudelaire

RESUMO

Esta dissertação buscou analisar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado

de Assis, a partir das relações burguesas ali encenadas, tomando o conceito de espaço como

operador de leitura. Nessa perspectiva, o presente trabalho procura, pois, demonstrar como o

espaço narrativo construído por Machado de Assis conduz a um determinado olhar sobre a

relação do homem consigo mesmo e com a sociedade que o cerca. Desse modo, observam-se

na tessitura do romance, elementos textuais que demonstram rasgões e farrapos na encenação

da trágica e melancólica existência humana e de seu meio social. Sendo assim, a recorrência

do uso de signos de decomposição nos revela uma corrosão não só do simples indivíduo, mas

de toda uma estrutura social na qual ele está inserido, onde o verme das relações movidas pelo

capital corrói e deteriora as instituições sociais e suas relações de poder.

Palavras-chave: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Espaço. Flores. Verme. Corrosão e

decomposição.

ABSTRACT

This study aimed to analyze the novel The Posthumous Memoirs of Bras Cubas, by Machado

de Assis, from the bourgeois relations staged in it and taking the concept of space as a reading

tool. From this perspective, this work seeks to demonstrate how narrative space, as presented

by Machado de Assis, leads to a determined look on man's relationship with himself and on

the society that surrounds him. Thus, we observe in the composition of the novel, textual

evidence to show tears and tatters of tragic and melancholy in the staging of the human

existence and its social environment. Therefore, the recurrence of the use of signs of

decomposition reveals a corrosion not only the single individual, but rather in the whole

social structure in which people are inserted and in where the worm of the relations moved by

the capital corrodes and deteriorates social institutions and its relations of power.

Keywords: The Posthumous Memoirs of Bras Cubas. Space. Flowers. Worm. Corrosion and

decomposition.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 8

2 ESPAÇO(S): UMA TEIA RELACIONAL ............................................................................. 12

2.1 Espaço(S): Construtos em Processo .................................................................................. 15

2.2 Espaço Público e Privado: Uma Fronteira Movediça ................................................... 20

2.3 Espaços em Decomposição: O Espaço como Operador de Leitura ............................ 26

3 UMA CLASSE EM FARRAPOS: ANÁLISE DOS ESPAÇOS BURGUESES .............. 27

3.1 Brás Cubas: A Flor Nascida do Estrume......................................................................... 31

3.2 Mulheres em Decomposição: Espaço das Figuras Femininas ..................................... 61

Marcela: um verme chamado lucro .......................................................................... 62

Virgília: a face burguesa da prostituta ..................................................................... 68

Dona Plácida: complacência em forma de flor ........................................................ 83

4 UMA CLASSE EM DECOMPOSIÇÃO: ANÁLISE DE UM DISCURSO CORROSIVO ....... 89

5 (IN)CONCLUSÃO: FLORES EM RUÍNAS: UM CORPO SOCIAL DECOMPOSTO ........ 107

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 109

8

1 INTRODUÇÃO

Realizar uma leitura analítica de qualquer livro de Machado de Assis é, ao mesmo

tempo, uma tarefa complexa e prazerosa. Complexa, por nos depararmos a cada cena, a cada

reviravolta da narrativa, com novas possibilidades de leitura e compreensão do texto, que

jogam por terra toda e qualquer ‘conclusão definitiva’. Prazerosa, porque a cada nova cena

surgem novas perguntas, novas interpelações, tão provisórias e desafiadoras quanto as

anteriores, o que torna a leitura, a cada nova página, um ‘delicioso e esfíngico enigma’.

Optamos como corpus analítico desta dissertação, pela primeira grande obra

machadiana, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Originalmente publicado em

folhetim na Revista Brasileira1 entre março e dezembro de 1880, com posterior edição em

livro em 1881, esse romance, em que um narrador já falecido narra a sua própria história,

mostra, de forma verossímil e realista, um panorama bastante detalhado da vida da elite

fluminense do século XIX e seus diversos jogos de interesses.

Em razão da grande inovação estética introduzida por Machado com esse romance,

muitos críticos e leitores tiveram dificuldades em sua recepção. Em carta escrita por

Capistrano de Abreu (2013) a Machado de Assis, em 10 de janeiro de 1881, o historiador

confessa que, em discussão com o jornalista e escritor Valentim Guimarães, eles não

conseguiram decifrar o enigma esfíngico acerca do gênero da então recente obra machadiana.

Enigma esse que continua a nos desafiar.

1 A publicação conhecida por Revista Brasileira foi fundada e dirigida por Dr. Francisco de Paula Meneses, em

14 de julho de 1855. Machado de Assis insere-se na revista em sua segunda fase, chamada de “fase Midosi” em

referência ao seu editor no período, Nicolau Misosi. Ao longo dos 30 números, publicados regular e

mensalmente, de junho de 1879 a dezembro de 1881, foram publicados, além de Memórias Póstumas de Brás

Cubas, poemas de Fagundes Varela que constituem O diário de Lázaro, a Introdução à história da literatura

brasileira, de Sílvio Romero, aproveitada posteriormente em sua História da literatura brasileira, entre tantas e

representativas colaborações.

Machado de Assis também possui um papel de destaque na terceira fase da Revista Brasileira, que circulou

de janeiro de 1895 a setembro de 1899, conhecida como “fase José Verissimo”, também em referência ao editor

nesse período. O ‘bruxo do Cosme Velho’ era um dos escritores e intelectuais que se reuniam no endereço do

editor da revista, reuniões essas, que culminaram na fundação da Academia Brasileira de Letras, tendo sido

publicado, nas páginas do periódico, os discursos proferidos na sessão inaugural da Academia, pelo Presidente

Machado de Assis e pelo Secretário-Geral Joaquim Nabuco, assim como, a Memória histórica, do primeiro

Secretário, Rodrigo Otávio.

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Demonstrando sua incontestável capacidade crítica ao olhar a sociedade de seu tempo,

Machado de Assis (1999) constrói, neste romance, um narrador que, de forma franca e

debochada, fala de dentro das relações sociais das quais fez parte.

Levando em conta esse jogo narrativo, o presente trabalho tem como principal

objetivo o estudo das cenas enunciativas que compõem o romance, com especial atenção para

o modo como o espaço narrativo foi construído com base nas relações sociais entretecidas

pelas personagens, guiadas pelos preceitos que regeram toda uma estrutura social da

sociedade brasileira do século XIX.

Como ponto fundamental desta dissertação, julgamos oportuno retomar os jogos de

interesse e poder, tão amplamente estudados por teóricos como Schwarz (1992, 2008a,

2008b), Gomes (2008), Duarte (2007), Stein (1984), entre outros, que se debruçam sobre a

estética machadiana. Nessa rota, investigamos como a construção dos espaços das

personagens burguesas em sua relação com os demais personagens revelam esses jogos. Para

isso recorremos aos estudos de Santos (1982. 1988) e Massey (2008) que entendem o espaço

como um construto relacional, feito de diferentes histórias e trajetórias.

Cabe ainda relativizarmos o conceito de “burguesia” utilizado nesta pesquisa. Ao

tratarmos da desconstrução da classe burguesa no romance machadiano, nos referimos à

classe dominante brasileira do século XIX regida pelas relações de capital das mais diferentes

instâncias. Nesse sentido, torna-se necessário um comentário, mesmo que de forma breve,

sobre a diferenciação entre o cenário burguês europeu e o modo como tais ideais foram

assimilados pelo sistema político senhorial (fluminense) retratado no romance em análise. A

burguesia europeia, grosso modo, era a classe social em ascensão nos séculos XVIII e XIX e

que foi impulsionada pelas Revoluções Francesa e Industrial, tendo como principais

características, as ideias liberais do direito à propriedade (incluindo a propriedade de capitais)

e a liberdade pessoal.

Entretanto, o cenário brasileiro no qual, paulatinamente, tal modelo econômico

começou a ser implantado, em meados do século XIX, guardava certa ambiguidade,

sobretudo em relação aos ideais liberais e a política escravagista vigente nesse período. Desse

modo, o sistema político nacional se comportava de forma híbrida na medida em que os

ideais liberais europeus, principalmente os relacionadas ao capital e à intervenção do

indivíduo (e sua classe) no Estado, conviviam com as práticas senhoriais baseadas na

exploração do outro (mão de obra escrava) predominante desde o período colonialista

brasileiro. Assim, a burguesia brasileira a qual nos referimos ainda é uma classe em formação

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o que evidencia um processo de transição entre os modelos políticos ligados à escravidão

(chamado de ‘antigo regime’ ou ‘era senhorial’) e os novos ideais liberais da Modernidade,

que possuem suas relações econômicas fortemente ligadas aos preceitos do capitalismo e da

busca pelo lucro (chamada de ‘era burguesa’ ou ‘sociedade de classes’). (cf. SCHWARZ,

1992; 2008b; FERNANDES, 1987)

Por esse prisma, discutimos os espaços ocupados pelo autor Brás Cubas durante sua

narração ‘além-túmulo’, e pelas personagens burguesas (incluindo o próprio narrador

enquanto personagem de sua narrativa), sempre em diálogo com os espaços por onde

transitam aquelas excluídas socialmente. Além disso, num recorte mais específico,

privilegiamos o estudo da relação entre o espaço público e o privado – a saber, o espaço da

casa/família e a esfera pública – para, dialogando com Habermas (1984), Arendt (2005) e

Olinto (2008), mostrar como a fronteira entre esses dois espaços é extremamente tênue na

obra em questão. Isso porque ocorre, por diversas vezes, a inversão dos valores que

caracterizam esses espaços: o espaço público torna-se, simbolicamente, propriedade dos

burgueses e o espaço privado da casa transforma-se em um espaço metonímico da própria

sociedade burguesa corroída.

Ainda nessa perspectiva relacional, dialogamos com Bakhtin (1993, 1997, 2006) e

Benveniste (1989, 1995) para mostrar que a construção das cenas enunciativas do romance se

apresenta de forma altamente polifônica, plurivocal e plurilíngue devido às muitas vozes,

discursos e linguagens que circulam nos espaços do texto. Tais abordagens nos ajudaram a

questionar e buscar compreender como os espaços por onde transitam as personagens

burguesas foram construídos textualmente na obra aqui analisada, e como a deterioração

desses espaços configurou-se em estratégia textual utilizada por Machado de Assis (1999)

para uma leitura crítica da sociedade da época.

Esses foram os questionamentos nos quais nos detivemos ao longo do romance,

buscando não respostas definitivas, mas portas de entrada para reflexões sobre essa grande

obra do cenário literário brasileiro.

De forma a possibilitar uma melhor compreensão da investigação que se propõe, a

pesquisa está dividida em capítulos que mantêm entre si uma clara interlocução.

No capítulo 1, encontra-se a presente introdução que delimita o recorte analítico por

nós estabelecido, além das perguntas motivadoras da pesquisa e de seus objetivos.

O capitulo 2, “Espaço(s): uma teia relacional”, procura abordar como o espaço,

concebido como um construto altamente relacional (Cf. Massey (2008) e Santos (1982,

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1988)), se constrói a partir do trânsito das personagens na narrativa. Estreitando esse recorte

analítico, privilegiamos os estudos acerca da relação entre os espaços públicos e privados à

luz dos conceitos de Habermas (1984), Arendt (2005), Olinto (2008) e Walty (2007), visando

compreender o modo como as fronteiras entre tais espaços são borradas ao longo das relações

estabelecidas pelos sujeitos que aí interagem. Além disso, fez-se necessária uma abordagem,

mesmo que de forma breve, do modo como a palavra-discurso se comporta no plano formal

do romance. Para isso, recorremos a Bakhtin (1993, 1997, 2006), buscando entender como o

romance torna-se o palco perfeito para o embate de vozes e discursos literariamente

matizados.

O capítulo 3, “Uma classe em farrapos: análise dos espaços burgueses”, trabalha com

os conceitos teóricos vistos no capítulo anterior para mostrar, na análise do espaço das

personagens principais do romance, sob o eixo centralizador da obra que é o próprio Brás

Cubas, como as relações estabelecidas no interior das cenas enunciativas da narrativa em

análise mostram-se irremediavelmente regidas por relações envolvendo o capital e o lucro.

No capítulo 4, “Uma classe em decomposição: análise de um discurso corrosivo",

busca-se analisar, a partir dos espaços das personagens estudadas no capítulo anterior, como a

repetição dos signos “flores” e “corrosão” indiciam, no plano textual maior do romance, o

próprio processo de decomposição da classe burguesa. As relações sociais estabelecidas no e

pelo romance são vistas sob o prisma do verme roedor que iguala e equipara o espaço dos

vivos, até então glorioso, e o pútrido do além-túmulo, tônica da enunciação de Brás Cubas e

de sua classe. Nesse momento, com o estudo da imagem da flor e do verme, procede-se a uma

ligação possível com a obra de Charles Baudelaire (2008) Flores do Mal, relativamente à

leitura ácida do corpo social feita pelos dois escritores.

Por fim, o capítulo 5, “(in)Conclusão: flores em ruínas: um corpo social decomposto”,

apresenta as considerações finais da pesquisa e suas (in)conclusões, retomando algumas

reflexões anteriores e apresentando outras, quase em forma de provocação, no intuito de se

pensar a constituição desses espaços na e pela linguagem literária.

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2 ESPAÇO(S): UMA TEIA RELACIONAL

Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma

lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo

espaço de chão que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um

eclesiástico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos

abençoarão esse canto de terra, que lhes deu algumas ilusões. (Brás Cubas - cap.

LXX: Dona Plácida)

A estreita relação entre indivíduo e sociedade configura-se como uma valiosa chave de

leitura para os textos literários das mais diferentes épocas e estilos. Nesse terreno de relações

várias, destaca-se a influência das relações sociais, conscientes ou não, na construção dos

discursos de diversos sujeitos, ocupando as mais variadas posições.

A esse respeito, o russo Mikhail Bakhtin (2006) analisa o signo como aquele que

carrega, em sua constituição primordial, traços da relação entre indivíduos socialmente

organizados, que moldam, por assim dizer, a própria consciência individual desses sujeitos.

Nesse sentido, o signo só poderia existir, de fato, a partir das relações entre sujeitos e seus

respectivos grupos sociais. Nas palavras do autor:

Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-

se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da

palavra: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os

signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam

socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim

um sistema de signos pode constituir-se.

A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela

própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. (BAKHTIN, 2006, p.

33. Negritos acrescidos)

Ainda segundo o autor,

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente

organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do

signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como

pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação destas formas

ocasiona uma modificação do signo. (...) Realizando-se no processo da relação

social, todo signo ideológico, e, portanto também o signo lingüístico, vê-se marcado

pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinado. (BAKHTIN,

2006, p. 44)

Por esse prisma, vemos como o signo linguístico é permeado, desde o instante em que

é concebido, por uma forte presença da estrutura ideológico-social. O seu modo mais

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imediato de construção dá-se com base nas inúmeras interações sociais a que estão sujeitos os

indivíduos socialmente organizados. Nesse sentido, é importante ressaltar o modo como

Bakhtin (2006) delega uma atenção especial ao fato de um indivíduo falar (tomando a

palavra no ato de apropriar-se da língua e colocá-la em funcionamento) de um determinado

lugar e de uma determinada posição social. Mesmo que de forma inconsciente, o sujeito

sempre faz uso da palavra iluminado por determinada(s) ideologia(s) em um dado contexto

sócio-interacional:

O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social

próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções

interiores, suas motivações, apreciações, etc. Quanto mais aculturado for o

indivíduo, mais o auditório em questão se aproximará do auditório médio da criação

ideológica, mas em todo caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as

fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas.

Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância

muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é

determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se

dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e

do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através

da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à

coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.

Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu

interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (...)

Deixando de lado o fato de que a palavra, como signo, é extraído pelo locutor de um

estoque social de signos disponíveis, a própria realização deste signo social na

enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais. A

individualização estilística da enunciação de que falam os vosslerianos,

constitui justamente este reflexo da interrelação social, em cujo contexto se

constrói uma determinada enunciação. A situação social mais imediata e o meio

social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu

próprio interior, a estrutura da enunciação. (BAKHTIN, 2006, p. 115-116.

Negritos acrescidos)

Dessa forma, se a palavra/discurso está tão intimamente ligada à situação social

imediata na qual ela é proferida, a mudança nas relações estabelecidas na sociedade

acarretaria também uma mudança na forma de estruturação dos próprios enunciados, e

consequentemente, uma modificação de seus gêneros discursivos. O próprio Bakhtin (1997)

mostra, na obra Estética da criação verbal, como a concepção de gêneros discursivos é

oriunda das inúmeras relações entretecidas entre os sujeitos, nas quais as enunciações são

proferidas e moldadas em um dado contexto social. Nas palavras do teórico:

Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera

de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,

sendo isso que denominamos gêneros do discurso. A riqueza e a variedade dos

gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é

inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do

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discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se

desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1997, p. 279)

Sendo assim,

Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a

variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à

abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a

língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a

realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.

(BAKHTIN, 1997, p. 282)

Nessa gama numerosa e ampla de gêneros discursivos, o romance, ainda segundo

Bakhtin (1993), destaca-se como aquele cuja principal característica figura-se na capacidade

de abarcar, no cerne de suas construções linguísticas, propriedades de diferentes discursos e

vozes, literários ou não, e encená-los com as mais diferentes nuanças e roupagens, sob a égide

do universo ficcional.

Bakhtin (1993) aborda o romance como sendo o gênero onde se observa um maior

apuro na encenação da linguagem. As personagens romanescas, na perspectiva bakhtiniana,

podem agir não menos que no drama ou na epopeia (gêneros esses, usados frequentemente

como contraponto ao romance na teoria proposta pelo autor), no entanto suas ações são

sempre iluminadas ideologicamente, pela posição social definida dentro do romance.

Assim, Bakhtin (1993) evidencia como centro da estrutura formal constitutiva do

romance as suas diferentes linguagens no ato de sua encenação literária. Nesse caso, o híbrido

romanesco torna-se o local, por excelência, do embate e da tensão entre discursos e vozes

ideológicas das mais diferentes naturezas. É importante ressaltar que o teórico não ignora o

fato de todo discurso, inclusive o mais cotidiano, também ser repleto desses choques e

pluralidades discursivas. Contudo, o romance escancara essa característica levando-a ao

extremo, ao contrário dos demais gêneros cotidianos que dão a aparência de uma unicidade

discursiva. Por essa perspectiva, a força motriz do romance não seria mais a imagem do

homem (ou do herói), mas a imagem de suas linguagens, em eterna tensão, através de sua

palavra encenada.

Dessa maneira, ao lermos um bom romance sempre encontramos incrustada em sua

linguagem a forma sedutora e esfíngica de uma pergunta. Interpelando-nos com

questionamentos que nem sempre possuem respostas simples e diretas (muito menos

definitivas), o romance nos coloca em um eterno (e prazeroso) movimento de descobertas e

redescobertas a cada vez que fechamos e abrimos o livro. Ao penetrarmos no universo fictício

criado por Machado de Assis (1999) isso não se deu forma diferente. A cada nova leitura de

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Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro escolhido como corpus analítico desta pesquisa,

perguntas e mais perguntas surgiram e as respostas pareciam cada vez mais inalcançáveis e

provisórias. Nesse bojo de questões, optamos por refletir, sem nenhuma pretensão de cunhar

algo novo, sobre o modo como a tríade sujeito(s), tempo e espaço pode nos ajudar na leitura

das relações estabelecidas pelas personagens burguesas do século XIX em tal romance.

Analisar a construção do espaço em Memórias Póstumas de Brás Cubas constitui-se

um desafio, dada a quantidade imensa de trabalhos críticos relacionados ao romance, que

lançam variados olhares e novas perspectivas sobre o modo como Machado de Assis (1999)

soube ler criticamente não só a elite fluminense do século XIX, mas toda a sociedade e os

sujeitos nela envolvidos. Roberto Schwarz (1992), por exemplo, em seu célebre estudo As

ideias fora do lugar, trata da relação de descompasso na construção do projeto nacional

brasileiro sob a égide dos ideais iluministas europeus e o sistema político do período

machadiano. É interessante percebemos que no próprio título do ensaio já se insere a ideia de

espaço, entrevista no jogo entre o cá brasileiro e o lá europeu, o dentre e o fora, os

deslocamentos.

Tomando, pois, o conceito de espaço como um construto relacional, importa salientar

que as relações sociais encenadas na narrativa serão investigadas em sua relação com um

dado contexto da sociedade.

2.1 Espaço(s): Construtos em Processo

A necessidade do homem de representar/criar o mundo através de sua linguagem tem

sido fonte de numerosos estudos nos mais variados campos do saber. Como se viu, com

Bakhtin (1997; 2006), o ato de colocar a palavra em uso, transformando-a em discurso por

meio da enunciação, nos revela diferentes situações de interação nas quais os sujeitos estão

envolvidos, além de demonstrar o modo como a esfera social interfere na própria

constituição/construção da subjetividade dos indivíduos e de sua relação com o mundo.

Também para Benveniste (1989), a linguagem estabelece e define a relação do homem

com o mundo e com os outros:

a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A

condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a

necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir

identicamente, no consenso pragmático que se faz de cada locutor um co-locutor. A

referência é parte integrante da enunciação. (BENVENISTE, 1989, p. 84)

16

Por isso mesmo, o autor descreve o que chama de aparelho formal da enunciação

apontando para três elementos fundamentais: sujeito, espaço e tempo. Alguém fala para

alguém em um tempo e um espaço. É desse alguém que nos fala, também Bakhtin (1993),

quando ressalta que “o homem no romance é essencialmente o homem que fala” (1993,

p.134).

Fazendo dialogar tais estudos linguísticos e literários com as reflexões realizadas no

campo da Geografia, principalmente aquelas que tratam as configurações do espaço em um

determinado contexto sociocultural, optamos por trabalhar com conceitos de espaços que nos

serão válidos no estudo do processo enunciativo do romance analisado.

Milton Santos (1988), em Metamorfose do espaço habitado, salienta a dificuldade

histórica de se cunhar um conceito que englobe, satisfatoriamente, todas as características

relacionadas ao espaço. Não por acaso, Santos (1988) começa a sua definição pela negação de

conceitos que enxergam o espaço como algo estático, apartado da vida social, para assim,

defender o conceito a partir das relações que são estabelecidas em um determinado contexto

da vida em sociedade.

Seguindo tal premissa, Milton Santos (1988) busca elucidar uma importante diferença

teórico-metodológica entre as definições de paisagem e espaço. Segundo o autor, é comum o

uso equivocado de tais concepções como sendo sinônimas, já que dialogam, é bem verdade,

mas são constituídas de naturezas distintas. Paisagem seria tudo aquilo que é abarcado por

nossos sentidos, sendo, dessa forma, associada à percepção humana. Assim, cada indivíduo

teria uma apreensão diferenciada de determinado momento da paisagem, pois nenhum

carregaria a mesma bagagem de experiências:

A dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que chega aos sentidos. Por

isso, o aparelho cognitivo tem importância crucial nessa apreensão, pelo fato de que

toda nossa educação, formal ou informal, é feita de forma seletiva, pessoas

diferentes apresentam diversas versões do mesmo fato.

A percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é apenas

uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das

coisas materiais é sempre deformada. A nossa tarefa é a de ultrapassar a paisagem

como aspecto, para chegar ao seu significado. (SANTOS, 1988, p. 62)

Além disso, a paisagem compreende, em sua constituição, a multiplicidade e

heterogeneidade típicas da vida em sociedade, embora funcione como algo unitário. É um

verdadeiro palimpsesto/mosaico ou, nas palavras do autor:

17

um conjunto heterogêneo de forças naturais e artificiais; é formada por frações de

ambas, seja quanto ao tamanho, volume, cor, utilidade, ou por qualquer outro

critério. A paisagem é sempre heterogênea. A vida em sociedade supõe uma

multiplicidade de funções e quanto maior o número destas, maior é a diversidade de

formas e de atores. [...] Estradas, edifícios, pontes, portos, depósitos etc. são

acréscimos à natureza sem os quais a produção é impossível. A cidade é o melhor

exemplo dessas adições naturais. (SANTOS, 1988, p. 65)

Corroborando essa propriedade social da paisagem, Santos (1988) discorre sobre o

modo como a paisagem se modifica com o passar do tempo. Ora, tal atributo é compreensível

justamente por essa relação intrínseca entre ela e o grupo social, tendo a paisagem, portanto,

uma íntima relação com as mudanças geradas nas relações de cada sociedade. Ou seja, todas

as mudanças introduzidas na sociedade interferem na própria constituição da paisagem à

medida que esta é “uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades

diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos” (SANTOS, 1988, p. 66).

Santos (1988) nos alerta, então, para a diferenciação entre paisagem e espaço:

enquanto a paisagem seria um instante estático da sociedade, e não a sua completude, de resto

inatingível, o espaço seria fruto da união entre os objetos geográficos, naturais e sociais e o

movimento produzido pela sociedade que os animam. Assim, o espaço, para esse autor,

é o resultado de um matrimônio ou um encontro, sagrado enquanto dura, entre a

configuração territorial, a paisagem e a sociedade. O espaço é a totalidade

verdadeira, porque dinâmica, resultado da geografização da sociedade sobre a

configuração territorial. Podem as formas, durante muito tempo, permanecer as

mesmas, mas como a sociedade está sempre em movimento, a mesma paisagem, a

mesma configuração territorial, nos oferecem, no transcurso histórico, espaços

diferentes. (SANTOS, 1988, p.77)

Santos (1988) concebe, pois, o espaço como sendo formado por fixos e fluxos. Nesse

aspecto, os fixos estariam relacionados com toda a estrutura de trabalho, incluindo a força de

trabalho materializada na massa de homens. Por outro lado, os fluxos são os movimentos da

sociedade interagindo com os fixos, ou seja, os fluxos seriam o conjunto das relações

estabelecidas entre os indivíduos e os objetos dentro da sociedade. Nas palavras de Santos

(1988): “[...] Um objeto geográfico, um fixo, é um objeto técnico, mas também um objeto

social, graças aos fluxos. Fixos e Fluxos interagem e se alteram mutuamente.” (SANTOS,

1988, p. 77-78). Esse aspecto relacional não deixa de evidenciar, é claro, que na interação dos

sujeitos no espaço estão, também em jogo, as relações de poder que os envolve.

Tal abordagem é muito apropriada para a leitura dos espaços construídos

literariamente, justamente por colocar em cena não só a estrutura física do espaço, mas as

18

interações sociais dos sujeitos – o movimento, como define Santos (1988) – presentes nesses

espaços. Sob tal aspecto, podemos refletir sobre a propriedade relacional do espaço na

literatura, que se configura não como um mero cenário no qual a narrativa ‘se passa’, mas

como um elemento fundamental na teia de relações estabelecidas pelas personagens,

desvelando as vozes sociais e suas ideologias.

Doreen Massey (2008) – ainda que com uma abordagem ideológica diferenciada da de

Milton Santos – também concebe o espaço como fruto de interrelações, considerando a

existência da multiplicidade de histórias. Nesse sentido, o espaço é visto “não como uma

superfície lisa, mas como a esfera da coexistência de uma multiplicidade de trajetórias.”

(MASSEY, 2008, p. 100).

A autora rechaça qualquer interpretação que atribua ao espaço características fora do

contexto das relações que o permeiam, defendendo que ele deve ser considerado não como

algo estático e separado das relações humanas, mas um elemento sempre em construção,

devendo, por isso mesmo, ser pensado à luz das histórias que o formam.

Em última análise, Massey (2008), em um claro diálogo com os conceitos de tempo2

(e temporalidades), sustenta uma abordagem do espaço como algo aberto e em processo, um

devir, sempre construído com base nas interrelações estabelecidas em um dado momento da

sociedade:

Se o tempo se revela como mudança, então o espaço se revela como interação. Neste

sentido, o espaço é a dimensão social não no sentido da sociabilidade

exclusivamente humana, mas no sentido do envolvimento dentro de uma

multiplicidade. Trata-se da esfera da produção contínua e da reconfiguração da

heterogeneidade, sob todas as suas formas – diversidade, subordinação, interesses

conflitantes. À medida que o debate se desenvolve, o que começa a ser focalizado é

o que isso deve trazer à tona: uma política relacional para um espaço relacional.

(MASSEY, 2008, p. 97-98)

Pensando no contexto do século XIX, onde se passa o enredo do romance ora

analisado, e levando-se em conta seu tempo de enunciação, essa característica relacional do

espaço, como elemento formado por diferentes histórias e trajetórias, mostra-se muito válida,

sobretudo por evidenciar os jogos de interesse envolvidos, em seus mais diferentes níveis. Aí

se incluem desde as relações matrimoniais com vistas à obtenção de um status político

elevado, deteriorando os preceitos romantizados de amor, até as relações políticas mais

2 Para Massey, os conceitos de tempo e espaço, embora sejam de naturezas distintas, devem ser entendidos como

esferas indissociáveis no contexto de suas materializações sociais.

19

amplas, como a escravidão e a relação do favor (SCHWARZ, 1992), características do

modelo político brasileiro, metonimizadas nos espaços construídos dentro do romance.

Como pudemos observar, as concepções espaciais aqui analisadas têm como principal

ponto de interseção a percepção do espaço como algo em processo e que tem como base as

relações sociais nele estabelecidas, o que vem corroborar a perspectiva de leitura crítica do

texto literário a que nos propomos. Isso porque, temos na literatura um lugar privilegiado de

circulação desse emaranhado de outras histórias e trajetórias que tensionam um espaço muitas

vezes pretendido como hegemônico e totalizador. Como mostram Santos e Oliveira (2001), de

forma bastante pertinente, a literatura:

propõe que se questione a primazia dos espaços concretos sobre outros tipos de

espaço – comumente denominados de subjetivos, imaginários, ficcionais, abstratos

etc. Melhor dizendo: a literatura costuma interrogar a certeza que possuímos quando

acreditamos na concretude dos espaços. Não se trata de negar a existência do espaço

físico, mas de chamar atenção para o fato de que é impossível dissociar do espaço

físico, o modo como ele é percebido.

[...] Nossa percepção do espaço físico é, assim, mediada por valores. A literatura é

capaz de mostrar que esses valores não são imutáveis, podem ser constantemente

repensados e redefinidos. (SANTOS e OLIVEIRA, 2001, p. 68-69)

Nesse sentido, é preciso, ainda, relativizar a ideia do espaço como algo que abarca

todos os sujeitos e discursos, sem distinção, já que a percepção do espaço envolve também

valores e ideologias várias. Assim, torna-se ingênuo, ou pelos menos utópico, a aparente

‘democratização’ do espaço. Recorrendo novamente a Milton Santos (1982) percebemos

como o espaço configura-se, sobretudo com o advento do capitalismo, como um elemento de

opressão, de controle da massa de trabalhadores através da primazia do capital e da mais

valia. Nesse projeto econômico, o espaço reuniria os indivíduos com o único intuito de

produzir riqueza para determinado grupo social, o que acarretaria na divisão da sociedade em

classes. É nesse sentido que Santos (1982) aponta que:

Os construtores do espaço não se desembaraçam da ideologia dominante quando

concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade. O ato de construir está

submetido a regras que procuram nos modelos de produção e nas relações de classe

suas possibilidades atuais. (SANTOS, 1982, p. 24)

Com isso, ocorre que, muitas vezes, a classe dominante, detentora dos meios de

produção, apodera-se do espaço, utilizando-o como um sistema de força, o que acaba por

levar ao não reconhecimento desses sujeitos como agentes sociais.

20

A incursão nas teorias sobre o espaço aqui elencadas não expressa intenção de

submeter o texto literário a qualquer uma delas, o que nos levaria ao erro de fazer uma leitura

geográfica ou sociológica do texto, enclausurando a obra em uma moldura definida a priori

ou em categorias estanques. Tais conceitos nos são úteis como operadores de análise da

organização textual, seus sujeitos, tempos e espaços. Assim, entendemos que a construção

espacial, sobretudo os espaços burgueses, deve ser analisada na e pela linguagem do texto,

sempre investigando as estratégias textuais utilizadas para a configuração de tais espaços.

Procuramos compreender o espaço, no corpus analisado, como um objeto construído e

habitado pelas diversas histórias e trajetórias das personagens que nele interagem. Nesse

processo, saímos de uma concepção de espaço puramente físico para a de um espaço

socialmente partilhado, de modo a não explicá-lo, mas sim a interpretá-lo em suas linguagens,

a partir das inúmeras transformações nele ocorridas.

2.2 Espaço Público e Privado: Uma Fronteira Movediça

Pensar sobre a cidade, seja de qual período ou contexto social for, é adentrar em um

emaranhado de relações sociais em intenso movimento.

Como visto anteriormente, a materialização do espaço só pode ser corretamente

apreendida se levarmos em consideração todos os elementos que envolvem esse processo –

histórias, trajetórias, relações sociais, dentre outros. Dessa forma, talvez o espaço que melhor

traduza essa multiplicidade, devido à pluralidade de papéis sociais aos quais os sujeitos estão

submetidos, seja o espaço urbano. Porém, muito além de uma existência harmoniosa, o sujeito

urbano corporifica a tensão oriunda desses diferentes lugares sociais.

Nessa perspectiva, uma das relações a que os indivíduos urbanos estão sujeitos é a que

se estabelece entre as esferas pública e privada. Jurgen Habermas (1984) aborda a concepção

de espaço público a partir do crescimento econômico e político da burguesia na França,

Alemanha e Inglaterra. Destarte, Habermas (1984) define, inicialmente, a esfera pública

burguesa como:

a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera

pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade,

a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada,

mas publicamente relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho

social. O meio dessa discussão política não tem, de modo peculiar e histórico, um

modelo anterior: a racionalização pública. (HABERMAS, 1984, p. 42)

21

Sob essa égide, a cidade seria, em contraste com a antiga corte, o espaço da

emergência de uma esfera pública literária3, que, em consonância com as recém-criadas

instituições como os coffee-houses, salons e as comunidades de comensais, tornam-se o

centro de toda a sociedade burguesa, tanto na esfera econômica, quanto na esfera política.

Essa esfera pública deve ser entendida, como aponta Heidrun Olinto (2008) em leitura

do texto de Habermas, como o “lugar intersticial entre o Estado, instância responsável pela

ordem e segurança dos cidadãos, e a sociedade responsável pela administração dos demais

interesses incluindo questões relativas à economia” (OLINTO, 2008, p. 100). Para Habermas

(1984), o espaço público estaria intimamente relacionado com um público burguês que lê,

sendo o domínio da tecnologia da leitura/escrita, um elemento fundamental para a intervenção

do cidadão no espaço público. O autor diz que:

O processo ao longo do qual o público constituído pelos indivíduos conscientizados

se apropria da esfera pública controlada pela autoridade e a transforma numa esfera

que a crítica se exerce contra o poder do Estado realiza-se com refuncionamento

(umfunktionierung) da esfera pública literária, que já era dotada de um público

possuidor de suas próprias instituições e plataformas de discussão. (HABERMAS,

1984, p.68)

Retomando Habermas, Heidrun Olinto (2008) apresenta a esfera pública como o lugar

do debate por meio do exercício público da razão, em que se cultivam as ideias e os projetos

para a formação e emancipação do público burguês dos séculos XVIII e XIX. Igualmente,

3 Julgamos apropriado discorrer, mesmo que brevemente, sobre o termo “literário”, presente na conceituação de

espaço público cunhado por Habermas (1984). Tal elemento deve ser apreendido, grosso modo, como o uso da

tecnologia da leitura/escrita (alavancada, inclusive, pela invenção da imprensa), tendo por objetivo, a criação de

um público leitor burguês, através da divulgação de ideias concomitantes com o exercício da Razão, em vista da

formação e emancipação dessa classe emergente.

Nesse sentido, a ascensão da burguesia, nos séculos XVIII e XIX, fora responsável pela elaboração das bases

políticas para reivindicar ao Estado, direitos fundamentais como liberdade, igualdade, autonomia política e

econômica, além da livre atuação do sujeito em assuntos de interesse particular, minimizando assim, a

intervenção do Estado na constituição dessa esfera social.

Assim, à medida que as obras filosóficas e literárias são produzidas para esse mercado de leitores específicos,

esses bens culturais se assemelham, na roupagem de ‘informação’, a mercadorias de consumo, tornando-se, em

princípio, acessíveis a todos aqueles que possuíam o domínio da técnica da leitura e escrita.

Desse modo, o ‘público leitor‘ é moldado pela forte influência das reflexões de literatos e jornalistas, na

forma de uma manifestação crítica, sobre os valores estéticos, morais e políticos da sociedade. Sendo assim, o

conceito habermasiano em questão remete a uma espécie de ‘formação de opinião‘ e de um ‘corretivo crítico‘,

alicerçados no/pelo exercício da Razão, e sobre o uso de uma forma escrita literária e retórica, capaz de

motivar/moldar experiências estéticas e políticas dessa classe burguesa que ansiava por gêneros discursivos que

a representassem. (cf. Olinto 2008; Walty (2007) e Habermas (1984)).

22

Olinto (2008) constata como o direito à voz no espaço público era extremamente limitado,

reservado apenas aos indivíduos mais instruídos e influentes dentro da sociedade burguesa.

Deste modo, como bem aponta Walty (2007), surge uma primeira desmistificação do

espaço público como aquele que abarcaria todos os membros da sociedade, já que era, na

verdade, restrito às classes mais abastadas dentro da burguesia, não se estendendo ao povo.

Como mostra a autora, o letramento

inclusive o letramento literário, seria então elemento fundamental à atuação pública

do cidadão na sociedade burguesa. Daí se conclui que esse poder crítico que se

constrói fora da esfera do Estado, mesmo que pretendesse atingir a todos, não tocava

habitualmente o homem do povo, mas, sobretudo, as camadas cultivadas. (WALTY,

2007, p. 150)

Sobre isso é interessante notar que o próprio Habermas, no prefácio da reedição de sua

obra supracitada, em 1993, relativiza o conceito de uma esfera pública unitária, como

proposto por ele nas publicações anteriores. Com isso o autor admite a existência de outras

esferas públicas pertencentes às classes desprovidas sociopoliticamente, incluindo nesse bojo,

os não letrados e os pobres: “A exclusão das camadas inferiores, mobilizadas cultural e

politicamente, provoca já uma pluralização da esfera pública em sua fase de formação. Ao

lado da esfera pública hegemônica e entrelaçada a ela, forma-se uma esfera pública plebeia”

(HABERMAS, apud WALTY, 2007, p.154).

Ao refletir sobre a própria natureza etimológica do termo público e buscando sua raiz

greco-latina, Hannah Arendt (2005) analisa o modo de estruturação do espaço público desde

sua origem, nas cidades-estado gregas, até as suas implicações no cenário político

contemporâneo. Para Arendt (2005), desde a Grécia antiga o homem teve que lidar com a

dualidade entre o espaço da casa (oikia) e da família e uma segunda ordem, caracterizada pela

cidade-estado, dando-lhe uma segunda vida, o bios politikos. Ironicamente, o que

caracterizaria o espaço comum da polis, segundo a filósofa, seria o fato de nela o cidadão ser

reconhecido entre iguais devido ao seu status político. Já o espaço da família estaria

permeado pelas mais profundas desigualdades, motivadas pela forte estrutura patriarcal da

época. Percebe-se, nesse caso, que a ‘desigualdade’ estaria ligada mais à esfera da casa do que

necessariamente ao espaço da polis.

Contudo, a própria autora relativiza essa ideia de ‘(des)igualdade’ presente no espaço

comum, justamente por ser nesse espaço que o indivíduo precisava demonstrar, seja pelos

seus feitos, seja pelas suas realizações singulares, a sua superioridade em relação a seus pares

23

na polis. Dito de outro modo, reforçando o clima de tensão/rivalidade entre os iguais, “a

esfera pública era reservada à individualidade, era o único lugar em que os homens podiam

mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram” (ARENDT, 2005, p. 51).

Ponderando sobre o valor do reconhecimento público na idade moderna, Arendt

(2005) nos mostra, interpretando as palavras de Adam Smith sobre o tema, como a

necessidade da admiração pública, motivada pela vaidade do sujeito, aliada à recompensa

monetária, (como era de se esperar em uma sociedade regida pelo capitalismo), é colocada no

mesmo patamar das necessidades fisiológicas do indivíduo, tal como o alimento que satisfaz a

fome:

A opinião da era moderna acerca da esfera pública, após a espetacular promoção da

sociedade à proeminência pública, foi expressa por Adam Smith quando, com

desarmante franqueza, ele mencionou ’essa desafortunada raça de homens chamados

homens de letras’, para os quais ’a admiração pública... é sempre parte da

recompensa... parte considerável na profissão médica; talvez parte ainda maior na

profissão jurídica; e quase toda a recompensa dos poetas e filósofos’. Nestas

palavras, fica evidente que a admiração pública e a recompensa monetária têm a

mesma natureza e podem substituir uma à outra. A admiração pública é também

algo a ser usado e consumido; e o status como diríamos hoje, satisfaz uma

necessidade como o alimento satisfaz outra: a admiração pública é consumida pela

vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome.

(ARENDT, 2005, p.66)

Observa-se nas diferentes concepções de espaço público que sua natureza, sobretudo

na modernidade com o florescimento do capitalismo, está intimamente ligada aos jogos de

interesse presentes na sociedade burguesa. Desse modo, um espaço que antes deveria

aproximar os sujeitos em prol do bem comum, acabou por ter sua natureza desvirtuada

quando interesses privados, a serviço de uma minoria detentora do poder, suplantaram os

interesses da coletividade.

Recorrendo novamente a Habermas (1984), observamos o questionamento dos limites

entre o público e privado através da emergência de novos gêneros literários, por intermédio da

demanda do novo público burguês, de um gênero que lhe representasse (ao contrário das

antigas formas estéticas que representavam, segundo o ideário burguês, a antiga aristocracia).

Nesse contexto, nasce, segundo Habermas (1984), o gênero epistolar e, posteriormente, o

romance psicológico e o drama burguês, encarnando todas as ânsias e desejos da burguesia,

justamente por tematizar as experiências e o modo de vida desse público leitor. Dessa

maneira, pessoas privadas, através desses gêneros de circulação pública, tomam

conhecimento de suas próprias vidas através das obras que as tematizam.

24

Por isso mesmo há que se refletir nas relações que tais gêneros encenavam no século

XIX na Europa e no Brasil. Para isso, vale lembrar que atrelada à alternância de espaços

privado e público está a mudança na configuração da família4, e, consequentemente, do

próprio espaço da casa. A casa que, a princípio, estaria relacionada ao espaço privado do

indivíduo, historicamente caracterizada como “lar”, abre as portas de suas salas de estar para a

alta sociedade burguesa, ao exibir, pelo menos na aparência, toda a estrutura familiar bem

sucedida para os parâmetros da época. Além disso, percebemos as posições sociais bem

demarcadas entre os membros da família, como aponta Habermas (1984):

A natureza “pública” do salão de convivência da grande família, em que a dona de

casa, ao lado do senhor da casa, representava perante a criadagem e a vizinhança, dá

lugar à sala de estar da pequena-família, em que a esposa, com seus infantes, separa-

se da criadagem. [...] O salão não serve, porém, ao “lar”, mas à “sociedade”; e esta

sociedade do salão está muito distante de ser equivalente ao círculo restrito, fechado,

dos amigos da casa. A linha entre a esfera privada e a esfera pública passa pelo meio

da casa. As pessoas privadas saem da intimidade de seus quartos de dormir para a

publicidade do salão: mas uma está estreitamente ligada a outra. (HABERMAS,

1984, p. 62)

Ainda no campo da família, Habermas (1984) enfatiza a intrínseca relação entre a

estrutura patriarcal familiar e a sociedade burguesa capitalista, ressaltando a disseminação do

poder da sociedade nas estruturas familiares da época. Nesse sentido, as funções exercidas

pela família são contaminadas pelas exigências da vida em sociedade. É o caso da procriação,

institucionalizada como algo sagrado, ou, pelo menos, símbolo da continuação da espécie,

que, a partir das relações de interesse que se estendem ao campo da casa, passa a ser vista

exclusivamente como garantia da livre herança e do direito à propriedade.

O casamento é outra instituição moldada pela pressão social: converte-se em um

instrumento para a manutenção da riqueza e do status social de uma determinada camada da

sociedade, como é o caso dos casamentos por interesse. O lugar da mulher, nesse contexto,

passa a ser governado por seu valor social. Nesse sentido, o matrimônio configura-se como

um elemento de troca na ‘balança comercial’ de relações baseadas no capital. O que passa a

motivar o casamento não está ligado a qualquer variante relacionada ao afeto, como pintavam

os idealistas românticos, por exemplo; longe disso, os únicos valores considerados eram, no

caso das pessoas que já possuíam um status social elevado, a manutenção e eventualmente o

4 Mesmo a organização da família sendo anterior à ascenssão da burguesia, verificamos como essa classe se

apropria dessa instituição e faz dela o ponto central de sua organização social primordial.

25

aumento de seu capital e de sua influência política. Em contrapartida, para aqueles que não

possuíam uma posição social favorável dentro da sociedade, o matrimônio transformava-se

em um dos únicos meios para se alcançar a ascensão social. Com base nesse cenário, a

instituição do casamento possui o claro propósito de servir como moeda de troca nos vários

jogos de interesse e de poder.

Já Arendt (2005) estuda as características do espaço privado, em sua relação com o

público, evidenciando aquilo que pode ser mostrado e escondido. Na concepção da autora,

enquanto o espaço público estaria ligado ao que poderia ser mostrado dentro da vida em

sociedade, ficaria reservado ao espaço privado tudo aquilo que deveria ser ocultado em

função de sua natureza inferior. Assim, era reservado às mulheres e aos escravos o espaço

privado (podendo o termo ser pensado, também, como privação de algo), por executarem

papéis sociais ligados ao corpo, ao labor: os escravos, por cuidarem das necessidades físicas

dos senhores e as mulheres, por garantirem a continuação da espécie, sendo tais funções,

consideradas como menos elevadas. Nas palavras de Arendt (2005):

A distinção entre as esferas pública e privada, encarada do ponto de vista da

privatividade e não do corpo político, equivale à diferença entre o que deve ser

exibido e o que deve ser ocultado. [...] Mantidos fora da vista eram os trabalhadores

que, <<com o seu corpo, cuidavam da necessidade (físicas) da vida>>, e as mulheres

que, com seu corpo, garantem a sobrevivência da espécie. Mulheres e escravos

pertenciam à mesma categoria e eram mantidos fora das vistas alheias – não

somente porque eram propriedade de outrem, mas porque a sua vida era

<<laboriosa>>, dedicada a funções corporais. (ARENDT, 2005, p. 82)

Como pode ser verificado, os conceitos de espaço público e privado são concebidos,

desde a origem do termo, como um terreno movediço de fronteiras tênues. No espaço da

burguesia, vemos surgir relações de interesse que marcam decisivamente o espaço de todos os

que nele atuam. As mulheres, por exemplo, possuem determinado valor, seja ele monetário ou

de influência social. Os negros, em sua maioria escravos, funcionam como elementos

composicionais de uma paisagem social, com funções bem determinadas.

Podemos observar, portanto, como a natureza relacional do espaço é encarnada nessas

duas categorias de forma bem nítida, sobretudo se analisarmos os movimentos sociais que ora

restringem a abertura do espaço público, como na privação da liberdade dos negros, ora

ampliam as fronteiras do espaço privado, no ato do casamento por interesse. Nesse panorama,

longe de acolher os discursos e as vozes tanto dos negros como das mulheres, os espaços

público e privado deterioram-se com base nos jogos de interesse da estrutura social burguesa.

Pensando sobre isso, refletiremos sobre as implicações dessas relações na construção dos

26

espaços literários e de seus possíveis efeitos de sentido na leitura, não só para interpretar os

espaços presentes na obra em questão, mas, principalmente, para ler criticamente toda a rede

de relações sociais que envolvem o contexto abordado.

2.3 Espaços em Decomposição: O Espaço como Operador de Leitura

As teorias espaciais aqui elencadas analisam, em sua maioria, contextos temporais e

geográficos diferentes daqueles que nos são apresentados nos romances de Machado de Assis.

Habermas (1984), por exemplo, analisa o modo como a ascensão da burguesia alemã,

francesa e inglesa altera a percepção e as fronteiras do espaço público e privado. Já Santos

(1988) estuda o espaço tendo como parâmetro os modelos contemporâneos surgidos,

sobretudo, após a segunda metade do século XX, sem, aparentemente, nenhuma relação com

o contexto sociopolítico fluminense do século XIX, no qual está inserido o romance

Memórias Póstumas de Brás Cubas. Contudo, nos caberá analisar, no prosseguimento da

presente pesquisa, como o entendimento contemporâneo acerca do espaço, incluindo os

espaços público e privado, será importante para a leitura das relações que significam os

espaços burgueses construídos por Machado de Assis (1999) no romance Memórias Póstumas

de Brás Cubas.

Ao tomar o espaço como principal fio condutor para a leitura do romance, buscamos

evidenciar o modo como os lugares das personagens principais são moldados de acordo com

as pressões sociais às quais elas estão sujeitas. Ao contrário de algo estático e sem vida,

tratamos o espaço aqui como algo vivo e em eterno movimento, esculpido à base das relações

de poder presentes na sociedade fluminense e tão bem retratadas pelo bruxo do Cosme Velho.

Vemos surgir, nesse cenário, lugares sociais, como o dos negros, formatados de

acordo com as regras sociais vigentes na época. Observamos, também, como papéis sociais

moldam instituições e comportamentos das personagens, a exemplo dos lugares ocupados

pelas mulheres na obra, usadas ora pelo seu corpo que seduz e possui um preço a ser pago, ora

como instrumento na busca pela ascensão social através do casamento por interesse.

Em suma, antes de estudar o espaço na obra machadiana em questão como algo

isolado das relações sociais, procuramos, nos capítulos seguintes, interpretar a íntima ligação

entre os espaços construídos e as relações sociais de poder presentes no romance, na busca

por fazer ouvir essa palavra-discurso tão brilhantemente encenada nas páginas dessa obra

prima da literatura brasileira.

27

3 UMA CLASSE EM FARRAPOS: ANÁLISE DOS ESPAÇOS BURGUESES

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha

mediocridade (Brás Cubas – Cap. XXIV Curto, mas alegre)

Como dito anteriormente, Memórias Póstumas de Brás Cubas torna-se, apesar dos

‘obstáculos’ propostos à leitura fluente do leitor, criados pela substancial inovação estilística

para os padrões da prosa nacional, uma obra de grande repercussão e sucesso em sua época.

Sua publicação, como era comum no momento, foi feita, em partes, na Revista Brasileira,

entre os meses de março e dezembro de 1880, sendo os capítulos reunidos em livro somente

no ano seguinte. Prova do grande sucesso do romance em sua época, como apontado por

Martha de Senna (2014), foram suas duas republicações ainda no período de vida de Machado

de Assis, em 1896 e 1889.

Um indício das inovações estilísticas de Machado e do impacto causado na recepção

dos romances da época, pode ser atestado em uma famosa carta endereçada ao ‘bruxo do

Cosme Velho’ pelo crítico e historiador Capistrano de Abreu (2013), em que fica claro o

entrelaçamento de gêneros que se observa em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Abreu

(2013) aborda a polifônica estrutura do romance como um enigma de difícil compreensão:

Em S. Paulo, por diversas vezes, eu e Valentim Magalhães [papel deteriorado] nos

ocupamos com o interessante e esfingético X. Ainda há poucos dias ele me

escreveu: O que é Brás Cubas em última análise? Romance? dissertação moral?

desfastio humorístico? (CARTA..., 2013).

Pensar semelhantemente a Abreu e Magalhães sobre tal questionamento “esfíngico”

tendo como base o romance contemporâneo, com suas fronteiras de gênero irremediavelmente

dissolvidas e superadas, seria ingênuo. No entanto, nunca é demais ressaltar o fato de que, já

no século XIX, esse tensionamento de gêneros instaura-se no discurso romanesco. Isso porque

uma das características do gênero literário, em especial, o romanesco, é justamente a de

abarcar, no interior de sua composição formal, uma gama variada de outros gêneros em uma

tessitura complexa, tal como apontado por Bakhtin (1997):

Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e

transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram

em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao

se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e

adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade

existente e com a realidade dos enunciados alheios - por exemplo, inseridas no

28

romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu

significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do romance, só se integram à

realidade existente através do romance considerado como um todo, ou seja, do

romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e não da vida

cotidiana. (BAKTHIN, 1997, p. 281)

Ao iniciar a leitura do romance, o primeiro elemento a chamar atenção do leitor é o

narrador defunto, ou melhor, o defunto autor Brás Cubas. Esse início fantástico da narrativa

na qual um morto resolve escrever as suas memórias no espaço além-túmulo, em alusão,

como apontado por Senna (2014), à obra francesa Mémoires d'outre-tombe (Memórias de

além-túmulo), de René de Chateaubriand, instaura a primeira – e ousamos dizer a mais

importante – tensão espacial presente no romance: a do espaço de narração/enunciação de

Brás Cubas e o espaço da vida da personagem enquanto pertencente à elite brasileira na

sociedade burguesa do século XIX.

Não por acaso, a encenação de abertura da obra em que um ‘defunto autor’ toma a

palavra-discurso para expor os rasgões de sua existência, torna-se uma estratégia textual

primordial para o entendimento daquilo que é encenado ao longo de todo o romance. Brás

Cubas, quando, em vida, fazia parte da elite burguesa de sua época, nunca tivera a capacidade

de tomar a palavra como um elo com o outro. Muito pelo contrário, por trás de discursos

peremptórios e vazios, resvalando no cômico, por diversas vezes vemos uma personagem a

caminhar para o desconhecido num passo “pausado e trôpego, como quem se retira tarde do

espetáculo” (ASSIS, 1999, p. 32)5, mostrando-se incapaz de entender o outro como sujeito

pleno no gozo de sua subjetividade.

Entretanto, no espaço além-túmulo, observamos um sujeito que pode, sem remorsos

ou ressentimentos, expor todo o flagelo de sua existência, para assim, como se confirma na

proposta textual machadiana, problematizar todo um sistema de relações deterioradas a partir

de seus jogos de interesses. A respeito desse viés crítico adotado por Machado, Eduardo de

Assis Duarte (2007), de forma muito pertinente, traz como epígrafe de seu brilhante ensaio

Estratégias de Caramujo uma fala de Machado de Assis, ainda jovem, em uma de suas

crônicas, na qual fica latente a vontade de conferir à sua literatura uma missão social: “Eu

tenho a inqualificável monomania de não tomar a arte pela arte, mas a arte como a toma

Hugo, missão social, missão nacional, missão humana.” (ASSIS, apud DUARTE, 2007, p.

239).

5 Doravante, todas as citações referentes ao romance em questão remeterão a essa edição.

29

Desse modo, o começo insólito da narrativa em questão configura-se como uma

estratégia textual ímpar justamente por causar um deslocamento enunciativo no qual um

defunto narrador, estratégia textual fulcral para a desconstrução empreendida por Machado,

toma o centro do palco ficcional – o romance – para, já sem as pressões e o recato das

aparências, expor a degradação de sua vida dentro da sociedade burguesa. Cabe aqui uma

menção ao capítulo CXXXVIII, A um crítico, no qual o narrador sente a necessidade de

expressar, de maneira enfática, o seu trabalho de (re)viver cada lembrança de seu passado:

Meu caro crítico,

Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinquenta anos, acrescentei: "Já se vai

sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias". Talvez aches

esta frase incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua

atenção para a subtileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que

esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece.

Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha vida experimento a

sensação correspondente. Valha-me Deus! é preciso explicar tudo. (p. 231.

Negritos acrescidos)

Nesse caso, todos os fatos contados pelo narrador em sua trajetória entre os dias de seu

nascimento, em dia 20 de outubro de 1805, e de sua morte, em uma sexta-feira do mês de

agosto de 1869, são matizados pelo tom melancólico e galhofeiro desse defunto narrador,

estratégia essa, reitere-se, primordial para o entendimento da visão crítica adotada por

Machado na composição de seu romance. Nunca é demais lembrar que, como defendido no

capitulo anterior deste trabalho, o espaço só pode ser corretamente apreendido se adentrarmos

as relações que o compõem. Logo, através das relações que se estabelecem entre a vida e o

além-túmulo, vemos encenada uma enorme disparidade entre os espaços ocupados por ele e

as outras personagens, motivada pela estrutura social estratificada presente no romance em

análise.

Enfim, através de tal encenação, notamos a deterioração do discurso-palavra do

narrador, e, por extensão de sentido, da sua própria constituição como indivíduo e da

sociedade a qual ele pertence. Tal constituição desgastada, como veremos mais detidamente a

seguir, é muito bem representada por imagens que atravessam a narrativa, como é o caso da

metáfora das roupas usadas em vida, que no seu novo espaço de enunciação, são apresentadas

como disfarces e máscaras:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha

mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na

vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a

gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não

30

estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação

é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque

em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um

vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!

Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas,

despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que

deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos,

nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar

agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não

digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que

não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão

incomensurável como o desdém dos finados. (p. 87-88. Negritos acrescidos)

Como visto na metáfora das roupas no excerto acima, o narrador faz questão de

demarcar, a partir do olhar da opinião, a fronteira entre o espaço dos vivos, recoberto pelo

interesse e pela cobiça, lugar em que se devem calar os “trapos velhos”, e o espaço dos

mortos, no qual se podem expor, com liberdade, as caras despintadas e desenfeitadas,

externando todos os rasgões e remendos de sua existência.

Contudo, o fato de estar despregado do mundo dos vivos não redime os feitos desse

defunto senhor de escravos. Muito pelo contrário, ao adentrarmos os limiares de suas

memórias não só temos a sensação de uma completa naturalização das cenas brutais

praticadas pela personagem, como temos a total convicção de que tais memórias, distante de

ser algo pertencente ao campo individual, é também uma memória coletiva (cf. DUARTE,

2007) compartilhada por toda uma classe.

Outro ponto questionável em relação ao narrador, e que está diretamente relacionado à

sua classe, é o fato dele se orgulhar por nunca ter derramado uma gota de suor para ganhar ‘o

seu pão de cada dia’, como a classe social a que pertencia e que não valorizava o trabalho

braçal. Nesses dois casos, suas memórias se atualizam à medida que são contadas, mas,

principalmente, no instante em que são lidas por nós, pois elas são fruto não apenas de um

passado distante, mas de um presente que, infelizmente, encontra correspondentes nos dias de

hoje.

Em última análise, a visão crítica, fruto do somatório de estratégias textuais em que se

encaixa, inclusive, a própria construção do narrador, só poderia ser expressa na voz de um

narrador que fez parte das relações da sociedade burguesa, e que, agora fora desse jogo de

interesses, pode expor, sem nenhum ressentimento, arrependimento ou peso na consciência,

todas as atrocidades cometidas ao longo do processo de embrutecimento que fora a sua vida.

Essa faceta do narrador foi muito bem abordada por Eduardo de Assis Duarte (2007) quando,

buscando traços da luta machadiana em favor dos afrodescendentes, afirma:

31

(Em Memórias Póstumas de Brás Cubas) a crítica surge travestida em autocrítica: é

o senhor de escravos – espécie de anti-Midas a corromper tudo que toca – quem fala

e se torna sujeito de um discurso corrosivo cujo alvo maior já é, desde início, ele

próprio. (DUARTE, 2007, p. 273)

Por esse viés, analisaremos doravante, como esse discurso corrosivo afeta, como

referido por Duarte (2007), a construção dos espaços presentes na narrativa, levando-se em

consideração não só o seu aspecto relacional no contato com as personagens negras, como

abordado pelo teórico acima citado, mas com as demais personagens em seus respectivos

lugares sociais.

3.1 Brás Cubas: A flor nascida do estrume

A primeira personagem apresentada na narrativa é o próprio Brás Cubas. Para

entender o modo como se desenrolam as relações sociais feitas por ele ao longo da sua vida,

julgamos pertinente fazer uma pequena digressão sobre a vida do narrador/personagem, assim

como de sua árvore genealógica apresentada no capítulo III do romance.

Nascido no dia 20 de outubro de 1805, Brás era tido, segundo as palavras do narrador,

como o herói de sua casa (muito provavelmente por ser o único filho homem daquela família).

Logo após o seu nascimento, teve o primeiro contato com a busca desenfreada pela ascensão

social. Vejamos a cena:

Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói da nossa casa. Cada qual prognosticava a

meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de

infantaria, achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pai não pôde

ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me cônego.

(p.52)

Em suma, encontramos travestido na cena acima um desejo de arrivismo social desses

dois tios, pertencentes a duas das instituições mais influentes no Brasil no século XIX,

embora ocupassem cargos de menos prestígio dentro das mesmas. Assim, os interesses que

movem o espaço público penetram naquela família, e, consequentemente, no espaço privado

da casa, e acabam por ‘forçar’ o recém-nascido a adentrar nesse jogo.

Outro dado importante é a natureza da continuação do ‘nome da família’ que, como

adverte Habermas (1984), também é uma prova da influência da esfera pública no meio

privado, por ser a partir da preservação do nome da família que se poderia pensar, em

consequência, na manutenção/ampliação de seus bens. A esse respeito, os Cubas não se

comportam de maneira diferente, uma vez que projetam na figura do pequeno Brás a

32

continuação do ‘próspero crescimento’ da influência de seu nome no cenário político

brasileiro. Esse desejo arrivista, como bem exposto por Facioli (2008), marca a própria

constituição da família de Brás, como pode ser observado no episódio em que o narrador

explica a genealogia do nome de sua família:

Mas, já que falei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço

genealógico.

O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira

metade do século XVIII. Era tanoeiro de oficio, natural do Rio de Janeiro, onde teria

morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-

se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas,

até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas. (p.

35.)

Na apresentação do primeiro membro conhecido da família, o tanoeiro Damião Cubas,

o aspecto que mais chama a atenção diz respeito à forma turva como é construída sua imagem

na fala de Brás Cubas. Damião, aquele que seria o verdadeiro fundador da família Cubas, é

rebaixado ao patamar de apenas “um certo” Damião Cubas, tendo seu espaço restrito à

penúria e à obscuridade do esquecimento de sua futura prole, mesmo tendo constituído

riqueza deixada de herança para seu filho.

O segundo membro da família de Brás destacado pelo narrador é o licenciado pela

Universidade de Coimbra, Luís Cubas. Vejamos sua descrição:

Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós - dos avós que a

minha família sempre confessou -, porque o Damião Cubas era afinal de contas um

tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra,

primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei Conde da Cunha. (p.

35)

Ao marcar Luis Cubas como ponto de partida da linhagem de família, o narrador, sem

nenhum constrangimento, ignora a existência de seu patriarca, usando como pretexto o

simples fato de seu parente mais remoto possuir o ofício da tanoaria. Já Luis Cubas recebe

todos os méritos pela ‘origem nobre’ da família Cubas, afinal de contas, era licenciado, cargo

que demanda muito menos esforço braçal em relação à tanoaria e que possui uma valorização

muito maior dentro de uma sociedade regida pelo interesse.

Além disso, é ressaltada pelo narrador a amizade entre Luís Cubas e D. António

Álvares da Cunha, o Conde da Cunha mencionado na passagem acima. Essa figura histórica

foi o nono vice-rei do Brasil, entre os anos de 1763 e 1767. Desse modo, o narrador sugere,

valendo-se do discurso esquivo e corrosivo peculiar a Machado, que muito da riqueza e

33

prestígio da família Cubas, adquirido após o surgimento de seu bisavô, tem sua origem moral

questionável, pois foram conseguidos não pelo seu esforço e trabalho, mas pela simples

associação com uma figura poderosa da época. Ao parente distante que trabalhou duro para

conquistar algo mais em sua vida, restou o espaço do esquecimento; já para o licenciado, cujo

único mérito fora ser amigo de figuras políticas importantes, os louros da glória.

Antes de apresentar o terceiro galho da árvore genealógica de sua família, Brás expõe,

sem maiores cerimônias, a ficção feita pelo seu pai, Bento Cubas, em relação à origem de seu

sobrenome. Vamos ao excerto:

Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu

pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói

nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas

cubas aos mouros. (p. 35).

Vemos como o sobrenome herdado por Bento Cubas (quer tendo relação com o ofício

de tanoaria ou não6) motiva Bento Cubas a cunhar uma origem nobre para seu sobrenome. De

forma muito cômica, Cubas eleva o nome de família a um estatuto de nobreza através de uma

inventiva ficção de um cavaleiro heroico, matador de mouros infiéis, figuras essas, presentes

no imaginário popular do século XIX. Por esse aspecto, toda relação que associe a família

Cubas a profissões relativas a um trabalho braçal, como a tanoaria, deve ser extirpada para

que prevaleça, forçadamente, uma origem nobre para tal família.

Em seguida, nos é apresentada a característica do último ascendente da família Cubas,

Bento, pai de Brás:

Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour.

Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é

verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse

mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de

experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu

famoso homônimo, o capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de São

Vicente onde, morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás.

Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as

trezentas cubas mouriscas. (p.35-36. Negritos acrescidos)

Apresentado, ironicamente, como um “varão digno e leal”, vemos como Bento Cubas

possui como característica marcante a pacholice, traço de um indivíduo preguiçoso e vadio, e

6 Cuba, segundo o dicionário Houaiss (2001), pode significar um recipiente destinado a guardar algo líquido, ou,

ainda, tina semelhante aos barris feitos no ofício da tanoaria.

34

ainda, destinado a pessoas vaidosas e soberbas (característica, inclusive, herdada pela

personagem Brás Cubas). Nessa apresentação temos sutilmente representada outra

característica pertencente à geração dos Cubas: o sentimento de megalomania e de vaidade

excessiva. O desejo de pertencer a algo grandioso, de ter uma família historicamente

importante e nobre é elevado às últimas consequências através da fabulação de Bento Cubas,

que forja não só o passado de seu antecessor tanoeiro, mas também projeta no filho, a partir

da escolha do nome, algo grande tal como o “famoso” capitão-mor Brás Cubas descrito no

trecho.

Um fato que também nos chama a atenção na leitura dessa passagem é o pequeno

equívoco em relação aos feitos dessa figura histórica: o fundador da vila de São Vicente,

atribuída no excerto a Brás Cubas, foi, na verdade, Martin Afonso de Souza, sendo, a vila de

Santos fundada pelo capitão-mor Brás Cubas.

A pesquisadora Martha de Senna, coordenadora do banco de dados disponível no site

‘Machado de Assis.net’, uma valiosa fonte no vasto campo de dados acerca das referências

presentes nos contos e romances machadianos, afirma em palestra intitulada "Machado de

Assis: um banco de dados e seus desdobramentos", ministrada no dia 09 de maio de 2013, que

esse equívoco do narrador pode ser atribuído a um engano do próprio Machado de Assis

(1999), devido a sua sabida formação escolar precária. No entanto, sem querermos entrar em

defesa do autor pelo erro, mas levando em conta o tom absurdamente fantasioso da descrição

familiar feita por Bento Cubas – passada, inclusive, de geração em geração – interpretamos

que tal engano seja, na verdade, um elemento que, posto de forma sutil, reforça a falsidade da

fabulação feita por Bento, pois, ao trocar as duas vilas, troca-se também o grau de importância

que cada uma possui ao longo da história. Dito de outro modo, o esforço em buscar

referenciais históricos para atribuir fama e valor à origem dos Cubas é tão exacerbado, que

acaba por adentrar o território do ridículo como visto nesse equívoco historiográfico.

Mais uma vez, vemos enfatizada a rejeição ao ‘passado tanoeiro’ da família, sendo tal

aversão, como uma herança, passada de geração em geração, o que dá a entender que, em uma

sociedade das aparências, tudo aquilo que remete ao trabalho deve ser expurgado como uma

verdadeira mancha moral. Em uma completa inversão de valores, os preceitos que regiam

aquela sociedade, a preguiça e aversão ao trabalho braçal, seriam algo a se valorizar, enquanto

o único membro da família que realmente conseguiu elevar o seu patamar social graças ao

próprio esforço, é relegado a um “certo Cubas”, devendo ser escondido e negado a todo o

custo.

35

Após esse pequeno percurso pela árvore genealógica da família Cubas, guiados pelos

estudos de Facioli (2008), chegamos ao último membro masculino da linhagem, responsável,

segundo os preceitos da época, por continuar o legado da família. Como visto acima, o legado

de uma ‘herança maldita’ é repassada ao pequeno Brás desde sua infância, em um processo

descrito por Duarte (2007) como “processo de embrutecimento”, no qual o personagem foi

‘educado’ pelo seu núcleo familiar para uma completa anulação da figura do outro.

No capítulo XI O menino pai do homem, título alusivo, como exposto no referido site

coordenado por Martha de Senna (2014), a um verso do poema My heart leaps up when I

behold,7 do poeta William Wordsworth, temos encenado todo o modo como o menino Brás

relaciona-se com os escravos que trabalham para a família:

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente

não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto,

traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava,

porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente

com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da

travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça";

e eu tinha apenas seis anos. (p.54)

Como observado na descrição acima, o menino Brás Cubas, desde cedo, foi moldado

pelo sistema político vigente na época alicerçado na escravidão, além de sempre ter os seus

desejos e vontades colocados acima de todos os outros ao seu redor. Dessa maneira,

percebemos uma completa negação por parte da personagem do reconhecimento do outro

como sujeito.

Ainda nesse capítulo, encontramos características importantes com relação ao círculo

familiar da personagem. Vale lembrar como o núcleo familiar, pertencente, a principio, à

esfera/espaço privada da casa, reproduz a teia de relações que são estabelecidas na esfera

pública social. Isto posto, encontramos na estrutura familiar dos Cubas (Bento Cubas, a mãe

de Brás, cujo nome não nos é apresentado no romance, os tios João e “tio cônego”, além da

tia Emerenciana), facetas e personalidades das mais diferenciadas naturezas, que contribuíram

decisivamente para a formação moral do pequeno senhor de escravos. Observemos como cada

uma das personagens acima foi descrita pelo narrador:

7 “Meu coração salta para o alto quando contemplo” traduzido por: Machadodeassis.net.

36

De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me

perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a

noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me

pancadinhas na cara, e exclamava a rir: "-Ah! Brejeiro! ah! Brejeiro!"

Sim, meu pai adorava-me. (p. 55)

O primeiro ponto observado no excerto acima é o modo como o uso da oração do “Pai

Nosso”, conforme descrita nos evangelhos de Mateus (6: 9-13) e de Lucas (11: 2-4), ressalta a

relação capitalista entre devedores e cobradores (modo, inclusive, como a oração era proferida

no período machadiano). Além disso, merece destaque o modo como narrador escancara a sua

faceta maligna e, ao contrário do que se esperaria, não recebe nenhuma repreensão pelos atos

feitos. Em vez disso, o pequeno menino-diabo ganha, quase em tom de recompensa, risos e

pancadinhas do pai (entendidas na cena, como forma de carinho ao contrário das pancadas em

tom repreensivo). Temos ainda, em um tom elogioso, a interpelação feita por Bento a Brás

Cubas como “brejeiro”. Interessante notar como esse elogio, a princípio, guarda certa

ambiguidade em relação à educação de Brás: brejeiro, segundo o dicionário Houaiss (2001),

com definição semelhante encontrada no dicionário Aurélio (1999), variando apenas na

ordem das acepções, é, respectivamente, “que ou quem gosta de se divertir e divertir os

outros; brincalhão, gozador; que ou quem tem como características a simpatia, a vivacidade e,

por vezes, certa malícia” (HOUAISS, 2001). Esse talvez seja o tom da ‘pseudo-repreensão’ a

qual Bento Cubas submetia o seu filho: uma grande brincadeira.

No entanto, vale ressaltar também a primeira acepção da palavra ‘brejeiro’ como

sendo, ainda segundo o dicionário Houaiss (2001), relativo a brejo, designado como um

terreno alagado, lodoso e pantanoso, tendo, no uso comum, uma conotação negativa,

propriedade essa, perfeitamente transportável para o tipo de formação do menino Brás. Não

por acaso, como veremos a seguir, o pequeno Cubas será a flor nascida do estrume, desse

terreno recoberto de lodo, prenunciando uma vida moralmente enlameada como o brejo do

qual leva a alcunha.

Outra passagem ambígua nesse trecho diz respeito a essa profunda adoração de Bento

Cubas em relação a seu filho. No sentido mais comum da palavra, adorar significa ter grande

apreço ou reverência por alguém. Todavia, adorar tem por definição o sentido de idolatria, ou

seja, uma prestação de culto a determinada divindade. Nesse contexto, temos ressaltado,

portanto, o modo como, desde cedo naquele ambiente familiar ‘lodoso’, o menino-diabo era

tratado como centro das atenções de todos ao seu redor. Observa-se, pois, um processo de

sacralização do menino-diabo, o que acarreta sérias consequências no sentimento de

37

megalomania cultivado pelo personagem ao longo de toda a obra, como, por exemplo, na

passagem do capítulo XXXI A borboleta preta, em que a personagem define-se como sendo o

Deus das borboletas:

Suponho que (a borboleta) nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que

era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me

movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então

disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas." A ideia subjugou-

a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo

de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. (p. 99)

A esse respeito, cabe aqui um pequeno parêntesis acerca do capítulo VII, um dos mais

enigmáticos de todo o romance, no qual o narrador nos conta os episódios de seu delírio de

morte. Nesse episódio, passível de uma gama imensa de leituras, dialogamos mais uma vez

com Duarte (2007) no que tange ao sentimento de grandiosidade de Brás Cubas.

Grandiosidade que é desconstruída no instante de sua morte, ao se deparar com a figura

feminina de Pandora8, que, corporificada na figura da Natureza, reprende Brás como um

“verme”, colocando-o no seu lugar de inferioridade inerente à condição humana.

Pandora representaria, segundo Brandão (2010) e Chevalier e Gueerbrant (2009), a

dualidade da existência humana entre a bondade e a perversidade do desejo: ao mesmo tempo

em que nutre as paixões e o amor entre os seres, dando um poder divino ao homem, ela pode

também levar os homens a uma total desgraça e à completa ruína. Nessa balança mítica, a que

todos nós estamos sujeitos, como deixa claro o mito, faz todo o sentido o fato de Brás Cubas,

metonímia de sua classe, na ilusão de se equiparar a um Deus, ser colocado por Pandora,

primeira representante dessa dualidade humana, na posição de um verme, submisso às forças

e poderes da Natureza. Nesse caso, sem adiantarmos os rumos da análise, Pandora não só

insere Brás Cubas na posição de verme, quando esse adentra no outro mundo, mas mostra

como, graças à natureza dúbia de suas escolhas, esse mesmo verme já lhe era característico

quando estava no espaço dos vivos, por conta das relações deterioradas das quais ele

participava.

8 De acordo com a mitologia grega, Pandora (que significa todos os dons) foi a primeira mulher, criada por

Hefesto (com a contribuição de todo o panteão grego), a mando do poderoso Zeus em reação ao roubo do fogo

por Prometeu. Esse mito conta como Pandora, ao receber como presente dos deuses uma caixa onde estavam

encerrados todos os males do mundo, tomada por curiosidade, abriu a caixa, ignorando todas as recomendações

para que não o fizesse, acabando por libertar todos os males que rapidamente se espalharam por todo o mundo,

restando somente, no fundo da caixa, a esperança.

38

Retornando ao cenário familiar apresentado no capítulo XI, a segunda personagem

apresentada é a mãe de Brás, sobre a qual sabemos muito pouco no transcorrer do romance.

Nas palavras do narrador, encontramos a seguinte descrição:

Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz

crédula, sinceramente piedosa - caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de

abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus.

(p. 55. Negritos acrescentados).

Cabe ressaltar o modo subserviente da figura da mãe em relação ao marido, além da

descrição do modelo ideal de mulher/esposa para os padrões da época: senhora fraca, pouco

inteligente, não afeiçoada aos pensamentos e sim aos sentimentos, além de ter o seu espaço

restrito ao ambiente da casa.

Ao relatar as características dos dois tios, de forma mais prolongada em relação à

descrição das outras personagens, o narrador nos faz as seguintes considerações:

De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo estranho, o

meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem

de língua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a

admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou

imundície. [...] No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava

muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar

alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no

lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um

desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que

ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas,

com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do

tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a

torcê-las, iam ouvindo e redarguindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de

quando em quando com esta palavra:

- Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!

Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes,

contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito

medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo,

a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da

sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos

mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se ele poderia

atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história

do símbolo de Niceia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número

e o caso das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de

sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar.

Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo,

acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar, mas

carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros. (p. 55-57.

Negritos acrescidos)

39

Nessa longa descrição da relação entre Brás Cubas e os tios fica evidente como a

conivência tida entre o pequeno Brás e seu pai é mantida na sua interação com os tios. No que

diz respeito ao relacionamento entre ele e o tio João, poder-se-ia pensar, graças ao rigor do

código militar, que ele deveria resguardar certa disciplina e polidez moral. Contudo, vemos

como o antigo oficial de infantaria é afeito a comportamentos obscenos e sua constituição de

caráter remete a uma ambiguidade moral. Vale ressaltar o comportamento em relação às

escravas pertencentes à família. Classificado como “diabo” pelas escravas, graças aos

constantes assédios feitos por ele, João tenta manter certa discrição em suas investidas, fato

este, comum em ações semelhantes cometidas pelos senhores de escravos da época. Ajudado

pelo fato de o lavadouro de roupa estar distante do espaço da casa da família, somos levados a

entender que João, certificando-se que seus atos ficariam em completo sigilo, compra com

doces e passeios o silêncio do pequeno Brás sobre assunto, em um ato que lembra certa

corrupção do tio em relação ao sobrinho.

Do mesmo modo, pelo discurso do narrador, vemos desconstruída a figura do tio

cônego na medida em que utiliza da ambiguidade da palavra “sacristia”, no que tange ao

simbolismo de rendimentos obtidos pela igreja. Com efeito, temos exposto nas palavras do

narrador, obstantemente aos elogios irônicos de austeridade e pureza do pároco, a

dessacralização da figura de padre/cônego preocupado apenas com as coisas mundanas, como

o prestígio pelo cargo que ocupa, em detrimento dos desejos e mandamentos de Deus.

A última personagem apresentada nesse capítulo ocupa uma posição familiar

diferenciada em comparação com as demais apresentadas até então. Dona Emerenciana, tia

materna de Brás Cubas, era a única naquela casa que resguardava certo senso de autoridade

em relação às travessuras do pequeno senhor de escravos. Apesar das poucas aparições da

personagem ao longo do romance, duas no total, o modo como a tia materna de Brás

apresenta o elemento de negação aos desmandos e pirraças do pequeno Cubas, torna-se algo

relevante se comparamos com as demais personagens da narrativa. Observemos os dois

episódios em que Dona Emerenciana surge na obra; o primeiro trecho, no capítulo XI, em

análise, e o segundo, logo na sequência, no capítulo XII chamado Um episódio de 1814, em

que, na ocasião da festa dada em comemoração à queda de Napoleão Bonaparte, Brás Cubas

pirraça por um pouco de doce que estava à mesa:

Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a pessoa que

mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas

viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dous anos. (p. 57)

40

Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota,

como a pedir-lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si

mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a recolher o

desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o

doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o

sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A

tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava, não obstante

os meus gritos e repelões. (p.61)

A critério de comparação, segue mais uma mostra da ausência de limites do pai de

Brás frente à figura austera de Dona Emerenciana

Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo

rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas

façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram

também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande

admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples

formalidade: em particular dava-me beijos. (p. 54)

Cabe a ressalva de que não pretendemos incorrer no equívoco de colocar a

personagem Brás Cubas ‘no divã’ ao especular sobre os efeitos da ausência dessa figura de

autoridade na infância da personagem, ou ainda, de divagar sobre como o futuro da

personagem poderia ser diferente caso a figura de Dona Emerenciana fosse, de fato, mais

presente no círculo familiar da família Cubas. Não obstante, julgamos pertinente destacar,

mesmo brevemente, o modo como é encenada uma inversão de papeis na educação do

pequeno Brás, através dessa figura feminina e de sua comparação com o pai ‘bondoso’ que

buscaria o sol, caso esse fosse o desejo de seu filho: a imposição de limites, tarefa destinada,

segundo a teoria de Freud, à figura do Pai, é colocada em segundo plano, repassada para uma

tia distante que pouco interfere na criação do jovem Cubas. Cabe a lembrança de que, grosso

modo, o evento da castração, recorrentemente associada à imposição de limites, é o estágio

em que a criança é retirada, simbolicamente, do seio da mãe onde ela só reconhece a

existência da individualidade do “eu” para, assim, ser inserida na vida em sociedade, estágio

da formação no qual ela passa a reconhecer a presença do outro, fase fundamental na

construção da vida social.

Obviamente, esse evento ocorre bem antes dos seis ou sete anos de vida da criança,

idade de Brás Cubas no período narrado acima. Contudo, essa falta de limites, como pode ser

observada no decorrer do romance, possui efeitos devastadores ao longo da vida da

personagem, na qual ela ignora completamente a figura do Outro (social) importando apenas a

sua vontade (EU). Sendo assim, o diálogo com a teoria freudiana, nesse ponto, torna-se

41

possível à medida que o narrador sente a necessidade de destacar como, desde a infância, essa

ausência de limites sempre foi um fator recorrente em toda a sua vida, interferindo e definindo

suas relações.

Com base no modo como tais relações privadas se estruturam no espaço da casa dos

Cubas, não seria apressado concluir que aquele núcleo familiar está irremediavelmente

comprometido pelas relações corroídas desde seu nascedouro. Sendo assim, o espaço da casa-

família de Brás mantém, tal como vasos comunicantes, uma estreita ligação com toda a

estrutura de poder presente na esfera pública na medida em que ambas as esferas

compartilham os mesmos princípios, impossibilitando, portanto, uma separação das duas

esferas.

Apresentados todos os que influíram na criação do jovem Brás Cubas, cabe agora nos

deter com maior cuidado na afirmação feita pelo narrador sobre si mesmo ao longo do

referido capítulo. Como destacado neste trabalho, Brás Cubas era o estereótipo de criança

pirracenta, criada sem limites, capaz de enxergar apenas os seus desejos e vontades em

detrimento das outras pessoas. Nas palavras do narrador:

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça

dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo

contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus,

alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. (p.55)

De uma forma inquietantemente sincera, predominante na vida além-túmulo, Brás

Cubas, no papel de enunciador criado por Machado de Assis (1999) como estratégia textual

de desconstrução da classe burguesa, se expõe e expõe toda a sua classe ao mostrar, desde seu

distorcido ‘retrato de família’ e de sua infância, todos os vícios e deformações morais a que

foi submetido. O verso “o menino é pai do homem”, que no poema9

de William

Wordsworth parece-nos possuir o tom saudosista, um misto de lamento e gratidão pela

infância do eu lírico, ganha uma nova significação, ao conhecermos, de perto, todos os

limiares da educação recebida pelo narrador para a sua formação como um legítimo senhor de

escravos, um legítimo desprezador do outro. Sob a alcunha de “menino-diabo”, dita logo após

9 Segue a tradução do referido poema retirada do já comentado site Machadodeassis.net:

“Meu coração salta para o alto quando contemplo / Um arco-íris no céu: / Assim foi quando a minha vida

começava / Assim é agora, que sou um homem feito / Assim será quando envelhecer / Ou quando me deixar

morrer! /O menino é pai do homem; / E eu bem que gostaria que meus dias / se ligassem uns aos outros por

natural devoção.”

42

o verso que nomeia o capítulo, o narrador antecipa o fato de que todas as suas ações na vida

adulta seguiriam a lógica individualista de sua infância; as pirraças, travessuras e crueldades

cometidas, portanto, ganharam novas roupagens, mais disfarçadas, mas tão brutais e malignas

quanto à metaforizada no ato de puxar o rabicho das cabeleiras (símbolo claro para os abusos

praticados pelo narrador ao longo de sua vida, assim como, da tentativa de sempre se levar

vantagem sobre o outro) colocado ao final do último excerto aqui apresentado. Nesse sentido,

se o menino é o pai do homem, só poderíamos de fato esperar, na figura do menino-diabo, um

“senhor de escravos diabo”, tão maligno quanto em sua fase juvenil. Além disso, a metáfora

que encerra o capítulo retrata perfeitamente todo o processo familiar corroído no qual Brás foi

educado. Com a ironia já tão aclamada na estética machadiana, vemos escancarada a

realidade da ‘criação para as aparências’ da qual Brás fez parte, onde:

O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada -

vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da

vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu

esta flor. (p, 56)

Guiados por essa ‘pequena pista’ do narrador, focalizaremos agora como os espaços

ocupados por Brás Cubas em sua vida adulta são construídos, sobretudo em relação às demais

personagens presentes no romance, visando assim, evidenciar como esse jogo de interesses e

aparências, já presentes na infância de Brás, se desenrola ao longo de toda a sua vida e por

todos os espaços por onde ele transita. Enfatizamos, assim, o modo como, a partir das

relações das personagens, ocorre uma predominante contaminação entre os espaços públicos e

privados encenados no romance.

Ignorando a premissa popular de que ‘cunhado não é parente’, daremos agora um salto

da infância/juventude de Brás Cubas para a sua vida adulta para dedicar especial atenção à

relação ‘familiar’ entre Brás Cubas, sua irmã, Sabina, e o seu cunhado Cotrim. Na genealogia

familiar da personagem, temos pouco acesso à figura de Sabina. A primeira menção à

personagem, além, é claro, da sua presença no leito de morte do irmão, ocorre na ocasião do

velório de sua mãe, em que é descrita como uma “pobre moça” a “cair de fadiga” (p. 85).

Como rege o regulamento da boa esposa, Sabina sempre é vista associada à figura de seu

marido, o proprietário de escravos Cotrim. Sem adiantarmos a análise acerca das feições

morais de Cotrim, cabe-nos agora analisar o comportamento de Sabina e Brás logo após a

morte de seu pai no capítulo XLVI, A herança:

Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, – minha irmã sentada

43

num sofá, – pouco adiante, Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços

cruzados e a morder o bigode, – eu a passear de um lado para outro, com os olhos no

chão. Luto pesado. Profundo silêncio.

- Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos

que valha trinta e cinco...

- Vale cinquenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinquenta e oito...

- Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos

ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito.

Olhe, se esta vale os cinquenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a

do Campo?

- Não fale nisso! Uma casa velha.

- Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.

- Parece-lhe nova, aposto? (p. 117-118)

Nessa primeira parte do capítulo, encontramos uma típica cena de disputa de herança

através de uma acirrada luta pelos bens da família. O que nos chama atenção aqui é o fato de

que, passados apenas oito dias da morte de pai, longe de vermos os irmãos sentidos e

preocupados com a dor pela perda sofrida, como coloca, ironicamente, o narrador,

encontramos essa família separada pela cobiça dos bens materiais de seu falecido pai.

Recorremos novamente a Habermas (1984) justamente para lembrar que os eventos da

procriação (e seus desdobramentos) ganham novos contornos à medida que a relação afetuosa

perde espaço para questões econômicas, fato este, semelhante ao que acontece nessa cena na

qual o amor entre os irmãos ou a dor pela perda do pai não se compara às questões

econômicas (portanto, públicas) que dominam a mente dos dois irmãos na disputa da herança.

Continuemos agora a leitura do capítulo:

- Ora, mano, deixe-se dessas cousas - disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos

arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os

pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo...

- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.

- Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.

- O Prudêncio está livre.

- Livre?

- Há dois anos.

- Livre? Como seu pai arranjava estas cousas cá por casa, sem dar parte a ninguém!

Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (p. 118)

Tal como generais dividindo os espólios de guerra, eles ignoram o sentimento de

irmandade em face da questão financeira envolvida na cena. Tanto Brás quanto Sabina e

Cotrim buscam, valendo-se dos mais variados argumentos, angariar mais e mais bens

pertencentes à família. Cabe aqui uma primeira menção ao modo como os escravos da família

são referenciados como meros objetos em meio à disputa. Prudêncio, personagem negro de

maior destaque ao longo da narrativa, tem a sua liberdade questionada por Cotrim, que o

44

equipara, inclusive, à libertação da prataria da família. Ademais, a posse do escravo pode ser

relacionada com a visão capitalista da família, com seus interesses pela preservação de sua

‘propriedade’ em seus vários aspectos. Vejamos agora o desfecho desta cena:

.

[...] Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma

pequena altercação.

- Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para

ser repartido por todos

Mas Cotrim:

- Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não

engulo.

Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes que,

ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos

pueris, fúrias de criança, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse

pão da alegria e da miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas

estávamos brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas. (p.

119-120)

Como observado no final do capítulo, Sabina, embora mantivesse certo ar de

submissão em relação ao marido, também agia sob a égide do interesse. Longe de pensar em

seu irmão ou de comover-se pela morte de seu pai, a personagem mostra-se realmente

preocupada com os interesses de sua ‘nova’ família, não importando, por esse viés, qualquer

laço sanguíneo ou afetivo com o seu irmão. Nesse aspecto, esse ‘novo modelo’ de família é,

decisivamente, contaminado pela luta de poder característica na esfera pública.

Outro ponto que corrobora essa assertiva é o fato de, no período final da citação, o

narrador comparar o sentimento de irmandade dos dois à beleza de Marcela que se esvaía por

conta das bexigas. Ora, como veremos adiante, as bexigas de Marcela representam justamente

o clamor pelo lucro a qualquer custo, além do apelo desenfreado por qualquer relação que lhe

traga vantagem. Nesse sentido, o cenário de disputa da herança da família Cubas é movido

por esse mesmo sentimento da prostituta, uma briga que, longe de intencionar o bem comum

dos irmãos, busca apenas o conforto e os interesses de cada um.

Já com relação a Cotrim, o jogo de interesse não é muito diferente dos vistos em

relação às demais personagens. O processo de decomposição da figura de Cotrim é feito pelo

narrador em pinceladas irônicas por todo o romance. Observemos um desses casos:

Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum tempo, – duas semanas, ao

menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um bom rapaz este

Cotrim; passara de estroina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros de estiva,

labutava de manhã até à noite, com ardor, com perseverança. De noite, sentado à

janela, a encaracolar as suíças, não pensava em outra cousa. Amava a mulher e um

filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro.

(p. 88-89)

45

Além da acusação clara acerca da avareza do cunhado, vemos uma crítica indireta ao

comportamento de Cotrim. Ao descrever a tentativa de convencimento do cunhado como

sendo regida pela “fina força”, além de explicitar a sua personalidade volúvel e imprevisível,

temos apresentado os primeiros contornos de um senhor de escravos cruel e de modos pouco

civilizados. A esse repeito, a face ‘bondosa’ com a qual Cotrim tenta transparecer como um

zeloso pai de família e um senhor benevolente com os pobres e necessitados, é desmanchada

pelo narrador de forma incisiva ao expor a verdadeiro rosto desse senhor de escravos no

fabuloso capítulo intitulado CXXIII O verdadeiro Cotrim:

Não obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia da

família, entendi não tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Ele ouviu-me

e respondeu-me seriamente que não tinha opinião em negócio de parentes seus. [...]

Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele

possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante

os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um

modelo. Arguíam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é

apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os

orçamentos: melhor é o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras,

tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste

particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles

desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os

fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-

se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio

requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o

que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos

pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu

Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de

uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o

que não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício

não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o

retrato a óleo. Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de

mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava -

sestro repreensível ou não louvável concordo; mas ele desculpava-se dizendo

que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode

negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não

praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a

filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade

tornava-se uma condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas

atenções, mas não devia um real a ninguém. (p. 216-218. Negritos acrescentados)

Como proposto na brilhante leitura de Schwarz (2008b) da cena em questão,

encontramos em cada “elogio” dado a Cotrim um alvo de acusação feita por Brás em que é

desvelada a verdadeira essência deste ‘caridoso e amoroso’ pai de família. Com o uso

primoroso da retórica aristotélica, temos focalizada toda crueldade deste senhor de escravos

desmanchado e desmascarado por cada suposto argumento de defesa apresentado por Brás. O

primeiro alvo da crítica sarcástica diz respeito ao caráter, de natureza feroz, posto de forma a

46

predizer o teor das relações cruéis da personagem, sobretudo com os seus escravos. Outro

destaque dado na citação é à questão da avareza, traço que servira de acusação por muitos,

inclusive, pelo próprio narrador, a Cotrim, mas que se torna ‘aceitável’ pelo fato disso ser,

segundo a explicação do narrador, o uso exagerado da virtude (provavelmente a temperança).

Quanto à referência à alcunha de bárbaro, Brás parece defender veementemente o seu

cunhado, parceiro de classe, ao justificar que as surras frequentes nos escravos de Cotrim

eram efetuadas apenas nos desobedientes e fujões, além de evidenciar que tais atos eram fruto

do contrabando de escravos, profissão que requer certos métodos mais ríspidos. Já a caridade,

outra virtude cristã, é desvelada como sendo motivada não pelo amor gratuito ao próximo,

mas apenas pelo clamor das chamadas e anúncios públicos. Não por acaso, o último ‘elogio’

refere-se ao fato de, a despeito de qualquer frivolidade com relação aos sentimentos afetivos,

Cotrim não dever nem um real a ninguém. Enfim, nesse cenário de sedosas farpas proferidas

por Brás, vemos, dialogando com os estudos de Duarte (2007), uma completa (des)construção

desse (verdadeiro!) senhor de escravos, um modelo a ser seguido como posto pelo próprio

narrador, embrutecido por suas relações sociais violentas e movido pelo sentimento de puro

interesse.

Julgamos oportuno tratar doravante do espaço das personagens negras ao longo do

romance e de sua relevância na constituição moral da personagem Brás Cubas durante a

narrativa. Alvo de muitos questionamentos por parte de alguns leitores e críticos, a postura

machadiana acerca do tema da escravidão sempre foi posta em xeque, quase um tabu, devido

ao autor não fazer de seus textos, pelo menos se considerarmos uma leitura mais superficial,

qualquer movimento direto de militância ou ‘panfletarismo’ contra a sociedade escravocrata

de sua época. Acresce-se o fato de o próprio Machado ser neto de escravos libertos e carregar

em sua cor mulata (a despeito do comentado processo de ‘embranquecimento’ passado pelo

autor na maioria de seus retratos mais famosos) a origem de seus antepassados vitimados pela

grande ferida moral que assolou (assola) a nossa sociedade: a escravidão.

Como bem apontado por Duarte (2007) em seu estudo sobre as personagens negras na

obra machadiana, vemos um aparente posicionamento secundário de tais figuras ao longo da

leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. No decorrer dos espaços do romance, não é

rara a menção a figuras como “um negro” propriedade de Brás, “algumas pretas no lavadouro

da casa”, “os pretos” de que Marcela tem medo de ser roubada, ou ainda, uma “escrava

cozinheira”. Nesse cenário, o negro tem privado tanto o direito à liberdade, o que era de se

esperar por sua condição social, quanto ao direito à voz e ao próprio nome (exceto Paulo, o

47

boleeiro da família Cubas, repartido junto com a prata no capítulo XLVI A herança, e

Prudêncio, do qual trataremos mais a frente). Tal condição interfere decisivamente em seu

próprio reconhecimento como sujeito pelas demais personagens da narrativa, reservando-se a

elas, portanto, um espaço de exclusão.

Outro aspecto interessante de se notar nessas descrições é o fato do tratamento

violento (das mais diferentes formas) dado aos negros não estar somente atrelado às

personagens de maior poder econômico da narrativa, como é o caso da família Cubas e de seu

cunhado Cotrim, mas a todos os grupos pertencentes àquela sociedade, o que reforça a ideia

de uma ideologia disseminada nas mais diferentes esferas sociais da época. Cabe aqui, uma

breve citação que deixa claro que, mesmo em uma família economicamente desprovida como

é o caso da família de Dona Eusébia e Eugênia, o sentimento de superioridade ostentado em

relação aos negros permanece intacto: “Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar Dona

Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir falar-me,

com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. (p. 96. Negritos

acrescidos)”.

Ainda a esse respeito, importa evocar Vera da Silva Telles citada por Walty (2005),

quando, ao analisar a representação dos pobres em nossa sociedade contemporânea, mostra

como estes são tidos como meros elementos da paisagem, podendo, no máximo, gerar certo

incômodo em seus interlocutores pela degradação das relações ali expostas, mas nunca um

sentimento de mudança em relação à ordem social pré-estabelecida. Nas palavras da autora,

Num registro ou no outro, a pobreza é encenada como algo externo a um mundo

propriamente social. Fruto de exclusões múltiplas, parece armar um cenário no qual

desaparece como problema que diz respeito aos parâmetros que regem as relações

sociais. Nessas formas de encenação pública, a pobreza é transformada em paisagem

que lembra a todos o atraso do país, atraso que haverá de ser, algum dia, absorvido

pelas forças civilizatórias do progresso. Paisagem que rememora as origens e que

projeta no futuro as possibilidades de sua redenção, a pobreza não se atualiza como

presente, ou melhor, na imagem do atraso, aparece como sinal de uma ausência.

(TELLES apud WALTY, 2005, p. 83)

Essa assertiva pode ser facilmente transportada para o contexto social do século XIX

já que os negros no romance, tal como na cena descrita acima e em muitas outras ao longo da

narrativa, são vistos apenas como mais um elemento da paisagem fluminense.

Como exposto por Duarte (2007) esse posicionamento corrobora o real papel do negro

naquela sociedade, pois qualquer tentativa de elevá-lo a um estatuto de herói ou mártir

deporia contra a premissa da verossimilhança a qual Machado se propôs para a composição

48

formal de sua obra. Entretanto, esse silenciamento deve ser corretamente interpretado como

uma primeira feição crítica por parte do autor, que, ao contrário de fechar os olhos para as

questões da escravidão, insere, de forma sutil, mas paulatinamente, essas cenas de escravidão

através de seu discurso romanesco, encenado como forma de fazer ver a perversidade das

relações sociais.

Ao contrário da esmagadora maioria das personagens negras descritas ao longo da

narrativa, Prudêncio é o único a possuir, além de um nome, aparições mais significativas ao

longo de todo o texto. Em seus primeiros momentos no romance, encontramos Prudêncio,

ainda menino, caracterizado como o escravo pertencente à família Cubas. O espaço ocupado

pela personagem é de uma total submissão em relação aos seus proprietários. Não por acaso,

em uma prática comum das elites senhoriais brasileiras, Prudêncio era utilizado como um

cavalo nas perversas brincadeiras de infância do menino-diabo Brás Cubas, materializando

sua posição subalterna em relação ao jovem senhor de escravos. Além disso, a própria questão

da “posse” do escravo pelo senhor de escravos deve ser ressaltada na medida em que o negro

se transforma em um mero objeto. Desse modo, é interessante ressaltar que, embora tenha voz

em uma dessas cenas de brincadeira-tortura, Prudêncio acaba por não ser reconhecido como

sujeito, relegado a uma posição de animal inferior:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos

no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso,

com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele

obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando

muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: -"Cala a boca, besta!" (p. 54)

Como vemos, o espaço de Prudêncio é marcado por extrema violência em sua

infância. A relação entre o menino diabo ser o pai do homem no caso de Brás Cubas tem

efeito semelhante, mas invertido, quando se analisa o espaço do menino escravo Prudêncio

em sua vida adulta.

Na cena da partilha dos bens entre os irmãos Cubas (na qual Cotrim exige a posse de

Prudêncio como um de seus bens), temos acesso à informação de que Bento Cubas havia dado

a alforria ao antigo escravo da família. Mais adiante na narrativa, em uma caminhada de Brás

Cubas pela Rua do Valongo, deparamo-nos com a seguinte cena, já bastante discutida pela

crítica, mas de fundamental importância para o entendimento do ‘novo’ espaço ocupado por

Prudêncio:

49

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois

de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que

vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas

únicas palavras: - "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro

não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

- Meu senhor! gemia o outro.

- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu

moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele

deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

- É, sim, nhonhô.

- Fez-te alguma cousa?

- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda,

enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

- Está bom, perdoa-lhe - disse eu.

- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado! (p. 150-151)

A escolha da Cais do Valongo, local público de comercialização de escravos, traz uma

carga simbólica ainda maior para essa cena. A rua, longe de ser um lugar acolhedor do

discurso de Prudêncio e de seu mais novo escravo, subverte-se em uma espécie de arena para

a brutalidade ali encenada, pois ela deve ser vista (e perversamente admirada) por todos que

nela passam. A reação brutal de Prudêncio, agora alforriado, em adquirir um escravo e aplicar

nesse os mesmos castigos brutais recebidos no espaço da casa dos Cubas, gera certo

desconforto no decorrer da leitura não só por se tratar de uma cena forte, mas principalmente

por ser Prudêncio o carrasco de seu irmão de escravidão – daí estende-se a nós o espanto do

personagem Brás Cubas. No entanto, como bem analisado por Schwarz (1992), essa é uma

atitude inteiramente compreensível se levarmos em consideração o modo como a violência

fez/faz parte da vida de Prudêncio: uma criança criada em um espaço de violência e

brutalidade, acaba por tornar-se, em sua vida adulta, uma pessoa igualmente violenta e

embrutecida pelas relações sociais por ela vivenciadas. Se considerarmos, então, a

macroestrutura deste poder instituído, tal brutalidade se configura ainda maior, já que há uma

repetição da hierarquia social de poder internalizada por Prudêncio, que o faz agir sob a égide

do sistema de posses e aparências que rege essa sociedade e do qual o próprio fora/é vítima.

Isso fica evidente na explicação dada pelo narrador:

Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia

ser Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e tinha uma curiosa maneira de a

explicar.

- Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei

tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. O

tártaro tem a virtude de fazer Tártaros.

Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e

com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim

50

contada, no papel, e a propósito de um vergalho recebido e transferido, força é

confessar que é muito melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos

e Prudêncios. (p.152)

Recorrendo mais uma vez a Schwarz (1992), observamos, nessa historieta de um

tempo passado do narrador, inserida de forma quase despretensiosa após o desenrolar da cena

de tortura efetuada por Prudêncio, como esse processo de relações violentas acaba por

embrutecer a figura do ex-escravo, fazendo-o, agora em sua fase de pseudo-liberdade,

reproduzir as mesmas ações violentas das quais foi vítima. Cabe, ainda, a menção à

ambiguidade do termo tártaro transcrito na citação que remete ao medicamento usado pelo

doido Romualdo, mas que, deslocado para a personagem Prudêncio, também pode se referir

ao Tártaro clássico, correspondente grego do inferno cristão, evidenciando ainda mais o

inferno vivido pelo personagem no transcorrer do romance. Em última análise, mesmo agora

tendo a palavra e o chicote em mãos, Prudêncio ainda não se torna efetivamente sujeito de

suas ações. Talvez seja essa a motivação para a escolha de seu nome, pois a virtude da

prudência, caracterizada como o ato de prever e procurar evitar os perigos e inconveniências,

aplica-se justamente às feições tidas pela personagem ao longo do texto: longe de ser sujeito

de ações libertadoras e ousadas contra esse sistema escravocrata estabelecido, Prudêncio o

internaliza, tendo como sua principal companheira, a violência de cada dia. Seu espaço, tal

como em sua vida de escravo em que era “o cavalo de todos os dias” de Brás, continua

perpassado por ações brutais e violentas da esfera social que o criou. Além do mais, ele

guarda resquícios de servilidade em relação ao seu antigo dono, como se evidencia no ato de

pedir a benção de Brás, e por dizer, sem maiores cerimônias, que Brás não pede, mas manda

em suas ações. Tal como o menino-diabo é o pai do senhor de escravos, o menino-escravo

permanece brutalizado mesmo como homem livre.

Vejamos agora o final do referido capítulo:

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui

caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente

perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos

capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo;

mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe

um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de

se desfazer das pancadas recebidas - transmitindo-as a outro. Eu, em criança,

montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele

gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços,

das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição,

agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto

juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto! (p. 151.

Negritos acrescidos)

51

Em uma lógica capitalista recorrente em todo o livro, a leitura do narrador para essa

cena, como comentado anteriormente, passa pela simples transmissão da violência para outro

indivíduo, tal como uma rotineira negociação bancária. Essa frivolidade ao tratar do assunto,

alvo dos possíveis cochichos descritos no início da citação, talvez seja o dado mais

característico da personalidade de Brás Cubas. Ele próprio se descreve como adepto “à

contemplação da injustiça humana, como alguém inclinado a “atenuá-la, a explicá-la, a

classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das

circunstâncias e lugares” (p.55). Em um perfeito retrato decadente de sua classe, Brás Cubas

preocupa-se tão somente em catalogar ou discursar sobre as injustiças da esfera pública ao seu

redor, pois a solução para tais mazelas encontram-se distantes devido à interferência gerada

por seus próprios interesses. Temáticas como a abolição da escravatura, relações de interesses

deterioradas, entre outras deformações morais pertencentes àquela sociedade, nem passam

pela mente da personagem, que apenas se preocupa em tirar vantagem de tais circunstâncias.

Outro destaque importante a ser feito aqui, diz respeito à aproximação entre os

espaços de Brás Cubas e Quincas Borba. Quincas Borba, assim como outras personagens do

romance, possui duas fases marcantes ao longo da narrativa (desconsiderando os relatos de

infância de Brás Cubas em que são mencionadas as travessuras de Quincas).

A primeira fase é caracterizada por um encontro casual de Brás Cubas com seu velho

amigo, enquanto caminhava pelas ruas da cidade fluminense. Um dado importante desse

encontro é o fato de, embora amigos de infância, Brás Cubas e Quincas estarem em posições

sociais (e, consequentemente, espaços) diferentes: o primeiro, burguês frequentador de

variados salões de festas, e o segundo, mendigo morador da escadaria da Igreja de São

Francisco. Observemos esse encontro insólito:

Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que não me pareceu

desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse.

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As

roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era

contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que

pediam as carnes - ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o

passo a um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos

botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras,

enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem

graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas

desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete,

um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.

- Aposto que me não conhece, Senhor Doutor. Cubas? - disse ele.

- Não me lembra...

- Sou o Borba, o Quincas Borba. (p. 135-136)

52

Nesse primeiro reencontro, fica evidente a decadência humana em que se tornara

Quincas Borba. O espanto de Brás Cubas, ao detalhar cada botão (ou ausência deles) da roupa

de seu velho companheiro de travessuras, chama a atenção principalmente por demarcar o

abismo social que agora se instaurou entre os dois. Agregue-se a isso o fato de Quincas ser

descrito como um verdadeiro fantasma alto, esquelético e pálido a encarar o atônito Brás

Cubas, fato que se comprova, inclusive, pelo ritmo lento da descrição da cena, na qual o

narrador descreve, vagarosamente, cada detalhe da roupa roída do amigo de infância,

culminando, em um último ato de espanto, na aterradora afirmação de que aquela pessoa (ou

o que sobrou dela) era, de fato, Quincas Borba. Continuemos a leitura rumo ao desfecho dessa

cena, já no capítulo seguinte:

- E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?

E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. Separamo-nos

finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste.

Já não dominava em mim a parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-

lhe a miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem

de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que separa as

esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...

- Ora adeus! Vamos jantar, disse comigo.

Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-mo

no abraço. (p. 139. Negritos acrescidos)

Como visto, o encontro de Brás Cubas com seu antigo amigo de classe é

extremamente turbulento. Não obstante o choque do narrador ao perceber a atual posição

social de seu decadente amigo, Brás, mesmo após a ‘generosa’ esmola dada ao agora mendigo

Quincas Borba, ainda tem o seu relógio furtado por aquele que era considerado de forma

aparentemente positiva por ele. Vejamos agora, as reflexões do narrador sobre esse episódio:

Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do

furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão...

Desde a sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e

então jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu

queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o

encontro do Quicas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não qual fora

deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno. [...] Não era

impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar. A

necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa

enchia-me o coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma

admiração de mim próprio... Nisto caía a noite; fui ter com Virgília. (p. 139-140.

Negritos acrescidos)

53

Como podemos perceber nessa sequência de citações, o encontro com Quincas Borba

afeta, desproporcionalmente, a personagem Brás Cubas. Quiçá esse seja o único momento em

que surge um sentimento de inquietação na personagem para buscar a salvação daquela

existência miserável (dando margem a interpretação se determinada atitude seria de fato

filantrópica ou apenas mais um meio de, através da miséria do outro, proporcionar o seu

próprio engrandecimento). Tal impulso, mesmo que breve, pois fora esquecido nos braços de

Virgília já nas primeiras frases do capítulo seguinte, causa certo estranhamento, precisamente

por não encontrarmos nenhuma correspondência a essa atitude ao longo de todo o romance.

Podemos especular os motivos para esse estranhamento justamente no fato de ser esta a

primeira vez em que Brás tenha que enfrentar, face a face, não só a deterioração de seu velho

amigo, mas a sua própria ruína moral. Semelhante a uma assombração, essa cena estremece

de tal forma os alicerces morais da personalidade egotista da personagem, que se julga no

direito de fazer o que bem entende, colocando-o não só em face do outro, mas no lugar

arruinado e corroído do outro. Desnuda-se, pois, o seu passado de relações abjetas,

flageladas e esfarrapadas, tal como a roupa de seu interlocutor. Enfim, mesmo correndo o

risco de sermos ousados ou levianos nessa afirmação, talvez esse seja um momento impar em

toda a narrativa em que Brás Cubas, extremamente afetado pelo encontro com o maltrapilho

Quincas, não somente reconhece o outro, mas se coloca no lugar do outro, compartilhando

sua ruína.

Ainda em relação ao insólito encontro, cabe-nos mencionar o trecho do romance, já

discutido nesta pesquisa, no qual, em nossa leitura, o narrador apresenta como a principal

característica do mundo além-túmulo o fato de, longe dos olhares da sociedade, poder

mostrar, na metáfora dos trajes usados, todos os rasgões e remendos de sua própria existência.

Ora, valendo-nos da mesma metáfora, podemos concluir que, enquanto Brás Cubas necessitou

morrer para ter a liberdade de mostrar esses rasgões de sua alma/moral, o seu amigo-

semelhante Quincas Borba o faz em vida, pelas condições socioeconômicas desfavoráveis.

Análogo a um espelho, Quincas Borba reflete, com todos os seus rasgões e farrapos morais,

uma realidade arruinada e compartilhada pelo próprio senhor de escravos. Em outras palavras,

o verdadeiro combustível de Brás Cubas para tentar ajudar seu velho amigo Quincas Borba

não é o valor da amizade, tampouco a filantropia, mas, sim, a salvação de si próprio,

escondendo não só os rasgões da existência deteriorada do amigo, mas, sim, o reflexo de sua

própria deterioração moral.

54

Já em relação à segunda fase de Quincas Borba na narrativa (que demandaria, por si

só, outra pesquisa devido à complexidade de sua construção), encontramos uma completa

transformação da personagem se compararmos com a fase vista acima. Após ganhar uma

herança de um velho tio de Barbacena, Quincas retorna ao foco da narrativa como uma

espécie de consultor/mentor de Brás Cubas na doutrina filosófico-religiosa criada por ele: o

Humanitismo. Essa doutrina, segundo o seu criador, consistia no:

princípio das cousas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os

homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação;

a expansiva, começo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará

mais uma, a contrativa, absorção do homem e das cousas. A expansão, iniciando o

universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais

do que a multiplicação personificada da substância original. (p. 208)

Embora esse início do ‘manifesto Humanitas’ guarde um pouco da loucura desconexa

peculiar ao seu criador, na sequência da eloquente fala doutrinária de Quincas Borba

encontramos a verdadeira essência de sua mais nova religião:

Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba desenvolveu-a

de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas do sistema. Explicou-me

que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição

dos homens pelas diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na

religião indiana tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era no

Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins

de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender dos cabelos ou

da ponta do nariz. (p. 208-209)

Temos aqui, a primeira característica real do Humanitismo configurando-se em uma

sociedade dividida não somente em castas, como no Bramanismo, mas em classes sociais

capitalistas. Interessante perceber como na gradação de importância das partes do corpo

temos, metaforizada, toda uma justificativa para a desigualdade que imperava na ‘nova’

doutrina religiosa de Quincas. Seguimos adiante com o discurso:

Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias

pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida

é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte

(o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida,

longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual.

Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer. [...] Nota que eu não

faço do homem um simples veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo

veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido; daí a

necessidade de adorar-se a si próprio. (p. 209. Negritos acrescidos)

55

Outra característica relacionada à religião Humanitas é a importância exacerbada dada

ao próprio corpo. Travestido de um pseudo-sentimento de preservação da vida, esse princípio

centraliza e reitera, na forma de uma espécie de culto egotista, o desejo cultivado pelo

narrador de só levar em consideração o mundo a partir de suas próprias sensações e desejos,

não reservando, com isso, qualquer tipo de espaço para o reconhecimento do outro.

(1) Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como

se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava

filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a

própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,

senão este mesmo frango. (2) Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano,

suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um

navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze

homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha

e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora

mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único

fim de dar mate ao meu apetite. (p. 209-210. Parêntesis acrescidos)

Na primeira parte deste excerto, verificamos um processo de naturalização das

mazelas sociais, tais como a fome e a guerra. Longe de serem combatidos pelo ponto de vista

ético e moral, esses elementos são meros vetores necessários para a preservação de um

sistema, como explicado pelo Humanitismo. Já na segunda parte da citação, encontramos a

explicação Humanitas, mais do que naturalizada, de uma terceira mazela social observada

naquele período, que é a escravidão. Toda a saga de tortura e de exclusão vivida por um

africano vendido como escravo para o Brasil, e ainda, toda uma história de trabalho braçal na

construção do navio que transportou esse negro, é racionalmente justificada pelo simples

prazer da personagem Quincas Borba lambuzar os dedos com um saboroso pedaço de frango.

Mas ainda quando tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspondessem no

futuro à concepção acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o

sistema, e por dois motivos: 1° porque sendo Humanitas a substância criadora e

absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se ao

princípio de que descende; 2° porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual

do homem sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as

estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro,

não era tão tolo como o pintou Voltaire. (p. 211)

Talvez seja essa a face mais cruel do Humanitismo criado por Quincas, travestido de

uma falsa tentativa de entender o outro; a filosofia criada pela personagem furta do sujeito

qualquer direito à voz ou a algum questionamento. As mazelas pelas quais passam os sujeitos,

segundo a premissa Humanitas, são demasiadamente naturais, pois o sofrimento passado

pelos indivíduos torna-se irrelevante. O que fica é o propósito maior de manutenção de um

56

sistema opressor criado à revelia da maioria, solidificado apenas para gerar o prazer de

poucos. Em uma crítica direta ao cientificismo/determinismo muito presente no período

machadiano, vemos escancarado o absurdo de se teorizar as mazelas como sendo fruto de

uma condição natural do ser humano, e não como produtos de inúmeras relações sociais

desiguais e deterioradas, que nada mais fazem além de subjugar a maioria em detrimento dos

interesses de poucos.

Nesse ponto, o que parecia uma teoria inventada, afastada da realidade, utópica,

presente apenas na mente doentia de um ex-mendigo agora filósofo, torna-se uma leitura

extremamente crítica da própria realidade desnudada ao longo de todo o livro. Todas as

relações de interesses envolvidas na interseção dos espaços públicos e privados, motivadas,

em sua maioria, apenas pelos desejos individuais de poucos no transcorrer da narrativa,

podem ser sintetizadas dentro dos alicerces ‘lógicos’ da teoria Humanitas. Em última análise,

mais do que somente um delírio de um lunático religioso, encontramos nas premissas do

humanitismo uma leitura de uma realidade nada humana devido à crueldade e brutalidade de

suas relações. Nesse sentido, ocorre novamente a fusão dos espaços de Brás Cubas e Quincas

Borba: ao declamar os preceitos humanitas para Cubas, Quincas Borba recebe apoio

incondicional de seu interlocutor (beirando, inclusive, a um sentimento de idolatria por parte

de Brás), justamente por apresentar todos os princípios já seguidos pela personagem ao longo

de sua vida. Assim, as palavras de Quincas tornam-se uma espécie de ‘benção’ dada às

atrocidades por ele cometidas.

Por fim, a última faceta de Brás Cubas aqui analisada refere-se à sua vida pública,

tanto em relação à sua meteórica carreira política, quanto a sua ambiciosa – e não menos

desastrosa – empreitada na carreira médico-científica. Optamos, nesse caso, em seguir a

ordem cronológica do romance, discorrendo sobre os motivos que levaram ao óbito da

personagem. Brás Cubas, no final de sua vida, é assolado por uma “ideia fixa” da “invenção

de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa

melancólica humanidade.” (p. 34). À primeira vista, essa “ideia fixa” teria objetivos

puramente filantrópicos, pois os benefícios de um medicamento dessa natureza seriam de

grande valia. Cabe, ainda, menção ao modo como tal ideia “mata” a personagem em um

conceito que, embora pareça heroico, como alguém que morre por uma ideia, é rebaixado ao

estatuto do ridículo, devido ao tom jocoso da cena, na qual a real causa da morte da

personagem não passa de uma pneumonia adquirida graças a uma brisa ao abrir uma janela.

57

Dialogando com os teóricos apresentados no segundo capítulo desta pesquisa,

percebemos como a intenção de Brás Cubas estaria, a princípio, atrelada à esfera pública, pois

seria relacionada a um bem para os indivíduos de um modo geral. Tal premissa pode ser

confirmada, inclusive, no discurso cientificista glorificador do papel da ciência como a grande

salvadora da humanidade10

, a despeito de qualquer vaidade individual. Entretanto, na

sequência do capítulo, temos acesso aos reais motivos de Brás para a feitura de um

medicamento dessa natureza:

Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse

resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens

pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e

tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso

confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas

nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio,

estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão

do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam

esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a

minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público,

outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de

nomeada. Digamos: - amor da glória. (p. 34. Negritos acrescidos)

Desprovido de qualquer pudor ou ressentimento, vemos como o narrador, no espaço

além-túmulo, expõe a real motivação para a feitura do medicamento anti-hipocondríaco. Em

detrimento dos benefícios trazidos à sociedade, observamos como, através da metáfora da

moeda, costumeira alusão a relações movidas pelo capital, Brás Cubas escancara seu gosto

pelo reconhecimento público, o que verdadeiramente motivou a criação do referido

medicamento.

É interessante refletir sobre o modo como se dá essa apropriação da esfera pública

para uso e benefícios individuais de um único sujeito. Essa “habilidade” ou “talento” do

narrador não é, de forma alguma, uma exclusividade sua, mas, por extensão de sentido,

refere-se a toda uma classe, a qual ele representa. O sentimento egocêntrico cultivado pelo

narrador desde sua infância, longe de ser uma exceção no quadro político nacional do período,

era um ‘modus operandi’ para as ações dos sujeitos dessa mesma classe. Nesse cenário, os

únicos interesses que realmente deveriam ser cuidados e preservados não eram os da esfera

10

A esse respeito, vale ressaltar a visão crítica do próprio Machado em relação aos preceitos do Naturalismo,

que buscavam explicar/solucionar as mazelas sociais pela lente da Ciência, premissa essa, a qual Machado de

Assis era radicalmente contra.

58

comum, pública, que beneficiariam a todos, mas aqueles que garantiriam a manutenção do

status da classe privilegiada e, logicamente, de seus próprios interesses.

Dando um salto no enredo da narrativa vemos a personagem Brás Cubas alcançar,

depois dos vários percalços, o tão sonhado posto de deputado, ao lado de seu rival Lobo

Neves, cuja carreira política, nesse momento da narrativa, encontra-se já em decadência.

Ironicamente, como simbolizado pouco antes desse encontro, no título do capítulo CXXI

Morro abaixo, notamos como a vida de Brás Cubas também se encontra em franca

decadência, fato perceptível no tom em que o narrador profere boa parte do capítulo final do

romance.

Quando um indivíduo ingressa na carreira pública, espera-se que suas ações sejam

tomadas em prol do bem comum, por meio de projetos cunhados para acatar os interesses da

maioria da população. Todavia, semelhante à historieta do emplasto Brás Cubas, não é essa

exatamente a preocupação tida por Brás ao ingressar na carreira política, isso se observa

quando concorre ao cargo de ministro do Estado e no discurso feito na Câmara dos deputados:

Vê-se nas menores cousas o que vale a autoridade de um grande filósofo. As

palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o torpor moral e mental em

que andava. Vamos lá; façamo-nos governo, é tempo. Eu não havia intervido até

então nos grandes debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e

votos; e a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.

Comecei devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da justiça, aproveitei

o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a

barretina da guarda nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da pergunta, mas

ainda assim demonstrei que não era indigno das cogitações de um homem de

Estado; [...] Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a

pátria precisava de cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do

poder; e concluí com esta ideia: o chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é

árvore de cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do deserto, das praças e dos

jardins. (p. 229-230)

Nesse excerto, as verdadeiras intenções políticas de Brás Cubas são reveladas sem o

menor pudor. Brás não buscava o bem do outro, nem a mudança da estrutura política, muito

menos discutia algo verdadeiramente relevante para os rumos do país. Como descrito

anteriormente, a personagem apenas preocupa-se com o valor social do cargo que ocupa. Para

ser o centro das atenções dentro do parlamento, ele se vale de discursos peremptórios, com

citações rebuscadas e referências históricas importantes, mas que, na prática, não passam de

palavras vazias proferidas ao esquecimento de sua inutilidade.

A possibilidade de uma mudança no caduco cenário político nacional é totalmente

ignorada pela personagem, pois isso interferiria em seus próprios interesses individuais. Para

59

solucionar o problema de cidadãos esmagados por um sistema político opressor, Brás Cubas

não enxerga nada além de uma mudança na aparência da guarda através de seu vestuário.

Nem sequer cogita uma transformação mais profunda na essência do problema, pois essa,

segundo a herança maldita de aversão ao trabalho que ele carrega, além de requerer muito

esforço, afetaria seus próprios interesses. Nesse sentido, ao se expor a questionável

pertinência dos projetos de Brás para a melhoria da condição de seus semelhantes, escancara-

se todo o ridículo de um indivíduo incapaz de reconhecer o outro além de sua simples

aparência. Ao final do capítulo da citação anterior, o personagem se mostra descontente com

o próprio projeto político, defendendo-se pelo argumento da data postergada para o início da

execução de sua ideia, contudo, tarde demais para salvar a sua já condenada carreira política:

Vária foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloquente, à parte

literária e filosófica, a opinião foi só uma; disseram-me todos que era completo, e

que de uma barretina ninguém ainda conseguira tirar tantas ideias. Mas a parte

política foi considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso um

desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me davam já em oposição,

entrando nesse número os oposicionistas da Câmara, que chegaram a insinuar a

conveniência de uma moção de desconfiança. Repeli energicamente tal

interpretação, que não era só errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade com que

eu sustentava o gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a barretina não

era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e que; em todo caso, eu transigiria

na extensão do corte, contentando-me com três quartos de polegada ou menos;

enfim, dado mesmo que a minha ideia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado

no parlamento. (p. 230)

Finalizando a análise dos espaços ocupados pela personagem ao longo de sua vida,

observamos como as relações de interesse, características a priori pertencentes à esfera

pública, perpassam toda a esfera privada da família de Brás através de uma herança familiar

que renega qualquer ligação com o trabalho braçal e de uma educação permissiva ao extremo

que não estabelece limites aos desejos desmedidos do pequeno senhor de escravos. Já em sua

vida adulta, encontramos os reflexos dessa criação viciosa, sobretudo pelo sentimento egotista

cultivado pela personagem ao não reconhecer, em nenhuma circunstância, o outro como

sujeito, como pudemos verificar na relação entre Brás e Prudêncio, por exemplo.

A vida pública de Brás, longe de alçar voos altos e prósperos, é calcada no fracasso.

Assim como as empreitadas científicas para a invenção do Emplasto Brás Cubas, ela fora

alicerçada apenas pelo intuito da autopromoção e clamor pela glória e não na busca do

benefício ao outro. Depois desse breve trajeto pelas histórias de fracassos públicos de Brás

Cubas, é interessante ressaltar um trecho, despretensiosamente posto logo no início do

60

romance, em que o narrador, quase que por um impulso, mostra o seu real espaço em relação

às figuras políticas de destaque na sociedade: um parasita social:

Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus

confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que

este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já

desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma

filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem

destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos

do que apostolado.

Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os

seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina,

nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me

lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que

trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se

riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé

de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras

bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra

daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a

arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia

ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.

(p.37-38. Negritos acrescidos)

Nesse trecho aparentemente inocente que praticamente abre as memórias, vemos

desvelada a posição não só do narrador, mas de toda a sua classe, tal como as bandeiras

menores vivendo à custa da grande bandeira, ou, ainda, do povo que sobrevive com a ruína do

castelo. A classe social desse senhor de escravos vive como parasita que suga, com base em

relações de opressão, toda a vida de uma nação, causando, inclusive, sua própria ruína moral.

No entanto, longe de ter remorso, ou culpa, essa classe-parasita sobrevive, tirando vantagem

após vantagem de sua posição social, mesmo que isso culmine no desmoronamento, ou,

melhor dizendo, na decomposição de toda uma sociedade ao seu redor. Esse senhor de

escravos, em última instância, como bem proposto por Duarte (2007), representa o próprio

retrato da deterioração de sua classe. Machado não só mata o senhor de escravos, anos antes

da proclamação da lei Áurea, mas o faz falar, desmanchando-o a partir de suas próprias

relações pútridas não só com os escravos, mas com todos os que cruzam o seu caminho.

Ainda recorrendo aos estudos de Duarte (2007), vê-se que, talvez, o nome Brás seja o

que mais representa essa mácula moral da personagem, justamente por evocar a própria

deterioração do ‘Bras-il’ a partir da podridão dos espaços ocupados não só por Brás Cubas e

sua família, mas por toda uma elite senhorial brasileira. Ao longo da leitura dessas memórias

de um defunto (senhor de escravos) autor, vemos como Machado “Constrói a morte que não

se traduz em silêncio. Ouvimos o defunto-autor, que não têm descendentes, mas tem

61

memória, ou melhor, memórias: uma individual, outra coletiva. Vozes de um tempo ido, sem

amanhã.” (DUARTE, 2007, p. 276).

3.2 Mulheres em Decomposição: Espaço das Figuras Femininas

Ao longo de nossa iniciação científica, o principal foco analítico empregado na leitura

do romance em questão foi justamente a análise da construção do espaço das personagens

excluídas socialmente na sociedade brasileira do século XIX. Nesse bojo, além da figura do

escravo, que possuía seus direitos ceifados pelo sistema escravocrata vigente, analisamos o

espaço das figuras femininas mais importantes ao longo do romance, que, em uma primeira e

ingênua leitura, acreditávamos estar limitado a um completo silenciamento em relação às

personagens masculinas da obra, movimento esse, gerado em razão do sistema patriarcal

opressor da época.

Ao defender a tese de uma submissão da figura feminina, em maior ou menor grau,

Ingrid Stein (1984) analisa como na obra machadiana, sobretudo a partir da estrutura do

casamento, a mulher é colocada em segundo plano no que diz respeito às decisões tomadas

em sua vida, função que segundo a autora, sempre foi delegada a uma figura masculina.

Entretanto, a própria autora aponta o movimento de resistência das personagens femininas na

busca por mostrar como essas figuras machadianas sempre tentam ultrapassar os limites a elas

impostos, chegando a colocar as personagens em um lugar que beira o heroísmo contra um

poder opressor.

Relativizando um pouco a perspectiva da autora, em que fica evidente o viés feminista

adotado, observamos como a posição das mulheres era extremamente ambígua e movediça ao

longo de todo o texto. Nesse aspecto, defendemos a hipótese, como pode ser observado em

nosso primeiro artigo publicado como fruto dos primeiros anos de pesquisa (cf. SOUZA,

2009), de que essa submissão feminina possa ser ilusória, pois, como veremos adiante, as

mulheres encenadas ao longo do romance estavam diretamente envolvidas nas relações de

interesses que envolvem as personagens do romance. Nesse sentido, não consideramos que as

mulheres representadas no discurso romanesco machadiano sejam heroínas ou como meras

vítimas indefesas de um sistema. Pelo contrário, como observaremos a seguir, as figuras

femininas corporificam, através de seu espaço, tal como qualquer outra personagem, o intenso

jogo de aparências que permeia a obra como um todo.

62

Marcela: um verme chamado lucro

Adentrando a vida adulta, com seus dezessete anos, a personagem Brás Cubas sentia-

se impulsionado pelos arroubos da juventude. Buscando sempre se afirmar como homem,

ilude-se com um bigode que não passava de um mero “buçozinho”, evidenciando toda a sua

inocência e inexperiência em relação à vida como adulto. Uma passagem interessante acerca

desse período da vida do narrador é descrita no capítulo XIV:

Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas,

chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como

o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para

dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi

preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e

vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros. (p. 65)

Observamos nessa imagem, como uma voz autoral ecoa na fala do narrador para

discorrer sobre os movimentos literários de seu tempo. Ao nos mostrar a decadência do corcel

romântico, metonímia clara da própria estética do romantismo, o autor implícito parece

realçar não só a estética realista adotada na composição do livro em análise, mas,

principalmente, mostrar a própria deterioração dos discursos literários de seu tempo. Por esse

viés, a estratégia textual utilizada por Machado (1999) de trazer, na composição formal de seu

romance, o discurso de um defunto autor como estrutura central da obra, pode apontar para

uma crítica não só à elite burguesa de sua época, mas também aos pares literários do próprio

Machado de Assis.

A esse respeito, vale a lembrança do movimento de ruptura ocasionado por essa obra

na cena literária de seu tempo: as inovações formais do romance (pelo menos no que se refere

à estética adotada no Brasil nesse período) como capítulos muito curtos, em alguns casos

feitos apenas de sinais de pontuação, além da inserção de gêneros outros (bilhete, carta,

epitáfio, provérbios) na tessitura do texto literário, tensionam a própria composição do gênero

romanesco tradicional, como visto no comentário feito por Capistrano de Abreu (2013). Nesse

sentido, pode-se encenar a própria corrosão desse tipo de discurso literário romântico jogado

aos vermes, como a imagem do corcel acima, que não mais representaria o momento social na

qual a obra machadiana está inserida. Nesse caso, não encontraremos, ao longo da leitura,

personagens femininas estereotipadas como frágeis e indefesas (comuns no romantismo),

63

afinal, neste romance, todas estão sujeitas ao mesmo verme que corrói tudo e todos numa

sociedade movida pelo interesse e pelos jogos de poder.

Por essa perspectiva, a primeira personagem feminina a se destacar no romance após

esse impulso de jovialidade de Brás Cubas é a prostituta Marcela, classificada pelo narrador,

como o seu primeiro “cativeiro pessoal” (p. 65). Filha de um hortelão das Astúrias, Marcela

possui como principal característica, em sua primeira fase no romance, a beleza e esperteza

fora do comum. Vejamos como o narrador a descreve:

Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela

não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era

boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que

lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa,

impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um

certo Xavier, sujeito abastado e tísico - uma pérola. (p.66)

Temos aqui uma estratégia retórica muito utilizada por Machado (1999) na construção

da fala de seu narrador; ao descrever as supostas virtudes de Marcela como sendo “boa

moça”, “lépida”, “de inocência rústica”, o narrador acaba por nos apresentar os vários vícios

morais da vida de prostituição da personagem. Longe de ser uma figura que seguisse a

cartilha dos bons costumes, Marcela de nada queria saber em relação ao código moral da

época, interessando-se somente em ser amiga do dinheiro e de rapazes. Outro detalhe sutil,

mas extremamente pertinente, é a natureza da relação entre Marcela e Xavier. Xavier sofria de

tuberculose, uma das mais terríveis doenças do período, incurável na época, e que matava

pouco a pouco seus portadores. Nunca é demais lembrar que tal moléstia era extremamente

contagiosa o que acarretava, na maior parte dos casos, a segregação dos infectados, buscando-

se a prevenção do contágio das pessoas do círculo próximo ao paciente. Sendo assim, o que

deveria servir como empecilho para o relacionamento entre Xavier e Marcela torna-se

irrelevante, não por haver amor entre os dois, longe disso. O que faz Marcela por em risco a

própria saúde para prosseguir nessa relação é o fato de Xavier possuir um grande poder

econômico. Ou seja, nesse caso em especial, a saúde de Marcela tinha um preço alto que a

personagem não hesitara um só momento em pagar, diante da possibilidade da morte próxima

de Xavier.

Outro detalhe importante é a relação da prostituta Marcela com o espaço da rua.

Marcela, em nenhum momento da narrativa, é vista caminhando ou trabalhando na rua. Pelo

contrário, como mostra o trecho acima, ela não podia caminhar livremente por esse espaço

público para mostrar os “estouvamentos e berlindas” de sua vida como prostituta. Apenas em

64

uma breve passagem do capítulo XV é sugerido algo relacionado ao andar da personagem,

pelo comentário de que vira um colar em uma joalheria. Tal informação é, porém, um tanto

ambígua, pois não sabemos ao certo se de fato ela caminhava quando avistou o colar, ou se

tudo não passou de uma estratégia para, aproveitando-se da inocência de Brás Cubas,

extorquir mais um presente caro do seu mais novo pretendente.

Em última análise, parece-nos que o espaço da rua apresentado no romance,

principalmente no que tange às personagens femininas, é o espaço por excelência da moral e

dos bons costumes da vida burguesa. Distante de ser um espaço efetivamente público,

pertencente a todos e a todas, o espaço da rua no romance segue seus próprios estatutos,

guiados inclusive por interesses particulares, já que apenas quem mantivesse a sua face social

conveniente poderia, de fato, caminhar e passear pelas ruas e avenidas. Ao invés de mostrar as

berlindas e estouvamentos, frutos de uma vida desregrada para os padrões sociais da época, o

espaço da rua estaria reservado para aquelas que mostrassem o recato e os bons costumes.

Focalizando mais detidamente o espaço ocupado pela personagem ao longo da sua

primeira fase na narrativa, observamos que sua beleza estonteante e as roupas luxuosas

oriundas da vida de prostituição expandem-se, também, para o espaço de sua casa:

Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia

obter; Marcela juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro, cuja chave

ninguém nunca jamais soube onde ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa

em que morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de

jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixela - uma

linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador. Baixela do diabo, deste-me

grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava

o tédio que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de antanho. (p. 68)

Além do preconceito inerente à época em relação aos escravos, verificamos, nesse

trecho, como a casa de Marcela faz lembrar quase um museu de seus tempos de prostituição,

devido aos vários presentes (quase em forma de espólios de guerra) dos vários pretendentes

que passaram pela vida e pela cama da formosa espanhola. Outro ponto que chama a atenção,

sobretudo no que tange à comparação com a segunda fase da personagem na narrativa, é o

espaço luxuoso no qual a prostituta vivia. Temos um espaço de luxo e glamour, cenário

perfeito para as inúmeras conquistas que ela empreende ao longo de sua vida.

No que diz respeito ao triângulo amoroso, Brás Cubas – Marcela – Xavier,

percebemos uma completa ausência de pudor por parte do narrador em externar o modo como

a sua relação era baseada puramente no capital. Vejamos três trechos do romance em que essa

65

relação é externada. Primeiro, na fala do narrador sobre o modelo político de “partilha” de seu

mais novo primeiro amor:

Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de

nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta,

regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de

Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as

insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana.

(p.68)

E agora, nas duas passagens em que o narrador equipara o amor que Marcela sentia

por ele a questões de cunho capitalista:

Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir

dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele

dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a

todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso,

que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a

minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava às escondidas. Era

pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a

assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura. (p. 68)

O que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a

cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada. Marcela,

por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me...

... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu

pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o

caso excedia as raias de um capricho juvenil. (p. 71)

No primeiro trecho, pelo modo como Brás dividia o ‘amor’ de Marcela com o seu

rival ‘cheio de tubérculos’, vemos posta, em um mesmo patamar, ações de cunho político de

poder e ações relativas à paixão, nos moldes já mencionados da esfera privada, a mercê das

relações regidas pelo capital (esfera pública). Não é demais notar como o próprio narrador

titubeia ao definir a natureza de sua relação com a formosa Marcela. Isso é facilmente

explicável justamente pela forma com que ela é conduzida, pois em nada lembra uma relação

amorosa de paixão, mas, sim, como o próprio narrador parece reconhecer em sua fase além-

túmulo, uma pura e simples relação comercial. Além disso, é importante salientar que o tom

com o qual a personagem comemora a sua ‘vitória’ remonta, principalmente pelo uso da

expressão “poderes na minha mão”, a uma sensação de que o personagem foi o grande

vencedor da disputa, não só pelo ‘amor’ de Marcela, mas principalmente pelo poder de uso

exclusivo (posse) da prostituta. No entanto, como expresso nos dois trechos seguintes, a

grande vencedora desse jogo de interesses é a própria Marcela, ao conseguir arrancar mais e

mais dinheiro do “asno de Sancho” (p. 67) Brás Cubas.

66

Outra mostra das artimanhas de Marcela para dominar o jovem Brás Cubas em busca

de dinheiro e presentes caros, pode ser verificada no longo diálogo entre os dois personagens

em que ocorre a menção ao ‘amor’ que ela nutria pelo alferes Duarte:

Jamais consentiria que lhe comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências,

mas a realidade, guardava-a para poucos. Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que

ela amara deveras, dous anos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de

valor, como me acontecia a mim; ela só lhe aceitava sem relutância os mimos de

escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas.

- Esta cruz...

Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita

azul e pendurada ao colo.

- Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que...

Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima:

- Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem

cá, chiquito, não sejas assim desconfiado comigo... Amei a outro; que importa, se

acabou? Um dia, quando nos separarmos...

- Não digas isso! bradei eu.

- Tudo cessa! Um dia...

Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos, tomou das

minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido:

- Nunca, nunca, meu amor!

Eu agradeci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar que havia

recusado.

- Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.

Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou

atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal

desfeita, que ficasse com a joia. Sorriu e ficou. (p.69-70)

Como fica evidente nesta passagem, Marcela, valendo-se do ciúme e da inexperiência

do jovem Cubas, manipula o seu mais novo “chiquito” até que ele a presenteie com uma joia

cara. Outro fato que chama atenção nesse episódio, além da origem controversa do colar de

ouro, é o modo escancarado com que Marcela fala sobre o valor dos seus (pseudo)

sentimentos. Quase como um movimento que remete a uma ‘tabela de preços’ pelos seus

serviços, a formosa prostituta busca defender-se de uma possível acusação acerca da enorme

rotatividade de rapazes com os quais se deita, ao vangloriar-se de ‘apenas’ vender as

aparências, e não a verdadeira essência de seus sentimentos, que é guardada para poucos.

Contudo, o que poderia ser um fator positivo (ou pelo menos atenuante) da vida desregrada de

prostituta, torna-se mais um elemento dentro da negociação pelos seus serviços,

comercializados ao preço adequado, posta no texto como uma cena dramática com ares de

farsa.

Após a volta de Brás Cubas da Europa em virtude da doença/morte da mãe, tem início

a segunda fase de Marcela na narrativa. O senhor de escravos, já como um homem feito,

agora busca um casamento e uma vida pública estáveis, que garantam a manutenção de seus

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interesses. O reencontro com Marcela ocorre de modo inusitado e mostra a degenerescência

física da prostituta. Eis então que surge a seguinte cena no capítulo intitulado A quarta

edição:

Entro na primeira loja que tinha à mão; era um cubículo - pouco mais, - empoeirado

e escuro.

Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e

bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava

era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora

bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíam-lhe a

flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos,

faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa

grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás

tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu

comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais

da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis,

pósteros? Essa mulher era Marcela. (p. 108. Negritos acrescidos)

Na passagem acima, verificamos como o corpo de Marcela, espaço do prazer e do

erotismo, em seu tempo de formosa prostituta, transforma-se em um corpo decadente, reflexo

do espaço de ruína e de doença ocupado pela personagem em sua segunda fase na narrativa. A

prostituta glamorosa, de uma beleza estonteante, dá lugar a uma mulher de rosto corroído pela

varíola e pela velhice. Vale destaque o modo como o narrador descreve Marcela como sendo

um vulto, uma figura pouco nítida, disforme, de certo forma aterrorizante, semelhante à

imagem do ‘fantasma Quincas Borba’ analisada anteriormente, na qual se expõe a Brás Cubas

todo um retrato da ruína humana.

Além disso, tal transformação física da personagem é acompanhada de uma inteira

modificação de seu espaço físico: o prostíbulo elegante, bem decorado, frequentado pelas

altas classes burguesas em busca de diversão e prazer, transformou-se em um cubículo

empoeirado e escuro. A simbiose entre espaço e personagem é tão significante que a mesma

poeira que recobre os portais da loja recobre também o cabelo de Marcela, já velha e

decadente.

Ao buscar explicação acerca do que devastara o rosto da formosa espanhola, a

personagem começa a interrogar os olhos da decrépita prostituta e questiona-se:

Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de outro tempo valia uma

terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de

Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já

outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não souberam ver-

lha; eram olhos da primeira edição. (p.109)

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Temos aí, o primeiro indício do que realmente ocorrerá com a prostituta e a causa de

sua tão grave moléstia: a chama da cobiça. No decorrer de seu raciocínio, o narrador conclui:

“Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que tinha o

dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era

o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois” (p. 110). Como

pode ser observado, a varíola, que devasta a saúde de Marcela, simboliza, no plano do enredo,

toda uma vida desregrada vivida por ela na primeira fase do romance. O jogo de relações de

interesse no qual a personagem atuava com destreza, agora cobra um preço alto marcando não

só o rosto, mas a própria existência da personagem. Em última análise, as bexigas que

corroem o rosto da espanhola e caracterizam definitivamente seu espaço no segundo momento

na narrativa, reflexo de suas relações capitalistas de cobiça e luxúria, são um fardo moral que

a acompanhará pelo resto de sua vida, marcado em sua pele e existência.

Deve-se ressaltar que o fato de analisarmos as bexigas de Marcela como um fardo

moral, não implica em uma crítica feita por Machado de Assis (1999) direta e exclusivamente

à personagem em questão. Muito longe de interpretarmos tal moléstia somente como um

castigo moral, apesar de defendermos a existência de traços para isso, postulamos que as

bexigas roedoras dessa flor-personagem simbolizam não um elemento particular, individual

da índole da prostituta, mas de todo um sistema capitalista que rege a sociedade da qual ela

fez parte. Nesse aspecto, o espetáculo grotesco descrito pelo narrador nada mais é que a

exibição da face em decomposição do próprio sistema capitalista e o seu verme roedor: o

lucro. Não por acaso, esse mesmo elemento é usado, como analisaremos no tópico a seguir,

para estabelecer uma ligação entre as personagens Marcela e Virgília, ratificando que as

‘bexigas’ não são um fardo moral individual, mas uma moléstia coletiva.

Virgília: a face burguesa da prostituta

Sem sombra de dúvida, Virgília, o “grão pecado” do narrador, é a personagem

feminina de maior destaque no romance em questão. Assim como a prostituta Marcela,

Virgília possui dois momentos de destaque ao longo da narrativa, a saber: a fase pré-

casamento com Lobo Neves e a relação adúltera após a consumação do matrimônio (além do

início da narrativa em que a burguesa, já viúva, visita Brás Cubas em seu leito de morte).

Filha de uma influente figura política, o conselheiro Dutra, a personagem torna-se uma

importante peça na corrida por uma candidatura à vaga de deputado, pois, de acordo com os

preceitos e arranjos políticos comuns à época, aquele que conseguisse se casar com Virgília

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ganharia, também, a candidatura ao cargo em questão. Dada a circunstância, Bento Cubas

enxerga na filha do Conselheiro uma ótima oportunidade para alavancar a vida política do

filho e prosseguir com a escalada arrivista da família. Devido à urgência com a qual esse

‘assunto de família’ deveria ser tratado, logo Bento Cubas convoca Brás a tomar parte nessa

‘empreitada política’. Este, com certa relutância, aceita conhecer melhor a sua futura

pretendente. Na visão do narrador, a sua primeira impressão em relação à Virgília era de uma

moça de

uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e,

com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza,

entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura

a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe

maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos

da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro

indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara,

faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma

devoção - devoção, ou talvez medo; creio que medo. (p. 94)

Nessa descrição física da personagem, observamos algumas características instigantes.

A primeira delas é o modo como a moça é caracterizada com traços relativos aos padrões

desejáveis para uma boa esposa na época (excluindo o seu atrevimento e voluntariedade):

jovem, religiosa – quer por fé, quer por medo – branca (uma clara influência de uma

sociedade escravocrata), ignorante (pois a capacidade de pensar, como visto na descrição da

mãe de Brás Cubas, não era uma característica benéfica para uma mulher, sendo a elas

reservadas apenas as faculdades do coração), enfim, todos os atributos que um homem

sonhava encontrar em uma boa esposa.

Brás, no entanto, não procurava tais características ao flertar com a filha de um

Conselheiro, pois, o que fica subentendido nessa passagem é o fato dela ser filha de uma

influente figura política. Por esse viés, pouco importa o fato de Virgília ser preguiçosa,

faceira, voluntariosa ou atrevida; desde que a bonificação pelo casamento, valiosa moeda de

troca na época, como defendido por Habermas (1984), fosse a candidatura para deputado.

Outra característica interessante nessa passagem, que dialoga com as outras aparições

de Virgília no romance, é o modo como a beleza física da personagem cresce aos olhos da

personagem/narrador ao longo da narrativa. Coincidência ou não, percebemos como tal beleza

pode estar associada à própria ascensão política do marido de Virgília, Damião Lobo Neves,

impulsionando assim, o próprio crescimento do status político da personagem burguesa.

Nesse sentido, a critério de exemplo, temos nesse excerto uma clara menção ao fato da

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personagem não ser tão linda como se poderia esperar de uma donzela aos padrões

românticos. Longe disso, encontramos na passagem a descrição de uma jovem saindo da

puberdade, suscetível a espinhas e sardas no rosto, cujo maior grau de beleza resume-se

apenas a um simples “Era bonita”. Já no capítulo LVI, O momento oportuno, encontramos

Virgília, já casada com Damião Lobo Neves, e, por consequência, em uma posição política

superior, na qual o narrador observa que:

A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos

substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem

mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença? (p.132).

Nesse excerto, a atração de Brás Cubas por Virgília parece ser justificada pela

elevação da beleza de Virgília, graças a sua ascensão política. Em outra passagem do

romance, o narrador, a despeito do que havia dito no primeiro excerto, demonstra-se extasiado

com a beleza da personagem em um estágio da narrativa na qual a carreira de Lobo Neves na

política, prestes a ser nomeado presidente de província, alça voos cada vez mais altos:

A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso, que não possuíra antes de casar.

Era dessas figuras talhadas em pentélico, de um lavor nobre, rasgado e puro,

tranquilamente bela, como as estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha

o aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer que, na realidade, resumia todo o

amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que exprimia mudamente tudo

quanto pode dizer a pupila humana. (p.141-142)

Podemos inferir nessa situação como, em uma sociedade governada pelas aparências,

toda a beleza física está muito mais atrelada a um estatuto da esfera social regido pela posição

política ocupada por determinada personagem do que propriamente guiada por algum critério

de cunho estético. Nessa perspectiva, a beleza está indissoluvelmente associada à posição

social ocupada, que passa a ser o maior critério de seleção de beleza na obra.

Aproveitando o ensejo do segundo triângulo amoroso do romance, Brás Cubas – Lobo

Neves – Virgília, valendo-nos, mais uma vez dos estudos de Habermas (1984), discutiremos

um pouco mais a estrutura do casamento, A princípio vista como pertencente à esfera privada,

tal instituição ganha, com a ascensão da burguesia, contornos da esfera pública por meio da

supremacia do interesse. Mesmo antes de conhecer Virgília, Brás já sabia do fato de a filha do

conselheiro Dutra ser apenas uma grande oportunidade para um casamento por puro interesse

político. Vejamos como tal cenário é escancarado no diálogo sobre o assunto entre os dois

membros da família Cubas:

71

Era meu pai, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no baú e

recebi-o sem alvoroço.

(...) - Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago

comigo uma ideia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projetos, um

lugar de deputado e um casamento.

Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito

e disposição, cujo fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta,

porém, desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-

la bem. Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.

(...) Era-me necessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões,

que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de pessoas

do nosso conhecimento. Quanto à noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria

logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a

fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta,

afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a

refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde à proposta. Sentia-me

aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma

posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de

minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das afeições,

da família... (p.91-93. Negritos acrescidos)

Fica evidente nessa passagem como a relação entre o casamento e a candidatura de

Brás Cubas ao cargo de deputado são colocadas em um mesmo plano, ganhando mais

importância, inclusive, o cargo público ao invés do futuro afetivo do jovem Cubas. Tal

relação é posta de forma tão escancarada por Bento Cubas ao ponto de se chegar, no início da

conversa, a unir os dois ‘assuntos’ como se fossem apenas um. Isso pode ser observado na

segunda passagem em negrito, na qual, só depois da reticência, gerada pelo possível ato falho

do pai, fica esclarecida a verdadeira natureza do ‘projeto’ para o futuro do filho. Tal como em

um jantar de negócios, Bento Cubas exige de seu filho, que aí ocupa uma posição de

subordinação, uma resposta positiva, não sem antes apelar para a fascinação e persuasão, com

relação ao assunto. Brás, ainda mostrando-se relutante sobre o tema, começa a maquinar sobre

os pontos positivos e negativos do matrimônio, ponderando se valeria a pena perder a

liberdade conquistada ao longo de sua formação acadêmica em Coimbra.

Nesse ponto, podemos nos perguntar sobre o motivo do título desse capítulo: O autor

hesita. Obviamente, o primeiro sentido estabelecido para esse título estaria relacionado à

própria hesitação da personagem com relação ao casamento/vida política. No entanto, essa

hesitação estaria no campo da personagem enquanto viva, não no autor das memórias além-

túmulo como deixa entender o título. Nesse caso, essa ambivalência de sentido pode ser

respondida se adentrarmos na própria constituição da cena, pois tanto Brás Cubas é hesitante

ao decidir acerca desse mais novo projeto do pai, quanto o narrador/autor do livro de

memórias hesita diante da frieza com a qual o seu futuro e o futuro de Virgília são decididos

72

em uma espécie de mesa de negociações. Vejamos agora, como Brás Cubas descobre o nome

de sua pretendente:

Bebeu o último gole de café; repoltreou-se e entrou a falar de tudo, do senado,

da Câmara, da Regência, da Restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia

comprar, da nossa casa de Mata-cavalos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a

escrever desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava

uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes,

sem ordem, ao acaso, assim:

Arma virumque cano

A

Arma virumque cano

Arma virumque cano

Arma virumque cano

virumque

Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução; por

exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da

primeira sílaba; ia a escrever virumque, e sai-me Virgílio, então continuei:

Vir Virgilio

Virgilio Virgilio

Virgilio

Virgilio

Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim,

lançou os olhos ao papel...

- Virgílio! exclamou.. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília.

(p. 92-93)

No início desse trecho, acompanhamos o desenrolar dos planos financeiros de Bento

Cubas com a futura candidatura do filho totalmente assegurada, pelo menos para ele. Todavia,

Brás Cubas mostra-se alheio às propostas e fabulações políticas do pai, preocupando-se mais

em distrair-se com o verso Arma virumque cano11

, da epopeia Eneida, de Virgílio. Após um

pequeno jogo de palavras, Brás fixa os olhos na palavra latina Virumque da qual, por

associação, chega ao autor do poema, Virgílio, que por sua vez, misteriosamente, leva ao

nome de sua pretendente, Virgília. O que nos causou certo estranhamento na leitura foi

justamente Virumque significar barão (ou “homem” ou “varão”, como visto em outras

traduções do mesmo verso), designação de alguém poderoso, notável pelo seu valor e pela

posição e/ou pela riqueza, sendo essas exatamente as ambições de Brás Cubas, intensificadas

a partir desse momento na narrativa. Possivelmente a escolha do nome da personagem

Virgília, a partir da relação com esse verso da Eneida, seja uma piscadela do autor indicando a

verdadeira natureza da personagem burguesa, pelo menos na intenção dos Cubas: ser um

instrumento para alcançar um patamar social elevado. Em última instância, se a personagem

11

Eu canto as armas e o barão. Traduzido por machadodeassis.net

73

hesitara acerca da proposta do pai, ao colocar na balança a vida de amores e a posição social

privilegiada, parece que a decisão já estava mais do que tomada em favor da segunda opção.

Nesse contexto, era de se esperar um cenário desanimador para a filha do Conselheiro

Dutra, pois o seu destino, e consequentemente o seu espaço, estariam atrelados a uma posição

submissa em relação às personagens masculinas que possuíam o poder sobre ela. Contudo,

não é esse o cenário apresentado pela narrativa. Ao oposto das expectativas, Virgília, a

burguesa atrevida e voluntariosa, um “diabrete” como o próprio narrador a descreve, atua

determinantemente na escolha de seu destino, pois é ela que detém a última palavra no que

diz respeito à escolha de seu futuro marido como veremos a seguir.

Após os primeiros cortejos a Virgília, Brás Cubas descobre que possui um concorrente

de peso à vaga na câmara e ao coração da moça: Damião Lobo Neves. Na descrição do

narrador, Lobo Neves era: “um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante,

nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura,

dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano (p.114)”. Nesse trecho,

vemos que mesmo Lobo Neves não tendo os atributos físicos e comportamentais necessários

para competir com Brás pela mão de Virgília, ele é quem arrebata, ao mesmo tempo, a noiva e

a candidatura, tal como em um ‘pacote político’ da época. Por esse prisma, vale a pena

observar os argumentos usados para a escolha de Lobo Neves por Virgília:

Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de

Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha

derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando

seria ele ministro.

- Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:

- Promete que algum dia me fará baronesa?

- Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a

águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro

beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer

cousa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que

esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário. (p. 114-115. Negritos

acrescidos)

Como visto no trecho acima, Lobo Neves possuía amigos influentes que lhe deram

uma grande vantagem na ‘luta’ pelo cargo de deputado e pelo coração de Virgília.

Aproveitando o trocadilho com o nome da personagem Virgília, temos também no nome de

Lobo Neves um elemento curioso e uma ironia. O elemento curioso do nome da personagem

diz respeito à simbologia de lobo, que, na natureza, caça as suas presas em grupo. Tal como o

74

seu xará animal, Lobo Neves também prospera graças ao bom relacionamento dentro dos

grupos políticos dos quais participa. De outro lado, o Neves remete ao branco, símbolo

consagrado à pureza. Da união de tais elementos, vemos emergir uma espécie de ‘lobo em

pelo de cordeiro’, graças à imensa destreza política demonstrada, na maior parte do tempo,

por Lobo Neves, ao galgar posições políticas cada vez mais altas. Outra associação possível

remete à própria fábula do lobo e do cordeiro, em que fica evidente o modo como a força

bruta e a astúcia sempre sobrepujam a inocência e a pureza.

Já a ‘ironia’ presente no nome da personagem se dá pelo fato de ele se chamar

Damião, justamente o nome do antepassado da família Cubas, esquecido pelo seu passado

trabalhador e tanoeiro. Tal como o antepassado de Brás, obviamente em uma roupagem

distinta, Lobo Neves também parece dedicar-se ao trabalho, e possui uma próspera carreira

política, principalmente se compararmos com a carreira de deputado de Brás Cubas,

meteórica e desastrada.

Outro ponto que merece destaque na leitura do excerto acima é a comparação feita

entre a figura do pavão e da águia. Para o narrador, Lobo Neves estaria associado à águia,

animal predador, rapineiro, destacado como a rainha das aves, destinada sempre a voos mais

altos. Já o pavão, metaforicamente associado à personagem Brás Cubas, seria a ave

representante da beleza, da vaidade, simbolizado como o próprio sol graças, ao movimento de

sua calda aberta. Temos aí, metaforizada a própria condição das personagens e de suas

projeções futuras: enquanto Lobo Neves estaria destinado a alçar voos cada vez mais altos em

sua carreira política, derrotando (ou predando) todos os rivais em seu caminho, Brás Cubas

representaria a própria beleza e vaidade de um burguês, que, acostumado a não empreender

grandes esforços, acaba por não gerar nenhuma projeção animadora para o futuro. Tendo

esses dois caminhos, a beleza de Brás e a projeção política de Lobo Neves, Virgília, nesse

momento da narrativa, não demonstra a menor dúvida em escolher a segunda opção e já

cogita o resultado do próximo ‘voo’ de seu futuro marido: o posto de marquesa.

Nesse ponto, uma aproximação indireta entre os espaços ocupados pelas personagens

Virgília e Marcela pode ser vista no tipo de relação mantida entre elas e as figuras masculinas

da obra. Marcela, em sua primeira fase no romance, domina os seus pretendentes com charme

e desfaçatez, além disso, em uma espécie de leilão, vende o corpo como objeto de trabalho

para aquele que mais lhe oferecer, não importando as condições físicas ou amorosas de seus

pretendentes. O que causa certo espanto, é o modo como a burguesa de família rica é colocada

nessa mesma teia de interesses. Virgília, a atrevida e voluntariosa burguesinha, é vista como

75

um objeto a ser conquistado pela família Cubas, graças a uma possível união conjugal por

interesse. Ao contrário, porém, de vermos a personagem ser pintada como uma frágil e

indefesa menina, alheia à própria decisão de seu futuro, vemos a burguesa agir decisivamente

na escolha de seu futuro marido, não pela beleza ou pelo amor, mas pela posição social a qual

ele almejava. Em uma sociedade regida pelo capital, temos colocadas em um mesmo plano a

prostituta vendendo o próprio corpo, objeto de diversão para aqueles que pagassem mais, e a

burguesa Virgília, comercializando a influência proporcionada pelo seu casamento para

aquele que lhe pudesse dar uma projeção social maior.

Essas aproximações, mesmo que indiretas, são fundamentais para entendermos a real

natureza das relações das duas personagens no romance. Cabe, pois, analisar a cena em que a

burguesa de família rica e a prostituta Marcela são postas lado a lado em uma alucinação da

personagem Brás Cubas. Após o encontro com a decrépita prostituta na Rua dos Ourives,

Brás encaminha-se para o encontro com Virgília visando cortejá-la para dar prosseguimento

aos planos de casamento arquitetados por ele e Bento Cubas. No capítulo XLI, A alucinação,

Brás Cubas encontra Virgília da seguinte maneira:

Era verdade. Entrei apressado; achei Virgília ansiosa, mau humor, fronte

nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim dos

cumprimentos disse-me a moça com sequidão:

- Esperávamos que viesse mais cedo.

Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um amigo, que me

detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília...

seria Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que

recuei um passo e desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe

comido o rosto; a pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me

agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara o rosto da

espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o lábio triste e

a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a mim.

Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa.

Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a olhar para os

meus próprios pés. Devia sair ou ficar? Rejeitei o primeiro alvitre, que era

simplesmente absurdo, e encaminhei-me para Virgília, que lá estava sentada e

calada. Céus! Era outra vez a fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei

no rosto dela algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca

do costume. (p. 112-113. Negritos acrescidos)

Como observado ao longo da análise da segunda fase da personagem Marcela, as

bexigas representariam uma espécie de fardo moral carregado não só pela personagem, mas

por todo um sistema capitalista, devido à natureza das relações interesseiras que visavam

apenas ao lucro. No entanto, vemos a mácula da espanhola transportada, para o espanto de

Brás, para o rosto da burguesa de família. Sem meias palavras, o narrador é enfático ao

descrever como o rosto de Virgília fora devastado pelo mesmo estigma e flagelo que

76

destruíra o rosto da espanhola. Ora, se as consequências para tal mal são as mesmas, podemos

concluir que as causas para esse cenário devastador também sejam idênticas; da mesma forma

que a prostituta exibe na própria pele suas escolhas motivadas pelo capital, sendo esse, nas

próprias palavras do narrador, o “verme roedor” (p. 110) daquela existência, as escolhas de

Virgília, motivadas pela ascensão social, também a colocam no mesmo nível da prostituta.

Prostituta e burguesa dividem, portanto, o mesmo espaço corroído por uma sociedade regida

pelo interesse. Em última análise, ao aproximar essas duas flores-personagens em processo de

decomposição, vemos encenada não só a corrosão do corpo físico das personagens, mas de

todo um corpo social com relações ruídas e flageladas.

Outro elo que une essas duas personagens, além da figura do próprio Brás, pode ser

visto no capítulo seguinte, em que Brás Cubas reflete sobre a alucinação tida:

Outra cousa que também me parece metafísica é isto: - Dá-se movimento a uma

bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a

segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se

chama... Marcela - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; - a terceira,

Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em

Brás Cubas, o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar

em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples

transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma cousa

que poderemos chamar solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este

capítulo escapou a Aristóteles? (p. 114)

Mais uma vez guiado pelo espírito de megalomania ao descobrir algo, inspirado pelas

leis newtonianas de transmissão de força/energia que nem mesmo Aristóteles descobrira em

seu tempo, além, é claro, das leis do humanitismo, o narrador filosofa sobre a estranha

natureza do contato entre Virgília, Marcela e ele próprio. Personagens aparentemente

separados em razão de suas respectivas classes sociais, mas unidas pela mesma rede de

interesses. Enfim, em uma sociedade de interesses, prostituta, burguês arrivista/senhor de

escravos e burguesa de família influente possuem o mesmo espaço maculado pelo verme

roedor da existência, manifestado no lucro, no desejo arrivista exacerbado e na vontade de

sempre querer levar vantagem sobre qualquer circunstância ou pessoa.

Em um segundo momento da personagem na obra, encontramos Virgília já casada

com Lobo Neves, vivendo, pelas regras das aparências que devem ser resguardadas, em um

casamento ‘perfeito’ com o marido que ela escolhera. No entanto, como é comum na

literatura machadiana, ocorre o segundo triângulo amoroso da trama envolvendo Virgília,

Lobo Neves e Brás Cubas. Tal circunstância causa certa estranheza em Brás Cubas,

justamente por ele ter sido preterido na corrida pelo coração (e cargo de deputado) de Virgília.

77

Na busca por explicar os motivos pelos quais o amor de Virgília e Brás (res)surge, o narrador

encontra uma explicação no mínimo inusitada para tal evento:

Virgília é que já se não lembrava da meia dobra; toda ela estava concentrada em

mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu pensamento; - era o que dizia, e era

verdade.

Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O

nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em

pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes

poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim,

que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um

beijo que ela me deu, trêmula - coitadinha - trêmula de medo, porque era ao portão

da chácara. Uniu-nos esse beijo único - breve como a ocasião, ardente como o

amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres

que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, - uma

hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, - vida de

agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de

sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as

agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro

daquele prólogo. (p. 129. Negritos acrescidos)

Retomando rapidamente a comparação entre Virgília e a prostituta Marcela, notamos

certa semelhança deste trecho com o episódio do primeiro beijo do narrador, descrito no

capítulo XIV, O Primeiro Beijo12

, dado em Marcela. Isso nos indica, mais uma vez, certa

mescla entre os espaços das duas personagens de classes tão distantes. Em seguida, o narrador

declara a verdadeira natureza de seu amor fora das regras sociais:

Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é

que nos amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos um ao outro, como as duas

almas que o poeta encontrou no Purgatório:

Di pari, come buoi, che vanno a giogo13

;

e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal

menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem

por que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas

cuja solução entreguei ao destino. (p.132-133)

12

O trecho do capítulo em questão diz:

“O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma cousa

única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.

- Esqueceu alguma cousa? - perguntou Marcela de pé, no patamar.

- O lenço.

Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. “Não

sei se ela disse alguma cousa, se gritou, se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas,

veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.” (p. 66-67) 13

Trecho da Divina Comédia de Dante Alighieri traduzido como: “Aos pares, como bois que vão na canga”.

Tradução: machadodeassis.net

78

Em suma, por trás dessa semelhança, poderíamos interpretar tal beijo como sendo,

simbólica-metaforicamente, a consumação de um novo primeiro beijo, sendo esse, tal qual o

primeiro, dado em uma burguesa que se assemelha a uma prostituta, dada as escolhas

(i)morais de Virgília, unindo assim, mais uma vez, os espaços de Virgília e Marcela.

Do mesmo modo chama-nos atenção nesse capítulo, a maneira como ele é posto como

sendo o prólogo da relação entre Virgília e Brás. Ao descrever tal cena com requintes de

mistério e temores de ser descoberto, o narrador antevê o tom com o qual o espaço de Virgília

será construído ao longo do restante da narrativa. A todo o momento os personagens buscam

resguardar as suas faces sociais dos olhares desconfiados da sociedade. Sem a coragem de

abandonar tudo para viver essa grande paixão, muito provavelmente pelo medo de perder a

comodidade do status social conquistado pelo casal, as personagens fazem da casa de Lobo

Neves uma espécie de reduto para cultivarem cada vez mais sua relação amorosa. Vejamos

dois excertos em que ficam claros os perigos e os olhos que espionavam a relação do casal em

um capítulo intitulado, não por acaso, Olheiros e escutas e, em seguida, no capítulo A

casinha:

Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das pessoas que

mais desconfiavam de nós. Cinquenta e cinco anos que pareciam quarenta, macia,

risonha, vestígios de beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem

sempre; possuía a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se

então na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se

estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo

que ela olhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia ao ponto de olhar às

vezes para dentro de si, porque deixava cair as pálpebras; mas, como as

pestanas eram rótulas, o olhar continuava o seu ofício, remexendo a alma e a

vida dos outros. (p. 147. Negritos acrescidos)

Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília.

Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara

com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na

noite anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves; tinham

comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeita pública.

Concluiu dizendo que não sabia que fazer. (p. 149)

Como fica claro nesses dois trechos, o espaço da casa de Lobo Neves (ou, no caso, a

chácara pertencente à família) é atravessado por um clima de tensão proporcionado pelos

olhares desconfiados e especulativos acerca da (íntima) ligação entre Brás Cubas e Virgília,

que já caíra na suspeita pública, apesar de sendo mantida no espaço privado da casa. A esse

respeito, cabe também a menção sobre o modo como tal relação adúltera afeta, inclusive, a

vida pública de Lobo Neves, pois não só seria uma vergonha para os padrões da época, devido

ao tabu acerca do adultério, mas também um vexame potencializado pelo fato da face política

79

de Lobo Neves dever ser resguardada por causa de sua carreira não permitir qualquer

escândalo dessa natureza.

Nesse cenário completamente contrário, Brás busca, aos moldes dos romances e

histórias mais românticas, convencer Virgília a buscar um lugar em que pudessem viver

livremente o seu poderoso amor, sendo esse local, uma espécie de protótipo da futura casa da

Gamboa, como veremos a seguir. No referido capítulo, fica evidente a personalidade egotista

do narrador ao considerar apenas a sua própria vontade em detrimento de todos os

regulamentos sociais. Como propomos na análise do capítulo o menino é pai do homem, isso

é um claro reflexo da educação mimada e sem restrições do narrador, incluindo, aqui, o

‘direito’ dado pelo seu lugar social de obter poderes absolutistas em relação a sua mais nova

propriedade, semelhante com o que acontece no triângulo amoroso Brás – Marcela – Xavier.

Vejamos um trecho em que fica exposto o desejo de posse e de exclusividade nutrido por Brás

em relação à Virgília em seu ‘sonho de uma pasárgada’ ideal, onde ele pudesse manter tal

relação com a mulher escolhida por ele, longe do olhar da moral e de qualquer tipo de

repreensão:

Empunhara o binóculo da imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma

vida nossa, um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem

moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vontade. Esta ideia

embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, bastava penetrar

naquela habitação dos anjos. (p. 141)

É interessante notar como expressões que remetem a uma ideia de restrição,

“casamento”, “liame”, “moral”, “tolhe(r)sse” contrapostas a um mundo idealizado pela

imaginação do narrador “uma casa nossa”, “uma vida nossa”, “um mundo nosso”, “habitação

dos anjos”, constituem, na visão do narrador, um cenário de uma vida de total liberdade em

relação aos impedimentos de sua posição social, no pleno gozo de seus desejos, tal como

ocorria na sua fase de ‘menino-diabo’. Parafraseando o próprio narrador, o menino,

definitivamente, é o pai do homem. Curiosamente, o menino transforma-se em uma metáfora

do próprio sistema de relações regidas pelo capital; um sistema a constituir seus filhos frutos

das inúmeras relações de interesse que permeiam toda a obra.

A despeito dos planos delirantes de Brás, Virgília mantém-se relutante no que diz

respeito a uma possível fuga. À primeira vista, a personagem se esquiva das propostas de

Cubas temendo pela segurança do casal. Acrescente-se a isso a questão da convivência com o

filho, pois Lobo Neves nunca viveria sem a sua amada esposa e o seu não menos querido

80

filho. Entretanto, por traz desses motivos aparentemente nobres, o narrador destaca a

verdadeira natureza do medo da personagem:

Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela estavam inteiramente

ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e

grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma.

Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dous

dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha. (p.

149)

Como fica evidente nesse trecho do capítulo LXI, A casinha, a maior preocupação de

Virgília, longe de ser o amor de Brás Cubas, o cuidado com o filho ou o marido, era com

relação à preservação de sua face pública. Ela que negociou com tamanha destreza o seu amor

em busca de uma melhor oferta política, tal como a prostituta Marcela, agora se mostra

relutante em concordar com qualquer ato que prejudique seu status político na condição de

esposa de Lobo Neves.

Contudo, esse perigo constante em ter a sua face social arranhada em nada ameniza o

desejo arrebatador do casal de manter sua relação adúltera. Pelo contrário, movido pelo

espírito mimado de sua infância, Brás Cubas é convencido por sua ‘amada’ a comprar/alugar

uma casa afastada dos olhares repressores. Brás então encontra uma ‘casinha’:

expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco,

com quatro janelas na frente e duas de cada lado, todas com venezianas cor de tijolo,

- trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e solidão. Um brinco! (p. 150).

Ao ressaltar como características principais da casa o seu ar de mistério e solidão,

ampliados por trepadeiras e venezianas cor de tijolo, o narrador reitera, de forma sutil, as reais

motivações para a compra daquela propriedade: manter a relação pecaminosa a salvo da

opinião pública. Assim, era preciso uma casa afastada, cujas janelas não demonstrassem nada

do que ocorria em seu ambiente privado.

Refletindo sobre o modo como o espaço da casa é pensado, a opinião do narrador era

de que, ao possuir uma casa afastada do burburinho da sociedade, o casal poderia usufruir de

um mínimo de privacidade, resguardando, portanto, um pouco de sua subjetividade e o direito

de ali fazer o que mais desejassem, sem o medo de qualquer julgamento ou sanção social:

Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em

cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira

fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria facilmente o resto.

81

Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de

posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a

consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das

cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas cousas, que me traziam aos olhos

constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o

chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu

inimigo. (p. 150. Negritos acrescidos)

Como observado nessa passagem, a casa da Gamboa, espaço caracterizado pelas

relações do adultério, traz à personagem Brás Cubas a sensação de ‘posse’ de sua amada,

principalmente se considerarmos o contraponto posto, na parte final da citação, com o espaço

da casa de Lobo Neves, local marcadamente influenciado pela vida pública burguesa,

demonstrando, mais uma vez, como tal espaço, longe de ser um reduto privado, funcionava

como uma extensão da vida pública dentro da sociedade burguesa.

Por outro lado, o espaço da casa da Gamboa configura-se como um local apartado,

pelo menos na intenção, desse meio social. Suas características físicas tornam-se perfeitas

para ocultar algo que deve ser mantido longe do espaço público: a relação adúltera do casal

burguês. Desse modo, como Brás Cubas não conseguiu ascender-se no espaço público como

desejava, ele busca transferir para a casa da Gamboa o “poder” e o status social de seu rival,

Lobo Neves, através da posse exclusiva de Virgília, movimento semelhante, inclusive, ao

ocorrido na primeira metade da narrativa, em que o narrador também buscava o domínio

absoluto sobre Marcela em relação ao outro ‘amor’ da prostituta, Xavier, sujeito abastado (e

tísico) da época.

Assim, o espaço da Gamboa fora feito para o livre gozo dos desejos do casal adúltero.

Tal local seria, no desejo de Brás, o lugar onde a personagem poderia reinar tanto sobre

Virgília, representante da vida pública que perdera na disputa com Lobo Neves, quanto sobre

os empregados, papel exercido por Dona Plácida que, embora agisse como proprietária da

casa, nada mais era do que mais uma propriedade de Brás Cubas e Virgília, tendo a sua

utilidade, restrita a manutenção da relação adúltera do casal. Enfim, o espaço da Gamboa, na

perspectiva de Brás, seria o lugar onde:

o mundo vulgar terminaria à porta; - dali para dentro era o infinito, um mundo

eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem

baronesas, sem olheiros, sem escutas - um só mundo, um só casal, uma só vida, uma

só vontade, uma só afeição -, a unidade moral de todas as cousas pela exclusão das

que me eram contrárias. (p.150)

No entanto, o romance machadiano encena uma inversão de valores que merece

destaque. Como vimos, o espaço da Gamboa fora pensado como um espaço separado das

82

agitações da vida pública. Vemos ainda, o desejo da personagem Brás Cubas de obter a posse

e domínio exclusivos sobre Virgília. Isso corroboraria a definição de espaço privado de

Arendt (2005) em que era delegado ao homem o direito à propriedade em relação à mulher,

que, por sua vez, deveria ocupar o espaço privado da casa, pois suas funções, relativas ao

corpo, eram tidas como inferiores, por isso, não deveriam ser mostradas em público.

Contudo, na relação entre Brás Cubas e Virgília, é sempre a burguesa que define os

rumos do relacionamento. Embora Brás Cubas tenha um sentimento de posse em relação à

Virgília, observamos como a iniciativa da compra da casa parte de Virgília, pois a

personagem não estava inclinada a perder o status público alcançado por ela no casamento

com Lobo Neves, nem tão pouco o prazer tido na relação adúltera com Brás Cubas, prazer

esse, não alcançado em seu casamento. Nesse sentido, longe de ser uma simples “posse” ou

“propriedade” de qualquer figura masculina dentro do romance, é Virgília quem manipula,

ardilosamente, tanto Brás Cubas, sempre refém aos caprichos da burguesa, quanto Lobo

Neves, com quem tem um casamento de aparências tão bem sucedido no que tange o status

social alcançado, mas desprovido de qualquer sentimento amoroso ou de atração física.

Desse modo, o espaço da casa da Gamboa encarna as características primordiais tanto

da personagem Virgília quanto de Brás Cubas, um espaço pautado por uma relação que deve

ser mantida longe dos olhares da sociedade, dada às inúmeras consequências que a descoberta

de tal romance acarretaria para a face social dos envolvidos. Pensada por Brás como um

ambiente em que ele pudesse usufruir da posse de sua amada longe dos olhares e influência da

sociedade, o espaço da casa da Gamboa torna-se, na verdade, o espaço em que Virgília pode

desfrutar de sua posição política (casamento com Lobo Neves) e do interesse carnal (adultério

com Brás Cubas), sem os sustos da casa de seu marido, que se tornara uma extensão da vida

em sociedade.

Em última análise, vemos encenada nessa relação de adultério, todo um

apodrecimento da estrutura do casamento de interesse, culminando, inclusive, na própria

deterioração do espaço físico da casa da Gamboa, como pode ser visto na descrição do modo

como ficou a referida casa após a passagem do casal, no início do capítulo LXX, Dona

Plácida:

Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu,

enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra,

três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito

para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.

Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma

lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo

83

espaço de chão que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um

eclesiástico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos

abençoarão esse canto de terra, que lhes deu algumas ilusões. (p.152-153)

Assim, o espaço da personagem Virgília depois de seu casamento com Lobo Neves é

constituído, semelhantemente ao seu espaço na primeira fase da narrativa, pelo sentimento

mesclado entre um desejo fulminante para manter uma relação adúltera com Brás Cubas e a

preocupação exacerbada em manter a posição política conquistada a ‘duras penas’. Faz, então

do espaço da burguesa, um espaço prostituído, tão corroído pelas máculas do lucro e do

interesse como os espaços da bela espanhola do início da narrativa.

Dona Plácida: complacência em forma de flor

Depois de analisarmos os espaços ocupados pelas duas personagens femininas mais

importantes ao longo do romance, nos deteremos com especial atenção nos espaços ocupados

por Dona Plácida, personagem que, embora tenha um papel secundário, forma um

contraponto interessante com as personagens Virgília e Marcela aqui analisadas.

Dona Plácida é descrita pelo narrador como uma antiga agregada da família de

Virgília, que, em vista da proteção das aparências que deveriam ser resguardadas pelo casal

adúltero, agia como a verdadeira dona da casa da Gamboa. Tal ocupação gerava, no entanto,

certo ‘sofrimento’ e ‘tristeza’ para a idosa senhora. Durante os primeiros meses, D. Plácida,

apoiando-se nos preceitos cristãos nos quais acreditava, não olhava nos olhos de Brás Cubas,

atitude compreendida por Brás, já que visava ganhar, aos poucos, a confiança da carrancuda

senhora. Após algum tempo, Brás consegue, através de uma história fantasiosa, forjada à base

das velhas histórias românticas de amores impossíveis, ganhar a confiança de Dona Plácida,

como se observa na seguinte passagem:

Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal

cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo

que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dous meses; falava-me

com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me

dava por ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a

benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história

patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência

do pai, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novela. Dona Plácida não

rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da

consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três juntos diria que

Dona Plácida era minha sogra. (p. 153)

84

Como descrito acima, D. Plácida cede à sua função como ‘protetora’ da relação

adúltera, em detrimento de seus próprios preceitos morais cristãos. Como sarcasticamente

colocado pelo narrador no parágrafo seguinte, essa mudança de opinião não fora motivada por

uma sensibilidade da personagem em relação ao amor proibido do casal, ou por se sentir

tocada pela amizade e gratidão que sentia por eles. Seguindo a mesma tendência observada

nas outras personagens femininas da obra, o convencimento e a conquista da confiança de

Dona Plácida não passaram de mais uma relação comercial bem sucedida:

Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, - os cinco contos achados

em Botafogo, - como um pão para a velhice. Dona Plácida agradeceu-me com

lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de

uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.

(p.153)

Como visto acima, longe de merecer a confiança de Dona Plácida, Brás compra não só

a ‘benevolência’ da personagem ao preço de cinco contos de réis14

, como também as orações

da carrancuda personagem. Tal imagem, parecida com o processo de desconstrução visto no

caso do tio cônego de Brás, reforça a ideia de relações mantidas por interesses econômicos.

Elementos que dizem respeito ao sentimento moral são descartados em favor de bens

materiais; elementos religiosos e espirituais, sobretudo os preceitos cristãos de agir pelo bem

do outro em detrimento de qualquer recompensa material, são substituídos por orações com

um valor previamente estipulado. Em suma, vemos como a sociedade burguesa retratada por

Machado desmancha-se e se decompõe dentro das próprias relações sociais que estabelece.

Outro ponto que merece destaque acerca da desconstrução da personagem D. Plácida

está presente na cena, um tanto caricata, da notícia da nomeação de Lobo Neves a presidente e

secretário da província ***, e de como este ato afeta ‘a doce sogra’ de Brás Cubas:

No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por decreto de 13,

tínhamos sido nomeados presidente e secretário da província de *** o Lobo Neves e

eu. Escrevi imediatamente a Virgília, e segui duas horas depois para a Gamboa.

Coitada de Dona Plácida! Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se

esqueceríamos a nossa velha, se a ausência era grande e se a província ficava

14

Acerca desse episódio, cabe aqui um breve comentário sobre o valor da honestidade da personagem Brás

Cubas. Em contraposição ao episódio da moeda encontrada no salão de bailes pela personagem dias antes e

entregue às autoridades competentes, Brás Cubas, ao encontrar um embrulho com uma importância

significativamente maior na praia de Botafogo, resolve ficar com tal ‘embrulho misterioso’ sem hesitação, por

ser essa uma verdadeira recompensa divina pela devolução da simples moeda, mostrando, no projeto de

desconstrução que prima o livro, o valor da honestidade da personagem.

85

longe. Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a objeção de

Cotrim afligia-me. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma andorinha; mas,

ao ver-me triste, ficou muito séria. (p. 170. Negritos acrescidos)

Como fica claro nesse excerto, longe das preocupações e cuidados de D. Plácida

estarem relacionados à felicidade do casal, a personagem realmente se aflige pelo risco de

perder a sua ‘utilidade’ na condição de agregada, e todos os benefícios daí advindos.

Nesse momento, cabe a menção a mais um pequeno ‘joguete’ do Bruxo do Cosme

Velho na escolha do nome dessa personagem. A palavra ‘plácido’ remete a algo sereno,

tranquilo, brando, que tem ou revela paz. No entanto, essa palavra pode referir-se também a

complacência, atitude caracterizada pela disposição habitual para obedecer/atender aos

desejos ou gostos de outrem com a intenção de ser-lhe agradável. Ora, esse aparente estado de

submissão é perfeito para uma personagem destinada a ser uma agregada, afinal, deveria estar

sempre disposta a cumprir, a despeito de suas próprias crenças e convicções, todos os desejos

e tarefas, servindo aos interesses de seus ‘benfeitores’. Seguindo o que sugere seu nome, D.

Plácida comporta-se como uma verdadeira agregada ao ‘cuidar’ da relação amorosa proibida

de Brás e Virgília, adaptando-se a todas as situações, vendendo cada ‘lágrima’ e sentimento

de ‘nojo’ por algumas ‘moedinhas’ e ‘contos de réis’.

Sobre a condição social de D. Plácida, vale um comentário, mesmo que breve, sobre a

história da origem da personagem, e de como ela chegou ao posto de "agregada" da

personagem Virgília. Dona Plácida

Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora.

Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos

de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um

alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e

moça, ficaram a seu cargo a filha, com dous anos, e a mãe, cansada de trabalhar. [...]

Com isto iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.

Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia. (p. 157)

Nesse cenário decadente da personagem, vemos ‘brotar’ as feições culminantes da

personalidade de Dona Plácida. Semelhante a Brás Cubas, que é a flor nascida do estrume das

relações arrivistas, Dona Plácida é a flor brotada do estrume da condição precária de seu

passado. Isso fica evidente no capítulo seguinte, em que o narrador, alertando para o caso de

algum leitor ter pulado o capítulo da citação anterior, conta-nos o pensamento tido por ele ao

saber da trajetória de sua idosa cúmplice:

86

- Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que

devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante

semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os

altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa

conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida não

falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: -

Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe

responderiam: - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na

costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo

e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo

desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na

costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos,

num momento de simpatia. (p. 159)

Nessa reflexão do narrador, observamos como o destino subalterno de Dona Plácida

estava traçado, pelo menos na visão de Brás, desde o início de sua concepção na relação

luxuriosa entre seus pais. Por mais trabalhadora e esforçada que Dona Plácida fosse, nada

poderia arrancá-la da condição precária, vivendo da “mendicidade” (p.160) e dos favores dos

outros. Nesse aspecto, cabe uma ressalva importante para o entendimento de tal cena: se

tomarmos a perspectiva do narrador para o nascimento de Dona Plácida, vemos como esse

discurso está impregnado por um determinismo social, corrente de pensamento muito comum

no século XIX. No entanto, tal discurso parece estar ligado a uma estratégia textual usada

pelo autor e matizada na forma de uma crítica velada ao processo cientificista-determinista

em voga no período machadiano. Por esse prisma, tal episódio parece tomar a forma de um

questionamento direcionado a nós, leitores do romance, impelidos a refletir sobre se de fato, a

origem de D. Plácida estava mesmo determinada pelo seu meio, ou se sua condição social

seria fruto das relações sociais que a permeiam todo o romance.

Cabe, ainda, o diálogo com as bases insólitas do Humanitismo defendido por Quincas

Borba, com a certeza de que, muito além de uma determinação natural ou uma condição

própria da natureza humana, a pobreza e a desigualdade são um produto das relações sociais.

Rejeitando qualquer tipo de naturalização da desigualdade, Machado, através da inquietação

de seu narrador-protagonista, escancara as facetas perversas de um modelo político feroz e

predatório dos mais fracos.

Curioso pensar no modo como o narrador é afetado consideravelmente pela origem

familiar de D. Plácida descrito no excerto anterior. Talvez tenha despertado em si certo senso

de espelhamento em relação à sua ‘sogra’, pois a mesma estrutura deteriorada presente na

origem de D. Plácida pode ser associada à família Cubas em sua ‘origem tanoeira’. Nesse

caso, se realmente houvesse um modelo natural de seleção, a mesma lógica determinista

empregada na vida de Dona Plácida (estrutura familiar decadente gerando uma existência

87

infeliz) poderia ser aplicada à própria vida de Brás; originado do estrume de relações

deterioradas, nenhum outro destino poderia aguardar o mais novo (e podre) galho da família

Cubas.

Guiados por esse raciocínio, o mesmo questionamento suscitado pelo narrador ao

buscar explicações sobre os motivos que levaram os pais de D. Plácida a darem a luz à

personagem, mesmo cientes do sofrimento que a aguardava, se adéqua perfeitamente ao

narrador: sabendo da origem forjada das relações da família Cubas, o destino desse menino-

diabo também já estava traçado bem antes de seu nascimento.

Em síntese, o que difere o estatuto social dessas duas personagens, uma criada e um

filho de senhor de escravos, não é uma seleção natural determinista, muito pelo contrário, é o

teor das relações sociais tecidas por elas ao longo do romance. Tal como em Flores do mal,

de Baudelaire (2006), percebemos como os signos da corrosão em Memórias Póstumas de

Brás Cubas equiparam os espaços do romance, não existindo distinção entre burgueses,

burguesas, criadas ou prostitutas, pois todos foram nascidos e criados no mesmo estrume de

relações em decomposição dentro da sociedade burguesa.

Tal fusão de espaços, inclusive, pode ser usada como parâmetro interpretativo para a

assertiva final do romance, descrita, coincidentemente ou não, após a morte de Dona Plácida,

e a loucura de Quincas Borba, na qual o narrador, em um tom que destoa de todo o romance

afirma:

Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba.

Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua

nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque

ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a

derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a

nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (p. 251)

Desse modo, o fato de o único ‘saldo’ (termo do campo semântico do capitalismo) ser

justamente o de não ter filhos e, por essa razão, ter quebrado a herança maldita por ele

carregada, merece destaque justamente por evidenciar a maneira como essas estruturas de

relações corrosivas se repetiam de geração em geração naquela sociedade. Não nos parece

aleatório o fato de os motivos para o ato de concepção de D. Plácida estarem justamente em

um capítulo intitulado “Comigo”. Obviamente, esse título pode realmente referir-se aos

pensamentos do narrador ao ouvir a historieta de desilusões de Dona Plácida, como deixa

transparecer sua descrição. Porém, podemos interpretar que esse pronome pessoal pode, em

uma extensão de sentido, referir-se não só à história da idosa personagem, mas à própria

88

história de Brás Cubas e de sua classe: nascidos e fadados ao verme, o flagelo e a ruína de

suas escolhas morais.

Como pudemos observar na análise das características de D. Plácida, vemos que seu

espaço é reservado a uma condição de agregada ao longo do romance. A personagem, mesmo

não se tratando de uma escrava, possui os seus direitos ceifados pela posição social de

dependência em relação ao casal Brás Cubas e Virgília. Essa condição, já antevista pela

controvérsia de seu nascimento, é utilizada por Brás e Virgília como uma forma de proteção

de suas relações adúlteras. Contudo, longe de estar incomodada ou ressentida com o papel que

ocupa, D. Plácida, ao preço adequado, se adapta a tal condição.

Por fim, antes de ser apenas uma mulher fruto do meio ao qual pertence, D. Plácida

também atua, com as possibilidades que lhe são apresentadas, nesse jogo de interesses, ora

como um elemento de fundamental importância para o bom andamento da relação do casal

burguês (uma verdadeira “sogra” como ironiza o narrador), ora como uma peça descartável,

quando finda a relação entre Brás e Virgília, fato evidenciado na descrição da personagem, já

à porta da morte, como “um molho de ossos, envolto em molambos, estendido sobre um catre

velho e nauseabundo” (p. 237), sem qualquer utilidade para os interesses de seu antigo

benfeitor.

Chegando ao final deste capítulo, observamos como o jogo encenado no romance

machadiano é extremamente ardiloso na composição dos espaços das personagens aqui

estudadas. Tanto a personagem principal da narrativa, Brás Cubas, quanto as personagens

secundárias com as quais ele se relaciona são tocados e aproximados pelas mesmas relações

de poder que corroem essas flores-personagens. No capítulo seguinte, nos deteremos no modo

como as relações de poder analisadas aqui produzem uma corrosão não só no campo do

enredo da narrativa que, por si só, já daria margem a uma extensa e produtiva reflexão, mas,

sobretudo, como a corrosão de tais personagens-flores pode ser um indício, no plano textual

mais amplo do romance, da própria decomposição de todo um sistema de relações regidas

pelo verme do capital.

89

4 UMA CLASSE EM DECOMPOSIÇÃO: ANÁLISE DE UM DISCURSO

CORROSIVO

Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor. (Brás Cubas – Cap. 11 O menino

pai do homem)

Valendo-nos dos estudos acerca do espaço elencados no capítulo teórico deste

trabalho, observamos como, embora ocorra uma multiplicidade de histórias e trajetórias das

diferentes personagens e das mais diversas classes sociais, todos esses discursos foram

matizados, em maior ou menor grau, pela mesma rede de interesses característica das relações

guiadas pelo capital. Dessa maneira, o discurso encena, pela palavra literária, toda uma esfera

social degradada a partir de sua própria rede de relações.

Nesse aspecto, embora haja, na perspectiva do narrador, e, consequentemente, de sua

classe, certa normalidade nas cenas descritas ao longo de suas memórias, vemos emergir um

outro discurso, fruto das estratégias empreendidas pelo autor, na forma de um questionamento

que tensiona essa pseudo normalidade. Esse processo no qual o discurso do romance passa de

uma palavra corriqueira a uma palavra social15

é proposto por Bakhtin (1993) ao analisar a

constituição formal da linguagem do gênero romance:

O modelo de tal língua no romance é o de uma perspectiva social de um ideologema

social, fundido no seu discurso, na sua linguagem. Esta imagem não pode, portanto,

de forma alguma ser um modelo formalista, mas o jogo literário com tais línguas

será um jogo formalista. As particularidades formais das linguagens, dos modos e

dos estilos no romance são símbolos de perspectivas sociais. (...) O discurso do autor

representa e enquadra o discurso de outrem, cria uma perspectiva para ele, distribui

suas sombras e suas luzes, cria uma situação e todas as condições para sua

ressonância, enfim, penetra nele de dentro, introduz neles seus acentos e suas

expressões, cria para ele um fundo ideológico. (BAKTHIN, 1993, p. 155-156)

Ao adentrar nessa ‘fratura’ discursiva, discurso do narrador e discurso do autor

implícito, encenada no/pelo romance, vemos que através dos variados planos textuais criados

a partir das histórias e trajetórias das personagens, surgem dois signos recorrentes na

composição das cenas enunciativas: os signos da corrosão e das flores.

15

Como mencionado ao longo dos capítulos anteriores, o próprio Bakthin (1993) afirma o quanto o discurso

cotidiano também é permeado e fraturado por variadas vozes e discursos. Dessa maneira, o discurso romanesco

difere do discurso corriqueiro justamente por assumir essa condição e fazer dela terreno fértil para a sua

construção, em contraposição ao discurso comum que se reguarda em uma aparente unicidade.

90

Nesse aspecto, chamou-nos atenção a recorrência do uso da imagem de “flores” para

representar as personagens dentro do romance, imagem essa, que não condiz com as ações das

mesmas ao longo da narrativa. Some-se a isso, a aproximação dicotômica entre as flores e o

signo da corrosão, muito frequente em elementos usados na descrição das personagens. Esse

par dicotômico causa estranheza ao longo da leitura fazendo-nos perguntar a razão para tal

aproximação, a princípio, tão insólita, se considerarmos o uso corriqueiro das duas

expressões: a primeira como representante de algo positivo e a segunda como um elemento de

depreciação.

Gomes (2008) atribui a recorrência do signo da corrosão (chamado por ele de

‘decomposição’ na narrativa) à influência da literatura shakespeariana, sobretudo os

questionamentos metafísicos de Hamlet e os delírios de Lady Macbeth, além de uma grave

doença de Machado de Assis que o fez ver determinados assuntos com outros olhos. Nas

palavras do autor:

À perspectiva de morte, que rondou tão próxima do autor naquela época, poder-se-

ia juntar a impressão produzida no seu espírito pela tragédia hamletiana, cuja

tendência à ênfase sobre os elementos de decomposição da vida e do homem,

corresponde à feição predominante do livro que viria a escrever com a visão do

sepulcro ainda diante dos olhos: as Memórias póstumas de Brás Cubas. Há, nessa

obra, um humour macabro, que tudo indica provir de uma larga absorção de Hamlet.

(...) Pelo visto, a dedicatória de Brás Cubas "ao verme que primeiro roeu as frias

carnes de meu cadáver" é uma excentricidade que afina bem com o humour

hamletiano... (GOMES, 2008. p. 10-13)

Obviamente, a pertinência da relação entre a perspectiva adotada no romance e a vida

do autor empírico Machado de Assis (tendência comum à crítica biográfica de meados do

século XX na qual Gomes (2008) se insere) é questionável. No entanto, a questão do humor

hamletiano ressaltado pelo teórico torna-se apropriada justamente pelo tom característico da

voz de Brás Cubas que evidencia o deboche e o desdém que o mesmo nutre pelo

mundo/espaço dos vivos. Esse fato, inclusive, é expresso já na abertura do romance quando o

narrador é enfático ao asseverar o modo como suas memórias são escritas com a tinta da

melancolia e a pena da galhofa.

Contudo, o estranhamento em relação ao signo “flor” associado a uma narrativa tão

decomposta, como exposto por Gomes (2008), permanece e ganha outra dimensão. Essa

aproximação de signos tão antitéticos assemelha-se muito ao observado no livro de Charles

Baudelaire (2006) Flores do mal, publicado em 1857, cujos poemas nos apresentam, grosso

modo, um retrato da sociedade francesa corrompida, muito semelhante ao encontrado no

91

romance de Machado de Assis (1999) em análise. Tal retrato se vale do mesmo descompasso

entre a simbologia da flor, de aspecto positivo, e as relações sociais estabelecidas ao longo

dos poemas. Essa semelhança de imagens aparece até mesmo na similaridade do uso de

signos, como, por exemplo, a reiteração da palavra verme, tão significativa para a construção

tanto do mundo além-túmulo de Brás Cubas, como das relações empreendidas por ele (e sua

classe) no mundo dos vivos. Estas imagens também são usadas por Baudelaire (2006) ao

encenar o próprio processo de decomposição presentes em Flores do Mal, degeneração essa,

não só de um corpo físico que já se encontra morto, mas de um corpo social corroído e que se

desmancha em suas próprias relações sociais.

Nesse aspecto, as aproximações com a obra em análise tornam-se evidentes à medida

que na leitura do romance machadiano também nos deparamos com um corpo social

corrompido e corroído. As imagens de vermes, flagelos, farrapos tão recursivas ao longo das

descrições das personagens, e consequentemente de seus espaços, apontam para um corpo

social em ruínas, degradado pelas próprias relações que o sustentam.

Temos ainda, como uma segunda semelhança, o próprio fato de em Flores do mal o

Eu Poético sentir uma fixação exacerbada em observar as cenas dos vermes, focalizá-las, em

uma mistura de sentimentos próximos ora da melancolia, ora do desejo de fundir-se ao verme

que a tudo corrói naquele espaço social. Essa imagem é perfeitamente correspondente às

encontradas em Memórias Póstumas de Brás Cubas, pois o espaço de enunciação criado

estrategicamente por Machado (1999) para seu narrador é justamente o espaço além-túmulo,

onde, como nos poemas de Baudelaire (2006), a corrosão e o verme não devem ser

escondidos ou encobertos, mas mostrados para todos os que participam desses jogos de

interesse.

Além disso, a própria dedicatória colocada de forma bastante astuta por Machado de

Assis (1999) na voz e no discurso de Brás Cubas, dedicando as suas memórias “ao verme que

primeiro roeu as frias carnes” (p. 25) de seu cadáver, reforça a junção entre narrador,

estratégia textual do autor, e o verme, símbolo das relações de poder feitas por ele em vida.

Nesse caso, o romance machadiano encena, NA e PELA palavra romanesca, a concretização

desse possível desejo do Eu Poético criado por Baudelaire (2006) quando, textualmente,

vemos o narrador não só observar o verme que corrói toda uma sociedade, mas se fundir a ele

no processo ficcional de feitura de suas memórias, através da construção das histórias e

trajetórias de uma estrutura social degradada.

92

Ainda com relação ao uso do signo flores, o descompasso no livro do poeta francês

permanece à medida que não encontramos, a principio, personagens puras, inocentes,

características frequentemente atribuídas às flores. Ao contrário, as flores do mal pintadas por

Baudelaire (2006) crescem em um terreno recoberto por luxúria, pecados e de relações

corrompidas pela pressão social. Nesse ponto, a semelhança com o romance machadiano

também pode ser observada, pois é nesse terreno lodoso e corroído pelas relações de poder

que crescem as flores-personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas, encenando, através

do discurso romanesco, a imagem da própria ruína da sociedade ali representada.

Não nos julgamos competentes para afirmar que Machado de Assis teria conhecimento

do texto de Baudelaire (2006) e se apropriado dessa metáfora para a composição de seu

romance. Isso demandaria um estudo da gênese das leituras feitas por Machado no período de

composição da obra, fato este, não relacionado diretamente com o presente trabalho nesse

primeiro momento. Todavia, ponderamos, por hora, sobre o modo como os dois textos, num

período relativamente curto entre eles, leram a sociedade de uma forma semelhante, usando

signos linguísticos e imagens simbólicas muito parecidas.

Focalizando nossa atenção no romance machadiano em questão, o signo da flor

aparece de variadas formas ao longo da narrativa. Excluindo as aparições como elementos

decorativos (flores que ornamentam uma mesa, por exemplo), oito personagens ao longo do

texto são classificadas, direta ou indiretamente, como tendo características de tal signo.

Dentre essas, estão figuras apenas mencionadas pelo narrador como Venância, o lírio do vale,

cuja participação limita-se à sobrinha de Brás Cubas, ou como o cabeleireiro filósofo de

Módena, mencionado apenas como a flor dos cabeleireiros e alguém sem opiniões para serem

ouvidas. Contudo, personagens centrais do romance são descritas com traços que remetem a

uma flor tais como o próprio Brás Cubas, Virgília, Quincas Borba, Eugênia entre outros.

A princípio, tal elemento não configuraria por si só algo de maior relevância ao longo

da narrativa, pois poderia se tratar apenas de uma forma elogiosa do narrador ao se referir a

determinadas personagens da obra. Entretanto, o primeiro estranhamento surge justamente

quando verificarmos que tais características positivas trazidas pelo signo da flor não refletem,

de fato, as ações executadas por cada uma das personagens principais da obra.

Uma dessas ‘flores’ construídas no romance é Quincas Borba. Personagem principal

de um romance homônimo publicado por Machado de Assis, nove anos após a publicação, em

livro, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba tem uma participação

importante na segunda metade do romance, como foi analisado anteriormente.

93

Contudo, com base na primeira aparição de Quincas no romance, temos acesso a

comportamentos cruéis da personagem no período de sua infância, sobretudo com pessoas de

classe social inferior à dele. Nunca é demais lembrar como o papel da infância ganha especial

atenção, principalmente por ser esse o período em que se molda o caráter das personagens,

segundo a premissa de que “o menino é o pai do homem” (p. 54). Vejamos agora a descrição

das brincadeiras feitas por Brás e Quincas, assim como, dos traços da personalidade de

Quincas Borba nesse período de sua vida:

Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida,

achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola,

senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e

trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que

nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas

nos morros do Livramento e da Conceição ou simplesmente arruar, à toa, como dous

peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer

de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele

escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que

fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos

meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. (p.

64-65)

A descrição acima é clara ao pintar Quincas Borba, flor de toda a cidade, como uma

criança muito ativa, de certo modo agressiva, e com tendências a uma posição hierárquica

superior em relação às outras crianças de seu convívio. Ironias a parte, principalmente se

considerarmos o futuro de mendigo (e posteriormente a loucura no fim de sua vida) como o

próprio narrador antevê, Quincas Borba nos é apresentado como uma criança afeita a

traquinagens. Destaca-se pela sua crueldade em relação aos animais, sobretudo se levarmos

em consideração a sugestão, graças ao uso do verbo caçar, de que ele procurava ninhos de

passarinhos para destruí-los, além da perseguição de lagartixas pela cidade do Rio de Janeiro.

Entretanto, tal fato, apesar de indicar traços de uma personalidade um tanto hostil, não

imputaria, de imediato, maiores desvios de caráter da personagem, justamente por essa ser

uma prática comum das crianças de sua época.

Entretanto, a passagem anterior à citação supracitada demonstra uma característica

singular da personalidade de Quincas Borba em sua infância, motivando, inclusive, a

afirmativa de que a personagem era uma flor. Voltemos a esta passagem do romance:

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página:

Ludgero Barata, - um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a

chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem.

Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, - umas

94

largas calças de enfiar -, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata

morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos

chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios,

malcriados, moleques. - Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém,

deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. (p. 64)

Nesse trecho do romance, quase em um tom saudosista, vemos emergir a verdadeira

natureza de Quincas Borba: uma criança tão diabo quanto o ‘menino-diabo’ Brás Cubas do

capítulo XI. Aproveitando-se do sobrenome de seu educador, além, é claro, de sua posição

social superior em relação ao seu mestre das primeiras letras, Quincas tortura

psicologicamente o seu professor com ‘pequenas peças’ ao longo da semana de aula. Tal

conduta, inclusive de forma recursiva, gera um abalo tamanho em Ludgero Barata que o

motiva a proferir insultos e repreensões a todos os alunos de sua turma, deixando ileso,

todavia, o verdadeiro responsável pela ‘brincadeira’.

Cabe aqui a menção ao modo dissimulado com que Quincas reage a tal episódio.

Enquanto os demais alunos se julgam injustiçados ou amedrontados pelos insultos de seu

mestre, Quincas se mantém alheio a essa situação. Nesse sentido, não obstante a crueldade,

como o autor o classifica, apropriando-se da voz de seu narrador, Quincas se mostra incapaz

de assumir os seus próprios atos, mantendo-se apartado de tal cenário, característica essa,

transportada para a sua vida adulta como filósofo humanitas. Assim, sua descrição em nada

lembra a de uma flor.

Outra personagem descrita como flor ao longo do romance é Eugênia. Embora tenha

sua participação limitada a apenas alguns capítulos do romance, ela é de fundamental

importância no contraponto entre as personagens femininas já analisadas em nossa pesquisa.

Filha de Dona Eusébia e do glosador Vilaça, Eugênia carrega a alcunha de ‘flor da moita’,

apelido surgido pelo fato do ato de sua concepção ter se dado em uma escapadela de sua mãe

com o glosador Vilaça numa moita no jardim, durante a festa dada pela família de Brás

Cubas, por ocasião da queda de Napoleão Bonaparte.

Tímida e acanhada (diferentemente de Marcela, e da ‘nobre’ Virgília), Eugênia finge-

se de indiferente aos elogios do recém-chegado da Europa, Brás Cubas. É interessante notar

como o narrador descreve a cena na qual os dois são apresentados pela mãe de Eugênia:

Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas

emendou-se logo, e ficou como dantes, erecta, fria e muda. Em verdade, parecia

ainda mais mulher do que era; seria criança nos seus folgares de moça; mas assim

quieta, impassível, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância

lhe diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-

lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria, com os olhos

95

fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas

de ouro e olhos de diamante... (p. 97-98)

Ao contrário de todas as outras personagens femininas do romance, Eugênia ostenta

um ar de mulher respeitável para os padrões da época, não só pela sua “graça virginal”, mas,

por sua compostura de mulher casada que dita o tom de respeitabilidade de toda a cena. Nesse

aspecto, Eugênia é a única personagem feminina à qual não poderíamos imputar qualquer

mácula moral (tal como Virgília e Marcela, por exemplo). Em contraponto, o único fato,

inclusive recorrente a todos as personagens da narrativa, que deporia contra a personagem

seria justamente seu desejo de mudança de posição social por meio do casamento, como deixa

subentendido o último período da citação. Nada de tão ostensivo a ponto de macular todos os

valores morais carregados pela personagem, já que tal desejo é, inclusive, mais imputado à

figura de Dona Eusébia que a todo custo tenta aproximar Eugênia de Brás Cubas.

Até aqui, temos o perfeito estereótipo de ‘boa moça’ muito frequente nas construções

românticas: uma donzela pura, comportada, tímida e de pouquíssimas palavras, sendo, ainda

assim, atraente aos olhos de Brás. Para os padrões da época, essa seria a pretendente perfeita

para uma relação conjugal (vale lembrar o fato de Bento e Brás Cubas já terem, nesse ponto

da narrativa, se encontrado para tratarem do assunto do casamento de Brás e de suas

implicações para a vida pública). Eugênia, porém, possui um defeito físico que a condena

pelo resto de sua vida:

Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia

coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A

mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:

- Não, senhor, sou coxa de nascença.

Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a

simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. [...]

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma

compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é

às vezes um imenso escárnio. Porque bonita, se coxa? porque coxa, se bonita?

Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de

noite, sem atinar com a solução do enigma. (p. 101-102. Negritos acrescidos)

Se analisarmos as personagens da obra, todas teriam certa participação na teia de

interesses tecidas ao longo do romance, além do que, todos possuíam algum valor; algo para

‘dar em troca’ nas relações capitalistas nas quais se inseriam. Entretanto, Eugênia apenas

possuía a sua pureza como ‘dote’ para a entrada nesse ‘mercado capitalista’. Desse modo,

como o valor da pureza é irrisório dentro de uma sociedade corroída pelo interesse, a

96

personagem é relegada, por causa de sua deficiência, ao espaço no qual foi concebida: o

espaço da exclusão da moita.

Quanto ao seu defeito físico, é importante refletir sobre o papel das personagens

coxas, principalmente se levarmos em conta a mitologia grega. O ato de coxear pode

significar, mitologicamente, tanto um sinal de fraqueza quanto de desequilíbrio espiritual, mas

não tem, necessariamente, relação a algo da ordem moral. Além disso, o coxear seria o preço

a se pagar por ir contra um poder estabelecido (no caso da mitologia, de um deus ou das

moiras), sendo o exemplo mais aclamado dessa natureza a própria saga de Édipo.

Considerando essa definição de ir contra um poder estabelecido, podemos verificar

que Eugênia vai contra os preceitos pautados nas relações de interesses de uma entidade tão

poderosa quanto uma divindade: o poder avassalador da sociedade burguesa. Sendo assim,

pela vontade hegemônica e incontestável da sociedade de interesses, Eugênia, além de não

possuir nada valorizado nessas teias capitalistas, tem que pagar, na própria carne, a ofensa de

ir contra as relações ocorridas em seu entorno pela metáfora simbólica de seu coxear.

Em suma, desde o principio de sua aparição no romance, naquele fatídico episódio de

1814, Eugênia, antes mesmo de nascer, já estava condenada ao esquecimento e à solidão do

espaço de sua moita, pois não tendo uma beleza marcante ou uma posição social privilegiada,

mesmo sendo uma flor, ela também é deteriorada pelo verme controlador dessa estrutura

social por não ter nada a oferecer.

Temos, por fim, a descrição do signo flor relativo ao próprio Brás Cubas. As suas

aproximações com tal elemento podem ser observadas com base em seu nascimento como a

flor oriunda daquela terra e daquele estrume. Além disso, é associada a Brás Cubas uma

doença caracterizada como uma flor amarela: a hipocondria, doença que aflige a personagem

até o fim de sua vida. Tal elemento surge pela primeira vez na narrativa no episódio descrito

no capítulo XXV, Na tijuca:

Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a

desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um

cheiro inebriante e sutil. - "Que bom que é estar triste e não dizer cousa nenhuma!" -

Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em

mim um eco, um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um

tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos e o espírito ainda mais cabisbaixo

do que a figura, - ou jururu, como dizemos de galinhas tristes. (p. 89. Negritos

acrescidos)

A hipocondria, grosso modo, é uma patologia psicológica associada a um

comportamento compulsivo em relação à perda do próprio estado de saúde, frequentemente

97

acompanhada de sintomas que não podem ser atribuídos a nenhuma doença orgânica. De

forma semelhante, isso acontece com Brás, pois, a princípio, nenhuma moléstia afetava a

saúde da personagem. Todavia, ao observamos os contextos nos quais a flor amarela

desabrochava, percebemos uma peculiaridade interessante. Distante de ser uma doença

natural e que acarretaria a perda de sua saúde física, a flor amarela no romance sempre está

associada a uma perda de bens materiais da personagem. Nessa perspectiva, Brás sempre

sofre uma pressão, em maior ou menos grau, da perda de seu patrimônio, fato subentendido,

por exemplo, na renúncia descrita na citação anterior na qual Brás renega, temporariamente, a

sua posição nas relações burguesas tecidas até então e busca refúgio na Tijuca, local afastado

da efervescência da cidade à qual estava acostumado.

Além dessa cena, a flor da hipocondria surge no episódio do furto de seu relógio pelo

então amigo Quincas Borba, como descrito na cena abaixo:

Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do

furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão...

Desde a sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e

então jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu

queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o encontro do

Quicas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não qual fora deveras, mas um

passado roto, abjeto, mendigo e gatuno. (p. 139)

Outro elemento interessante é o fato da flor amarela não ter nenhuma natureza

hereditária, fato este, exposto na cena de reconciliação entre os irmãos Cubas, na qual o

narrador nos confessa:

Os olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e mórbida. Que

importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lho com

ternura, com sinceridade... Súbito, ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um

anjinho de cinco anos. (p. 166)

Do mesmo modo, ao longo de todo o romance, vemos que, em apenas uma ocasião a

flor amarela do senhor de escravos perde destaque para outra flor, menos ‘mórbida’: o

reconhecimento de si pelo próximo.

Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por

diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros

homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...

E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em

pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão

para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida - o amor da nomeada,

o emplasto Brás Cubas. (p. 95-96. Negritos acrescidos)

98

Ora, como visto na citação acima, além da referência ao emplasto Brás Cubas, o

único remédio capaz de curar esse mal que assola a mente de Brás Cubas é o desejo do

reconhecimento público, meio para conseguir mais e mais bens materiais. Nesse caso, não é

mera coincidência o fato de esse ‘chocalho’ apresentado à personagem ser a carreira política

proporcionada pelos planos de casamento com Virgília (que por si só já demonstra uma

espécie de ruína social ao tratar das relações privadas e particulares, tal como o casamento, a

partir da lente da opinião pública e do jogo de interesses).

Em última análise, temos, na metáfora da flor amarela, a primeira mostra da

verdadeira doença de Brás, uma doença que não é realmente física, mas moral e que assola

não só seu corpo e sua mente, mas todo um corpo social: a cobiça. A esse respeito, vale a

lembrança do início do último capítulo do romance em que o narrador, afirma que a

hipocondria não o acompanhou para o túmulo, o que se esperaria de uma doença individual,

mas ela está também em nós, leitores de suas memórias/romance, que compartilhamos das

mesmas relações sociais do narrador:

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na

primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas,

que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me

darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a

genuína e direta inspiração do céu. O caso determinou o contrário; e aí vos ficais

eternamente hipocondríacos. (p. 251. Negritos acrescidos)

Em suma, a flor Brás Cubas encontra terreno fértil (união de terra e estrume) para seu

desenvolvimento (a)moral dentro de toda a narrativa: um espaço marcado por uma sociedade

em plena decomposição.

Ainda sobre a renúncia de Brás aos bens materiais, outro ponto que nos chamou a

atenção nesse episódio foi a alusão à frase atribuída ao poeta Shakespeare. Esse fato não

deveria, a princípio, provocar nenhuma estranheza, pois o modo como Machado apropria-se

da literatura, sobretudo os clássicos universais, é deveras evidente em sua obra. Aludir,

diretamente a uma frase de uma peça de Shakespeare, não seria nenhum absurdo dada a

importância desse autor para o cânone universal e para a própria formação de Machado de

Assis como escritor. Entretanto, a peça escolhida para esse trecho causa certa estranheza. A

passagem mencionada por Brás, como bem apontam Senna (2014) e Eugênio Gomes (2008),

pertence a uma peça chamada As you like it (Como gostais), encenada pela primeira vez por

volta de 1600. O que nos chama atenção nessa escolha, é o fato dessa peça não pertencer ao

grupo das obras mais conhecidas e aclamadas do dramaturgo inglês. Contudo, o enredo de

99

Como gostais não só é muito semelhante ao momento vivido por Brás no instante da leitura

mencionada por ele, mas remonta, inclusive, à própria estruturação do romance feita por

Machado através das relações cunhadas por Brás Cubas ao longo da narrativa.

Ao ler a peça de Shakespeare, Brás sente um agradável eco em seu interior motivando-

o, como os duques e personagens da peça em questão, a permanecer isolado no clima

bucólico da Tijuca do século XIX, a fim de esquecer os eventos relacionados à morte de sua

mãe. No que tange à proposta textual do romance e sua relação com a escolha da referida

peça, de acordo com Gomes (2008), outra aproximação, de forma muito mais direta e

conclusiva, materializa-se na epígrafe inicial da obra (na Revista Brasileira) que fora retirada

dessa peça de Shakespeare. Embora essa epígrafe tenha sido substituída mais tarde, na versão

em livro, temos a primeira noção da influência dessa leitura na proposta textual imaginada por

Machado de Assis (1999) para a composição de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Vejamos não só a dedicatória original do romance, mas também o comentário feito por

Gomes (2008) a respeito da alteração:

Outra orientação ética que Machado de Assis encontrou em Shakespeare foi a que

advém da frase de Jacques, o Melancólico, com a qual abriu as Memórias póstumas

de Brás Cubas, na publicação da Revista Brasileira, fazendo-a acompanhar da

respectiva versão: "I will chide no breather in the world but myself; against whom

I know most faults" (Não é meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim

somente, em quem descubro muitos senões). Shakespeare, As You Like It, ato III,

cena ii ) Como Brás Cubas subverteu logo a seguir a orientação que deparara na

declaração de Jacques – um ascendente de Hamlet na galeria shakespeariana de

melancólicos insubmissos – resvalando para a maledicência e a crítica, não apenas

de si mesmo, mas de todos os "fôlegos vivos" do mundo de seus dias, Machado de

Assis conveio posteriormente em evitar essa incongruência de seu personagem e

suprimiu a expressiva epígrafe na edição em livro. (GOMES, 2008, p. 2. Negritos

acrescidos)

Como bem observado pelo crítico, a retirada da epígrafe feita por Machado de Assis

(1999) no primeiro negrito destacado teve por intenção corrigir um equívoco na proposta

textual do romance, adequando a figura do narrador à desconstrução da burguesia feita na

obra como um todo. Nesse caso, reduzir as mazelas a apenas um indivíduo, Brás Cubas,

isentando o ‘fôlego vivo’ da sociedade, seria uma grande incoerência já que, na tessitura

romanesca machadiana, sujeito e sociedade andam em perfeita sintonia.

Dito isto, encontramos mais uma vez uma grande disparidade entre o que

consideraríamos como características positivas das flores e as características das personagens

descritas no romance de modo geral, pois, recorrendo ao dito popular, elas não eram, de fato,

‘flores que se cheirassem’ devido à perversidade de suas relações. Contudo, se analisarmos a

100

simbologia das flores podemos verificar uma explicação coerente para tal recorrência, em

consonância com o projeto estético adotado por Machado.

Segundo o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009), as

flores são símbolos muito difundidos entre as culturas antigas ao redor do mundo, geralmente

portadoras de elementos positivos. Entretanto, a definição dada em relação à cultura grega nos

chama a atenção:

Associadas analogicamente às borboletas, tal como elas, as flores representam

muitas vezes as almas dos mortos. Por isso, a tradição mitológica grega diz que

Perséfone, futura rainha dos infernos, foi arrebatada por Hades (Plutão) nas planícies

da Sicília, quando se divertia com suas companheiras a colher flores.

Com efeito, muitas vezes a flor apresenta-se como figura-arquétipo da alma, como

centro espiritual. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 438-439)

De acordo com tal simbologia, antes de representar qualquer elemento a priori

positivo, as flores representam a alma humana de modo geral, seja ela boa ou corrompida.

Agregado a isso, as flores carregam consigo o estigma muito usado no gênero de pintura das

‘naturezas mortas’ de portadoras de uma beleza aparente, mas que degrada rapidamente com

o passar do tempo, demonstrando a efemeridade de sua composição.

Nesse ponto, ocorre com as personagens do romance machadiano o mesmo jogo de

aparências: assim como as flores se degradam com o passar do tempo, apesar de sua aparência

remontar a algo belo, as personagens da narrativa, a despeito de sua aparência/ posição social,

também se decompõem por meio das relações vivenciadas por elas ao longo do romance.

Além disso, não seria absurdo pensar que o fato de Brás ter nascido daquela terra e daquele

estrume reafirma ainda mais a conexão entre ele e o terreno apodrecido de sua origem. Ora, se

estamos presenciando a encenação de uma sociedade regida (e corrompida) pelas aparências,

a única coisa que poderíamos esperar desse solo pútrido seriam flores-personagens tão

corroídas e deterioradas quanto o terreno social no qual elas nascem. Brás, a flor do estrume,

Quincas, a flor da cidade, Eugênia, a flor da moita, todas elas possuem traços de uma corrosão

moral, guiada pelo verme das relações regidas pelo capital.

Cabe aqui, ainda, referência a um momento muito particular no romance que é a

interrupção da gestação de Virgília, de um filho que poderia, segundo a burguesa, ser o fruto

da relação (adúltera) entre ela e Brás Cubas:

Onde estão elas, as flores de antanho? Uma tarde, após algumas semanas de

gestação, esboroou-se todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se o

embrião, naquele ponto em que se não distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a

101

notícia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala, e acompanhou o médico à

alcova da frustrada mãe. Eu encostei-me à janela, a olhar para a chácara onde

verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam elas, as flores de antanho? (p. 186)

O título desse capítulo, Flores de Antanho, segundo o banco de referências disponível

no site machadodeassis.net, coordenado por Martha de Senna (2014), parece tratar de uma

alusão ao refrão de uma balada francesa intitulada "Ballade des dames du temps jadis”

(Balada das damas dos tempos idos), de François Villon (2014). Como exposto no próprio

banco de dados, Machado de Assis (1999) faz uma pequena alteração no refrão do poema,

trocando o signo “neves” por “flores”. Vejamos o refrão do poema:

Dizei-me em que terra ou país

Está Flora, a bela romana;

Onde Arquipíada ou Taís,

que foi sua prima germana;

Eco, a imitar na água que mana

de rio ou lago, a voz que a aflora,

E de beleza sobre-humana?

Mas onde estais, neves de outrora?16

(Villon, 2014. Negritos acrescidos)

Essa modificação feita por Machado pode ter sido motivada, em primeiro lugar, pelas

inúmeras referências aos elementos da natureza, como flora, rio, lago, presentes na própria

balada de Villon (2014). No entanto, se tomarmos a perspectiva adotada ao longo dessa

dissertação no que tange ao signo flor, a alteração feita por Machado também reflete a

característica das flores-personagens como elementos pertencentes a um determinado terreno

social. Por esse viés, o filho da relação adúltera mantida por Brás Cubas e Virgília

representaria, também, a continuação da linhagem da família Cubas, sendo tal criança, caso

tivesse realmente nascido, mais uma flor no galho dessa família corroída.

16

Segue a balada de Villon (2014) traduzida por Modesto de Abreu:

Dizei-me em que terra ou país/Está Flora, a bela romana;/Onde Arquipíada ou Taís,/que foi sua prima

germana;/Eco, a imitar na água que mana/de rio ou lago, a voz que a aflora,/E de beleza sobre-humana?/Mas

onde estais, neves de outrora?

E Heloísa, a mui sábia e infeliz/Pela qual foi enclausurado/Pedro Abelardo em São Denis,/por seu amor

sacrificado?/Onde, igualmente, a soberana/Que a Buridan mandou pôr fora/Num saco ao Sena

arremessado?/Mas onde estais, neves de outrora?

Branca, a rainha, mãe de Luís/Que com voz divina cantava;/Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz/E a que no Maine

dominava;/E a boa lorena Joana,/Queimada em Ruão? Nossa Senhora!/Onde estão, Virgem soberana?/Mas onde

estais, neves de outrora?

102

Assim, a alteração do título do capítulo nomeia indiretamente o filho de Brás como

sendo a “flor de antanho” (ou outrora, em algumas traduções do verso), reafirmando o aspecto

sugerido na construção das outras personagens-flores da obra, que é o de continuidade das

relações de interesses presentes na sociedade burguesa retratada no romance. Em resumo, o

filho de Brás, que nasceria da mesma terra e do mesmo estrume de onde nascera o seu pai,

também estaria destinado a uma herança de relações corroídas e decompostas pelos vermes

que corromperam toda uma esfera social. Não por acaso, o único feito louvável executado

pelo narrador ter sido justamente não ter tido filhos, pois assim, quebraria essa herança

maldita da qual ele mesmo fazia parte.

Apresentada a junção desses dois signos vistos recorrentemente nas descrições das

cenas de todo o romance, verificamos como esses dois elementos, tão dicotômicos a princípio,

começam a se aproximar na composição formal do romance em análise. Antes de

prosseguirmos, cabe uma menção ao modo de estruturação do narrador machadiano em

questão. Como vimos anteriormente na pesquisa, o defunto narrador Brás Cubas faz questão

de demarcar a separação primordial entre o seu espaço de narração, além-túmulo, e sua vida

em sociedade. No capítulo teórico deste trabalho, discutimos o modo como o espaço só pode

ser de fato concebido se tomarmos como parâmetro a rede de relações sociais (histórias e

trajetórias) das personagens envolvidas em um determinado contexto social. Dessa maneira, a

separação entre os dois espaços do narrador torna-se compreensível justamente porque o

espaço além-túmulo não possui as mesmas relações sociais do período em que ele estava

vivo.

Por outro lado, isso não quer dizer que tenha havido, por parte do narrador, qualquer

movimento de remorso ou de ressentimento pelos atos cometidos em vida. Muito pelo

contrário, o espaço além-túmulo é justamente aquele no qual a degradação humana pode ser

mostrada, como demonstrado na simbologia das roupas já estudada anteriormente. Dessa

forma, o narrador é construído com a finalidade de sentir prazer em reviver cada experiência,

cada estratagema de enganação do mais fraco para tirar proveito de determinada situação.

Com uma franqueza que nos desarma perante as crueldades de uma sociedade regida pelo

lucro, o autor implícito expõe, nessa importante estratégia textual configurada no discurso de

Brás Cubas, todo um legado de degradação da alma humana e de seu corpo social.

Partindo disso, os elementos pontuados na narrativa pelo signo da corrosão mostram-

se extremamente pertinentes por compor, em seus vários planos textuais, uma espécie de

ponte entre o mundo ‘social’ dos vivos, lar das flores-personagens, e a decomposição do

103

mundo dos mortos. Nesse caso, aspectos do mundo dos mortos penetram no espaço dos vivos

graças à natureza das relações efetuadas pelas flores-personagens.

No plano textual do enredo do romance, por exemplo, verificamos, no capítulo

anterior, como as vestes usadas por Quincas Borba em sua vida como mendigo espelham,

quase como um fantasma, toda a deterioração das vestes usadas por Brás no mundo além-

túmulo, causando, inclusive, um extremo desconforto em Brás Cubas quando ele se depara

com a imagem corroída não só do outro, mas de si próprio.

Ao adentrarmos no plano do narrador, a combinação entre o mundo dos vivos e do

além-túmulo aumenta consideravelmente. Das personagens-flores do romance, Brás Cubas é

o mais referido pelo signo da corrosão. Essa proporção justificaria, a princípio, a utilização da

epígrafe da versão publicada na Revista Brasileira, focalizando os inúmeros ‘senões’ da

existência de Brás. No entanto, ao verificarmos mais atentamente as cenas em questão,

notamos que, longe de estarem apartadas das relações sociais (ou “fôlegos dos vivos”), as

ações executadas por Brás fazem parte desse processo de embrutecimento, já comentado

anteriormente, pelo qual o narrador caminha durante sua formação. Nesse emaranhado de

relações, torna-se impossível (uma tarefa que por si só já é complicada) separar, como bem

apontam os estudiosos apresentados no capítulo teórico deste trabalho, o que estaria no campo

do indivíduo, espaço privado, morada de sua individualidade, e o campo social, espaço das

relações públicas.

Em síntese, percebemos como vai sendo tecida, ao longo de todo o romance, a partir

das histórias e trajetórias das personagens-flores, uma teia de corrosões nos mais diferentes

níveis e intensidades. Tal como nos é apresentada na teoria bakhtiniana, verificamos a

estratégia primordial de que se vale Machado de Assis (1999) para a composição de seu

romance: a de falar de dentro da palavra de suas personagens, através da encenação de

seu discurso situado em um dado momento histórico social.

Ao ouvir a voz de um narrador cujo discurso encontra-se tão corroído como suas

vestes, observamos como a corrosão textual culmina não só na degradação do sujeito ficcional

construído como enunciador de sua classe, Brás Cubas, mas se espalha por toda uma cadeia

de instituições sociais ao longo da narrativa, encenando assim, a própria decomposição do

corpo social.

Dessa maneira, instituições símbolos da doutrina burguesa, como o casamento, torna-

se uma mera negociação comercial feita à revelia de qualquer relação sentimental ou amorosa.

O próprio amor, tão enaltecido e glorificado pela ideologia romântica, é corroído no interior

104

de suas relações, como no caso da prostituta Marcela, que mensurava seu ‘amor’ em contos

de réis, ou ainda, na relação adúltera entre Brás Cubas e Virgília, um amor colocado em

segundo plano, a fim de se buscar a proteção da posição social do casal. Instituições

fundamentais na própria constituição nacional, como a Igreja e o Exército, são corroídas de

dentro, a partir da perversão das relações estabelecidas pelos tios de Brás Cubas. Nem mesmo

a concepção que temos da morte escapa da corrosão do verme social, como evidenciado, por

exemplo, no episódio da morte precoce de D. Eulália, posta em segundo plano pelo próprio

pai, mais preocupado com a ausência das pessoas no funeral de sua ‘querida’ filha do que

propriamente com a sua perda, como mostra a passagem abaixo:

A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia uma ruína.

Quinze dias depois estive com ele; continuava inconsolável, e dizia que a dor grande

com que Deus o castigara fora ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens.

Não me disse mais nada. Três semanas depois tornou ao assunto, e então confessou-

me que, no meio do desastre irreparável, quisera ter a consolação da presença dos

amigos. Doze pessoas apenas, e três quartas partes amigos do Cotrim,

acompanharam à cova o cadáver de sua querida filha. E ele fizera expedir oitenta

convites. Ponderei-lhe que as perdas eram tão gerais que bem se podia desculpar

essa desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo incrédulo e

triste.

- Qual! - gemia ele -. Desampararam-me.

Cotrim, que estava presente:

- Vieram os que deveras se interessam por você e por nós. Os oitenta viriam por

formalidade, falariam da inércia do governo, das panaceias dos boticários, do preço

das casas, ou uns dos outros...

Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:

- Mas viessem! (p.220)

Tal como aponta Duarte (2007), Machado de Assis (1999) não só mata o senhor de

escravos, mas o faz falar, pois, só dessa maneira, pelo próprio discurso de uma classe corroída

pelo verme das relações regidas pelo capital, é que temos acesso a essa brilhante encenação da

palavra do romance que nos mostra uma sociedade em pleno processo de decomposição.

Dessa forma, segundo a perspectiva adotada pelo romance em análise, encena-se, tal

como a metáfora do corcel romântico já discutido, o próprio movimento de ruptura na forma

de representar a realidade, vista agora não pela lente idealizada do romantismo, mas pelo viés

do realismo, em que se escancaram todos os farrapos e flagelos das relações movidas pelo

capital.

Nessa proposta de desconstrução empreendida por Machado de Assis (1999),

percebemos como a primazia desses dois elementos, o verme (corrosão) e a flor, funcionam

como uma perfeita engrenagem crítica justamente por lançar luz a um jogo de relações

encobertas pelo manto da naturalização da brutalidade, corroendo todo um sistema falido de

105

relações, perversas em sua gênese, através da palavra posta em movimento pela encenação

literária.

Por essa perspectiva, é importante reiterar esse movimento sutil presente na

composição desse narrador ardilosamente construído de forma ambivalente, pois ele não só

pode falar sobre determinada situação, mas, principalmente, mostrar como tal cenário se

desenrola através de um discurso extremamente ácido. O que nos interessa aqui é justamente

o movimento crítico que não parte de fora para dentro da narrativa, mas, sim, de dentro das

pequenas flores-personagens (e de suas histórias e trajetórias) degradadas e corroídas,

culminando na corrosão do corpo social totalmente apodrecido.

Duas passagens muito significativas ainda merecem destaque: a junção entre Brás (flor

nascida do estrume) e sua classe (corpo social) como um sujeito, mesmo que ficcional, que

fala de um determinado lugar e de um determinado contexto socio-histórico. A primeira delas,

na qual Brás Cubas, ao ler os epitáfios no cemitério, começa a perceber a relação entre a

podridão e o seu meio social no capítulo CLI, Filosofia dos epitáfios, e a cena final do

romance, em que o narrador expõe como o seu maior legado o fato de não ter tido filhos,

quebrando metaforicamente, a herança maldita e miserável de sua classe:

Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos

epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto

egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que

passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na

vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos. (p. 244)

Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua

nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque

ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a

derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a

nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (p. 251. Negritos acrescidos)

Além disso, a corrosão aqui apresentada se instaura até mesmo na própria composição

formal da obra. O uso de capítulos compostos apenas por sinais de pontuação, interrupções

bruscas no transcorrer ‘linear’ do texto, apropriação de variados gêneros discursivos não

literários na tessitura do romance, inserção de vazios e lacunas ao longo de toda a narrativa

formam um somatório de estratégias textuais que, como já discutido anteriormente nesse

trabalho, parecem apontar, NA/PELA palavra romanesca, para um deslocamento do gênero

romanesco tal como era produzido no período machadiano, o que acarretou, inclusive, no

próprio estranhamento dos estudiosos e leitores contemporâneos a Machado de Assis (1999).

106

Em última análise, ao longo da leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas nos

deparamos com um romance que encena, desde sua forma até o cenário social descrito, os

‘rasgões’ e ‘remendos’ da roupa de seu defunto narrador, apontando para a própria natureza

da vida social regida pelo verme das relações de interesse. Tal como um epitáfio de uma

classe, o livro nos mostra a cada nova lacuna e vazio na estrutura do texto, todo um processo

de corrosão do discurso compartilhado pelo narrador e sua classe, revelando-se, por esse viés,

como um verdadeiro retrato de uma classe em pleno processo de decomposição.

107

5 (IN)CONCLUSÃO: FLORES EM RUÍNAS: UM CORPO SOCIAL DECOMPOSTO

Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas

vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam

à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a

arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou.

Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta. (Brás Cubas

– Cap. IV A ideia fixa)

Nas reflexões empreendidas ao longo deste trabalho, à luz dos conceitos de espaço

como um construto relacional, buscamos analisar, através do discurso-palavra romanesco,

como os espaços burgueses foram construídos com base nas relações de poder corroídas e

deterioradas, presentes em uma das obras mais relevantes da literatura brasileira: Memórias

Póstumas de Brás Cubas.

Caminhamos pelas ruas e salões fluminenses do século XIX através das memórias

póstumas de um defunto autor. Observamos as bexigas de uma decadente prostituta, metáfora

de uma vida de relações regidas pelo interesse, e descobrimos, no susto de uma alucinação,

que tais bexigas também corroeram e devastaram o rosto e, sobretudo, a moral de uma

importante burguesa da época. Contemplamos a exibição, no espaço da campa, dos trapos

velhos, rasgões e remendos de uma vida burguesa em completa decomposição.

Essas foram algumas das inquietações com as quais nos deparamos a cada novo passo

na leitura analítica dos espaços ocupados pela elite fluminense brasileira do século XIX.

Nessa incrível leitura crítica da sociedade de seu tempo, Machado de Assis (1999) constrói

nesse romance, um narrador que consegue, não só demonstrar os próprios rasgões e trapos

velhos de sua existência, mas estendê-las para toda uma classe que faz da brutalidade das

relações e da exploração do outro o seu principal meio de ascensão social.

Destarte, vemos colocada na voz do narrador, representante de sua classe, variadas

nuanças e tons a fim de corroer tal discurso no interior de suas relações guiadas pelo verme

das relações regidas pelo capital. Como bem aponta Duarte (2007), Machado de Assis (1999)

não só mata o senhor de escravos, mas o faz falar, justamente para expor, literariamente, a

degradação e as mazelas de um corpo social em ruínas.

Sendo assim, ao nos mostrar diversas cenas das variadas “flores-personagens” atuantes

nesse corpo social corrompido, percebemos como as memórias póstumas desse defunto autor

tão melancólico e debochado representam não uma simples memória social, como alude a

epígrafe original do romance (em sua publicação na Revista Brasileira), mas a memória

108

coletiva (cf. Duarte, 2007) de todo uma classe senhorial devastada pelo verme de suas

próprias relações.

Além disso, essa crítica social tão ácida de Machado de Assis (1999) só seria, de fato,

possível, graças a um movimento de imersão nas várias histórias e trajetórias das personagens

que caracterizam os espaços ocupados pela burguesia do século XIX. Desse modo, o autor

opta por iniciar a sua proposta textual de desconstrução do discurso burguês não focalizando o

meio social a priori, o que empobreceria a narrativa, mas, sim, efetuando uma formidável

leitura da alma humana e da sociedade corrompida que a cerca de dentro das cenas de

brutalidade descritas, NA e PELA palavra-discurso romanesca encenada. Questiona, assim,

essa estrutura social vista com ‘ares de normalidade’ na perspectiva do narrador do romance,

mas que se revela totalmente corroída e degradada por relações abjetas das mais distintas

naturezas.

Para nosso espanto, percebemos na tessitura da obra um diálogo possível com Charles

Baudelaire (2008) e suas Flores do Mal justamente por essa obra abrigar a mesma dicotômica

aproximação entre as flores e a corrosão presente no romance machadiano. As flores

construídas na obra machadiana em análise são nascidas já em pleno processo de

decomposição, fruto de relações sociais deterioradas pelo verme que corrói não só o a fria

carne do cadáver de seu protagonista mor, Brás Cubas, mas todo um corpo social apresentado

no romance, desde suas personagens-flores, até as mais sacralizadas instituições na sociedade

burguesa.

Por fim, como em todo bom romance, ao fechar a leitura de Memórias Póstumas de

Brás Cubas, obtivemos muito mais questionamentos do que propriamente respostas. A leitura

dos espaços narrativos nos proporcionou apenas uma porta de entrada (das múltiplas

possíveis) para dentro das intricadas cenas enunciativas do romance escolhido como corpus

desta pesquisa. Talvez a única grande certeza a que pudemos chegar ao fechar,

provisoriamente, o romance seja a inquietante verdade de que, através da leitura de suas

relações, as Memórias Póstumas de Brás, escritas há mais de 100 anos, conseguem ainda

hoje, de forma tão brilhante, ler não só a nossa sociedade, tão assolada pelo mesmo verme

roedor de um século atrás, mas também toda a complexidade da natureza da alma humana,

tornando essa palavra-discurso romanesca, sempre universal a cada nova leitura.

109

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