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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
Bruno Henrique Muniz Souza
Bolsista CAPES II
DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO
Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis
Belo Horizonte
2014
Bruno Henrique Muniz Souza
DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO
Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Ivete Lara Camargos
Walty
Belo Horizonte
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Souza, Bruno Henrique Muniz
A848m.Ys Das flores ao verme: cenas de corrosão : análise dos espaços burgueses em
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis / Bruno Henrique
Muniz Souza. Belo Horizonte, 2014.
112f.:
Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty
Dissertação (Mestrado)- Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Mémorias Póstumas de Brás Cubas -
Crítica, interpretação, etc.. 3. Literatura brasileira - Crítica e interpretação, etc.. 4.
Espaço na literatura. 5. Classe média. 6. Melancolia na literatura. I. Walty, Ivete
Lara Camargos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de
Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 869.0(81)-3
Bruno Souza
DAS FLORES AO VERME: CENAS DE CORROSÃO
Análise dos espaços burgueses em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em Literaturas de Língua
Portuguesa.
__________________________________________________________________________
Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) – PUC Minas
__________________________________________________________________________
Eduardo de Assis Duarte (UFMG − Letras)
__________________________________________________________________________
Audemaro Taranto Goulart (PUC Minas − Letras)
__________________________________________________________________________
Melânia Silva de Aguiar (PUC Minas − Letras) – Suplente
Belo Horizonte, 25 de abril de 2014.
AGRADECIMENTOS
À professora Ivete, pela confiança em meu trabalho desde os primeiros anos da minha
vida acadêmica até agora, com as valiosas orientações ao longo deste estudo.
Aos integrantes do grupo “Da rua: olhares sobre histórias da literatura brasileira” pelo
estreito diálogo ao longo de toda a minha trajetória acadêmica.
Com especial gratidão, aos professores do Programa de Graduação e Pós-graduação,
cujos ensinamentos, desde o ‘triângulo da enunciação’ até as teorias vistas em meu mestrado,
ecoam a todo instante nesta pesquisa.
À CAPES, pela bolsa de pesquisa que tornou possível a realização deste trabalho.
Aos meus pais e irmão, pelo apoio incondicional e por me mostrarem o valor da
leitura e dos estudos.
Aos meus amigos, Valéria, Rodrigo, Vinícius, Lorena, Letícia, Lilian, Guilherme por
tornarem essa caminhada muito mais tranquila ao me fazerem perceber que eu nunca
caminhava só.
À Dayse, minha amada namorada, com seus belos ‘olhos de ressaca’ que iluminam
não só este trabalho, mas principalmente a minha existência.
À minha amada família.
Aos meus amados avós Sebastião e Araci (in memorian).
Ao grande Machado de Assis, bruxo do Cosme velho, por nos fazer refletir sobre os
vários vermes presentes em nossa sociedade e, principalmente, presentes em nosso próprio
ser.
Remorso Póstumo
Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,
Em teu negro e marmóreo mausoléu, e não
Tiveres por alcova e refúgio senão
Uma cova deserta e uma tumba chuvosa;
Quando a pedra, a oprimir tua carne medrosa
E teus flancos sensuais de lânguida exaustão,
Impedir de querer e arfar teu coração,
E teus pés de correr por trilha aventurosa,
O túmulo, no qual em sonho me abandono
- Porque o túmulo sempre há de entender o poeta -,
nessas noites sem fim em que nos foge o sono,
Dir-te-á: "De que valeu, cortesã indiscreta,
Ao pé dos mortos ignorar o seu lamento?"
- E o verme te roerá como um remorso lento.
Charles Baudelaire
RESUMO
Esta dissertação buscou analisar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis, a partir das relações burguesas ali encenadas, tomando o conceito de espaço como
operador de leitura. Nessa perspectiva, o presente trabalho procura, pois, demonstrar como o
espaço narrativo construído por Machado de Assis conduz a um determinado olhar sobre a
relação do homem consigo mesmo e com a sociedade que o cerca. Desse modo, observam-se
na tessitura do romance, elementos textuais que demonstram rasgões e farrapos na encenação
da trágica e melancólica existência humana e de seu meio social. Sendo assim, a recorrência
do uso de signos de decomposição nos revela uma corrosão não só do simples indivíduo, mas
de toda uma estrutura social na qual ele está inserido, onde o verme das relações movidas pelo
capital corrói e deteriora as instituições sociais e suas relações de poder.
Palavras-chave: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Espaço. Flores. Verme. Corrosão e
decomposição.
ABSTRACT
This study aimed to analyze the novel The Posthumous Memoirs of Bras Cubas, by Machado
de Assis, from the bourgeois relations staged in it and taking the concept of space as a reading
tool. From this perspective, this work seeks to demonstrate how narrative space, as presented
by Machado de Assis, leads to a determined look on man's relationship with himself and on
the society that surrounds him. Thus, we observe in the composition of the novel, textual
evidence to show tears and tatters of tragic and melancholy in the staging of the human
existence and its social environment. Therefore, the recurrence of the use of signs of
decomposition reveals a corrosion not only the single individual, but rather in the whole
social structure in which people are inserted and in where the worm of the relations moved by
the capital corrodes and deteriorates social institutions and its relations of power.
Keywords: The Posthumous Memoirs of Bras Cubas. Space. Flowers. Worm. Corrosion and
decomposition.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 8
2 ESPAÇO(S): UMA TEIA RELACIONAL ............................................................................. 12
2.1 Espaço(S): Construtos em Processo .................................................................................. 15
2.2 Espaço Público e Privado: Uma Fronteira Movediça ................................................... 20
2.3 Espaços em Decomposição: O Espaço como Operador de Leitura ............................ 26
3 UMA CLASSE EM FARRAPOS: ANÁLISE DOS ESPAÇOS BURGUESES .............. 27
3.1 Brás Cubas: A Flor Nascida do Estrume......................................................................... 31
3.2 Mulheres em Decomposição: Espaço das Figuras Femininas ..................................... 61
Marcela: um verme chamado lucro .......................................................................... 62
Virgília: a face burguesa da prostituta ..................................................................... 68
Dona Plácida: complacência em forma de flor ........................................................ 83
4 UMA CLASSE EM DECOMPOSIÇÃO: ANÁLISE DE UM DISCURSO CORROSIVO ....... 89
5 (IN)CONCLUSÃO: FLORES EM RUÍNAS: UM CORPO SOCIAL DECOMPOSTO ........ 107
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 109
8
1 INTRODUÇÃO
Realizar uma leitura analítica de qualquer livro de Machado de Assis é, ao mesmo
tempo, uma tarefa complexa e prazerosa. Complexa, por nos depararmos a cada cena, a cada
reviravolta da narrativa, com novas possibilidades de leitura e compreensão do texto, que
jogam por terra toda e qualquer ‘conclusão definitiva’. Prazerosa, porque a cada nova cena
surgem novas perguntas, novas interpelações, tão provisórias e desafiadoras quanto as
anteriores, o que torna a leitura, a cada nova página, um ‘delicioso e esfíngico enigma’.
Optamos como corpus analítico desta dissertação, pela primeira grande obra
machadiana, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Originalmente publicado em
folhetim na Revista Brasileira1 entre março e dezembro de 1880, com posterior edição em
livro em 1881, esse romance, em que um narrador já falecido narra a sua própria história,
mostra, de forma verossímil e realista, um panorama bastante detalhado da vida da elite
fluminense do século XIX e seus diversos jogos de interesses.
Em razão da grande inovação estética introduzida por Machado com esse romance,
muitos críticos e leitores tiveram dificuldades em sua recepção. Em carta escrita por
Capistrano de Abreu (2013) a Machado de Assis, em 10 de janeiro de 1881, o historiador
confessa que, em discussão com o jornalista e escritor Valentim Guimarães, eles não
conseguiram decifrar o enigma esfíngico acerca do gênero da então recente obra machadiana.
Enigma esse que continua a nos desafiar.
1 A publicação conhecida por Revista Brasileira foi fundada e dirigida por Dr. Francisco de Paula Meneses, em
14 de julho de 1855. Machado de Assis insere-se na revista em sua segunda fase, chamada de “fase Midosi” em
referência ao seu editor no período, Nicolau Misosi. Ao longo dos 30 números, publicados regular e
mensalmente, de junho de 1879 a dezembro de 1881, foram publicados, além de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, poemas de Fagundes Varela que constituem O diário de Lázaro, a Introdução à história da literatura
brasileira, de Sílvio Romero, aproveitada posteriormente em sua História da literatura brasileira, entre tantas e
representativas colaborações.
Machado de Assis também possui um papel de destaque na terceira fase da Revista Brasileira, que circulou
de janeiro de 1895 a setembro de 1899, conhecida como “fase José Verissimo”, também em referência ao editor
nesse período. O ‘bruxo do Cosme Velho’ era um dos escritores e intelectuais que se reuniam no endereço do
editor da revista, reuniões essas, que culminaram na fundação da Academia Brasileira de Letras, tendo sido
publicado, nas páginas do periódico, os discursos proferidos na sessão inaugural da Academia, pelo Presidente
Machado de Assis e pelo Secretário-Geral Joaquim Nabuco, assim como, a Memória histórica, do primeiro
Secretário, Rodrigo Otávio.
9
Demonstrando sua incontestável capacidade crítica ao olhar a sociedade de seu tempo,
Machado de Assis (1999) constrói, neste romance, um narrador que, de forma franca e
debochada, fala de dentro das relações sociais das quais fez parte.
Levando em conta esse jogo narrativo, o presente trabalho tem como principal
objetivo o estudo das cenas enunciativas que compõem o romance, com especial atenção para
o modo como o espaço narrativo foi construído com base nas relações sociais entretecidas
pelas personagens, guiadas pelos preceitos que regeram toda uma estrutura social da
sociedade brasileira do século XIX.
Como ponto fundamental desta dissertação, julgamos oportuno retomar os jogos de
interesse e poder, tão amplamente estudados por teóricos como Schwarz (1992, 2008a,
2008b), Gomes (2008), Duarte (2007), Stein (1984), entre outros, que se debruçam sobre a
estética machadiana. Nessa rota, investigamos como a construção dos espaços das
personagens burguesas em sua relação com os demais personagens revelam esses jogos. Para
isso recorremos aos estudos de Santos (1982. 1988) e Massey (2008) que entendem o espaço
como um construto relacional, feito de diferentes histórias e trajetórias.
Cabe ainda relativizarmos o conceito de “burguesia” utilizado nesta pesquisa. Ao
tratarmos da desconstrução da classe burguesa no romance machadiano, nos referimos à
classe dominante brasileira do século XIX regida pelas relações de capital das mais diferentes
instâncias. Nesse sentido, torna-se necessário um comentário, mesmo que de forma breve,
sobre a diferenciação entre o cenário burguês europeu e o modo como tais ideais foram
assimilados pelo sistema político senhorial (fluminense) retratado no romance em análise. A
burguesia europeia, grosso modo, era a classe social em ascensão nos séculos XVIII e XIX e
que foi impulsionada pelas Revoluções Francesa e Industrial, tendo como principais
características, as ideias liberais do direito à propriedade (incluindo a propriedade de capitais)
e a liberdade pessoal.
Entretanto, o cenário brasileiro no qual, paulatinamente, tal modelo econômico
começou a ser implantado, em meados do século XIX, guardava certa ambiguidade,
sobretudo em relação aos ideais liberais e a política escravagista vigente nesse período. Desse
modo, o sistema político nacional se comportava de forma híbrida na medida em que os
ideais liberais europeus, principalmente os relacionadas ao capital e à intervenção do
indivíduo (e sua classe) no Estado, conviviam com as práticas senhoriais baseadas na
exploração do outro (mão de obra escrava) predominante desde o período colonialista
brasileiro. Assim, a burguesia brasileira a qual nos referimos ainda é uma classe em formação
10
o que evidencia um processo de transição entre os modelos políticos ligados à escravidão
(chamado de ‘antigo regime’ ou ‘era senhorial’) e os novos ideais liberais da Modernidade,
que possuem suas relações econômicas fortemente ligadas aos preceitos do capitalismo e da
busca pelo lucro (chamada de ‘era burguesa’ ou ‘sociedade de classes’). (cf. SCHWARZ,
1992; 2008b; FERNANDES, 1987)
Por esse prisma, discutimos os espaços ocupados pelo autor Brás Cubas durante sua
narração ‘além-túmulo’, e pelas personagens burguesas (incluindo o próprio narrador
enquanto personagem de sua narrativa), sempre em diálogo com os espaços por onde
transitam aquelas excluídas socialmente. Além disso, num recorte mais específico,
privilegiamos o estudo da relação entre o espaço público e o privado – a saber, o espaço da
casa/família e a esfera pública – para, dialogando com Habermas (1984), Arendt (2005) e
Olinto (2008), mostrar como a fronteira entre esses dois espaços é extremamente tênue na
obra em questão. Isso porque ocorre, por diversas vezes, a inversão dos valores que
caracterizam esses espaços: o espaço público torna-se, simbolicamente, propriedade dos
burgueses e o espaço privado da casa transforma-se em um espaço metonímico da própria
sociedade burguesa corroída.
Ainda nessa perspectiva relacional, dialogamos com Bakhtin (1993, 1997, 2006) e
Benveniste (1989, 1995) para mostrar que a construção das cenas enunciativas do romance se
apresenta de forma altamente polifônica, plurivocal e plurilíngue devido às muitas vozes,
discursos e linguagens que circulam nos espaços do texto. Tais abordagens nos ajudaram a
questionar e buscar compreender como os espaços por onde transitam as personagens
burguesas foram construídos textualmente na obra aqui analisada, e como a deterioração
desses espaços configurou-se em estratégia textual utilizada por Machado de Assis (1999)
para uma leitura crítica da sociedade da época.
Esses foram os questionamentos nos quais nos detivemos ao longo do romance,
buscando não respostas definitivas, mas portas de entrada para reflexões sobre essa grande
obra do cenário literário brasileiro.
De forma a possibilitar uma melhor compreensão da investigação que se propõe, a
pesquisa está dividida em capítulos que mantêm entre si uma clara interlocução.
No capítulo 1, encontra-se a presente introdução que delimita o recorte analítico por
nós estabelecido, além das perguntas motivadoras da pesquisa e de seus objetivos.
O capitulo 2, “Espaço(s): uma teia relacional”, procura abordar como o espaço,
concebido como um construto altamente relacional (Cf. Massey (2008) e Santos (1982,
11
1988)), se constrói a partir do trânsito das personagens na narrativa. Estreitando esse recorte
analítico, privilegiamos os estudos acerca da relação entre os espaços públicos e privados à
luz dos conceitos de Habermas (1984), Arendt (2005), Olinto (2008) e Walty (2007), visando
compreender o modo como as fronteiras entre tais espaços são borradas ao longo das relações
estabelecidas pelos sujeitos que aí interagem. Além disso, fez-se necessária uma abordagem,
mesmo que de forma breve, do modo como a palavra-discurso se comporta no plano formal
do romance. Para isso, recorremos a Bakhtin (1993, 1997, 2006), buscando entender como o
romance torna-se o palco perfeito para o embate de vozes e discursos literariamente
matizados.
O capítulo 3, “Uma classe em farrapos: análise dos espaços burgueses”, trabalha com
os conceitos teóricos vistos no capítulo anterior para mostrar, na análise do espaço das
personagens principais do romance, sob o eixo centralizador da obra que é o próprio Brás
Cubas, como as relações estabelecidas no interior das cenas enunciativas da narrativa em
análise mostram-se irremediavelmente regidas por relações envolvendo o capital e o lucro.
No capítulo 4, “Uma classe em decomposição: análise de um discurso corrosivo",
busca-se analisar, a partir dos espaços das personagens estudadas no capítulo anterior, como a
repetição dos signos “flores” e “corrosão” indiciam, no plano textual maior do romance, o
próprio processo de decomposição da classe burguesa. As relações sociais estabelecidas no e
pelo romance são vistas sob o prisma do verme roedor que iguala e equipara o espaço dos
vivos, até então glorioso, e o pútrido do além-túmulo, tônica da enunciação de Brás Cubas e
de sua classe. Nesse momento, com o estudo da imagem da flor e do verme, procede-se a uma
ligação possível com a obra de Charles Baudelaire (2008) Flores do Mal, relativamente à
leitura ácida do corpo social feita pelos dois escritores.
Por fim, o capítulo 5, “(in)Conclusão: flores em ruínas: um corpo social decomposto”,
apresenta as considerações finais da pesquisa e suas (in)conclusões, retomando algumas
reflexões anteriores e apresentando outras, quase em forma de provocação, no intuito de se
pensar a constituição desses espaços na e pela linguagem literária.
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2 ESPAÇO(S): UMA TEIA RELACIONAL
Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma
lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo
espaço de chão que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um
eclesiástico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos
abençoarão esse canto de terra, que lhes deu algumas ilusões. (Brás Cubas - cap.
LXX: Dona Plácida)
A estreita relação entre indivíduo e sociedade configura-se como uma valiosa chave de
leitura para os textos literários das mais diferentes épocas e estilos. Nesse terreno de relações
várias, destaca-se a influência das relações sociais, conscientes ou não, na construção dos
discursos de diversos sujeitos, ocupando as mais variadas posições.
A esse respeito, o russo Mikhail Bakhtin (2006) analisa o signo como aquele que
carrega, em sua constituição primordial, traços da relação entre indivíduos socialmente
organizados, que moldam, por assim dizer, a própria consciência individual desses sujeitos.
Nesse sentido, o signo só poderia existir, de fato, a partir das relações entre sujeitos e seus
respectivos grupos sociais. Nas palavras do autor:
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-
se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da
palavra: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os
signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam
socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim
um sistema de signos pode constituir-se.
A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela
própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. (BAKHTIN, 2006, p.
33. Negritos acrescidos)
Ainda segundo o autor,
Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente
organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do
signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como
pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação destas formas
ocasiona uma modificação do signo. (...) Realizando-se no processo da relação
social, todo signo ideológico, e, portanto também o signo lingüístico, vê-se marcado
pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinado. (BAKHTIN,
2006, p. 44)
Por esse prisma, vemos como o signo linguístico é permeado, desde o instante em que
é concebido, por uma forte presença da estrutura ideológico-social. O seu modo mais
13
imediato de construção dá-se com base nas inúmeras interações sociais a que estão sujeitos os
indivíduos socialmente organizados. Nesse sentido, é importante ressaltar o modo como
Bakhtin (2006) delega uma atenção especial ao fato de um indivíduo falar (tomando a
palavra no ato de apropriar-se da língua e colocá-la em funcionamento) de um determinado
lugar e de uma determinada posição social. Mesmo que de forma inconsciente, o sujeito
sempre faz uso da palavra iluminado por determinada(s) ideologia(s) em um dado contexto
sócio-interacional:
O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social
próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções
interiores, suas motivações, apreciações, etc. Quanto mais aculturado for o
indivíduo, mais o auditório em questão se aproximará do auditório médio da criação
ideológica, mas em todo caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as
fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas.
Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância
muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e
do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através
da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.
Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu
interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (...)
Deixando de lado o fato de que a palavra, como signo, é extraído pelo locutor de um
estoque social de signos disponíveis, a própria realização deste signo social na
enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais. A
individualização estilística da enunciação de que falam os vosslerianos,
constitui justamente este reflexo da interrelação social, em cujo contexto se
constrói uma determinada enunciação. A situação social mais imediata e o meio
social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu
próprio interior, a estrutura da enunciação. (BAKHTIN, 2006, p. 115-116.
Negritos acrescidos)
Dessa forma, se a palavra/discurso está tão intimamente ligada à situação social
imediata na qual ela é proferida, a mudança nas relações estabelecidas na sociedade
acarretaria também uma mudança na forma de estruturação dos próprios enunciados, e
consequentemente, uma modificação de seus gêneros discursivos. O próprio Bakhtin (1997)
mostra, na obra Estética da criação verbal, como a concepção de gêneros discursivos é
oriunda das inúmeras relações entretecidas entre os sujeitos, nas quais as enunciações são
proferidas e moldadas em um dado contexto social. Nas palavras do teórico:
Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
sendo isso que denominamos gêneros do discurso. A riqueza e a variedade dos
gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é
inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do
14
discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se
desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1997, p. 279)
Sendo assim,
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a
variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à
abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a
língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a
realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.
(BAKHTIN, 1997, p. 282)
Nessa gama numerosa e ampla de gêneros discursivos, o romance, ainda segundo
Bakhtin (1993), destaca-se como aquele cuja principal característica figura-se na capacidade
de abarcar, no cerne de suas construções linguísticas, propriedades de diferentes discursos e
vozes, literários ou não, e encená-los com as mais diferentes nuanças e roupagens, sob a égide
do universo ficcional.
Bakhtin (1993) aborda o romance como sendo o gênero onde se observa um maior
apuro na encenação da linguagem. As personagens romanescas, na perspectiva bakhtiniana,
podem agir não menos que no drama ou na epopeia (gêneros esses, usados frequentemente
como contraponto ao romance na teoria proposta pelo autor), no entanto suas ações são
sempre iluminadas ideologicamente, pela posição social definida dentro do romance.
Assim, Bakhtin (1993) evidencia como centro da estrutura formal constitutiva do
romance as suas diferentes linguagens no ato de sua encenação literária. Nesse caso, o híbrido
romanesco torna-se o local, por excelência, do embate e da tensão entre discursos e vozes
ideológicas das mais diferentes naturezas. É importante ressaltar que o teórico não ignora o
fato de todo discurso, inclusive o mais cotidiano, também ser repleto desses choques e
pluralidades discursivas. Contudo, o romance escancara essa característica levando-a ao
extremo, ao contrário dos demais gêneros cotidianos que dão a aparência de uma unicidade
discursiva. Por essa perspectiva, a força motriz do romance não seria mais a imagem do
homem (ou do herói), mas a imagem de suas linguagens, em eterna tensão, através de sua
palavra encenada.
Dessa maneira, ao lermos um bom romance sempre encontramos incrustada em sua
linguagem a forma sedutora e esfíngica de uma pergunta. Interpelando-nos com
questionamentos que nem sempre possuem respostas simples e diretas (muito menos
definitivas), o romance nos coloca em um eterno (e prazeroso) movimento de descobertas e
redescobertas a cada vez que fechamos e abrimos o livro. Ao penetrarmos no universo fictício
criado por Machado de Assis (1999) isso não se deu forma diferente. A cada nova leitura de
15
Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro escolhido como corpus analítico desta pesquisa,
perguntas e mais perguntas surgiram e as respostas pareciam cada vez mais inalcançáveis e
provisórias. Nesse bojo de questões, optamos por refletir, sem nenhuma pretensão de cunhar
algo novo, sobre o modo como a tríade sujeito(s), tempo e espaço pode nos ajudar na leitura
das relações estabelecidas pelas personagens burguesas do século XIX em tal romance.
Analisar a construção do espaço em Memórias Póstumas de Brás Cubas constitui-se
um desafio, dada a quantidade imensa de trabalhos críticos relacionados ao romance, que
lançam variados olhares e novas perspectivas sobre o modo como Machado de Assis (1999)
soube ler criticamente não só a elite fluminense do século XIX, mas toda a sociedade e os
sujeitos nela envolvidos. Roberto Schwarz (1992), por exemplo, em seu célebre estudo As
ideias fora do lugar, trata da relação de descompasso na construção do projeto nacional
brasileiro sob a égide dos ideais iluministas europeus e o sistema político do período
machadiano. É interessante percebemos que no próprio título do ensaio já se insere a ideia de
espaço, entrevista no jogo entre o cá brasileiro e o lá europeu, o dentre e o fora, os
deslocamentos.
Tomando, pois, o conceito de espaço como um construto relacional, importa salientar
que as relações sociais encenadas na narrativa serão investigadas em sua relação com um
dado contexto da sociedade.
2.1 Espaço(s): Construtos em Processo
A necessidade do homem de representar/criar o mundo através de sua linguagem tem
sido fonte de numerosos estudos nos mais variados campos do saber. Como se viu, com
Bakhtin (1997; 2006), o ato de colocar a palavra em uso, transformando-a em discurso por
meio da enunciação, nos revela diferentes situações de interação nas quais os sujeitos estão
envolvidos, além de demonstrar o modo como a esfera social interfere na própria
constituição/construção da subjetividade dos indivíduos e de sua relação com o mundo.
Também para Benveniste (1989), a linguagem estabelece e define a relação do homem
com o mundo e com os outros:
a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A
condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a
necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir
identicamente, no consenso pragmático que se faz de cada locutor um co-locutor. A
referência é parte integrante da enunciação. (BENVENISTE, 1989, p. 84)
16
Por isso mesmo, o autor descreve o que chama de aparelho formal da enunciação
apontando para três elementos fundamentais: sujeito, espaço e tempo. Alguém fala para
alguém em um tempo e um espaço. É desse alguém que nos fala, também Bakhtin (1993),
quando ressalta que “o homem no romance é essencialmente o homem que fala” (1993,
p.134).
Fazendo dialogar tais estudos linguísticos e literários com as reflexões realizadas no
campo da Geografia, principalmente aquelas que tratam as configurações do espaço em um
determinado contexto sociocultural, optamos por trabalhar com conceitos de espaços que nos
serão válidos no estudo do processo enunciativo do romance analisado.
Milton Santos (1988), em Metamorfose do espaço habitado, salienta a dificuldade
histórica de se cunhar um conceito que englobe, satisfatoriamente, todas as características
relacionadas ao espaço. Não por acaso, Santos (1988) começa a sua definição pela negação de
conceitos que enxergam o espaço como algo estático, apartado da vida social, para assim,
defender o conceito a partir das relações que são estabelecidas em um determinado contexto
da vida em sociedade.
Seguindo tal premissa, Milton Santos (1988) busca elucidar uma importante diferença
teórico-metodológica entre as definições de paisagem e espaço. Segundo o autor, é comum o
uso equivocado de tais concepções como sendo sinônimas, já que dialogam, é bem verdade,
mas são constituídas de naturezas distintas. Paisagem seria tudo aquilo que é abarcado por
nossos sentidos, sendo, dessa forma, associada à percepção humana. Assim, cada indivíduo
teria uma apreensão diferenciada de determinado momento da paisagem, pois nenhum
carregaria a mesma bagagem de experiências:
A dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que chega aos sentidos. Por
isso, o aparelho cognitivo tem importância crucial nessa apreensão, pelo fato de que
toda nossa educação, formal ou informal, é feita de forma seletiva, pessoas
diferentes apresentam diversas versões do mesmo fato.
A percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é apenas
uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das
coisas materiais é sempre deformada. A nossa tarefa é a de ultrapassar a paisagem
como aspecto, para chegar ao seu significado. (SANTOS, 1988, p. 62)
Além disso, a paisagem compreende, em sua constituição, a multiplicidade e
heterogeneidade típicas da vida em sociedade, embora funcione como algo unitário. É um
verdadeiro palimpsesto/mosaico ou, nas palavras do autor:
17
um conjunto heterogêneo de forças naturais e artificiais; é formada por frações de
ambas, seja quanto ao tamanho, volume, cor, utilidade, ou por qualquer outro
critério. A paisagem é sempre heterogênea. A vida em sociedade supõe uma
multiplicidade de funções e quanto maior o número destas, maior é a diversidade de
formas e de atores. [...] Estradas, edifícios, pontes, portos, depósitos etc. são
acréscimos à natureza sem os quais a produção é impossível. A cidade é o melhor
exemplo dessas adições naturais. (SANTOS, 1988, p. 65)
Corroborando essa propriedade social da paisagem, Santos (1988) discorre sobre o
modo como a paisagem se modifica com o passar do tempo. Ora, tal atributo é compreensível
justamente por essa relação intrínseca entre ela e o grupo social, tendo a paisagem, portanto,
uma íntima relação com as mudanças geradas nas relações de cada sociedade. Ou seja, todas
as mudanças introduzidas na sociedade interferem na própria constituição da paisagem à
medida que esta é “uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades
diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos” (SANTOS, 1988, p. 66).
Santos (1988) nos alerta, então, para a diferenciação entre paisagem e espaço:
enquanto a paisagem seria um instante estático da sociedade, e não a sua completude, de resto
inatingível, o espaço seria fruto da união entre os objetos geográficos, naturais e sociais e o
movimento produzido pela sociedade que os animam. Assim, o espaço, para esse autor,
é o resultado de um matrimônio ou um encontro, sagrado enquanto dura, entre a
configuração territorial, a paisagem e a sociedade. O espaço é a totalidade
verdadeira, porque dinâmica, resultado da geografização da sociedade sobre a
configuração territorial. Podem as formas, durante muito tempo, permanecer as
mesmas, mas como a sociedade está sempre em movimento, a mesma paisagem, a
mesma configuração territorial, nos oferecem, no transcurso histórico, espaços
diferentes. (SANTOS, 1988, p.77)
Santos (1988) concebe, pois, o espaço como sendo formado por fixos e fluxos. Nesse
aspecto, os fixos estariam relacionados com toda a estrutura de trabalho, incluindo a força de
trabalho materializada na massa de homens. Por outro lado, os fluxos são os movimentos da
sociedade interagindo com os fixos, ou seja, os fluxos seriam o conjunto das relações
estabelecidas entre os indivíduos e os objetos dentro da sociedade. Nas palavras de Santos
(1988): “[...] Um objeto geográfico, um fixo, é um objeto técnico, mas também um objeto
social, graças aos fluxos. Fixos e Fluxos interagem e se alteram mutuamente.” (SANTOS,
1988, p. 77-78). Esse aspecto relacional não deixa de evidenciar, é claro, que na interação dos
sujeitos no espaço estão, também em jogo, as relações de poder que os envolve.
Tal abordagem é muito apropriada para a leitura dos espaços construídos
literariamente, justamente por colocar em cena não só a estrutura física do espaço, mas as
18
interações sociais dos sujeitos – o movimento, como define Santos (1988) – presentes nesses
espaços. Sob tal aspecto, podemos refletir sobre a propriedade relacional do espaço na
literatura, que se configura não como um mero cenário no qual a narrativa ‘se passa’, mas
como um elemento fundamental na teia de relações estabelecidas pelas personagens,
desvelando as vozes sociais e suas ideologias.
Doreen Massey (2008) – ainda que com uma abordagem ideológica diferenciada da de
Milton Santos – também concebe o espaço como fruto de interrelações, considerando a
existência da multiplicidade de histórias. Nesse sentido, o espaço é visto “não como uma
superfície lisa, mas como a esfera da coexistência de uma multiplicidade de trajetórias.”
(MASSEY, 2008, p. 100).
A autora rechaça qualquer interpretação que atribua ao espaço características fora do
contexto das relações que o permeiam, defendendo que ele deve ser considerado não como
algo estático e separado das relações humanas, mas um elemento sempre em construção,
devendo, por isso mesmo, ser pensado à luz das histórias que o formam.
Em última análise, Massey (2008), em um claro diálogo com os conceitos de tempo2
(e temporalidades), sustenta uma abordagem do espaço como algo aberto e em processo, um
devir, sempre construído com base nas interrelações estabelecidas em um dado momento da
sociedade:
Se o tempo se revela como mudança, então o espaço se revela como interação. Neste
sentido, o espaço é a dimensão social não no sentido da sociabilidade
exclusivamente humana, mas no sentido do envolvimento dentro de uma
multiplicidade. Trata-se da esfera da produção contínua e da reconfiguração da
heterogeneidade, sob todas as suas formas – diversidade, subordinação, interesses
conflitantes. À medida que o debate se desenvolve, o que começa a ser focalizado é
o que isso deve trazer à tona: uma política relacional para um espaço relacional.
(MASSEY, 2008, p. 97-98)
Pensando no contexto do século XIX, onde se passa o enredo do romance ora
analisado, e levando-se em conta seu tempo de enunciação, essa característica relacional do
espaço, como elemento formado por diferentes histórias e trajetórias, mostra-se muito válida,
sobretudo por evidenciar os jogos de interesse envolvidos, em seus mais diferentes níveis. Aí
se incluem desde as relações matrimoniais com vistas à obtenção de um status político
elevado, deteriorando os preceitos romantizados de amor, até as relações políticas mais
2 Para Massey, os conceitos de tempo e espaço, embora sejam de naturezas distintas, devem ser entendidos como
esferas indissociáveis no contexto de suas materializações sociais.
19
amplas, como a escravidão e a relação do favor (SCHWARZ, 1992), características do
modelo político brasileiro, metonimizadas nos espaços construídos dentro do romance.
Como pudemos observar, as concepções espaciais aqui analisadas têm como principal
ponto de interseção a percepção do espaço como algo em processo e que tem como base as
relações sociais nele estabelecidas, o que vem corroborar a perspectiva de leitura crítica do
texto literário a que nos propomos. Isso porque, temos na literatura um lugar privilegiado de
circulação desse emaranhado de outras histórias e trajetórias que tensionam um espaço muitas
vezes pretendido como hegemônico e totalizador. Como mostram Santos e Oliveira (2001), de
forma bastante pertinente, a literatura:
propõe que se questione a primazia dos espaços concretos sobre outros tipos de
espaço – comumente denominados de subjetivos, imaginários, ficcionais, abstratos
etc. Melhor dizendo: a literatura costuma interrogar a certeza que possuímos quando
acreditamos na concretude dos espaços. Não se trata de negar a existência do espaço
físico, mas de chamar atenção para o fato de que é impossível dissociar do espaço
físico, o modo como ele é percebido.
[...] Nossa percepção do espaço físico é, assim, mediada por valores. A literatura é
capaz de mostrar que esses valores não são imutáveis, podem ser constantemente
repensados e redefinidos. (SANTOS e OLIVEIRA, 2001, p. 68-69)
Nesse sentido, é preciso, ainda, relativizar a ideia do espaço como algo que abarca
todos os sujeitos e discursos, sem distinção, já que a percepção do espaço envolve também
valores e ideologias várias. Assim, torna-se ingênuo, ou pelos menos utópico, a aparente
‘democratização’ do espaço. Recorrendo novamente a Milton Santos (1982) percebemos
como o espaço configura-se, sobretudo com o advento do capitalismo, como um elemento de
opressão, de controle da massa de trabalhadores através da primazia do capital e da mais
valia. Nesse projeto econômico, o espaço reuniria os indivíduos com o único intuito de
produzir riqueza para determinado grupo social, o que acarretaria na divisão da sociedade em
classes. É nesse sentido que Santos (1982) aponta que:
Os construtores do espaço não se desembaraçam da ideologia dominante quando
concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade. O ato de construir está
submetido a regras que procuram nos modelos de produção e nas relações de classe
suas possibilidades atuais. (SANTOS, 1982, p. 24)
Com isso, ocorre que, muitas vezes, a classe dominante, detentora dos meios de
produção, apodera-se do espaço, utilizando-o como um sistema de força, o que acaba por
levar ao não reconhecimento desses sujeitos como agentes sociais.
20
A incursão nas teorias sobre o espaço aqui elencadas não expressa intenção de
submeter o texto literário a qualquer uma delas, o que nos levaria ao erro de fazer uma leitura
geográfica ou sociológica do texto, enclausurando a obra em uma moldura definida a priori
ou em categorias estanques. Tais conceitos nos são úteis como operadores de análise da
organização textual, seus sujeitos, tempos e espaços. Assim, entendemos que a construção
espacial, sobretudo os espaços burgueses, deve ser analisada na e pela linguagem do texto,
sempre investigando as estratégias textuais utilizadas para a configuração de tais espaços.
Procuramos compreender o espaço, no corpus analisado, como um objeto construído e
habitado pelas diversas histórias e trajetórias das personagens que nele interagem. Nesse
processo, saímos de uma concepção de espaço puramente físico para a de um espaço
socialmente partilhado, de modo a não explicá-lo, mas sim a interpretá-lo em suas linguagens,
a partir das inúmeras transformações nele ocorridas.
2.2 Espaço Público e Privado: Uma Fronteira Movediça
Pensar sobre a cidade, seja de qual período ou contexto social for, é adentrar em um
emaranhado de relações sociais em intenso movimento.
Como visto anteriormente, a materialização do espaço só pode ser corretamente
apreendida se levarmos em consideração todos os elementos que envolvem esse processo –
histórias, trajetórias, relações sociais, dentre outros. Dessa forma, talvez o espaço que melhor
traduza essa multiplicidade, devido à pluralidade de papéis sociais aos quais os sujeitos estão
submetidos, seja o espaço urbano. Porém, muito além de uma existência harmoniosa, o sujeito
urbano corporifica a tensão oriunda desses diferentes lugares sociais.
Nessa perspectiva, uma das relações a que os indivíduos urbanos estão sujeitos é a que
se estabelece entre as esferas pública e privada. Jurgen Habermas (1984) aborda a concepção
de espaço público a partir do crescimento econômico e político da burguesia na França,
Alemanha e Inglaterra. Destarte, Habermas (1984) define, inicialmente, a esfera pública
burguesa como:
a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera
pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade,
a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada,
mas publicamente relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho
social. O meio dessa discussão política não tem, de modo peculiar e histórico, um
modelo anterior: a racionalização pública. (HABERMAS, 1984, p. 42)
21
Sob essa égide, a cidade seria, em contraste com a antiga corte, o espaço da
emergência de uma esfera pública literária3, que, em consonância com as recém-criadas
instituições como os coffee-houses, salons e as comunidades de comensais, tornam-se o
centro de toda a sociedade burguesa, tanto na esfera econômica, quanto na esfera política.
Essa esfera pública deve ser entendida, como aponta Heidrun Olinto (2008) em leitura
do texto de Habermas, como o “lugar intersticial entre o Estado, instância responsável pela
ordem e segurança dos cidadãos, e a sociedade responsável pela administração dos demais
interesses incluindo questões relativas à economia” (OLINTO, 2008, p. 100). Para Habermas
(1984), o espaço público estaria intimamente relacionado com um público burguês que lê,
sendo o domínio da tecnologia da leitura/escrita, um elemento fundamental para a intervenção
do cidadão no espaço público. O autor diz que:
O processo ao longo do qual o público constituído pelos indivíduos conscientizados
se apropria da esfera pública controlada pela autoridade e a transforma numa esfera
que a crítica se exerce contra o poder do Estado realiza-se com refuncionamento
(umfunktionierung) da esfera pública literária, que já era dotada de um público
possuidor de suas próprias instituições e plataformas de discussão. (HABERMAS,
1984, p.68)
Retomando Habermas, Heidrun Olinto (2008) apresenta a esfera pública como o lugar
do debate por meio do exercício público da razão, em que se cultivam as ideias e os projetos
para a formação e emancipação do público burguês dos séculos XVIII e XIX. Igualmente,
3 Julgamos apropriado discorrer, mesmo que brevemente, sobre o termo “literário”, presente na conceituação de
espaço público cunhado por Habermas (1984). Tal elemento deve ser apreendido, grosso modo, como o uso da
tecnologia da leitura/escrita (alavancada, inclusive, pela invenção da imprensa), tendo por objetivo, a criação de
um público leitor burguês, através da divulgação de ideias concomitantes com o exercício da Razão, em vista da
formação e emancipação dessa classe emergente.
Nesse sentido, a ascensão da burguesia, nos séculos XVIII e XIX, fora responsável pela elaboração das bases
políticas para reivindicar ao Estado, direitos fundamentais como liberdade, igualdade, autonomia política e
econômica, além da livre atuação do sujeito em assuntos de interesse particular, minimizando assim, a
intervenção do Estado na constituição dessa esfera social.
Assim, à medida que as obras filosóficas e literárias são produzidas para esse mercado de leitores específicos,
esses bens culturais se assemelham, na roupagem de ‘informação’, a mercadorias de consumo, tornando-se, em
princípio, acessíveis a todos aqueles que possuíam o domínio da técnica da leitura e escrita.
Desse modo, o ‘público leitor‘ é moldado pela forte influência das reflexões de literatos e jornalistas, na
forma de uma manifestação crítica, sobre os valores estéticos, morais e políticos da sociedade. Sendo assim, o
conceito habermasiano em questão remete a uma espécie de ‘formação de opinião‘ e de um ‘corretivo crítico‘,
alicerçados no/pelo exercício da Razão, e sobre o uso de uma forma escrita literária e retórica, capaz de
motivar/moldar experiências estéticas e políticas dessa classe burguesa que ansiava por gêneros discursivos que
a representassem. (cf. Olinto 2008; Walty (2007) e Habermas (1984)).
22
Olinto (2008) constata como o direito à voz no espaço público era extremamente limitado,
reservado apenas aos indivíduos mais instruídos e influentes dentro da sociedade burguesa.
Deste modo, como bem aponta Walty (2007), surge uma primeira desmistificação do
espaço público como aquele que abarcaria todos os membros da sociedade, já que era, na
verdade, restrito às classes mais abastadas dentro da burguesia, não se estendendo ao povo.
Como mostra a autora, o letramento
inclusive o letramento literário, seria então elemento fundamental à atuação pública
do cidadão na sociedade burguesa. Daí se conclui que esse poder crítico que se
constrói fora da esfera do Estado, mesmo que pretendesse atingir a todos, não tocava
habitualmente o homem do povo, mas, sobretudo, as camadas cultivadas. (WALTY,
2007, p. 150)
Sobre isso é interessante notar que o próprio Habermas, no prefácio da reedição de sua
obra supracitada, em 1993, relativiza o conceito de uma esfera pública unitária, como
proposto por ele nas publicações anteriores. Com isso o autor admite a existência de outras
esferas públicas pertencentes às classes desprovidas sociopoliticamente, incluindo nesse bojo,
os não letrados e os pobres: “A exclusão das camadas inferiores, mobilizadas cultural e
politicamente, provoca já uma pluralização da esfera pública em sua fase de formação. Ao
lado da esfera pública hegemônica e entrelaçada a ela, forma-se uma esfera pública plebeia”
(HABERMAS, apud WALTY, 2007, p.154).
Ao refletir sobre a própria natureza etimológica do termo público e buscando sua raiz
greco-latina, Hannah Arendt (2005) analisa o modo de estruturação do espaço público desde
sua origem, nas cidades-estado gregas, até as suas implicações no cenário político
contemporâneo. Para Arendt (2005), desde a Grécia antiga o homem teve que lidar com a
dualidade entre o espaço da casa (oikia) e da família e uma segunda ordem, caracterizada pela
cidade-estado, dando-lhe uma segunda vida, o bios politikos. Ironicamente, o que
caracterizaria o espaço comum da polis, segundo a filósofa, seria o fato de nela o cidadão ser
reconhecido entre iguais devido ao seu status político. Já o espaço da família estaria
permeado pelas mais profundas desigualdades, motivadas pela forte estrutura patriarcal da
época. Percebe-se, nesse caso, que a ‘desigualdade’ estaria ligada mais à esfera da casa do que
necessariamente ao espaço da polis.
Contudo, a própria autora relativiza essa ideia de ‘(des)igualdade’ presente no espaço
comum, justamente por ser nesse espaço que o indivíduo precisava demonstrar, seja pelos
seus feitos, seja pelas suas realizações singulares, a sua superioridade em relação a seus pares
23
na polis. Dito de outro modo, reforçando o clima de tensão/rivalidade entre os iguais, “a
esfera pública era reservada à individualidade, era o único lugar em que os homens podiam
mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram” (ARENDT, 2005, p. 51).
Ponderando sobre o valor do reconhecimento público na idade moderna, Arendt
(2005) nos mostra, interpretando as palavras de Adam Smith sobre o tema, como a
necessidade da admiração pública, motivada pela vaidade do sujeito, aliada à recompensa
monetária, (como era de se esperar em uma sociedade regida pelo capitalismo), é colocada no
mesmo patamar das necessidades fisiológicas do indivíduo, tal como o alimento que satisfaz a
fome:
A opinião da era moderna acerca da esfera pública, após a espetacular promoção da
sociedade à proeminência pública, foi expressa por Adam Smith quando, com
desarmante franqueza, ele mencionou ’essa desafortunada raça de homens chamados
homens de letras’, para os quais ’a admiração pública... é sempre parte da
recompensa... parte considerável na profissão médica; talvez parte ainda maior na
profissão jurídica; e quase toda a recompensa dos poetas e filósofos’. Nestas
palavras, fica evidente que a admiração pública e a recompensa monetária têm a
mesma natureza e podem substituir uma à outra. A admiração pública é também
algo a ser usado e consumido; e o status como diríamos hoje, satisfaz uma
necessidade como o alimento satisfaz outra: a admiração pública é consumida pela
vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome.
(ARENDT, 2005, p.66)
Observa-se nas diferentes concepções de espaço público que sua natureza, sobretudo
na modernidade com o florescimento do capitalismo, está intimamente ligada aos jogos de
interesse presentes na sociedade burguesa. Desse modo, um espaço que antes deveria
aproximar os sujeitos em prol do bem comum, acabou por ter sua natureza desvirtuada
quando interesses privados, a serviço de uma minoria detentora do poder, suplantaram os
interesses da coletividade.
Recorrendo novamente a Habermas (1984), observamos o questionamento dos limites
entre o público e privado através da emergência de novos gêneros literários, por intermédio da
demanda do novo público burguês, de um gênero que lhe representasse (ao contrário das
antigas formas estéticas que representavam, segundo o ideário burguês, a antiga aristocracia).
Nesse contexto, nasce, segundo Habermas (1984), o gênero epistolar e, posteriormente, o
romance psicológico e o drama burguês, encarnando todas as ânsias e desejos da burguesia,
justamente por tematizar as experiências e o modo de vida desse público leitor. Dessa
maneira, pessoas privadas, através desses gêneros de circulação pública, tomam
conhecimento de suas próprias vidas através das obras que as tematizam.
24
Por isso mesmo há que se refletir nas relações que tais gêneros encenavam no século
XIX na Europa e no Brasil. Para isso, vale lembrar que atrelada à alternância de espaços
privado e público está a mudança na configuração da família4, e, consequentemente, do
próprio espaço da casa. A casa que, a princípio, estaria relacionada ao espaço privado do
indivíduo, historicamente caracterizada como “lar”, abre as portas de suas salas de estar para a
alta sociedade burguesa, ao exibir, pelo menos na aparência, toda a estrutura familiar bem
sucedida para os parâmetros da época. Além disso, percebemos as posições sociais bem
demarcadas entre os membros da família, como aponta Habermas (1984):
A natureza “pública” do salão de convivência da grande família, em que a dona de
casa, ao lado do senhor da casa, representava perante a criadagem e a vizinhança, dá
lugar à sala de estar da pequena-família, em que a esposa, com seus infantes, separa-
se da criadagem. [...] O salão não serve, porém, ao “lar”, mas à “sociedade”; e esta
sociedade do salão está muito distante de ser equivalente ao círculo restrito, fechado,
dos amigos da casa. A linha entre a esfera privada e a esfera pública passa pelo meio
da casa. As pessoas privadas saem da intimidade de seus quartos de dormir para a
publicidade do salão: mas uma está estreitamente ligada a outra. (HABERMAS,
1984, p. 62)
Ainda no campo da família, Habermas (1984) enfatiza a intrínseca relação entre a
estrutura patriarcal familiar e a sociedade burguesa capitalista, ressaltando a disseminação do
poder da sociedade nas estruturas familiares da época. Nesse sentido, as funções exercidas
pela família são contaminadas pelas exigências da vida em sociedade. É o caso da procriação,
institucionalizada como algo sagrado, ou, pelo menos, símbolo da continuação da espécie,
que, a partir das relações de interesse que se estendem ao campo da casa, passa a ser vista
exclusivamente como garantia da livre herança e do direito à propriedade.
O casamento é outra instituição moldada pela pressão social: converte-se em um
instrumento para a manutenção da riqueza e do status social de uma determinada camada da
sociedade, como é o caso dos casamentos por interesse. O lugar da mulher, nesse contexto,
passa a ser governado por seu valor social. Nesse sentido, o matrimônio configura-se como
um elemento de troca na ‘balança comercial’ de relações baseadas no capital. O que passa a
motivar o casamento não está ligado a qualquer variante relacionada ao afeto, como pintavam
os idealistas românticos, por exemplo; longe disso, os únicos valores considerados eram, no
caso das pessoas que já possuíam um status social elevado, a manutenção e eventualmente o
4 Mesmo a organização da família sendo anterior à ascenssão da burguesia, verificamos como essa classe se
apropria dessa instituição e faz dela o ponto central de sua organização social primordial.
25
aumento de seu capital e de sua influência política. Em contrapartida, para aqueles que não
possuíam uma posição social favorável dentro da sociedade, o matrimônio transformava-se
em um dos únicos meios para se alcançar a ascensão social. Com base nesse cenário, a
instituição do casamento possui o claro propósito de servir como moeda de troca nos vários
jogos de interesse e de poder.
Já Arendt (2005) estuda as características do espaço privado, em sua relação com o
público, evidenciando aquilo que pode ser mostrado e escondido. Na concepção da autora,
enquanto o espaço público estaria ligado ao que poderia ser mostrado dentro da vida em
sociedade, ficaria reservado ao espaço privado tudo aquilo que deveria ser ocultado em
função de sua natureza inferior. Assim, era reservado às mulheres e aos escravos o espaço
privado (podendo o termo ser pensado, também, como privação de algo), por executarem
papéis sociais ligados ao corpo, ao labor: os escravos, por cuidarem das necessidades físicas
dos senhores e as mulheres, por garantirem a continuação da espécie, sendo tais funções,
consideradas como menos elevadas. Nas palavras de Arendt (2005):
A distinção entre as esferas pública e privada, encarada do ponto de vista da
privatividade e não do corpo político, equivale à diferença entre o que deve ser
exibido e o que deve ser ocultado. [...] Mantidos fora da vista eram os trabalhadores
que, <<com o seu corpo, cuidavam da necessidade (físicas) da vida>>, e as mulheres
que, com seu corpo, garantem a sobrevivência da espécie. Mulheres e escravos
pertenciam à mesma categoria e eram mantidos fora das vistas alheias – não
somente porque eram propriedade de outrem, mas porque a sua vida era
<<laboriosa>>, dedicada a funções corporais. (ARENDT, 2005, p. 82)
Como pode ser verificado, os conceitos de espaço público e privado são concebidos,
desde a origem do termo, como um terreno movediço de fronteiras tênues. No espaço da
burguesia, vemos surgir relações de interesse que marcam decisivamente o espaço de todos os
que nele atuam. As mulheres, por exemplo, possuem determinado valor, seja ele monetário ou
de influência social. Os negros, em sua maioria escravos, funcionam como elementos
composicionais de uma paisagem social, com funções bem determinadas.
Podemos observar, portanto, como a natureza relacional do espaço é encarnada nessas
duas categorias de forma bem nítida, sobretudo se analisarmos os movimentos sociais que ora
restringem a abertura do espaço público, como na privação da liberdade dos negros, ora
ampliam as fronteiras do espaço privado, no ato do casamento por interesse. Nesse panorama,
longe de acolher os discursos e as vozes tanto dos negros como das mulheres, os espaços
público e privado deterioram-se com base nos jogos de interesse da estrutura social burguesa.
Pensando sobre isso, refletiremos sobre as implicações dessas relações na construção dos
26
espaços literários e de seus possíveis efeitos de sentido na leitura, não só para interpretar os
espaços presentes na obra em questão, mas, principalmente, para ler criticamente toda a rede
de relações sociais que envolvem o contexto abordado.
2.3 Espaços em Decomposição: O Espaço como Operador de Leitura
As teorias espaciais aqui elencadas analisam, em sua maioria, contextos temporais e
geográficos diferentes daqueles que nos são apresentados nos romances de Machado de Assis.
Habermas (1984), por exemplo, analisa o modo como a ascensão da burguesia alemã,
francesa e inglesa altera a percepção e as fronteiras do espaço público e privado. Já Santos
(1988) estuda o espaço tendo como parâmetro os modelos contemporâneos surgidos,
sobretudo, após a segunda metade do século XX, sem, aparentemente, nenhuma relação com
o contexto sociopolítico fluminense do século XIX, no qual está inserido o romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Contudo, nos caberá analisar, no prosseguimento da
presente pesquisa, como o entendimento contemporâneo acerca do espaço, incluindo os
espaços público e privado, será importante para a leitura das relações que significam os
espaços burgueses construídos por Machado de Assis (1999) no romance Memórias Póstumas
de Brás Cubas.
Ao tomar o espaço como principal fio condutor para a leitura do romance, buscamos
evidenciar o modo como os lugares das personagens principais são moldados de acordo com
as pressões sociais às quais elas estão sujeitas. Ao contrário de algo estático e sem vida,
tratamos o espaço aqui como algo vivo e em eterno movimento, esculpido à base das relações
de poder presentes na sociedade fluminense e tão bem retratadas pelo bruxo do Cosme Velho.
Vemos surgir, nesse cenário, lugares sociais, como o dos negros, formatados de
acordo com as regras sociais vigentes na época. Observamos, também, como papéis sociais
moldam instituições e comportamentos das personagens, a exemplo dos lugares ocupados
pelas mulheres na obra, usadas ora pelo seu corpo que seduz e possui um preço a ser pago, ora
como instrumento na busca pela ascensão social através do casamento por interesse.
Em suma, antes de estudar o espaço na obra machadiana em questão como algo
isolado das relações sociais, procuramos, nos capítulos seguintes, interpretar a íntima ligação
entre os espaços construídos e as relações sociais de poder presentes no romance, na busca
por fazer ouvir essa palavra-discurso tão brilhantemente encenada nas páginas dessa obra
prima da literatura brasileira.
27
3 UMA CLASSE EM FARRAPOS: ANÁLISE DOS ESPAÇOS BURGUESES
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha
mediocridade (Brás Cubas – Cap. XXIV Curto, mas alegre)
Como dito anteriormente, Memórias Póstumas de Brás Cubas torna-se, apesar dos
‘obstáculos’ propostos à leitura fluente do leitor, criados pela substancial inovação estilística
para os padrões da prosa nacional, uma obra de grande repercussão e sucesso em sua época.
Sua publicação, como era comum no momento, foi feita, em partes, na Revista Brasileira,
entre os meses de março e dezembro de 1880, sendo os capítulos reunidos em livro somente
no ano seguinte. Prova do grande sucesso do romance em sua época, como apontado por
Martha de Senna (2014), foram suas duas republicações ainda no período de vida de Machado
de Assis, em 1896 e 1889.
Um indício das inovações estilísticas de Machado e do impacto causado na recepção
dos romances da época, pode ser atestado em uma famosa carta endereçada ao ‘bruxo do
Cosme Velho’ pelo crítico e historiador Capistrano de Abreu (2013), em que fica claro o
entrelaçamento de gêneros que se observa em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Abreu
(2013) aborda a polifônica estrutura do romance como um enigma de difícil compreensão:
Em S. Paulo, por diversas vezes, eu e Valentim Magalhães [papel deteriorado] nos
ocupamos com o interessante e esfingético X. Ainda há poucos dias ele me
escreveu: O que é Brás Cubas em última análise? Romance? dissertação moral?
desfastio humorístico? (CARTA..., 2013).
Pensar semelhantemente a Abreu e Magalhães sobre tal questionamento “esfíngico”
tendo como base o romance contemporâneo, com suas fronteiras de gênero irremediavelmente
dissolvidas e superadas, seria ingênuo. No entanto, nunca é demais ressaltar o fato de que, já
no século XIX, esse tensionamento de gêneros instaura-se no discurso romanesco. Isso porque
uma das características do gênero literário, em especial, o romanesco, é justamente a de
abarcar, no interior de sua composição formal, uma gama variada de outros gêneros em uma
tessitura complexa, tal como apontado por Bakhtin (1997):
Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e
transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram
em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao
se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e
adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade
existente e com a realidade dos enunciados alheios - por exemplo, inseridas no
28
romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu
significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do romance, só se integram à
realidade existente através do romance considerado como um todo, ou seja, do
romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e não da vida
cotidiana. (BAKTHIN, 1997, p. 281)
Ao iniciar a leitura do romance, o primeiro elemento a chamar atenção do leitor é o
narrador defunto, ou melhor, o defunto autor Brás Cubas. Esse início fantástico da narrativa
na qual um morto resolve escrever as suas memórias no espaço além-túmulo, em alusão,
como apontado por Senna (2014), à obra francesa Mémoires d'outre-tombe (Memórias de
além-túmulo), de René de Chateaubriand, instaura a primeira – e ousamos dizer a mais
importante – tensão espacial presente no romance: a do espaço de narração/enunciação de
Brás Cubas e o espaço da vida da personagem enquanto pertencente à elite brasileira na
sociedade burguesa do século XIX.
Não por acaso, a encenação de abertura da obra em que um ‘defunto autor’ toma a
palavra-discurso para expor os rasgões de sua existência, torna-se uma estratégia textual
primordial para o entendimento daquilo que é encenado ao longo de todo o romance. Brás
Cubas, quando, em vida, fazia parte da elite burguesa de sua época, nunca tivera a capacidade
de tomar a palavra como um elo com o outro. Muito pelo contrário, por trás de discursos
peremptórios e vazios, resvalando no cômico, por diversas vezes vemos uma personagem a
caminhar para o desconhecido num passo “pausado e trôpego, como quem se retira tarde do
espetáculo” (ASSIS, 1999, p. 32)5, mostrando-se incapaz de entender o outro como sujeito
pleno no gozo de sua subjetividade.
Entretanto, no espaço além-túmulo, observamos um sujeito que pode, sem remorsos
ou ressentimentos, expor todo o flagelo de sua existência, para assim, como se confirma na
proposta textual machadiana, problematizar todo um sistema de relações deterioradas a partir
de seus jogos de interesses. A respeito desse viés crítico adotado por Machado, Eduardo de
Assis Duarte (2007), de forma muito pertinente, traz como epígrafe de seu brilhante ensaio
Estratégias de Caramujo uma fala de Machado de Assis, ainda jovem, em uma de suas
crônicas, na qual fica latente a vontade de conferir à sua literatura uma missão social: “Eu
tenho a inqualificável monomania de não tomar a arte pela arte, mas a arte como a toma
Hugo, missão social, missão nacional, missão humana.” (ASSIS, apud DUARTE, 2007, p.
239).
5 Doravante, todas as citações referentes ao romance em questão remeterão a essa edição.
29
Desse modo, o começo insólito da narrativa em questão configura-se como uma
estratégia textual ímpar justamente por causar um deslocamento enunciativo no qual um
defunto narrador, estratégia textual fulcral para a desconstrução empreendida por Machado,
toma o centro do palco ficcional – o romance – para, já sem as pressões e o recato das
aparências, expor a degradação de sua vida dentro da sociedade burguesa. Cabe aqui uma
menção ao capítulo CXXXVIII, A um crítico, no qual o narrador sente a necessidade de
expressar, de maneira enfática, o seu trabalho de (re)viver cada lembrança de seu passado:
Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinquenta anos, acrescentei: "Já se vai
sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias". Talvez aches
esta frase incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua
atenção para a subtileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que
esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece.
Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha vida experimento a
sensação correspondente. Valha-me Deus! é preciso explicar tudo. (p. 231.
Negritos acrescidos)
Nesse caso, todos os fatos contados pelo narrador em sua trajetória entre os dias de seu
nascimento, em dia 20 de outubro de 1805, e de sua morte, em uma sexta-feira do mês de
agosto de 1869, são matizados pelo tom melancólico e galhofeiro desse defunto narrador,
estratégia essa, reitere-se, primordial para o entendimento da visão crítica adotada por
Machado na composição de seu romance. Nunca é demais lembrar que, como defendido no
capitulo anterior deste trabalho, o espaço só pode ser corretamente apreendido se adentrarmos
as relações que o compõem. Logo, através das relações que se estabelecem entre a vida e o
além-túmulo, vemos encenada uma enorme disparidade entre os espaços ocupados por ele e
as outras personagens, motivada pela estrutura social estratificada presente no romance em
análise.
Enfim, através de tal encenação, notamos a deterioração do discurso-palavra do
narrador, e, por extensão de sentido, da sua própria constituição como indivíduo e da
sociedade a qual ele pertence. Tal constituição desgastada, como veremos mais detidamente a
seguir, é muito bem representada por imagens que atravessam a narrativa, como é o caso da
metáfora das roupas usadas em vida, que no seu novo espaço de enunciação, são apresentadas
como disfarces e máscaras:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha
mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na
vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a
gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não
30
estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação
é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque
em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um
vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!
Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas,
despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que
deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos,
nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar
agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não
digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que
não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados. (p. 87-88. Negritos acrescidos)
Como visto na metáfora das roupas no excerto acima, o narrador faz questão de
demarcar, a partir do olhar da opinião, a fronteira entre o espaço dos vivos, recoberto pelo
interesse e pela cobiça, lugar em que se devem calar os “trapos velhos”, e o espaço dos
mortos, no qual se podem expor, com liberdade, as caras despintadas e desenfeitadas,
externando todos os rasgões e remendos de sua existência.
Contudo, o fato de estar despregado do mundo dos vivos não redime os feitos desse
defunto senhor de escravos. Muito pelo contrário, ao adentrarmos os limiares de suas
memórias não só temos a sensação de uma completa naturalização das cenas brutais
praticadas pela personagem, como temos a total convicção de que tais memórias, distante de
ser algo pertencente ao campo individual, é também uma memória coletiva (cf. DUARTE,
2007) compartilhada por toda uma classe.
Outro ponto questionável em relação ao narrador, e que está diretamente relacionado à
sua classe, é o fato dele se orgulhar por nunca ter derramado uma gota de suor para ganhar ‘o
seu pão de cada dia’, como a classe social a que pertencia e que não valorizava o trabalho
braçal. Nesses dois casos, suas memórias se atualizam à medida que são contadas, mas,
principalmente, no instante em que são lidas por nós, pois elas são fruto não apenas de um
passado distante, mas de um presente que, infelizmente, encontra correspondentes nos dias de
hoje.
Em última análise, a visão crítica, fruto do somatório de estratégias textuais em que se
encaixa, inclusive, a própria construção do narrador, só poderia ser expressa na voz de um
narrador que fez parte das relações da sociedade burguesa, e que, agora fora desse jogo de
interesses, pode expor, sem nenhum ressentimento, arrependimento ou peso na consciência,
todas as atrocidades cometidas ao longo do processo de embrutecimento que fora a sua vida.
Essa faceta do narrador foi muito bem abordada por Eduardo de Assis Duarte (2007) quando,
buscando traços da luta machadiana em favor dos afrodescendentes, afirma:
31
(Em Memórias Póstumas de Brás Cubas) a crítica surge travestida em autocrítica: é
o senhor de escravos – espécie de anti-Midas a corromper tudo que toca – quem fala
e se torna sujeito de um discurso corrosivo cujo alvo maior já é, desde início, ele
próprio. (DUARTE, 2007, p. 273)
Por esse viés, analisaremos doravante, como esse discurso corrosivo afeta, como
referido por Duarte (2007), a construção dos espaços presentes na narrativa, levando-se em
consideração não só o seu aspecto relacional no contato com as personagens negras, como
abordado pelo teórico acima citado, mas com as demais personagens em seus respectivos
lugares sociais.
3.1 Brás Cubas: A flor nascida do estrume
A primeira personagem apresentada na narrativa é o próprio Brás Cubas. Para
entender o modo como se desenrolam as relações sociais feitas por ele ao longo da sua vida,
julgamos pertinente fazer uma pequena digressão sobre a vida do narrador/personagem, assim
como de sua árvore genealógica apresentada no capítulo III do romance.
Nascido no dia 20 de outubro de 1805, Brás era tido, segundo as palavras do narrador,
como o herói de sua casa (muito provavelmente por ser o único filho homem daquela família).
Logo após o seu nascimento, teve o primeiro contato com a busca desenfreada pela ascensão
social. Vejamos a cena:
Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói da nossa casa. Cada qual prognosticava a
meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de
infantaria, achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pai não pôde
ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me cônego.
(p.52)
Em suma, encontramos travestido na cena acima um desejo de arrivismo social desses
dois tios, pertencentes a duas das instituições mais influentes no Brasil no século XIX,
embora ocupassem cargos de menos prestígio dentro das mesmas. Assim, os interesses que
movem o espaço público penetram naquela família, e, consequentemente, no espaço privado
da casa, e acabam por ‘forçar’ o recém-nascido a adentrar nesse jogo.
Outro dado importante é a natureza da continuação do ‘nome da família’ que, como
adverte Habermas (1984), também é uma prova da influência da esfera pública no meio
privado, por ser a partir da preservação do nome da família que se poderia pensar, em
consequência, na manutenção/ampliação de seus bens. A esse respeito, os Cubas não se
comportam de maneira diferente, uma vez que projetam na figura do pequeno Brás a
32
continuação do ‘próspero crescimento’ da influência de seu nome no cenário político
brasileiro. Esse desejo arrivista, como bem exposto por Facioli (2008), marca a própria
constituição da família de Brás, como pode ser observado no episódio em que o narrador
explica a genealogia do nome de sua família:
Mas, já que falei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço
genealógico.
O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira
metade do século XVIII. Era tanoeiro de oficio, natural do Rio de Janeiro, onde teria
morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-
se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas,
até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas. (p.
35.)
Na apresentação do primeiro membro conhecido da família, o tanoeiro Damião Cubas,
o aspecto que mais chama a atenção diz respeito à forma turva como é construída sua imagem
na fala de Brás Cubas. Damião, aquele que seria o verdadeiro fundador da família Cubas, é
rebaixado ao patamar de apenas “um certo” Damião Cubas, tendo seu espaço restrito à
penúria e à obscuridade do esquecimento de sua futura prole, mesmo tendo constituído
riqueza deixada de herança para seu filho.
O segundo membro da família de Brás destacado pelo narrador é o licenciado pela
Universidade de Coimbra, Luís Cubas. Vejamos sua descrição:
Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós - dos avós que a
minha família sempre confessou -, porque o Damião Cubas era afinal de contas um
tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra,
primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei Conde da Cunha. (p.
35)
Ao marcar Luis Cubas como ponto de partida da linhagem de família, o narrador, sem
nenhum constrangimento, ignora a existência de seu patriarca, usando como pretexto o
simples fato de seu parente mais remoto possuir o ofício da tanoaria. Já Luis Cubas recebe
todos os méritos pela ‘origem nobre’ da família Cubas, afinal de contas, era licenciado, cargo
que demanda muito menos esforço braçal em relação à tanoaria e que possui uma valorização
muito maior dentro de uma sociedade regida pelo interesse.
Além disso, é ressaltada pelo narrador a amizade entre Luís Cubas e D. António
Álvares da Cunha, o Conde da Cunha mencionado na passagem acima. Essa figura histórica
foi o nono vice-rei do Brasil, entre os anos de 1763 e 1767. Desse modo, o narrador sugere,
valendo-se do discurso esquivo e corrosivo peculiar a Machado, que muito da riqueza e
33
prestígio da família Cubas, adquirido após o surgimento de seu bisavô, tem sua origem moral
questionável, pois foram conseguidos não pelo seu esforço e trabalho, mas pela simples
associação com uma figura poderosa da época. Ao parente distante que trabalhou duro para
conquistar algo mais em sua vida, restou o espaço do esquecimento; já para o licenciado, cujo
único mérito fora ser amigo de figuras políticas importantes, os louros da glória.
Antes de apresentar o terceiro galho da árvore genealógica de sua família, Brás expõe,
sem maiores cerimônias, a ficção feita pelo seu pai, Bento Cubas, em relação à origem de seu
sobrenome. Vamos ao excerto:
Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu
pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói
nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas
cubas aos mouros. (p. 35).
Vemos como o sobrenome herdado por Bento Cubas (quer tendo relação com o ofício
de tanoaria ou não6) motiva Bento Cubas a cunhar uma origem nobre para seu sobrenome. De
forma muito cômica, Cubas eleva o nome de família a um estatuto de nobreza através de uma
inventiva ficção de um cavaleiro heroico, matador de mouros infiéis, figuras essas, presentes
no imaginário popular do século XIX. Por esse aspecto, toda relação que associe a família
Cubas a profissões relativas a um trabalho braçal, como a tanoaria, deve ser extirpada para
que prevaleça, forçadamente, uma origem nobre para tal família.
Em seguida, nos é apresentada a característica do último ascendente da família Cubas,
Bento, pai de Brás:
Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour.
Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é
verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse
mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de
experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu
famoso homônimo, o capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de São
Vicente onde, morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás.
Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as
trezentas cubas mouriscas. (p.35-36. Negritos acrescidos)
Apresentado, ironicamente, como um “varão digno e leal”, vemos como Bento Cubas
possui como característica marcante a pacholice, traço de um indivíduo preguiçoso e vadio, e
6 Cuba, segundo o dicionário Houaiss (2001), pode significar um recipiente destinado a guardar algo líquido, ou,
ainda, tina semelhante aos barris feitos no ofício da tanoaria.
34
ainda, destinado a pessoas vaidosas e soberbas (característica, inclusive, herdada pela
personagem Brás Cubas). Nessa apresentação temos sutilmente representada outra
característica pertencente à geração dos Cubas: o sentimento de megalomania e de vaidade
excessiva. O desejo de pertencer a algo grandioso, de ter uma família historicamente
importante e nobre é elevado às últimas consequências através da fabulação de Bento Cubas,
que forja não só o passado de seu antecessor tanoeiro, mas também projeta no filho, a partir
da escolha do nome, algo grande tal como o “famoso” capitão-mor Brás Cubas descrito no
trecho.
Um fato que também nos chama a atenção na leitura dessa passagem é o pequeno
equívoco em relação aos feitos dessa figura histórica: o fundador da vila de São Vicente,
atribuída no excerto a Brás Cubas, foi, na verdade, Martin Afonso de Souza, sendo, a vila de
Santos fundada pelo capitão-mor Brás Cubas.
A pesquisadora Martha de Senna, coordenadora do banco de dados disponível no site
‘Machado de Assis.net’, uma valiosa fonte no vasto campo de dados acerca das referências
presentes nos contos e romances machadianos, afirma em palestra intitulada "Machado de
Assis: um banco de dados e seus desdobramentos", ministrada no dia 09 de maio de 2013, que
esse equívoco do narrador pode ser atribuído a um engano do próprio Machado de Assis
(1999), devido a sua sabida formação escolar precária. No entanto, sem querermos entrar em
defesa do autor pelo erro, mas levando em conta o tom absurdamente fantasioso da descrição
familiar feita por Bento Cubas – passada, inclusive, de geração em geração – interpretamos
que tal engano seja, na verdade, um elemento que, posto de forma sutil, reforça a falsidade da
fabulação feita por Bento, pois, ao trocar as duas vilas, troca-se também o grau de importância
que cada uma possui ao longo da história. Dito de outro modo, o esforço em buscar
referenciais históricos para atribuir fama e valor à origem dos Cubas é tão exacerbado, que
acaba por adentrar o território do ridículo como visto nesse equívoco historiográfico.
Mais uma vez, vemos enfatizada a rejeição ao ‘passado tanoeiro’ da família, sendo tal
aversão, como uma herança, passada de geração em geração, o que dá a entender que, em uma
sociedade das aparências, tudo aquilo que remete ao trabalho deve ser expurgado como uma
verdadeira mancha moral. Em uma completa inversão de valores, os preceitos que regiam
aquela sociedade, a preguiça e aversão ao trabalho braçal, seriam algo a se valorizar, enquanto
o único membro da família que realmente conseguiu elevar o seu patamar social graças ao
próprio esforço, é relegado a um “certo Cubas”, devendo ser escondido e negado a todo o
custo.
35
Após esse pequeno percurso pela árvore genealógica da família Cubas, guiados pelos
estudos de Facioli (2008), chegamos ao último membro masculino da linhagem, responsável,
segundo os preceitos da época, por continuar o legado da família. Como visto acima, o legado
de uma ‘herança maldita’ é repassada ao pequeno Brás desde sua infância, em um processo
descrito por Duarte (2007) como “processo de embrutecimento”, no qual o personagem foi
‘educado’ pelo seu núcleo familiar para uma completa anulação da figura do outro.
No capítulo XI O menino pai do homem, título alusivo, como exposto no referido site
coordenado por Martha de Senna (2014), a um verso do poema My heart leaps up when I
behold,7 do poeta William Wordsworth, temos encenado todo o modo como o menino Brás
relaciona-se com os escravos que trabalham para a família:
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente
não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto,
traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava,
porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente
com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da
travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça";
e eu tinha apenas seis anos. (p.54)
Como observado na descrição acima, o menino Brás Cubas, desde cedo, foi moldado
pelo sistema político vigente na época alicerçado na escravidão, além de sempre ter os seus
desejos e vontades colocados acima de todos os outros ao seu redor. Dessa maneira,
percebemos uma completa negação por parte da personagem do reconhecimento do outro
como sujeito.
Ainda nesse capítulo, encontramos características importantes com relação ao círculo
familiar da personagem. Vale lembrar como o núcleo familiar, pertencente, a principio, à
esfera/espaço privada da casa, reproduz a teia de relações que são estabelecidas na esfera
pública social. Isto posto, encontramos na estrutura familiar dos Cubas (Bento Cubas, a mãe
de Brás, cujo nome não nos é apresentado no romance, os tios João e “tio cônego”, além da
tia Emerenciana), facetas e personalidades das mais diferenciadas naturezas, que contribuíram
decisivamente para a formação moral do pequeno senhor de escravos. Observemos como cada
uma das personagens acima foi descrita pelo narrador:
7 “Meu coração salta para o alto quando contemplo” traduzido por: Machadodeassis.net.
36
De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me
perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a
noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me
pancadinhas na cara, e exclamava a rir: "-Ah! Brejeiro! ah! Brejeiro!"
Sim, meu pai adorava-me. (p. 55)
O primeiro ponto observado no excerto acima é o modo como o uso da oração do “Pai
Nosso”, conforme descrita nos evangelhos de Mateus (6: 9-13) e de Lucas (11: 2-4), ressalta a
relação capitalista entre devedores e cobradores (modo, inclusive, como a oração era proferida
no período machadiano). Além disso, merece destaque o modo como narrador escancara a sua
faceta maligna e, ao contrário do que se esperaria, não recebe nenhuma repreensão pelos atos
feitos. Em vez disso, o pequeno menino-diabo ganha, quase em tom de recompensa, risos e
pancadinhas do pai (entendidas na cena, como forma de carinho ao contrário das pancadas em
tom repreensivo). Temos ainda, em um tom elogioso, a interpelação feita por Bento a Brás
Cubas como “brejeiro”. Interessante notar como esse elogio, a princípio, guarda certa
ambiguidade em relação à educação de Brás: brejeiro, segundo o dicionário Houaiss (2001),
com definição semelhante encontrada no dicionário Aurélio (1999), variando apenas na
ordem das acepções, é, respectivamente, “que ou quem gosta de se divertir e divertir os
outros; brincalhão, gozador; que ou quem tem como características a simpatia, a vivacidade e,
por vezes, certa malícia” (HOUAISS, 2001). Esse talvez seja o tom da ‘pseudo-repreensão’ a
qual Bento Cubas submetia o seu filho: uma grande brincadeira.
No entanto, vale ressaltar também a primeira acepção da palavra ‘brejeiro’ como
sendo, ainda segundo o dicionário Houaiss (2001), relativo a brejo, designado como um
terreno alagado, lodoso e pantanoso, tendo, no uso comum, uma conotação negativa,
propriedade essa, perfeitamente transportável para o tipo de formação do menino Brás. Não
por acaso, como veremos a seguir, o pequeno Cubas será a flor nascida do estrume, desse
terreno recoberto de lodo, prenunciando uma vida moralmente enlameada como o brejo do
qual leva a alcunha.
Outra passagem ambígua nesse trecho diz respeito a essa profunda adoração de Bento
Cubas em relação a seu filho. No sentido mais comum da palavra, adorar significa ter grande
apreço ou reverência por alguém. Todavia, adorar tem por definição o sentido de idolatria, ou
seja, uma prestação de culto a determinada divindade. Nesse contexto, temos ressaltado,
portanto, o modo como, desde cedo naquele ambiente familiar ‘lodoso’, o menino-diabo era
tratado como centro das atenções de todos ao seu redor. Observa-se, pois, um processo de
sacralização do menino-diabo, o que acarreta sérias consequências no sentimento de
37
megalomania cultivado pelo personagem ao longo de toda a obra, como, por exemplo, na
passagem do capítulo XXXI A borboleta preta, em que a personagem define-se como sendo o
Deus das borboletas:
Suponho que (a borboleta) nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que
era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me
movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então
disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas." A ideia subjugou-
a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo
de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. (p. 99)
A esse respeito, cabe aqui um pequeno parêntesis acerca do capítulo VII, um dos mais
enigmáticos de todo o romance, no qual o narrador nos conta os episódios de seu delírio de
morte. Nesse episódio, passível de uma gama imensa de leituras, dialogamos mais uma vez
com Duarte (2007) no que tange ao sentimento de grandiosidade de Brás Cubas.
Grandiosidade que é desconstruída no instante de sua morte, ao se deparar com a figura
feminina de Pandora8, que, corporificada na figura da Natureza, reprende Brás como um
“verme”, colocando-o no seu lugar de inferioridade inerente à condição humana.
Pandora representaria, segundo Brandão (2010) e Chevalier e Gueerbrant (2009), a
dualidade da existência humana entre a bondade e a perversidade do desejo: ao mesmo tempo
em que nutre as paixões e o amor entre os seres, dando um poder divino ao homem, ela pode
também levar os homens a uma total desgraça e à completa ruína. Nessa balança mítica, a que
todos nós estamos sujeitos, como deixa claro o mito, faz todo o sentido o fato de Brás Cubas,
metonímia de sua classe, na ilusão de se equiparar a um Deus, ser colocado por Pandora,
primeira representante dessa dualidade humana, na posição de um verme, submisso às forças
e poderes da Natureza. Nesse caso, sem adiantarmos os rumos da análise, Pandora não só
insere Brás Cubas na posição de verme, quando esse adentra no outro mundo, mas mostra
como, graças à natureza dúbia de suas escolhas, esse mesmo verme já lhe era característico
quando estava no espaço dos vivos, por conta das relações deterioradas das quais ele
participava.
8 De acordo com a mitologia grega, Pandora (que significa todos os dons) foi a primeira mulher, criada por
Hefesto (com a contribuição de todo o panteão grego), a mando do poderoso Zeus em reação ao roubo do fogo
por Prometeu. Esse mito conta como Pandora, ao receber como presente dos deuses uma caixa onde estavam
encerrados todos os males do mundo, tomada por curiosidade, abriu a caixa, ignorando todas as recomendações
para que não o fizesse, acabando por libertar todos os males que rapidamente se espalharam por todo o mundo,
restando somente, no fundo da caixa, a esperança.
38
Retornando ao cenário familiar apresentado no capítulo XI, a segunda personagem
apresentada é a mãe de Brás, sobre a qual sabemos muito pouco no transcorrer do romance.
Nas palavras do narrador, encontramos a seguinte descrição:
Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz
crédula, sinceramente piedosa - caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de
abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus.
(p. 55. Negritos acrescentados).
Cabe ressaltar o modo subserviente da figura da mãe em relação ao marido, além da
descrição do modelo ideal de mulher/esposa para os padrões da época: senhora fraca, pouco
inteligente, não afeiçoada aos pensamentos e sim aos sentimentos, além de ter o seu espaço
restrito ao ambiente da casa.
Ao relatar as características dos dois tios, de forma mais prolongada em relação à
descrição das outras personagens, o narrador nos faz as seguintes considerações:
De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo estranho, o
meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem
de língua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a
admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou
imundície. [...] No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava
muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar
alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no
lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um
desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que
ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas,
com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do
tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a
torcê-las, iam ouvindo e redarguindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de
quando em quando com esta palavra:
- Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!
Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes,
contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito
medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo,
a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos
mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se ele poderia
atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história
do símbolo de Niceia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número
e o caso das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de
sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar.
Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo,
acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar, mas
carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros. (p. 55-57.
Negritos acrescidos)
39
Nessa longa descrição da relação entre Brás Cubas e os tios fica evidente como a
conivência tida entre o pequeno Brás e seu pai é mantida na sua interação com os tios. No que
diz respeito ao relacionamento entre ele e o tio João, poder-se-ia pensar, graças ao rigor do
código militar, que ele deveria resguardar certa disciplina e polidez moral. Contudo, vemos
como o antigo oficial de infantaria é afeito a comportamentos obscenos e sua constituição de
caráter remete a uma ambiguidade moral. Vale ressaltar o comportamento em relação às
escravas pertencentes à família. Classificado como “diabo” pelas escravas, graças aos
constantes assédios feitos por ele, João tenta manter certa discrição em suas investidas, fato
este, comum em ações semelhantes cometidas pelos senhores de escravos da época. Ajudado
pelo fato de o lavadouro de roupa estar distante do espaço da casa da família, somos levados a
entender que João, certificando-se que seus atos ficariam em completo sigilo, compra com
doces e passeios o silêncio do pequeno Brás sobre assunto, em um ato que lembra certa
corrupção do tio em relação ao sobrinho.
Do mesmo modo, pelo discurso do narrador, vemos desconstruída a figura do tio
cônego na medida em que utiliza da ambiguidade da palavra “sacristia”, no que tange ao
simbolismo de rendimentos obtidos pela igreja. Com efeito, temos exposto nas palavras do
narrador, obstantemente aos elogios irônicos de austeridade e pureza do pároco, a
dessacralização da figura de padre/cônego preocupado apenas com as coisas mundanas, como
o prestígio pelo cargo que ocupa, em detrimento dos desejos e mandamentos de Deus.
A última personagem apresentada nesse capítulo ocupa uma posição familiar
diferenciada em comparação com as demais apresentadas até então. Dona Emerenciana, tia
materna de Brás Cubas, era a única naquela casa que resguardava certo senso de autoridade
em relação às travessuras do pequeno senhor de escravos. Apesar das poucas aparições da
personagem ao longo do romance, duas no total, o modo como a tia materna de Brás
apresenta o elemento de negação aos desmandos e pirraças do pequeno Cubas, torna-se algo
relevante se comparamos com as demais personagens da narrativa. Observemos os dois
episódios em que Dona Emerenciana surge na obra; o primeiro trecho, no capítulo XI, em
análise, e o segundo, logo na sequência, no capítulo XII chamado Um episódio de 1814, em
que, na ocasião da festa dada em comemoração à queda de Napoleão Bonaparte, Brás Cubas
pirraça por um pouco de doce que estava à mesa:
Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a pessoa que
mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas
viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dous anos. (p. 57)
40
Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota,
como a pedir-lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si
mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a recolher o
desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o
doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o
sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A
tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava, não obstante
os meus gritos e repelões. (p.61)
A critério de comparação, segue mais uma mostra da ausência de limites do pai de
Brás frente à figura austera de Dona Emerenciana
Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo
rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas
façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram
também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande
admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples
formalidade: em particular dava-me beijos. (p. 54)
Cabe a ressalva de que não pretendemos incorrer no equívoco de colocar a
personagem Brás Cubas ‘no divã’ ao especular sobre os efeitos da ausência dessa figura de
autoridade na infância da personagem, ou ainda, de divagar sobre como o futuro da
personagem poderia ser diferente caso a figura de Dona Emerenciana fosse, de fato, mais
presente no círculo familiar da família Cubas. Não obstante, julgamos pertinente destacar,
mesmo brevemente, o modo como é encenada uma inversão de papeis na educação do
pequeno Brás, através dessa figura feminina e de sua comparação com o pai ‘bondoso’ que
buscaria o sol, caso esse fosse o desejo de seu filho: a imposição de limites, tarefa destinada,
segundo a teoria de Freud, à figura do Pai, é colocada em segundo plano, repassada para uma
tia distante que pouco interfere na criação do jovem Cubas. Cabe a lembrança de que, grosso
modo, o evento da castração, recorrentemente associada à imposição de limites, é o estágio
em que a criança é retirada, simbolicamente, do seio da mãe onde ela só reconhece a
existência da individualidade do “eu” para, assim, ser inserida na vida em sociedade, estágio
da formação no qual ela passa a reconhecer a presença do outro, fase fundamental na
construção da vida social.
Obviamente, esse evento ocorre bem antes dos seis ou sete anos de vida da criança,
idade de Brás Cubas no período narrado acima. Contudo, essa falta de limites, como pode ser
observada no decorrer do romance, possui efeitos devastadores ao longo da vida da
personagem, na qual ela ignora completamente a figura do Outro (social) importando apenas a
sua vontade (EU). Sendo assim, o diálogo com a teoria freudiana, nesse ponto, torna-se
41
possível à medida que o narrador sente a necessidade de destacar como, desde a infância, essa
ausência de limites sempre foi um fator recorrente em toda a sua vida, interferindo e definindo
suas relações.
Com base no modo como tais relações privadas se estruturam no espaço da casa dos
Cubas, não seria apressado concluir que aquele núcleo familiar está irremediavelmente
comprometido pelas relações corroídas desde seu nascedouro. Sendo assim, o espaço da casa-
família de Brás mantém, tal como vasos comunicantes, uma estreita ligação com toda a
estrutura de poder presente na esfera pública na medida em que ambas as esferas
compartilham os mesmos princípios, impossibilitando, portanto, uma separação das duas
esferas.
Apresentados todos os que influíram na criação do jovem Brás Cubas, cabe agora nos
deter com maior cuidado na afirmação feita pelo narrador sobre si mesmo ao longo do
referido capítulo. Como destacado neste trabalho, Brás Cubas era o estereótipo de criança
pirracenta, criada sem limites, capaz de enxergar apenas os seus desejos e vontades em
detrimento das outras pessoas. Nas palavras do narrador:
Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça
dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo
contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus,
alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. (p.55)
De uma forma inquietantemente sincera, predominante na vida além-túmulo, Brás
Cubas, no papel de enunciador criado por Machado de Assis (1999) como estratégia textual
de desconstrução da classe burguesa, se expõe e expõe toda a sua classe ao mostrar, desde seu
distorcido ‘retrato de família’ e de sua infância, todos os vícios e deformações morais a que
foi submetido. O verso “o menino é pai do homem”, que no poema9
de William
Wordsworth parece-nos possuir o tom saudosista, um misto de lamento e gratidão pela
infância do eu lírico, ganha uma nova significação, ao conhecermos, de perto, todos os
limiares da educação recebida pelo narrador para a sua formação como um legítimo senhor de
escravos, um legítimo desprezador do outro. Sob a alcunha de “menino-diabo”, dita logo após
9 Segue a tradução do referido poema retirada do já comentado site Machadodeassis.net:
“Meu coração salta para o alto quando contemplo / Um arco-íris no céu: / Assim foi quando a minha vida
começava / Assim é agora, que sou um homem feito / Assim será quando envelhecer / Ou quando me deixar
morrer! /O menino é pai do homem; / E eu bem que gostaria que meus dias / se ligassem uns aos outros por
natural devoção.”
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o verso que nomeia o capítulo, o narrador antecipa o fato de que todas as suas ações na vida
adulta seguiriam a lógica individualista de sua infância; as pirraças, travessuras e crueldades
cometidas, portanto, ganharam novas roupagens, mais disfarçadas, mas tão brutais e malignas
quanto à metaforizada no ato de puxar o rabicho das cabeleiras (símbolo claro para os abusos
praticados pelo narrador ao longo de sua vida, assim como, da tentativa de sempre se levar
vantagem sobre o outro) colocado ao final do último excerto aqui apresentado. Nesse sentido,
se o menino é o pai do homem, só poderíamos de fato esperar, na figura do menino-diabo, um
“senhor de escravos diabo”, tão maligno quanto em sua fase juvenil. Além disso, a metáfora
que encerra o capítulo retrata perfeitamente todo o processo familiar corroído no qual Brás foi
educado. Com a ironia já tão aclamada na estética machadiana, vemos escancarada a
realidade da ‘criação para as aparências’ da qual Brás fez parte, onde:
O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada -
vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da
vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu
esta flor. (p, 56)
Guiados por essa ‘pequena pista’ do narrador, focalizaremos agora como os espaços
ocupados por Brás Cubas em sua vida adulta são construídos, sobretudo em relação às demais
personagens presentes no romance, visando assim, evidenciar como esse jogo de interesses e
aparências, já presentes na infância de Brás, se desenrola ao longo de toda a sua vida e por
todos os espaços por onde ele transita. Enfatizamos, assim, o modo como, a partir das
relações das personagens, ocorre uma predominante contaminação entre os espaços públicos e
privados encenados no romance.
Ignorando a premissa popular de que ‘cunhado não é parente’, daremos agora um salto
da infância/juventude de Brás Cubas para a sua vida adulta para dedicar especial atenção à
relação ‘familiar’ entre Brás Cubas, sua irmã, Sabina, e o seu cunhado Cotrim. Na genealogia
familiar da personagem, temos pouco acesso à figura de Sabina. A primeira menção à
personagem, além, é claro, da sua presença no leito de morte do irmão, ocorre na ocasião do
velório de sua mãe, em que é descrita como uma “pobre moça” a “cair de fadiga” (p. 85).
Como rege o regulamento da boa esposa, Sabina sempre é vista associada à figura de seu
marido, o proprietário de escravos Cotrim. Sem adiantarmos a análise acerca das feições
morais de Cotrim, cabe-nos agora analisar o comportamento de Sabina e Brás logo após a
morte de seu pai no capítulo XLVI, A herança:
Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, – minha irmã sentada
43
num sofá, – pouco adiante, Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços
cruzados e a morder o bigode, – eu a passear de um lado para outro, com os olhos no
chão. Luto pesado. Profundo silêncio.
- Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos
que valha trinta e cinco...
- Vale cinquenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinquenta e oito...
- Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos
ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito.
Olhe, se esta vale os cinquenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a
do Campo?
- Não fale nisso! Uma casa velha.
- Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.
- Parece-lhe nova, aposto? (p. 117-118)
Nessa primeira parte do capítulo, encontramos uma típica cena de disputa de herança
através de uma acirrada luta pelos bens da família. O que nos chama atenção aqui é o fato de
que, passados apenas oito dias da morte de pai, longe de vermos os irmãos sentidos e
preocupados com a dor pela perda sofrida, como coloca, ironicamente, o narrador,
encontramos essa família separada pela cobiça dos bens materiais de seu falecido pai.
Recorremos novamente a Habermas (1984) justamente para lembrar que os eventos da
procriação (e seus desdobramentos) ganham novos contornos à medida que a relação afetuosa
perde espaço para questões econômicas, fato este, semelhante ao que acontece nessa cena na
qual o amor entre os irmãos ou a dor pela perda do pai não se compara às questões
econômicas (portanto, públicas) que dominam a mente dos dois irmãos na disputa da herança.
Continuemos agora a leitura do capítulo:
- Ora, mano, deixe-se dessas cousas - disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos
arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os
pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo...
- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
- Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.
- O Prudêncio está livre.
- Livre?
- Há dois anos.
- Livre? Como seu pai arranjava estas cousas cá por casa, sem dar parte a ninguém!
Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (p. 118)
Tal como generais dividindo os espólios de guerra, eles ignoram o sentimento de
irmandade em face da questão financeira envolvida na cena. Tanto Brás quanto Sabina e
Cotrim buscam, valendo-se dos mais variados argumentos, angariar mais e mais bens
pertencentes à família. Cabe aqui uma primeira menção ao modo como os escravos da família
são referenciados como meros objetos em meio à disputa. Prudêncio, personagem negro de
maior destaque ao longo da narrativa, tem a sua liberdade questionada por Cotrim, que o
44
equipara, inclusive, à libertação da prataria da família. Ademais, a posse do escravo pode ser
relacionada com a visão capitalista da família, com seus interesses pela preservação de sua
‘propriedade’ em seus vários aspectos. Vejamos agora o desfecho desta cena:
.
[...] Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma
pequena altercação.
- Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para
ser repartido por todos
Mas Cotrim:
- Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não
engulo.
Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes que,
ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos
pueris, fúrias de criança, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse
pão da alegria e da miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas
estávamos brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas. (p.
119-120)
Como observado no final do capítulo, Sabina, embora mantivesse certo ar de
submissão em relação ao marido, também agia sob a égide do interesse. Longe de pensar em
seu irmão ou de comover-se pela morte de seu pai, a personagem mostra-se realmente
preocupada com os interesses de sua ‘nova’ família, não importando, por esse viés, qualquer
laço sanguíneo ou afetivo com o seu irmão. Nesse aspecto, esse ‘novo modelo’ de família é,
decisivamente, contaminado pela luta de poder característica na esfera pública.
Outro ponto que corrobora essa assertiva é o fato de, no período final da citação, o
narrador comparar o sentimento de irmandade dos dois à beleza de Marcela que se esvaía por
conta das bexigas. Ora, como veremos adiante, as bexigas de Marcela representam justamente
o clamor pelo lucro a qualquer custo, além do apelo desenfreado por qualquer relação que lhe
traga vantagem. Nesse sentido, o cenário de disputa da herança da família Cubas é movido
por esse mesmo sentimento da prostituta, uma briga que, longe de intencionar o bem comum
dos irmãos, busca apenas o conforto e os interesses de cada um.
Já com relação a Cotrim, o jogo de interesse não é muito diferente dos vistos em
relação às demais personagens. O processo de decomposição da figura de Cotrim é feito pelo
narrador em pinceladas irônicas por todo o romance. Observemos um desses casos:
Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum tempo, – duas semanas, ao
menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um bom rapaz este
Cotrim; passara de estroina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros de estiva,
labutava de manhã até à noite, com ardor, com perseverança. De noite, sentado à
janela, a encaracolar as suíças, não pensava em outra cousa. Amava a mulher e um
filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro.
(p. 88-89)
45
Além da acusação clara acerca da avareza do cunhado, vemos uma crítica indireta ao
comportamento de Cotrim. Ao descrever a tentativa de convencimento do cunhado como
sendo regida pela “fina força”, além de explicitar a sua personalidade volúvel e imprevisível,
temos apresentado os primeiros contornos de um senhor de escravos cruel e de modos pouco
civilizados. A esse repeito, a face ‘bondosa’ com a qual Cotrim tenta transparecer como um
zeloso pai de família e um senhor benevolente com os pobres e necessitados, é desmanchada
pelo narrador de forma incisiva ao expor a verdadeiro rosto desse senhor de escravos no
fabuloso capítulo intitulado CXXIII O verdadeiro Cotrim:
Não obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia da
família, entendi não tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Ele ouviu-me
e respondeu-me seriamente que não tinha opinião em negócio de parentes seus. [...]
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele
possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante
os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um
modelo. Arguíam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é
apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os
orçamentos: melhor é o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras,
tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste
particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles
desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os
fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-
se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio
requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o
que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos
pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu
Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de
uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o
que não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício
não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o
retrato a óleo. Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de
mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava -
sestro repreensível ou não louvável concordo; mas ele desculpava-se dizendo
que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode
negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não
praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a
filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade
tornava-se uma condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas
atenções, mas não devia um real a ninguém. (p. 216-218. Negritos acrescentados)
Como proposto na brilhante leitura de Schwarz (2008b) da cena em questão,
encontramos em cada “elogio” dado a Cotrim um alvo de acusação feita por Brás em que é
desvelada a verdadeira essência deste ‘caridoso e amoroso’ pai de família. Com o uso
primoroso da retórica aristotélica, temos focalizada toda crueldade deste senhor de escravos
desmanchado e desmascarado por cada suposto argumento de defesa apresentado por Brás. O
primeiro alvo da crítica sarcástica diz respeito ao caráter, de natureza feroz, posto de forma a
46
predizer o teor das relações cruéis da personagem, sobretudo com os seus escravos. Outro
destaque dado na citação é à questão da avareza, traço que servira de acusação por muitos,
inclusive, pelo próprio narrador, a Cotrim, mas que se torna ‘aceitável’ pelo fato disso ser,
segundo a explicação do narrador, o uso exagerado da virtude (provavelmente a temperança).
Quanto à referência à alcunha de bárbaro, Brás parece defender veementemente o seu
cunhado, parceiro de classe, ao justificar que as surras frequentes nos escravos de Cotrim
eram efetuadas apenas nos desobedientes e fujões, além de evidenciar que tais atos eram fruto
do contrabando de escravos, profissão que requer certos métodos mais ríspidos. Já a caridade,
outra virtude cristã, é desvelada como sendo motivada não pelo amor gratuito ao próximo,
mas apenas pelo clamor das chamadas e anúncios públicos. Não por acaso, o último ‘elogio’
refere-se ao fato de, a despeito de qualquer frivolidade com relação aos sentimentos afetivos,
Cotrim não dever nem um real a ninguém. Enfim, nesse cenário de sedosas farpas proferidas
por Brás, vemos, dialogando com os estudos de Duarte (2007), uma completa (des)construção
desse (verdadeiro!) senhor de escravos, um modelo a ser seguido como posto pelo próprio
narrador, embrutecido por suas relações sociais violentas e movido pelo sentimento de puro
interesse.
Julgamos oportuno tratar doravante do espaço das personagens negras ao longo do
romance e de sua relevância na constituição moral da personagem Brás Cubas durante a
narrativa. Alvo de muitos questionamentos por parte de alguns leitores e críticos, a postura
machadiana acerca do tema da escravidão sempre foi posta em xeque, quase um tabu, devido
ao autor não fazer de seus textos, pelo menos se considerarmos uma leitura mais superficial,
qualquer movimento direto de militância ou ‘panfletarismo’ contra a sociedade escravocrata
de sua época. Acresce-se o fato de o próprio Machado ser neto de escravos libertos e carregar
em sua cor mulata (a despeito do comentado processo de ‘embranquecimento’ passado pelo
autor na maioria de seus retratos mais famosos) a origem de seus antepassados vitimados pela
grande ferida moral que assolou (assola) a nossa sociedade: a escravidão.
Como bem apontado por Duarte (2007) em seu estudo sobre as personagens negras na
obra machadiana, vemos um aparente posicionamento secundário de tais figuras ao longo da
leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. No decorrer dos espaços do romance, não é
rara a menção a figuras como “um negro” propriedade de Brás, “algumas pretas no lavadouro
da casa”, “os pretos” de que Marcela tem medo de ser roubada, ou ainda, uma “escrava
cozinheira”. Nesse cenário, o negro tem privado tanto o direito à liberdade, o que era de se
esperar por sua condição social, quanto ao direito à voz e ao próprio nome (exceto Paulo, o
47
boleeiro da família Cubas, repartido junto com a prata no capítulo XLVI A herança, e
Prudêncio, do qual trataremos mais a frente). Tal condição interfere decisivamente em seu
próprio reconhecimento como sujeito pelas demais personagens da narrativa, reservando-se a
elas, portanto, um espaço de exclusão.
Outro aspecto interessante de se notar nessas descrições é o fato do tratamento
violento (das mais diferentes formas) dado aos negros não estar somente atrelado às
personagens de maior poder econômico da narrativa, como é o caso da família Cubas e de seu
cunhado Cotrim, mas a todos os grupos pertencentes àquela sociedade, o que reforça a ideia
de uma ideologia disseminada nas mais diferentes esferas sociais da época. Cabe aqui, uma
breve citação que deixa claro que, mesmo em uma família economicamente desprovida como
é o caso da família de Dona Eusébia e Eugênia, o sentimento de superioridade ostentado em
relação aos negros permanece intacto: “Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar Dona
Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir falar-me,
com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. (p. 96. Negritos
acrescidos)”.
Ainda a esse respeito, importa evocar Vera da Silva Telles citada por Walty (2005),
quando, ao analisar a representação dos pobres em nossa sociedade contemporânea, mostra
como estes são tidos como meros elementos da paisagem, podendo, no máximo, gerar certo
incômodo em seus interlocutores pela degradação das relações ali expostas, mas nunca um
sentimento de mudança em relação à ordem social pré-estabelecida. Nas palavras da autora,
Num registro ou no outro, a pobreza é encenada como algo externo a um mundo
propriamente social. Fruto de exclusões múltiplas, parece armar um cenário no qual
desaparece como problema que diz respeito aos parâmetros que regem as relações
sociais. Nessas formas de encenação pública, a pobreza é transformada em paisagem
que lembra a todos o atraso do país, atraso que haverá de ser, algum dia, absorvido
pelas forças civilizatórias do progresso. Paisagem que rememora as origens e que
projeta no futuro as possibilidades de sua redenção, a pobreza não se atualiza como
presente, ou melhor, na imagem do atraso, aparece como sinal de uma ausência.
(TELLES apud WALTY, 2005, p. 83)
Essa assertiva pode ser facilmente transportada para o contexto social do século XIX
já que os negros no romance, tal como na cena descrita acima e em muitas outras ao longo da
narrativa, são vistos apenas como mais um elemento da paisagem fluminense.
Como exposto por Duarte (2007) esse posicionamento corrobora o real papel do negro
naquela sociedade, pois qualquer tentativa de elevá-lo a um estatuto de herói ou mártir
deporia contra a premissa da verossimilhança a qual Machado se propôs para a composição
48
formal de sua obra. Entretanto, esse silenciamento deve ser corretamente interpretado como
uma primeira feição crítica por parte do autor, que, ao contrário de fechar os olhos para as
questões da escravidão, insere, de forma sutil, mas paulatinamente, essas cenas de escravidão
através de seu discurso romanesco, encenado como forma de fazer ver a perversidade das
relações sociais.
Ao contrário da esmagadora maioria das personagens negras descritas ao longo da
narrativa, Prudêncio é o único a possuir, além de um nome, aparições mais significativas ao
longo de todo o texto. Em seus primeiros momentos no romance, encontramos Prudêncio,
ainda menino, caracterizado como o escravo pertencente à família Cubas. O espaço ocupado
pela personagem é de uma total submissão em relação aos seus proprietários. Não por acaso,
em uma prática comum das elites senhoriais brasileiras, Prudêncio era utilizado como um
cavalo nas perversas brincadeiras de infância do menino-diabo Brás Cubas, materializando
sua posição subalterna em relação ao jovem senhor de escravos. Além disso, a própria questão
da “posse” do escravo pelo senhor de escravos deve ser ressaltada na medida em que o negro
se transforma em um mero objeto. Desse modo, é interessante ressaltar que, embora tenha voz
em uma dessas cenas de brincadeira-tortura, Prudêncio acaba por não ser reconhecido como
sujeito, relegado a uma posição de animal inferior:
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso,
com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele
obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: -"Cala a boca, besta!" (p. 54)
Como vemos, o espaço de Prudêncio é marcado por extrema violência em sua
infância. A relação entre o menino diabo ser o pai do homem no caso de Brás Cubas tem
efeito semelhante, mas invertido, quando se analisa o espaço do menino escravo Prudêncio
em sua vida adulta.
Na cena da partilha dos bens entre os irmãos Cubas (na qual Cotrim exige a posse de
Prudêncio como um de seus bens), temos acesso à informação de que Bento Cubas havia dado
a alforria ao antigo escravo da família. Mais adiante na narrativa, em uma caminhada de Brás
Cubas pela Rua do Valongo, deparamo-nos com a seguinte cena, já bastante discutida pela
crítica, mas de fundamental importância para o entendimento do ‘novo’ espaço ocupado por
Prudêncio:
49
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois
de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que
vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas
únicas palavras: - "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro
não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu
moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele
deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É, sim, nhonhô.
- Fez-te alguma cousa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda,
enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe - disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado! (p. 150-151)
A escolha da Cais do Valongo, local público de comercialização de escravos, traz uma
carga simbólica ainda maior para essa cena. A rua, longe de ser um lugar acolhedor do
discurso de Prudêncio e de seu mais novo escravo, subverte-se em uma espécie de arena para
a brutalidade ali encenada, pois ela deve ser vista (e perversamente admirada) por todos que
nela passam. A reação brutal de Prudêncio, agora alforriado, em adquirir um escravo e aplicar
nesse os mesmos castigos brutais recebidos no espaço da casa dos Cubas, gera certo
desconforto no decorrer da leitura não só por se tratar de uma cena forte, mas principalmente
por ser Prudêncio o carrasco de seu irmão de escravidão – daí estende-se a nós o espanto do
personagem Brás Cubas. No entanto, como bem analisado por Schwarz (1992), essa é uma
atitude inteiramente compreensível se levarmos em consideração o modo como a violência
fez/faz parte da vida de Prudêncio: uma criança criada em um espaço de violência e
brutalidade, acaba por tornar-se, em sua vida adulta, uma pessoa igualmente violenta e
embrutecida pelas relações sociais por ela vivenciadas. Se considerarmos, então, a
macroestrutura deste poder instituído, tal brutalidade se configura ainda maior, já que há uma
repetição da hierarquia social de poder internalizada por Prudêncio, que o faz agir sob a égide
do sistema de posses e aparências que rege essa sociedade e do qual o próprio fora/é vítima.
Isso fica evidente na explicação dada pelo narrador:
Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia
ser Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e tinha uma curiosa maneira de a
explicar.
- Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei
tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. O
tártaro tem a virtude de fazer Tártaros.
Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e
com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim
50
contada, no papel, e a propósito de um vergalho recebido e transferido, força é
confessar que é muito melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos
e Prudêncios. (p.152)
Recorrendo mais uma vez a Schwarz (1992), observamos, nessa historieta de um
tempo passado do narrador, inserida de forma quase despretensiosa após o desenrolar da cena
de tortura efetuada por Prudêncio, como esse processo de relações violentas acaba por
embrutecer a figura do ex-escravo, fazendo-o, agora em sua fase de pseudo-liberdade,
reproduzir as mesmas ações violentas das quais foi vítima. Cabe, ainda, a menção à
ambiguidade do termo tártaro transcrito na citação que remete ao medicamento usado pelo
doido Romualdo, mas que, deslocado para a personagem Prudêncio, também pode se referir
ao Tártaro clássico, correspondente grego do inferno cristão, evidenciando ainda mais o
inferno vivido pelo personagem no transcorrer do romance. Em última análise, mesmo agora
tendo a palavra e o chicote em mãos, Prudêncio ainda não se torna efetivamente sujeito de
suas ações. Talvez seja essa a motivação para a escolha de seu nome, pois a virtude da
prudência, caracterizada como o ato de prever e procurar evitar os perigos e inconveniências,
aplica-se justamente às feições tidas pela personagem ao longo do texto: longe de ser sujeito
de ações libertadoras e ousadas contra esse sistema escravocrata estabelecido, Prudêncio o
internaliza, tendo como sua principal companheira, a violência de cada dia. Seu espaço, tal
como em sua vida de escravo em que era “o cavalo de todos os dias” de Brás, continua
perpassado por ações brutais e violentas da esfera social que o criou. Além do mais, ele
guarda resquícios de servilidade em relação ao seu antigo dono, como se evidencia no ato de
pedir a benção de Brás, e por dizer, sem maiores cerimônias, que Brás não pede, mas manda
em suas ações. Tal como o menino-diabo é o pai do senhor de escravos, o menino-escravo
permanece brutalizado mesmo como homem livre.
Vejamos agora o final do referido capítulo:
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui
caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente
perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos
capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo;
mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe
um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de
se desfazer das pancadas recebidas - transmitindo-as a outro. Eu, em criança,
montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele
gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços,
das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição,
agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto
juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto! (p. 151.
Negritos acrescidos)
51
Em uma lógica capitalista recorrente em todo o livro, a leitura do narrador para essa
cena, como comentado anteriormente, passa pela simples transmissão da violência para outro
indivíduo, tal como uma rotineira negociação bancária. Essa frivolidade ao tratar do assunto,
alvo dos possíveis cochichos descritos no início da citação, talvez seja o dado mais
característico da personalidade de Brás Cubas. Ele próprio se descreve como adepto “à
contemplação da injustiça humana, como alguém inclinado a “atenuá-la, a explicá-la, a
classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das
circunstâncias e lugares” (p.55). Em um perfeito retrato decadente de sua classe, Brás Cubas
preocupa-se tão somente em catalogar ou discursar sobre as injustiças da esfera pública ao seu
redor, pois a solução para tais mazelas encontram-se distantes devido à interferência gerada
por seus próprios interesses. Temáticas como a abolição da escravatura, relações de interesses
deterioradas, entre outras deformações morais pertencentes àquela sociedade, nem passam
pela mente da personagem, que apenas se preocupa em tirar vantagem de tais circunstâncias.
Outro destaque importante a ser feito aqui, diz respeito à aproximação entre os
espaços de Brás Cubas e Quincas Borba. Quincas Borba, assim como outras personagens do
romance, possui duas fases marcantes ao longo da narrativa (desconsiderando os relatos de
infância de Brás Cubas em que são mencionadas as travessuras de Quincas).
A primeira fase é caracterizada por um encontro casual de Brás Cubas com seu velho
amigo, enquanto caminhava pelas ruas da cidade fluminense. Um dado importante desse
encontro é o fato de, embora amigos de infância, Brás Cubas e Quincas estarem em posições
sociais (e, consequentemente, espaços) diferentes: o primeiro, burguês frequentador de
variados salões de festas, e o segundo, mendigo morador da escadaria da Igreja de São
Francisco. Observemos esse encontro insólito:
Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que não me pareceu
desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse.
Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As
roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era
contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que
pediam as carnes - ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o
passo a um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos
botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras,
enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem
graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas
desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete,
um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
- Aposto que me não conhece, Senhor Doutor. Cubas? - disse ele.
- Não me lembra...
- Sou o Borba, o Quincas Borba. (p. 135-136)
52
Nesse primeiro reencontro, fica evidente a decadência humana em que se tornara
Quincas Borba. O espanto de Brás Cubas, ao detalhar cada botão (ou ausência deles) da roupa
de seu velho companheiro de travessuras, chama a atenção principalmente por demarcar o
abismo social que agora se instaurou entre os dois. Agregue-se a isso o fato de Quincas ser
descrito como um verdadeiro fantasma alto, esquelético e pálido a encarar o atônito Brás
Cubas, fato que se comprova, inclusive, pelo ritmo lento da descrição da cena, na qual o
narrador descreve, vagarosamente, cada detalhe da roupa roída do amigo de infância,
culminando, em um último ato de espanto, na aterradora afirmação de que aquela pessoa (ou
o que sobrou dela) era, de fato, Quincas Borba. Continuemos a leitura rumo ao desfecho dessa
cena, já no capítulo seguinte:
- E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?
E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. Separamo-nos
finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste.
Já não dominava em mim a parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-
lhe a miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem
de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que separa as
esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...
- Ora adeus! Vamos jantar, disse comigo.
Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-mo
no abraço. (p. 139. Negritos acrescidos)
Como visto, o encontro de Brás Cubas com seu antigo amigo de classe é
extremamente turbulento. Não obstante o choque do narrador ao perceber a atual posição
social de seu decadente amigo, Brás, mesmo após a ‘generosa’ esmola dada ao agora mendigo
Quincas Borba, ainda tem o seu relógio furtado por aquele que era considerado de forma
aparentemente positiva por ele. Vejamos agora, as reflexões do narrador sobre esse episódio:
Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do
furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão...
Desde a sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e
então jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu
queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o
encontro do Quicas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não qual fora
deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno. [...] Não era
impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar. A
necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa
enchia-me o coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma
admiração de mim próprio... Nisto caía a noite; fui ter com Virgília. (p. 139-140.
Negritos acrescidos)
53
Como podemos perceber nessa sequência de citações, o encontro com Quincas Borba
afeta, desproporcionalmente, a personagem Brás Cubas. Quiçá esse seja o único momento em
que surge um sentimento de inquietação na personagem para buscar a salvação daquela
existência miserável (dando margem a interpretação se determinada atitude seria de fato
filantrópica ou apenas mais um meio de, através da miséria do outro, proporcionar o seu
próprio engrandecimento). Tal impulso, mesmo que breve, pois fora esquecido nos braços de
Virgília já nas primeiras frases do capítulo seguinte, causa certo estranhamento, precisamente
por não encontrarmos nenhuma correspondência a essa atitude ao longo de todo o romance.
Podemos especular os motivos para esse estranhamento justamente no fato de ser esta a
primeira vez em que Brás tenha que enfrentar, face a face, não só a deterioração de seu velho
amigo, mas a sua própria ruína moral. Semelhante a uma assombração, essa cena estremece
de tal forma os alicerces morais da personalidade egotista da personagem, que se julga no
direito de fazer o que bem entende, colocando-o não só em face do outro, mas no lugar
arruinado e corroído do outro. Desnuda-se, pois, o seu passado de relações abjetas,
flageladas e esfarrapadas, tal como a roupa de seu interlocutor. Enfim, mesmo correndo o
risco de sermos ousados ou levianos nessa afirmação, talvez esse seja um momento impar em
toda a narrativa em que Brás Cubas, extremamente afetado pelo encontro com o maltrapilho
Quincas, não somente reconhece o outro, mas se coloca no lugar do outro, compartilhando
sua ruína.
Ainda em relação ao insólito encontro, cabe-nos mencionar o trecho do romance, já
discutido nesta pesquisa, no qual, em nossa leitura, o narrador apresenta como a principal
característica do mundo além-túmulo o fato de, longe dos olhares da sociedade, poder
mostrar, na metáfora dos trajes usados, todos os rasgões e remendos de sua própria existência.
Ora, valendo-nos da mesma metáfora, podemos concluir que, enquanto Brás Cubas necessitou
morrer para ter a liberdade de mostrar esses rasgões de sua alma/moral, o seu amigo-
semelhante Quincas Borba o faz em vida, pelas condições socioeconômicas desfavoráveis.
Análogo a um espelho, Quincas Borba reflete, com todos os seus rasgões e farrapos morais,
uma realidade arruinada e compartilhada pelo próprio senhor de escravos. Em outras palavras,
o verdadeiro combustível de Brás Cubas para tentar ajudar seu velho amigo Quincas Borba
não é o valor da amizade, tampouco a filantropia, mas, sim, a salvação de si próprio,
escondendo não só os rasgões da existência deteriorada do amigo, mas, sim, o reflexo de sua
própria deterioração moral.
54
Já em relação à segunda fase de Quincas Borba na narrativa (que demandaria, por si
só, outra pesquisa devido à complexidade de sua construção), encontramos uma completa
transformação da personagem se compararmos com a fase vista acima. Após ganhar uma
herança de um velho tio de Barbacena, Quincas retorna ao foco da narrativa como uma
espécie de consultor/mentor de Brás Cubas na doutrina filosófico-religiosa criada por ele: o
Humanitismo. Essa doutrina, segundo o seu criador, consistia no:
princípio das cousas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os
homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação;
a expansiva, começo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará
mais uma, a contrativa, absorção do homem e das cousas. A expansão, iniciando o
universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais
do que a multiplicação personificada da substância original. (p. 208)
Embora esse início do ‘manifesto Humanitas’ guarde um pouco da loucura desconexa
peculiar ao seu criador, na sequência da eloquente fala doutrinária de Quincas Borba
encontramos a verdadeira essência de sua mais nova religião:
Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba desenvolveu-a
de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas do sistema. Explicou-me
que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição
dos homens pelas diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na
religião indiana tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era no
Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins
de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender dos cabelos ou
da ponta do nariz. (p. 208-209)
Temos aqui, a primeira característica real do Humanitismo configurando-se em uma
sociedade dividida não somente em castas, como no Bramanismo, mas em classes sociais
capitalistas. Interessante perceber como na gradação de importância das partes do corpo
temos, metaforizada, toda uma justificativa para a desigualdade que imperava na ‘nova’
doutrina religiosa de Quincas. Seguimos adiante com o discurso:
Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias
pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida
é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte
(o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida,
longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual.
Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer. [...] Nota que eu não
faço do homem um simples veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo
veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido; daí a
necessidade de adorar-se a si próprio. (p. 209. Negritos acrescidos)
55
Outra característica relacionada à religião Humanitas é a importância exacerbada dada
ao próprio corpo. Travestido de um pseudo-sentimento de preservação da vida, esse princípio
centraliza e reitera, na forma de uma espécie de culto egotista, o desejo cultivado pelo
narrador de só levar em consideração o mundo a partir de suas próprias sensações e desejos,
não reservando, com isso, qualquer tipo de espaço para o reconhecimento do outro.
(1) Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como
se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava
filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a
própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,
senão este mesmo frango. (2) Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano,
suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um
navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze
homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha
e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora
mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único
fim de dar mate ao meu apetite. (p. 209-210. Parêntesis acrescidos)
Na primeira parte deste excerto, verificamos um processo de naturalização das
mazelas sociais, tais como a fome e a guerra. Longe de serem combatidos pelo ponto de vista
ético e moral, esses elementos são meros vetores necessários para a preservação de um
sistema, como explicado pelo Humanitismo. Já na segunda parte da citação, encontramos a
explicação Humanitas, mais do que naturalizada, de uma terceira mazela social observada
naquele período, que é a escravidão. Toda a saga de tortura e de exclusão vivida por um
africano vendido como escravo para o Brasil, e ainda, toda uma história de trabalho braçal na
construção do navio que transportou esse negro, é racionalmente justificada pelo simples
prazer da personagem Quincas Borba lambuzar os dedos com um saboroso pedaço de frango.
Mas ainda quando tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspondessem no
futuro à concepção acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o
sistema, e por dois motivos: 1° porque sendo Humanitas a substância criadora e
absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se ao
princípio de que descende; 2° porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual
do homem sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as
estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro,
não era tão tolo como o pintou Voltaire. (p. 211)
Talvez seja essa a face mais cruel do Humanitismo criado por Quincas, travestido de
uma falsa tentativa de entender o outro; a filosofia criada pela personagem furta do sujeito
qualquer direito à voz ou a algum questionamento. As mazelas pelas quais passam os sujeitos,
segundo a premissa Humanitas, são demasiadamente naturais, pois o sofrimento passado
pelos indivíduos torna-se irrelevante. O que fica é o propósito maior de manutenção de um
56
sistema opressor criado à revelia da maioria, solidificado apenas para gerar o prazer de
poucos. Em uma crítica direta ao cientificismo/determinismo muito presente no período
machadiano, vemos escancarado o absurdo de se teorizar as mazelas como sendo fruto de
uma condição natural do ser humano, e não como produtos de inúmeras relações sociais
desiguais e deterioradas, que nada mais fazem além de subjugar a maioria em detrimento dos
interesses de poucos.
Nesse ponto, o que parecia uma teoria inventada, afastada da realidade, utópica,
presente apenas na mente doentia de um ex-mendigo agora filósofo, torna-se uma leitura
extremamente crítica da própria realidade desnudada ao longo de todo o livro. Todas as
relações de interesses envolvidas na interseção dos espaços públicos e privados, motivadas,
em sua maioria, apenas pelos desejos individuais de poucos no transcorrer da narrativa,
podem ser sintetizadas dentro dos alicerces ‘lógicos’ da teoria Humanitas. Em última análise,
mais do que somente um delírio de um lunático religioso, encontramos nas premissas do
humanitismo uma leitura de uma realidade nada humana devido à crueldade e brutalidade de
suas relações. Nesse sentido, ocorre novamente a fusão dos espaços de Brás Cubas e Quincas
Borba: ao declamar os preceitos humanitas para Cubas, Quincas Borba recebe apoio
incondicional de seu interlocutor (beirando, inclusive, a um sentimento de idolatria por parte
de Brás), justamente por apresentar todos os princípios já seguidos pela personagem ao longo
de sua vida. Assim, as palavras de Quincas tornam-se uma espécie de ‘benção’ dada às
atrocidades por ele cometidas.
Por fim, a última faceta de Brás Cubas aqui analisada refere-se à sua vida pública,
tanto em relação à sua meteórica carreira política, quanto a sua ambiciosa – e não menos
desastrosa – empreitada na carreira médico-científica. Optamos, nesse caso, em seguir a
ordem cronológica do romance, discorrendo sobre os motivos que levaram ao óbito da
personagem. Brás Cubas, no final de sua vida, é assolado por uma “ideia fixa” da “invenção
de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
melancólica humanidade.” (p. 34). À primeira vista, essa “ideia fixa” teria objetivos
puramente filantrópicos, pois os benefícios de um medicamento dessa natureza seriam de
grande valia. Cabe, ainda, menção ao modo como tal ideia “mata” a personagem em um
conceito que, embora pareça heroico, como alguém que morre por uma ideia, é rebaixado ao
estatuto do ridículo, devido ao tom jocoso da cena, na qual a real causa da morte da
personagem não passa de uma pneumonia adquirida graças a uma brisa ao abrir uma janela.
57
Dialogando com os teóricos apresentados no segundo capítulo desta pesquisa,
percebemos como a intenção de Brás Cubas estaria, a princípio, atrelada à esfera pública, pois
seria relacionada a um bem para os indivíduos de um modo geral. Tal premissa pode ser
confirmada, inclusive, no discurso cientificista glorificador do papel da ciência como a grande
salvadora da humanidade10
, a despeito de qualquer vaidade individual. Entretanto, na
sequência do capítulo, temos acesso aos reais motivos de Brás para a feitura de um
medicamento dessa natureza:
Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse
resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens
pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e
tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso
confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas
nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio,
estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão
do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam
esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a
minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público,
outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de
nomeada. Digamos: - amor da glória. (p. 34. Negritos acrescidos)
Desprovido de qualquer pudor ou ressentimento, vemos como o narrador, no espaço
além-túmulo, expõe a real motivação para a feitura do medicamento anti-hipocondríaco. Em
detrimento dos benefícios trazidos à sociedade, observamos como, através da metáfora da
moeda, costumeira alusão a relações movidas pelo capital, Brás Cubas escancara seu gosto
pelo reconhecimento público, o que verdadeiramente motivou a criação do referido
medicamento.
É interessante refletir sobre o modo como se dá essa apropriação da esfera pública
para uso e benefícios individuais de um único sujeito. Essa “habilidade” ou “talento” do
narrador não é, de forma alguma, uma exclusividade sua, mas, por extensão de sentido,
refere-se a toda uma classe, a qual ele representa. O sentimento egocêntrico cultivado pelo
narrador desde sua infância, longe de ser uma exceção no quadro político nacional do período,
era um ‘modus operandi’ para as ações dos sujeitos dessa mesma classe. Nesse cenário, os
únicos interesses que realmente deveriam ser cuidados e preservados não eram os da esfera
10
A esse respeito, vale ressaltar a visão crítica do próprio Machado em relação aos preceitos do Naturalismo,
que buscavam explicar/solucionar as mazelas sociais pela lente da Ciência, premissa essa, a qual Machado de
Assis era radicalmente contra.
58
comum, pública, que beneficiariam a todos, mas aqueles que garantiriam a manutenção do
status da classe privilegiada e, logicamente, de seus próprios interesses.
Dando um salto no enredo da narrativa vemos a personagem Brás Cubas alcançar,
depois dos vários percalços, o tão sonhado posto de deputado, ao lado de seu rival Lobo
Neves, cuja carreira política, nesse momento da narrativa, encontra-se já em decadência.
Ironicamente, como simbolizado pouco antes desse encontro, no título do capítulo CXXI
Morro abaixo, notamos como a vida de Brás Cubas também se encontra em franca
decadência, fato perceptível no tom em que o narrador profere boa parte do capítulo final do
romance.
Quando um indivíduo ingressa na carreira pública, espera-se que suas ações sejam
tomadas em prol do bem comum, por meio de projetos cunhados para acatar os interesses da
maioria da população. Todavia, semelhante à historieta do emplasto Brás Cubas, não é essa
exatamente a preocupação tida por Brás ao ingressar na carreira política, isso se observa
quando concorre ao cargo de ministro do Estado e no discurso feito na Câmara dos deputados:
Vê-se nas menores cousas o que vale a autoridade de um grande filósofo. As
palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o torpor moral e mental em
que andava. Vamos lá; façamo-nos governo, é tempo. Eu não havia intervido até
então nos grandes debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e
votos; e a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.
Comecei devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da justiça, aproveitei
o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a
barretina da guarda nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da pergunta, mas
ainda assim demonstrei que não era indigno das cogitações de um homem de
Estado; [...] Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a
pátria precisava de cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do
poder; e concluí com esta ideia: o chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é
árvore de cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do deserto, das praças e dos
jardins. (p. 229-230)
Nesse excerto, as verdadeiras intenções políticas de Brás Cubas são reveladas sem o
menor pudor. Brás não buscava o bem do outro, nem a mudança da estrutura política, muito
menos discutia algo verdadeiramente relevante para os rumos do país. Como descrito
anteriormente, a personagem apenas preocupa-se com o valor social do cargo que ocupa. Para
ser o centro das atenções dentro do parlamento, ele se vale de discursos peremptórios, com
citações rebuscadas e referências históricas importantes, mas que, na prática, não passam de
palavras vazias proferidas ao esquecimento de sua inutilidade.
A possibilidade de uma mudança no caduco cenário político nacional é totalmente
ignorada pela personagem, pois isso interferiria em seus próprios interesses individuais. Para
59
solucionar o problema de cidadãos esmagados por um sistema político opressor, Brás Cubas
não enxerga nada além de uma mudança na aparência da guarda através de seu vestuário.
Nem sequer cogita uma transformação mais profunda na essência do problema, pois essa,
segundo a herança maldita de aversão ao trabalho que ele carrega, além de requerer muito
esforço, afetaria seus próprios interesses. Nesse sentido, ao se expor a questionável
pertinência dos projetos de Brás para a melhoria da condição de seus semelhantes, escancara-
se todo o ridículo de um indivíduo incapaz de reconhecer o outro além de sua simples
aparência. Ao final do capítulo da citação anterior, o personagem se mostra descontente com
o próprio projeto político, defendendo-se pelo argumento da data postergada para o início da
execução de sua ideia, contudo, tarde demais para salvar a sua já condenada carreira política:
Vária foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloquente, à parte
literária e filosófica, a opinião foi só uma; disseram-me todos que era completo, e
que de uma barretina ninguém ainda conseguira tirar tantas ideias. Mas a parte
política foi considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso um
desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me davam já em oposição,
entrando nesse número os oposicionistas da Câmara, que chegaram a insinuar a
conveniência de uma moção de desconfiança. Repeli energicamente tal
interpretação, que não era só errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade com que
eu sustentava o gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a barretina não
era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e que; em todo caso, eu transigiria
na extensão do corte, contentando-me com três quartos de polegada ou menos;
enfim, dado mesmo que a minha ideia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado
no parlamento. (p. 230)
Finalizando a análise dos espaços ocupados pela personagem ao longo de sua vida,
observamos como as relações de interesse, características a priori pertencentes à esfera
pública, perpassam toda a esfera privada da família de Brás através de uma herança familiar
que renega qualquer ligação com o trabalho braçal e de uma educação permissiva ao extremo
que não estabelece limites aos desejos desmedidos do pequeno senhor de escravos. Já em sua
vida adulta, encontramos os reflexos dessa criação viciosa, sobretudo pelo sentimento egotista
cultivado pela personagem ao não reconhecer, em nenhuma circunstância, o outro como
sujeito, como pudemos verificar na relação entre Brás e Prudêncio, por exemplo.
A vida pública de Brás, longe de alçar voos altos e prósperos, é calcada no fracasso.
Assim como as empreitadas científicas para a invenção do Emplasto Brás Cubas, ela fora
alicerçada apenas pelo intuito da autopromoção e clamor pela glória e não na busca do
benefício ao outro. Depois desse breve trajeto pelas histórias de fracassos públicos de Brás
Cubas, é interessante ressaltar um trecho, despretensiosamente posto logo no início do
60
romance, em que o narrador, quase que por um impulso, mostra o seu real espaço em relação
às figuras políticas de destaque na sociedade: um parasita social:
Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus
confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que
este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já
desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma
filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem
destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos
do que apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os
seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina,
nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me
lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que
trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se
riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé
de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras
bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra
daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a
arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia
ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.
(p.37-38. Negritos acrescidos)
Nesse trecho aparentemente inocente que praticamente abre as memórias, vemos
desvelada a posição não só do narrador, mas de toda a sua classe, tal como as bandeiras
menores vivendo à custa da grande bandeira, ou, ainda, do povo que sobrevive com a ruína do
castelo. A classe social desse senhor de escravos vive como parasita que suga, com base em
relações de opressão, toda a vida de uma nação, causando, inclusive, sua própria ruína moral.
No entanto, longe de ter remorso, ou culpa, essa classe-parasita sobrevive, tirando vantagem
após vantagem de sua posição social, mesmo que isso culmine no desmoronamento, ou,
melhor dizendo, na decomposição de toda uma sociedade ao seu redor. Esse senhor de
escravos, em última instância, como bem proposto por Duarte (2007), representa o próprio
retrato da deterioração de sua classe. Machado não só mata o senhor de escravos, anos antes
da proclamação da lei Áurea, mas o faz falar, desmanchando-o a partir de suas próprias
relações pútridas não só com os escravos, mas com todos os que cruzam o seu caminho.
Ainda recorrendo aos estudos de Duarte (2007), vê-se que, talvez, o nome Brás seja o
que mais representa essa mácula moral da personagem, justamente por evocar a própria
deterioração do ‘Bras-il’ a partir da podridão dos espaços ocupados não só por Brás Cubas e
sua família, mas por toda uma elite senhorial brasileira. Ao longo da leitura dessas memórias
de um defunto (senhor de escravos) autor, vemos como Machado “Constrói a morte que não
se traduz em silêncio. Ouvimos o defunto-autor, que não têm descendentes, mas tem
61
memória, ou melhor, memórias: uma individual, outra coletiva. Vozes de um tempo ido, sem
amanhã.” (DUARTE, 2007, p. 276).
3.2 Mulheres em Decomposição: Espaço das Figuras Femininas
Ao longo de nossa iniciação científica, o principal foco analítico empregado na leitura
do romance em questão foi justamente a análise da construção do espaço das personagens
excluídas socialmente na sociedade brasileira do século XIX. Nesse bojo, além da figura do
escravo, que possuía seus direitos ceifados pelo sistema escravocrata vigente, analisamos o
espaço das figuras femininas mais importantes ao longo do romance, que, em uma primeira e
ingênua leitura, acreditávamos estar limitado a um completo silenciamento em relação às
personagens masculinas da obra, movimento esse, gerado em razão do sistema patriarcal
opressor da época.
Ao defender a tese de uma submissão da figura feminina, em maior ou menor grau,
Ingrid Stein (1984) analisa como na obra machadiana, sobretudo a partir da estrutura do
casamento, a mulher é colocada em segundo plano no que diz respeito às decisões tomadas
em sua vida, função que segundo a autora, sempre foi delegada a uma figura masculina.
Entretanto, a própria autora aponta o movimento de resistência das personagens femininas na
busca por mostrar como essas figuras machadianas sempre tentam ultrapassar os limites a elas
impostos, chegando a colocar as personagens em um lugar que beira o heroísmo contra um
poder opressor.
Relativizando um pouco a perspectiva da autora, em que fica evidente o viés feminista
adotado, observamos como a posição das mulheres era extremamente ambígua e movediça ao
longo de todo o texto. Nesse aspecto, defendemos a hipótese, como pode ser observado em
nosso primeiro artigo publicado como fruto dos primeiros anos de pesquisa (cf. SOUZA,
2009), de que essa submissão feminina possa ser ilusória, pois, como veremos adiante, as
mulheres encenadas ao longo do romance estavam diretamente envolvidas nas relações de
interesses que envolvem as personagens do romance. Nesse sentido, não consideramos que as
mulheres representadas no discurso romanesco machadiano sejam heroínas ou como meras
vítimas indefesas de um sistema. Pelo contrário, como observaremos a seguir, as figuras
femininas corporificam, através de seu espaço, tal como qualquer outra personagem, o intenso
jogo de aparências que permeia a obra como um todo.
62
Marcela: um verme chamado lucro
Adentrando a vida adulta, com seus dezessete anos, a personagem Brás Cubas sentia-
se impulsionado pelos arroubos da juventude. Buscando sempre se afirmar como homem,
ilude-se com um bigode que não passava de um mero “buçozinho”, evidenciando toda a sua
inocência e inexperiência em relação à vida como adulto. Uma passagem interessante acerca
desse período da vida do narrador é descrita no capítulo XIV:
Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas,
chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como
o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para
dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi
preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e
vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros. (p. 65)
Observamos nessa imagem, como uma voz autoral ecoa na fala do narrador para
discorrer sobre os movimentos literários de seu tempo. Ao nos mostrar a decadência do corcel
romântico, metonímia clara da própria estética do romantismo, o autor implícito parece
realçar não só a estética realista adotada na composição do livro em análise, mas,
principalmente, mostrar a própria deterioração dos discursos literários de seu tempo. Por esse
viés, a estratégia textual utilizada por Machado (1999) de trazer, na composição formal de seu
romance, o discurso de um defunto autor como estrutura central da obra, pode apontar para
uma crítica não só à elite burguesa de sua época, mas também aos pares literários do próprio
Machado de Assis.
A esse respeito, vale a lembrança do movimento de ruptura ocasionado por essa obra
na cena literária de seu tempo: as inovações formais do romance (pelo menos no que se refere
à estética adotada no Brasil nesse período) como capítulos muito curtos, em alguns casos
feitos apenas de sinais de pontuação, além da inserção de gêneros outros (bilhete, carta,
epitáfio, provérbios) na tessitura do texto literário, tensionam a própria composição do gênero
romanesco tradicional, como visto no comentário feito por Capistrano de Abreu (2013). Nesse
sentido, pode-se encenar a própria corrosão desse tipo de discurso literário romântico jogado
aos vermes, como a imagem do corcel acima, que não mais representaria o momento social na
qual a obra machadiana está inserida. Nesse caso, não encontraremos, ao longo da leitura,
personagens femininas estereotipadas como frágeis e indefesas (comuns no romantismo),
63
afinal, neste romance, todas estão sujeitas ao mesmo verme que corrói tudo e todos numa
sociedade movida pelo interesse e pelos jogos de poder.
Por essa perspectiva, a primeira personagem feminina a se destacar no romance após
esse impulso de jovialidade de Brás Cubas é a prostituta Marcela, classificada pelo narrador,
como o seu primeiro “cativeiro pessoal” (p. 65). Filha de um hortelão das Astúrias, Marcela
possui como principal característica, em sua primeira fase no romance, a beleza e esperteza
fora do comum. Vejamos como o narrador a descreve:
Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela
não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era
boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que
lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa,
impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um
certo Xavier, sujeito abastado e tísico - uma pérola. (p.66)
Temos aqui uma estratégia retórica muito utilizada por Machado (1999) na construção
da fala de seu narrador; ao descrever as supostas virtudes de Marcela como sendo “boa
moça”, “lépida”, “de inocência rústica”, o narrador acaba por nos apresentar os vários vícios
morais da vida de prostituição da personagem. Longe de ser uma figura que seguisse a
cartilha dos bons costumes, Marcela de nada queria saber em relação ao código moral da
época, interessando-se somente em ser amiga do dinheiro e de rapazes. Outro detalhe sutil,
mas extremamente pertinente, é a natureza da relação entre Marcela e Xavier. Xavier sofria de
tuberculose, uma das mais terríveis doenças do período, incurável na época, e que matava
pouco a pouco seus portadores. Nunca é demais lembrar que tal moléstia era extremamente
contagiosa o que acarretava, na maior parte dos casos, a segregação dos infectados, buscando-
se a prevenção do contágio das pessoas do círculo próximo ao paciente. Sendo assim, o que
deveria servir como empecilho para o relacionamento entre Xavier e Marcela torna-se
irrelevante, não por haver amor entre os dois, longe disso. O que faz Marcela por em risco a
própria saúde para prosseguir nessa relação é o fato de Xavier possuir um grande poder
econômico. Ou seja, nesse caso em especial, a saúde de Marcela tinha um preço alto que a
personagem não hesitara um só momento em pagar, diante da possibilidade da morte próxima
de Xavier.
Outro detalhe importante é a relação da prostituta Marcela com o espaço da rua.
Marcela, em nenhum momento da narrativa, é vista caminhando ou trabalhando na rua. Pelo
contrário, como mostra o trecho acima, ela não podia caminhar livremente por esse espaço
público para mostrar os “estouvamentos e berlindas” de sua vida como prostituta. Apenas em
64
uma breve passagem do capítulo XV é sugerido algo relacionado ao andar da personagem,
pelo comentário de que vira um colar em uma joalheria. Tal informação é, porém, um tanto
ambígua, pois não sabemos ao certo se de fato ela caminhava quando avistou o colar, ou se
tudo não passou de uma estratégia para, aproveitando-se da inocência de Brás Cubas,
extorquir mais um presente caro do seu mais novo pretendente.
Em última análise, parece-nos que o espaço da rua apresentado no romance,
principalmente no que tange às personagens femininas, é o espaço por excelência da moral e
dos bons costumes da vida burguesa. Distante de ser um espaço efetivamente público,
pertencente a todos e a todas, o espaço da rua no romance segue seus próprios estatutos,
guiados inclusive por interesses particulares, já que apenas quem mantivesse a sua face social
conveniente poderia, de fato, caminhar e passear pelas ruas e avenidas. Ao invés de mostrar as
berlindas e estouvamentos, frutos de uma vida desregrada para os padrões sociais da época, o
espaço da rua estaria reservado para aquelas que mostrassem o recato e os bons costumes.
Focalizando mais detidamente o espaço ocupado pela personagem ao longo da sua
primeira fase na narrativa, observamos que sua beleza estonteante e as roupas luxuosas
oriundas da vida de prostituição expandem-se, também, para o espaço de sua casa:
Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia
obter; Marcela juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro, cuja chave
ninguém nunca jamais soube onde ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa
em que morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de
jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixela - uma
linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador. Baixela do diabo, deste-me
grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava
o tédio que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de antanho. (p. 68)
Além do preconceito inerente à época em relação aos escravos, verificamos, nesse
trecho, como a casa de Marcela faz lembrar quase um museu de seus tempos de prostituição,
devido aos vários presentes (quase em forma de espólios de guerra) dos vários pretendentes
que passaram pela vida e pela cama da formosa espanhola. Outro ponto que chama a atenção,
sobretudo no que tange à comparação com a segunda fase da personagem na narrativa, é o
espaço luxuoso no qual a prostituta vivia. Temos um espaço de luxo e glamour, cenário
perfeito para as inúmeras conquistas que ela empreende ao longo de sua vida.
No que diz respeito ao triângulo amoroso, Brás Cubas – Marcela – Xavier,
percebemos uma completa ausência de pudor por parte do narrador em externar o modo como
a sua relação era baseada puramente no capital. Vejamos três trechos do romance em que essa
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relação é externada. Primeiro, na fala do narrador sobre o modelo político de “partilha” de seu
mais novo primeiro amor:
Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de
nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta,
regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de
Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as
insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana.
(p.68)
E agora, nas duas passagens em que o narrador equipara o amor que Marcela sentia
por ele a questões de cunho capitalista:
Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir
dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele
dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a
todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso,
que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a
minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava às escondidas. Era
pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a
assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura. (p. 68)
O que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a
cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada. Marcela,
por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me...
... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu
pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o
caso excedia as raias de um capricho juvenil. (p. 71)
No primeiro trecho, pelo modo como Brás dividia o ‘amor’ de Marcela com o seu
rival ‘cheio de tubérculos’, vemos posta, em um mesmo patamar, ações de cunho político de
poder e ações relativas à paixão, nos moldes já mencionados da esfera privada, a mercê das
relações regidas pelo capital (esfera pública). Não é demais notar como o próprio narrador
titubeia ao definir a natureza de sua relação com a formosa Marcela. Isso é facilmente
explicável justamente pela forma com que ela é conduzida, pois em nada lembra uma relação
amorosa de paixão, mas, sim, como o próprio narrador parece reconhecer em sua fase além-
túmulo, uma pura e simples relação comercial. Além disso, é importante salientar que o tom
com o qual a personagem comemora a sua ‘vitória’ remonta, principalmente pelo uso da
expressão “poderes na minha mão”, a uma sensação de que o personagem foi o grande
vencedor da disputa, não só pelo ‘amor’ de Marcela, mas principalmente pelo poder de uso
exclusivo (posse) da prostituta. No entanto, como expresso nos dois trechos seguintes, a
grande vencedora desse jogo de interesses é a própria Marcela, ao conseguir arrancar mais e
mais dinheiro do “asno de Sancho” (p. 67) Brás Cubas.
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Outra mostra das artimanhas de Marcela para dominar o jovem Brás Cubas em busca
de dinheiro e presentes caros, pode ser verificada no longo diálogo entre os dois personagens
em que ocorre a menção ao ‘amor’ que ela nutria pelo alferes Duarte:
Jamais consentiria que lhe comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências,
mas a realidade, guardava-a para poucos. Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que
ela amara deveras, dous anos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de
valor, como me acontecia a mim; ela só lhe aceitava sem relutância os mimos de
escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas.
- Esta cruz...
Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita
azul e pendurada ao colo.
- Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que...
Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima:
- Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem
cá, chiquito, não sejas assim desconfiado comigo... Amei a outro; que importa, se
acabou? Um dia, quando nos separarmos...
- Não digas isso! bradei eu.
- Tudo cessa! Um dia...
Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos, tomou das
minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido:
- Nunca, nunca, meu amor!
Eu agradeci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar que havia
recusado.
- Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.
Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou
atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal
desfeita, que ficasse com a joia. Sorriu e ficou. (p.69-70)
Como fica evidente nesta passagem, Marcela, valendo-se do ciúme e da inexperiência
do jovem Cubas, manipula o seu mais novo “chiquito” até que ele a presenteie com uma joia
cara. Outro fato que chama atenção nesse episódio, além da origem controversa do colar de
ouro, é o modo escancarado com que Marcela fala sobre o valor dos seus (pseudo)
sentimentos. Quase como um movimento que remete a uma ‘tabela de preços’ pelos seus
serviços, a formosa prostituta busca defender-se de uma possível acusação acerca da enorme
rotatividade de rapazes com os quais se deita, ao vangloriar-se de ‘apenas’ vender as
aparências, e não a verdadeira essência de seus sentimentos, que é guardada para poucos.
Contudo, o que poderia ser um fator positivo (ou pelo menos atenuante) da vida desregrada de
prostituta, torna-se mais um elemento dentro da negociação pelos seus serviços,
comercializados ao preço adequado, posta no texto como uma cena dramática com ares de
farsa.
Após a volta de Brás Cubas da Europa em virtude da doença/morte da mãe, tem início
a segunda fase de Marcela na narrativa. O senhor de escravos, já como um homem feito,
agora busca um casamento e uma vida pública estáveis, que garantam a manutenção de seus
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interesses. O reencontro com Marcela ocorre de modo inusitado e mostra a degenerescência
física da prostituta. Eis então que surge a seguinte cena no capítulo intitulado A quarta
edição:
Entro na primeira loja que tinha à mão; era um cubículo - pouco mais, - empoeirado
e escuro.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e
bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava
era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora
bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíam-lhe a
flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos,
faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa
grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás
tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu
comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais
da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis,
pósteros? Essa mulher era Marcela. (p. 108. Negritos acrescidos)
Na passagem acima, verificamos como o corpo de Marcela, espaço do prazer e do
erotismo, em seu tempo de formosa prostituta, transforma-se em um corpo decadente, reflexo
do espaço de ruína e de doença ocupado pela personagem em sua segunda fase na narrativa. A
prostituta glamorosa, de uma beleza estonteante, dá lugar a uma mulher de rosto corroído pela
varíola e pela velhice. Vale destaque o modo como o narrador descreve Marcela como sendo
um vulto, uma figura pouco nítida, disforme, de certo forma aterrorizante, semelhante à
imagem do ‘fantasma Quincas Borba’ analisada anteriormente, na qual se expõe a Brás Cubas
todo um retrato da ruína humana.
Além disso, tal transformação física da personagem é acompanhada de uma inteira
modificação de seu espaço físico: o prostíbulo elegante, bem decorado, frequentado pelas
altas classes burguesas em busca de diversão e prazer, transformou-se em um cubículo
empoeirado e escuro. A simbiose entre espaço e personagem é tão significante que a mesma
poeira que recobre os portais da loja recobre também o cabelo de Marcela, já velha e
decadente.
Ao buscar explicação acerca do que devastara o rosto da formosa espanhola, a
personagem começa a interrogar os olhos da decrépita prostituta e questiona-se:
Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de outro tempo valia uma
terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de
Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já
outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não souberam ver-
lha; eram olhos da primeira edição. (p.109)
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Temos aí, o primeiro indício do que realmente ocorrerá com a prostituta e a causa de
sua tão grave moléstia: a chama da cobiça. No decorrer de seu raciocínio, o narrador conclui:
“Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que tinha o
dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era
o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois” (p. 110). Como
pode ser observado, a varíola, que devasta a saúde de Marcela, simboliza, no plano do enredo,
toda uma vida desregrada vivida por ela na primeira fase do romance. O jogo de relações de
interesse no qual a personagem atuava com destreza, agora cobra um preço alto marcando não
só o rosto, mas a própria existência da personagem. Em última análise, as bexigas que
corroem o rosto da espanhola e caracterizam definitivamente seu espaço no segundo momento
na narrativa, reflexo de suas relações capitalistas de cobiça e luxúria, são um fardo moral que
a acompanhará pelo resto de sua vida, marcado em sua pele e existência.
Deve-se ressaltar que o fato de analisarmos as bexigas de Marcela como um fardo
moral, não implica em uma crítica feita por Machado de Assis (1999) direta e exclusivamente
à personagem em questão. Muito longe de interpretarmos tal moléstia somente como um
castigo moral, apesar de defendermos a existência de traços para isso, postulamos que as
bexigas roedoras dessa flor-personagem simbolizam não um elemento particular, individual
da índole da prostituta, mas de todo um sistema capitalista que rege a sociedade da qual ela
fez parte. Nesse aspecto, o espetáculo grotesco descrito pelo narrador nada mais é que a
exibição da face em decomposição do próprio sistema capitalista e o seu verme roedor: o
lucro. Não por acaso, esse mesmo elemento é usado, como analisaremos no tópico a seguir,
para estabelecer uma ligação entre as personagens Marcela e Virgília, ratificando que as
‘bexigas’ não são um fardo moral individual, mas uma moléstia coletiva.
Virgília: a face burguesa da prostituta
Sem sombra de dúvida, Virgília, o “grão pecado” do narrador, é a personagem
feminina de maior destaque no romance em questão. Assim como a prostituta Marcela,
Virgília possui dois momentos de destaque ao longo da narrativa, a saber: a fase pré-
casamento com Lobo Neves e a relação adúltera após a consumação do matrimônio (além do
início da narrativa em que a burguesa, já viúva, visita Brás Cubas em seu leito de morte).
Filha de uma influente figura política, o conselheiro Dutra, a personagem torna-se uma
importante peça na corrida por uma candidatura à vaga de deputado, pois, de acordo com os
preceitos e arranjos políticos comuns à época, aquele que conseguisse se casar com Virgília
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ganharia, também, a candidatura ao cargo em questão. Dada a circunstância, Bento Cubas
enxerga na filha do Conselheiro uma ótima oportunidade para alavancar a vida política do
filho e prosseguir com a escalada arrivista da família. Devido à urgência com a qual esse
‘assunto de família’ deveria ser tratado, logo Bento Cubas convoca Brás a tomar parte nessa
‘empreitada política’. Este, com certa relutância, aceita conhecer melhor a sua futura
pretendente. Na visão do narrador, a sua primeira impressão em relação à Virgília era de uma
moça de
uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e,
com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza,
entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura
a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe
maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos
da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro
indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara,
faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma
devoção - devoção, ou talvez medo; creio que medo. (p. 94)
Nessa descrição física da personagem, observamos algumas características instigantes.
A primeira delas é o modo como a moça é caracterizada com traços relativos aos padrões
desejáveis para uma boa esposa na época (excluindo o seu atrevimento e voluntariedade):
jovem, religiosa – quer por fé, quer por medo – branca (uma clara influência de uma
sociedade escravocrata), ignorante (pois a capacidade de pensar, como visto na descrição da
mãe de Brás Cubas, não era uma característica benéfica para uma mulher, sendo a elas
reservadas apenas as faculdades do coração), enfim, todos os atributos que um homem
sonhava encontrar em uma boa esposa.
Brás, no entanto, não procurava tais características ao flertar com a filha de um
Conselheiro, pois, o que fica subentendido nessa passagem é o fato dela ser filha de uma
influente figura política. Por esse viés, pouco importa o fato de Virgília ser preguiçosa,
faceira, voluntariosa ou atrevida; desde que a bonificação pelo casamento, valiosa moeda de
troca na época, como defendido por Habermas (1984), fosse a candidatura para deputado.
Outra característica interessante nessa passagem, que dialoga com as outras aparições
de Virgília no romance, é o modo como a beleza física da personagem cresce aos olhos da
personagem/narrador ao longo da narrativa. Coincidência ou não, percebemos como tal beleza
pode estar associada à própria ascensão política do marido de Virgília, Damião Lobo Neves,
impulsionando assim, o próprio crescimento do status político da personagem burguesa.
Nesse sentido, a critério de exemplo, temos nesse excerto uma clara menção ao fato da
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personagem não ser tão linda como se poderia esperar de uma donzela aos padrões
românticos. Longe disso, encontramos na passagem a descrição de uma jovem saindo da
puberdade, suscetível a espinhas e sardas no rosto, cujo maior grau de beleza resume-se
apenas a um simples “Era bonita”. Já no capítulo LVI, O momento oportuno, encontramos
Virgília, já casada com Damião Lobo Neves, e, por consequência, em uma posição política
superior, na qual o narrador observa que:
A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos
substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem
mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença? (p.132).
Nesse excerto, a atração de Brás Cubas por Virgília parece ser justificada pela
elevação da beleza de Virgília, graças a sua ascensão política. Em outra passagem do
romance, o narrador, a despeito do que havia dito no primeiro excerto, demonstra-se extasiado
com a beleza da personagem em um estágio da narrativa na qual a carreira de Lobo Neves na
política, prestes a ser nomeado presidente de província, alça voos cada vez mais altos:
A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso, que não possuíra antes de casar.
Era dessas figuras talhadas em pentélico, de um lavor nobre, rasgado e puro,
tranquilamente bela, como as estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha
o aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer que, na realidade, resumia todo o
amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que exprimia mudamente tudo
quanto pode dizer a pupila humana. (p.141-142)
Podemos inferir nessa situação como, em uma sociedade governada pelas aparências,
toda a beleza física está muito mais atrelada a um estatuto da esfera social regido pela posição
política ocupada por determinada personagem do que propriamente guiada por algum critério
de cunho estético. Nessa perspectiva, a beleza está indissoluvelmente associada à posição
social ocupada, que passa a ser o maior critério de seleção de beleza na obra.
Aproveitando o ensejo do segundo triângulo amoroso do romance, Brás Cubas – Lobo
Neves – Virgília, valendo-nos, mais uma vez dos estudos de Habermas (1984), discutiremos
um pouco mais a estrutura do casamento, A princípio vista como pertencente à esfera privada,
tal instituição ganha, com a ascensão da burguesia, contornos da esfera pública por meio da
supremacia do interesse. Mesmo antes de conhecer Virgília, Brás já sabia do fato de a filha do
conselheiro Dutra ser apenas uma grande oportunidade para um casamento por puro interesse
político. Vejamos como tal cenário é escancarado no diálogo sobre o assunto entre os dois
membros da família Cubas:
71
Era meu pai, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no baú e
recebi-o sem alvoroço.
(...) - Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago
comigo uma ideia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projetos, um
lugar de deputado e um casamento.
Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito
e disposição, cujo fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta,
porém, desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-
la bem. Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.
(...) Era-me necessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões,
que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de pessoas
do nosso conhecimento. Quanto à noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria
logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a
fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta,
afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a
refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde à proposta. Sentia-me
aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma
posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de
minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das afeições,
da família... (p.91-93. Negritos acrescidos)
Fica evidente nessa passagem como a relação entre o casamento e a candidatura de
Brás Cubas ao cargo de deputado são colocadas em um mesmo plano, ganhando mais
importância, inclusive, o cargo público ao invés do futuro afetivo do jovem Cubas. Tal
relação é posta de forma tão escancarada por Bento Cubas ao ponto de se chegar, no início da
conversa, a unir os dois ‘assuntos’ como se fossem apenas um. Isso pode ser observado na
segunda passagem em negrito, na qual, só depois da reticência, gerada pelo possível ato falho
do pai, fica esclarecida a verdadeira natureza do ‘projeto’ para o futuro do filho. Tal como em
um jantar de negócios, Bento Cubas exige de seu filho, que aí ocupa uma posição de
subordinação, uma resposta positiva, não sem antes apelar para a fascinação e persuasão, com
relação ao assunto. Brás, ainda mostrando-se relutante sobre o tema, começa a maquinar sobre
os pontos positivos e negativos do matrimônio, ponderando se valeria a pena perder a
liberdade conquistada ao longo de sua formação acadêmica em Coimbra.
Nesse ponto, podemos nos perguntar sobre o motivo do título desse capítulo: O autor
hesita. Obviamente, o primeiro sentido estabelecido para esse título estaria relacionado à
própria hesitação da personagem com relação ao casamento/vida política. No entanto, essa
hesitação estaria no campo da personagem enquanto viva, não no autor das memórias além-
túmulo como deixa entender o título. Nesse caso, essa ambivalência de sentido pode ser
respondida se adentrarmos na própria constituição da cena, pois tanto Brás Cubas é hesitante
ao decidir acerca desse mais novo projeto do pai, quanto o narrador/autor do livro de
memórias hesita diante da frieza com a qual o seu futuro e o futuro de Virgília são decididos
72
em uma espécie de mesa de negociações. Vejamos agora, como Brás Cubas descobre o nome
de sua pretendente:
Bebeu o último gole de café; repoltreou-se e entrou a falar de tudo, do senado,
da Câmara, da Regência, da Restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia
comprar, da nossa casa de Mata-cavalos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a
escrever desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava
uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes,
sem ordem, ao acaso, assim:
Arma virumque cano
A
Arma virumque cano
Arma virumque cano
Arma virumque cano
virumque
Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução; por
exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da
primeira sílaba; ia a escrever virumque, e sai-me Virgílio, então continuei:
Vir Virgilio
Virgilio Virgilio
Virgilio
Virgilio
Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim,
lançou os olhos ao papel...
- Virgílio! exclamou.. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília.
(p. 92-93)
No início desse trecho, acompanhamos o desenrolar dos planos financeiros de Bento
Cubas com a futura candidatura do filho totalmente assegurada, pelo menos para ele. Todavia,
Brás Cubas mostra-se alheio às propostas e fabulações políticas do pai, preocupando-se mais
em distrair-se com o verso Arma virumque cano11
, da epopeia Eneida, de Virgílio. Após um
pequeno jogo de palavras, Brás fixa os olhos na palavra latina Virumque da qual, por
associação, chega ao autor do poema, Virgílio, que por sua vez, misteriosamente, leva ao
nome de sua pretendente, Virgília. O que nos causou certo estranhamento na leitura foi
justamente Virumque significar barão (ou “homem” ou “varão”, como visto em outras
traduções do mesmo verso), designação de alguém poderoso, notável pelo seu valor e pela
posição e/ou pela riqueza, sendo essas exatamente as ambições de Brás Cubas, intensificadas
a partir desse momento na narrativa. Possivelmente a escolha do nome da personagem
Virgília, a partir da relação com esse verso da Eneida, seja uma piscadela do autor indicando a
verdadeira natureza da personagem burguesa, pelo menos na intenção dos Cubas: ser um
instrumento para alcançar um patamar social elevado. Em última instância, se a personagem
11
Eu canto as armas e o barão. Traduzido por machadodeassis.net
73
hesitara acerca da proposta do pai, ao colocar na balança a vida de amores e a posição social
privilegiada, parece que a decisão já estava mais do que tomada em favor da segunda opção.
Nesse contexto, era de se esperar um cenário desanimador para a filha do Conselheiro
Dutra, pois o seu destino, e consequentemente o seu espaço, estariam atrelados a uma posição
submissa em relação às personagens masculinas que possuíam o poder sobre ela. Contudo,
não é esse o cenário apresentado pela narrativa. Ao oposto das expectativas, Virgília, a
burguesa atrevida e voluntariosa, um “diabrete” como o próprio narrador a descreve, atua
determinantemente na escolha de seu destino, pois é ela que detém a última palavra no que
diz respeito à escolha de seu futuro marido como veremos a seguir.
Após os primeiros cortejos a Virgília, Brás Cubas descobre que possui um concorrente
de peso à vaga na câmara e ao coração da moça: Damião Lobo Neves. Na descrição do
narrador, Lobo Neves era: “um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante,
nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura,
dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano (p.114)”. Nesse trecho,
vemos que mesmo Lobo Neves não tendo os atributos físicos e comportamentais necessários
para competir com Brás pela mão de Virgília, ele é quem arrebata, ao mesmo tempo, a noiva e
a candidatura, tal como em um ‘pacote político’ da época. Por esse prisma, vale a pena
observar os argumentos usados para a escolha de Lobo Neves por Virgília:
Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de
Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha
derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando
seria ele ministro.
- Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.
Virgília replicou:
- Promete que algum dia me fará baronesa?
- Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a
águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro
beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer
cousa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que
esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário. (p. 114-115. Negritos
acrescidos)
Como visto no trecho acima, Lobo Neves possuía amigos influentes que lhe deram
uma grande vantagem na ‘luta’ pelo cargo de deputado e pelo coração de Virgília.
Aproveitando o trocadilho com o nome da personagem Virgília, temos também no nome de
Lobo Neves um elemento curioso e uma ironia. O elemento curioso do nome da personagem
diz respeito à simbologia de lobo, que, na natureza, caça as suas presas em grupo. Tal como o
74
seu xará animal, Lobo Neves também prospera graças ao bom relacionamento dentro dos
grupos políticos dos quais participa. De outro lado, o Neves remete ao branco, símbolo
consagrado à pureza. Da união de tais elementos, vemos emergir uma espécie de ‘lobo em
pelo de cordeiro’, graças à imensa destreza política demonstrada, na maior parte do tempo,
por Lobo Neves, ao galgar posições políticas cada vez mais altas. Outra associação possível
remete à própria fábula do lobo e do cordeiro, em que fica evidente o modo como a força
bruta e a astúcia sempre sobrepujam a inocência e a pureza.
Já a ‘ironia’ presente no nome da personagem se dá pelo fato de ele se chamar
Damião, justamente o nome do antepassado da família Cubas, esquecido pelo seu passado
trabalhador e tanoeiro. Tal como o antepassado de Brás, obviamente em uma roupagem
distinta, Lobo Neves também parece dedicar-se ao trabalho, e possui uma próspera carreira
política, principalmente se compararmos com a carreira de deputado de Brás Cubas,
meteórica e desastrada.
Outro ponto que merece destaque na leitura do excerto acima é a comparação feita
entre a figura do pavão e da águia. Para o narrador, Lobo Neves estaria associado à águia,
animal predador, rapineiro, destacado como a rainha das aves, destinada sempre a voos mais
altos. Já o pavão, metaforicamente associado à personagem Brás Cubas, seria a ave
representante da beleza, da vaidade, simbolizado como o próprio sol graças, ao movimento de
sua calda aberta. Temos aí, metaforizada a própria condição das personagens e de suas
projeções futuras: enquanto Lobo Neves estaria destinado a alçar voos cada vez mais altos em
sua carreira política, derrotando (ou predando) todos os rivais em seu caminho, Brás Cubas
representaria a própria beleza e vaidade de um burguês, que, acostumado a não empreender
grandes esforços, acaba por não gerar nenhuma projeção animadora para o futuro. Tendo
esses dois caminhos, a beleza de Brás e a projeção política de Lobo Neves, Virgília, nesse
momento da narrativa, não demonstra a menor dúvida em escolher a segunda opção e já
cogita o resultado do próximo ‘voo’ de seu futuro marido: o posto de marquesa.
Nesse ponto, uma aproximação indireta entre os espaços ocupados pelas personagens
Virgília e Marcela pode ser vista no tipo de relação mantida entre elas e as figuras masculinas
da obra. Marcela, em sua primeira fase no romance, domina os seus pretendentes com charme
e desfaçatez, além disso, em uma espécie de leilão, vende o corpo como objeto de trabalho
para aquele que mais lhe oferecer, não importando as condições físicas ou amorosas de seus
pretendentes. O que causa certo espanto, é o modo como a burguesa de família rica é colocada
nessa mesma teia de interesses. Virgília, a atrevida e voluntariosa burguesinha, é vista como
75
um objeto a ser conquistado pela família Cubas, graças a uma possível união conjugal por
interesse. Ao contrário, porém, de vermos a personagem ser pintada como uma frágil e
indefesa menina, alheia à própria decisão de seu futuro, vemos a burguesa agir decisivamente
na escolha de seu futuro marido, não pela beleza ou pelo amor, mas pela posição social a qual
ele almejava. Em uma sociedade regida pelo capital, temos colocadas em um mesmo plano a
prostituta vendendo o próprio corpo, objeto de diversão para aqueles que pagassem mais, e a
burguesa Virgília, comercializando a influência proporcionada pelo seu casamento para
aquele que lhe pudesse dar uma projeção social maior.
Essas aproximações, mesmo que indiretas, são fundamentais para entendermos a real
natureza das relações das duas personagens no romance. Cabe, pois, analisar a cena em que a
burguesa de família rica e a prostituta Marcela são postas lado a lado em uma alucinação da
personagem Brás Cubas. Após o encontro com a decrépita prostituta na Rua dos Ourives,
Brás encaminha-se para o encontro com Virgília visando cortejá-la para dar prosseguimento
aos planos de casamento arquitetados por ele e Bento Cubas. No capítulo XLI, A alucinação,
Brás Cubas encontra Virgília da seguinte maneira:
Era verdade. Entrei apressado; achei Virgília ansiosa, mau humor, fronte
nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim dos
cumprimentos disse-me a moça com sequidão:
- Esperávamos que viesse mais cedo.
Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um amigo, que me
detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília...
seria Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que
recuei um passo e desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe
comido o rosto; a pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me
agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara o rosto da
espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o lábio triste e
a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a mim.
Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa.
Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a olhar para os
meus próprios pés. Devia sair ou ficar? Rejeitei o primeiro alvitre, que era
simplesmente absurdo, e encaminhei-me para Virgília, que lá estava sentada e
calada. Céus! Era outra vez a fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei
no rosto dela algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca
do costume. (p. 112-113. Negritos acrescidos)
Como observado ao longo da análise da segunda fase da personagem Marcela, as
bexigas representariam uma espécie de fardo moral carregado não só pela personagem, mas
por todo um sistema capitalista, devido à natureza das relações interesseiras que visavam
apenas ao lucro. No entanto, vemos a mácula da espanhola transportada, para o espanto de
Brás, para o rosto da burguesa de família. Sem meias palavras, o narrador é enfático ao
descrever como o rosto de Virgília fora devastado pelo mesmo estigma e flagelo que
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destruíra o rosto da espanhola. Ora, se as consequências para tal mal são as mesmas, podemos
concluir que as causas para esse cenário devastador também sejam idênticas; da mesma forma
que a prostituta exibe na própria pele suas escolhas motivadas pelo capital, sendo esse, nas
próprias palavras do narrador, o “verme roedor” (p. 110) daquela existência, as escolhas de
Virgília, motivadas pela ascensão social, também a colocam no mesmo nível da prostituta.
Prostituta e burguesa dividem, portanto, o mesmo espaço corroído por uma sociedade regida
pelo interesse. Em última análise, ao aproximar essas duas flores-personagens em processo de
decomposição, vemos encenada não só a corrosão do corpo físico das personagens, mas de
todo um corpo social com relações ruídas e flageladas.
Outro elo que une essas duas personagens, além da figura do próprio Brás, pode ser
visto no capítulo seguinte, em que Brás Cubas reflete sobre a alucinação tida:
Outra cousa que também me parece metafísica é isto: - Dá-se movimento a uma
bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a
segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se
chama... Marcela - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; - a terceira,
Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em
Brás Cubas, o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar
em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples
transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma cousa
que poderemos chamar solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este
capítulo escapou a Aristóteles? (p. 114)
Mais uma vez guiado pelo espírito de megalomania ao descobrir algo, inspirado pelas
leis newtonianas de transmissão de força/energia que nem mesmo Aristóteles descobrira em
seu tempo, além, é claro, das leis do humanitismo, o narrador filosofa sobre a estranha
natureza do contato entre Virgília, Marcela e ele próprio. Personagens aparentemente
separados em razão de suas respectivas classes sociais, mas unidas pela mesma rede de
interesses. Enfim, em uma sociedade de interesses, prostituta, burguês arrivista/senhor de
escravos e burguesa de família influente possuem o mesmo espaço maculado pelo verme
roedor da existência, manifestado no lucro, no desejo arrivista exacerbado e na vontade de
sempre querer levar vantagem sobre qualquer circunstância ou pessoa.
Em um segundo momento da personagem na obra, encontramos Virgília já casada
com Lobo Neves, vivendo, pelas regras das aparências que devem ser resguardadas, em um
casamento ‘perfeito’ com o marido que ela escolhera. No entanto, como é comum na
literatura machadiana, ocorre o segundo triângulo amoroso da trama envolvendo Virgília,
Lobo Neves e Brás Cubas. Tal circunstância causa certa estranheza em Brás Cubas,
justamente por ele ter sido preterido na corrida pelo coração (e cargo de deputado) de Virgília.
77
Na busca por explicar os motivos pelos quais o amor de Virgília e Brás (res)surge, o narrador
encontra uma explicação no mínimo inusitada para tal evento:
Virgília é que já se não lembrava da meia dobra; toda ela estava concentrada em
mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu pensamento; - era o que dizia, e era
verdade.
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O
nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em
pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes
poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim,
que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um
beijo que ela me deu, trêmula - coitadinha - trêmula de medo, porque era ao portão
da chácara. Uniu-nos esse beijo único - breve como a ocasião, ardente como o
amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres
que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, - uma
hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, - vida de
agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de
sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as
agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro
daquele prólogo. (p. 129. Negritos acrescidos)
Retomando rapidamente a comparação entre Virgília e a prostituta Marcela, notamos
certa semelhança deste trecho com o episódio do primeiro beijo do narrador, descrito no
capítulo XIV, O Primeiro Beijo12
, dado em Marcela. Isso nos indica, mais uma vez, certa
mescla entre os espaços das duas personagens de classes tão distantes. Em seguida, o narrador
declara a verdadeira natureza de seu amor fora das regras sociais:
Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é
que nos amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos um ao outro, como as duas
almas que o poeta encontrou no Purgatório:
Di pari, come buoi, che vanno a giogo13
;
e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal
menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem
por que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas
cuja solução entreguei ao destino. (p.132-133)
12
O trecho do capítulo em questão diz:
“O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma cousa
única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
- Esqueceu alguma cousa? - perguntou Marcela de pé, no patamar.
- O lenço.
Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. “Não
sei se ela disse alguma cousa, se gritou, se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas,
veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.” (p. 66-67) 13
Trecho da Divina Comédia de Dante Alighieri traduzido como: “Aos pares, como bois que vão na canga”.
Tradução: machadodeassis.net
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Em suma, por trás dessa semelhança, poderíamos interpretar tal beijo como sendo,
simbólica-metaforicamente, a consumação de um novo primeiro beijo, sendo esse, tal qual o
primeiro, dado em uma burguesa que se assemelha a uma prostituta, dada as escolhas
(i)morais de Virgília, unindo assim, mais uma vez, os espaços de Virgília e Marcela.
Do mesmo modo chama-nos atenção nesse capítulo, a maneira como ele é posto como
sendo o prólogo da relação entre Virgília e Brás. Ao descrever tal cena com requintes de
mistério e temores de ser descoberto, o narrador antevê o tom com o qual o espaço de Virgília
será construído ao longo do restante da narrativa. A todo o momento os personagens buscam
resguardar as suas faces sociais dos olhares desconfiados da sociedade. Sem a coragem de
abandonar tudo para viver essa grande paixão, muito provavelmente pelo medo de perder a
comodidade do status social conquistado pelo casal, as personagens fazem da casa de Lobo
Neves uma espécie de reduto para cultivarem cada vez mais sua relação amorosa. Vejamos
dois excertos em que ficam claros os perigos e os olhos que espionavam a relação do casal em
um capítulo intitulado, não por acaso, Olheiros e escutas e, em seguida, no capítulo A
casinha:
Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das pessoas que
mais desconfiavam de nós. Cinquenta e cinco anos que pareciam quarenta, macia,
risonha, vestígios de beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem
sempre; possuía a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se
então na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se
estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo
que ela olhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia ao ponto de olhar às
vezes para dentro de si, porque deixava cair as pálpebras; mas, como as
pestanas eram rótulas, o olhar continuava o seu ofício, remexendo a alma e a
vida dos outros. (p. 147. Negritos acrescidos)
Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília.
Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara
com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na
noite anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves; tinham
comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeita pública.
Concluiu dizendo que não sabia que fazer. (p. 149)
Como fica claro nesses dois trechos, o espaço da casa de Lobo Neves (ou, no caso, a
chácara pertencente à família) é atravessado por um clima de tensão proporcionado pelos
olhares desconfiados e especulativos acerca da (íntima) ligação entre Brás Cubas e Virgília,
que já caíra na suspeita pública, apesar de sendo mantida no espaço privado da casa. A esse
respeito, cabe também a menção sobre o modo como tal relação adúltera afeta, inclusive, a
vida pública de Lobo Neves, pois não só seria uma vergonha para os padrões da época, devido
ao tabu acerca do adultério, mas também um vexame potencializado pelo fato da face política
79
de Lobo Neves dever ser resguardada por causa de sua carreira não permitir qualquer
escândalo dessa natureza.
Nesse cenário completamente contrário, Brás busca, aos moldes dos romances e
histórias mais românticas, convencer Virgília a buscar um lugar em que pudessem viver
livremente o seu poderoso amor, sendo esse local, uma espécie de protótipo da futura casa da
Gamboa, como veremos a seguir. No referido capítulo, fica evidente a personalidade egotista
do narrador ao considerar apenas a sua própria vontade em detrimento de todos os
regulamentos sociais. Como propomos na análise do capítulo o menino é pai do homem, isso
é um claro reflexo da educação mimada e sem restrições do narrador, incluindo, aqui, o
‘direito’ dado pelo seu lugar social de obter poderes absolutistas em relação a sua mais nova
propriedade, semelhante com o que acontece no triângulo amoroso Brás – Marcela – Xavier.
Vejamos um trecho em que fica exposto o desejo de posse e de exclusividade nutrido por Brás
em relação à Virgília em seu ‘sonho de uma pasárgada’ ideal, onde ele pudesse manter tal
relação com a mulher escolhida por ele, longe do olhar da moral e de qualquer tipo de
repreensão:
Empunhara o binóculo da imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma
vida nossa, um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem
moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vontade. Esta ideia
embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, bastava penetrar
naquela habitação dos anjos. (p. 141)
É interessante notar como expressões que remetem a uma ideia de restrição,
“casamento”, “liame”, “moral”, “tolhe(r)sse” contrapostas a um mundo idealizado pela
imaginação do narrador “uma casa nossa”, “uma vida nossa”, “um mundo nosso”, “habitação
dos anjos”, constituem, na visão do narrador, um cenário de uma vida de total liberdade em
relação aos impedimentos de sua posição social, no pleno gozo de seus desejos, tal como
ocorria na sua fase de ‘menino-diabo’. Parafraseando o próprio narrador, o menino,
definitivamente, é o pai do homem. Curiosamente, o menino transforma-se em uma metáfora
do próprio sistema de relações regidas pelo capital; um sistema a constituir seus filhos frutos
das inúmeras relações de interesse que permeiam toda a obra.
A despeito dos planos delirantes de Brás, Virgília mantém-se relutante no que diz
respeito a uma possível fuga. À primeira vista, a personagem se esquiva das propostas de
Cubas temendo pela segurança do casal. Acrescente-se a isso a questão da convivência com o
filho, pois Lobo Neves nunca viveria sem a sua amada esposa e o seu não menos querido
80
filho. Entretanto, por traz desses motivos aparentemente nobres, o narrador destaca a
verdadeira natureza do medo da personagem:
Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela estavam inteiramente
ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e
grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma.
Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dous
dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha. (p.
149)
Como fica evidente nesse trecho do capítulo LXI, A casinha, a maior preocupação de
Virgília, longe de ser o amor de Brás Cubas, o cuidado com o filho ou o marido, era com
relação à preservação de sua face pública. Ela que negociou com tamanha destreza o seu amor
em busca de uma melhor oferta política, tal como a prostituta Marcela, agora se mostra
relutante em concordar com qualquer ato que prejudique seu status político na condição de
esposa de Lobo Neves.
Contudo, esse perigo constante em ter a sua face social arranhada em nada ameniza o
desejo arrebatador do casal de manter sua relação adúltera. Pelo contrário, movido pelo
espírito mimado de sua infância, Brás Cubas é convencido por sua ‘amada’ a comprar/alugar
uma casa afastada dos olhares repressores. Brás então encontra uma ‘casinha’:
expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco,
com quatro janelas na frente e duas de cada lado, todas com venezianas cor de tijolo,
- trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e solidão. Um brinco! (p. 150).
Ao ressaltar como características principais da casa o seu ar de mistério e solidão,
ampliados por trepadeiras e venezianas cor de tijolo, o narrador reitera, de forma sutil, as reais
motivações para a compra daquela propriedade: manter a relação pecaminosa a salvo da
opinião pública. Assim, era preciso uma casa afastada, cujas janelas não demonstrassem nada
do que ocorria em seu ambiente privado.
Refletindo sobre o modo como o espaço da casa é pensado, a opinião do narrador era
de que, ao possuir uma casa afastada do burburinho da sociedade, o casal poderia usufruir de
um mínimo de privacidade, resguardando, portanto, um pouco de sua subjetividade e o direito
de ali fazer o que mais desejassem, sem o medo de qualquer julgamento ou sanção social:
Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em
cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira
fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria facilmente o resto.
81
Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de
posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a
consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das
cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas cousas, que me traziam aos olhos
constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o
chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu
inimigo. (p. 150. Negritos acrescidos)
Como observado nessa passagem, a casa da Gamboa, espaço caracterizado pelas
relações do adultério, traz à personagem Brás Cubas a sensação de ‘posse’ de sua amada,
principalmente se considerarmos o contraponto posto, na parte final da citação, com o espaço
da casa de Lobo Neves, local marcadamente influenciado pela vida pública burguesa,
demonstrando, mais uma vez, como tal espaço, longe de ser um reduto privado, funcionava
como uma extensão da vida pública dentro da sociedade burguesa.
Por outro lado, o espaço da casa da Gamboa configura-se como um local apartado,
pelo menos na intenção, desse meio social. Suas características físicas tornam-se perfeitas
para ocultar algo que deve ser mantido longe do espaço público: a relação adúltera do casal
burguês. Desse modo, como Brás Cubas não conseguiu ascender-se no espaço público como
desejava, ele busca transferir para a casa da Gamboa o “poder” e o status social de seu rival,
Lobo Neves, através da posse exclusiva de Virgília, movimento semelhante, inclusive, ao
ocorrido na primeira metade da narrativa, em que o narrador também buscava o domínio
absoluto sobre Marcela em relação ao outro ‘amor’ da prostituta, Xavier, sujeito abastado (e
tísico) da época.
Assim, o espaço da Gamboa fora feito para o livre gozo dos desejos do casal adúltero.
Tal local seria, no desejo de Brás, o lugar onde a personagem poderia reinar tanto sobre
Virgília, representante da vida pública que perdera na disputa com Lobo Neves, quanto sobre
os empregados, papel exercido por Dona Plácida que, embora agisse como proprietária da
casa, nada mais era do que mais uma propriedade de Brás Cubas e Virgília, tendo a sua
utilidade, restrita a manutenção da relação adúltera do casal. Enfim, o espaço da Gamboa, na
perspectiva de Brás, seria o lugar onde:
o mundo vulgar terminaria à porta; - dali para dentro era o infinito, um mundo
eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem
baronesas, sem olheiros, sem escutas - um só mundo, um só casal, uma só vida, uma
só vontade, uma só afeição -, a unidade moral de todas as cousas pela exclusão das
que me eram contrárias. (p.150)
No entanto, o romance machadiano encena uma inversão de valores que merece
destaque. Como vimos, o espaço da Gamboa fora pensado como um espaço separado das
82
agitações da vida pública. Vemos ainda, o desejo da personagem Brás Cubas de obter a posse
e domínio exclusivos sobre Virgília. Isso corroboraria a definição de espaço privado de
Arendt (2005) em que era delegado ao homem o direito à propriedade em relação à mulher,
que, por sua vez, deveria ocupar o espaço privado da casa, pois suas funções, relativas ao
corpo, eram tidas como inferiores, por isso, não deveriam ser mostradas em público.
Contudo, na relação entre Brás Cubas e Virgília, é sempre a burguesa que define os
rumos do relacionamento. Embora Brás Cubas tenha um sentimento de posse em relação à
Virgília, observamos como a iniciativa da compra da casa parte de Virgília, pois a
personagem não estava inclinada a perder o status público alcançado por ela no casamento
com Lobo Neves, nem tão pouco o prazer tido na relação adúltera com Brás Cubas, prazer
esse, não alcançado em seu casamento. Nesse sentido, longe de ser uma simples “posse” ou
“propriedade” de qualquer figura masculina dentro do romance, é Virgília quem manipula,
ardilosamente, tanto Brás Cubas, sempre refém aos caprichos da burguesa, quanto Lobo
Neves, com quem tem um casamento de aparências tão bem sucedido no que tange o status
social alcançado, mas desprovido de qualquer sentimento amoroso ou de atração física.
Desse modo, o espaço da casa da Gamboa encarna as características primordiais tanto
da personagem Virgília quanto de Brás Cubas, um espaço pautado por uma relação que deve
ser mantida longe dos olhares da sociedade, dada às inúmeras consequências que a descoberta
de tal romance acarretaria para a face social dos envolvidos. Pensada por Brás como um
ambiente em que ele pudesse usufruir da posse de sua amada longe dos olhares e influência da
sociedade, o espaço da casa da Gamboa torna-se, na verdade, o espaço em que Virgília pode
desfrutar de sua posição política (casamento com Lobo Neves) e do interesse carnal (adultério
com Brás Cubas), sem os sustos da casa de seu marido, que se tornara uma extensão da vida
em sociedade.
Em última análise, vemos encenada nessa relação de adultério, todo um
apodrecimento da estrutura do casamento de interesse, culminando, inclusive, na própria
deterioração do espaço físico da casa da Gamboa, como pode ser visto na descrição do modo
como ficou a referida casa após a passagem do casal, no início do capítulo LXX, Dona
Plácida:
Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu,
enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra,
três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito
para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma
lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo
83
espaço de chão que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um
eclesiástico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos
abençoarão esse canto de terra, que lhes deu algumas ilusões. (p.152-153)
Assim, o espaço da personagem Virgília depois de seu casamento com Lobo Neves é
constituído, semelhantemente ao seu espaço na primeira fase da narrativa, pelo sentimento
mesclado entre um desejo fulminante para manter uma relação adúltera com Brás Cubas e a
preocupação exacerbada em manter a posição política conquistada a ‘duras penas’. Faz, então
do espaço da burguesa, um espaço prostituído, tão corroído pelas máculas do lucro e do
interesse como os espaços da bela espanhola do início da narrativa.
Dona Plácida: complacência em forma de flor
Depois de analisarmos os espaços ocupados pelas duas personagens femininas mais
importantes ao longo do romance, nos deteremos com especial atenção nos espaços ocupados
por Dona Plácida, personagem que, embora tenha um papel secundário, forma um
contraponto interessante com as personagens Virgília e Marcela aqui analisadas.
Dona Plácida é descrita pelo narrador como uma antiga agregada da família de
Virgília, que, em vista da proteção das aparências que deveriam ser resguardadas pelo casal
adúltero, agia como a verdadeira dona da casa da Gamboa. Tal ocupação gerava, no entanto,
certo ‘sofrimento’ e ‘tristeza’ para a idosa senhora. Durante os primeiros meses, D. Plácida,
apoiando-se nos preceitos cristãos nos quais acreditava, não olhava nos olhos de Brás Cubas,
atitude compreendida por Brás, já que visava ganhar, aos poucos, a confiança da carrancuda
senhora. Após algum tempo, Brás consegue, através de uma história fantasiosa, forjada à base
das velhas histórias românticas de amores impossíveis, ganhar a confiança de Dona Plácida,
como se observa na seguinte passagem:
Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal
cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo
que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dous meses; falava-me
com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me
dava por ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a
benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história
patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência
do pai, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novela. Dona Plácida não
rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da
consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três juntos diria que
Dona Plácida era minha sogra. (p. 153)
84
Como descrito acima, D. Plácida cede à sua função como ‘protetora’ da relação
adúltera, em detrimento de seus próprios preceitos morais cristãos. Como sarcasticamente
colocado pelo narrador no parágrafo seguinte, essa mudança de opinião não fora motivada por
uma sensibilidade da personagem em relação ao amor proibido do casal, ou por se sentir
tocada pela amizade e gratidão que sentia por eles. Seguindo a mesma tendência observada
nas outras personagens femininas da obra, o convencimento e a conquista da confiança de
Dona Plácida não passaram de mais uma relação comercial bem sucedida:
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, - os cinco contos achados
em Botafogo, - como um pão para a velhice. Dona Plácida agradeceu-me com
lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de
uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
(p.153)
Como visto acima, longe de merecer a confiança de Dona Plácida, Brás compra não só
a ‘benevolência’ da personagem ao preço de cinco contos de réis14
, como também as orações
da carrancuda personagem. Tal imagem, parecida com o processo de desconstrução visto no
caso do tio cônego de Brás, reforça a ideia de relações mantidas por interesses econômicos.
Elementos que dizem respeito ao sentimento moral são descartados em favor de bens
materiais; elementos religiosos e espirituais, sobretudo os preceitos cristãos de agir pelo bem
do outro em detrimento de qualquer recompensa material, são substituídos por orações com
um valor previamente estipulado. Em suma, vemos como a sociedade burguesa retratada por
Machado desmancha-se e se decompõe dentro das próprias relações sociais que estabelece.
Outro ponto que merece destaque acerca da desconstrução da personagem D. Plácida
está presente na cena, um tanto caricata, da notícia da nomeação de Lobo Neves a presidente e
secretário da província ***, e de como este ato afeta ‘a doce sogra’ de Brás Cubas:
No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por decreto de 13,
tínhamos sido nomeados presidente e secretário da província de *** o Lobo Neves e
eu. Escrevi imediatamente a Virgília, e segui duas horas depois para a Gamboa.
Coitada de Dona Plácida! Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se
esqueceríamos a nossa velha, se a ausência era grande e se a província ficava
14
Acerca desse episódio, cabe aqui um breve comentário sobre o valor da honestidade da personagem Brás
Cubas. Em contraposição ao episódio da moeda encontrada no salão de bailes pela personagem dias antes e
entregue às autoridades competentes, Brás Cubas, ao encontrar um embrulho com uma importância
significativamente maior na praia de Botafogo, resolve ficar com tal ‘embrulho misterioso’ sem hesitação, por
ser essa uma verdadeira recompensa divina pela devolução da simples moeda, mostrando, no projeto de
desconstrução que prima o livro, o valor da honestidade da personagem.
85
longe. Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a objeção de
Cotrim afligia-me. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma andorinha; mas,
ao ver-me triste, ficou muito séria. (p. 170. Negritos acrescidos)
Como fica claro nesse excerto, longe das preocupações e cuidados de D. Plácida
estarem relacionados à felicidade do casal, a personagem realmente se aflige pelo risco de
perder a sua ‘utilidade’ na condição de agregada, e todos os benefícios daí advindos.
Nesse momento, cabe a menção a mais um pequeno ‘joguete’ do Bruxo do Cosme
Velho na escolha do nome dessa personagem. A palavra ‘plácido’ remete a algo sereno,
tranquilo, brando, que tem ou revela paz. No entanto, essa palavra pode referir-se também a
complacência, atitude caracterizada pela disposição habitual para obedecer/atender aos
desejos ou gostos de outrem com a intenção de ser-lhe agradável. Ora, esse aparente estado de
submissão é perfeito para uma personagem destinada a ser uma agregada, afinal, deveria estar
sempre disposta a cumprir, a despeito de suas próprias crenças e convicções, todos os desejos
e tarefas, servindo aos interesses de seus ‘benfeitores’. Seguindo o que sugere seu nome, D.
Plácida comporta-se como uma verdadeira agregada ao ‘cuidar’ da relação amorosa proibida
de Brás e Virgília, adaptando-se a todas as situações, vendendo cada ‘lágrima’ e sentimento
de ‘nojo’ por algumas ‘moedinhas’ e ‘contos de réis’.
Sobre a condição social de D. Plácida, vale um comentário, mesmo que breve, sobre a
história da origem da personagem, e de como ela chegou ao posto de "agregada" da
personagem Virgília. Dona Plácida
Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora.
Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos
de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um
alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e
moça, ficaram a seu cargo a filha, com dous anos, e a mãe, cansada de trabalhar. [...]
Com isto iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia. (p. 157)
Nesse cenário decadente da personagem, vemos ‘brotar’ as feições culminantes da
personalidade de Dona Plácida. Semelhante a Brás Cubas, que é a flor nascida do estrume das
relações arrivistas, Dona Plácida é a flor brotada do estrume da condição precária de seu
passado. Isso fica evidente no capítulo seguinte, em que o narrador, alertando para o caso de
algum leitor ter pulado o capítulo da citação anterior, conta-nos o pensamento tido por ele ao
saber da trajetória de sua idosa cúmplice:
86
- Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que
devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante
semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os
altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa
conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida não
falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: -
Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe
responderiam: - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na
costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo
e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo
desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na
costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos,
num momento de simpatia. (p. 159)
Nessa reflexão do narrador, observamos como o destino subalterno de Dona Plácida
estava traçado, pelo menos na visão de Brás, desde o início de sua concepção na relação
luxuriosa entre seus pais. Por mais trabalhadora e esforçada que Dona Plácida fosse, nada
poderia arrancá-la da condição precária, vivendo da “mendicidade” (p.160) e dos favores dos
outros. Nesse aspecto, cabe uma ressalva importante para o entendimento de tal cena: se
tomarmos a perspectiva do narrador para o nascimento de Dona Plácida, vemos como esse
discurso está impregnado por um determinismo social, corrente de pensamento muito comum
no século XIX. No entanto, tal discurso parece estar ligado a uma estratégia textual usada
pelo autor e matizada na forma de uma crítica velada ao processo cientificista-determinista
em voga no período machadiano. Por esse prisma, tal episódio parece tomar a forma de um
questionamento direcionado a nós, leitores do romance, impelidos a refletir sobre se de fato, a
origem de D. Plácida estava mesmo determinada pelo seu meio, ou se sua condição social
seria fruto das relações sociais que a permeiam todo o romance.
Cabe, ainda, o diálogo com as bases insólitas do Humanitismo defendido por Quincas
Borba, com a certeza de que, muito além de uma determinação natural ou uma condição
própria da natureza humana, a pobreza e a desigualdade são um produto das relações sociais.
Rejeitando qualquer tipo de naturalização da desigualdade, Machado, através da inquietação
de seu narrador-protagonista, escancara as facetas perversas de um modelo político feroz e
predatório dos mais fracos.
Curioso pensar no modo como o narrador é afetado consideravelmente pela origem
familiar de D. Plácida descrito no excerto anterior. Talvez tenha despertado em si certo senso
de espelhamento em relação à sua ‘sogra’, pois a mesma estrutura deteriorada presente na
origem de D. Plácida pode ser associada à família Cubas em sua ‘origem tanoeira’. Nesse
caso, se realmente houvesse um modelo natural de seleção, a mesma lógica determinista
empregada na vida de Dona Plácida (estrutura familiar decadente gerando uma existência
87
infeliz) poderia ser aplicada à própria vida de Brás; originado do estrume de relações
deterioradas, nenhum outro destino poderia aguardar o mais novo (e podre) galho da família
Cubas.
Guiados por esse raciocínio, o mesmo questionamento suscitado pelo narrador ao
buscar explicações sobre os motivos que levaram os pais de D. Plácida a darem a luz à
personagem, mesmo cientes do sofrimento que a aguardava, se adéqua perfeitamente ao
narrador: sabendo da origem forjada das relações da família Cubas, o destino desse menino-
diabo também já estava traçado bem antes de seu nascimento.
Em síntese, o que difere o estatuto social dessas duas personagens, uma criada e um
filho de senhor de escravos, não é uma seleção natural determinista, muito pelo contrário, é o
teor das relações sociais tecidas por elas ao longo do romance. Tal como em Flores do mal,
de Baudelaire (2006), percebemos como os signos da corrosão em Memórias Póstumas de
Brás Cubas equiparam os espaços do romance, não existindo distinção entre burgueses,
burguesas, criadas ou prostitutas, pois todos foram nascidos e criados no mesmo estrume de
relações em decomposição dentro da sociedade burguesa.
Tal fusão de espaços, inclusive, pode ser usada como parâmetro interpretativo para a
assertiva final do romance, descrita, coincidentemente ou não, após a morte de Dona Plácida,
e a loucura de Quincas Borba, na qual o narrador, em um tom que destoa de todo o romance
afirma:
Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba.
Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua
nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque
ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a
derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (p. 251)
Desse modo, o fato de o único ‘saldo’ (termo do campo semântico do capitalismo) ser
justamente o de não ter filhos e, por essa razão, ter quebrado a herança maldita por ele
carregada, merece destaque justamente por evidenciar a maneira como essas estruturas de
relações corrosivas se repetiam de geração em geração naquela sociedade. Não nos parece
aleatório o fato de os motivos para o ato de concepção de D. Plácida estarem justamente em
um capítulo intitulado “Comigo”. Obviamente, esse título pode realmente referir-se aos
pensamentos do narrador ao ouvir a historieta de desilusões de Dona Plácida, como deixa
transparecer sua descrição. Porém, podemos interpretar que esse pronome pessoal pode, em
uma extensão de sentido, referir-se não só à história da idosa personagem, mas à própria
88
história de Brás Cubas e de sua classe: nascidos e fadados ao verme, o flagelo e a ruína de
suas escolhas morais.
Como pudemos observar na análise das características de D. Plácida, vemos que seu
espaço é reservado a uma condição de agregada ao longo do romance. A personagem, mesmo
não se tratando de uma escrava, possui os seus direitos ceifados pela posição social de
dependência em relação ao casal Brás Cubas e Virgília. Essa condição, já antevista pela
controvérsia de seu nascimento, é utilizada por Brás e Virgília como uma forma de proteção
de suas relações adúlteras. Contudo, longe de estar incomodada ou ressentida com o papel que
ocupa, D. Plácida, ao preço adequado, se adapta a tal condição.
Por fim, antes de ser apenas uma mulher fruto do meio ao qual pertence, D. Plácida
também atua, com as possibilidades que lhe são apresentadas, nesse jogo de interesses, ora
como um elemento de fundamental importância para o bom andamento da relação do casal
burguês (uma verdadeira “sogra” como ironiza o narrador), ora como uma peça descartável,
quando finda a relação entre Brás e Virgília, fato evidenciado na descrição da personagem, já
à porta da morte, como “um molho de ossos, envolto em molambos, estendido sobre um catre
velho e nauseabundo” (p. 237), sem qualquer utilidade para os interesses de seu antigo
benfeitor.
Chegando ao final deste capítulo, observamos como o jogo encenado no romance
machadiano é extremamente ardiloso na composição dos espaços das personagens aqui
estudadas. Tanto a personagem principal da narrativa, Brás Cubas, quanto as personagens
secundárias com as quais ele se relaciona são tocados e aproximados pelas mesmas relações
de poder que corroem essas flores-personagens. No capítulo seguinte, nos deteremos no modo
como as relações de poder analisadas aqui produzem uma corrosão não só no campo do
enredo da narrativa que, por si só, já daria margem a uma extensa e produtiva reflexão, mas,
sobretudo, como a corrosão de tais personagens-flores pode ser um indício, no plano textual
mais amplo do romance, da própria decomposição de todo um sistema de relações regidas
pelo verme do capital.
89
4 UMA CLASSE EM DECOMPOSIÇÃO: ANÁLISE DE UM DISCURSO
CORROSIVO
Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor. (Brás Cubas – Cap. 11 O menino
pai do homem)
Valendo-nos dos estudos acerca do espaço elencados no capítulo teórico deste
trabalho, observamos como, embora ocorra uma multiplicidade de histórias e trajetórias das
diferentes personagens e das mais diversas classes sociais, todos esses discursos foram
matizados, em maior ou menor grau, pela mesma rede de interesses característica das relações
guiadas pelo capital. Dessa maneira, o discurso encena, pela palavra literária, toda uma esfera
social degradada a partir de sua própria rede de relações.
Nesse aspecto, embora haja, na perspectiva do narrador, e, consequentemente, de sua
classe, certa normalidade nas cenas descritas ao longo de suas memórias, vemos emergir um
outro discurso, fruto das estratégias empreendidas pelo autor, na forma de um questionamento
que tensiona essa pseudo normalidade. Esse processo no qual o discurso do romance passa de
uma palavra corriqueira a uma palavra social15
é proposto por Bakhtin (1993) ao analisar a
constituição formal da linguagem do gênero romance:
O modelo de tal língua no romance é o de uma perspectiva social de um ideologema
social, fundido no seu discurso, na sua linguagem. Esta imagem não pode, portanto,
de forma alguma ser um modelo formalista, mas o jogo literário com tais línguas
será um jogo formalista. As particularidades formais das linguagens, dos modos e
dos estilos no romance são símbolos de perspectivas sociais. (...) O discurso do autor
representa e enquadra o discurso de outrem, cria uma perspectiva para ele, distribui
suas sombras e suas luzes, cria uma situação e todas as condições para sua
ressonância, enfim, penetra nele de dentro, introduz neles seus acentos e suas
expressões, cria para ele um fundo ideológico. (BAKTHIN, 1993, p. 155-156)
Ao adentrar nessa ‘fratura’ discursiva, discurso do narrador e discurso do autor
implícito, encenada no/pelo romance, vemos que através dos variados planos textuais criados
a partir das histórias e trajetórias das personagens, surgem dois signos recorrentes na
composição das cenas enunciativas: os signos da corrosão e das flores.
15
Como mencionado ao longo dos capítulos anteriores, o próprio Bakthin (1993) afirma o quanto o discurso
cotidiano também é permeado e fraturado por variadas vozes e discursos. Dessa maneira, o discurso romanesco
difere do discurso corriqueiro justamente por assumir essa condição e fazer dela terreno fértil para a sua
construção, em contraposição ao discurso comum que se reguarda em uma aparente unicidade.
90
Nesse aspecto, chamou-nos atenção a recorrência do uso da imagem de “flores” para
representar as personagens dentro do romance, imagem essa, que não condiz com as ações das
mesmas ao longo da narrativa. Some-se a isso, a aproximação dicotômica entre as flores e o
signo da corrosão, muito frequente em elementos usados na descrição das personagens. Esse
par dicotômico causa estranheza ao longo da leitura fazendo-nos perguntar a razão para tal
aproximação, a princípio, tão insólita, se considerarmos o uso corriqueiro das duas
expressões: a primeira como representante de algo positivo e a segunda como um elemento de
depreciação.
Gomes (2008) atribui a recorrência do signo da corrosão (chamado por ele de
‘decomposição’ na narrativa) à influência da literatura shakespeariana, sobretudo os
questionamentos metafísicos de Hamlet e os delírios de Lady Macbeth, além de uma grave
doença de Machado de Assis que o fez ver determinados assuntos com outros olhos. Nas
palavras do autor:
À perspectiva de morte, que rondou tão próxima do autor naquela época, poder-se-
ia juntar a impressão produzida no seu espírito pela tragédia hamletiana, cuja
tendência à ênfase sobre os elementos de decomposição da vida e do homem,
corresponde à feição predominante do livro que viria a escrever com a visão do
sepulcro ainda diante dos olhos: as Memórias póstumas de Brás Cubas. Há, nessa
obra, um humour macabro, que tudo indica provir de uma larga absorção de Hamlet.
(...) Pelo visto, a dedicatória de Brás Cubas "ao verme que primeiro roeu as frias
carnes de meu cadáver" é uma excentricidade que afina bem com o humour
hamletiano... (GOMES, 2008. p. 10-13)
Obviamente, a pertinência da relação entre a perspectiva adotada no romance e a vida
do autor empírico Machado de Assis (tendência comum à crítica biográfica de meados do
século XX na qual Gomes (2008) se insere) é questionável. No entanto, a questão do humor
hamletiano ressaltado pelo teórico torna-se apropriada justamente pelo tom característico da
voz de Brás Cubas que evidencia o deboche e o desdém que o mesmo nutre pelo
mundo/espaço dos vivos. Esse fato, inclusive, é expresso já na abertura do romance quando o
narrador é enfático ao asseverar o modo como suas memórias são escritas com a tinta da
melancolia e a pena da galhofa.
Contudo, o estranhamento em relação ao signo “flor” associado a uma narrativa tão
decomposta, como exposto por Gomes (2008), permanece e ganha outra dimensão. Essa
aproximação de signos tão antitéticos assemelha-se muito ao observado no livro de Charles
Baudelaire (2006) Flores do mal, publicado em 1857, cujos poemas nos apresentam, grosso
modo, um retrato da sociedade francesa corrompida, muito semelhante ao encontrado no
91
romance de Machado de Assis (1999) em análise. Tal retrato se vale do mesmo descompasso
entre a simbologia da flor, de aspecto positivo, e as relações sociais estabelecidas ao longo
dos poemas. Essa semelhança de imagens aparece até mesmo na similaridade do uso de
signos, como, por exemplo, a reiteração da palavra verme, tão significativa para a construção
tanto do mundo além-túmulo de Brás Cubas, como das relações empreendidas por ele (e sua
classe) no mundo dos vivos. Estas imagens também são usadas por Baudelaire (2006) ao
encenar o próprio processo de decomposição presentes em Flores do Mal, degeneração essa,
não só de um corpo físico que já se encontra morto, mas de um corpo social corroído e que se
desmancha em suas próprias relações sociais.
Nesse aspecto, as aproximações com a obra em análise tornam-se evidentes à medida
que na leitura do romance machadiano também nos deparamos com um corpo social
corrompido e corroído. As imagens de vermes, flagelos, farrapos tão recursivas ao longo das
descrições das personagens, e consequentemente de seus espaços, apontam para um corpo
social em ruínas, degradado pelas próprias relações que o sustentam.
Temos ainda, como uma segunda semelhança, o próprio fato de em Flores do mal o
Eu Poético sentir uma fixação exacerbada em observar as cenas dos vermes, focalizá-las, em
uma mistura de sentimentos próximos ora da melancolia, ora do desejo de fundir-se ao verme
que a tudo corrói naquele espaço social. Essa imagem é perfeitamente correspondente às
encontradas em Memórias Póstumas de Brás Cubas, pois o espaço de enunciação criado
estrategicamente por Machado (1999) para seu narrador é justamente o espaço além-túmulo,
onde, como nos poemas de Baudelaire (2006), a corrosão e o verme não devem ser
escondidos ou encobertos, mas mostrados para todos os que participam desses jogos de
interesse.
Além disso, a própria dedicatória colocada de forma bastante astuta por Machado de
Assis (1999) na voz e no discurso de Brás Cubas, dedicando as suas memórias “ao verme que
primeiro roeu as frias carnes” (p. 25) de seu cadáver, reforça a junção entre narrador,
estratégia textual do autor, e o verme, símbolo das relações de poder feitas por ele em vida.
Nesse caso, o romance machadiano encena, NA e PELA palavra romanesca, a concretização
desse possível desejo do Eu Poético criado por Baudelaire (2006) quando, textualmente,
vemos o narrador não só observar o verme que corrói toda uma sociedade, mas se fundir a ele
no processo ficcional de feitura de suas memórias, através da construção das histórias e
trajetórias de uma estrutura social degradada.
92
Ainda com relação ao uso do signo flores, o descompasso no livro do poeta francês
permanece à medida que não encontramos, a principio, personagens puras, inocentes,
características frequentemente atribuídas às flores. Ao contrário, as flores do mal pintadas por
Baudelaire (2006) crescem em um terreno recoberto por luxúria, pecados e de relações
corrompidas pela pressão social. Nesse ponto, a semelhança com o romance machadiano
também pode ser observada, pois é nesse terreno lodoso e corroído pelas relações de poder
que crescem as flores-personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas, encenando, através
do discurso romanesco, a imagem da própria ruína da sociedade ali representada.
Não nos julgamos competentes para afirmar que Machado de Assis teria conhecimento
do texto de Baudelaire (2006) e se apropriado dessa metáfora para a composição de seu
romance. Isso demandaria um estudo da gênese das leituras feitas por Machado no período de
composição da obra, fato este, não relacionado diretamente com o presente trabalho nesse
primeiro momento. Todavia, ponderamos, por hora, sobre o modo como os dois textos, num
período relativamente curto entre eles, leram a sociedade de uma forma semelhante, usando
signos linguísticos e imagens simbólicas muito parecidas.
Focalizando nossa atenção no romance machadiano em questão, o signo da flor
aparece de variadas formas ao longo da narrativa. Excluindo as aparições como elementos
decorativos (flores que ornamentam uma mesa, por exemplo), oito personagens ao longo do
texto são classificadas, direta ou indiretamente, como tendo características de tal signo.
Dentre essas, estão figuras apenas mencionadas pelo narrador como Venância, o lírio do vale,
cuja participação limita-se à sobrinha de Brás Cubas, ou como o cabeleireiro filósofo de
Módena, mencionado apenas como a flor dos cabeleireiros e alguém sem opiniões para serem
ouvidas. Contudo, personagens centrais do romance são descritas com traços que remetem a
uma flor tais como o próprio Brás Cubas, Virgília, Quincas Borba, Eugênia entre outros.
A princípio, tal elemento não configuraria por si só algo de maior relevância ao longo
da narrativa, pois poderia se tratar apenas de uma forma elogiosa do narrador ao se referir a
determinadas personagens da obra. Entretanto, o primeiro estranhamento surge justamente
quando verificarmos que tais características positivas trazidas pelo signo da flor não refletem,
de fato, as ações executadas por cada uma das personagens principais da obra.
Uma dessas ‘flores’ construídas no romance é Quincas Borba. Personagem principal
de um romance homônimo publicado por Machado de Assis, nove anos após a publicação, em
livro, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba tem uma participação
importante na segunda metade do romance, como foi analisado anteriormente.
93
Contudo, com base na primeira aparição de Quincas no romance, temos acesso a
comportamentos cruéis da personagem no período de sua infância, sobretudo com pessoas de
classe social inferior à dele. Nunca é demais lembrar como o papel da infância ganha especial
atenção, principalmente por ser esse o período em que se molda o caráter das personagens,
segundo a premissa de que “o menino é o pai do homem” (p. 54). Vejamos agora a descrição
das brincadeiras feitas por Brás e Quincas, assim como, dos traços da personalidade de
Quincas Borba nesse período de sua vida:
Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida,
achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola,
senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e
trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que
nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas
nos morros do Livramento e da Conceição ou simplesmente arruar, à toa, como dous
peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer
de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele
escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que
fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos
meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. (p.
64-65)
A descrição acima é clara ao pintar Quincas Borba, flor de toda a cidade, como uma
criança muito ativa, de certo modo agressiva, e com tendências a uma posição hierárquica
superior em relação às outras crianças de seu convívio. Ironias a parte, principalmente se
considerarmos o futuro de mendigo (e posteriormente a loucura no fim de sua vida) como o
próprio narrador antevê, Quincas Borba nos é apresentado como uma criança afeita a
traquinagens. Destaca-se pela sua crueldade em relação aos animais, sobretudo se levarmos
em consideração a sugestão, graças ao uso do verbo caçar, de que ele procurava ninhos de
passarinhos para destruí-los, além da perseguição de lagartixas pela cidade do Rio de Janeiro.
Entretanto, tal fato, apesar de indicar traços de uma personalidade um tanto hostil, não
imputaria, de imediato, maiores desvios de caráter da personagem, justamente por essa ser
uma prática comum das crianças de sua época.
Entretanto, a passagem anterior à citação supracitada demonstra uma característica
singular da personalidade de Quincas Borba em sua infância, motivando, inclusive, a
afirmativa de que a personagem era uma flor. Voltemos a esta passagem do romance:
Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página:
Ludgero Barata, - um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a
chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem.
Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, - umas
94
largas calças de enfiar -, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata
morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos
chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios,
malcriados, moleques. - Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém,
deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. (p. 64)
Nesse trecho do romance, quase em um tom saudosista, vemos emergir a verdadeira
natureza de Quincas Borba: uma criança tão diabo quanto o ‘menino-diabo’ Brás Cubas do
capítulo XI. Aproveitando-se do sobrenome de seu educador, além, é claro, de sua posição
social superior em relação ao seu mestre das primeiras letras, Quincas tortura
psicologicamente o seu professor com ‘pequenas peças’ ao longo da semana de aula. Tal
conduta, inclusive de forma recursiva, gera um abalo tamanho em Ludgero Barata que o
motiva a proferir insultos e repreensões a todos os alunos de sua turma, deixando ileso,
todavia, o verdadeiro responsável pela ‘brincadeira’.
Cabe aqui a menção ao modo dissimulado com que Quincas reage a tal episódio.
Enquanto os demais alunos se julgam injustiçados ou amedrontados pelos insultos de seu
mestre, Quincas se mantém alheio a essa situação. Nesse sentido, não obstante a crueldade,
como o autor o classifica, apropriando-se da voz de seu narrador, Quincas se mostra incapaz
de assumir os seus próprios atos, mantendo-se apartado de tal cenário, característica essa,
transportada para a sua vida adulta como filósofo humanitas. Assim, sua descrição em nada
lembra a de uma flor.
Outra personagem descrita como flor ao longo do romance é Eugênia. Embora tenha
sua participação limitada a apenas alguns capítulos do romance, ela é de fundamental
importância no contraponto entre as personagens femininas já analisadas em nossa pesquisa.
Filha de Dona Eusébia e do glosador Vilaça, Eugênia carrega a alcunha de ‘flor da moita’,
apelido surgido pelo fato do ato de sua concepção ter se dado em uma escapadela de sua mãe
com o glosador Vilaça numa moita no jardim, durante a festa dada pela família de Brás
Cubas, por ocasião da queda de Napoleão Bonaparte.
Tímida e acanhada (diferentemente de Marcela, e da ‘nobre’ Virgília), Eugênia finge-
se de indiferente aos elogios do recém-chegado da Europa, Brás Cubas. É interessante notar
como o narrador descreve a cena na qual os dois são apresentados pela mãe de Eugênia:
Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas
emendou-se logo, e ficou como dantes, erecta, fria e muda. Em verdade, parecia
ainda mais mulher do que era; seria criança nos seus folgares de moça; mas assim
quieta, impassível, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância
lhe diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-
lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria, com os olhos
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fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas
de ouro e olhos de diamante... (p. 97-98)
Ao contrário de todas as outras personagens femininas do romance, Eugênia ostenta
um ar de mulher respeitável para os padrões da época, não só pela sua “graça virginal”, mas,
por sua compostura de mulher casada que dita o tom de respeitabilidade de toda a cena. Nesse
aspecto, Eugênia é a única personagem feminina à qual não poderíamos imputar qualquer
mácula moral (tal como Virgília e Marcela, por exemplo). Em contraponto, o único fato,
inclusive recorrente a todos as personagens da narrativa, que deporia contra a personagem
seria justamente seu desejo de mudança de posição social por meio do casamento, como deixa
subentendido o último período da citação. Nada de tão ostensivo a ponto de macular todos os
valores morais carregados pela personagem, já que tal desejo é, inclusive, mais imputado à
figura de Dona Eusébia que a todo custo tenta aproximar Eugênia de Brás Cubas.
Até aqui, temos o perfeito estereótipo de ‘boa moça’ muito frequente nas construções
românticas: uma donzela pura, comportada, tímida e de pouquíssimas palavras, sendo, ainda
assim, atraente aos olhos de Brás. Para os padrões da época, essa seria a pretendente perfeita
para uma relação conjugal (vale lembrar o fato de Bento e Brás Cubas já terem, nesse ponto
da narrativa, se encontrado para tratarem do assunto do casamento de Brás e de suas
implicações para a vida pública). Eugênia, porém, possui um defeito físico que a condena
pelo resto de sua vida:
Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia
coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A
mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:
- Não, senhor, sou coxa de nascença.
Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a
simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. [...]
O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma
compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é
às vezes um imenso escárnio. Porque bonita, se coxa? porque coxa, se bonita?
Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de
noite, sem atinar com a solução do enigma. (p. 101-102. Negritos acrescidos)
Se analisarmos as personagens da obra, todas teriam certa participação na teia de
interesses tecidas ao longo do romance, além do que, todos possuíam algum valor; algo para
‘dar em troca’ nas relações capitalistas nas quais se inseriam. Entretanto, Eugênia apenas
possuía a sua pureza como ‘dote’ para a entrada nesse ‘mercado capitalista’. Desse modo,
como o valor da pureza é irrisório dentro de uma sociedade corroída pelo interesse, a
96
personagem é relegada, por causa de sua deficiência, ao espaço no qual foi concebida: o
espaço da exclusão da moita.
Quanto ao seu defeito físico, é importante refletir sobre o papel das personagens
coxas, principalmente se levarmos em conta a mitologia grega. O ato de coxear pode
significar, mitologicamente, tanto um sinal de fraqueza quanto de desequilíbrio espiritual, mas
não tem, necessariamente, relação a algo da ordem moral. Além disso, o coxear seria o preço
a se pagar por ir contra um poder estabelecido (no caso da mitologia, de um deus ou das
moiras), sendo o exemplo mais aclamado dessa natureza a própria saga de Édipo.
Considerando essa definição de ir contra um poder estabelecido, podemos verificar
que Eugênia vai contra os preceitos pautados nas relações de interesses de uma entidade tão
poderosa quanto uma divindade: o poder avassalador da sociedade burguesa. Sendo assim,
pela vontade hegemônica e incontestável da sociedade de interesses, Eugênia, além de não
possuir nada valorizado nessas teias capitalistas, tem que pagar, na própria carne, a ofensa de
ir contra as relações ocorridas em seu entorno pela metáfora simbólica de seu coxear.
Em suma, desde o principio de sua aparição no romance, naquele fatídico episódio de
1814, Eugênia, antes mesmo de nascer, já estava condenada ao esquecimento e à solidão do
espaço de sua moita, pois não tendo uma beleza marcante ou uma posição social privilegiada,
mesmo sendo uma flor, ela também é deteriorada pelo verme controlador dessa estrutura
social por não ter nada a oferecer.
Temos, por fim, a descrição do signo flor relativo ao próprio Brás Cubas. As suas
aproximações com tal elemento podem ser observadas com base em seu nascimento como a
flor oriunda daquela terra e daquele estrume. Além disso, é associada a Brás Cubas uma
doença caracterizada como uma flor amarela: a hipocondria, doença que aflige a personagem
até o fim de sua vida. Tal elemento surge pela primeira vez na narrativa no episódio descrito
no capítulo XXV, Na tijuca:
Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a
desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um
cheiro inebriante e sutil. - "Que bom que é estar triste e não dizer cousa nenhuma!" -
Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em
mim um eco, um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um
tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos e o espírito ainda mais cabisbaixo
do que a figura, - ou jururu, como dizemos de galinhas tristes. (p. 89. Negritos
acrescidos)
A hipocondria, grosso modo, é uma patologia psicológica associada a um
comportamento compulsivo em relação à perda do próprio estado de saúde, frequentemente
97
acompanhada de sintomas que não podem ser atribuídos a nenhuma doença orgânica. De
forma semelhante, isso acontece com Brás, pois, a princípio, nenhuma moléstia afetava a
saúde da personagem. Todavia, ao observamos os contextos nos quais a flor amarela
desabrochava, percebemos uma peculiaridade interessante. Distante de ser uma doença
natural e que acarretaria a perda de sua saúde física, a flor amarela no romance sempre está
associada a uma perda de bens materiais da personagem. Nessa perspectiva, Brás sempre
sofre uma pressão, em maior ou menos grau, da perda de seu patrimônio, fato subentendido,
por exemplo, na renúncia descrita na citação anterior na qual Brás renega, temporariamente, a
sua posição nas relações burguesas tecidas até então e busca refúgio na Tijuca, local afastado
da efervescência da cidade à qual estava acostumado.
Além dessa cena, a flor da hipocondria surge no episódio do furto de seu relógio pelo
então amigo Quincas Borba, como descrito na cena abaixo:
Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do
furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão...
Desde a sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e
então jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu
queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o encontro do
Quicas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não qual fora deveras, mas um
passado roto, abjeto, mendigo e gatuno. (p. 139)
Outro elemento interessante é o fato da flor amarela não ter nenhuma natureza
hereditária, fato este, exposto na cena de reconciliação entre os irmãos Cubas, na qual o
narrador nos confessa:
Os olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e mórbida. Que
importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lho com
ternura, com sinceridade... Súbito, ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um
anjinho de cinco anos. (p. 166)
Do mesmo modo, ao longo de todo o romance, vemos que, em apenas uma ocasião a
flor amarela do senhor de escravos perde destaque para outra flor, menos ‘mórbida’: o
reconhecimento de si pelo próximo.
Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por
diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros
homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...
E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em
pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão
para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida - o amor da nomeada,
o emplasto Brás Cubas. (p. 95-96. Negritos acrescidos)
98
Ora, como visto na citação acima, além da referência ao emplasto Brás Cubas, o
único remédio capaz de curar esse mal que assola a mente de Brás Cubas é o desejo do
reconhecimento público, meio para conseguir mais e mais bens materiais. Nesse caso, não é
mera coincidência o fato de esse ‘chocalho’ apresentado à personagem ser a carreira política
proporcionada pelos planos de casamento com Virgília (que por si só já demonstra uma
espécie de ruína social ao tratar das relações privadas e particulares, tal como o casamento, a
partir da lente da opinião pública e do jogo de interesses).
Em última análise, temos, na metáfora da flor amarela, a primeira mostra da
verdadeira doença de Brás, uma doença que não é realmente física, mas moral e que assola
não só seu corpo e sua mente, mas todo um corpo social: a cobiça. A esse respeito, vale a
lembrança do início do último capítulo do romance em que o narrador, afirma que a
hipocondria não o acompanhou para o túmulo, o que se esperaria de uma doença individual,
mas ela está também em nós, leitores de suas memórias/romance, que compartilhamos das
mesmas relações sociais do narrador:
Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na
primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas,
que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me
darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a
genuína e direta inspiração do céu. O caso determinou o contrário; e aí vos ficais
eternamente hipocondríacos. (p. 251. Negritos acrescidos)
Em suma, a flor Brás Cubas encontra terreno fértil (união de terra e estrume) para seu
desenvolvimento (a)moral dentro de toda a narrativa: um espaço marcado por uma sociedade
em plena decomposição.
Ainda sobre a renúncia de Brás aos bens materiais, outro ponto que nos chamou a
atenção nesse episódio foi a alusão à frase atribuída ao poeta Shakespeare. Esse fato não
deveria, a princípio, provocar nenhuma estranheza, pois o modo como Machado apropria-se
da literatura, sobretudo os clássicos universais, é deveras evidente em sua obra. Aludir,
diretamente a uma frase de uma peça de Shakespeare, não seria nenhum absurdo dada a
importância desse autor para o cânone universal e para a própria formação de Machado de
Assis como escritor. Entretanto, a peça escolhida para esse trecho causa certa estranheza. A
passagem mencionada por Brás, como bem apontam Senna (2014) e Eugênio Gomes (2008),
pertence a uma peça chamada As you like it (Como gostais), encenada pela primeira vez por
volta de 1600. O que nos chama atenção nessa escolha, é o fato dessa peça não pertencer ao
grupo das obras mais conhecidas e aclamadas do dramaturgo inglês. Contudo, o enredo de
99
Como gostais não só é muito semelhante ao momento vivido por Brás no instante da leitura
mencionada por ele, mas remonta, inclusive, à própria estruturação do romance feita por
Machado através das relações cunhadas por Brás Cubas ao longo da narrativa.
Ao ler a peça de Shakespeare, Brás sente um agradável eco em seu interior motivando-
o, como os duques e personagens da peça em questão, a permanecer isolado no clima
bucólico da Tijuca do século XIX, a fim de esquecer os eventos relacionados à morte de sua
mãe. No que tange à proposta textual do romance e sua relação com a escolha da referida
peça, de acordo com Gomes (2008), outra aproximação, de forma muito mais direta e
conclusiva, materializa-se na epígrafe inicial da obra (na Revista Brasileira) que fora retirada
dessa peça de Shakespeare. Embora essa epígrafe tenha sido substituída mais tarde, na versão
em livro, temos a primeira noção da influência dessa leitura na proposta textual imaginada por
Machado de Assis (1999) para a composição de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Vejamos não só a dedicatória original do romance, mas também o comentário feito por
Gomes (2008) a respeito da alteração:
Outra orientação ética que Machado de Assis encontrou em Shakespeare foi a que
advém da frase de Jacques, o Melancólico, com a qual abriu as Memórias póstumas
de Brás Cubas, na publicação da Revista Brasileira, fazendo-a acompanhar da
respectiva versão: "I will chide no breather in the world but myself; against whom
I know most faults" (Não é meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim
somente, em quem descubro muitos senões). Shakespeare, As You Like It, ato III,
cena ii ) Como Brás Cubas subverteu logo a seguir a orientação que deparara na
declaração de Jacques – um ascendente de Hamlet na galeria shakespeariana de
melancólicos insubmissos – resvalando para a maledicência e a crítica, não apenas
de si mesmo, mas de todos os "fôlegos vivos" do mundo de seus dias, Machado de
Assis conveio posteriormente em evitar essa incongruência de seu personagem e
suprimiu a expressiva epígrafe na edição em livro. (GOMES, 2008, p. 2. Negritos
acrescidos)
Como bem observado pelo crítico, a retirada da epígrafe feita por Machado de Assis
(1999) no primeiro negrito destacado teve por intenção corrigir um equívoco na proposta
textual do romance, adequando a figura do narrador à desconstrução da burguesia feita na
obra como um todo. Nesse caso, reduzir as mazelas a apenas um indivíduo, Brás Cubas,
isentando o ‘fôlego vivo’ da sociedade, seria uma grande incoerência já que, na tessitura
romanesca machadiana, sujeito e sociedade andam em perfeita sintonia.
Dito isto, encontramos mais uma vez uma grande disparidade entre o que
consideraríamos como características positivas das flores e as características das personagens
descritas no romance de modo geral, pois, recorrendo ao dito popular, elas não eram, de fato,
‘flores que se cheirassem’ devido à perversidade de suas relações. Contudo, se analisarmos a
100
simbologia das flores podemos verificar uma explicação coerente para tal recorrência, em
consonância com o projeto estético adotado por Machado.
Segundo o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009), as
flores são símbolos muito difundidos entre as culturas antigas ao redor do mundo, geralmente
portadoras de elementos positivos. Entretanto, a definição dada em relação à cultura grega nos
chama a atenção:
Associadas analogicamente às borboletas, tal como elas, as flores representam
muitas vezes as almas dos mortos. Por isso, a tradição mitológica grega diz que
Perséfone, futura rainha dos infernos, foi arrebatada por Hades (Plutão) nas planícies
da Sicília, quando se divertia com suas companheiras a colher flores.
Com efeito, muitas vezes a flor apresenta-se como figura-arquétipo da alma, como
centro espiritual. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 438-439)
De acordo com tal simbologia, antes de representar qualquer elemento a priori
positivo, as flores representam a alma humana de modo geral, seja ela boa ou corrompida.
Agregado a isso, as flores carregam consigo o estigma muito usado no gênero de pintura das
‘naturezas mortas’ de portadoras de uma beleza aparente, mas que degrada rapidamente com
o passar do tempo, demonstrando a efemeridade de sua composição.
Nesse ponto, ocorre com as personagens do romance machadiano o mesmo jogo de
aparências: assim como as flores se degradam com o passar do tempo, apesar de sua aparência
remontar a algo belo, as personagens da narrativa, a despeito de sua aparência/ posição social,
também se decompõem por meio das relações vivenciadas por elas ao longo do romance.
Além disso, não seria absurdo pensar que o fato de Brás ter nascido daquela terra e daquele
estrume reafirma ainda mais a conexão entre ele e o terreno apodrecido de sua origem. Ora, se
estamos presenciando a encenação de uma sociedade regida (e corrompida) pelas aparências,
a única coisa que poderíamos esperar desse solo pútrido seriam flores-personagens tão
corroídas e deterioradas quanto o terreno social no qual elas nascem. Brás, a flor do estrume,
Quincas, a flor da cidade, Eugênia, a flor da moita, todas elas possuem traços de uma corrosão
moral, guiada pelo verme das relações regidas pelo capital.
Cabe aqui, ainda, referência a um momento muito particular no romance que é a
interrupção da gestação de Virgília, de um filho que poderia, segundo a burguesa, ser o fruto
da relação (adúltera) entre ela e Brás Cubas:
Onde estão elas, as flores de antanho? Uma tarde, após algumas semanas de
gestação, esboroou-se todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se o
embrião, naquele ponto em que se não distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a
101
notícia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala, e acompanhou o médico à
alcova da frustrada mãe. Eu encostei-me à janela, a olhar para a chácara onde
verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam elas, as flores de antanho? (p. 186)
O título desse capítulo, Flores de Antanho, segundo o banco de referências disponível
no site machadodeassis.net, coordenado por Martha de Senna (2014), parece tratar de uma
alusão ao refrão de uma balada francesa intitulada "Ballade des dames du temps jadis”
(Balada das damas dos tempos idos), de François Villon (2014). Como exposto no próprio
banco de dados, Machado de Assis (1999) faz uma pequena alteração no refrão do poema,
trocando o signo “neves” por “flores”. Vejamos o refrão do poema:
Dizei-me em que terra ou país
Está Flora, a bela romana;
Onde Arquipíada ou Taís,
que foi sua prima germana;
Eco, a imitar na água que mana
de rio ou lago, a voz que a aflora,
E de beleza sobre-humana?
Mas onde estais, neves de outrora?16
(Villon, 2014. Negritos acrescidos)
Essa modificação feita por Machado pode ter sido motivada, em primeiro lugar, pelas
inúmeras referências aos elementos da natureza, como flora, rio, lago, presentes na própria
balada de Villon (2014). No entanto, se tomarmos a perspectiva adotada ao longo dessa
dissertação no que tange ao signo flor, a alteração feita por Machado também reflete a
característica das flores-personagens como elementos pertencentes a um determinado terreno
social. Por esse viés, o filho da relação adúltera mantida por Brás Cubas e Virgília
representaria, também, a continuação da linhagem da família Cubas, sendo tal criança, caso
tivesse realmente nascido, mais uma flor no galho dessa família corroída.
16
Segue a balada de Villon (2014) traduzida por Modesto de Abreu:
Dizei-me em que terra ou país/Está Flora, a bela romana;/Onde Arquipíada ou Taís,/que foi sua prima
germana;/Eco, a imitar na água que mana/de rio ou lago, a voz que a aflora,/E de beleza sobre-humana?/Mas
onde estais, neves de outrora?
E Heloísa, a mui sábia e infeliz/Pela qual foi enclausurado/Pedro Abelardo em São Denis,/por seu amor
sacrificado?/Onde, igualmente, a soberana/Que a Buridan mandou pôr fora/Num saco ao Sena
arremessado?/Mas onde estais, neves de outrora?
Branca, a rainha, mãe de Luís/Que com voz divina cantava;/Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz/E a que no Maine
dominava;/E a boa lorena Joana,/Queimada em Ruão? Nossa Senhora!/Onde estão, Virgem soberana?/Mas onde
estais, neves de outrora?
102
Assim, a alteração do título do capítulo nomeia indiretamente o filho de Brás como
sendo a “flor de antanho” (ou outrora, em algumas traduções do verso), reafirmando o aspecto
sugerido na construção das outras personagens-flores da obra, que é o de continuidade das
relações de interesses presentes na sociedade burguesa retratada no romance. Em resumo, o
filho de Brás, que nasceria da mesma terra e do mesmo estrume de onde nascera o seu pai,
também estaria destinado a uma herança de relações corroídas e decompostas pelos vermes
que corromperam toda uma esfera social. Não por acaso, o único feito louvável executado
pelo narrador ter sido justamente não ter tido filhos, pois assim, quebraria essa herança
maldita da qual ele mesmo fazia parte.
Apresentada a junção desses dois signos vistos recorrentemente nas descrições das
cenas de todo o romance, verificamos como esses dois elementos, tão dicotômicos a princípio,
começam a se aproximar na composição formal do romance em análise. Antes de
prosseguirmos, cabe uma menção ao modo de estruturação do narrador machadiano em
questão. Como vimos anteriormente na pesquisa, o defunto narrador Brás Cubas faz questão
de demarcar a separação primordial entre o seu espaço de narração, além-túmulo, e sua vida
em sociedade. No capítulo teórico deste trabalho, discutimos o modo como o espaço só pode
ser de fato concebido se tomarmos como parâmetro a rede de relações sociais (histórias e
trajetórias) das personagens envolvidas em um determinado contexto social. Dessa maneira, a
separação entre os dois espaços do narrador torna-se compreensível justamente porque o
espaço além-túmulo não possui as mesmas relações sociais do período em que ele estava
vivo.
Por outro lado, isso não quer dizer que tenha havido, por parte do narrador, qualquer
movimento de remorso ou de ressentimento pelos atos cometidos em vida. Muito pelo
contrário, o espaço além-túmulo é justamente aquele no qual a degradação humana pode ser
mostrada, como demonstrado na simbologia das roupas já estudada anteriormente. Dessa
forma, o narrador é construído com a finalidade de sentir prazer em reviver cada experiência,
cada estratagema de enganação do mais fraco para tirar proveito de determinada situação.
Com uma franqueza que nos desarma perante as crueldades de uma sociedade regida pelo
lucro, o autor implícito expõe, nessa importante estratégia textual configurada no discurso de
Brás Cubas, todo um legado de degradação da alma humana e de seu corpo social.
Partindo disso, os elementos pontuados na narrativa pelo signo da corrosão mostram-
se extremamente pertinentes por compor, em seus vários planos textuais, uma espécie de
ponte entre o mundo ‘social’ dos vivos, lar das flores-personagens, e a decomposição do
103
mundo dos mortos. Nesse caso, aspectos do mundo dos mortos penetram no espaço dos vivos
graças à natureza das relações efetuadas pelas flores-personagens.
No plano textual do enredo do romance, por exemplo, verificamos, no capítulo
anterior, como as vestes usadas por Quincas Borba em sua vida como mendigo espelham,
quase como um fantasma, toda a deterioração das vestes usadas por Brás no mundo além-
túmulo, causando, inclusive, um extremo desconforto em Brás Cubas quando ele se depara
com a imagem corroída não só do outro, mas de si próprio.
Ao adentrarmos no plano do narrador, a combinação entre o mundo dos vivos e do
além-túmulo aumenta consideravelmente. Das personagens-flores do romance, Brás Cubas é
o mais referido pelo signo da corrosão. Essa proporção justificaria, a princípio, a utilização da
epígrafe da versão publicada na Revista Brasileira, focalizando os inúmeros ‘senões’ da
existência de Brás. No entanto, ao verificarmos mais atentamente as cenas em questão,
notamos que, longe de estarem apartadas das relações sociais (ou “fôlegos dos vivos”), as
ações executadas por Brás fazem parte desse processo de embrutecimento, já comentado
anteriormente, pelo qual o narrador caminha durante sua formação. Nesse emaranhado de
relações, torna-se impossível (uma tarefa que por si só já é complicada) separar, como bem
apontam os estudiosos apresentados no capítulo teórico deste trabalho, o que estaria no campo
do indivíduo, espaço privado, morada de sua individualidade, e o campo social, espaço das
relações públicas.
Em síntese, percebemos como vai sendo tecida, ao longo de todo o romance, a partir
das histórias e trajetórias das personagens-flores, uma teia de corrosões nos mais diferentes
níveis e intensidades. Tal como nos é apresentada na teoria bakhtiniana, verificamos a
estratégia primordial de que se vale Machado de Assis (1999) para a composição de seu
romance: a de falar de dentro da palavra de suas personagens, através da encenação de
seu discurso situado em um dado momento histórico social.
Ao ouvir a voz de um narrador cujo discurso encontra-se tão corroído como suas
vestes, observamos como a corrosão textual culmina não só na degradação do sujeito ficcional
construído como enunciador de sua classe, Brás Cubas, mas se espalha por toda uma cadeia
de instituições sociais ao longo da narrativa, encenando assim, a própria decomposição do
corpo social.
Dessa maneira, instituições símbolos da doutrina burguesa, como o casamento, torna-
se uma mera negociação comercial feita à revelia de qualquer relação sentimental ou amorosa.
O próprio amor, tão enaltecido e glorificado pela ideologia romântica, é corroído no interior
104
de suas relações, como no caso da prostituta Marcela, que mensurava seu ‘amor’ em contos
de réis, ou ainda, na relação adúltera entre Brás Cubas e Virgília, um amor colocado em
segundo plano, a fim de se buscar a proteção da posição social do casal. Instituições
fundamentais na própria constituição nacional, como a Igreja e o Exército, são corroídas de
dentro, a partir da perversão das relações estabelecidas pelos tios de Brás Cubas. Nem mesmo
a concepção que temos da morte escapa da corrosão do verme social, como evidenciado, por
exemplo, no episódio da morte precoce de D. Eulália, posta em segundo plano pelo próprio
pai, mais preocupado com a ausência das pessoas no funeral de sua ‘querida’ filha do que
propriamente com a sua perda, como mostra a passagem abaixo:
A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia uma ruína.
Quinze dias depois estive com ele; continuava inconsolável, e dizia que a dor grande
com que Deus o castigara fora ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens.
Não me disse mais nada. Três semanas depois tornou ao assunto, e então confessou-
me que, no meio do desastre irreparável, quisera ter a consolação da presença dos
amigos. Doze pessoas apenas, e três quartas partes amigos do Cotrim,
acompanharam à cova o cadáver de sua querida filha. E ele fizera expedir oitenta
convites. Ponderei-lhe que as perdas eram tão gerais que bem se podia desculpar
essa desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo incrédulo e
triste.
- Qual! - gemia ele -. Desampararam-me.
Cotrim, que estava presente:
- Vieram os que deveras se interessam por você e por nós. Os oitenta viriam por
formalidade, falariam da inércia do governo, das panaceias dos boticários, do preço
das casas, ou uns dos outros...
Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:
- Mas viessem! (p.220)
Tal como aponta Duarte (2007), Machado de Assis (1999) não só mata o senhor de
escravos, mas o faz falar, pois, só dessa maneira, pelo próprio discurso de uma classe corroída
pelo verme das relações regidas pelo capital, é que temos acesso a essa brilhante encenação da
palavra do romance que nos mostra uma sociedade em pleno processo de decomposição.
Dessa forma, segundo a perspectiva adotada pelo romance em análise, encena-se, tal
como a metáfora do corcel romântico já discutido, o próprio movimento de ruptura na forma
de representar a realidade, vista agora não pela lente idealizada do romantismo, mas pelo viés
do realismo, em que se escancaram todos os farrapos e flagelos das relações movidas pelo
capital.
Nessa proposta de desconstrução empreendida por Machado de Assis (1999),
percebemos como a primazia desses dois elementos, o verme (corrosão) e a flor, funcionam
como uma perfeita engrenagem crítica justamente por lançar luz a um jogo de relações
encobertas pelo manto da naturalização da brutalidade, corroendo todo um sistema falido de
105
relações, perversas em sua gênese, através da palavra posta em movimento pela encenação
literária.
Por essa perspectiva, é importante reiterar esse movimento sutil presente na
composição desse narrador ardilosamente construído de forma ambivalente, pois ele não só
pode falar sobre determinada situação, mas, principalmente, mostrar como tal cenário se
desenrola através de um discurso extremamente ácido. O que nos interessa aqui é justamente
o movimento crítico que não parte de fora para dentro da narrativa, mas, sim, de dentro das
pequenas flores-personagens (e de suas histórias e trajetórias) degradadas e corroídas,
culminando na corrosão do corpo social totalmente apodrecido.
Duas passagens muito significativas ainda merecem destaque: a junção entre Brás (flor
nascida do estrume) e sua classe (corpo social) como um sujeito, mesmo que ficcional, que
fala de um determinado lugar e de um determinado contexto socio-histórico. A primeira delas,
na qual Brás Cubas, ao ler os epitáfios no cemitério, começa a perceber a relação entre a
podridão e o seu meio social no capítulo CLI, Filosofia dos epitáfios, e a cena final do
romance, em que o narrador expõe como o seu maior legado o fato de não ter tido filhos,
quebrando metaforicamente, a herança maldita e miserável de sua classe:
Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos
epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto
egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que
passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na
vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos. (p. 244)
Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua
nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque
ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a
derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (p. 251. Negritos acrescidos)
Além disso, a corrosão aqui apresentada se instaura até mesmo na própria composição
formal da obra. O uso de capítulos compostos apenas por sinais de pontuação, interrupções
bruscas no transcorrer ‘linear’ do texto, apropriação de variados gêneros discursivos não
literários na tessitura do romance, inserção de vazios e lacunas ao longo de toda a narrativa
formam um somatório de estratégias textuais que, como já discutido anteriormente nesse
trabalho, parecem apontar, NA/PELA palavra romanesca, para um deslocamento do gênero
romanesco tal como era produzido no período machadiano, o que acarretou, inclusive, no
próprio estranhamento dos estudiosos e leitores contemporâneos a Machado de Assis (1999).
106
Em última análise, ao longo da leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas nos
deparamos com um romance que encena, desde sua forma até o cenário social descrito, os
‘rasgões’ e ‘remendos’ da roupa de seu defunto narrador, apontando para a própria natureza
da vida social regida pelo verme das relações de interesse. Tal como um epitáfio de uma
classe, o livro nos mostra a cada nova lacuna e vazio na estrutura do texto, todo um processo
de corrosão do discurso compartilhado pelo narrador e sua classe, revelando-se, por esse viés,
como um verdadeiro retrato de uma classe em pleno processo de decomposição.
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5 (IN)CONCLUSÃO: FLORES EM RUÍNAS: UM CORPO SOCIAL DECOMPOSTO
Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas
vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam
à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a
arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou.
Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta. (Brás Cubas
– Cap. IV A ideia fixa)
Nas reflexões empreendidas ao longo deste trabalho, à luz dos conceitos de espaço
como um construto relacional, buscamos analisar, através do discurso-palavra romanesco,
como os espaços burgueses foram construídos com base nas relações de poder corroídas e
deterioradas, presentes em uma das obras mais relevantes da literatura brasileira: Memórias
Póstumas de Brás Cubas.
Caminhamos pelas ruas e salões fluminenses do século XIX através das memórias
póstumas de um defunto autor. Observamos as bexigas de uma decadente prostituta, metáfora
de uma vida de relações regidas pelo interesse, e descobrimos, no susto de uma alucinação,
que tais bexigas também corroeram e devastaram o rosto e, sobretudo, a moral de uma
importante burguesa da época. Contemplamos a exibição, no espaço da campa, dos trapos
velhos, rasgões e remendos de uma vida burguesa em completa decomposição.
Essas foram algumas das inquietações com as quais nos deparamos a cada novo passo
na leitura analítica dos espaços ocupados pela elite fluminense brasileira do século XIX.
Nessa incrível leitura crítica da sociedade de seu tempo, Machado de Assis (1999) constrói
nesse romance, um narrador que consegue, não só demonstrar os próprios rasgões e trapos
velhos de sua existência, mas estendê-las para toda uma classe que faz da brutalidade das
relações e da exploração do outro o seu principal meio de ascensão social.
Destarte, vemos colocada na voz do narrador, representante de sua classe, variadas
nuanças e tons a fim de corroer tal discurso no interior de suas relações guiadas pelo verme
das relações regidas pelo capital. Como bem aponta Duarte (2007), Machado de Assis (1999)
não só mata o senhor de escravos, mas o faz falar, justamente para expor, literariamente, a
degradação e as mazelas de um corpo social em ruínas.
Sendo assim, ao nos mostrar diversas cenas das variadas “flores-personagens” atuantes
nesse corpo social corrompido, percebemos como as memórias póstumas desse defunto autor
tão melancólico e debochado representam não uma simples memória social, como alude a
epígrafe original do romance (em sua publicação na Revista Brasileira), mas a memória
108
coletiva (cf. Duarte, 2007) de todo uma classe senhorial devastada pelo verme de suas
próprias relações.
Além disso, essa crítica social tão ácida de Machado de Assis (1999) só seria, de fato,
possível, graças a um movimento de imersão nas várias histórias e trajetórias das personagens
que caracterizam os espaços ocupados pela burguesia do século XIX. Desse modo, o autor
opta por iniciar a sua proposta textual de desconstrução do discurso burguês não focalizando o
meio social a priori, o que empobreceria a narrativa, mas, sim, efetuando uma formidável
leitura da alma humana e da sociedade corrompida que a cerca de dentro das cenas de
brutalidade descritas, NA e PELA palavra-discurso romanesca encenada. Questiona, assim,
essa estrutura social vista com ‘ares de normalidade’ na perspectiva do narrador do romance,
mas que se revela totalmente corroída e degradada por relações abjetas das mais distintas
naturezas.
Para nosso espanto, percebemos na tessitura da obra um diálogo possível com Charles
Baudelaire (2008) e suas Flores do Mal justamente por essa obra abrigar a mesma dicotômica
aproximação entre as flores e a corrosão presente no romance machadiano. As flores
construídas na obra machadiana em análise são nascidas já em pleno processo de
decomposição, fruto de relações sociais deterioradas pelo verme que corrói não só o a fria
carne do cadáver de seu protagonista mor, Brás Cubas, mas todo um corpo social apresentado
no romance, desde suas personagens-flores, até as mais sacralizadas instituições na sociedade
burguesa.
Por fim, como em todo bom romance, ao fechar a leitura de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, obtivemos muito mais questionamentos do que propriamente respostas. A leitura
dos espaços narrativos nos proporcionou apenas uma porta de entrada (das múltiplas
possíveis) para dentro das intricadas cenas enunciativas do romance escolhido como corpus
desta pesquisa. Talvez a única grande certeza a que pudemos chegar ao fechar,
provisoriamente, o romance seja a inquietante verdade de que, através da leitura de suas
relações, as Memórias Póstumas de Brás, escritas há mais de 100 anos, conseguem ainda
hoje, de forma tão brilhante, ler não só a nossa sociedade, tão assolada pelo mesmo verme
roedor de um século atrás, mas também toda a complexidade da natureza da alma humana,
tornando essa palavra-discurso romanesca, sempre universal a cada nova leitura.
109
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