em modulo 4 o discurso narrativo

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Ângela Maria da Silva Souto Vilma de Sousa Era uma vez... O discurso narrativo Nível: Ensino Médio Série: 1ª Eixo temático I: Compreensão e produção de textos Tema I: Gêneros Competência: Compreender e produzir textos, orais ou escritos, de diferentes gêneros. Subtemas: Operações de contextualização, tematização, enunciação e textualização do discurso Tópicos de conteúdo da proposta curricular: 1. Contexto de produção, circulação e recepção de textos 2. Referenciação bibliográfica segundo normas da ABNT 3. Organização temática 4. Seleção lexical e efeitos de sentido 5. Signos não verbais 6. Vozes do discurso 7. Intertextualidade e metalinguagem 8. Textualização do discurso narrativo SEEMG 2009

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Page 1: EM Modulo 4 O Discurso Narrativo

Ângela Maria da Silva Souto Vilma de Sousa

Era uma vez...

O discurso narrativo

Nível: Ensino Médio Série: 1ª

Eixo temático I: Compreensão e produção de textos

Tema I: Gêneros

Competência: Compreender e produzir textos, orais ou escritos, de diferentes gêneros.

Subtemas: Operações de contextualização, tematização, enunciação e textualização do discurso

Tópicos de conteúdo da proposta curricular:

1. Contexto de produção, circulação e recepção de textos

2. Referenciação bibliográfica segundo normas da ABNT

3. Organização temática

4. Seleção lexical e efeitos de sentido

5. Signos não verbais

6. Vozes do discurso

7. Intertextualidade e metalinguagem

8. Textualização do discurso narrativo

SEEMG

2009

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O que significa discurso?O que significa discurso?O que significa discurso?O que significa discurso?

Nos estudos da linguagem, a palavra discurso é usada para designar toda atividade de comunicação por meio da linguagem verbal, que se materializa em textos. Mas o termo discurso pode ser usado com sentidos mais específicos. Expressões como discurso científico, discurso pedagógico, discurso jurídico, discurso político, por exemplo, fazem referência a textos com temas, estruturas, vocabulário e estilo usuais em determinados domínios de conhecimento e de atividades humanas. Já as expressões discurso descritivo, discurso expositivo, discurso argumentativo, discurso injuntivo, discurso de relato e discurso narrativo fazem referência aos diferentes propósitos básicos que podem orientar os discursos, gerando determinadas marcas lingüísticas nos enunciados.

O discurso descritivo pretende dar a conhecer ao interlocutor as características de determinado ser; o discurso expositivo apresenta idéias e relações entre idéias; o discurso argumentativo busca convencer o interlocutor de um ponto de vista; o discurso injuntivo pretende levar o interlocutor a agir de determinada forma; o discurso de relato e o discurso narrativo têm como objetivo apresentar acontecimentos.

Neste módulo, vamos estudar o discurso narrativo ficcional, isto é, o discurso que cria histórias imaginárias. Ficcional aqui significa ‘criado pelas palavras’ e, portanto, sem compromisso de correspondência direta com acontecimentos reais. Não se trata, pois, apenas de ficção científica, de histórias de extraterrestres ou de máquinas maravilhosas, mas de toda e qualquer história ou caso “inventado” pelas palavras.

Ao estudar este módulo, você terá oportunidade de refletir sobre os motivos que se repetem nas narrativas clássicas tradicionais, confrontá-las com as narrativas de épocas posteriores, quanto à visão de mundo, à forma de narrar e à linguagem.

Espera-se que, depois de estudar o módulo, você tenha aprendido a

• identificar situações comunicativas e gêneros em que o discurso narrativo é empregado;

• reconhecer o objetivo comunicativo e a organização do discurso narrativo em textos apresentados;

• distinguir narrativas ficcionais de narrativas não ficcionais, considerando as condições de produção de textos apresentados;

• identificar a estrutura global de narrativas canônicas;

• comparar narrativas canônicas com narrativas não canônicas;

• avaliar a pertinência, a suficiência e a ordenação das etapas de um texto ou seqüência textual narrativa;

• interpretar narrativas, fazendo inferências a partir de seus conhecimentos de mundo e de textos;

• reconhecer interlocutores e vozes sociais de textos narrativos, suas formas de representação e os efeitos de sentido dessas representações;

• interpretar efeitos de sentido decorrentes de variedades linguísticas e estilísticas em textos narrativos apresentados;

• reconhecer e utilizar, em textos narrativos, estratégias para prender a atenção do interlocutor;

• reconhecer e usar marcas lingüísticas do discurso narrativo;

• produzir textos narrativos adequados ao gênero, ao suporte, ao destinatário e ao objetivo da interação.

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Atividade 1 Omitimos, intencionalmente, as fontes ou referências bibliográficas dos textos apresentados nesta atividade. Leia-os atentamente, observando os temas e as marcas lingüísticas que apresentam.

Texto 1 Comandando uma armada de treze navios, partiu [Pedro Álvares Cabral] de Belém segunda-feira, 9 de março de 1500. O domingo passara-se em festas populares. O rei tivera a seu lado na tribuna o capitão-mor, pusera-lhe na cabeça um barrete bento mandado pelo papa, entregara-lhe uma bandeira com as armas reais e a cruz da ordem de Cristo, a ordem de D. Henrique, o descobridor. Sentia-se bem a importância desta frota, a maior saída então para terras alongadas.

Texto 2 Na terça-feira, 9 de fevereiro, em forma, limpo, com barco aquecido e tudo revisado, percebi, quando a vela nova ficou pronta, que não poderia ficar nem mais um minuto em Dorian. Recuperei as ferragens, as âncoras, soltei o cabo e deixei a baía. Na estreita passagem entre as pedras da saída, a bolina abaixada deu duas batidas fortes no fundo: TUNG e TUNG!

Texto 3 No batizado, que se esperou um pouco para ver como ia a vontade de Deus (não morreria pagã, na última hora se batizava mesmo de qualquer jeito, com água de cuia ou qualquer coisa molhada), Quincas Ciríaco levou para ela uma medalhinha de ouro que ele fez questão de mandar especialmente benzer em Aparecida do Norte, mais seguro, de mais confiança, se assim se pode dizer. Queria ver aquela moça crescida, abrandar em beleza e graça o destino bruto e selvagem de Lucas Procópio Honório Cota. Nem de longe aqueles traços, aquelas sobrancelhas cabeludas que ainda estavam na cara de João Capistrano e o faziam voltar sonâmbulo ao território do Encantado.

A respeito dos textos acima, identifique, pelo número, as afirmativas CORRETAS.

(1) Os três textos exemplificam o discurso narrativo, pois apresentam, em primeiro plano, uma sequência de acontecimentos envolvendo pessoas ou personagens.

(2) Nos três textos, estão presentes organizadores temporais que situam os acontecimentos no tempo e marcam a ordem em que os fatos ocorreram, o que é típico do discurso narrativo.

(4) No texto 1, a linguagem usada pelo locutor-narrador sugere que se trata de um relato de fatos históricos que ele não presenciou e dos quais tomou conhecimento por relatos de terceiros.

(8) Se o leitor não conhecer as condições de produção (data de publicação, autor, suporte em que circulou), o texto 2 pode ser tomado tanto como relato de fatos que efetivamente ocorreram quanto como relato de fatos imaginados.

(16) É possível afirmar que o texto 3 é ficcional, pois o locutor-narrador que presenciou os acontecimentos revela pensamentos e sentimentos de uma das personagens, o que não é possível na realidade.

(32) A comparação entre os fragmentos permite afirmar que, apenas pelos enunciados, é possível distinguir claramente as narrativas ficcionais (romances, novelas, contos) das não-ficcionais (relatos históricos, diários de viagens, relatos de casos do cotidiano).

Agora escreva, no quadrinho ao lado, a SOMA dos números das afirmativas CORRETAS.

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Resposta

(31) Todas as alternativas, com exceção da de número 32, são corretas. � Em muitos casos, como ocorre nos fragmentos 1 e 2, não é possível afirmar, com segurança, apenas pela leitura dos enunciados, se o texto é ficcional ou não ficcional. Fatos históricos, como os apresentados no fragmento 1, podem ser ficcionalizados, quando integrados em um romance histórico, por exemplo. A sequência de fatos narrados no fragmento 2 também poderia ser um relato de ações que efetivamente aconteceram com o locutor-narrador ou uma narrativa de ficção escrita como um diário de viagem. Nesses dois casos, será preciso considerar o todo da obra de onde foram retirados os fragmentos. Já o fragmento 3 pode, sim, ser identificado como ficcional apenas pelo enunciado, pois nele um narrador que fala em terceira pessoa revela detalhes do mundo interno de uma personagem, o que não seria possível na realidade. Atividade 2 Apresentamos a seguir as fontes dos fragmentos de textos que você leu na atividade anterior. Texto 1 ABREU, J. Capistrano de. Capítulos da História colonial, 1550-1800. 7. ed. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 52. (Grandes nomes do pensamento brasileiro) Texto 2 KLINK, Amyr. Mar sem fim: 360º ao redor da Antártica. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 161. Texto 3 DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. p. 18-19. Interprete as pistas fornecidas pelas fontes e responda: você alteraria alguma das respostas que deu à questão anterior? Por quê?

Resposta A atividade tem como objetivo chamar atenção para a importância da fonte na interpretação de um texto. Prestando atenção ao suporte em que o texto originalmente circulou (jornal, revista, livro, folheto, etc.), ao título da publicação, ao nome do autor, que pode ser um escritor conhecido, é possível inferir se se trata de uma obra ficcional ou não. O título do livro de onde foi tirado o primeiro fragmento e a indicação do nome da coleção entre parênteses são indícios seguros de que se trata de uma narrativa histórica. No caso do segundo fragmento, o nome do autor do livro, Amyr Klink, navegador brasileiro famoso por viajar sozinho em embarcações que ele mesmo constrói, é suficiente para que o leitor suponha que o fragmento foi retirado de uma narrativa de viagem; portanto, de um texto não ficcional. No caso da terceira publicação, ainda que o leitor não saiba que Autran Dourado é um autor de obras literárias, o título do livro e a captação do mundo interno da personagem são suficientes para identificar o texto como ficcional. Atividade 3 1. Na charge reproduzida ao lado, há um jogo entre uma

fórmula típica do discurso narrativo ficcional e a referência realista a uma situação social. Por meio desse jogo, o autor da charge insinua que

a) todos os seres humanos precisam de alimento para sobreviver.

b) para os que vivem na miséria, o alimento faz parte do mundo imaginário.

NANI. Bundas. Rio de Janeiro, Pererê, ano 2, n.77, p.48, 5 dez. 2000.

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c) mesmo na miséria, os seres humanos continuam a sonhar.

d) as histórias podem libertar o ser humano das necessidades imediatas.

2. Com que objetivo o locutor do texto contrapõe o mundo imaginário e o mundo real?

Respostas

1. b. A alternativa (a) não é adequada porque o texto faz mais do que constatar que a alimentação é uma necessidade humana básica. As alternativas (c) e (d) não são adequadas porque contradizem o sentido das imagens, que denunciam a situação de extrema miséria das personagens retratadas.

2. No texto apresentado, o objetivo da contraposição entre o mundo imaginário e o real é denunciar o absurdo de uma situação social: a fome. Para muitos brasileiros, alimentos básicos — o arroz, o feijão, a farinha e a rapadura — só existem na imaginação, são parte dos contos da carochinha. Para interpretar o objetivo comunicativo do locutor, é importante considerar o gênero do texto: trata-se de uma charge, gênero que, combinando signos verbais (enunciados) e signos não verbais (desenhos caricaturais) tem como objetivo fazer crítica social.

Era uma vezEra uma vezEra uma vezEra uma vez............ a narrativa a narrativa a narrativa a narrativa ficcionalficcionalficcionalficcional canônica canônica canônica canônica

Os mitos, contos de fada e os contos maravilhosos são os gêneros narrativos ficcionais mais antigos de que se tem notícia. Sua origem se perde em um tempo remoto, anterior à História e à invenção da escrita. Transmitidas inicialmente de forma oral, de geração para geração, essas narrativas primordiais correram o mundo, ganharam versões variadas, de acordo com a cultura de cada povo. Nascidas tanto no Ocidente quanto no Oriente, disseminaram-se pelo mundo, transformaram-se, fundiram-se e sua universalidade se deve ao fato de tratarem da trajetória de cada ser humano em busca da realização.

Branca de Neve, A bela adormecida, Chapeuzinho Vermelho, O pequeno Polegar, A Bela e a Fera, João e Maria... Quem, na infância, não viajou por esses mundos habitados por reis, príncipes, bruxas, gigantes, gênios e objetos mágicos?

Muitas das histórias que povoaram nossa infância tratam da trajetória do herói ou da heroína em busca de autorrealização espiritual, trajetória cujo início é marcado, com frequência, por um encantamento ou uma metamorfose. Outras tantas histórias, que se desenvolvem em um cotidiano habitado por animais que falam, gênios e objetos mágicos, mostram os protagonistas em busca de bens materiais e poder. Nestas, em geral, é a necessidade de sobrevivência física ou a miséria o ponto de partida para a trajetória dos protagonistas.

Segundo os estudiosos, parte das narrativas que constituem a chamada literatura para crianças veio de poemas célticos que, na Idade Média, já transformados pela visão cristã, passaram a integrar o chamado ciclo novelesco arturiano, ligado à figura mítica do Rei Arthur. Outras — as que enfatizam as necessidades materiais do ser humano, as paixões do corpo (sexo, estômago e vontade de poder) — tiveram origem na tradição oriental. E o mais interessante é que também os povos indígenas de diferentes partes do mundo têm seus mitos e histórias exemplares, destinados a explicar a vida humana e os fenômenos da natureza e a transmitir valores e modelos de comportamento. Atividade 4

1. Entre as histórias que você ouviu na infância, qual mais o impressionava? Tente lembrar-se e refletir sobre o que mais lhe chamava a atenção.

2. Conte para um colega ou uma colega o que você pensou.

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Respostas

1. Resposta pessoal. Em geral, o que nos chama atenção nas histórias reflete nossos desejos e medos.

2. Resposta pessoal.

Atividade 5

Produzido por uma escritora brasileira da atualidade, o conto apresentado nesta atividade dialoga com os contos de fada tradicionais. Junto com um colega, leia o texto e responda às questões propostas.

A Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, um longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida,

começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta, imediata-mente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

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Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas

exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

COLASSANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. Ilustração Ana Peluso. Global: Rio de Janeiro, 2000.

1. Procure, em livros ou na Internet, informações sobre a autora do texto.

2. Com base no que descobriu em sua pesquisa, no tema do texto e nas pistas oferecidas pela fonte, responda:

a) Qual seria o perfil do leitor previsto para o texto?

b) Em que suporte o texto originalmente circulou?

c) Como você caracteriza a linguagem usada pela autora?

d) Que efeito a história produz em você como leitor ou leitora?

3. Os motivos apresentados nas alternativas, constantes nos contos de fada, nas histórias maravilhosas e nas antigas novelas de cavalaria, estão presentes no conto, EXCETO

a) o confronto entre a realização espiritual e a material.

b) a presença de uma mulher com poderes sobrenaturais.

c) o ideal de realização por meio do amor entre um homem e uma mulher.

d) a mudança do destino da protagonista pela interferência de um ente superior.

4. A protagonista do conto se assemelha a uma fada por seus poderes mágicos.

a) Em que consiste seu poder?

b) O que ele simboliza?

5. A estrutura do conto segue o modelo canônico do discurso narrativo ficcional: exposição ou apresentação,complicação, clímax, desenlace ou desfecho.

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Com base na explicação da coluna da esquerda, escreva, na coluna da direita, a frase inicial e a frase final de cada uma das etapas acima.

Superestrutura padrão A moça tecelã

Exposição ou apresentação — Etapa em que o narrador faz a ambientação da história em seu estado inicial de equilíbrio, localizando-a no tempo (quando?) e no espaço (onde?) e identificando personagens (quem?).

De

até

Complicação — Momento em que se rompe o equilíbrio inicial da ação, passando o protagonista a vivenciar um problema ou um conflito, que pode trazer-lhe conseqüências desastrosas ou positivas.

De

até

Clímax — Momento de maior tensão da narrativa, quando o antagonismo gerado pelo problema ou conflito chega a seu ponto máximo.

De

até

Desenlace ou desfecho — Resolução do conflito ou repouso da ação. Pode ser feliz, trágico, cômico, surpreendente, etc. Pode apresentar uma avaliação do narrador a respeito da história e/ou também uma moral, que orientará a interpretação da história narrada.

De

até

6. Em qual das alternativas um recurso usado pelo locutor-narrador para sugerir a passagem do tempo ou a sequência das ações NÃO foi exemplificado corretamente?

a) Referência à alternância de dias e noites — Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.

b) Uso de organizadores temporais — Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

c) Repetição de palavras e estruturas — Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

d) Uso frequente de coordenação aditiva com valor temporal — O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

7. Tanto na tradição oriental quanto na ocidental, a figura feminina costuma ser apresentada como anjo ou demônio, fada ou bruxa, pura ou impura, bondosa ou maligna.

No desfecho do conto, a figura feminina reafirma ou supera esse dualismo? Justifique sua resposta com elementos do texto.

8. No conto, a protagonista não tem nome próprio e, embora a sequenciação dos fatos seja marcada pela alternância de tempos verbais, a ação se localiza em um tempo indefinido. Essa estratégia discursiva da indefinição tem como principal efeito

a) identificar a protagonista por meio de um único traço marcante.

b) aproximar a narrativa ficcional do relato midiático de reconstituição.

c) generalizar a ação dramática e aproximá-la dos leitores de todos os tempos.

d) apresentar acontecimentos passados como se estivessem acontecendo no momento da leitura.

Page 9: EM Modulo 4 O Discurso Narrativo

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9. Pela seleção de palavras e estruturas, percebemos que a voz narrativa se posiciona positiva ou negativamente em relação às personagens e suas ações.

Que características das personagens podem ser inferidas das passagens apresentadas? Descreva-as na coluna da direita.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

A m

oça

Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

Características

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

O r

apaz

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

10. No discurso narrativo, os acontecimentos são apresentados segundo o ângulo de visão ou ponto de vista do locutor-narrador (personagem ou não) e do foco narrativo (interno e/ou externo) por ele utilizado.

a) O locutor-narrador do conto é personagem? Justifique sua resposta.

b) O locutor-narrador adere ao ponto de vista de alguma das personagens? Justifique sua resposta.

c) Que relação pode ser estabelecida entre o jeito de narrar e o efeito de sentido produzido pelo texto?

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11. Como costuma ocorrer no discurso narrativo ficcional, o tempo que estrutura o conto “A moça tecelã” é o pretérito.

Em todas as alternativas, a forma de pretérito em destaque e seu efeito de sentido foram indicados corretamente, EXCETO

a) Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Pretérito imperfeito do indicativo — descreve ações habituais em desenvolvimento no passado; faz com que o leitor se desloque para o passado e contemple o que então era habitual.

b) Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

Pretérito perfeito do indicativo — apresenta a ação como pontual e concluída em um momento do passado. ; destaca do pano de fundo da situação descrita um fato decisivo para o desenvolvimento das ações.

c) E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

Pretérito mais-que-perfeito composto do indicativo — descreve as ações passadas como simultâneas a outras, também passadas.

d) A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.

Pretérito imperfeito do indicativo — marca a ação que estava em desenvolvimento no passado, quando sobreveio outra.

12. Em todas as alternativas, os recursos lingüísticos usados nas passagens citadas foram adequadamente descritos, EXCETO

a) Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.

Metáfora que torna abstrata a experiência sensorial do anoitecer.

b) Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Adjetivo de valor sinestésico, que sugere sensações táteis e cromáticas.

c) Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.

Paralelismo sintático e rítmico, sugestivo da sucessividade e cadência das ações.

d) Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços.

Repetição enfática do articulador e (polissindetismo), sugerindo acúmulo de ações sucessivas durante um longo período de tempo.

e) Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.

Neologismo que surpreende tanto pela novidade quanto pela adequação ao contexto.

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13. O ato de fiar esteve sempre ligado ao feminino, às mulheres, que sabiam tecer o abrigo para os corpos e tinham o poder de tecer novas vidas. Curiosamente, a palavra texto tem a mesma origem que as palavras tecido, tecer.

A partir do conto, que aproximação se pode fazer entre o ato de tecer e o ato de escrever?

Respostas

1. Pesquisa pessoal.

2. a) A partir da pesquisa, você deve ter constatado que Marina Colasanti é uma escritora de ficção, que se dedica especialmente à produção de gêneros narrativos curtos, como crônicas e contos. Assumindo a posição de uma voz livre e reflexiva, a autora se dirige especialmente ao público feminino, tanto pela temática dominante em sua obra — amor, relacionamento íntimo, sexualidade, sentido da vida e da arte —, quanto pelo questionamento das desigualdades de gênero, ainda presentes em nossa sociedade. Uma característica marcante dos textos de Marina Colasanti é a recriação intertextual de motivos narrativos tradicionais, com inversão de desfechos e desconstrução de ideologias e valores. b) Pela leitura da fonte, é possível inferir que o texto circulou originalmente em um livro, possivelmente uma coletânea de contos; portanto, em um livro literário ou ficcional. Essas inferências podem ser feitas, considerando a referência a realidades imaginárias (reis e labirinto do vento). Observe que a expressão “labirinto do vento” não designa uma realidade reconhecível no mundo concreto e só faz sentido se interpretado como metáfora. Talvez metáfora da mutabilidade, fluidez e mistério dos caminhos da vida. c) A linguagem é repleta de metáforas e de repetições intencionais, buscando recriar a atmosfera de sonho e delicadeza das narrativas tradicionais. d) Resposta pessoal.

3. d. O destino da protagonista, diferentemente do que é típico das histórias tradicionais, resulta de uma decisão da própria personagem. Essa decisão reflete a fidelidade da moça a si mesma e a seu poder de escolher os próprios caminhos, de tecer o próprio destino.

4. a) Assim como as fadas, a protagonista pode transformar o mundo sem esforço. Jogando os pentes do tear, tecendo e destecendo com linhas de diferentes texturas e cores, ela modifica as condições da natureza, cria seres e faz com que eles desapareçam por um toque de mágica. b) O poder da moça tecelã simboliza o poder que todos os seres humanos têm de escolher caminhos e construir a própria vida.

5. Exposição ou apresentação — De “Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.” até “Tecer era tudo o que queria fazer.” Complicação — De “Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.” até “Tecer era tudo o que queria fazer.” Clímax — De “E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.” até “E pela primeira vez pensou em que como seria bom estar sozinha de novo.” Desfecho — De “Só esperou anoitecer.” até “E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.”.

6. c. A repetição de palavras e estruturas é um recurso usado ao longo de todo o texto, mas não está presente na passagem citada na alternativa. Nessa passagem, o locutor focaliza uma ação em fase final de desenvolvimento (estar acabando de entremear), quando sobreveio outra (bater à porta). O uso de verbos auxiliares indicadores de aspectos temporais (estar acabando de), o jogo entre o pretérito imperfeito (estava) e o pretérito perfeito (bateram) e o uso da estrutura temporal iniciada por quando são os recursos empregados para localizar no tempo as ações umas em relação às outras.

7. A protagonista supera o dualismo porque muda o rumo da própria vida, retomando o estado inicial de harmonia com o mundo e consigo mesma, e o faz sem sentimento de culpa, mágoa, ressentimento ou desejo de vingança. Diferentemente do que ocorre nas narrativas tradicionais, a personagem não é apresentada como boa ou má; o locutor-narrador não a submete a nenhum julgamento moral.

8. c. Nas narrativas ficcionais, a indefinição do tempo e do espaço produz o efeito de generalizar a situação dramática, levando o leitor a compreender que se trata de um tempo mítico, que pode se atualizar no tempo histórico de qualquer vida humana.

9. Características da moça: cuidadosa, integrada à natureza e ao entorno, fiel a seus próprios desejos, decidida. Características do rapaz: ambicioso, autoritário, egoísta, indiferente ao desejo do outro.

10. a) O locutor-narrador, isto é, a voz que conta a história, não é personagem: ele fala sobre as personagens, usando a terceira pessoa. Quando o narrador-personagem conta sua própria história, ele usa a primeira pessoa. b) O locutor-narrador adere ao ponto de vista da moça tecelã. É possível perceber essa

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identificação pelo fato de ele revelar o mundo interno dessa personagem, mas não faz o mesmo em relação ao rapaz. c) Ao narrar a partir da visão e dos valores da moça tecelã, o locutor-narrador leva o leitor a se identificar com ela, e não com o rapaz.

11. c. O pretérito-mais-que-perfeito do indicativo composto (tinha pensado, tinha descoberto), que equivale às formas simples (pensara, descobrira) indica que uma ação passada foi concluída antes de outra também passada (pensou, esqueceu).

12. a. A metáfora atrás das beiradas da noite tem o efeito de concretizar, tornar perceptível aos sentidos o amanhecer, o nascer do sol clareando o céu.

13. No conto de Marina Colasanti, observa-se a aproximação simbólica entre o ato de tecer e o ato de escrever: assim como a moça tece seu destino, a escritora cria sua história com a trama das palavras. Também ela tem poderes mágicos: dá existência a mundos imaginários por meio das palavras.

Para o seu conhecimento, a associação entre a figura feminina e o ato de fiar faz parte de uma longa tradição. Na Europa Medieval, era costume as mulheres contarem estórias enquanto fiavam durante os serões; até hoje, na zona rural, são as mulheres que dominam a arte de tecer. O conto dialoga com uma figura da mitologia grega, Aracne, tecelã habilidosa, que, tendo ousado competir na tecelagem de tapetes com a deusa Atena, a quem se atribuía a invenção do tear, foi por esta castigada. No mito, Atena faz com que Aracne se enforque, mas depois permite que ela volte a viver como aranha. Com a corda da morte transformada em fio salvador, Aracne evita a morte, mas é condenada a viver eternamente como uma aranha fiandeira. O conto se relaciona também com outras figuras da mitologia grega. Em grego, a palavra moira, que significa ‘parte’, ‘quinhão’, ‘destino’, desig-nava três divindades

irmãs, as Moiras, que decidiam sobre o destino humano; entre os romanos, essas mesmas divindades eram chamadas Parcas. A primeira Moira, Cloto, a fiandeira, segura e tece o fio da vida, determinando determina quanto tempo cada um viverá. A segunda, Láquesis, a medidora, puxa e enrola o fio da vida, sorteando, de olhos fechados, o quinhão de fortuna ou infortúnio que cabe a cada um. Ninguém, nem mesmo Zeus, pode mudar a própria sorte, porque a terceira Moira, Átropos, a que não pode ser evitada, corta o fio da vida de cada ser vivo. As Moiras eram representadas como três mulheres lúgubres trabalhando em um tear, a Roda da Fortuna. As voltas da roda representam a posição do fio da vida individual: o topo corresponde à parte mais privilegiada, e a base, à parte menos desejável, o que explicaria os períodos de boa ou má sorte de todos.

Subvertendo a estrutura canônicaSubvertendo a estrutura canônicaSubvertendo a estrutura canônicaSubvertendo a estrutura canônica

O discurso narrativo ficcional cria, por meio da palavra, mundos imaginários, onde agem personagens, situadas no tempo e no espaço — ainda que esse tempo e esse espaço tenham contornos indefinidos, como você pôde observar no conto de Marina Colasanti.

Um efeito do discurso narrativo é a criação de uma ação, história ou intriga que, mesmo quando mínima, constitui o conjunto de eventos narrados. São esses eventos que você reconstitui quando reconta ou resume um romance ou um conto.

SHARMAN-BURKE, Juliet; GREENE, Liz. O tarô mitológico: uma nova abordagem para a leitura do tarô. Ilustrações de Tricia Newell. São Paulo: Siciliano, 1988.

VERONESE. Aracne ou A dialética, detalhe.Óleo sobre tela, 1575-1577. Palácio do Doge, Veneza. Disponível em <artyzm.com/e_obraz. php?id=1039> Acesso em 25 maio 2009.

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O locutor-narrador é quem dá contornos a esse mundo criado, ao construir o enredo ou trama, isto é, a ordem de apresentação dos acontecimentos e as etapas que entrarão na composição do texto. Ele pode, tal como o fez o locutor-narrador do conto “A moça tecelã”, narrar os acontecimentos em ordem cronológica e explicitar todas as etapas da narrativa conhecida como canônica — equilíbrio, conflito, clímax do conflito e sua resolução, com o estabelecimento de novo equilíbrio. Ou pode iniciar o texto, focalizando o protagonista já vivendo um conflito e reconstituir os acontecimentos que motivaram o conflito por meio de retrospecções (flashbacks). Pode também terminar o texto no clímax, momento de maior tensão do conflito, quebrando expectativas anteriormente criadas ou deixando ao leitor a tarefa de imaginar possíveis desfechos. Enfim, as narrativas podem ter muitas outras estruturas, além da canônica.

Grande parte das narrativas ficcionais contemporâneas não termina com o retorno do protagonista a uma situação de equilíbrio. São também freqüentes as narrativas sumárias, denominadas minicontos: constituídas de poucas frases, eles deixam ao leitor a tarefa de completar a história, a partir de seus conhecimentos de mundo, dos gêneros textuais e de sua familiaridade com outros textos com os quais essas narrativas dialogam.

Atividade 6

O texto apresentado nesta atividade é uma crônica, narrativa curta, que focaliza situações do cotidiano, apresentadas em linguagem leve, próxima do registro oral informal. Leia-a e responda às questões propostas.

Caso de secretária

Foi trombudo para o escritório. Era dia de seu aniversário, e a esposa nem sequer o abraçara, não fizera a mínima alusão à data. As crianças também tinham se esquecido. Então era assim que a família o tratava? Ele que vivia para os seus, que se arrebentava de trabalhar, não merecer um beijo, uma palavra ao menos!

Mas, no escritório, havia flores à sua espera, sobre a mesa. Havia o sorriso e o abraço da secretária, que poderia muito bem ter ignorado o aniversário, e entretanto o lembrara. Era mais do que uma auxiliar, atenta, experimentada e eficiente, pé-de-boi da firma, como até então a considerara; era um coração amigo. Passada a surpresa, sentiu-se ainda mais borocochô: o carinho da secretária não curava, abria mais a ferida. Pois então uma estranha se lembrava dele com tais requintes, e a mulher e os filhos, nada? Baixou a cabeça, ficou rodando o lápis entre os dedos, sem gosto para viver.

Durante o dia, a secretária redobrou de atenções. Parecia querer consolá-lo, como se medisse toda sua solidão moral, o seu abandono. Sorria, tinha palavras amáveis, e o ditado da correspondência foi entremeado de suaves brincadeiras da parte dela.

— O senhor vai comemorar em casa ou numa boate?

Engasgado, confessou-lhe que em parte nenhuma. Fazer anos é uma droga, ninguém gostava dele neste mundo, iria rodar por aí à noite, solitário, como o lobo da estepe.

— Se o senhor quisesse, podíamos jantar juntos — insinuou ela, discretamente.

E não é que podiam mesmo? Em vez de passar uma noite besta, ressentida — o pessoal lá em casa pouco está me ligando —, teria horas amenas, em companhia de uma mulher que —reparava agora — era bem bonita.

Daí por diante o trabalho foi nervoso, nunca mais que se fechava o escritório.Teve vontade de mandar todos embora, para que todos comemorassem o seu aniversário, ele principalmente. Conteve-se, no prazer ansioso da espera.

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— Onde você prefere ir? — perguntou, ao saírem.

— Se não se importa, vamos passar primeiro em meu apartamento. Preciso trocar de roupa.

Ótimo, pensou ele; — faz-se a inspeção prévia do terreno, e, quem sabe?

— Mas antes quero um drinque, para animar — ela retificou.

Foram ao drinque, ele recuperou não só a alegria de viver e fazer anos, como começou a fazê-los pelo avesso, remoçando. Saiu bem mais jovem do bar, e pegou-lhe do braço.

No apartamento, ela apontou-lhe o banheiro e disse-lhe que o usasse sem cerimônia. Dentro de quinze minutos ele poderia entrar no quarto, não precisava bater — e o sorriso dela, dizendo isto, era uma promessa de felicidade.

Ele nem percebeu ao certo se estava se arrumando ou se desarrumando, de tal modo os quinze minutos se atropelaram, querendo virar quinze segundos, no calor escaldante do banheiro e da situação. Liberto da roupa incômoda, abriu a porta do quarto. Lá dentro, sua mulher e seus filhinhos, em coro com a secretária, esperavam-no cantando “Parabéns pra você.”

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. Cadeira de balanço, p.1079-1080.

1. Os tópicos a seguir sumarizam a evolução temática da narrativa. Complete o esquema a seguir com a expressão do texto que marca o início e o final de cada tópico.

a) Frustração do protagonista por julgar que sua mulher e seus filhos se esqueceram

de seu aniversário

De ............................................................ até ............................................................

b) Agravamento do estado de frustração e identificação da secretária como alguém que o valoriza e seria uma possível parceira sexual

De ............................................................ até ............................................................

c) Decisão de compensar a frustração tendo um encontro amoroso com a secretária

De ............................................................ até ............................................................

d) Início do programa com a secretária, euforia e expectativa de ter com ela uma relação sexual.

De ............................................................ até ............................................................

e) Perplexidade do protagonista, que se vê em situação vexatória, diante da família que lhe preparara uma festa-surpresa

De ............................................................ até ............................................................

2. Qual das alternativas melhor resume a intriga do texto?

a) Um homem casado decide comemorar seu aniversário com a secretária, mas é surpreendido, em trajes sumários, no apartamento dela, pela família que lhe preparara uma festa-surpresa.

b) Apaixonada pelo chefe, a secretária de um executivo o seduz com promessas de um encontro amoroso para despertar o ciúme da esposa e provocar o fim de seu casamento.

c) Cansado da rotina do casamento, um homem, para comemorar seu aniversário, decide ter um encontro amoroso com a secretária, que o faz sentir-se mais jovem e livre das coerções familiares.

d) Frustrado com a indiferença da esposa, um homem se deixa seduzir pela secretária que lhe prepara uma armadilha para provar que ele não é um marido fiel.

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3. Todas as alternativas apresentam características do enredo da crônica “Caso de

secretária”, EXCETO

a) Punição do protagonista por ter transgredido uma regra moral ou social.

b) Início da narração com o protagonista em estado de satisfação e equilíbrio.

c) Final em aberto no momento de tensão e com sugestão de novas complicações.

d) Quebra das expectativas do protagonista e do leitor por um fato inesperado. 4. A partir das informações explícitas no texto, podem ser feitas as inferências

apresentadas em todas as alternativas, EXCETO

a) O machismo do protagonista teria motivado a interpretação equivocada das atitudes da secretária.

b) A preparação da festa-surpresa para o protagonista teria sido feita pela esposa em combinação prévia com a secretária.

c) O leitor é levado a interpretar a situação do mesmo modo que o protagonista porque o narrador adota a perspectiva dessa personagem ao contar a história.

d) A ambientação da história é típica da sociedade urbana moderna, com seus cenários, atividades e tipos característicos.

5. O final da narrativa desperta no leitor não só a surpresa e o riso, mas também o medo

de ser flagrado transgredindo normas sociais.

Você concorda com a afirmativa acima? Justifique sua resposta.

6. As passagens de todas as alternativas comprovam a utilização de vocabulário típico da linguagem oral informal, EXCETO

a) Foi trombudo para o escritório.

b) Ele que vivia para os seus, que se arrebentava da trabalhar...

c) Passada a surpresa, sentiu-se ainda mais borocochô...

d) Engasgado, confessou-lhe lhe que em parte alguma.

e) Fazer anos é uma droga, ninguém gostava dele neste mundo...

Respostas

1. a) De “Foi trombudo para o escritório” até “não merecer um beijo, uma palavra ao menos!”. b) De “Mas, no escritório, havia flores à sua espera, sobre a mesa” até “ insinuou ela, discretamente”. c) De “E não é que podiam mesmo?” até “Conteve-se, no prazer ansioso da espera”. d) De “— Onde você prefere ir? — perguntou, ao saírem” até “e o sorriso dela, dizendo isto, era uma promessa de felicidade”.

2. a

3. b

4. a

5. Espera-se uma resposta afirmativa para a pergunta. O final tragicômico é não só surpreendente e risível, mas também desperta no leitor o medo de ser flagrado transgredindo normas sociais. Embora o locutor-narrador não julgue moralmente o protagonista, o fato de o desenlace colocá-lo em uma situação ridícula tem o efeito de sanção: a personagem é punida por ter decidido transgredir as normas sociais, tendo um caso com a secretária.

6. c. São palavras e expressões típicas do registro oral informal: trombudo, arrebentar-se de trabalhar, borocochô, é uma droga.

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Atividade 7

Os dois minicontos transcritos a seguir fazem parte de uma coletânea encomendada a cem escritores brasileiros do século XX a partir do seguinte desafio: produzir contos de, no máximo, cinquenta letras, sem contar o título.

Leia-os atentamente e responda às questões propostas.

FIM DE PAPO Na milésima segunda noite, Sherazade degolou o sultão.

SECCHIN, Carlos. Fim de papo. In: FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 8. PACIÊNCIA Após 3 atropelados surge 1 passarela.

Jó ainda tem 5 filhos.

MUCINHO, José. Paciência. In: FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 46.

1. Os dois textos dialogam ou intertextualizam com narrativas universalmente conhecidas: Sherazade é a protagonista de uma coletânea de histórias originárias de vários pontos do Oriente; Jó é personagem de uma narrativa bíblica.

Usando seus conhecimentos, entrevistando pessoas, pesquisando na Internet ou em livros, descubra a história e as características das personagens citadas nos contos.

2. A partir do que descobriu sobre Sherazade, releia o “Fim de papo” e responda:

a) O miniconto subverte o desfecho da narrativa tradicional? Explique.

b) Por que o narrador usou a expressão temporal “na milésima segunda noite”?

c) O título do conto é típico de que domínio discursivo?

d) Qual é o efeito de sentido do título escolhido? 3. A partir de seus conhecimentos de mundo e do que descobriu sobre Jó, responda:

a) Para interpretar o texto “Paciência”, que conhecimentos o leitor deve ter sobre o lugar em que se desenrolam os acontecimentos e a situação social da personagem?

b) Que semelhanças e diferenças podem ser estabelecidas entre a personagem bíblica e a personagem do miniconto?

c) Qual é o principal objetivo comunicativo do miniconto?

Respostas

1. Pesquisa pessoal.

2. a) Sim, pois inverte as relações de poder entre o homem e a mulher e se afasta do final feliz da história original, que termina com o casamento entre o sultão e Sherazade. � Ao pesquisar sobre Sherazade, você deve ter descoberto que ela é a protagonista da obra As mil e uma noites. Estruturada por episódios encadadeados, cada um dos quais termina em suspense, a narrativa aguça a curiosidade do leitor, seduzindo-o para conhecer o desfecho das sucessivas peripécias. As histórias narradas por Sherazade

Div

ulga

ção

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foram um artifício para que o rei Shariar não a mandasse degolar, como fazia com todas as mulheres que desposava por uma única noite, em vingança por ter sido traído por sua primeira esposa. Mantendo Shariar preso ao suspense da narrativa, Shrazade consegue sobreviver por mil e uma noites, quando então apresenta ao rei os filhos que gerara e ele se dá conta de que se apaixonara pela jovem e que com ela queria viver para sempre. Fazem parte da coletânea histórias como “Ali Babá e os quarenta ladrões”, “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, “Simbad, o marujo”, hoje conhecidas em todo o mundo. b) O narrador usou a expressão “milésima segunda noite” porque, se, na história original o perdão de Sherazade e seu casamento com Shariar ocorreu na milésima primeira noite, a vingança da jovem contra o sutão teria de constituir o episódio subsequente. c) O título do conto é típico do domínio discursivo da conversação oral informal. “Fim de papo” é uma expressão de gíria usada quando, em uma conversa, um dos interlocutores quer encerrar qualquer qualquer possibilidade de diálogo ou negociação, para evitar polêmica ou impor sua vontade. d) A expressão usada no título condiz com o novo desfecho e dá ao texto o tom de irreverência e de realismo cruel, muito comum nas narrativas contemporâneas.

3. a) O leitor tem de conhecer a realidade dos grandes centros urbanos, sobretudo das regiões periféricas cortadas por grandes vias expressas ou rodovias, cujas margens costumam ser habitadas por populações pobres, constituídas geralmente por famílias numerosas. Ele deve saber ainda que, com frequência, o poder público deixa de construir nesses locais passarelas para pedestres, o que coloca em risco a vida dos moradores. b) A semelhança é que Jó, a personagem bíblica, assim como a personagem do conto, perdeu os filhos e não se revoltou. A diferença diz respeito ao valor associado à atitude de paciência. Enquanto a narrativa bíblica é uma parábola que visa a convencer os seres humanos da importância de aceitar a vontade de Deus e não perder a fé, o miniconto é uma denúncia da situação de conformismo e submissão das populações carentes em relação aos poderes constituídos. � Para seu conhecimento, no episódio bíblico, Jó era um homem próspero, sincero, reto e temente a Deus. Tinha muitos bens, servos e uma família numerosa, constituída por sete filhos e três filhas. Um dia, Satanás desafiou Deus, dizendo-lhe que Jó só não blasfemava porque era rico. Pediu-lhe, então, permissão para submeter Jó a todo tipo de provação, e Deus lhe concedeu, desde que não tocasse no corpo de Jô. Então, Jô perdeu todos os bens e servos, morreram-lhe os filhos em um vendaval. Restava-lhe apenas a mulher que, revoltada, incitava Jó a amaldiçoar seu Deus. Mas Jó aceitou a vontade de Deus e não o amaldiçoou. Irado, Satanás conseguiu que Deus lhe desse permissão para tocar em Jó, alegando que, se ele fosse submetido a sofrimentos físicos, abandonaria sua fé. E Jó ficou leproso, com o corpo coberto de feridas, e sua mulher, enlouquecida, abandonou-o. Mesmo assim, Jô permaneceu firme em sua fé, afirmando que era direito de Deus tanto lhe conceder quanto lhe retirar prosperidade, felicidade e saúde. Continuava temente a Deus e confiante. Então, Deus restituiu o dobro de tudo que ele possuíra e lhe deu também outras sete filhas e três filhos. E Jó viveu ainda 140 anos e viu os filhos dos seus filhos até a quarta geração. (Disponível em <http://www.bibliacatolica.com.br/historia_biblia/13.php>. Acesso em 16 maio 2009. (Adaptação) c) O principal objetivo comunicativo do conto é denunciar, por um lado, a situação de conformismo e submissão da população carente e, por outro, o descaso do poder público para com a vida dessa população.

As muitas vozes do discurso narrativoAs muitas vozes do discurso narrativoAs muitas vozes do discurso narrativoAs muitas vozes do discurso narrativo

Como um locutor gerencia as muitas vozes que compõem a história que ele conta? Em outras palavras: como passa a palavra a outrem ou introduz o discurso de outrem no seu próprio discurso?

Há diferentes estratégias. Neste módulo, vamos focalizar algumas delas.

ANNE SMITH. Arabian nigths - Sherazade, água-forte, 22,5 X 30 cm. Impressions Gallery, 2004. .Disponível em www.impressionsonpaper.com.au/.../Sherazade.htm. Acesso em 25 maio 2009.

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Discurso direto

Decorre do fato de o narrador ceder a palavra a outro(s) locutor(es), em geral uma personagem, desaparecendo momentaneamente de cena. Ocorrem, então, dentro da narração, trechos de conversação, em que as personagens falam ou dialogam, expressando seus pensamentos e emoções em sua própria linguagem. É costume marcar o discurso direto com verbos ou expressões dicendi (dizer, perguntar, responder, interpelar, pensar, quis saber, fez-lhes uma pergunta, etc.) e com sinais de pontuação que assinalem a mudança de interlocução: dois pontos, travessão, aspas. O tempo verbal básico do discurso direto é o presente do indicativo (tempo do enunciado, da história, do locutor-personagem), e não o tempo do verbo dicendi (tempo em que o enunciado é tomado em relação à enunciação, ao narrador): é em relação a esse presente que os acontecimentos são focalizados pela personagem locutora.

Discurso indireto

O narrador traduz com suas próprias palavras o sentido da fala das personagens, usando verbo dicendi acompanhado de oração subordinada substantiva objetiva direta (verbo dicendi + que/se). O tempo e a pessoa do discurso indireto são os do verbo dicendi; a ação, história ou intriga surge distanciada da enunciação do narrador.

Discurso indireto livre

A perspectiva do narrador se mistura à da personagem: ao mesmo tempo em que o narrador se faz presente através do tempo verbal e/ou da pessoa gramatical, deixa que a personagem se manifeste com sua emoção e linguagem características. É próprio para a captação dos fluxos de consciência (fala interna, pensamentos e emoções não revelados a outrem) das personagens.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. COLASSANTI, Marina. Doze reis e a moça no labirinto do vento. Ilustração Ana Peluso. Global: Rio de Janeiro, 2000. A moça tecelã. (Fragmento)

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— Se o senhor quisesse, podíamos jantar juntos — insinuou ela, discretamente.

E não é que podiam mesmo? Em vez de passar uma noite besta, ressentida — o pessoal lá em casa pouco está me ligando —, teria horas amenas, em companhia de uma mulher que — reparava agora — era bem bonita. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. Caso de secretária, p.1079-1080. (Fragmento)

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Atividade 8

O texto apresentado a seguir é quase inteiramente dialogado. Leia-o e responda às questões de 1 a 4.

Pai não entende nada

Um biquíni novo?

É, pai.

Você comprou um no ano passado!

Não serve mais, pai. Eu cresci.

Como não serve? No ano passado você tinha 14 anos, este ano tem 15. Não cresceu tanto assim.

Não serve, pai.

Está bem, está bem. Toma o dinheiro. Compra um biquíni maior.

Maior não, pai. Menor.

Aquele pai, também, não entendia nada. VERISSIMO, Comédias da vida privada: 101 crônicas escolhidas. Porto Alegre: L&PM, 1966. p. 255.

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1. Todas as afirmativas a respeito do narrador do texto são aceitáveis, EXCETO

a) Faz-se presente no texto apenas no título e na frase final.

b) Endossa o posicionamento enunciativo da adolescente.

c) Usa o discurso indireto para traduzir o pensamento de uma das personagens.

d) Adota um tom de crítica bem humorada frente ao desencontro das personagens.

2. Percebe-se que o texto se inicia já flagrando uma cena familiar em desenvolvimento. Que frase poderia ser colocada antes da primeira para marcar o início dessa cena?

3. Reescreva a última frase do texto tal como você acha que ela poderia ser dita ao pai pela filha.

4. a) Integre as falas das personagens ao discurso do narrador, transformando o discurso direto em indireto.

b) Que modificações você teve de fazer nos tempos e modos verbais, nas pessoas gramaticais e nas expressões temporais?

c) Que efeito de sentido a substituição do discurso direto pelo indireto provocou no texto?

Respostas

1. c. Na última frase do texto, o narrador traduz o pensamento da garota usando, para isso, o discurso indireto livre.

2. — Pai, me dá dinheiro pra comprar um biquíni novo?

3. — Ih, pai, você também não entende nada!

4. a) Surpreso com o fato de a filha estar querendo comprar um biquíni, o pai questionou por que ela estaria precisando de um. Ela insistiu no pedido e o pai retrucou, dizendo-lhe que ela já tinha comprado um no ano anterior. A filha lhe disse que aquele biquíni não servia mais, pois ela tinha crescido. O pai se espantou com o fato, argumentando que ela não crescera tanto assim. A filha insistiu que o biquíni não servia mais, e o pai então concordou em lhe dar o dinheiro, sugerindo que ela comprasse um biquíni maior. A filha, para surpresa do pai, corrigiu-o dizendo que iria comprar não um biquíni maior, mas um biquíni menor. Endossando o posicionamento enunciativo da garota, o narrador afirma que o pai não entendia mesmo nada. b) Foi preciso, primeiramente, interpretar as atitudes das personagens e traduzi-las por verbos — dicendi ou não — no pretérito perfeito (questionou, insistiu, retrucou, disse, concordou, etc.). Além disso, como a cena foi levada do presente (diálogo) para o passado (discurso narrativo e discurso indireto), foi preciso observar uma nova concordância entre os tempos verbais. Assim, o presente indicativo de processo atual (não serve, não serve mais) foi substituído pelo pretérito imperfeito do indicativo (não servia, não servia mais); o pretérito perfeito (comprou, cresci, não cresceu) pelo mais- que-perfeito (tinha comprado, tinha crescido, não crescera); e as ações de realização futura, expressas no imperativo (compra) foram retomadas ou no pretérito imperfeito do subjuntivo (comprasse) ou no futuro do pretérito (iria comprar). Quanto às pessoas gramaticais, vale lembrar que, no diálogo, as personagens funcionam como interlocutoras uma da outra: revezam-se no papel de falante e ouvinte e, por isso, usam formas da primeira e de segunda pessoas (eu cresci, você comprou, você tinha, não cresceu, toma, compra). Porém, da perspectiva do narrador onisciente, ambas se tornam pessoas de quem ele fala ao leitor, o que justifica a referência a elas por formas de terceira pessoa (ela insistiu, o pai retrucou, ela lhe disse, etc.). Já a expressão temporal no ano passado, que se referia a um momento focalizado da ótica da personagem pai, foi substituída por no ano anterior, com o momento focalizado agora do ponto de vista do narrador. c) O uso do discurso direto faz parecer que as personagens estão em cena e que a ação, como num espetáculo teatral, está acontecendo. O narrador parece não fazer mais a intermediação entre o mundo das personagens e o mundo do leitor, diminuindo-se, com isso, a distância entre eles. O contrário se dá quando se usa o discurso indireto: cresce a figura do narrador que, colocado entre as personagens e o interlocutor-leitor, não só marca a distância maior entre eles quanto submete muito mais nitidamente o olhar do leitor a seu ponto de vista.

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Uma questão de ponto de vistaUma questão de ponto de vistaUma questão de ponto de vistaUma questão de ponto de vista

Todo discurso narrativo tem um locutor-narrador que, menos ou mais presente, funciona como intermediário entre o mundo narrado, onde se situa a ação e seus atores (personagens), e o mundo da narração, onde se dá a interação do narrador com o narratário ou destinatário (leitor ou ouvinte) do discurso. Para fazer o destinatário “ver” o mundo narrado, o locutor-narrador cria um ângulo de visão ou ponto de vista, mais ou menos como faz um fotógrafo ao capturar uma imagem. Ou como um cineasta ao apresentar-nos uma sucessão de imagens. O ponto de vista organiza tanto a imagem quanto o discurso e, consequentemente, orienta a compreensão do destinatário.

SEBASTIÃO SALGADO. A mina de Serra Pelada, 1986. Disponível em <http://www.masters-of-photography.com/S/salgado/salgado4. html> Acesso em 17 maio 2009.

SEBASTIÃO SALGADO. Subindo a mina de Serra Pelada, 1986. Disponível em http://www.masters-of-photography.com/S/salgado/salgado4.html Acesso em 17 maio 2009.

Focalizado do alto e de longe, o garimpo de Serra Pelada (à esquerda), mais parece um formigueiro humano. Muito aberto, o ângulo de visão não permite identificar as personagens nem suas ações. Mais que contar um fato, ele descreve um cenário — uma grande cratera onde, em condições extremamente adversas, milhares de homens se amontoam em busca de ouro.

Uma outra tomada do garimpo de Serra Pelada (acima) focaliza, de perto, as pernas de trabalhadores que sobem as escadas da mina. O ângulo de baixo para cima capta melhor a musculatura das pernas em movimento, exaltando sua força, beleza e virilidade. Não fosse o corte proposital das cabeças, estratégia para manter o anonimato dos garimpeiros e, assim, generalizar as impressões, seria possível identificá-los.

O ponto de vista é inerente a todo e qualquer discurso: surge simultaneamente à sua elaboração, organizando-o e nele deixando pistas dessa organização. Para reconhecer o ponto de vista que organiza um discurso narrativo, prestamos atenção ao modo de narrar do locutor, procurando saber o que ele faz exatamente nessa função:

• Acumula a função de ator, participando da ação como personagem?

- Em caso afirmativo, é protagonista da ação, ou é um ator que testemunha acontecimentos ocorridos com os protagonistas da ação?

- Em caso negativo, revela ao destinatário como tomou conhecimento da ação (por meio de terceiros, ou da leitura de um documento, por exemplo), ou parece ser o criador ou “dono da história”?

• Ao focalizar os atores da ação, mostra ao destinatário do texto apenas o que eles fazem e expressam, ou também os pensamentos íntimos, as percepções, as emoções e os sentimentos não revelados verbalmente por eles? Chega a dar a palavra a esses atores

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e/ou expressa ele mesmo o que terão dito ou pensado? O que parece predominar no texto: a fala do locutor-narrador ou a fala dos locutores-personagens?

• Ao focalizar cenas e seres da ação, a que distância coloca o destinatário em relação a elas: mais de longe, como se as visse num plano geral; mais de perto, como num primeiro plano; de pertinho, como num close? Faz variar a distância e/ou o ângulo de visão a cada tomada? Que efeitos de sentido obtém do uso desses ângulos?

• Além de narrar, tece comentários ou juízos de valor sobre a ação e/ou seus atores?

• Representa o narratário ou destinatário do texto dentro do texto? Conversa diretamente com ele para comentar a ação, o modo como narra ou o modo como supõe que esse destinatário lida com o texto?

A título de exemplo, vamos analisar o ponto de vista da narração em três fragmentos de texto.

Exemplo 1

...Rubião estava admirado de si mesmo, e arrependia-se; mas o arrependimento era obra da consciência, ao passo que a imaginação não soltava por nenhum preço a figura da bela Sofia... Uma, duas, três horas... Sofia ao longe, os latidos do cão embaixo... O sono esquivo... Onde iam já as três horas? Três e meia... Enfim, depois de muito cuidar, apareceu-lhe o sono [...]

Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou entre Sofia e o Palha, depois que todos se foram embora. Pode ser até que acheis melhor sabor que no caso do enforcado.

Tende paciência; é vir agora outra vez a Santa Teresa. A sala está ainda alumiada, mas por um bico de gás; apagaram-se os outros, e ia apagar-se o último, quando o Palha mandou que o criado esperasse um pouco lá dentro. A mulher ia a sair, o marido deteve-a, ela estremeceu.

MACHADO DE ASSIS. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 681.

Onisciente, ou seja, com total conhecimento da intriga ou ação, o narrador capta tanto a vida do lado de fora das personagens, por meio de um foco narrativo externo, quanto a vida interior da personagem Rubião, por meio de um foco narrativo interno (discurso indireto livre). Ciente até da presença de um interlocutor, que ele imagina ser uma leitora, interrompe a narração para falar-lhe (diálogo direto com a leitora), momento em que representa a ela ou a ambos (ela e ele) no discurso por formas de segunda e de primeira pessoas, respectivamente (senhora minha, acheis, tende; não sabemos). Por se intrometer no discurso para fazer comentários sobre a ação e seus atores, sobre a condução da história, ou para dialogar com o leitor, é chamado narrador intruso. Temos aqui, então, um exemplo de narrador onisciente intruso.

Exemplo 2

Fabiano

Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual a de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Record, 1980. p.23.

Mostrando onisciência seletiva, o narrador narra aderido ao ponto de vista da personagem Fabiano, com uso predominante do foco narrativo interno para a captar o fluxo de seus pensamentos. Assim, quem narra é o locutor-narrador onisciente, mas o que diz, em discurso indireto livre, é o que a personagem pensa ou sente. Consequentemente, o que

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chega ao leitor do texto é a visão de mundo daquela personagem. Não se nota a presença de diálogo direto com o leitor, assim como também não se notam formas de primeira e/ou de segunda pessoa para representar o narrador e/ou o interlocutor-leitor.

Exemplo 3

Fui o último a sair. Começava a escurecer. Na sombra da tarde, o campo ficava ainda mais feio. Eu estava sozinho, todos tinham ido embora. Fui andando, passei por um monte de lixo, tive vontade de jogar ali a maleta com o uniforme. Mas não joguei. Apertei a maleta de encontro ao peito, senti as traves da chuteira e fui caminhando assim, lentamente, sem querer voltar, sem saber para onde ir. FONSECA, Rubem. Abril, no Rio, em 1970. In: COSTA, Flávio Moreira da (Org.). 22 contistas em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p.55. . (Fragmento)

Protagonista da ação, o narrador se representa no texto por formas da primeira pessoa do singular (fui, eu, estava, fui andando, passei, tive, não joguei, apertei, senti, fui caminhando), enquanto expressa toda sua frustração com o resultado de uma partida de futebol. E o leitor pode ver e sentir apenas o que vê e sente esse narrador-personagem. Atividade 9

1. Toda imagem inclui seu observador, isto é, carrega pistas do ponto de vista de quem a produziu. Observando uma imagem, é possível apreender o ponto de vista de seu produtor.

Comprove essa afirmativa, observando a foto reproduzida ao lado.

a) Para obter a foto, em que ponto do espaço se colocou o fotógrafo ou sua câmara?

b) Na sua opinião, o que a foto registraria se o observador-fotógrafo estivesse (1) atrás do gol, ao fundo; (2) no lugar do jogador, nas mesmas condições em que ele se encontra; (3) na cabine de uma emissora de rádio ou TV, dentro do estádio, vendo o jogo de cima? Se preferir, desenhe o que essas fotos imaginárias estariam registrando.

c) Confronte suas respostas sobre as fotos imaginárias com as respostas de um colega. Provavelmente houve semelhanças, mas também diferenças. A que se podem atribuir as semelhanças? E as diferenças?

2. Atualmente, ao transmitir uma partida de futebol, as emissoras de TV usam vários recursos tecnológicos de modo a captar a partida de vários ângulos, especialmente os lances que poderiam gerar dúvidas, como chutes a gol em situação de possível impedimento. O que essa multiplicidade de pontos de vista revela?

Respostas

1. a) O ponto de vista registrado pela foto é o de quem está de frente para o jogador, com a câmera na mesma altura dele. Se o fotógrafo não estava dentro do gramado, frente a frente com o jogador, deve ter usado um zoom. b) 1. A foto de quem estivesse atrás do gol, ao fundo e, portanto, bem distante do jogador, iria captá-lo por trás e talvez não captasse a bola, escondida pelo corpo do atleta. Comporia também a foto, em segundo plano, parte da platéia do estádio, ou arquibancadas vazias. 2. Uma foto que fosse tirada do lugar exato em que se encontra o jogador só registraria a bola: como num plano

Foto de Roger–Viollet/Keystone. In: BRAVO. São Paulo, D’Ávila Comunicações, ano 1, n. 7, p.21, abr. 1998.

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detalhe ou close, a esfera ocuparia todo o campo de visão da câmera. 3. Já a foto que fosse tirada de uma cabine de rádio ou TV, pegaria o jogo de cima para baixo: se o ângulo fosse aberto, a foto registraria uma visão panorâmica do jogo e talvez de grande parte do estádio; se mais fechado, capturaria um lance especialmente mirado pelo fotógrafo. c) Diferenças e semelhanças entre as respostas estarão relacionadas à vivência particular que você e seus colegas tiverem de estádios de futebol (quem já esteve em um provavelmente terá mais facilidade de colocar-se imaginariamente nos locais indicados) e aos ângulos de visão sugeridos pelas perguntas.

2. Essa multiplicidade de pontos de vista, além de atestar o alto grau de desenvolvimento tecnológico das atuais transmissões de TV, mostra a tentativa de captar cada partida na sua totalidade. Trata-se de um ideal já antes tentado na pintura, em especial pelo Cubismo, no início do século XX. Vale frisar, porém, que a totalidade nunca é alcançada na íntegra, nem as transmissões se tornaram, por isso, menos ou mais reais. De fato, elas continuam sendo apenas um registro — um belo registro, por sinal — da realidade. O filme ou transmissão de uma partida de futebol não é a partida de futebol, certo?

Atividade 10 Instrução Leia o texto a seguir e responda às questões 1 e 2.

Ah, Lucrécia. Foi uma revolução em nossa cidade. Escandalizou no princípio, foi alvo de chacotas depois, mas no final todos passaram a gostar muito dela. Convenhamos, uma mulher que fumava, dirigia, e jogava futebol tinha de merecer a nossa admiração; morávamos em uma cidade tão insignificante onde não acontecia nada, onde as mulheres nunca usavam calças compridas e nem fumavam em público, onde tudo era e tinha de ser como no tempo dos nossos avós, isso é isso, aquilo é aquilo, isso não se faz, isso não se diz etc. Vocês conhecem esse tipo de vida ou já ouviram falar. Isso se chama preconceito, tédio, jaula. E Lucrécia veio como o verão. Era carioca, claro, só podia ser. E livre, como as ondas de calor do verão. E nós, pobres de nós moças de Rinópolis, interior bravo de Minas, nunca, nunca, jamais tínhamos visto nada igual a Lucrécia.

Quando chegou, ficou hospedada no único hotel da cidade. Mulher nenhuma nunca se hospedara sozinha no hotel da nossa cidade. Somente, e Deus me perdoe, prostituta. Por isso os rapazes, no princípio, pensaram que ela fosse uma. Um deles bateu na porta do quarto dela. Quando explicou a que fora, levou uma gargalhada na cara. Ficou assanhadinho, pensou que fosse uma bem alegre. Mas aí levou com a porta na cara. Só então o gerente lhe explicou, embaixo, que era moça do Rio, secretária em férias. Estava lá na ficha. Ele ainda assim não acreditou, esperou Lucrécia na porta do hotel, foi atrás. Então, levou uma bolacha. O gerente contou tudo pra gente, à noite, no jardim público. E dava gargalhadas. O rapaz embolachado era o Zico, filho do farmacêutico. Bem feito, desde pequeno era muito entrão.

[...] Minha mãe quando soube que eu fazia parte do grupo das novas amizades de Lucrécia me disse, ressentida — com efeito, Laura, uma professora. Devia se dar o respeito. Mas mãe, eu argumentei, ela é uma moça como outra qualquer...

GOMES, Duílio. Lucrécia. In: COSTA, Flávio Moreira da (Org.). 22 contistas em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p.151-152. (Fragmento)

1. A respeito do narrador e seu ponto de vista, todas as alternativas são corretas, EXCETO.

a) Conta a história da protagonista Lucrécia, representando-a como alguém de quem ele fala.

b) Atua como personagem-testemunha, alguém que presenciou ou vivenciou os fatos narrados.

c) Evita manifestar opiniões subjetivas sobre os acontecimentos e os atores da história.

d) Dialoga diretamente com o narratário-leitor, representando-o no discurso.

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2. Nas passagens a seguir, destacamos formas de primeira pessoa do singular, primeira pessoa do plural e segunda pessoa do singular. Identifique a quem essas formas representam dentro do texto, usando a numeração abaixo:

(1) Representação exclusiva do narrador-personagem por ele mesmo.

(2) Representação exclusiva do narrador-personagem do ponto de vista de outra personagem.

(3) Representação do narrador como morador da cidade onde ocorreu a ação.

(4) Representação do narrador como representante feminina do local onde ocorreu a ação.

(5) Representação conjunta do narrador e suas jovens companheiras de turma.

(6) Representação conjunta do locutor-narrador e do intelocutor-narratário.

a) Ah, Lucrécia. Foi uma revolução em nossa cidade.( )

b) Convenhamos, uma mulher que fumava, dirigia, e jogava futebol tinha de merecer a nossa admiração... ( ) ( )

c) E nós, pobres de nós, moças de Rinópolis, interior bravo de Minas, nunca, nunca, jamais tínhamos visto nada igual a Lucrécia. ( ) ( ) ( )

d) O gerente contou tudo pra gente, à noite, no jardim público. ( )

e) Minha mãe quando soube que eu fazia parte do grupo das novas amizades de Lucrécia me disse, ressentida — com efeito, Laura, uma professora. Devia se dar ao respeito. ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )

3. Leia o comentário a seguir e responda à questão proposta.

Personagem secundária que se representa no texto por formas da primeira pessoa do singular, o narrador é testemunha dos acontecimentos que ele narra a uma outra personagem, a qual, por sua vez, é representada no texto por formas da segunda pessoa do singular. A narração configura-se, assim, no diálogo entre duas personagens e coloca o leitor no papel de quem escuta conversa alheia.

Esse comentário descreve adequadamente o ponto de vista do texto apresentado em qual das alternativas?

a) Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo. RAMOS, Graciliano. Um cinturão. In: FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê, 2004. p.146. (Fragmento)

b) Cinto e sandália combinando, foi pro baile da dez às quatro. Mulher, não pagou ingresso. As paredes de fora sem reboco. As de dentro, uma luz negra maquiava. Ficou sozinha por duas seleções de tecno. Garrafas voaram. Tumulto murchou sozinho. No banheiro fez xixi de pé. Fora da privada. Molhou três dedos menores de cada lado. Não se enxugou. Tomou cerveja mexicana com limão, de canudinho, que subiu rápido. Dançou coladíssima as lentas. Então se arranjou. Deu telefone e endereço. Aceitou carona de estranho e morreu num acidente.

BONASSI, Fernando. 100 coisas. São Paulo: Angra, 1998. Jussara foi dançar, p.50.

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c) — Ouça o resto. De noite, seriam oito horas, o Andrade veio à minha casa, e esperou por mim. Já me tinha procurado três vezes. Fiquei estupefato; mas como duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova até a evidência? Não lhe conto o que ouvi, os planos de vingança, as exclamações, os nomes que lhe chamou, todo o estilo e todo o repertório dessas crises.

MACHADO DE ASSIS. Histórias sem data. São Paulo: Nova Aguilar, 1986. Singular Ocorrência, p. 394. (Fragmento)

d) Estão apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois atores avançam pelo palco, saindo das coxias à esquerda para o centro da cena, um homem entra na sala escura, e com ele uma nesga da luz das cinco pela fresta da porta que entreabriu ao fundo e que separa a platéia do hall e da rua, onde o dia segue seu curso com um burburinho de buzinas, motores e sirenes. O diretor, na quinta fila, procura com a mão, tateando, a coxa de sua assistente, para lhe dizer alguma coisa ao ouvido, e o iluminador interrompe a piada que ia sussurrando ao técnico a seu lado, no mezanino, já que retomam a cena. CARVALHO, Bernardo. Estão apenas ensaiando. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.592. (Fragmento)

4. Agora, escreva você pequenos comentários a respeito do ponto de vista dos textos da questão anterior, com exceção, é claro, daquele que já foi comentado por nós.

5. Leia o comentário a seguir e responda à questão proposta.

Uma característica de muitos poemas, contos e minicontos narrativos contemporâneos é a eliminação dos estados mentais das personagens e o quase total desaparecimento do locutor-narrador, cuja presença costuma ser notada apenas no título e/ou em uma ou outra pequena passagem do texto. Sem a intermediação do narrador, o narratário-leitor fica a uma distância mínima da história, tecida quase que exclusivamente em discurso direto, como nos textos dramáticos (teatrais), razão por que se conhece esse modo de narrar como modo dramático.

Assinale a alternativa cujo texto exemplifica o modo dramático de narrar.

a) Hóspede

— Sim, fui eu que convidei. Mas naquela época você garantiu que sua mãe não tinha mais que três meses de vida.

CHAFFE, Laís. In: Veredas. Edição 147, maio 2009. Disponível em http://www.veredas.art.br/ Acesso em 18 maio 2009.

b) Impressionista

Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. Bagagem, p.37.

c) Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. Alguma poesia, p.69.

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d) Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número. Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado

BANDEIRA, Manuel. Poesia. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974. Libertinagem, p.214.

Respostas

1. c

2. a) Ah, Lucrecia. Foi uma revolução em nossa cidade. (3) b) Convenhamos, uma mulher que fumava, dirigia, e jogava futebol tinha de merecer a nossa admiração... (6) (4 ou 5) c) E nós, pobres de nós, moças de Rinópolis, interior bravo de Minas, nunca, nunca, jamais tínhamos visto nada igual a Lucrécia. (4) (4) (4) d) O gerente contou tudo pra gente, à noite, no jardim público. (5) e) Minha mãe quando soube que eu fazia parte do grupo das novas amizades de Lucrécia me disse, ressentida — com efeito, Laura, uma professora. Devia se dar ao respeito. (1) (1) (1) (1) (2) (2)

3. c

4. a) Protagonista da ação, o narrador representa-se no discurso por formas de 1ª pessoa (percebi, meu, vi, me, eu devia, meu) e submete os fatos relatados a seus pensamentos, sentimentos e percepções. A narração se faz, assim, bastante subjetiva, o que condiz perfeitamente com o caráter autobiográfico do texto, fragmento da obra Infância, onde o narrador-protagonista-autor relata passagens de sua sofrida viva de garoto nordestino. b) Não personagem, não onisciente, não onipresente, o narrador capta apenas aspectos perceptíveis a seu ângulo de visão de observador ou testemunha externa (visão “de fora” dos acontecimentos), ainda que desça a detalhes, como no momento em que focaliza os dedos do pé da personagem. d) Capaz de estar em todos os lugares da ação ao mesmo tempo, qualidade conhecida como onipresença ou ubiquidade, o narrador recorre a múltiplos ângulos de visão para fazer o leitor ver e ouvir tudo o que, simultaneamente, acontece no palco, na rua, no escurinho da quinta fila da platéia, nas coxias. O foco narrativo é exclusivamente externo, ou seja, adequado a captar a vida do lado de fora das personagens, sem jamais revelar o que se passa em seu mundo interior.

5. a. Observe como, nas demais alternativas, o narrador, personagem (c) ou não (b/d), está sempre muito presente, dirigindo o olhar do leitor para aquilo que ele quer que o leitor veja. Na alternativa-resposta, pelo contrário, quase não há narrativa, porque o narrador cede espaço à personagem, que se manifesta em discurso direto.

PPPProdução de textorodução de textorodução de textorodução de textossss

1. Releia a crônica “Caso de secretária”, de Carlos Drummond de Andrade, apresentada nas p. 13-14 deste módulo. Em seguida, considerando o que você aprendeu sobre a organização da narrativa, crie uma crônica que dê conta do que aconteceu depois que o protagonista se viu diante da família.

2. Leia o poema “Enredo para um tema”, de Adélia Prado, reproduzido a seguir, procurando compreender sua ação, história ou intriga. Reconte-a, em seguida, duas vezes, variando sempre a voz narradora. Compare, então, seus dois textos com o poema de Adélia Prado: houve, provavelmente, diferença de ponto de vista ou focalização. Redija, por fim, um pequeno comentário, explicando em que consistem essas diferenças.

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Metacognição: refletindo sobre sua aprendizagem Metacognição: refletindo sobre sua aprendizagem Metacognição: refletindo sobre sua aprendizagem Metacognição: refletindo sobre sua aprendizagem

Realize esta atividade de metacognição passo a passo, conforme proposto a seguir.

1º) Localize, em sites da Internet, as letras das canções narrativas “A baiana cover”, de Vander Lee, “Domingo no parque”, de Gilberto Gil, e “Teresinha”, de Chico Buarque de Holanda. Para isso, basta digitar, em um site de busca, como o Google, o nome das canções.

2º) Resuma a intriga de cada canção.

3º) Redija três pequenos textos, comentando o ponto de vista de cada uma delas.

4º) Identifique, também em cada uma delas, possíveis passagens em discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre, diálogo direto do narrador com o interlocutor (ouvinte ou leitor).

5º) Na sua opinião, os textos dessas canções intertextualizam com algum outro texto que você conheça? Justifique sua resposta.

6º) Monte um álbum com os textos das canções e os textos produzidos por você como respostas às questões anteriores. Leve seu álbum, se possível ilustrado, para a sala de aula e mostre-o a seus colegas e professor.

Para saber maisPara saber maisPara saber maisPara saber mais

Para melhor conhecer mitos, lendas e contos da tradição oriental, ocidental, africana e ameríndia, todos eles geradores de narrativas e de intertextualidades, procure ler os livros e ver os filmes relacionados a seguir. ���� AS MIL E UMA NOITES. Tradução de Ferreira Gullar. São Paulo:

Revan, 2003. — As mil e uma noites é uma coletânea de fascinantes histórias preservadas na tradição oral pelos povos da Pérsia e da Índia. As histórias são contadas por Sherazade, uma jovem corajosa, que se sacrifica por seu povo para salvá-lo da ira do sultão Shariar.

Enredo para um tema Ele me amava, mas não tinha dote, só os cabelos pretíssimos e uma beleza de príncipe de estórias encantadas. Não tem importância, falou a meu pai, se é só por isto, espere... Foi-se com uma bandeira, e ajuntou ouro pra me comprar três vezes. Na volta me achou casada com D. Cristóvão. Estimo que sejam felizes, disse. O melhor do amor é sua memória, disse meu pai. Demoraste tanto, que... disse D. Cristóvão. Só eu não disse nada, nem antes, nem depois.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991. Bagagem, p.91.

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���� BRADLEY, Marion Zimmer. As brumas de Avalon. 4 vol. São Paulo: Imago, 1988. Composta de quatro volumes (A senhora da magia; A grande rainha; O gamo rei; O prisioneiro da árvore), a obra aborda a lenda do Rei Arthur, mas da perspectiva das mulheres que nela tiveram um papel central: sua esposa, a rainha Guinevere; sua mãe,Igraine; a Grande Sacerdotisa de Avalon, Viviane; e, principalmente, sua irmã Morgana, que, nesta versão da lenda, desempenha importante papel vida de Arthur. Trata-se, acima de tudo, da história de um profundo conflito entre o cristianismo e a velha religião céltica de Avalon.

���� Coleção Contos e Lendas, da Editora Companhia das Letras — A coleção reúne mitos e lendas de diferentes povos.

- Contos e lendas da África.

- Contos e lendas afro-brasileiros - A criação do mundo.

- Contos e lendas da Europa medieval.

- Contos e lendas da mitologia grega.

- Contos e lendas das Mil e uma noites.

- Contos e lendas do Egito antigo. (1998)

- Contos e lendas do nascimento de Roma.

- Contos e lendas dos cavaleiros da Távola Redonda.

- Contos e lendas dos heróis da Grécia antiga.

- Contos e lendas dos vikings.

- Contos e lendas - Heróis e vilões da Roma antiga.

- Contos e lendas - Os doze trabalhos de Hércules. ���� SHARMAN-BURKE, Juliet; GREENE, Liz. O tarô mitológico: uma nova abordagem para

a leitura do tarô. Ilustrações de Tricia Newell. São Paulo: Siciliano, 1988. — As 78 lâminas coloridas para a prática do tarô vêm acompanhadas de um livro, que descreve mitos e lendas gregos relacionados a elas.

� AS BRUMAS DE AVALON, 2001, EUA. Direção de Uli Edel.

� AS MIL E UMA NOITES, 2000, EUA. Direção de Steve Barron.

� EXCALIBUR, 1981, EUA. Direção de John Boorman.

� O APRENDIZ DE MERLIN: a busca pelo Santo Graal, 2006, EUA. Direção de David Wu.

� O PRIMEIRO CAVALEIRO, 1995, EUA. Direção de Jerry Zucker.