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ESCOLA DE BIODANZA SISTEMA ROLANDO TORO DE BELO HORIZONTE INTERNATIONAL BIOCENTRIC FOUNDATION UM OLHAR BIOCÊNTRICO SOBRE O CUIDAR Monografia de conclusão de curso de facilitador de Biodanza Carlos Henrique Soares Belo Horizonte 2011

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ESCOLA DE BIODANZA SISTEMA ROLANDO TORO DE BELO HORIZONTE

INTERNATIONAL BIOCENTRIC FOUNDATION

UM OLHAR BIOCÊNTRICO SOBRE O CUIDAR

Monografia de conclusão de curso de facilitador de Biodanza

Carlos Henrique Soares

Belo Horizonte

2011

Carlos Henrique Soares

UM OLHAR BIOCÊNTRICO SOBRE O CUIDAR

Monografia de conclusão de curso de facilitador de Biodanza

Trabalho de conclusão de curso de Facilitador de Biodanza, pela escola de Biodanza Sistema Rolando Toro de Belo Horizonte. Orientadora: Cláudia Helena Rocha Monteiro

Belo Horizonte

2011

Para Leda, Miriam, Luciane e Sá Chica (vovó

que virou estrela), os tesouros da minha vida.

Com delicadeza Abrir as gavetas

Que guardam As palavras de seda.

Deixá-las sempre Ao alcance

De um sopro, Prontas para o vôo,

Para o ouvido Para a boca.

Palavras de seda São como borboletas

Douradas Quando pousam

No coração do outro.

(MURRAY, 2001)

RESUMO

Cada vez mais, o cuidar está presente no dia a dia de todo ser humano. Alguns

autores afirmam que o cuidado faz parte de sua gênese, atravessando todas as

dimensões da realidade humana. Rolando Toro acrescenta o conceito de Princípio

Biocêntrico, que coloca seu interesse em um universo compreendido como um

sistema vivo. Ou seja, o cuidado pela vida é ponto norteador de toda ação humana.

Neste trabalho, pretende-se mostrar que o Princípio Biocêntrico pode ser um fator

modificador da prática do cuidar. O estudo contemplou dois grupos de indivíduos. O

primeiro compreendeu sete pessoas que nunca tiveram contato com o Princípio

Biocêntrico, os quais responderam a um questionário com quatro perguntas sobre o

cuidar. O segundo grupo constituído de sete pessoas que já tiveram contato com o

Princípio Biocêntrico, os quais responderam a quatro perguntas sobre o cuidar e

uma pergunta sobre a influência do Princípio Biocêntrico na concepção de cuidar. A

análise dos resultados indica que a compreensão e a vivência do Princípio

Biocêntrico oportunizadas pela prática da Biodanza podem ser um fator modificador

do ato de cuidar, tornando esta ação mais integradora e fundamental para a fase

planetária da humanidade.

Palavras-chave: Cuidar. Princípio Biocêntrico. Biodanza.

ABSTRACT

Increasingly, care is present in day-to-day of every human being. Some authors

claim that it is part of the genesis of human beings across all dimensions of human

reality. Rolando Toro adds the concept of Biocentric Principle that puts your interest

in a world understood as a living system. That is, care for life is guiding point of all

human action. In this paper, we aim to show that the Biocentric Principle is a

modifying factor of care practice. We studied two groups of individuals. The first

group consisted of seven people who had never had contact with the Biocentric

Principle, answered a questionnaire with four questions about the care. The second

group consisting of seven people who have had contact with the Biocentric Principle

answered four questions about caring being and one more question about the

influence of the Biocentric Principle in their conception of care. The results showed

that the Biocentric Principle is a modifying factor of the practice of care, making it

more inclusive and fundamental action for planetary phase gives humanity.

Key-words: Care. Biocentric Principle. Biodanza.

Eu, facilitador de Biodanza no mundo

Vive-se um momento de crise. O planeta pede socorro. As pessoas “globalizadas”

estão cada vez mais egoístas e individualistas. O ter e o parecer são mais

importantes que o ser.

Ser facilitador de Biodanza significa construir um movimento de volta à simplicidade,

ao resgate do que há de mais puro nos indivíduos, reafirmar a beleza da vida e

mostrar a existência do amor em sua forma mais genuína. Parece utópico, mas é a

salvação do ser humano.

As pessoas ainda são crianças em essência. Em alguns, o laço que ainda liga a esta

criança pura e bela está tênue, quase se rompendo para sempre. Mas ainda há

esperança para o ser humano.

O trabalho que se vislumbra pela frente é de reconstrução, principalmente de autor-

reconstrução, pois só se pode atuar resgatando a criança interior.

Há de se encontrar dificuldades, barreiras, mas nada será impossível se houver

dentro de cada um o amor fraterno, a empatia, o cuidado com respeito pela

alteridade, o olhar desprovido de exigências e cheio de afeto e ternura para com o

semelhante.

Buscar a conexão consigo mesmo, com as pessoas e o planeta é crescer,

transcender na existência; é se tornar uno com a energia cósmica.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO À TEMÁTICA DO ESTUDO .................................................... 7

2 REFERENCIAL TEÓRICO .............................................................................. 10

2.1 O sistema Biodanza ....................................................................................... 10

2.2 O significado do Princípio Biocêntrico ........................................................... 11

2.3 O significado do Cuidar .................................................................................. 15

2.4 O cuidado sob a ótica da Fenomenologia ...................................................... 18

2.5 O cuidado sob a ótica do Princípio Biocêntrico ............................................. 21

3 CAMINHO METODOLÓGICO ........................................................................ 24

4 RESULTADOS ................................................................................................ 26

4.1 Grupo 1 ......................................................................................................... 26

4.2 Grupo 2 ......................................................................................................... 35

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ............................................. 47

6 REFLEXÕES SOBRE O ESTUDO (CONCLUSÕES) ...................................... 51

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 54

7

1 INTRODUÇÃO À TEMATICA DO ESTUDO

Somos como barcas Deslizando pelo tempo,

E nesse tempo Há que tecer a trama

Da vida Com fios de amor e sonho,

Para que a viagem seja leve, Para que a viagem seja bela.

(MURRAY, 2001)

Neste mundo, que se constrói na velocidade, as pessoas são impulsionadas a correr

sempre e sempre. As informações são instantâneas. Tudo, ou quase tudo, é

urgente, imprescindível, todavia, em muito pouco tempo torna-se descartável. O hoje

torna-se assunto esquecido no minuto seguinte. A crise generalizada que afeta a

humanidade se revela pelo descuido e pela falta de cuidado com que se trata as

realidades importantes da vida. As questões do cotidiano foram banalizadas. Não

emociona mais o olhar perdido das crianças, que continuam abandonadas,

condenadas a trabalhar como adultos. Os idosos mendigam solidariedade nos sinais

de trânsito. O planeta, que agoniza, “pede socorro” como mostram as calamidades

climáticas. Corre-se tanto que o olhar não toca mais os olhares famintos de afeto e

aconchego dos ainda descamisados, que estão em toda parte. A emoção somente

aparece quando o assunto está bem revestido de grande tecnologia, como um

“showbiz” bem elaborado pela mídia.

A civilização está em crise. Somente uma nova ordem ética pode permitir ao

indivíduo retornar à essência de sua existência (BOFF, 2001). Cada vez mais,

ressalta-se a percepção de que cada pessoa, para existir, para viver, necessita

flexibilizar-se, adaptar-se, reestruturar-se, interagir e coevoluir. É preciso estar em

constante reconstrução no exercício do dia a dia. Se o vazio existencial se torna a

realidade do ser humano, será impossível o desenvolvimento de uma disponibilidade

básica constante para a sensibilização solidária.

As ações humanas só poderão mudar se o emocionar de cada pessoa mudar. A

tecnologia não é a solução para os problemas humanos, porque os problemas

8

humanos pertencem ao domínio do emocional.

O emocionar-se, o deixar-se atravessar pela existência do outro, o abrir a

possibilidade da compaixão existir dentro de cada um, tudo isso só pode florescer se

for trabalhada a questão do CUIDADO. O cuidar de si, a percepção do existir como

ser, o sentir-se como um ser no mundo, o sensibilizar-se com a maravilha da

existência humana, tudo isso torna possível o estabelecimento de uma nova ética do

viver. Somente depois desse “humanizar-se” é que se pode iniciar o cuidar do outro

e do planeta.

Boff (2001) ensina que o cuidar é algo intrínseco ao homem. Já se nasce ser do

cuidado; está inscrito no DNA de cada um. Explica Heidegger (2004, parte I, p. 261),

citado por Boff: ‘’Cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico”, ou

seja, “um fenômeno que é a base possibilitadora da existência humana enquanto

humana” (BOFF, 2001, p. 34).

O Princípio Biocêntrico, criado por Rolando Toro, tem como referência imediata a

vida, estabelecendo um novo modo de sentir e pensar.

A vida não é conseqüência dos processos atômicos e químicos, mas da estrutura guia da construção do universo. As relações de transformação matéria-energia são os estados de integração da vida. A evolução do universo é, na realidade, a evolução da vida (TORO, 2005, p. 51).

Segundo Toro (2005, p. 51), “o universo existe porque existe a vida, e não o

contrário”. Esta é a grande mudança paradigmática: colocar a vida como o agente

norteador de tudo, como fundamento ético-estético das relações. É um convite para

reformular valores culturais, sociais, econômicos, políticos, éticos e morais, pois a

conduta das pessoas e sua forma de estar no mundo com os seres mudam. O

Princípio Biocêntrico reafirma o verdadeiro sentido do cuidar: cuidar da vida.

Estabelece-se um compromisso com a ética do cuidar. Agora, ninguém está

sozinho, mas sim em sintonia com um todo, o que faz com que se tenha a maior

coerência no viver.

9

Objetiva-se com este trabalho verificar se a concepção do cuidar sofre mudanças

em pessoas que praticam o Princípio Biocêntrico. Busca-se mostrar que o Princípio

Biocêntrico pode ser um fator modificador da prática do cuidar, tornando esta ação

mais integradora e fundamental para a fase planetária da humanidade.

Afago é palavra bela, Traz dentro água Em movimento,

Água escorrendo, Água de chuva, De cachoeira, Água de lago,

Água de murmúrio. Afagar o outro

Em nossa água, Em nosso mel,

Em nossa alma.

(MURRAY, 2001)

10

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 O Sistema Biodanza

A força que nos conduz É a mesma que ascende o sol

Que anima os mares E faz florescer as cerejeiras.

A força que nos move É a mesma que estremece as sementes Com sua mensagem imemorial de vida.

A dança gera o destino Sob as mesmas leis que vinculam

A flor à brisa. Sob o girassol de harmonia

Todos somos um

(TORO, 2005)

A Biodanza teve sua origem gestada durante observações e vivências pessoais de

seu criador, Rolando Toro, em situações de grupo e em trabalhos com portadores de

transtorno mental, bem como em pesquisas no Departamento de Antropologia

Médica da Escola de Medicina da Universidade do Chile, no Instituto de

Investigações Psiquiátricas de Santiago, especialmente durante a década de 1970

(RIBEIRO, 2008).

A sua base conceitual provém de uma meditação sobre a vida; do desejo de renascimento de nossos gestos despedaçados, de nossa vazia e estéril estrutura de repressão. Poderíamos dizer com certeza: da nostalgia do amor. Mais que uma ciência é uma poética do encontro humano, uma nova sensibilidade frente à existência (TORO, 2005, p. 15).

Propõe-se restaurar no ser humano o vínculo original com a espécie, como

totalidade biológica e com o universo como totalidade cósmica.

Esclarece Toro (2005, p. 33):

A Biodanza é um sistema de integração humana, de renovação orgânica, de reeducação afetiva e reaprendizagem das funções originais da vida. A sua metodologia consiste em induzir vivências integradoras por meio da música, do canto, do movimento e de situações de encontro em grupo.

Este sistema propõe o fortalecimento da vinculação do indivíduo consigo mesmo,

com o outro e com a totalidade, como meio de integração e de harmonização

11

orgânica. Essa integração nem sempre é existente no movimento e na expressão do

sujeito. Percebe-se que a criação da Biodanza apresenta base em estudos sobre

tradição, filosofia, arte, ciências humanas e ciências biológicas. É possível verificar

que ela parte da busca da compreensão da realidade, perpassando por disciplinas

especializadas e saberes diverso.

A metodologia da Biodanza está centrada na indução de vivências integradoras, as

quais são expressões do entrelaçamento da vida instintiva com o mundo valorativo-

simbólico, que buscam, com base na experiência do “aqui-agora”, uma conexão com

a essência instintiva presente em casa indivíduo. As práticas das vivências seguem

cinco linhas básicas: vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e

transcendência, consideradas como potencial genético de cada indivíduo, as quais

podem levar à expressão de fortalecimento de um estilo de viver que obedeça mais

ao ritmo de cada um, fazendo com que sejam mantidos ou recuperados o equilíbrio

psíquico e o equilíbrio fisiológico, propiciando aos indivíduos maior conexão consigo

mesmos e, também, com a totalidade.

“O olhar feito cântaro

cheio até a borda de puro mel.

O olhar como favo ou quem sabe

uma teia de ternura abraçando o mundo. O olhar feito barco de carregar o outro

até a outra margem, até um porto seguro.

O olhar feito carruagem macia de conduzir o outro,

com delicadeza, pelos labirintos da vida

até seu próprio coração.”

(MURRAY, 2001)

2.2 O significado do Princípio Biocêntrico

Segundo Rolando Toro, “a teoria da Biodanza se estrutura do Princípio Biocêntrico,

o qual tem como referência imediata a vida e se inspira nas leis universais que

conservam os sistemas vivos e tornam possível sua evolução” (Toro, 2005, p. 50).

12

O Princípio Biocêntrico mostra que as pessoas estão em um universo compreendido

como um sistema vivo. O reino da vida é amplo, não contemplando somente os

animais, vegetais e o homem.

Tudo o que existe, dos neutrinos ao quasar, da pedra ao pensamento mais sutil, faz parte deste sistema vivo prodigioso e, segundo o Princípio Biocêntrico, o universo existe porque existe a vida, e não o contrário. A vida não é conseqüência dos processos atômicos e químicos, mas da estrutura guia da construção do universo. As relações de transformação matéria-energia são os estados de integração da vida. A evolução do universo é, na realidade, a evolução da vida (TORO, 2005, p. 51).

A vida, este mistério fantástico, é o centro referencial para toda ação e reflexão do

individuo na realidade. Pode-se também dizer que a ação e a reflexão embasadas

na sacralidade da vida partem de sensações e sentimentos de vinculação com ela

mesma, com suas diferentes formas de expressão nos seres vivos, que se

apresentam desde a mais simples estruturas, como as unicelulares, até as

organizações mais complexas.

Com o Princípio Biocêntrico, estabelece-se uma transformação existencial. Os

parâmetros de vida cósmica passam a refletir os parâmetros do estilo de vida de

cada pessoa. Ou seja, os comportamentos individuais se organizam como

expressão de vida, e não como meio de alcançar fins externos, políticos ou

socioeconômicos. Tudo caminha para se criar mais vida dentro da vida. As

adversidades que aparecem no caminhar pela vida passam a ser enfrentadas não

com ideologias ou ações políticas, mas, principalmente, com um posicionamento de

coerência, ética, procurando, assim, as condições necessárias para proteger a vida.

Na visão Biocêntrica, as relações interpessoais baseiam-se na confiança, na

amizade, na cooperação, na fraternidade e no amor. A identidade e o movimento

associados ao amor constituem uma presença sensível de vida no mundo, com

possibilidades amplas de alterações de referenciais presentes nos relacionamentos

interpessoais pautados em modelos bélicos. Em troca, ocorrem a expansão da

ternura e a restauração do sentido pleno de viver com o outro, em comunidade e em

comunhão com a totalidade.

13

A grande magia da vida encontra-se no trabalho, no cotidiano, no prazer, no

encontro entre as pessoas, na busca da justiça e na negação de toda forma de

opressão; enfim, na aceitação plena do ser humano pertencente a este cosmos

infinito. A atitude das pessoas não pode ser passiva diante da realidade (ou níveis

de realidade), mas, sim corajosa, ativa, criativa e amorosa. Deve-se tomar como

referência não os valores de uma cultura, mas o sentir-se vivo como o sentido maior

da existência de cada um e da vida coletiva.

O sentir-se pleno de vida ultrapassa as formas atuais do pensar. Esta percepção

permite um mergulho no aqui-agora do ser como corporeidade vivida em sua viagem

pelo mundo de si mesmo, conectando a unidade de espaço interior com a unidade de

espaço exterior. Tal percepção vem da vivência da nossa identidade, do si mesmo.

O Princípio Biocêntrico é uma real percepção da vida, na medida em que coloca o

indivíduo em uma vivência real, sagrada e constante com o cosmos, retirando a

idéia de um Deus antropomórfico.

Ao vivenciar no cotidiano o Princípio Biocêntrico, a pessoa volta a conectar-se com a

totalidade, como expressão da autopoiesis cósmica.

Explica Toro (2005 p. 51-52):

O Princípio Biocêntrico é, portanto, um ponto de partida para estruturar as novas percepções e as novas ciências do futuro relativas à existência: atribuição de prioridade ao ser vivo; consideração do determinismo como ilusório; abandono progressivo do pensamento linear em favor da sincronicidade e da ressonância dos acontecimentos; desqualificação das filosofias que buscam uma verdade única, pois dentro de cada verdade se esconde outra. O determinismo de causa e efeito só é válido para os fenômenos macroscópicos. Diante do terror da origem, diante da solidão inexorável do infinito, os seres humanos buscam uma resposta olhando-se nos olhos. Nossas existências não foram deixadas ao acaso como os meteoritos ardentes no espaço côncavo, mas sim nasceram da linfa milenar, do útero cósmico que nutre e respira com o amor dos elementos. Na luz da origem, na clareira paradisíaca da realidade, nós nos buscamos reciprocamente.

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Tecer... Encontrar cores

Na terra molhada, na água de chuva No sol da manhã entre as nuvens No pássaro que pousa na árvore

Próximo ao seu ninho Viver...

Encontra-te na chuva, no sol Nessas manhãs de verão, em noite de luar

Nas estrelas Ver-te olhar o mundo

No infinito mistério da união Celebrar a vida em suave canto

Bela, voraz, voluptuosa Brotando em seiva nos corpos desnudos

Desmanchar-se em fornalha Incendiando o instante

De te ver, de fundir corpos E renascer abraçados, abrasados

Dançar... É estar ao teu lado

Construindo a cidadania Defendendo a vida da opressão

É ouvir atento vindo dos teus lábios O canto de justiça e liberdade

Sofrer por ti e por quem não se conhece Lutar por ti e por quem não se conhece

Participar... Olhar a noite escura

E de pé, de rosto para as estrelas- Ser-Estrela

Ser viagem, tornar-se luz De muito longe, de todos os lugares

Tecer... Adormecer na noite Silêncio de Sábio

Quietude de recém-nascido Viajar em tempos e espaços dobrados

De magia e estórias sem fim Sem temer planícies e abismos

Navegar e ser criança Andar e voar por montanhas contigo

E tanto mais Enfrentar o sombrio lago, mar tenebroso

Das fantasias, do terror, do poder E brincar com inocência e arte

Viver... Encontrar-me brotando

No amor que fracassa e que floresce No amigo que encontro

Na cidade que construo contigo Nos filhos que me ensinam

O que não consegui ensinar-lhes Na passagem dos anos

No tempo e no não-tempo Do amar.

(GOIS, 2002)

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2.3 O significado do Cuidar

Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo, pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão, que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo, receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E, uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

(BOFF, 2005, p. 46)

(fábula mito sobre o Cuidado, de origem latina com base grega)

Como mostra a fábula sobre o cuidar, a ação de cuidar já está na própria entranha

da mitologia romana, muito antes da sua teorização e conceitualização. O cuidar, a

ação de cuidar, está na gênese mesma do ser humano, pois é cuidado quem cria o

homem e o protege. Precisamente por isso, a ação de cuidar revela algo muito

próprio da humanidade do homem; revela sua íntima constituição.

Nesse sentido, cuidar de um ser humano (de um enfermo, de um amigo, de um

desconhecido) não é uma ação artificial ou banal para a condição humana, mas algo

constitutivo dela, pois o próprio ser humano é cuidado por um Deus. Mediante a

ação de cuidar, o ser humano se humaniza; ou seja, assume plenamente sua

humanidade. E, além disso, assemelha-se muito ao seu criador, o que significa que

a ação de cuidar enobrece o ser humano, o eleva à categoria dos deuses, pois esta

ação imita a do seu criador, o deus Cuidado.

Com o exercício do cuidado o ser humano cresce no sentido ético do termo,

alcançando sua plenitude de ser humano.

16

Francesc Torralba ensina:

Se a pessoa é singular, o cuidado deve ser singular. Se a pessoa é uma integridade (interioridade – exterioridade), o cuidado deve ser integral. Se a pessoa é livre, o cuidado deve contemplar a liberdade. Se a pessoa é metafísica, o cuidado não pode ser unicamente físico. Se a pessoa é um ser pluridimensional, o cuidar deve ser pluridimensional (ROSELLÓ, 2009, p. 120).

O cuidado é uma atitude que atravessa todas as dimensões da realidade humana.

Percebe-se que o animal cuida do corpo animado e o homem cuida de si próprio e

de seus semelhantes com base na cultura, que é fomento do humano e dos meios

para cultivá-los. Os pais cuidam dos filhos, o político cuida da cidadania e as

divindades cuidam de todos. Mas esse movimento descendente encontra resposta

na aceitação e no agradecimento. O filho maduro cuida de seus pais envelhecidos; o

cidadão responsável preocupa-se com o destino da cidade e cuida para que o

estadista não utilize a máquina pública para interesses parciais; e o homem oferece

a Deus o seu culto. O cuidado comparece em todas as atitudes profundas e

autênticas; é a preocupação primordial.

O sentido de Cuidar contempla quatro ações importantes:

a) O sentido da empatia: cuidar de alguém é colocar-se em seu lugar; é viver o que

ele está vivendo; é assumir um olhar integral para com o indivíduo.

b) O sentido da ajuda: ajudar o outro a realizar o que ele não pode fazer sozinho.

Sob esta perspectiva cuidar de alguém é ajudá-lo a ser autônomo, ou seja, a

realizar sua própria vida.

c) O sentido do convite: cuidar é convidar o outro para desejar-se ser ajudado pelo

cuidador.

d) O sentido do ser (a vida) na sua forma integral: cuidar de alguém é convertê-lo no

verdadeiro centro da ação, no centro da gravidade, em torno do qual tudo

adquire sentido e valor.

A dimensão interpessoal, ou a interpersonalidade, constitui uma das dimensões

fundamentais da natureza humana, É a condição de possibilidade, isto é, a esfera

transcendental da ação de cuidar. Se o ser humano não tivesse essa dimensão - ou

seja, se fosse um autista sob o ponto de vista antropológico -, jamais poderia

17

desenvolver a ação de cuidar e tampouco a de educar ou de assistir, porque essas

tarefas são, basicamente, interpessoais.

O ser humano é um ser aberto a seu entorno, aberto ao mundo e, de maneira especial, aberto a seu semelhante, a seu próximo. O centro da vida humana não é o eu, mas o tu, significando que o centro de gravidade de minha ação de meu pensamento está fora da minha pessoa. Esta abertura se si mesmo a um outro é uma atitude vetorial do ser humano (ROSELLÓ, 2009, p. 135).

As relações virtuais estão cada vez mais presentes: e-mail, redes sociais, torpedos,

etc. Mas o cuidado só pode ser exercitado de uma maneira interpessoal, direta e

forte. Não pode ser realizada de maneira virtual, a distância, teleguiada. O face a

face, a captura mútua do olhar, é fundamental.

Cuidar de alguém é estar com ela, fisicamente, porém não de qualquer maneira,

mas de uma maneira muito própria e singular; é ser com ele.

Alguém pode estar com alguém sob o ponto de vista da contigüidade físico-espacial

e, contudo, estar muito distante, com a cabeça em outro mundo, isto é, estar

mentalmente em outro lugar. Além disso, alguém pode estar com alguém, mas pode

não acompanhar. O estar com é necessário no processo de acompanhar, mas não é

o suficiente. É preciso estar de maneira plena, e não simplesmente objetiva ou de

forma coisificada.

Cuidar de alguém é não somente estar com alguém, mas ser com alguém, pois

somente com alguém pode-se aprender a ser um semelhante. Acompanhar, cuidar

de alguém, é ajudar para que o outro seja; é promover seu ser, apostar em alguém,

velar por sua integridade e a unidade de seu ser.

Cuidar de alguém é, pois, não impor formas de ser, mas ajudá-lo a ser em sua

singularidade e em sua especificidade.

18

Cuidar da vida, Desse infinito

Novelo De tantas tramas

E cores. Cuidar de cada

Vida Com desvelo,

Para que a terra possa Continuar sua dança,

Par que possamos todos Continuar nossa trança.

(MURRAY, 2001)

2.4 O cuidado sob a ótica da fenomenologia

Explica Dartigues (2008, p. 9) que “segundo a etimologia, a fenomenologia é o

estudo ou ciência do fenômeno. Como tudo o que aparece é fenômeno, o domínio

da fenomenologia é praticamente ilimitado e não poderíamos, pois, confiná-la numa

ciência particular.”

A fenomenologia propõe o estudo sobre o estar no mundo, procurando verificar em

cada fenômeno o sentido do ser. A fenomenologia do cuidado procura entender o

sentido do ser e como se dá ser, já que cada indivíduo é único em sua maneira de ver o

mundo e de se relacionar com o que está ao seu redor (PEIXOTO; HOLANDA, 2011).

Todo e qualquer comportamento humano se dá na esfera do cuidado e se cumpre

como cuidado. Mesmo que este comportamento seja negligente, temeroso ou

inseguro, ele se dará sempre como uma realização de cuidado. Em todos os

momentos da vida as pessoas estão entregues ao cuidado.

Ser no mundo coloca cada pessoa sempre a caminho, sempre em vias de, sempre e

cada vez mais. A partir do cuidado, a pessoa está se conduzindo, se direcionando,

sempre a caminho de tudo aquilo que é. Isto inclui tudo quanto foi e será (PEIXOTO;

HOLANDA, 2011).

Em todas as suas atividades, o homem não basta a si mesmo; sempre necessita de

algo que ele mesmo não é. Sem esse “outro” o homem não pode ser. Por sua vez,

19

esse “outro”, com o qual ele, na maioria das vezes, se comporta em seu cuidar se

apresenta no modo das coisas, e estas como coisas de uso, como coisas da lida.

Exemplos são os artefatos de tecnologia e os apetrechos do trabalho. Mas tudo

quanto tem uma serventia se insere numa tessitura de para quês. Tudo que tem uma

serventia e utilidade remete, em seu para quê último, à pessoa mesma, ao cuidado

com o seu mundo, que é, em ultima instância, o cuidado com o seu ser no mundo.

O nosso cotidiano é tomado por afazeres, e as pessoas se identificam com o que

fazem e se definem a partir daquilo com que se ocupam, passando a compreender o

seu ser no mundo a partir das perspectivas abertas pelas suas ocupações. Podem

sempre vir a ser elas mesmas, mas estão sempre dispersas em sua multiplicidade

(PEIXOTO; HOLANDA, 2011).

O risco de a pessoa estar sempre perdida em suas ocupações não é iminente, mas

já se torna um fato de sua existência. Portanto, é preciso que cada pessoa cuide de

seu cuidado. Este cuidar é um resgate do seu cuidado. Ou seja, um resgate da

cadência precipitada e atropelada em que cada pessoa, na maioria das vezes, se

lança na multiplicidade de suas ocupações.

É uma cadência, um ritmo, um compasso, um andamento para o próprio existir, em

que imperam a precipitação e o atropelo. Junto desse “outro”, cada pessoa

experimenta uma espécie de gravidade, um peso que a inclina para ele e para a sua

posse. As pessoas são arrastadas por muitas ocupações. Assim o seu ser no mundo

se dispersa, e elas se distraem a si mesmas. Nesta dispersão e distração,

distanciam-se de si mesmas, até o ponto de se alienarem, de se tornarem mais

estranhas e mais distantes de si mesmas. Assim, bloqueiam suas possibilidades de

ser. A existência acaba girando no vazio.

Na busca de segurança, do autoasseguramento, a existência aguça o seu próprio

perigo e consome o seu próprio perder-se, ocasionando a ruína da existência. O

turbilhão de possibilidades de que a pessoa acumula faz com que perca o cuidado

de si mesma. Com isso, a preocupação com o semelhante se esvazia, de modo que

a edificação de seus relacionamentos com os seus companheiros da vida requer,

20

sempre de novo, o cuidar do seu próprio cuidado com as pessoas (PEIXOTO;

HOLANDA, 2011).

Em sendo no mundo, as pessoas são sempre com os outros. O cuidado sempre

coloca a pessoa numa comunhão e comunicação, a qual, antes de se dar no nível

da fala e do agir, já se dá no nível do ser. “O meu semelhante sempre partilha

comigo o ser no mundo”. A essência da relação que se instaura no cuidado do ser

com o outro, significa aproximar-se do outro, interessar-se por ele, ser interpelado

por ele e interpelá-lo, ser solicitado e solicitar, responder e corresponder. O

relacionamento com o outro cai sempre dentro da envergadura do cuidado, que se

faz solicitude.

O relacionar-se-com-o-outro vai desde um relacionamento apenas funcional e

impessoal até o relacionamento pessoal, instaurando uma relação tu a tu com o

outro.

O cuidado com o outro pode se dar de forma substitutiva, em que se retira do outro a

sua preocupação, colocando-o à parte e realizando por ele o que ele não pode

realizar. Ou, de uma forma antecipadora, que remete o outro para a sua

responsabilidade e, ao mesmo tempo, ajuda o outro a tornar-se, em seu cuidado,

transparente para si mesmo e livre para o seu cuidado.

Também nos relacionamentos interpessoais pode ocorrer a perda do cuidado. Isso,

sempre que no cotidiano o ser com o outro se dá na forma de um relacionamento

dominado pela impessoalidade do “a gente” do “todo mundo”, que, em verdade, não

é ninguém. Com a dissolução da identidade na impessoalidade do “a gente” se

dissolve qualquer vínculo maior com a alteridade (PEIXOTO; HOLANDA, 2011).

O mundo é um tecido cujos fios são o éter, e nós estamos tecidos nele com todas as outras criaturas...

O mundo é um imenso tapete; possuímos o mundo inteiro em cada respiração...

Frithjof Schuon

(LELOUP, 2007)

21

2.5 O cuidado sob a ótica do Princípio Biocêntrico

É importante, para avaliar o cuidado sob a ótica do Principio Biocêntrico, retornar as

concepções de Princípio Biocêntrico e cuidado.

O Princípio Biocêntrico prioriza a vida. Sem a vida nada existe, nada se transforma.

A vida é a norteadora de tudo. Tudo criado, e que se cria continuamente, tem como

função a preservação da vida. As pessoas não são o resultado de acasos

enzimáticos e de arranjos bioquímicos. São o que são porque a vida, esta instância

primeira, as estruturou e continua estruturando para que vivam sua razão de ser.

Todo indivíduo é um ser cósmico, um sistema aberto, voltado para o infinito, e o

infinito desequilibra qualquer síntese. As pessoas estão aptas para novas

aquisições, são criativas, possuindo uma autopoiese própria (BOFF, 2001).

Cuidar de alguém significa estar com alguém; é ser com alguém. Cuidar de alguém

é ajudá-lo a ser, mas a ser em sua singularidade, em sua especificidade. Cuidar de

alguém é velar para que o outro seja, a partir de sua singularidade, a expressão

mais genuína de sua vida.

O Princípio Biocêntrico e o cuidar tratam de uma mesma questão: a VIDA. O pleno

exercício do cuidado somente se dá por meio do respeito pela vida, pela

singularidade do outro, este outro que é um projeto para o infinito com uma vida em

aberto, plena de possibilidades.

É preciso destacar a maneira de ser no mundo, pois isso vai ser estruturante para a

nossa prática do cuidar. É o modo de ser que se fundam as relações que se

estabelecem com todas as coisas.

Explica Boff:

Ser no mundo significa uma forma de existir de coexistir, de estar presente, de navegar pela realidade e de relacionar-se com todas as coisas do mundo, nessa co-existência e convivência, nessa navegação e nesse jogo de relações, o ser humano vai construindo seu próprio ser, sua autoconsciência e sua própria identidade (BOFF 2001, p. 92)

22

“Fundamentalmente, há dois modos de ser no mundo: modo de ser trabalho e modo

de ser cuidado, sendo que aí emerge o processo de construção da realidade

humana” (BOFF, 2001, p. 92).

No modo de ser trabalho a prática é a de interação e intervenção. A natureza deve

ser mudada somente para tornar a vida mais cômoda. A prioridade é adaptar o meio

ao desejo do homem. A lógica do ser no mundo trabalho é a dominação, colocando

as pessoas e o ambiente em uma situação de passividade. O ser humano passa a

ser o centro, configurando o antropocentrismo. A prioridade é a satisfação do desejo

deste ser humano. A conexão do humano com a natureza e com todas as realidades

é rompida; o homem não é mais parte do todo. Esta maneira de trabalho-poder

exercida sobre o mundo evidencia a dimensão do masculino no homem e na mulher.

Este é o modo mecanicista, reducionista, em que não há preocupação com o todo.

Assim, a realidade é mais bem subjugada. O poder e a agressão são os meios

usados para alcançar os objetivos utilitaristas. Lançam-se para fora de si na

aventura do conhecimento e da conquista de todos os espaços da terra e do espaço

celeste (BOFF, 2001).

O modo de ser Cuidado não se opõe ao modo de ser trabalho, mas a relação deixa

de ser sujeito-objeto para tornar-se sujeito-sujeito. O que se procura é a “com-

vivência”, e não uma relação de dominação. A centralidade não é mais ocupada pela

razão, mas pelo sentimento. Neste modo de ser, tudo passa a ter importância: as

relações estabelecidas com a grande mãe Gaia (Terra), os irmãos na vida, os

animais e o reino vegetal, o cosmos. Tudo que exala vida é respeitado e tratado com

grande respeito (BOFF, 2001).

O modo de ser cuidado permite ao ser humano viver a experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e realmente conta. A partir desse valor substantivo emerge a dimensão da alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de complementaridade. O modo de cuidado revela a dimensão do feminino no homem e na mulher (BOFF, 2001, p. 96).

Somente com base na capacidade do ser humano de emocionar-se, de envolver-se,

de afetar e de sentir-se afetado pelo outro, ele poderá exercer sua capacidade de

cuidar da vida.

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A prática do “Cuidar biocentricamente”, priorizando a vida acima de tudo, somente é

possível quando o amor, na sua forma mais integral, se torna um fenômeno

biológico. Dessa maneira, o amor se dá dentro do dinamismo da vida, desde as

coisas mais simples até as mais complexas, quando um acolhe o outro, e assim se

realiza a co-existência.

O amor é fundamento do fenômeno social e não uma conseqüência dele. O amor é sempre uma abertura ao outro e uma com-vivência e co-munhão como o outro. Sem o cuidado essencial o amor não ocorre, não se conserva, não se expande nem permite a consorciação entre os seres. Sem o cuidado não há atmosfera que propicie o florescimento daquilo que verdadeiramente humaniza: o sentimento profundo, a vontade de partilha e a busca do amor (BOFF, 2001, p. 111).

A prática do cuidar sob a ótica Biocêntrica prioriza o respeito pela sacralidade da

vida, em que ser com alguém na vida é ser amoroso, cuidadoso com a alteridade, e

estar sempre em conexão com a natureza, a totalidade, sendo verdadeiramente um

ser cósmico.

A ciência, com muita poesia descobriu que somos feitos

com a mesma matéria das estrelas, e até nossos pensamentos

brilham, estelarmente. Por isso convém andar

com delicadeza e cuidado: nossos gestos e palavras

-já que também somos estrelas- podem mudar o universo”.

(MURRAY, 2001)

CUIDADOCUIDADOCUIDADOCUIDADO + + + + SENTIRSENTIRSENTIRSENTIR----SE NATUREZASE NATUREZASE NATUREZASE NATUREZA ++++ AMORAMORAMORAMOR ==== PRINCPRINCPRINCPRINCÍÍÍÍPIO BIOCÊNTRICOPIO BIOCÊNTRICOPIO BIOCÊNTRICOPIO BIOCÊNTRICO

24

3 CAMINHO METODOLÓGICO

Esta monografia caracteriza-se com um estudo qualitativo, envolvendo as narrativas

de dois grupos de pessoas. Busca analisar a multiplicidade de significados sobre o

sentido de cuidar, e verificar se a prática do Princípio Biocêntrico é transformadora e

modificadora do sentido de cuidar.

• Informantes:

Foram entrevistadas 14 pessoas, divididas em dois grupos:

Grupo 1: Cuidado sob a ótica de pessoas que não tiveram contato com

a Biodança e com o Princípio Biocêntrico:

Grupo 2: Cuidado sob a ótica de pessoas que tem ou tiveram contato

com a Biodança e com o Princípio Biocêntrico:

• Questões éticas:

Antes da coleta dos dados, procedeu-se à explanação do projeto aos membros dos

grupos, para informá-los sobre o trabalho e solicitar a colaboração livre e voluntária

das pessoas interessadas, mediante o compromisso de manter o sigilo e de

assegurar o caráter confidencial das informações coletadas. Os informantes não

foram identificados por seus respectivos nomes, optando-se por atribuir-lhes nomes

de cores.

Foi elaborado um termo de consentimento, em que os sujeitos da pesquisa

manifestaram, por escrito, sua decisão de participar de forma livre e voluntária da

pesquisa e seu consentimento com a entrevista.

Perguntas feitas na entrevista:

Grupo 1

• Qual é o significado de cuidar para você?

• Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais

são?

• Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”.

• Você se sente bem cuidado?

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Grupo 2

• Qual é o significado de cuidar para você?

• Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais

são?

• Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”.

• Você se sente bem cuidado?

• Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a

Biodanza? Se afirmativo, quais foram as mudanças?

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4 RESULTADOS

4.1 Grupo 1

a) Cor de rosa

Idade: 55 anos

Profissão: aposentada, Administração

Grau de escolaridade superior

Estado civil: solteira

Qual é o significado de cuidar pra você?

Dar especial atenção a uma pessoa na perspectiva de lhe prestar ajuda. Contribuir

para o seu bem-estar, sua saúde.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. Existem diferentes formas de cuidar; como cuidar de um bebê ou um idoso,

ajudá-lo na locomoção, ajudá-lo a vestir, ouvi-lo, conversar com eles, aliás,

independente de idade, criança, jovens ou idosos, é essencial, é importante que

sejamos atenciosos com as pessoas. Cuidar é, e sempre será indispensável, não

apenas à vida dos indivíduos, mas à perenidade de todo o grupo social.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor; respeito, carinho, confiança, proteção, bondade, justiça, doação, fé,

esperança.

Você se sente bem cuidado?

Sim, eu me sinto bem cuidada. Eu procuro cuidar da minha saúde física, mental,

emocional e espiritual. Estou sempre atenta para um conhecimento melhor de mim

mesma. Procuro conhecer os meus sentimentos, cuidando dos meus pensamentos,

da minha alimentação e dos tipos de atividades que mais me proporciona um bem

estar e a alegria de viver.

Existe um pensamento que eu gosto muito: Cada dia vale a pena ser vivido, pois

novamente nos é dada a oportunidade de sermos melhores e ainda

mais.compreensivos.

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Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar

Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar...

(PESSOA, 2006)

b) Azul

Idade: não informada

Profissão: Psicólogo / estudante / pesquisador

Grau de escolaridade: mestrando

Estado civil: Solteiro

Qual é o significado de cuidar para você?

Socialmente, esse verbo tem um significado positivo, que se relaciona ao

comprometimento do cuidador perante o doente, coisas que se associam ao carinho,

à consideração, ao apreço, ao desejo de melhora do adoecido. Porém,

particularmente, vejo esse verbo como muito perigoso, pois ele estabelece uma

relação entre um agente (cuidador) e um paciente (passivo). Portanto, não acho um

verbo adequado para o âmbito da saúde, e isso ficará mais claro logo abaixo,

quando eu explicar a questão 3.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. Cuidador patologizante: existem cuidadores que acabam piorando a existência

do doente, pois este passa a ser dependente, imaturo, irresponsável, infantilizado,

querelante, histriônico etc. Por exemplo, uma criança nasce com paralisia cerebral, e

sua mãe, tendo muita pena e dó, acaba fazendo de tudo pela criança. Coloca

comida em sua boca, limpa seu ânus, lhe dá banho, não lhe deixa fazer nada, nem

brincar com outras crianças. Argumenta dizendo que a criança é doente e frágil.

Assim, como a mãe faz de tudo no lugar da criança, a criança não desenvolve, não é

colocada à prova, pois o excesso de cuidado é patologizante; piora o processo de

tratamento ao invés de melhorar. Cuidadores suporte: para se ensinar uma pessoa a

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boiar, é preciso de apoio; ou seja, uma pessoa serve de apoio para que a outra

aprenda a boiar. Quando a pessoa começa a boiar, não é necessário mais do

cuidador: o cuidador permanece por perto, claro, sempre que se percebe que a

pessoa está afundando. Quanto menor o apoio, melhor, pois assim a pessoa irá

desenvolver autonomia, responsabilidade, etc. Ou seja, existe um ponto de equilíbrio

entre cuidar de fato (cuidador suporte) e atrapalhar/piorar (cuidador patologizante).

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

1 - dependência - a pessoa que é cuidada passa a ser, gradativamente, dependente

do cuidador. Ou seja, é como se o cuidador tivesse dois corpos, duas mentes, duas

vidas. A relação entre os dois é como um “siamês”, ligado por laços diversos -

afetivos, emotivos, existenciais - onde o cuidador passa a ser o “motorista” de duas

existências.

2 - imaturidade - a pessoa que é cuidada não se desenvolve psicologicamente,

espiritualmente, humanamente; não desenvolve responsabilidade e autonomia.

Tende a se manter infantilizada, dependente, irresponsável, pois, como é

dependente do cuidador, como deliberou sua liberdade ao cuidador, não se sente

responsável por sua própria condição existencial. Por isso, não raro, o doente não

se intimida de julgar e culpar o cuidador, ser mesmo mal-educado e mal-agradecido,

pois o doente não se sente responsável por sua existência.

3 - Poder - o cuidador é posto como superior à pessoa que recebe o cuidado. Ou

seja, é colocado como uma pessoa que sabe o que é melhor para a pessoa

adoecida. Sem o cuidador, a vida do doente está acabada, já que ele é dependente

e imaturo, precisa do cuidador para manter a sua existência.

4 - Irresponsabilidade - por exemplo, quando um indivíduo está na fila de transplante

de órgão, na espera de um novo pulmão, muitas vezes por ter fumado a vida toda,

não raro continua fumando, mesmo no processo de tratamento, nos corredores do

hospital, escondido dentro do banheiro em casa. Por quê? O doente vê a

doença/problema como algo que está lá no seu corpo, lá no mundo lá fora. Então, o

doente delibera o seu corpo ao poder do cuidador, que vai resolver o problema de

29

sua existência. Em suma, o doente não se sente implicado no processo de

tratamento, pois ele está pagando pelo tratamento, está tomando os remédios. É o

cuidador que deve resolver o problema da existência dele.

5 - Cristandade - a medicina, a psicologia, a sociedade e, mesmo, toda área de

saúde é fortemente influenciada pelos valores cristãos, que são extremamente

patologizantes. Cristo curava as pessoas sem que elas precisassem agir; perdoava

as pessoas mesmo quando elas agiam errado, continuavam no erro; mesmo os mais

desgraçados. Ou seja, mais uma vez, o doente é colocado como um sujeito passivo,

como uma vítima da doença, e não como o agente ou o participante da doença.

Toda doença ocorre em contextos. Nenhuma doença ocorre no vácuo. Só que o

doente fica esperando que Jesus - ou o cuidador, ou o médico, ou o psicólogo -

venha e resolva os problemas de sua existência sem que ele precise mudar de

hábitos.

6 - Ideologia - o cuidador, muitas vezes, é um sujeito pago para o trabalho. Ou seja,

o cuidador é um prestador de serviço, e não um ajudante/cuidador informal. Em

outras palavras, quando uma pessoa diz “Estou cuidando do doente X” nos da à

sensação de um favor, e não da prestação de um serviço. Costumo dizer que

psicólogo não ajuda, mas presta serviço, já que cobra pelo trabalho que faz. Não

podemos fazer papel de amigos sendo que não somos, pois nunca veremos um

psicólogo, por exemplo, conversando num bar com um cliente.

7 - Sabedoria - não há dúvidas de que toda pessoa dependa, pelo menos algumas

vezes na vida, em diferentes graus, de ser cuidado por um cuidador, seja ele um

parente, amigo ou profissional de saúde. Porém, o cuidador precisa ter muita

sabedoria, pois pode acabar prejudicando o tratamento ao invés de contribuir para o

desenvolvimento da pessoa. Ou seja, o cuidar requer muita sabedoria por ambas as

partes - pelo lado do cuidador, pelo lado do que recebe cuidado - por toda a volta.

Não vejo a doença como um problema do doente. A doença é um problema do

doente, do cuidador, da família, do Estado, de todos que se encontram interligados

nessa trama.

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8 - Mistério - as coisas são sempre misteriosas. Geram-nos dúvidas,

questionamentos existenciais que não são tão óbvios tanto o quanto parecem. Ou

seja, há um mistério no por quê e no pra quê o corpo adoece e no por quê as coisas

ocorrem da forma como ocorrem. Por exemplo, se um indivíduo descobre que tem

um câncer, a explicação técnica do médico oncologista, do enfermeiro etc. não

servirá bem dizer para nada. Por quê? Por que a resposta do médico não colocará

um ponto final no questionamento existencial do doente: “Por que exatamente eu

estou com câncer?” “Por que estou com câncer exatamente no intestino?” “Por que

fui adquirir um câncer logo agora que passei num concurso”? “Se Deus é bom, por

que deixou isso ocorrer comigo?” Enfim, o processo de adoecimento e de cura

sempre perpassa pelo misterioso, pelo incompreensível, por algo que precisa ser

desbravado pelo sujeito adoecido.

9 - Boa intenção - não há dúvidas de que o cuidador tem boa intenção diante o

sujeito adoecido. O problema, como dito, está no fato de que é preciso ter muita

sabedoria, por todas as partes envolvidas. A boa intenção, quando sincera, é capaz

de promover mudanças profundas, pois sentir que alguém se preocupa com você

verdadeiramente dá muito alivio diante o sofrimento. Porém, como dito, é preciso

sentir essa sinceridade, senão ela não passará de uma falácia.

10 - Desafio - creio que estamos vivendo um momento de mudanças, onde a

multidisciplinariedade é indispensável. Na verdade, trata-se de uma obrigação do

sistema de saúde. Como podemos mudar todas essas concepções de saúde e de

doença de modo que sejamos, de fato, mais saudáveis e felizes? Creio que a

palavra “cuidador” não é adequada, conforme busquei explicitar aqui nessas

respostas, por manter o doente infantilizado, querelante, imaturo, irresponsável etc.

Acho que seria melhor “medico acompanhante”, “psicólogo acompanhante”, “familiar

acompanhante”, “enfermeiro acompanhante”, para que o doente perceba que ele

precisa agir ativamente para mudar a sua existência, para ele sentir que sua cura

depende dele, e não de uma pessoa de fora.

Você se sente bem cuidado?

Sim. Para mim, a condição do cuidado está relacionada à liberdade, à igualdade, à

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fraternidade, à sinceridade, à atualização existencial, estabelecida entre o cuidador e

o ser que recebe o cuidado. O médico alergista que me acompanha é muito

competente, me explica o processo de tratamento, faz uso de vacinas que de fato

tem validade científica. Eu sinto e percebo que de fato elas funcionam; há mudanças

na minha qualidade de vida! Porém, sei que a cura não depende apenas do médico,

do cuidador ou de outra pessoa, nem do medicamente, mas depende sobretudo de

mim, isto é, do ser que recebe o cuidado: depende da minha posição existencial, da

atitude, da minha implicação no tratamento. Em outras palavras, eu vejo o processo

de tratamento sempre a partir de uma perspectiva existencial. Vejo o cuidador não

como uma pessoa que vai me ajudar e me curar, mas como uma pessoa que vai me

acompanhar lado a lado. Todo processo de cura perpassa por mudanças de hábitos,

mudanças de hábitos de comportamento, pensamento, idéias, emoções. Por isso,

vejo o psicólogo como indispensável no processo de tratamento em qualquer área

da saúde, pois é ele quem irá desbravar com o doente o seu mundo existencial. O

que adianta trocar de fígado se o sujeito alcoolista não está implicado no seu próprio

processo de cura, não conhece e não tem consciência das estradas que o levaram a

sua condição atual?

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o Com ele ia subindo a ladeira de vidro.

E, no entretanto, após cada ilusão perdida... Que extraordionária sensação de alivio!

(QUINTANA, 1997)

c) Amarelo

Idade: não informada

Profissão: enfermeira

Grau de escolaridade: superior

Estado civil: solteiro

Qual é o significado de cuidar para você?

Ver o ser humano como um todo.

Promover, respeitar, reabilitar o ser humano com o seu Eu, com a vida e com a

comunidade, respeitá-lo.

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Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim, e muitas: através da comunicação, do afeto, do amor, da compaixão, da

expressão, alimentação, ter atenção com o outro, etc.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, compaixão, carinho, afeto, alegria, fé, humildade, simpatia, liberdade,

esperança.

Você se sente bem cuidado?

Posso dizer que sim, mas ainda tenho alguns pontos que preciso mudar comigo e

com os outros. Somos um eterno aprendizado.

Só o desejo inquieto, que não passa, Faz o encanto da coisa desejada... E terminamos desdenhando a caça

Pela doida aventura da caçada.

(QUINTANA, 1997)

d) Lilás

Idade: 40 anos

Profissão: Enfermeiro

Grau de escolaridade: 3° grau

Estado civil: Solteiro

Qual é o significado de cuidar para você?

Cuidar para mim significa amparar; é prestar assistência a quem necessita, zelar,

prestar carinho, estender a mão a quem precisa, mesmo que não esteja bem para

isso, se doar, estar junto.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim você pode cuidar de várias formas, educando, estando junto, chamando a

atenção.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Zelar, educar, dar carinho, dar amor, humanização, doação, dar atenção, saber

ouvir, entender, instruir.

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Você se sente bem cuidado?

Sim, todos os dias sinto o cuidado da família, o cuidado dos amigos mesmo quando

não estão presentes, sinto o carinho, e isso já me faz sentir cuidado.

Não é preciso consenso nem arte,

nem beleza ou idade: a vida é sempre dentro e agora.

(A vida é minha para ser ousada.) A vida pode florescer

numa existência inteira. Mas tem de ser buscada, tem de ser conquistada.

(LUFT, 2003)

e) Marrom

Idade: 50 anos

Profissão: Psicóloga

Grau de escolaridade: especialização em Psicologia do Trabalho

Estado civil: solteira

Qual é o significado de cuidar para você?

Acolhimento, respeito, compaixão pela dor do outro. O paciente tem que sentir

segurança com relação ao cuidador. Não pode se sentir como um estorvo, como

alguém que incomoda.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. Existe aquele cuidar por obrigação, sem afetividade, sem envolvimento, como

se o sujeito fosse um mero objeto, e existe aquele cuidar com afetividade com

respeito à dignidade da pessoa.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Acolhimento, respeito, dignidade, carinho, amor, paciência, fé, esperança, cura medo.

Você se sente bem cuidado?

No momento, não.

Observação: O cuidador também precisa de cuidados

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos – para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda

estamos vivos....” (LUFT, 2004)

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f) Vermelho

Idade: 39 anos

Profissão: Enfermeira

Grau de escolaridade: superior

Estado civil: Solteiro

Qual é o significado de cuidar para você?

Próprio da minha profissão, cuidar é atender às necessidades do outro, prestar

cuidados de saúde. É a essência da Enfermagem.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. A palavra tem um sentido amplo e, na minha concepção, tem muitos

significados e sentidos. Trata-se de uma palavra que remete à atenção, ao carinho,

ao cuidado propriamente dito, assistir o paciente, o outro e a mim mesma.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Atenção, carinho, cuidado, assistir, doar-se.

Você se sente bem cuidado?

Sim. Apesar de ser o “cuidador” na grande maioria das vezes, presto atenção ao

autocuidado, que não pode ser negligenciado.

Quem cuida também precisa ser cuidar.

Assim eu queria o meu último poema Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume

A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(BANDEIRA, 2006)

g) Bonina

Idade: 55 anos

Profissão: secretaria

Grau de escolaridade: pós graduação

Estado civil: Solteira

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Qual é o significado de cuidar para você?

Cuidar para mim significa dar atenção, carinho, ouvir o outro, etc.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Não. Eu acho que cuidar do velho, da criança, do adulto ou de si mesma é sempre a

mesma coisa.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, atenção, carinho, generosidade, paciência, tranqüilidade, sabedoria, bom

ouvinte, etc.

Você se sente bem cuidado?

Sim, por mim mesma e pelos outro. Ás vezes acontecem alguns descuidos, mas me

considero sempre bem cuidada

Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

(PESSOA, 2006)

4.2 Grupo 2

a) Prata

Idade: 49 anos

Profissão: médico

Grau de escolaridade: superior

Estado civil: união estável

Qual é o significado de cuidar para você?

A busca do equilíbrio: seja cuidar para evitar doenças e/ou problemas ou cuidar para

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tentar recuperar este equilíbrio. Caso não seja possível nenhuma dessas duas

possibilidades, ainda pode-se cuidar para minorar os prejuízos causados pelo(s)

desequilíbrio(s).

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. Pode-se cuidar das pessoas próximas (familiares, amigos), pessoas que

convivemos no trabalho ou, mesmo, de pessoas estranhas que cruzem nosso

caminho. Cuidar dentro das necessidades destas pessoas e respeitando o limite

que, muitas vezes, elas nos colocam. Para conseguir este cuidar dos outros, é

essencial saber cuidar de si para que tenhamos condições físicas e psicológicas de

cuidar das outras pessoas e, além disso, saber reconhecer quando não somos

capazes de fazê-lo diretamente. Neste caso, ainda é possível tentar cuidar,

encontrando alguém que seja capaz. Entretanto, repetindo, o cuidado, seja com os

outros ou consigo mesmo, é “apenas” paliativo diminuindo o padecer.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, atenção, doação, entrega, saúde, disponibilidade, religiosidade. Amizade,

discernimento, aprendizagem

Você se sente bem cuidado?

É variável. Algumas vezes, sim; noutras, não. É importante enfatizar que este “me

sentir bem cuidado” depende dos que me cercam, do sistema de relacionamento

geral entre as pessoas, das políticas de governo, etc. E, particularmente, de mim

mesmo. Neste aspecto em particular, na maioria das vezes, me sinto muito mal

cuidado.

Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Sim, porém menos do que eu esperava. Como a Biodanza é uma reprodução

exacerbada do meio que vivemos, muitas vezes, tive a sensação que coisa vividas

lá só poderiam ser mesmo vivenciadas lá. Já outras, é possível incorporar no dia a

dia, mesmo que em uma intensidade bem menor. Sexualidade, afetividade,

agressividade, transcendência e (me escapa a quinta característica)..., não são

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coisas fáceis de serem expressadas na vida cotidiana.

O meu olhar azul como o céu É calmo como a água ao sol.

É assim, azul e calmo, Porque não interroga nem se espanta...

Se eu interrogasse e me espantasse

Não nasciam flores novas nos prados Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo....

(Mesmo se nascessem flores novas no prado

E se o sol mudasse para mais belo, Eu sentiria menos flores no prado

E achava mais feio o sol... Porque tudo é como é e assim é que é,

E eu aceito, e nem agradeço, Para não parecer que penso nisso...)

(PESSOA, 2006)

b) Ouro

Idade: 61 anos

Profissão: Escritora

Grau de escolaridade: superior

Estado civil: casada

Qual é o significado de cuidar para você?

Cuidar é acolher o outro em seus momentos de fragilidade física, emocional,

espiritual ou social, desvelando-se em delicadeza, afetividade e compreensão.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim.

Existe o cuidar MATERIAL – aquele que supre as necessidades físicas do outro, e

sempre através da tangível matéria; seja por exemplo:

• cuidando da doença de um doente;

• Apoiando financeiramente a subsistência daquele privado de recursos.

Existe o cuidar ABSTRATO – aquele que supre as necessidades emocionais do

outro, e sempre através do intangível sentimento; seja, por exemplo:

• cuidando do doente na doença. Amparando emocionalmente a sobrevivência,

daquele que se encarcera na dor de viver.

38

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Alteridade, compaixão, delicadeza, respeito, atenção, aconchego, carinho, amor,

dignidade...

Você se sente bem cuidado?

Nem sempre. Acredito que o processo de sentir-se bem cuidado é iniciado a partir

de si mesmo. Acredito também que pessoas que demonstram muita autonomia para

viver sugerem pouco precisar de cuidado...

Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Sim. A Biodança me fez tocar o transbordante reservatório de minhas possibilidades

existenciais, através de contatos de intimidade, vinculação, reconhecimento e

resgate de mim mesma – da minha original essência.

Nessa trajetória de ressignificação pessoal, descobri que para dar completude ao

exercício de aprender a me aprender era preciso encontrar o outro.

E o encontro é sempre um ato de cuidar; é um “estar-com” pleno; pleno de respeito,

de atenção, de entrega, de amor e de reconhecimento daquelas dores, angústias,

medos ou daqueles prazeres, desejos e alegrias desse outro com quem encontro.

“Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento Assim como as flores não tem perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas das borboletas, No movimento da borboleta o movimento é que se move,

O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor.”

(PESSOA, 2006)

c) Rubi

Idade: 65 anos

Profissão: diretora de escola aposentada

Grau de escolaridade: superior

Estado civil: casada

39

Qual é o significado de cuidar para você?

“Quem ama cuida”

“Vovó, gosto muito...muito de você!...você cuida de mim” (palavras do meu neto

André de três anos de idade)

Cuidar é zelar, é compartilhar, é responsabilizar-se pelo bem estar de alguém, é ser

presença, é ser verdadeiro, é conseguir ver além, é dizer sim, é dizer não, é ser

amido, sem jamais sufocar.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. Cada pessoa traz experiências diferentes em sua caminhada! Existem aquelas

mais extrovertidas e as introvertidas. Temos que estar atentos, para fazermos uma

leitura dos sinais, por mais insignificantes que sejam.

Exemplos:

Apagar o abajour de seu quarto

Te cobrir com um virol

Comprar uma fruta que você gosta

Descascar uma fruta

Cuidar de sua segurança, etc.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, reformular a existência, fé, acreditar, responsabilizar-se, autoconfiança,

alegria, inovar, intuir, construir uma existência, capacidade de dar e receber afeto.

Você se sente bem cuidado?

Não! Me sinto só. Em muitas situações “conflitantes” enfrento todas de cabeça

erguida, mas com coração sangrando, no dia a dia procuro nova pedagogia da arte

de viver.

Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Nos reveses da vida, muitas das vezes, nos tornamos pessoas duras e insensíveis.

Como a biodança trabalha as emoções, através da música e do movimento,

desperta em nós algo que estava adormecido.

Cada vivência permite que se crie uma nova realidade nesse processo de mudança.

40

Cada um no seu próprio ritmo.

A importância da biodança está em levar o aprendizado de vivências a todas as

áreas da vida, melhorando a relação familiar, pessoal e profissional.

0 que durante o dia foi pressa e murmuração a boca da noite comeu.

Estrelas na escuridão são ícones potentes. Como oráculos bíblicos,

os paradoxos da física me confortam. Sou um corpo e respiro.

Suspeito poder viver com meio prato e água.

(PRADO, 2010)

d) Verde água

Idade: 80 anos

Profissão: do lar

Grau de escolaridade: segundo grau.

Estado civil: viúva

Qual é o significado de cuidar para você?

Zelar, sensibilizar, interesse pelo desenvolvimento do ser, integração sempre,

respeitar, enfim, amar.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim, muitas das vezes temos interesse de fazer do outro uma pessoa mais

realizada, mais centrada. Todavia não conseguimos alcançar nosso objetivo, pois a

pessoa é indiferente, insensível.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, persistência, paciência, presença constante, tolerância, zelo, confiança,

observância, alegria, respeito.

Você se sente bem cuidado?

Não. Às vezes, o “material” fala mais alto do que a convivência em nosso lar. O

computador veio para causar este distanciamento.

Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

41

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Sim, segurança, força maior para encarar os problemas. A importância do abraço

verdadeiro é, na verdade, um processo de mudanças em nossa vida: BIODANÇA.

Antes do teu olhar, não era, nem será depois – primavera. Pois vivemos do que perdura,

Não do que fomos. Desse acaso

do que foi visto e amado: - o prazo Do criador na criatura...

Não sou eu, mas sim o perfume que em ti me conserva e resume o resto, que as horas consomem.

Mas não chores, que no me dia

há mais sonhos e sabedoria que nos vagos séculos do homem.

(MEIRELES, 2001)

e) Vermelho escarlate

Idade: 52 anos

Profissão: professora

Grau de escolaridade: pós-graduação.

Estado civil: casada

Qual é o significado de cuidar para você?

Cuidar, para mim, é fazer algo para alguém pensando nesse alguém. O que ele

gosta? O que posso fazer para ele que é novidade, que acho que ele vai gostar?

(gosto de cozinhar coisas gostosas e, quando possível, “chiques” para quem eu

amo, independente de ser homem ou mulher).

Cuidar é atender ou fazer o que o outro me diz que quer ou precisa (quando eu

posso, eu faço “na hora”).

Cuidar é fazer um agrado (mesmo quando a pessoa não está esperando, sabe, “tipo

surpresa”), para ela saber que pensei nela (e, geralmente, quem se sente mais

gratificada sou eu, e percebo que, na maioria das vezes, essa pessoa “cuida” de

mim também, me inclui na vida dela e quer que eu fique mais próxima dela). Juro, eu

não faço nada para receberem troca, mas o amor tem retorno.

42

Cuidar é ouvir o outro quando ele quer falar de qualquer coisa e conversar com ele

me posicionando também (muitas vezes, consigo exercer esse direito. E quando

falo, pondero o que penso sobre o assunto, sempre pergunto se a pessoa quer a

minha opinião primeiro. E, quando ele aceita, eu falo da minha experiência, se eu já

tiver vivido uma parecida. E, se não vivi a experiência, ainda digo o que penso que

pode acontecer de bom ou ruim se ela fizer “isso ou aquilo”. Se é algo que eu tenho

idéia para incrementar ou ajudar, eu falo tudo que ela quiser ou precisar que eu faça.

Às vezes, eu me calo, pois acho melhor e digo a ela para fazer “o que o coração

dela pedir” e que, se precisar de mim, sabe onde me encontrar e pode chegar a

qualquer hora).

Digo sempre às pessoas que amo “pode contar comigo pro que der e vier”. Isso,

para mim é cuidar. Resumindo: É SERVIR.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim. Acredito que a minha resposta é um desdobramento do que foi dito

anteriormente.

Acompanhar a pessoa nos momentos que ela quiser e precisar de mim.

Fazer comidas gostosas para essa pessoa (nos finais de semana, eu sempre

posso).

Ligar para ela, sempre que possível, querendo saber como vão as coisas e ouvi-la

de coração aberto.

Cuidar é fazer o que é preciso para uma pessoa, de forma que ela se sinta bem, que

tudo que ela vai fazer vai dar certo porque eu estou por perto e posso resolver

qualquer contratempo que aparecer. (Às vezes, não faço nada, mas fico lá....para

ela se sentir mais segura, sabe).

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, carinho, atenção, empatia, agrado, lealdade, sinceridade, proteção,

acompanhamento, ternura.

Você se sente bem cuidado?

Sim. Na maioria maciça das vezes, só não me sinto cuidada quando peço a alguém

para fazer algo por mim, porque “preciso” que ela o faça (porque não sei ou não

43

consigo), e ela se nega a fazê-lo, por pirraça ou raiva. Aí, eu fico chateada, sabe.

Conheço pessoas que acham que eu tenho que saber tudo, e isso eu não sei.

Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Antes eu não sabia pedir; eu sabia mandar (professora tem dessas coisas. Acha que

todas as pessoas são como as crianças que a gente dá aula). Eu “virava no

arranque” e “apelava” com muita facilidade. Hoje, quase nunca faço isso, pois

aprendi que cada um tem um motivo para fazer as coisas do jeito que faz.

A Biodança me fez aprender o que é empatia (e o modelo de ajuda também). Antes

eu falava que tratava os outros como queria ser tratada, e na Biodança aprendi a

tratar o outro como “ele quer ser tratado”. Mas, o mais importante que aprendi foi o

cuidar de mim, a aceitar e compreender meus desejos e instintos e aceitá-los (pois

eles são meus), e eu mereço cuidar deles com todo carinho. Aprendi a me aceitar

como sou, a gostar de mim como sou, a me ver como uma pessoa bonita e cheia de

graça. Aprendi a cuidar da MINHA vida sem me culpar por querer algo diferente do

outro. Essa foi a minha maior descoberta. Depois de “des-coberto”, não há como

cobrir mais.

Descobri que sou humana, que tenho arestas para aparar, mas que tenho muitas

qualidades também, e me apropriei delas.

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas da roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração.

(PESSOA, 1996)

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f) Roxo limão

Idade: 59 anos

Profissão: professora

Grau de escolaridade: pós-graduação.

Estado civil: divorciada

Qual é o significado de cuidar para você?

Para mim, cuidar é estar inteiro na relação interpessoal; é perceber o outro e a si

mesmo; é perceber os sentimentos, as emoções, as dores; é estar vivo e importar-se

com a vida.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Podíamos dizer que há:

- cuidar como zelo amoroso;

- cuidar como obrigação profissional;

- cuidar por pressão de outrem.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Alegria, tristeza, solidariedade, amor, medo, ansiedade.

Você se sente bem cuidado?

Sim. Tanto por familiares quanto pelas pessoas que escolho. Com a maturidade,

percebemos que temos que nos cuidar, em vez de esperar que o outro cuide de nós.

Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Sim. Com a biodança, creio que fiquei mais amorosa e aprendi a manifestar isso

com maior facilidade. Sinto que ampliou minha percepção do outro e de mim

mesma.

Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar

Onde se sente ou pensa.

45

Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia Indiferente a todos.

Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam

A quem me sei: eu ‘screvo.”

(PESSOA, 1996)

h) Amarelo

Idade: 48 anos

Profissão: servidor público

Grau de escolaridade: superior - Psicologia

Estado civil: solteiro

Qual é o significado de cuidar para você?

Cuidar é estar vinculado com o outro de forma inteira, percebendo as necessidades

e interagindo de uma forma mais próxima da vida do outro. É necessário respeito

pelo desejo do outro e compreensão e aceitação desse desejo.

Em sua opinião, existem diferentes formas de cuidar? Se afirmativo, quais são?

Sim, existe. Acredito que se possa cuidar de forma direta ou indireta, econômica ou

emocional, ou apenas de forma amorosa. Varia de acordo com as condições do

cuidador. O que ele dá conta de elaborar dentro dele, perceber o que ele tem

disponível e, principalmente, o que ele dá conta de se doar sem se violentar. Muitas

vezes, a ansiedade em ajudar pode ser confundida com cuidar. Cuidar é muito além

do ato de ajudar. Cuidar requer perceber, conhecer, ouvir, sentir o cuidado e o

cuidador é a integração dessas duas pessoas.

Cite até 10 sentimentos quando falo a palavra “cuidar”

Amor, afeto, amparo, apoio, compreensão, empatia, humildade, desapego e

aceitação.

Você se sente bem cuidado?

Estou cuidando bem de mim.

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Ocorreu alguma mudança no significado de cuidar após o contato com a Biodanza?

Se afirmativo, quais foram as mudanças?

Sim. Experimentei e exercitei a importância do contato das diversas formas de me

sentir e sentir o outro através do tocar, olhar e ouvir, e, assim, perceber o pulsar de

vida, a força e fragilidade, medo e coragem, chegando o mais próximo possível do

seu/meu limite do desejo de disponibilizar amorosamente no cuidar e ser cuidado.

Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora A mágica presença das estrelas!

(QUINTANA, 1997)

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5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Falar sobre o cuidar é sempre prazeroso, pois, afinal estamos falando de algo

intrínseco ao ser humano. Somos seres de relação. Não podemos viver sozinhos. A

nossa lida na vida inclui a existência do outro. Este encontro com o nosso

semelhante, com a natureza ou com a energia cósmica, sentida e verificada em

cada amanhecer, no céu azul ou estrelado, é essencial para a nossa existência.

O devir humano, constituído em sua integralidade, só pode existir se o amor, a

emoção fundante das relações plenas de cuidado, estiver presente nas entranhas de

todas as pessoas.

Maturana e Yáñez descrevem:

A origem do humano surge na origem espontânea da família como um modo próximo permanente de conviver na intimidade do prazer e do bem-estar psíquico-corporal-relacional que faz possível o surgimento do linguajear no fazer coisas juntos como um conviver em coordenações recursivas de coordenações de fazeres consensuais. Ao surgir o humano desse modo, torna-se evidente que é o amar a emoção que funda a família ancestral no sentir íntimo e relacional que gera, conserva e realiza o humano como um modo de viver e conviver. (MATURANA; YÁÑEZ, 2009, p. 33)

A análise dos relatos dos dois grupos revela que existe a preocupação de ambos em

ter um olhar mais dirigido à integralidade do humano. A palavra “amor”, foi

mencionado por mais de 70% dos participantes. O amor mencionado contempla a

atenção pelo outro, o respeito, a vinculação em sua inteireza; ou seja, o ser com

alguém, uma coexistência plena e duradoura.

O sentido de cuidar para os dois grupos evidencia a percepção de abrangência

maior do cuidar, não se restringindo somente ao aspecto físico. De outro lado,

verifica-se que no grupo que teve contato com a Biodanza o significado do cuidar e

os sentimentos expressos pela palavra “cuidar “ mostram uma maior preocupação

com a alteridade, com a empatia e, principalmente, com a percepção do autocuidado

e com maior vinculação e resgate de si mesmo, aspectos fundamentais para um

Cuidar mais integral.

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No segundo grupo, algumas pessoas vivenciaram a resignificação existencial, que

foi crucial para uma melhor pratica do cuidar, como se percebe na fala de Ouro: “A

Biodança me fez tocar o transbordante reservatório de minhas possibilidades

existenciais, através de contatos de intimidade, vinculação, reconhecimento e

resgate de mim mesma – da minha original essência. Nessa trajetória de

ressignificação pessoal, descobri que para dar completude ao exercício de aprender

a me aprender era preciso encontra com o outro. E o encontro é sempre um ato de

cuidar, é um “estar-com” pleno; pleno de respeito, de atenção, de entrega, de amor e

de reconhecimento daquelas dores, angústias, medos ou daqueles prazeres,

desejos e alegrias desse outro com quem encontro”.

Esta resignificação existencial percebe-se também em Roxo limão: “Com a

Biodança, creio que fiquei mais amorosa e aprendi a manifestar isso com maior

facilidade. Sinto que ampliou minha percepção do outro e de mim mesma.”

Verifica-se também, que as linhas de vivência da Biodanza, fundadas no Princípio

Biocêntrico, são fundamentais para a ampliação do sentido de cuidar, como se

verifica no relato de Amarelo: “Experimentei e exercitei a importância do contato das

diversas formas de me sentir e sentir o outro através do tocar, olhar e ouvir, e, assim

perceber o pulsar da vida, a força e fragilidade, medo e coragem, chegando o mais

próximo possível do seu/meu limite do desejo de disponibilizar amorosamente no

cuidar e ser cuidado”.

Os sentimentos expressos pelo grupo 01 e 02 foram:

Grupo 1:

1. Rosa: amor, respeito, carinho, confiança, proteção, bondade, justiça, doação,

fé e esperança.

2. Azul: dependência, imaturidade, poder, irresponsabilidade, cristandade,

ideologia, sabedoria, mistério, boa intenção e desafio.

3. Amarelo: amor, compaixão, carinho, afeto, alegria, fé, humildade, simpatia,

liberdade e esperança.

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4. Lilás: zelar, educar, dar carinho, dar amor, humanização, doação, dar

atenção saber, ouvir, entender e instruir.

5. Marrom: acolhimento, respeito, dignidade, carinho, amor, paciência, fé,

esperança, cura e medo.

6. Vermelho: atenção, carinho, cuidado, assistir e doar-se.

7. Bonina: amor, atenção, carinho generosidade, paciência, tranqüilidade,

sabedoria e bom ouvinte.

Grupo 2:

1. Prata: amor, atenção, doação, entrega, saúde, disponibilidade, religiosidade,

amizade, discernimento e aprendizagem.

2. Ouro: alteridade, compaixão, delicadeza, respeito, atenção, aconchego,

carinho, amor e dignidade.

3. Rubi: amor, reformular a existência, fé, acreditar, responsabiliza-se,

autoconfiança, alegria, inovar, intuir, construir uma existência, capacidade de

dar e receber e afeto.

4. Verde água: amor, persistência, paciência, presença constante, tolerância,

zelo confiança, observância, alegria e respeito.

5. Vermelho escarlate: amor, atenção, empatia, agrado, lealdade, sinceridade,

proteção, acompanhamento e ternura.

6. Roxo limão: alegria, tristeza, solidariedade, amor, medo e ansiedade.

7. Amarelo: amor, afeto, amparo, apoio, compreensão, empatia, humildade,

desapego e aceitação.

Portanto, a análise dos resultados indica que a compreensão e a vivência do

Princípio Biocêntrico oportunizadas pela prática da Biodanza podem ser um fator

modificador do ato de cuidar, tornando esta ação mais integradora e fundamental

para a fase planetária da humanidade.

Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram,

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ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas"

e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.

Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.

(PRADO, 2010)

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6 REFLEXÕES SOBRE O ESTUDO (CONCLUSÕES)

Terminar um trabalho é sempre difícil. É como gestar um filho, tentando fazê-lo

nascer o mais lindo possível, e, quando nasce, sinto a beleza e quero mostrá-lo para

todos. Mas ao mesmo tempo sei que terá que seguir o seu rumo, ser no mundo,

coexistir... Este é o meu sentimento no momento.

Falar sobre o cuidar foi e é muito prazeroso. Faz parte da minha “lida na vida”...

Ao entrar em contato com a Biodanza, a minha busca era de uma autoreflexão sobre

o meu existir. Apesar de cuidar diariamente de pessoas, sentia que o real sentido de

cuidar estava perdido, vazio, sem sentido, nesse mundo de velocidade constante e

de permanente reafirmação do ter e do parecer, com o esquecimento do ser.

O curso de facilitador de Biodanza trouxe frescor e reestruturação em minha vida. O

vazio existencial foi substituído pelo redescobrimento de minhas potencialidades e

pela reafirmação do meu vínculo comigo mesmo, com os outros/natureza e como o

cosmos. Existir tornou-se menos “doído”, mais fascinante e desafiador. Verifiquei

que, para realizar uma ressignificação pessoal, necessitava descobrir o outro, ser

com o outro no mundo, enfrentando o que chega sem deixar escapar o brilho no

olhar da minha criança interior, curiosa e sapeca, ainda viva dentro de mim. Percebi

que esta possibilidade de ressignificação existencial somente se efetiva solidamente

se existir o amor como sentimento fundante do meu ser, amor puro, simples,

respeitoso pela alteridade, amor verdadeiro.

Maturana ensina:

O amar ocorre no fluir do viver no presente na legitimidade de tudo, sem dualidade, sem fazer distinções de bom e mau, de belo e feio. Isto é, o amar ocorre no fluir do viver em que alguém vive no domínio das condutas relacionais através das quais esse mesmo alguém – a outra, o outro e tudo o que mais – surge sem intenção ou propósito como legítimo outro na convivência com alguém. O amar é visionário, pois ocorre na ampliação do ver (do ouvir, do sentir, do cheirar, do tocar) próprio do espaço das condutas relacionadas que ocorrem sem preconceitos, sem expectativas, sem generosidade, sem ambição. O amar não quer nem busca as conseqüências do amar. O amar não é bom nem mau, simplesmente é o viver no bem-estar trazido pelo viver sem o sofrimento que traz o apego ao valor ou sentido que se vê no perdido ou no que se pode perder (MATURANA; YÁÑEZ, 2009, p. 83-84).

52

Quando acolhemos, quando cuidamos do outro, realiza-se a coexistência surgindo

assim o amor como fenômeno biológico. Este amor só adquire o real sentido se

colocarmos a vida, o existir com, o estar no mundo com alguém, o cohabitar, como a

prioridade do existir. A preservação da vida amorosamente é a diretriz primeira do

nosso coexistir.

Mais uma vez Rolando Toro se antecipa e mostra todo o seu ineditismo visionário ao

lançar o Principio Biocêntrico, que é a síntese de tudo isso, ou seja, o cuidar e o

amar em sua forma mais genuína só existem se colocarmos a VIDA como

norteadora de tudo.

Termino com as lindas palavras de Rolando:

“O Principio Biocêntrico é, portanto, um ponto de partida para estruturar as novas

percepções e as novas ciências do futuro relativas à existência: atribuição de

prioridade ao ser vivo; consideração do determinismo como ilusório; abandono

progressivo do pensamento linear em favor da sincronicidade e da ressonância dos

acontecimentos; desqualificação das filosofias que buscam uma verdade única, pois

dentro de cada verdade se esconde outra”.(ROLANDO, 2005, p.51)

“Diante da solidão inexorável do infinito, os seres humanos buscam uma resposta

olhando-se nos olhos...

Na luz da origem, na clareira paradisíaca da realidade, nós nos buscamos

reciprocamente” (ROLANDO TORO, 2005. p. 52).

VIVA A VIDA !!....

Porque temos mais energia do que recebemos. Temos luz nos olhos e pássaros migratórios

Por que o impossível pode acontecer. Nossos passos plenos de convicção

Por labirintos de amor... Argonautas pelo mar desconhecido

Em busca do bezerro interior Por que temos a energia do milagre. A ilusão, o brote no carvalho cortado

O furacão com nome de mulher E o coração palpitando

Mesmo sem amor

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Por que o impossível pode acontecer. O anjo azul em nosso leito

Esperando seu novo destino Porque o milagroso tem cara de anjo.

Temos filhos no curto espaço de cem anos E o nosso amor é infinito.

Temos uma carta de amor nas mãos E grandes trigais dourados Em uma espiga de sonho.

Por que o impossível é o cotidiano.

(TORO, 2005)

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REFERÊNCIAS

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BANDEIRA, Manuel. 50 poemas escolhidos pelo autor. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 96p.

BUBER, Martin. Eu e Tu Martin Buber: tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 8.ed. São Paulo: Centauro, 2004. 152p.

MEIRELES, Cecília. Antologia poética. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 307p.

DARTIGUES, André. O que é fenomenologia? 10.ed. São Paulo: Centauro, 2008. 152p.

D’ALENCAR, Barbara Pereira. Biodança como processo de renovação existencial do idoso: analise etnográfica. 2005. 220f. Tese (Doutorado em Enfermagem) – Escolas de Enfermagem de São Paulo e Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005.

GOIS, Cezar Wagner Lima. Biodança: identidade e vivencia. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. 162 p.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, Parte I, tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. 325 p.

LELOUP, Jean-Yves. Uma arte de cuidar: estilo alexandrino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 149p.

LUFT, Lya. Perdas & Ganhos. 9.ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. 156p.

LUFT, Lya. Pensar é transgredir. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. 185p.

MATURANA, Humberto; YÁÑEZ, Ximena. Habitar Humano em seis ensaios de Biologia-Cultural. São Paulo: Palas Athenas, 2009. 319p.

MURRAY, Roseana. Manual da delicadeza de A a Z. São Paulo: FTD, 2001. 31p.

55

PEIXOTO, Adão José; HOLANDA, Adriano Furtado (Coords.). Fenomenologia do cuidado e do cuidar: perspectivas multidisciplinares. Curitiba: Juruá, 2011. 132p.

PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos e outros poemas / (poesia completa de Alberto Caeiro). São Paulo: Landy Editora, 2006. 150p.

PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: L&PM. 1996. 132p.

PRADO, Adélia. A duração do dia. Rio de Janeiro: Record, 2010. 103p.

QUINTANA, Mário. Quintana de bolso. Porto Alegre: L&PM, 1997.164p. RIBEIRO, Kelen Gomes. Biodança e saúde percebida: um olhar Biocêntrico sobre a saúde. 2008. 154f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Humanidades, Universidade Federal do Cear. Fortaleza, 2008.

ROSELLÓ, Francesc. Antropologia do Cuidar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. 196p.

TORO, Rolando. Biodanza. 2.ed. São Paulo: Olavobras, 2005. 160p.

WALDOW, Vera Regina. Cuidado humano: o resgate necessário. 3.ed. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2001. 202p.