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Page 1: Um novo capítulo da novela AES - ie.ufrj.br · Brasiliana é uma holding que controla a Eletropaulo, a maior distribuidora de energia da América Latina, distribuidora da energia

Um novo capítulo da novela AES

Carlos Lessa Li, no Valor de 09/07, que a AES "quer ficar com controle da Brasiliana". A Brasiliana é uma holding que controla a Eletropaulo, a maior distribuidora de energia da América Latina, distribuidora da energia para São Paulo, o coração industrial do país, com mais de 20 milhões de habitantes na RMSP. A Brasiliana é também dona do controle da Geradora Tietê, uma jóia como empresa produtora de eletricidade, com usinas totalmente amortizadas. Hoje, 50,1% das ações de controle da Brasiliana são de propriedade da AES, e 49,9% do BNDES. Sua atual configuração acionária teve início nos tempos de euforia liberalizante, quando FHC vendeu a Light para uma associação da Eletricité de France com a AES, posteriormente separadas. Tal como um cogumelo, a AES cresceu na estufa da financeirização mundial; adquiriu posições em mais de 25 países. Entrou no Brasil com um financiamento do BNDES. Assim, pôde pagar "à vista" aos donos da Light e, com isto, alimentar o Tesouro Nacional, ao mesmo tempo em que chupava recursos do BNDES. Nesta triangulação, característica dos "incentivos" aos adquirentes de ativos estratégicos brasileiros, o Tesouro recebia recursos que, em última instância, eram seus, pois saíam do BNDES que, em troca de seus empréstimos, recebeu da AES uma confissão de dívida. Ao assumir a presidência do BNDES, em 2003, encontrei dois enormes débitos da AES. Mais de US$ 1 bilhão pelo financiamento de sua "aquisição" da Eletropaulo e mais de US$ 500 milhões devidos pela aquisição de 33% do capital de Cemig, a melhor empresa elétrica do Brasil central. A AES, apesar de nutrida pelos "incentivos a boas compras", havia quitado poucas prestações da Eletropaulo e nenhuma da Cemig. No caso desta última, havia uma pendência judicial, pois o governador Itamar Franco havia corretamente cancelado o contrato de venda dos 33%, que continha cláusulas conferindo à Southern Eletric do Brasil (AES) direitos de controle de gestão de 100% da estatal mineira. O tamanho da dívida da AES e sua desfaçatez em não pagar ao BNDES escandalizaram minha diretoria. O presidente Lula entendeu a prioridade da cobrança e garantiu que o BNDES teria total liberdade para "negociar" a recuperação do débito. O BNDES criou um grupo coordenado pelo diretor Roberto Timóteo, com cerca de dez engenheiros, economistas, advogados e contadores, para esta "negociação". Ao analisar a situação, constatamos que o BNDES havia emprestado fortunas a subsidiárias da AES estabelecidas nos paraísos fiscais do Caribe. Em relação à dívida principal, havia uma cadeia de quatro degraus paradisíacos antes da matriz norte-americana. Qualquer ação judicial seria prolongada e de difícil execução. A AES tinha outra "vantagem tática": o Brasil é signatário da Convenção de Basiléia, pela qual qualquer instituição financeira, a começar a cobrança de um débito vencido, tem de provisionar, no mesmo ano, a totalidade da dívida. Para o BNDES, acatar esta regra significaria amargar um colossal débito bancário, que corroeria seu patrimônio e faria o balanço de 2003 apresentar um enorme prejuízo, prejudicando seu trânsito financeiro pelo mercado internacional. Creio que astutamente a AES tenha intimidado passadas administrações do BNDES. Tentamos negociar, de forma civilizada, durante cinco meses, mas a AES parecia estar "empurrando com a barriga". Resolvi dar início à cobrança. Produzi, em julho de 2003, um péssimo balancete. Fiz isso com a certeza que produziria uma onda

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de mal-estar nos acionistas minoritários da AES e demais financiadores do "cogumelo". A negociação mudou da água para o vinho. Durante meses, até dezembro de 2003, tivemos uma "queda de braço", pois o BNDES queria não apenas a Eletropaulo, mas também a Tietê e a Uruguaiana (que não haviam sido dadas em garantia aos passados contratos e financiamentos). O filé mignon, em termos de caixa, era a Tietê. A AES pagou ao BNDES com os 49,9% das ações e US$ 500 milhões. Incluímos suas ações da Brasiliana, e com um dia de atraso em qualquer prestação recuperaríamos toda a empresa. O acordo de acionistas, como é usual nestes casos, contém o direito de preferência. Havia a expectativa de que o Brasil de Lula iria desmanchar o novelo das privatizações de FHC. Provavelmente uma associação Furnas-Cemig poderia comprar a parcela estrangeira da Brasiliana. Sonhei com o BNDES financiando esta recuperação de soberania e de raio de manobra nacional em matéria de energia. Baldadas esperanças, vi serem procrastinadas as decisões de ampliar a geração hidrelétrica do país; assisti ser engendrado um novo "apagão" para os planos de expansão de empresas industriais; sabíamos os riscos de estimular o consumo de gás. Porém, a prioridade do governo Lula foi prosseguir processo de privatização das redes de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Pelos jornais, tomo notícia que empresas de cerâmica, químicas e têxteis estão paralisando projetos de expansão por insegurança energética. Não será o PAC, atrasado em quase um quadriênio, que irá recriar as externalidades de infra-estrutura em energia e logística que o Brasil necessita. Porém, jamais pude imaginar que houvesse miopia a ponto de anunciar a venda, em leilão, das ações do BNDES na Brasiliana. Ninguém pagará à vista o valor de US$ 3 bilhões estimado para os 49,9% de ações que o BNDES possui. Financiar a AES é impensável: até hoje ela não honrou sua dívida pela compra dos 33% de ações da Cemig. Creio que esta dívida já atinge US$ 1 bilhão. É incrível a ousadia de um grupo useiro e vezeiro em truques e artimanhas para procrastinar o pagamento, especializado em criar derivativos sobre derivativos com vistas à obtenção de material de crescimento para seu "cultivo de cogumelos". É incrível que o governo brasileiro admita qualquer possibilidade desse grupo continuar devedor. Imagino que o Lula pré-presidente pensaria em recuperar, para a nação, o controle da Brasiliana; agora é displicente ante o retorno de um grupo que, com malícia, se propõe a ampliar o parque eólico no Ceará e anuncia "investimentos" de US$ 360 milhões nesta modalidade de energia renovável ultra-simpática em tempos de temor com o aquecimento global. A AES deveria honrar seu débito de US$ 1 bilhão, ao invés de anunciar investimentos nos "ventos do Nordeste". Gostaria de conhecer a posição do professor Luciano Coutinho e da atual diretoria do BNDES. Se a Brasiliana for vendida, nossa gestão (2003-2004) dará um lucro de US$ 2,5 bilhões ao BNDES. Acho que a Brasiliana é uma ótima "aplicação" financeira para o BNDES e é sempre possível a emissão de derivativos. Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira do Instituto de Economia da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) (endereço eletrônico: [email protected]). Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 30 julho de 2008.