um mundo de letras práticas de leitura e escrita cagliari, koch, travaglia

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SUMÁRIOSUMÁRIO

PROPOSTA PEDAGÓGICA ........................................................................................ 03Um Mundo de Letras: práticas de leitura e escritaMaria Angélica Freire de Carvalho e Rosa Helena Mendonça

PGM 1 – LINGUAGEM: ORALIDADE E ESCRITA ....................................................... 11O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetizaçãoLuiz Carlos Cagliari

PGM 2 – TEXTO: LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS .......................................... 26Texto: leitura e produção do sentidoIngedore G. Villaça Koch

PGM 3 – GÊNEROS TEXTUAIS: OBJETOS DE ENSINO ............................................. 41Gêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensino Sandoval Nonato Gomes-Santos

PGM 4 – COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS ................................................ 63Leitura e escrita: produção de sentidosMônica Magalhães Cavalcante

PGM 5 – A GRAMÁTICA NA ESCOLA ............................................................................80Língua Portuguesa: o ensino de gramáticaLuiz Carlos Travaglia

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 2 .

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PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA

Maria Angélica Freire de Carvalho1

Rosa Helena Mendonça2

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um

produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o

sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se

faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa

textura – o sujeito se desfaz nele qual aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções

construtivas de sua teia3.

Com os estudos da Lingüística Textual4, o texto passou a ser tomado como objeto central de

ensino. Assim, nas aulas de Língua Portuguesa, as atividades de leitura e de produção de

textos ganharam mais espaço. Entretanto, a abordagem precisa ser ampliada, no sentido de

entender-se o texto, também, como objeto de interação e, portanto, de aprendizagem, para

além do contexto escolar e para além, é claro, das aulas de Língua Portuguesa.

Pensar a forma como se organizam os enunciados e como interagimos com os mais variados

interlocutores nas práticas sociocomunicativas é fundamental para um fazer pedagógico

produtivo. Por essa razão, é importante trazer, mais uma vez, como temática para o programa

Salto para o Futuro, idéias que fundamentam o texto como objeto de ensino e de

aprendizagem.

As práticas de leitura e de escrita estiveram presentes nas discussões temáticas que

compuseram inúmeras séries do Salto para o Futuro, ao longo dos quinze anos de exibição do

programa. Com o propósito de ampliar as reflexões sobre tais práticas, mais uma vez, elas

são o mote de uma série que enfatiza o texto como unidade de ensino, ao abordá-lo sob a

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perspectiva da oralidade e da escrita, atentando para os múltiplos ângulos de observação, tanto

em relação à sua constituição, estrutura e linguagem, quanto ao seu entendimento –

compreensão/interpretação5– pelo leitor/ouvinte.

As dificuldades apontadas, em geral, tanto pelos professores quanto pelos alunos, no dia-a-dia

escolar, em relação às atividades com o texto, destacam-se como o grande “nó” para um

saber-fazer pedagógico. E é a forma de lidar com o texto, seja para a sua escrita, seja para sua

intelecção, em suma, para a produção de sentidos, que permitirá desenvolver uma

aprendizagem significativa com a linguagem na escola.

O domínio da escrita, favorecido pelo contato com diferentes textos nas classes de

alfabetização, por exemplo, estende-se a todos os segmentos de ensino, aprimorando-se por

meio das práticas sociais com a linguagem e legitimando-se por meio de um trabalho

pedagógico que tome o texto como fonte e ferramenta de ensino desde as séries iniciais.

Esse trabalho deverá desenvolver-se de modo a considerar o texto além da sua estrutura

organizacional, englobando a linguagem que o caracteriza, o contexto de produção, os

espaços de circulação e os possíveis interlocutores. Uma abordagem significativa para o texto

em sala de aula, portanto, deverá compreendê-lo como uma proposta de sentidos suscetível às

interações.

Um problema que se pode destacar em relação às práticas de leitura e de escrita no ambiente

escolar é a artificialidade com que, muitas vezes, se trata a relação autor-texto-leitor e, ainda,

o ensino da gramática tomando-a como um fim em si mesma. Exemplos de práticas que

abordam o texto somente sob o ponto de vista estrutural, desvinculado de um contexto de

produção e de circulação, e que não levam em conta a sua proposta comunicativa podem

resultar num trabalho com a escrita e com a leitura meramente formal, distanciado de uma

concepção de texto como unidade de ensino e como forma de interação.

Escolher determinadas “peças” de linguagem e não outras e, do mesmo modo, privilegiar uma

dada forma composicional em relação às inúmeras possibilidades de apresentação dos

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enunciados6 são estratégias do produtor que direcionam a construção de sentidos. Essas

escolhas são realizadas pelo produtor do texto, levando em conta conhecimentos partilhados,

ou presumidamente partilhados, pelo leitor. São tarefas esperadas do leitor: a identificação de:

tais estratégias e, ainda, a articulação dos conteúdos apresentados no texto, de modo a se

aproximar de um sentido7 pretendido pelo produtor.

O texto, assim visto, é concebido, portanto, como espaço de interação, constituindo-se por

meio dos processos de coesão, construídos sob sua articulação escrita, e também leitora8, e de

coerência que se estabelece nos diferentes contextos comunicativos e pelos diversos

interagentes.

Apresentar aos alunos esses caminhos de contato/interação com as práticas de letramento

contribui para que o processo de autoria9 se construa no ambiente pedagógico, abrangendo as

diferentes disciplinas escolares. Reconhecer as marcas constituidoras da textualidade, aceitar

tais marcas como “provocações” de sentidos e identificar os propósitos comunicativos são

passos necessários para a produção de textos, tanto para a leitura quanto para a escritura, pois,

conforme nos lembra Marcuschi (1998, p. 4), produz sentidos tanto quem escreve quanto

quem lê textos10.

Em suma, escolher determinadas marcas lingüísticas em meio a muitas outras oferecidas pela

língua, apresentá-las, sistematizá-las, adequá-las aos usos de linguagem, ao cotidiano e à

norma, inscrevê-las nos variados contextos de significação são compromissos de uma prática

que pode, e deve, sistematicamente ser vivenciada na escola. Inclui-se, também, nesse

compromisso, desenvolver estratégias de domínio da ortografia, da gramática da língua/texto,

por meio de atividades significativas com a linguagem, visando à descoberta de caminhos

para o desenvolvimento da competência textual dos alunos. Para isso, é necessário um

trabalho de seleção e de combinação dos elementos lingüísticos no universo das inúmeras

possibilidades que a língua oferece.

Nessa perspectiva, o trabalho com textos nas aulas de Língua Portuguesa oferecerá subsídios

para que a relação do aluno com o texto nas outras disciplinas escolares se amplie, de modo

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que os processos de compreensão/interpretação possibilitem a construção de conhecimentos e

o desenvolvimento da autoria, princípios caros a uma prática pedagógica que se pretende

crítica e participativa.

Ao considerar os aspectos apresentados, a série Um Mundo de Letras: práticas de leitura e

escrita11 toma, ao longo dos cinco programas, o texto como eixo norteador das práticas com a

linguagem na escola, desde a aquisição da escrita, numa perspectiva de alfabetização por meio

de textos, práticas de letramento, ao seu domínio e à habilidade leitora, processos que se

expressam no exercício da autoria, tanto nas práticas de escrita quanto nas de leitura de textos.

A série compreende também pontos de encontro e de desencontro na abordagem dos registros

oral e escrito no fazer pedagógico: a transposição de marcas da oralidade para a escrita, o que

é comum na aquisição deste sistema; dificuldades na aprendizagem da ortografia; adequações

necessárias – e importantes – na construção dos mais variados gêneros discursivos e seus

contextos: do cotidiano aos usos literários, tecnológicos e científicos nas práticas

comunicativas. Essas práticas constituirão assuntos para debates que se pretendem

enriquecedores, sem o objetivo de esgotar a complexa discussão sobre a linguagem no

cotidiano escolar, seus múltiplos aspectos e o domínio normativo.

Ao longo dos cinco programas, serão discutidos temas como, por exemplo: (i) a cultura da

oralidade e a sua importância para o desenvolvimento da escrita; (ii) a leitura de textos como

atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos; (iii) os gêneros discursivos

no cotidiano escolar; (iv) a produção de textos e o domínio das estratégias de organização da

informação e da estruturação textual; (v) a aula de Língua Portuguesa: ensino e gramática .

Esta série pretende, enfim, oferecer aos professores, de diferentes segmentos de ensino e de

áreas do saber, conhecimentos e reflexões que se podem ampliar sobre um fazer pedagógico,

bem como sobre alternativas e sugestões para um trabalho que considere o aluno, antes de

tudo, como sujeito de aprendizagem que, essencialmente, inscreve sentidos na sua relação

constante, colaborativa e co-construtiva na e pela linguagem.

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Pontos para reflexão ao longo da série:

• Que concepção de língua/linguagem subjaz às práticas de ensino de Língua Portuguesa?

• De que forma oralidade e escrita perpassam as práticas sociais e escolares de linguagem?

• Como considerar as peculiaridades do ensino/aprendizagem da escrita, tomando como questão político-pedagógica o fato de grande parte dos alunos das escolas públicas ser oriunda de comunidades em que a cultura oral é o traço predominante?

• Como conceituar alfabetizar e letrar? O que significa alfabetizar letrando?

• O que significa tomar o texto como elemento central das práticas de ensino?

• Qual a importância de, ao se trabalhar com o texto na escola, enfocá-lo com um todo formado de elementos constitutivos que precisam ser analisados em suas especificidades?

• De que forma contemplar, nas práticas escolares, textos de diferentes gêneros/tipos, preservando o debate sobre seus contextos sociais de circulação?

Temas que serão discutidos na série Um Mundo de Letras: práticas de leitura e escrita, que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC de 16 a 20 de abril de 2007:

PGM 1 – Linguagem: oralidade e escrita

Os objetivos do primeiro programa são: descrever práticas de linguagem, especificando as

características dos registros oral e escrito; destacar os usos de linguagem nos variados

contextos comunicativos, os gêneros que deles resultam. Neste programa, pretende-se

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 7 .

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enfatizar a cultura da oralidade e a sua importância para o desenvolvimento da escrita, discutir

a aquisição do registro escrito como um processo que se dá ao longo das séries iniciais e que

se estende às práticas sociais com a linguagem e, ainda, ressaltar a relação entre usos de

linguagem e norma lingüística: variações lingüísticas e ensino da língua.

PGM 2 – Texto: leitura e produção de sentidos

No segundo programa da série, a proposta é conceituar “texto”, enumerando seus aspectos

constitutivos e destacar sua importância como espaço de interação social. O programa visa,

também, abordar mecanismos de coesão e de coerência textual, diferenciar os tipos de

intertextualidade, apresentar os processos de escrita e leitura sob contextos diversos de

produção e de uso, estabelecer uma comparação entre as principais teorias sobre texto e

leitura, enumerar estratégias lingüísticas que estão em jogo na produção de sentidos (escrita e

leitura) e promover uma discussão sobre as práticas de ensino da leitura,

compreensão/interpretação de textos.

PGM 3 – Gêneros textuais: objetos de ensino

O terceiro programa se propõe a destacar os diversos usos de linguagem, a constituição dos

gêneros discursivos e estabelecer uma distinção entre gêneros discursivos/textuais e tipologia

textual, assinalando o enfoque teórico. E, ainda, enfatizar os domínios da estrutura

composicional e do estilo como recursos importantes para a escrita dos mais diferentes textos,

refletir sobre as práticas atuais de linguagem, ressaltar a presença dos gêneros digitais,

destacar o uso da linguagem nos gêneros digitais (televisão, internet) e refletir sobre a sua

concepção na prática pedagógica.

PGM 4 – Compreensão e produção de textos

O quarto programa tem como proposta apresentar estratégias de referenciação discursiva nos

diferentes gêneros e o seu funcionamento na produção de textos (escrita e compreensão).

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Sugerir atividades de sala de aula que levem em conta a diversidade constitutiva dos gêneros,

bem como as particularidades da linguagem. Objetiva, também, ressaltar a importância da

diversidade de gêneros para um trabalho com a produção de textos na escola, tanto para a

escrita quanto para a intelecção. Enfatizar a presença de textos literários na escola e o trabalho

com a multiplicidade de sentidos e, ainda, identificar a ambigüidade como recurso lingüístico

em gêneros como, por exemplo, publicitário e humorístico (piadas).

PGM 5 – A gramática na escola

No último programa da série, os debates vão focalizar a estruturação de uma abordagem

pedagógica de gramática a partir das três concepções básicas – mecanismo internalizado,

descritiva e normativa –, que se adeqüe ao ensino de língua que toma o texto como unidade de

ensino. Esta concepção pedagógica privilegia a dimensão significativa no ensino de

gramática. Pretende-se apresentar o trabalho com a gramática da língua em suas diferentes

variedades (inclusive a variedade oral e escrita) por meio de quatro tipos de atividades de

ensino de gramática: uso, reflexiva, normativa, teórica. O programa visa, ainda, discutir

sobre as concepções de erro e de adequação no ensino de gramática para a

produção/compreensão textual, tendo em vista a situação concreta e específica de interação

comunicativa em que se insere o ato de produzir/compreender textos e, conseqüentemente,

como pode/deve acontecer a intervenção do professor para orientar os alunos na seleção de

recursos lingüísticos para a constituição de sua fala e escrita.

Notas:

Doutora em Lingüística pela UNICAMP. Analista Educacional do programa Salto para o Futuro/TVEscola/SEED/MEC. Professora Adjunta de Língua Portuguesa do Centro Universitário Tecnológico Estadual da Zona Oeste/UEZO – Campo Grande/Rio de Janeiro. Consultora desta série.

2 Mestre em Educação pela PUC-Rio. Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro/ TVEscola/SEED/MEC. Consultora desta série.

3 BARTHES, Roland. O prazer do texto, São Paulo, Perspectiva, 1987, pp. 82-83.

4 Trata-se de um ramo da Lingüística que se desenvolveu na Europa, especialmente, na Alemanha e que tem como objeto de estudo o texto. Os estudos da Lingüística do Texto vêm

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se expandindo e ganhando destaque não só na Ciência da Linguagem, pois estabelecem diálogos com outras ciências como, por exemplo, Filosofia da Linguagem, Psicologia Cognitiva e Social, Antropologia, Ciências da Computação, entre outras. Para aprofundamento, sugerimos a leitura de KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à Lingüística Textual: trajetória e grandes temas. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

5 Nesta proposta não fazemos uma distinção entre compreensão e interpretação, tal como propõe a Análise do discurso, ciência que tem como objeto de estudo o discurso, seus processos e condições de produção, entendemos os processos como interdependentes. Uma distinção para esses conceitos encontra-se no livro ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo, Pontes, 5 ed., 2003: “(...) A interpretação é o sentido pensando-se o co-texto (as outras frases do texto) e o contexto imediato. (...) No entanto, a compreensão é muito mais do que isso. Compreender é saber como um objeto simbólico (enunciado, texto, pintura, música, etc.) produz sentidos. É saber como as interpretações funcionam. Quando se interpreta já se está preso em um sentido. A compreensão procura a explicitação dos processos de significação presentes no texto e permite que possam ‘escutar’ outros sentidos que ali estão, compreendendo como eles se constituem” (p. 26).

6 Bakhtin, em seu livro Estética da criação verbal, propõe a classificação dos gêneros, “formas mais ou menos estáveis de enunciados”, em primários – aqueles que fazem parte da esfera cotidiana da linguagem e que podem ser controlados diretamente na situação discursiva, tais como: bilhetes, cartas, diálogos, relato familiar..., e secundários - textos, geralmente, mediados pela escrita, que fazem parte de um uso mais oficializado da linguagem; dentre eles, o romance, o teatro, o discurso científico... que, por essa razão, não possuem o imediatismo do gênero anterior. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ---, Estética da criação verbal, [trad. francês. Maria Ermantina Galvão; revisão, Marina Appenzeller], 3 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 279-287.

7 É importante destacar que, como tem evidenciado KOCH em vários de seus trabalhos, não há “o” sentido para o texto, mas sentidos possíveis que se partilham no curso de interação. O produtor, por meio das escolhas lingüísticas, orienta o leitor na construção do(s) sentido(s) que se dá em variadas direções contando com informações textuais e extratextuais.

8 A coesão não se estabelece somente por meio de articuladores e/ou elementos encadeadores explicitados na superfície textual, mas também por meio da construção de inferências, isto é, “estratégias cognitivas por meio das quais o ouvinte ou o leitor, partindo da informação veiculada pelo texto e levando em conta o contexto (em sentido amplo), constrói novas representações mentais e/ou estabelece uma ponte entre segmentos textuais, ou entre informação explícita e informação não explicitada no texto”. KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo, Cortez, 2002, p. 50.

9 Para que o sujeito se constitua autor, ele deve ser capaz de organizar seu discurso extrapolando os aspectos formais e as regras que condicionam o texto, deve imprimir ao texto suas marcas, isto é, sua singularidade, sua expressividade enquanto produtor de sentidos. Sobre esse assunto sugerimos a leitura: POSSENTI, Sírio. Indícios de autoria, Revista Perspectiva, Florianópolis, v.20, nº01, p. 105-124, jan./jun. 2002.

10 MARCUSCHI, Luiz Antonio. Aspectos lingüísticos, sociais e cognitivos na produção de sentido. Texto apresentado por ocasião do GELNE, 2-4 de setembro, 1998. Mimeografado.

11 Esta proposta origina-se da série “Um Mundo de Letras” exibida pela TV Escola, canal da Secretaria de Educação a Distância (SEED/MEC), em cinco programas sob os títulos: “Um mundo imerso em palavras”; “O poder das histórias”; O som das palavras “; As normas da língua”; “Caminhos para ler o mundo”, respectivamente. A série original trata de questões relativas à alfabetização, letramento e cidadania, levando em conta as diferenças culturais e regionais do Brasil. Na série, os programas traçam um panorama de experiências propondo novas maneiras de abordar o processo de alfabetização e incentivar a prática da leitura.

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PROGRAMA 1PROGRAMA 1

LINGUAGEM: ORALIDADE E ESCRITA

O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetizaçãoO essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetização

Luiz Carlos Cagliari1

1. Introdução

O processo de alfabetização depende de muitos fatores, porém, o principal deles é como uma

pessoa consegue ler. O segredo da alfabetização está, pois, na leitura. O termo leitura tem

muitos sentidos, aplicando-se a muitas áreas e a habilidades diferentes, como ler o mundo, ler

um quadro, fazer uma leitura de um fato ou de um lugar, etc. Na escola, o significado mais

usual e mais importante é saber interpretar. A leitura é algo que traz uma mensagem que

precisa ser entendida. Para se chegar a essa habilidade, é preciso percorrer um longo caminho

de estudos e praticar o ato de ler inúmeras vezes, em inúmeras circunstâncias e com inúmeros

tipos de material escrito. Esse é o ponto de chegada. Mas, para alcançar esse objetivo, é

preciso dar os passos iniciais. A alfabetização é, exatamente, os primeiros passos dessa

caminhada. Mal comparando, a alfabetização se assemelha ao engatinhar de uma criança e

seus primeiros passos na vida. Andar e correr são habilidades que vêm depois.

2. Definindo o que é a alfabetização

As considerações acima nos permitem definir o processo de alfabetização como a habilidade

de saber ler no sentido primeiro do ato de ler, que é decifrar o que está escrito. O resto vem

depois.

A definição de alfabetização tem estreita ligação com o objetivo da escrita, que é permitir a

leitura. Todos os sistemas de escrita têm esse objetivo. Desse modo, nenhum sistema de

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escrita transcreve a fala de uma pessoa ou de grupo social, mas simplesmente a representa.

Esta é a razão pela qual cada um lê em seu dialeto. Um paulista lê uma revista em seu dialeto,

mas a mesma revista é lida por um carioca, um gaúcho, um nordestino, um português, um

angolano em diferentes dialetos. Seria ridículo que todos fossem obrigados a ler numa única

variedade. Diante disto, a escola precisa saber que seus alunos irão ler cada qual em seu

dialeto. A leitura no dialeto padrão é uma habilidade que vem mais adiante.

3. A linguagem oral e a linguagem escrita

Todo falante de uma língua fala comumente em seu dialeto, mas é ouvinte de todos os outros

que encontrar. A variação lingüística, entre outras características, traz marcas geográficas

(paulista, carioca, nordestino, português europeu, angolano, etc.), marcas sociais (dialeto dos

letrados, dos ricos, dialeto das classes pobres, dos advogados, dos jovens, dos idosos, etc.) e

marcas de estilo (dialeto padrão, estilo formal, informal, gíria, jargão, etc.). Essas marcas

representam regras diferentes de falar, regras gramaticais e regras de uso social. A variação

nas regras gramaticais não mostra um despreparo, uma deficiência, um descuido, mas um

sistema bem estabelecido. Somente a comparação de um sistema com outro é que mostra as

variações de uma mesma língua. Com os usos, a variação adquire valores sociais, atribuídos

pela sociedade e não pelo sistema gramatical. Quando alguém acha que uma pessoa das

classes mais desfavorecidas fala errado, está emitindo um juízo falso lingüisticamente, porque

essa pessoa usa seu sistema gramatical com perfeição. Isto ocorre com todos os dialetos. Na

sociedade, porém, é preciso, às vezes, falar o dialeto padrão do lugar, para mostrar aos outros

que a pessoa tem estudos e cultura e sabe se comportar de modo adequado aos costumes do

lugar. É por isso que a escola vai ensinar o dialeto padrão a quem não sabe, dando a esses

alunos uma chance a mais de ter melhores oportunidades na vida em sociedade.

Como a escrita é uma marca da cultura da sociedade, obviamente, adota uma variedade culta

da linguagem oral para sua forma escrita. Não escrevemos no nosso dialeto, mas no dialeto

padrão. Isso não é um empecilho, pelo contrário, faz com que a escrita cumpra seu objetivo

maior, que é permitir a leitura, deixando que cada falante leia em seu dialeto ou no dialeto

padrão.

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4. Começar sem saber

As crianças que começam a se alfabetizar sabem falar uma variedade (dialeto). Grande parte

delas sabe ouvir e entender o dialeto padrão, mas não o usam, porque sua vida na comunidade

não exige isso. Portanto, o processo de alfabetização precisa começar usando a variedade dos

alunos e não uma variedade que eles não falam.

5. A ortografia organiza a leitura

Para a escrita conseguir seu objetivo, ela teve que inventar a ortografia. Sem a ortografia,

nosso sistema iria trazer incontáveis formas diferentes de escrever uma mesma palavra,

porque as pessoas falam de modos diferentes (cf., por exemplo, compremu, compramos,

compramu; acharão, acharu; dentro, drentu; mais, maich; caldo, caldu, cardo, cardu, carrdu,

etc.). Com isto, descobrimos que quem manda no sistema de escrita é a ortografia e não o

princípio alfabético (letra = som e vice-versa). Uma letra representará tantos sons quantos

ocorrerem para ela em todas as palavras da língua; para todos os falantes, a letra A tem o som

de A em andamos; o som de E em andemu; o som de U em andaru, etc.

6. A categorização gráfica organiza o visual da escrita

A primeira coisa que uma pessoa precisa fazer para decifrar uma escrita é reconhecer quais

caracteres estão escritos, que letras a palavra tem. Dependendo do tipo de letra (fonte, estilo),

a pessoa pode ter sérias dificuldades. Se ela não souber que letra está escrita, como poderá

proceder à leitura? Todos nós já passamos pela experiência de não saber ler o que alguém

escreveu, porque não identificamos as letras. As letras de fôrma, sobretudo maiúsculas, são as

de mais fácil identificação. As letras minúsculas, menos, mas, como estamos familiarizados,

esses dois tipos são os melhores. Letra cursiva é muito difícil para o principiante, porque ele

não sabe onde começa uma e acaba outra. É importante salientar que as dificuldades iniciais

de um alfabetizando são muito diferentes das dificuldades que aparecem ao longo dos

estudos. No começo, a escrita parece o que, para nós, seriam rabiscos; depois, formas

geométricas; depois, letras. As diferentes formas de escrever uma mesma letra também são

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 13 .

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uma fonte de grandes perplexidades por parte de alguns alunos. Um rabisco torna-se letra

quando adquire uma função no sistema de escrita, isto é, representa um som numa palavra.

Nesse momento, a letra torna-se uma unidade abstrata. Por isso, podemos variar sua forma

gráfica que suas funções permanecem as mesmas (cf. a - a; E - e; B - b; R - r, etc.).

7. O princípio acrofônico é um bom começo

Para se identificar as letras, principalmente na escrita cursiva ou como atividade inicial do

alfabetizando, recorremos à identificação da palavra. A palavra é a principal unidade de todos

os sistemas de escrita, inclusive o alfabético. Identificada uma palavra (possível, verdadeira

ou falsa – dependendo da adivinhação), o leitor passa a atribuir à palavra as letras, seguindo

seus conhecimentos da ortografia. Se o aluno não souber a ortografia, seu processo de

adivinhação é total e terá mais chances de errar. Feita a identificação das letras, passa-se à

interpretação da palavra. Neste caso, o contexto em que ela se insere é de grande ajuda,

porque o seu significado precisa se encaixar em meio a outros significados.

Dadas essas dificuldades, é comum, na alfabetização, que o professor diga de qual palavra se

trata para, em seguida, analisar quais letras tem, como se combinam e, assim, decifrá-la pela

análise das letras. Por razões de motivação, muitos professores começam a alfabetizar usando

os nomes das crianças. É pelos nomes de pessoas e de objetos que os pais também procedem,

quando querem começar a alfabetizar seus filhos.

8. A categorização funcional é o que vale

Apesar das dificuldades do sistema de escrita, os procedimentos de identificação gráfica das

letras e de sua associação com alguns sons possíveis (princípio acrofônico) fazem com que o

processo de alfabetização dê a partida suavemente e coloque o processo em aceleração. Como

o objetivo da alfabetização é saber ler, levando-se em conta outros fatores pressupostos (cf. os

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 14 .

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alunos sabem falar, sabem refletir minimamente sobre a linguagem em seu aspecto fonético e

semântico...), uma boa metodologia consiste em desenvolver no aluno a habilidade de ler,

identificando letras e palavras. Em pouco tempo, os alunos são desafiados a ler uma variedade

de palavras e isso lhes dá autoconfiança.

O grande problema do processo de alfabetização está no outro lado da moeda: escrever.

Ninguém se alfabetiza escrevendo apenas. Basta copiar chinês, para aprender chinês? Basta

fazer hipóteses sobre a escrita chinesa para aprendê-la? Muitos conhecimentos são

necessários, muitas regras precisam ser aprendidas na teoria e na prática. Quando se lê, a

palavra já vem pronta na sua escrita ortográfica. Quando se vai escrever, é preciso partir da

fala (do dialeto); analisar quais sons (vogais e consoantes) a palavra tem; buscar uma

correspondência entre sons e letras, no começo, por um processo, em parte, de adivinhação

(princípio acrofônico); passar os sons para letras; checar o resultado (ortografia ou algum tipo

de escrita permitido). Esta é uma habilidade altamente complexa, que o aluno consegue

começar e desenvolver somente depois que adquiriu certa prática de leitura decifrativa, isto é,

depois de adquirir certa prática de manuseio de letras, sons e palavras. A consciência da

variação dialetal na leitura ajuda o aluno, no caminho de volta, a não se assustar com as

diferenças entre fala e escrita, indo diretamente para as formas ortográficas ou semi-

ortográficas.

O fato de uma letra referir-se a muitos sons, por causa da variação dialetal, porém exercer

uma mesma função no sistema ortográfico chama-se categorização funcional das letras. É a

alma do negócio.

Com o desenvolvimento de algumas habilidades de reconhecimento – 1) da forma gráfica das

letras (categorização gráfica); 2) de algumas relações entre letras e sons (princípio

acrofônico); 3) da função ortográfica que gerencia as relações entre fala e escrita

(categorização funcional) – o alfabetizando, em pouco tempo, aprende como proceder para

saber ler e escrever. A sofisticação dessas habilidades requer tempo, prática e dedicação. Para

isto, é necessária a ação do professor, não somente a do aluno.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 15 .

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9. A prática do professor

Há muitos métodos de alfabetização. Há muitas teorias. Há práticas diferentes. Todavia, em

nenhum caso se dispensa o professor, que deve ter uma formação bem feita, que lhe dê o

instrumental teórico e prático para conduzir o processo de alfabetização. Como em todas as

atividades da vida, a competência técnica faz a diferença. Quanto mais o professor souber

sobre a linguagem oral e escrita, melhores chances ele terá de ensinar e de orientar seus

alunos para que superem suas dificuldades e atinjam os objetivos propostos. O modo como o

professor irá trabalhar o princípio acrofônico (também chamado de princípio alfabético), a

categorização gráfica e a categorização funcional, isto é, ensinar a reconhecer letras, montar

palavras na leitura e na escrita, enfim, sua programação de atividades, é uma questão que tem

de ser deixada para o professor resolver, porque, afinal, ele é quem conhece a classe de alunos

que tem e quais suas habilidades como professor. O método é o professor, mas os

conhecimentos técnicos precisam ser buscados na ciência, no caso, na Lingüística. Grandes

problemas advieram à Educação neste país, quando substituíram o professor pelos métodos

prontos (da alfabetização à universidade). O ser professor exige dele ciência e arte: ciência

para tratar cientificamente de tudo que ensina e arte para interagir com seus alunos e orientá-

los no processo de aprendizagem.

10. A prática na prática

Sem querer substituir o professor por um método predeterminado e por ações definidas passo

a passo, a prática de ensino em sala de aula acaba sugerindo procedimentos metodológicos

que, devidamente adaptados a cada professor, ajudam o processo de ensino e de

aprendizagem. As sugestões abaixo estão voltadas para os três pontos teóricos destacados.

Categorização gráfica:

• Usar um painel com o alfabeto de letras de fôrma maiúsculas, incluindo Ç, K, Y, W.

• Ensinar o nome das letras (um pouco por vez).

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 16 .

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• Falar sobre o mundo da escrita, história da escrita, variação no aspecto gráfico das letras, sem fazer exercício; bastam os exemplos comentados.

• Mais adiante, ensinar as letras de fôrma minúsculas comparadas com as maiúsculas.

Princípio acrofônico (alfabético):

• Mostrar a relação entre letra e som, usando a primeira letra dos nomes dos alunos, de pessoas conhecidas e de objetos.

• Mostrar rimas e destacar as letras iguais nas palavras.

• Descobrir letras dentro de palavras. Usar pares de palavras em que há a variação de apenas uma letra/som (pares mínimos do tipo pata – lata; boi - foi).

• Descobrir sons em diferentes contextos de palavras e quais as letras que os representam.

Categorização funcional:

• Discutir com os alunos a questão da variação dialetal, pronúncias diferentes para uma mesma palavra.

• Discutir a questão da ortografia, como forma de neutralizar a variação dialetal.

• Escrita espontânea de palavras, de frases, de histórias.

• Correção ortográfica comentada.

Exemplos de estratégias de escrita

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 17 .

Page 18: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Tentativa da Júlia de escrever um bilhete para sua amiga Carol. Apesar de conhecer a forma

gráfica de algumas letras isoladas (começou a escrever seu nome), o texto manuscrito se

mostra com uma forma gráfica diferente, uma seqüência de laços. Aqui falta o conhecimento

da categorização gráfica das letras. A criança escreve assim por causa da maneira como

interpreta o gesto mecânico de escrita do adulto, que mantém o lápis fixo ao papel

constantemente.

Outra estratégia de escrita de uma história. O primeiro exemplo mostra um uso de letras de

fôrma maiúsculas e o segundo, de escrita manuscrita cursiva. Os dois alunos aprenderam a

forma gráfica de algumas letras e escreveram seqüências de letras. Aqui falta o conhecimento

da categorização funcional das letras. Quando esta prática se repete, o aluno fica

completamente perdido, porque ele sabe que não sabe ler.

Conhecendo a forma gráfica das letras, a criança é capaz de escrever palavras cujas letras são

ditadas por um adulto [HOMEM DA LUA]. Esse ditado-cópia não é suficiente para que a

criança aprenda a ler, mas pode ser um bom começo. O fato de um aluno “decorar” a escrita

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 18 .

Page 19: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

de algumas palavras e de identificá-la lendo ajuda-o a refletir sobre a categorização funcional,

ou seja, a relação entre letras e sons. Quando, porém, a memorização é mecânica ou simples

cópia, a reflexão do aluno desaparece.

Os antigos e modernos ditados podem perpetuar a dificuldade que o aluno tem com a

categorização funcional, mesmo quando adquirem excelente caligrafia. Não adianta pedir para

a criança pensar, fazer hipóteses: ela precisa mesmo de explicações detalhadas. Analisar com

os alunos como se lê e como se escreve uma palavra vale muito mais do que muitos ditados

tradicionais.

Alguns alunos não chegam nem mesmo a aprender a categorização gráfica, apesar de

escreverem ocasionalmente algumas letras. Esta tentativa de escrever o próprio nome revela

isso. A variação no traçado mostra que a aluna poderia ser uma boa copista, mas só isto não

basta. Ela sabe que a simples cópia não a leva a escrever por iniciativa própria o que desejar;

então, começa a fazer tentativas estranhas. A questão da programação de conteúdo e das

estratégias de ensino e de aprendizagem, na alfabetização, assume um papel muito importante.

A alfabetização não pode ser feita “de qualquer jeito”.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 19 .

Page 20: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Com poucos conhecimentos, um aluno já pode tentar escrever suas histórias. Os erros de

ortografia vão aos poucos sumindo e sobram poucos. Ao tentar escrever com os próprios

recursos, aparecem muitas hipóteses de como os alunos acham que as palavras são escritas

(ortografia) e de como se pode contar um fato (organização do texto). Grande parte do

processo de alfabetização é dedicada a isso. Veja: Oca chorro / caxorro [cachorro]; mimodeu

[me mordeu]; no são [no chão]. Se o aluno só escreve, sem o professor analisar, discutir e

corrigir, - com o tempo, o aluno acha que pode escrever de qualquer jeito.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 20 .

Page 21: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

O menino guardinnha

O menino ele apredeu ser um guarda iele eraosje

iele mãondava todo os quardas ida cidade para

ve sinão tei ladro sitifer eles prede sinão tifer ele

não prede ieles jegara com um labral qui eu mandei

[não prende e eles chegaram com um ladrão que eu mandei]

Mais eles pegaro o homen erado ieu fale i o nome dele

iera dodal mente erado o nome dele era Artur muito erado

easim acaba aestoria fin

O professor não precisa ter medo de ver textos escritos assim. Eles mostram que o aluno já

aprendeu a ler (está alfabetizado) e está muito adiantado na habilidade de passar da fala para a

escrita. Muitos problemas de escrita podem se reduzir a dificuldades ortográficas, porém,

esses problemas se corrigem com o tempo.

As hipóteses que as crianças fazem quando aprendem a ler e a escrever, ou seja, o que

costuma acontecer durante o processo de alfabetização

1. Diferença entre desenho e escrita: desenho representa o mundo, escrita representa palavra.

A escrita pode ser figurativa (pictogramas) ou geométrica (letras)

☼ SOL ♥ AMOR TELEFONE BICICLETA CHUVA

2. Como a escrita representa a fala e permite a leitura, qualquer rabisco pode assumir o valor

de escrita, como as assinaturas e os rabiscos que as crianças fazem para escrever. Esse

sistema, porém, não pode ser usado para todas as finalidades da escrita.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 21 .

Page 22: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

3. Aprendendo a forma gráfica das letras do alfabeto, a criança passa a escrever usando

seqüências de letras aleatórias: ASPTLMONSPTOA [era uma vez um macaco chamado

Mico]. Aluno que escreve assim é sinal de alerta para o professor: está indo para o caminho

errado. É preciso usar palavras curtas para explicar as relações entre letras e sons.

4. Quando o aluno é exposto à escrita manuscrita cursiva, pode interpretar erroneamente a

forma gráfica das letras. Com essa dificuldade não saberá, depois, relacionar letras com sons.

Um aluno que vê escrito prato pode pensar que essa palavra tem as seguintes letras: j s c a t

i e ou que rato começa com a letra c.

5. Aluno não corrige e vai escrevendo o que acha que precisa. Assim, uma palavra como “pai”

acaba recebendo a seguinte escrita: APAAIPAI e “sapato”: SABAPATO. A escrita está

correta, mas veio com os erros da tentativa de escrita. Isto é muito comum, mas alguns

professores não se dão conta disso.

6. Ao relacionar letras com sons, alguns alunos usam o nome das letras e não o valor

alfabético. Assim, escrevem HRA para “agora”. CAMLO para “camelo”, etc.

7. Seguindo o modelo das cartilhas, alguns alunos, em vez dos nomes das letras, usam as

famílias de letras (BaBeBiBoBu) e escrevem LT para “lata”; OA para “bola”.

8. Aparecem as mesmas escritas acima, quando o aluno repete várias vezes uma sílaba para

perceber sua maior saliência: LA LA LA TA TA TA: tem o L e o T; ou prolonga a sílaba:

BOOOO LAAAA: tem o O e o A.

9. Eventualmente, alguns alunos escrevem palavras ou letras de forma espelhada. Um pouco

de exercício de escrita espelhada e não espelhada, feito pelo professor, mostra o contraste e o

uso da direção da escrita.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 22 .

Page 23: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

10. Nas escritas espontâneas iniciais, depois que o aluno aprendeu a usar letras relacionadas

com sons, a primeira dificuldade que aparece é de como separar as palavras da fala em escrita.

A falta de segmentação ou a segmentação indevida aparecem. Isso deve ser tratado como erro

de ortografia, que se corrige com o tempo.

Ex.: erumaveis [Era uma vez]; sitifer [se tiver]; aestoria [a estória]

oca choro [o cachorro]; dodal mente [totalmente]; nucei [não sei]

11. A troca de letras tem muitas causas: variação, murmurar os sons, atenção, etc.

bargi [balde]; acharo [acharam]; comprano [compando]; mecadio [merdadinho]; tele [dele];

latrão [ladrão]; pola [bola]

13. Na alfabetização, ocorrem muitos casos de hipercorreção: o aluno corrige uma forma

errada e, depois, generaliza uma regra que não se aplica em outros contextos. Ele escreve

MEDECO, corrige para MÉDICO e, depois, passa a escrever DECE em vez de DISSE;

corrige POLA, escrevendo BOLA e, depois, escreve BETE para PENTE.

14. Alguns alunos misturam letras (quando estudam vários estilos ao mesmo tempo):

caCHorro; casTeLo.

15. Ao aprender ou ver algumas marcas da escrita, como acentos, til, alguns alunos começam

a colocar tais marcas em lugar errado: petecã; éla; úrúbú, póde.

16. Erros de ortografia podem mostrar uma variedade de casos. No fundo, erro de ortografia é

erro de ortografia. Com relação à grafia das palavras: ou se sabe ou não se sabe; ou se escreve

certo ou errado. Por isso, o aprendizado da ortografia exige tempo, muita leitura e muito

exercício de escrita sob a supervisão do professor. Os erros de ortografia costumam chocar

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 23 .

Page 24: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

muito os professores e demais adultos, mas, na alfabetização, é um estágio inevitável de

aprendizado.

17. Não confundir simples erro de ortografia com outros tipos de erros que têm causas mais

graves, revelando que o aluno não aprendeu a categorização gráfica ou funcional das letras.

Os erros de ortografia têm uma relação com uma possível dúvida ortográfica e não é

simplesmente uma escrita estranha. Assim, se o aluno escreve MIGODE em vez de BRINCO

DE não é um simples erro de ortografia. Mas, se escreve BICO em vez de BRINCO pode

revelar uma simples dificuldade com a ortografia, no início. A falta de letras é mais grave do

que o uso estranho de certas letras em certos contextos.

18. Superadas as dificuldades acima, a partir de então, os alunos podem escrever textos livres,

espontâneos ou motivados pelo professor. A passagem do texto oral internalizado na

mente do aluno para o texto escrito, expresso no papel, apresenta algumas dificuldades

e problemas específicos. O sucesso da produção de bons textos depende crucialmente

do modo como o professor leva seus alunos a produzirem textos. Se o modelo é de

frases soltas, o resultado será textos desconexos. Se o aluno tiver mais liberdade para

expressar na escrita o que poderia dizer falando, o resultado será textos mais bem

elaborados.

11. Bibliografia comentada

Alfabetização e Lingüística (de Luiz Carlos Cagliari, Editora Scipione, São Paulo, 10ª ed.

2006 – 1ª ed. de 1989). O livro apresenta uma visão geral dos problemas de linguagem oral e

de linguagem escrita, que aparecem no processo de alfabetização. Acompanha um cartaz

sobre a história das letras. Obra essencial para quem precisa de informações lingüísticas

aplicadas à prática de alfabetização.

Alfabetizando sem o Ba Be Bi Bo Bu (de Luiz Carlos Cagliari, Editora Scipione, São Paulo,

1998). Além de apresentar as questões teóricas que constituem os conhecimentos técnicos

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 24 .

Page 25: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

lingüísticos de que um alfabetizador precisa, traz comentários sobre métodos e metodologias,

bem como sugestões de atividades.

Diante das Letras: a escrita na alfabetização (de Gladis Massini-Cagliari e Luiz Carlos

Cagliari, Editora Mercado de Letras, Campinas, 1999). Coletânea de artigos sobre diferentes

aspectos da linguagem oral e escrita, como categorização gráfica, funcional, ortografia,

história do alfabeto e o que é preciso saber para ler, decifrando a escrita.

Nota:

Professor Adjunto MS-5, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Araraquara, SP. Desenvolve pesquisas nas seguintes áreas: Lingüística, com especialidade em Fonética; Alfabetização; Sistemas de escrita; Ensino e aprendizagem; Letramento.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 25 .

Page 26: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

PROGRAMA 2PROGRAMA 2

TEXTO: LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDOTexto: leitura e produção do sentido

Ingedore G. Villaça Koch1

Neste texto tomo, como pressuposto básico, a concepção de que o texto é lugar de interação

de sujeitos sociais que, dialogicamente, nele se constituem e são constituídos. E, ainda, que

esses sujeitos – ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização

textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes oferece – constroem

objetos-de-discurso e propostas de sentido, por meio de ações lingüísticas e sociocognitivas.

A esta concepção subjaz, necessariamente, a idéia de que há, em todo e qualquer texto, uma

gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis pela mobilização do

contexto sociocognitivo no interior do qual se movem os atores sociais.

Em decorrência, fica patente que a leitura de um texto exige muito mais que o simples

conhecimento lingüístico compartilhado pelos interlocutores: o leitor é, necessariamente,

levado a mobilizar uma série de estratégias tanto de ordem lingüística, como de ordem

cognitivo-discursiva, com o fim de levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas,

preencher as lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da construção do

sentido. Dessa forma, autor e leitor devem ser vistos como ‘estrategistas’ na interação pela

linguagem.

1. Concepção de leitura

Fala-se, constantemente, sobre a importância da leitura na nossa vida, sobre a necessidade de

cultivar o hábito de leitura entre crianças e jovens, sobre o papel da escola na formação de

leitores competentes. Mas, no bojo dessa discussão, cabe levantar uma série de questões,

como: O que é ler? Para que ler? Como ler? Evidentemente, as perguntas poderão ser

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 26 .

Page 27: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

respondidas de diferentes modos, cada um deles revelando uma concepção de leitura,

dependendo da concepção de sujeito, de língua, de texto e de sentido que se adote.

1. 1. Leitura: foco no autor

Sobre essa questão, afirmei em Koch (2002) que, à concepção de língua, como

representação do pensamento, corresponde a de sujeito psicológico, individual, dono de

sua vontade e de suas ações. Trata-se de um sujeito visto como um ego que constrói uma

representação mental e deseja que esta seja “captada” pelo interlocutor exatamente da maneira

como foi mentalizada.

Nessa concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito como senhor

absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto – lógico – do

pensamento (representação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor senão “captar” essa

representação mental, juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor, exercendo,

assim, um papel totalmente passivo.

A leitura, assim, é entendida como a atividade de captação das idéias do autor, sem que se

levem em conta as experiências e os conhecimentos do leitor, a interação autor-texto-leitor

com propósitos constituídos socio-cognitivo-interacionalmente. O foco de atenção é, somente,

o autor e suas intenções. Daí as perguntas que, freqüentemente, são feitas: Foi isso mesmo

que o autor quis dizer? Será que o autor realmente pensou nisso?

1.2. Leitura: foco no texto

Por sua vez, à concepção de língua como estrutura corresponde à de sujeito determinado,

“assujeitado” pelo sistema, caracterizado por uma espécie de “não consciência”. O

princípio explicativo de todo e qualquer fenômeno e de todo e qualquer comportamento

individual repousa sobre a consideração do sistema, quer lingüístico, quer social.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 27 .

Page 28: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Nessa concepção de língua como código — portanto, como mero instrumento de

comunicação — e de sujeito como (pre)determinado pelo sistema, o texto é visto como

simples produto da codificação de um emissor, a ser decodificado pelo leitor/ouvinte,

bastando a este, para tanto, o conhecimento do código utilizado.

Conseqüentemente, a leitura é vista como uma atividade que exige do leitor o foco no texto,

em sua linearidade, uma vez que tudo está dito no texto. Se, na concepção anterior, ao leitor

cabia o reconhecimento das intenções do autor, nesta concepção cabe-lhe somente o

reconhecimento do sentido das palavras e estruturas do texto: basta-lhe conhecer o código (a

língua), que terá a chave para a interpretação. Em ambas, porém, o leitor é caracterizado como

passivo, por realizar uma atividade de reconhecimento, de reprodução.

1.3. Leitura: foco na interação autor-texto-leitor

Em contraposição às concepções anteriores, na concepção interacional (dialógica) da

língua, os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que —

dialogicamente — se constroem e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da

interação e da constituição dos sujeitos da linguagem. Desse modo, há lugar, em todo e

qualquer texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente

detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes

da interação.

Nessa perspectiva, o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos e não é

algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente

complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos

lingüísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a

mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Isto é:

a) a leitura é uma atividade na qual se levam em conta as experiências e os conhecimentos do

leitor;

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 28 .

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b) a leitura exige do leitor bem mais do que o conhecimento do código lingüístico, uma vez

que o texto não é apenas o produto da codificação de um emissor a ser decodificado por um

receptor passivo.

É esta a concepção sócio-cognitivo-interacional de língua que privilegia os sujeitos e seus

conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de interação é o texto, cujo

sentido “não está lá”, mas é construído, considerando-se, para tanto, as “sinalizações” ou

pistas textuais fornecidas pelo autor e os conhecimentos do leitor que, durante todo o

processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva ativa” (Cf. Bakhtin, 1992, p.

290). Em outras palavras, espera-se que o leitor concorde ou não com as idéias do autor,

complete-as, adapte-as, etc., uma vez que “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma

forma ou de outra, forçosamente, a produz” (Bakhtin, 1992, p. 290).

2. A interação: autor-texto-leitor

Pela consonância com essa posição, destacamos aqui um trecho dos Parâmetros Curriculares

Nacionais de Língua Portuguesa (1998):

“A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do

significado do texto, a partir dos seus objetivos, do conhecimento sobre o assunto, sobre o

autor, de tudo o que sabe sobre a língua: características do gênero, do portador, do

sistema de escrita, etc. Não se trata simplesmente de ‘extrair informação da escrita’

decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que

implica, necessariamente, compreensão. Qualquer leitor experiente que conseguir analisar

sua própria leitura constatará que a decodificação é apenas um dos procedimentos que

utiliza quando lê: a leitura fluente envolve uma série de outras estratégias como seleção,

antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível rapidez e proficiência. É

o uso de procedimentos desse tipo que permite controlar o que vai sendo lido, tomar

decisões diante de dificuldades de compreensão, arriscar-se diante do desconhecido,

buscar no texto a comprovação das suposições feitas etc.”

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 29 .

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Nesse trecho, encontra-se reforçado, na atividade de leitura, o papel do leitor enquanto um

construtor de sentido, utilizando-se, para tanto, de uma série de estratégias, entre as quais a

seleção, antecipação, inferência e verificação.

2.1. Estratégias de leitura

Assim, espera-se que o leitor processe, critique, contradiga ou avalie a informação que tem

diante de si, que a aceite ou a conteste, que dê sentido e significado ao que lê (cf.: Solé, 2003,

p. 21).

Essa concepção de leitura, que põe em foco o leitor e seus conhecimentos, em interação com

o autor e o texto, para a construção de sentido, vem já há algum tempo merecendo a atenção

de estudiosos do texto e alimentando muitas pesquisas sobre o tema.

Na qualidade de leitores ativos, estabelecemos relações entre nossos conhecimentos

anteriormente constituídos e as novas informações contidas no texto, fazemos inferências,

comparações, formulamos perguntas relacionadas com o seu conteúdo. Mais ainda:

processamos, criticamos, contrastamos e avaliamos as informações que nos são

apresentadas, produzindo sentido para o que lemos. Em outras palavras, agimos

estrategicamente, o que nos permite dirigir e auto-regular nosso próprio processo de leitura.

2.2. Objetivos de leitura

É claro que não devemos nos esquecer de que a constante interação entre o conteúdo do texto

e o leitor é regulada, também, pelo propósito com que lemos o texto, pelos objetivos da

leitura. De modo geral, podemos dizer que há textos que lemos para nos manter informados

(jornais, revistas); há outros que lemos para realizar trabalhos acadêmicos (dissertações, teses,

livros, periódicos científicos); há, ainda, aqueles cuja leitura é realizada por prazer, por puro

deleite (poemas, contos, romances); os que lemos para consulta (dicionários, catálogos), os

que somos “obrigados” a ler de vez em quando (manuais, bulas), os que nos caem em mãos

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 30 .

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(panfletos), ou os que nos são constantemente apresentados aos olhos (outdoors, cartazes,

faixas).

São, pois, os objetivos do leitor que nortearão o modo de leitura, em mais tempo ou em menos

tempo; com mais atenção ou com menos atenção; com maior engajamento ou com menor

engajamento, enfim.

3. Leitura e produção de sentido

Se, portanto, a leitura é uma atividade baseada na interação autor-texto-leitor, nesse processo

faz-se necessário considerar a materialidade lingüística do texto, elemento sobre o qual e a

partir do qual se constitui a interação. E, por outro lado, é preciso também levar em conta o

autor e o leitor, com seus conhecimentos e vivências, condição fundamental para o

estabelecimento de uma interação com maior ou menor intensidade, durabilidade, qualidade.

3.1. Leitura e ativação de conhecimento

É por essa razão que falamos de um sentido para o texto, não do sentido do texto, e

justificamos essa posição, visto que, na atividade de leitura, é preciso ativar lugar social,

vivências, relações com o outro, valores da comunidade, conhecimentos textuais (cf. Paulino

et al., 2001).

3.2. Pluralidade de leituras e sentidos

A pluralidade de leituras e de sentidos pode ser maior ou menor dependendo, por um lado, do

texto, do modo como foi constituído, do que foi explicitamente revelado, e do que foi

implicitamente sugerido; por outro lado, da ativação, por parte do leitor, de conhecimentos de

natureza vária, bem como de seus objetivos e de sua atitude perante o texto.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 31 .

Page 32: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Assim, considerar o leitor e seus conhecimentos e que esses conhecimentos são diferentes de

um leitor para outro implica, necessariamente, aceitar uma pluralidade de leituras e de

sentidos em relação a um mesmo texto.

É claro que, com isso, não preconizamos que o leitor possa ler qualquer coisa com base em

um texto, pois, como já afirmamos, o sentido não está apenas no leitor, nem no texto, mas na

interação autor-texto-leitor. Por isso, é de fundamental importância que o leitor considere, na

e para a produção de sentido, as “sinalizações” do texto, além dos conhecimentos que possui.

4. Fatores de compreensão da leitura

A compreensão de um texto varia, portanto, segundo as circunstâncias de leitura e vai

depender de vários fatores complexos e inter-relacionados (Alliende & Condemarín, 2002).

Embora tais fatores estejam intimamente relacionados na compreensão da leitura, cabe

chamar a atenção para os casos em que fatores relativos ao autor/leitor, por um lado, ou ao

texto, por outro lado, podem interferir no processo, de modo a dificultá-lo ou facilitá-lo.

4.1. Fatores relativos ao autor/leitor

Esses fatores referem-se ao conhecimento dos elementos lingüísticos (uso de determinadas

expressões, léxico antigo etc.), esquemas cognitivos, bagagem sociocultural, circunstâncias

em que o texto foi produzido.

Em outras palavras, podemos dizer que os conhecimentos selecionados pelo autor – na e para

a constituição do texto – “criam” um leitor-modelo. Desse modo, o texto, pela forma como é

constituído, pode exigir mais ou menos conhecimento prévio de seus leitores. Isto é, um texto

não se destina a todo e a qualquer leitor, mas pressupõe um determinado tipo de leitor e exclui

outros.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 32 .

Page 33: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Em nosso dia-a-dia, deparamo-nos com inúmeros textos veiculados em meios diversos

(jornais, revistas, rádio, TV, internet, cinema, teatro), cuja produção é “orientada” para um

determinado tipo de leitor (um público específico), o que, aliás, vem evidenciar o princípio

interacional constitutivo não apenas do texto, como do próprio uso da língua.

4.2. Fatores relativos ao texto

Além dos fatores da compreensão de leitura ligados ao autor e ao leitor, há os relacionados ao

texto, que dizem respeito à sua legibilidade, podendo ser materiais, lingüísticos ou de

conteúdo (Cf.: Alliende & Condemarín, 2002).

Dentre os aspectos materiais que podem comprometer a legibilidade, os autores citam: o

tamanho e a clareza das letras, a cor e a textura do papel, o comprimento das linhas, a fonte

empregada, a variedade tipográfica, a constituição de parágrafos muito longos... E, em se

tratando da escrita digital, a qualidade da tela e o uso apenas de maiúsculas ou de minúsculas,

bem como o excesso de abreviações.

Além dos fatores materiais, há fatores lingüísticos que podem dificultar a compreensão, tais

como: a seleção lexical; estruturas sintáticas muito complexas, caracterizadas pela abundância

de elementos subordinados; orações supersimplificadas, marcadas pela total ausência de

nexos para indicar relações de causa/efeito, espaciais, temporais; ausência de sinais de

pontuação etc.

Uma bula, por exemplo, é conhecida como um texto de difícil leitura por seus aspectos

materiais, lingüísticos e de conteúdo, a tal ponto que já existe em andamento uma proposta

oficial para resolver o problema.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 33 .

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5 . Escrita e Leitura: contexto de produção e contexto de uso

Depois de escrito, o texto tem uma existência independente do autor. Entre a produção do

texto escrito e a sua leitura, pode passar-se muito tempo, de modo que as circunstâncias da

escrita (contexto de produção) podem ser absolutamente diferentes das circunstâncias da

leitura (contexto de uso), fato esse que interfere na produção de sentido. O mesmo acontece

também quando o texto vem a ser lido num lugar muito distante daquele em que foi escrito ou

quando foi reescrito de muitas formas, mudando consideravelmente o modo de constituição

da escrita com o objetivo de atingir diferentes tipos de leitor.

6. Texto e Leitura

Cabe, assim, reiterar que a leitura é uma atividade que solicita intensa participação do leitor,

pois, se o autor apresenta um texto lacunoso ou incompleto, por pressupor a inserção do que

foi dito em esquemas cognitivos compartilhados, é preciso que o leitor o complete,

produzindo uma série de inferências.

Assim, no processo de leitura, o leitor aplica ao texto um modelo cognitivo (frame ou

esquema), baseado em conhecimentos que ele tem representados na memória social.

A hipótese inicial pode, no decorrer da leitura, confirmar-se e se fazer mais precisa; ou pode

exigir alterações, maiores ou menores. Em certos casos, torna-se necessária, até mesmo, a

reformulação total dessa hipótese, que terá de ser descartada.

Assim, o texto é um exemplo de que o autor pressupõe a participação do leitor na construção

do sentido, considerando a (re)orientação que lhe é dada. Nesse processo, ressalta-se que a

compreensão não requer que os conhecimentos do texto e os do leitor coincidam, mas que

possam interagir dinamicamente (Alliende & Condemarín, 2002, p. 126-7).

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 34 .

Page 35: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

7. E a produção de textos?

Relativamente à prática de produção de textos, podem-se destacar as seguintes afirmações dos

PCN:

“Um escritor competente é alguém que sabe reconhecer diferentes tipos de texto e

escolher o apropriado a seus objetivos num determinado momento (...).”

“Um escritor competente é, também, capaz de olhar para o próprio texto como um objeto

e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja: é capaz

de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. É, ainda, um

leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar

fontes escritas para a sua própria produção.”

Assim, no que diz respeito à produção do sentido, defendem os PCN que o trabalho de análise

epilingüística em sala de aula é importante, por possibilitar a discussão sobre os diferentes

sentidos atribuídos aos textos e sobre os elementos discursivos que validam ou não essas

atribuições, propiciando, inclusive, a construção de um repertório de recursos lingüísticos

a ser utilizado quando da produção textual.

A Lingüística Textual vem trazendo ao professor subsídios indispensáveis para a realização

das atividades acima sugeridas, visto que ela tem por objeto o estudo dos recursos lingüísticos

e condições discursivas que presidem à construção da textualidade e, em decorrência, à

produção textual dos sentidos, o que vai significar, inclusive, uma revitalização do estudo da

gramática: não mais, é claro, como um fim em si mesma, mas com o objetivo de evidenciar de

que modo o trabalho de seleção e combinação dos elementos lingüísticos nos textos que

lemos ou produzimos, dentro das variadas possibilidades que a gramática da língua nos põe à

disposição, constitui um conjunto de decisões que vão servir de orientação na nossa busca

pelo sentido.

Assim sendo, é preciso que os produtores de textos dominem uma série de estratégias de

organização da informação e de estruturação textual. A continuidade de um texto resulta de

um equilíbrio variável entre dois movimentos fundamentais: retroação e progressão. Desta

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 35 .

Page 36: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

forma, a informação semântica contida no texto vai distribuir-se em (pelo menos) dois

grandes blocos: o dado e o novo, cuja disposição e também dosagem interferem na construção

do sentido. A informação dada (ou melhor, aquela que o produtor do texto apresenta como

dada) tem por função estabelecer os pontos de ancoragem para o aporte da informação nova.

A retomada desta informação opera-se por meio de remissão ou referência textual, que leva à

formação, no texto, de cadeias referenciais anafóricas. Estas cadeias têm papel importante na

organização textual, contribuindo para a produção do sentido.

A informação nova introduz-se por meio das diversas estratégias de progressão textual, entre

as quais as de contigüidade semântica (emprego de termos pertencentes a um mesmo campo

de sentido), progressão temática, progressão tópica e articulação textual.

8. A importância do contexto

Já foi salientado que o recurso ao contexto é indispensável para a produção e a compreensão

e, deste modo, para a construção do sentido. O contexto engloba não só o co-texto, como a

situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sócio-político-cultural), o contexto

acional e, portanto, o contexto sociocognitivo dos interlocutores. Este último, na verdade,

subsume os demais. Ele reúne todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória dos

actantes sociais, que necessitam ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal: o

conhecimento lingüístico propriamente dito, o conhecimento enciclopédico, o conhecimento

da situação comunicativa e de suas “regras” (situacionalidade), o conhecimento

superestrutural ou tipológico (gêneros e tipos textuais), o conhecimento estilístico (registros,

variedades de língua e sua adequação às situações comunicativas), bem como o conhecimento

de outros textos que permeiam nossa cultura (intertextualidade).

Nesta acepção, portanto, vê-se o contexto como constitutivo da própria interação pela

linguagem. É neste sentido que se pode dizer que certos enunciados são gramaticalmente

ambíguos, mas o contexto se encarrega de fornecer condições para uma interpretação unívoca.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 36 .

Page 37: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Admite-se, pois, que:

1. O contexto desambigüisa;

2. O contexto permite preencher as lacunas do texto (“o contexto completa” - cf. Dascal &

Weizman, 1987; Clark, 1977, que fala em estabelecer os “elos faltantes - “missing links”-, por

meio de inferências-ponte);

3. Os fatores contextuais podem alterar o que se diz (“o contexto modifica” – ironia, etc.);

4. Tais fatores se incluem entre aqueles que explicam por que se disse isso e não aquilo (“o

contexto justifica”). De qualquer maneira, sob essa perspectiva, falar de discurso implica

considerar fatores externos à língua, alguma coisa do seu exterior, para entender o que nela é

dito, que por si só seria insuficiente.

As relações entre informação explícita e conhecimentos pressupostos como partilhados

estabelecem-se, como dissemos, por meio das estratégias de “sinalização textual”, por

intermédio das quais o locutor, por ocasião do processamento textual, procura orientar o

interlocutor no recurso ao contexto.

É por isto que o sentido de um texto, qualquer que seja a situação comunicativa, não depende

tão-somente da estrutura textual em si mesma (daí a metáfora do texto como um “iceberg”).

Os objetos de discurso a que o texto faz referência são apresentados em grande parte de forma

lacunar, permanecendo muita coisa implícita. O produtor do texto pressupõe, da parte do

leitor/ouvinte, conhecimentos textuais, situacionais, culturais e enciclopédicos e, orientando-

se pelo Princípio da Economia, não explicita as informações consideradas redundantes. Ou

seja, visto que não existem textos totalmente explícitos, o produtor de um texto necessita

proceder ao “balanceamento” do que necessita ser explicitado textualmente e do que pode

permanecer implícito, por ser recuperável via inferenciação (cf. Nystrand & Wiemelt, 1991;

Marcuschi, 1997). Na verdade, é este o grande segredo do locutor competente.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 37 .

Page 38: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

O leitor/ouvinte, por sua vez, espera sempre um texto dotado de sentido e procura, a partir da

informação contextualmente dada, construir uma representação coerente, por meio da

ativação de seu conhecimento de mundo e/ou de deduções que o levam a estabelecer relações

de causalidade, temporalidade etc. Levado pelo Princípio da Continuidade de Sentido

(Hörmann, 1976), ele põe em funcionamento todos os componentes e estratégias cognitivas

que tem à disposição para dar ao texto uma interpretação adequada. Esse princípio se

manifesta, pois, como uma atitude de expectativa do interlocutor de que uma seqüência

lingüística produzida pelo falante/escritor possa ser considerada coerente (cf. Grice, 1975,

Princípio da Cooperação).

Verifica-se, assim, que o uso da linguagem, quer em termos de produção, quer de recepção,

repousa visceralmente na interação produtor – texto – ouvinte/leitor, que se manifesta por

uma antecipação e por uma coordenação recíprocas, em dado contexto, de conhecimentos e

estratégias sociocognitivas e interacionais.

Tanto em textos escritos como em textos orais, o produtor, visando à produção de sentidos,

faz uso de uma multiplicidade de recursos que vai muito além das simples palavras que

compõem as estruturas. Em obediência à Máxima da Relevância (Grice, 1975) e com base em

seu modelo do interlocutor, o falante/escritor verbaliza somente as unidades referenciais e as

representações necessárias à compreensão e que não possam ser deduzidas sem esforço pelo

leitor/ouvinte, por meio de informações contextuais e/ou conceituais (Princípio da

Seletividade).

Mencione-se, a título de exemplo, o emprego de uma expressão referencial anafórica, que

implica uma pressuposição de conhecimento partilhado e obriga o interlocutor a uma busca no

contexto, cognitivo ou situacional. Visto que o produtor do texto procede à seleção daquela

expressão que se mostra mais adequada ao seu projeto de dizer, seu emprego vai exigir do

interlocutor a percepção do porquê da escolha feita, no contexto dado, com vistas à

construção do sentido.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 38 .

Page 39: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Verifica-se, desta forma, a justeza da definição de Van Dijk (1997): “contexto é o conjunto de

todas as propriedades da situação social que são sistematicamente relevantes para a produção,

compreensão e funcionamento do discurso e de suas estruturas”.

Todos os fatores aqui mencionados, que intervêm nos processos de leitura e produção de

textos, são responsáveis pela produção de sentidos.

Referências bibliográficas

Alliende, Felipe; Condemarín, Mabel. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento.

Porto Alegre: Artmed, 2005.

Bakhtin, Michail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [1952],

p. 290.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria do Ensino Fundamental Parâmetros

Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Brasília: SEF/MEC, 1998.

Clark, Herbert. Bridging. In: Wason, P.; Johnson-Laird, P. Thinking: Readings in

Cognitive Sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1977, pp. 417-20.

Dascal, M.; Weizman, E. Contextual exploitation of interpretation clues in text

understanding: an integrated model. In: Verschueren, J; Bertucelli-Papi, M.

(eds.), The pragmatic perspective – Selected papers from the 1985. International

Paragmatic Conference. Amsterdam: J. Benjamins, 1987, pp. 31-46.

Grice, H. P. Logic and conversation.In: COLE, P.; MORGAN, J. L. (orgs.), Sintax and

Semantics, n.3, Speech Acts. New York: Academic Press, 1975.

Hörmann, H. Meinen und Verstehen. Grundzüge einer psychologischen Semantik.

Frankfurt: Suhrkamp, 1976.

Koch, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 39 .

Page 40: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Marcuschi, Luiz A. Contextualização e explicitude na relação entre fala e escrita.

1997. mimeo.

Nystrand, M.; Wiemelt, J. When is a text explicit? Formalist and dialogical

conceptions. Text 11, 1991, pp. 25-41.

Paulino, Graça et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato, 2001.

Solé, Isabel. Ler, leitura, compreensão: “sempre falamos da mesma coisa?”. In:

TEBEROSKY, Ana et al. Compreensão de leitura: a língua como procedimento.

Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 21.

Van Dijk, Teun A. Cognitive context models and discourse. In: Oostendorp, H. van ;

Goldman, S. (eds.) The construction of mental models during reading.

Hilldsdale, N.J.: Erlbaum, 1997.

Nota:

Mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP e Livre-docente pela UNICAMP. Professora-titular do Depto. de Lingüística do IEL - Unicamp. Autora de diversos livros sobre língua, linguagem e ensino. Tem inúmeros trabalhos publicados em revista e coletâneas, no país e no exterior.

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PROGRAMA 3PROGRAMA 3

GÊNEROS TEXTUAIS: OBJETOS DE ENSINO

Gêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensinoGêneros como objetos de ensino: questões e tarefas para o ensino

Sandoval Nonato Gomes-Santos1

PP A R AA R A I N Í C I OI N Í C I O D ED E C O N V E R S AC O N V E R S A

Quase uma década vai se completar desde a publicação dos Parâmetros Curriculares

Nacionais de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental. Hoje, parece que já temos,

reunidos, alguns elementos importantes para avaliar os efeitos das diretrizes curriculares que

foram expostas nesse documento nas práticas de ensino-aprendizagem da disciplina Língua

Portuguesa. Principalmente, as implicações que as discussões sobre um currículo centrado nos

gêneros (textuais ou discursivos) produziram e têm produzido na escola, em diferentes regiões

do país.

Desde a publicação do documento até hoje, só cresceu o interesse em compreender as

possibilidades e os desafios do conceito de gênero, tanto para o currículo da formação inicial

e a pesquisa na universidade, quanto para as políticas públicas de formação continuada do

professor e de avaliação-distribuição de livros didáticos, e, principalmente, para as práticas

didáticas de ensino de língua na escola. Atualmente, com certo distanciamento em relação às

discussões iniciais (anteriores mesmo à publicação dos PCN em 1997-1998), é possível

retomar certas preocupações e algumas indagações que vêm marcando a apropriação da

proposta de trabalho com gêneros como objetos de ensino nas práticas escolares de ensino-

aprendizagem da Língua Portuguesa.

Sem o constrangimento de que um currículo centrado no ensino-aprendizagem de gêneros

pudesse significar apenas “mais um modismo” da Universidade, imposto para a escola por

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 41 .

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intermédio da lei, podemos agora avaliar o diálogo institucional estabelecido entre as várias

instâncias envolvidas com o tema do ensino-aprendizagem de língua na escola: o diálogo

entre pesquisadores do campo dos estudos da linguagem e professores (em ações de formação

inicial e continuada); entre os professores-alunos de cursos de graduação e pós-graduação e

professores-pesquisadores da universidade (no ensino e na iniciação à pesquisa); entre esses

professores-pesquisadores e o mercado editorial (por meio de consultorias à elaboração e

mesmo da elaboração de livros didáticos) etc. Desse diálogo, ainda em andamento, questões

iniciais retornam e outras, novas, aparecem.

Algumas dessas questões foram apontadas com bastante precisão por Rojo (2000), em um

texto não por acaso intitulado Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula:

progressão curricular e projetos. Ao discutir a proposta curricular que toma o gênero como

objeto de ensino e o texto como unidade de ensino, a autora enfatiza que a apropriação da

proposta curricular expressa nos PCN pelas práticas escolares de ensino-aprendizagem requer

um esforço que envolve três eixos de atuação: a) “a construção de currículos plurais e

adequados a realidades locais”, b) “a elaboração de materiais didáticos que viabilizem a

implementação destes currículos” e c) “a formação inicial e continuada de professores e

educadores” (p. 28).

Para contribuir no diálogo instigado pelas percepções de Rojo, proponho enfocar, neste texto,

questões relativas à “realização do currículo em sala de aula”, ou seja, às práticas de ensino-

aprendizagem de gêneros, considerados objetos de ensino. Suponho que um primeiro passo

para refletir sobre essas práticas seja reconhecer que elas têm uma história, que elas são

construídas no seio daquilo que Chervel (1998) descreveu como cultura escolar2.

Assim, quando ouvimos, por exemplo, que hoje devemos ensinar gêneros, que a gramática

deve ser contextualizada ou que é preciso trabalhar a oralidade, essas afirmações não são

feitas por acaso. Elas testemunham que há uma demanda de reflexão sobre o ensino-

aprendizagem de gêneros pelo professor, nos mais diversos contextos socioculturais pelo

Brasil afora. Na base dessas questões está uma indagação primeira, de tão familiar às vezes

deixada em segundo plano: o que, para que e como se ensina quando se pretende ensinar a

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 42 .

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língua? É nesse tripé que proponho localizar a discussão sobre o ensino-aprendizagem de

gêneros na escola. Ou seja, proponho que essa discussão enfoque três eixos:

• As finalidades da escola como agência de produção-recepção de gêneros;

• Os gêneros como objeto de ensino em um projeto curricular;

• O investimento na elaboração didática dos gêneros como objetos de ensino.

1. Gênero e forma escolar

Um dos passos principais na construção de uma proposta curricular para o ensino-

aprendizagem da Língua Portuguesa é o reconhecimento de que a Língua Portuguesa é uma

disciplina escolar. Uma disciplina escolar não aparece ao acaso. Para Soares (2002) 3, sua

constituição é resultado de motivações socioculturais e históricas: aquilo que supomos ser a

disciplina Língua Portuguesa e seu ensino não é definido pela ação isolada de cada professor,

mas está ligado àquilo que se pretende ensinar (quais os objetos de ensino visados?), às

finalidades do ensino (para que ensinar?) e aos meios de ensino (como ensinar?).

Ao se apropriar de objetos de saber e de práticas variadas de linguagem que se constroem na

sociedade, a escola os transforma em objetos a serem ensinados. Quando falamos de um

currículo centrado no ensino-aprendizagem de gêneros, podemos então pensar na escola,

como muito bem sugeriu Schneuwly (2006) 4, como uma agência “inventora” de gêneros, os

chamados gêneros escolarizados. Assim, os gêneros, ao se tornarem objetos a serem

ensinados (ao adquirirem uma forma escolar, no dizer de Schneuwly), não se configuram de

modo igual àquele modo com que aparecem nas práticas do cotidiano, embora estejam

vinculados intimamente a essas práticas. Um relatório da visita ao museu, por exemplo,

produzido por crianças da 3ª. série do Ensino Fundamental, necessariamente será diferente do

esboço produzido por um jornalista que visa, a partir de suas anotações, à produção de uma

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 43 .

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reportagem sobre o museu. Será diferente, ainda, do relatório do biólogo que faz uma

pesquisa sobre zootecnologia. Será diferente porque o gênero, uma vez escolarizado:

i) é apropriado em uma situação diversa daquela em que seria apropriado fora da escola, ou

seja, a forma escolar implica certa ruptura com o quotidiano;

ii) torna-se passível de segmentação em dimensões que podem ser objeto de ensino-

aprendizagem;

iii) integra um desenho curricular mais amplo, que inclui uma determinada programação de

conteúdos, além de procedimentos e instrumentos de avaliação;

iv) adquire uma forma textualizada (em geral, um caráter escritural), ou seja, ele se

materializa em textos que permitem sua circulação e seu reconhecimento públicos.

A escola pode ser considerada inventora de gêneros também pelo fato de criar seus próprios

gêneros: os chamados gêneros escolares. Alguns, entre eles, são criados para servir ao próprio

funcionamento da instituição escolar – como histórico escolar, diário de classe, plano de

aula, requerimento escolar etc. –, e outros são tornados objetos a serem ensinados. O

exemplo mais representativo, nesse caso, é a dissertação escolar.

Esses dois modos de invenção de gêneros pela escola podem ser considerados, para um

determinado discurso pedagógico, um artificialismo, uma forma pela qual a escola reduz o

conhecimento, corrompe-o, ou um mascaramento, uma forma de a escola escamotear as reais

necessidades dos alunos quanto à aprendizagem de práticas de linguagem efetivamente

autênticas.

Entretanto, com base no pressuposto de que a linguagem é diálogo (tal como propôs Bakhtin)

e de que a prática de ensino-aprendizagem constitui-se na interação entre indivíduos em um

determinado contexto sociocultural e histórico (como enfatiza a psicologia de base

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 44 .

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vigotskiana), é possível pensar que a invenção de gêneros pela escola é condição para a

inserção dos indivíduos em determinadas práticas de letramento (de leitura-escuta e produção

de textos), especialmente em se tratando daquelas práticas em que circulam gêneros de que os

alunos não se apropriariam se não estivessem na escola, como é o caso, por exemplo, de

alguns gêneros orais formais públicos (solicitação de informações, debate, conferência,

entrevista para emprego etc.). A tarefa da escola na apropriação desses gêneros implicaria não

apenas a garantia do acesso a eles, mas, principalmente, o desenvolvimento de uma postura

reflexiva sobre as práticas em que eles circulam.

Em síntese, se considerarmos, com Bakhtin (1929, 1952-3), que os gêneros se constituem e

vão-se diversificando historicamente nas práticas sociais e que sua apropriação se dá sempre

em relação intrínseca com essas práticas, a principal contribuição da escola e a finalidade do

trabalho de ensino seria inserir os alunos em práticas de letramento das mais simples às mais

complexas, transformando seus modos de agir pela linguagem, de forma que possam não

apenas usar a linguagem adequadamente – como se costuma dizer –, mas também

desenvolver, ao longo da escolaridade formal, uma postura de reflexão sobre ela, sobre as

implicações, os efeitos das ações de linguagem na própria construção da sociedade e da

cultura5.

2. Os gêneros como objeto de ensino em um projeto curricular: por que um currículo

centrado no trabalho com gêneros?

Uma das questões iniciais que sempre retorna quando se propõe um currículo que tem como

porta de entrada o trabalho com gêneros como objetos de ensino e com textos como unidades

de ensino é: já não trabalhamos com textos na sala de aula? O que muda com a proposta de

ensino de gêneros? Não são apenas os nomes dos conteúdos que mudaram? Essas questões

são significativas porque apontam para o fato de que, para se discutir o currículo que se

almeja construir para a disciplina Língua Portuguesa, é necessário reconhecer que já temos

um lastro de práticas de ensino construídas historicamente. Por exemplo, um pressuposto

comum, bastante freqüente entre os professores de Língua Portuguesa, diz respeito à

necessidade de se trabalhar uma diversidade de textos e à necessidade de adequação das ações

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 45 .

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de linguagem aos vários contextos de uso. A questão, nesse caso, parece ser: como

transformar esse pressuposto em orientação curricular na prática didática?

Podem ser apontadas diversas motivações para a opção por um currículo com base no

trabalho com gêneros. Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que essa opção vai-se

consolidando com o prestígio de uma perspectiva teórica que concebe a linguagem como

prática social, e o processo de ensino-aprendizagem como construído na interação dos três

pólos do chamado triângulo didático: o professor, os alunos e os objetos de ensino, em um

dado contexto sociocultural.

Essa perspectiva ganha visibilidade crescente a partir do final dos anos 1970 e início dos anos

1980, no Brasil. A partir desse momento, propostas curriculares foram divulgadas,

investigações sobre o ensino-aprendizagem se diversificaram, livros didáticos transformaram-

se. Rojo & Cordeiro (2004) apresentam um percurso bastante interessante dos modos com que

se vêm trabalhando as práticas de leitura e produção de textos na tradição escolar brasileira a

partir dos anos 1980. Segundo as autoras, a proposta de trabalho com gêneros distingue-se de

outros dois modos de conceber o trabalho com o texto na escola:

i) Inicialmente, o texto visto como material ou objeto empírico que, em sala de aula,

propiciava “hábitos de leitura”, de produção, de análise lingüística. O texto tomado, portanto,

como objeto de uso, mas não de ensino;

ii) Mais tardiamente, o texto visto como suporte para o desenvolvimento de

estratégias e habilidades de leitura e de redação.

Uma terceira possibilidade de trabalho com o texto é aquela chamada pelas autoras de

enunciativo-discursiva. Nessa terceira via, o texto é tratado em articulação ao gênero a que ele

pertence. Mesmo não escolarizado, o indivíduo é capaz de reconhecer, apropriar-se e produzir

determinados gêneros, a depender do modo com que se integra às práticas em que esses

gêneros circulam.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 46 .

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Assim, uma criança que participa da prática de conversação em sua família, ocasião em que se

contam histórias e piadas, ou da prática de leitura de cartas, provavelmente reconhecerá os

gêneros piada e carta pessoal com certa facilidade. Se não exercita a prática de discussão

coletiva de questões polêmicas, por hipótese terá mais dificuldade de produzir o gênero

debate quando for solicitada para isso. Isso não significa dizer que os gêneros são uma fôrma,

uma camisa-de-força que determina por completo cada ação de linguagem do indivíduo. São

formas flexíveis de materialização dos textos.

Vejamos um exemplo (Gomes-Santos, 2003) que ilustra o modo com que construímos

diálogo por meio dos gêneros, tanto com outros locutores, quanto com outros textos. Após

leitura e comentário da versão de uma lenda amazônica – a Lenda da Cobra Grande – o

professor apresenta aos alunos de 2ª. série do Ensino Fundamental a proposta de produção

escrita – recontar a lenda – por meio das seguintes instruções:

Produção de Texto

Como você percebeu, na Lenda da Cobra Grande o encanto só pode ser quebrado se um

corajoso guerreiro cortar a ponta do rabo da cobra, fazendo com que ela volte a ser uma

índia bela e atraente. E você, que outra solução arrumaria para quebrar o encanto da cobra?

Conte-nos esta história.

Respondendo à tarefa, um dos alunos escreveu:

“Para Quebrar o fentiço que o caçador colocou na índia precisa pegar um facão e cortar o

rabo da cobra grande, e depois liberta a índio do fentiço que o cassado colocou, eu mesmo

Fábio vol cortar o rabo da cobra grande.” (Texto: Quebra o encanto da cobra grande)

Outro aluno atendeu à mesma tarefa assim escrevendo:

Era uma vez uma índia muito bela e o Paje trasformou ela em uma cobra muito grande e

para desfazer o encanto tinha que dar um beijo na cobra e o índio deu um beijo na nele

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 47 .

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tornou uma bela india denovo e se casaram e viveram felizes para sempre. (Texto: A bela

índia)

No primeiro caso, o aluno estabelece diálogo com as instruções do professor, que orientam

para que “outra solução” deveria ser encontrada para quebrar o encanto da cobra. Na

apropriação que faz do gênero lenda, ele se representa como figura textual, agente da quebra

do encanto – “eu mesmo Fábio”. Ao fazer isso, busca, de certo modo, satisfazer a injunção da

instrução, que exige uma resposta do escrevente à questão apresentada. Nesse caso, a resposta

do aluno, ao enunciar “eu mesmo”, pode remeter à seqüência interrogativa da instrução

iniciada por “E você”.

Já no segundo caso, a solução para a quebra do encanto da cobra é constituída em referência

aos “contos de fadas”. Nesse texto, a remissão aproxima-se do conto “A Bela Adormecida”, já

que “para desfazer o encanto tinha que dar um beijo na cobra”, o que ocasionaria a quebra

do encanto e, por conseguinte, o happy end do casal: “tornou uma bela india denovo e se

casaram e viveram felizes para sempre”.

Esses enunciados de escrita infantil testemunham o caráter dialógico do processo de

produção-recepção dos gêneros no interior de uma determinada prática social.

3. A elaboração curricular dos gêneros como objetos de ensino

Os critérios para a organização e seqüenciação dos conteúdos curriculares, conforme os PCN,

teriam que levar em conta os eixos USO – REFLEXÃO – USO, princípio que deve atravessar

toda a escolaridade e que implica “compreender que tanto o ponto de partida como a

finalidade do ensino da língua é a produção/compreensão de discursos” (PCN – 1o. e 2o.

ciclos [nota de rodapé], p. 44). Trata-se, assim, de um princípio curricular “em que se

pretende que, progressivamente, a reflexão se incorpore às atividades lingüísticas do aluno

de tal forma que ele tenha capacidade de monitorá-las com eficácia”(PCN – 1o. e 2o. ciclos,

p. 48).

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 48 .

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Uma proposta de trabalho com o gênero como eixo norteador do currículo de Português exige

que se defina uma entrada para o ensino que conjuga a abordagem do texto por meio,

principalmente, das condições em que ele é produzido e circula. Nessa direção, muito mais do

que o ensino de estruturas globais dos textos ou de seqüências tipológicas (narração,

descrição, argumentação etc.), enfocam-se os sentidos neles construídos. Isso porque o texto é

considerado em seu processo de significação, com base nos componentes que caracterizam o

gênero a que ele pertence: finalidades reconhecidas, estatuto dos interlocutores, coordenadas

espaço-temporais, suporte material e organização textual (ver Maingueneau, 2004).

Com base nesse princípio geral, a entrada curricular pelos gêneros:

i) Amplia o repertório de textos tornados unidades de ensino, incluindo-se aqueles ligados a

gêneros orais (especialmente os formais públicos) e aqueles ligados às novas tecnologias de

comunicação-informação (os gêneros digitais);

ii) Aborda os conteúdos gramaticais, em articulação com o trabalho com os gêneros

selecionados para o ensino;

iii) Dá lugar ao tratamento de fenômenos de variação, relativos à modalidade, à

norma e ao registro da língua.

Essa entrada curricular pelos gêneros distingue-se de pelo menos dois outros modos de

organizar o currículo de Português. Vejamos:

(a) a entrada pelos objetos gramaticais: o foco é um objeto gramatical (encontro de letras,

tonicidade, classes de palavras, sujeito e predicado etc.) e os textos (poemas, trava-línguas,

quadrinhas, contos, receita culinária etc.) que são selecionados e trabalhados em sala de aula,

em função do ensino do tópico gramatical escolhido.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 49 .

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(b) a entrada por temáticas relacionadas a datas cívicas e comemorativas (Dia da Pátria,

Tiradentes, Abolição da Escravatura, Semana do Folclore, Dia do Índio, Natal etc.) ou a

questões de cunho sociocultural (violência, drogas, família etc.). Os textos (poemas, lendas,

cantigas, causos, notícias de jornal, contos etc.), nesse caso, são pretexto para a discussão da

temática que está em foco. Não raro, a opção pelas temáticas é seguida pelo retorno aos

tópicos gramaticais.

Embora a diversidade textual seja considerada em ambas as entradas, o que indica, conforme

mencionei, que ela é um ponto em comum nos modos como se busca encaminhar o ensino,

uma questão continua a merecer discussão: qual a natureza do material textual selecionado?

Tanto em uma quanto na outra entrada, os textos selecionados costumam ser aqueles ligados a

gêneros escritos (ou que se materializam geralmente na modalidade escrita). A oralidade

parece ser tratada com base em pelo menos três procedimentos:

• como modo de motivar para a aula ou como introdução a exercícios escritos (leitura oral e

coletiva de comandos de questão dos exercícios etc.);

• como oralização dos textos escritos selecionados (leitura oral);

• como comentário dos textos oralizados, detectando-se o assunto de que tratam e outros

elementos, ligados, em geral, à sua organização estrutural (no caso da narrativa, por exemplo,

ênfase nos elementos como personagens, ações, cenário etc.). Trata-se de um exercício

preliminar, que prepara as questões que serão pedidas no exercício escrito.

Nessa perspectiva, o trabalho com a oralidade não aparece voltado ao ensino de determinados

gêneros orais, especialmente os formais públicos, mas está a serviço do ensino de outros

objetos ou serve de suporte para o desenvolvimento de tarefas ligadas a esses objetos.

Ainda no que se refere à natureza do material selecionado, caberia pensar em como se lida (e

se pretende lidar) com os gêneros em que as modalidades oral e escrita se constituem em

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 50 .

Page 51: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

conjunto com outros registros semióticos, como a imagem e o som. Refiro-me, por exemplo,

àqueles gêneros que integram a chamada mídia eletrônica (os gêneros digitais), com que um

contingente cada vez maior de indivíduos tem tido contato, direta ou indiretamente, embora se

deva reconhecer que o acesso a esse domínio ainda não esteja democratizado na sociedade

brasileira como um todo. A consideração desses gêneros parece ser condição indispensável e

tarefa imprescindível para aprofundar a compreensão dos modos de inserção dos indivíduos

no mundo das práticas letradas, atualmente.

A diversidade textual – já presente em muitas práticas de ensino do Português – é reenfocada

em uma proposta curricular baseada no trabalho com gêneros. Isso porque se acredita que não

basta expor os alunos a uma multiplicidade de textos (para cada aula um texto novo, de um

gênero diferente!), mas selecionar e trabalhar esses textos com base no gênero a que eles

pertencem. Assim, um professor que planejasse trabalhar com o gênero notícia, diversificaria

os textos com base em determinados critérios, como, por exemplo:

• diferença de veículos de comunicação: jornais de empresas jornalísticas diferentes;

• diferença de suportes midiáticos: a notícia que aparece no jornal impresso diferencia-

se daquela que aparece na versão digital e daquela que aparece no telejornal;

• diferença de públicos leitores: uma notícia que aparece em uma revista dirigida a

adolescentes diferencia-se daquela dirigida ao público feminino ou a profissionais de

determinadas áreas.

Diferenças como essas (e outras mais) podem incrementar o processo de apropriação dos

textos pelos alunos, inserindo-os de modo mais reflexivo nas práticas de leitura-escuta e

produção de textos do gênero em foco.

A questão da diversidade textual e o modo com que ela deve ser encarada representam duas

das principais preocupações dos professores na construção curricular. Uma das indagações

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 51 .

Page 52: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

que, em geral, aparece é: quais os gêneros que se deve selecionar? A decisão a esse respeito

vai depender fundamentalmente dos objetivos da equipe de professores quando da elaboração

do currículo para determinada série ou ciclo de ensino. Por exemplo, há gêneros propícios ao

desenvolvimento das práticas de leitura-escuta e produção textual, enquanto outros parecem

mais adequados ao trabalho com um desses eixos de práticas.

Assim, ao optar por trabalhar, por exemplo, com um gênero como bula de medicamentos, cuja

produção em nossa sociedade está sob a responsabilidade de um grupo muito específico de

indivíduos (os chamados bulólogos), a pergunta que se poderia formular é: qual o objetivo de

pedir aos alunos que produzam bulas?

Há vários critérios possíveis para a seleção dos gêneros a serem ensinados. Os PCN de Língua

Portuguesa para o Ensino Fundamental (especialmente aqueles relativos ao segundo segmento

desse nível de ensino) explicitam um critério – os domínios de circulação social dos gêneros:

cultura literária, imprensa, divulgação científica e publicidade.

Dolz, Noverraz & Schneuwly (2001/2004, p. 121), por sua vez, conjugam esses domínios de

circulação social dos gêneros com outro critério, ligado ao desenvolvimento de determinadas

capacidades de linguagem – narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações. O quadro a

seguir (ver pág. 47), proposto pelos autores, mostra uma organização possível de

agrupamentos de gêneros:

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 52 .

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DOMÍNIOS SOCIAIS DE COMUNICAÇÃO

CAPACIDADES DE LINGUAGEM DOMINANTES

EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E ESCRITOS

Cultura literária ficcional NARRARMimeses da ação através da criação de intriga

Conto maravilhosoFábulaLendaNarrativa de aventura[...]

Documentação e memorização de ações humanas

RELATARRepresentação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo

Relato de experiência vividaRelato de viagemTestemunhoNotícia[...]

Discussão de problemas sociais controversos

ARGUMENTARSustentação, refutação e negociação de tomadas de posição

Texto de opiniãoDiálogo argumentativoCarta do leitorCarta de reclamação[...]

Transmissão e construção de saberes

EXPORApresentação textual de diferentes formas dos saberes

SeminárioConferênciaArtigo ou verbete de enciclopédiaEntrevista de especialista[...]

Instruções e prescrições DESCREVER AÇÕES Regulação mútua de comportamentos

Instruções de montagemReceitaRegulamentoRegras de jogo[...]

Uma organização curricular baseada no trabalho com gêneros exige a definição de quais

aqueles gêneros mais adequados, conforme as necessidades e as possibilidades de

aprendizagem dos alunos. Alguns entre esses gêneros podem retornar ao longo da

escolaridade dos alunos. Nesse caso, o retorno de um gênero já estudado em uma série-ciclo

de ensino é orientado por um trabalho diferenciado, que leve em conta os conhecimentos já

aprendidos e permita algum tipo de progressão no processo de aprendizagem.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 53 .

Page 54: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Assim, se a escola definiu a lenda como um dos gêneros a serem trabalhados na 1ª. série do

Ensino Fundamental e se também a equipe de professores da 7ª. série tiver optado pelo

mesmo gênero, a abordagem desse gênero será necessariamente diferenciada em cada uma

das séries: ou seja, os objetivos serão outros, os recursos textuais trabalhados serão diferentes,

as tarefas propostas também, além dos instrumentos de avaliação, entre outros aspectos.

A aposta é que o aluno se aproprie, ao longo de sua escolaridade fundamental, de um conjunto

de gêneros orais-escritos: aprenderia a lê-los/escutá-los, a produzi-los e a desenvolver uma

reflexão sobre eles. Essa perspectiva de trabalho distingue-se, significativamente, de outra:

daquela em que, embora o texto seja considerado, sua abordagem está a serviço do tratamento

de outros objetos (sobretudo dos gramaticais) ou fica muito minimizada pela falta de uma

sistematização curricular que o considere unidade efetiva de ensino.

Além do problema da seleção de gêneros para o ensino, duas outras questões merecem ser

mencionadas. A primeira refere-se à possibilidade de conjugar várias perspectivas (entradas)

curriculares: é possível juntar a entrada pelos gêneros com uma entrada pelas temáticas? A

prática dos professores tem mostrado que esse procedimento pode apresentar vantagens. O

importante, a meu ver, é não perder de vista que o objeto específico do Português, como

disciplina escolar, é a linguagem. O trabalho com as temáticas parece interessante na medida

em que permitir trabalhar os modos com que elas se configuram em um determinado gênero.

Assim, um professor que escolhesse trabalhar, por exemplo, o tema “Água”, poderia optar

por um gênero que seria foco do ensino (notícias jornalísticas, por exemplo) e, nesse caso,

trataria dos modos com que o tema se concretiza, ganha corpo no gênero escolhido. Poderia

mais: mostraria aos alunos os modos diversos com que esse tema se constrói em outros

gêneros: em uma peça publicitária de uma marca de Água Mineral, em um conto, em uma

lenda, em uma entrevista televisiva etc.

Uma segunda questão ainda relativa à construção curricular é como a gramática e aspectos

ligados à ortografia podem ser integrados a uma proposta de trabalho com gêneros. Essa

questão mereceria ser tratada com bastante atenção, já que ela representa um dos tópicos mais

debatidos quando o assunto é ensino do Português. O debate sobre como se deve tratar essa

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 54 .

Page 55: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

questão parece ter esclarecido melhor a indagação sobre se podemos ou não ensinar a

gramática e as convenções do sistema de escrita.

Apenas para instigar a discussão, proporia que pensássemos na possibilidade de integrar esses

objetos ao trabalho com os gêneros. Esse procedimento parece possível quando pensamos que

determinados gêneros, do ponto de vista de sua organização textual, privilegiam alguns

recursos lingüísticos e não outros. Uma peça publicitária, por exemplo, organiza-se

textualmente em seqüências tipológicas predominantemente injuntivas (Beba Coca-Cola, Use

sempre copiadoras TOSHIBA etc.). Ora, a injunção se realiza pelo modo imperativo do verbo

e por outros recursos gráficos ou semióticos (a depender, por exemplo, do suporte

considerado: pontuação no suporte impresso; imagens e sons, no suporte digital e televisivo).

Com esse procedimento, o professor estaria trabalhando com seus alunos tanto as seqüências

tipológicas que organizam textualmente o gênero em foco, quanto os recursos lingüísticos

(gramaticais) que ajudam a construir essa textualidade.

Como efeito desse trabalho, possibilitaria aos alunos perceberem uma dimensão que marca a

constituição histórica de todos os gêneros: a heterogeneidade. Com base nessa idéia, podemos

pensar que não existem gêneros puramente orais e puramente escritos. Os gêneros foram

sempre multimodais, no sentido de que sempre se construíram nas relações complexas entre o

oral, o escrito, o visual, o gestual etc6.

4. A elaboração didática dos gêneros como objetos de ensino

Como traduzir a proposta curricular em seqüências de atividades de ensino? Essa é uma

indagação bastante freqüente quando se discute o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa:

o como fazer.

Em geral, o professor elabora, consciente ou inconscientemente, de modo mais ou menos

intuitivo, mais ou menos formalizado, uma seqüenciação dos conteúdos e o modo com que

eles serão trabalhados, conforme o tempo (em geral, um bimestre letivo) destinado para esse

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 55 .

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fim. Essa idéia aparece na discussão que propõem De Pietro & Schneuwly (2003/2006) sobre

a necessidade de se construir o modelo didático do gênero que se pretende ensinar.

Nessa direção, o ensino de um gênero exige que esse gênero se torne conhecido pelo

professor. Esse é o primeiro passo para que o professor possa definir quais as dimensões, os

componentes do gênero que serão objeto de um ensino sistemático, ou seja, elabora-se um

modelo didático do gênero. Para isso, quatro fontes de informação podem ser convocadas:

i) As práticas sociais de referência: como o gênero funciona, como se dá sua produção e

recepção nas práticas sociais;

ii) A literatura sobre o gênero: como se define o gênero, como ele é caracterizado nos

estudos que se voltam para ele;

iii) As práticas linguageiras dos alunos, suas necessidades e possibilidades de aprendizagem,

segundo sua faixa etária e seu grau de letramento;

iv) As práticas escolares: ou seja, o modo com que a escola vem lidando com o ensino de

língua, as experiências acumuladas, as formas de trabalho já experimentadas no cotidiano

escolar.

Com base nessas quatro fontes de informação, torna-se possível definir aquilo que se pretende

ensinar do gênero selecionado, excluindo-se ou deixando para outro momento o ensino de

determinadas dimensões do gênero. Por exemplo, se o professor opta por ensinar o gênero

debate: ao definir um modelo didático desse gênero, o professor pode optar por excluir de

seus objetivos de ensino o trabalho com estratégias de convencimento que utilizam má-fé e

falso testemunho, ou a agressão direta. Embora esses sejam componentes freqüentes em um

tipo de debate conhecido pelos alunos – o debate político –, parece que eles pouco têm a ver

com a função educativa da escola.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 56 .

Page 57: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Outra situação possível na definição daquilo que se pretende ensinar é aquela em que o

professor elege algumas dimensões do gênero e deixa as outras para aprofundamento em outra

série. Assim, um mesmo gênero – por exemplo, a fábula – pode ser objeto de estudo na 1ª. e

na 4ª série. Para cada uma dessas séries podem ser definidos componentes diferentes do ponto

de vista, por exemplo, da organização textual do gênero: para a 1ª., pode-se enfocar o trabalho

sobre a construção das personagens; para a 4ª., o trabalho se voltaria para os modos de

configuração dos discursos direto e indireto. Decisões como essas dependem, em grande

medida, do diálogo que precisa ser estabelecido entre a equipe de professores de Português e

desses com os professores de outras disciplinas.

É a partir da definição desse modelo didático do gênero que a equipe pode elaborar o

conjunto de atividades e tarefas e o modo com que elas serão seqüenciadas, além dos

procedimentos e recursos didáticos a serem utilizados e dos instrumentos de avaliação da

aprendizagem a serem propostos.

Trata-se da elaboração do que Dolz, Schneuwly e seus colaboradores (2001/2004) chamam de

seqüência didática, um conjunto de oficinas de ensino/aprendizagem seqüenciadas e

articuladas em torno do gênero a ser ensinado. Guimarães, Cordeiro & Azevedo (2006)

apresentam os componentes de uma seqüência didática, como a seguir:

• a apresentação do projeto de trabalho e da situação de comunicação (evocação das características mais importantes – objetivo, enunciador, destinatário, conteúdos – do gênero de texto a ser produzido),

• a produção de um primeiro texto (a fim de delimitar as capacidades e as dificuldades do aluno),

• as oficinas de trabalho (atividades e exercícios organizados em função da modelização das características do gênero) e

• a produção final (em que o aluno retoma os conhecimentos adquiridos ao longo da seqüência e o professor avalia os progressos realizados).

As autoras assinalam que:

Preferencialmente, uma seqüência didática deve ser realizada num espaço de tempo relativamente curto e ter um ritmo adaptado às possibilidades de aprendizagem dos alunos. As atividades e os exercícios propostos devem ser variados e levar os alunos a distinguir o que eles já sabem fazer do que ainda devem adquirir.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 57 .

Page 58: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Vejamos o exemplo, apresentado pelas autoras, de uma seqüência de ensino do gênero

narrativa de aventura de viagem desenvolvida com alunos de 3ª. série do Ensino

Fundamental (na faixa etária entre 9 e 11 anos):

OOFIC IN AFIC IN A 1 – P 1 – P ES Q U IS AES Q U IS A S O B R ES O B R E N A RR A TIV A SN A RR A TIV A S D ED E A V EN TU R A SA V EN TU R A S D ED E V IA G EN SV IA G EN S

Nesta oficina, os alunos exploraram obras originais e adaptações para aprenderem a identificar o título, o nome do autor, as personagens típicas, as características espaciais e temporais do gênero, assim como os momentos de ação, aventura, suspense e as unidades lingüísticas que os indicam.

OOFICINAFICINA 2 – P 2 – PESQUISAESQUISA SOBRESOBRE TIPOSTIPOS DEDE NARRADORESNARRADORES

Esta oficina foi realizada para que os alunos aprendessem a distinguir o autor do narrador e a narrar na 1a ou na 3a pessoa.

OOFICINAFICINA 3 – C 3 – CARACTERÍSTICASARACTERÍSTICAS CULTURAISCULTURAIS DOSDOS SÉCULOSSÉCULOS XVI, XVII XVI, XVII EE XVIII XVIII

Esta oficina centrou-se na descoberta das características culturais da época: profissões, modo de vida de famílias ricas e pobres, vestimentas, embarcações e armas utilizadas.

OOFICINAFICINA 4 – I 4 – IDENTIFICAÇÃODENTIFICAÇÃO, , FUNÇÃOFUNÇÃO EE CARACTERÍSTICASCARACTERÍSTICAS DASDAS PERSONAGENSPERSONAGENS NUMANUMA AVENTURAAVENTURA DEDE VIAGENSVIAGENS

Esta oficina objetivava a identificação das características do protagonista, de seus companheiros e do antagonista. Os alunos aprenderam também a identificar o objetivo, as situações vividas pelo protagonista e as ações por este realizadas.

OOFIC IN AFIC IN A 5 – E 5 – E TA P A STA P A S P AR AP AR A AA ES CR ITAES CR ITA D ED E U MAU MA N A RR A TIV AN A RR A TIV A D ED E A V EN TU R A SA V EN TU R A S D ED E V IA G EN SV IA G EN S

Nesta oficina, os alunos fizeram um apanhado dos elementos necessários para a reescrita do texto inicial ou escrita do texto final (criação e caracterização das personagens; estabelecimento do objetivo que o protagonista deverá alcançar e as dificuldades a superar; organização das aventuras no espaço-tempo; criação de um título).

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 58 .

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A proposta de seqüência didática apresenta, a meu ver, várias vantagens, uma vez que leva em

conta tanto o pólo do aluno – o que ele já conhece e como aprende –, quanto o pólo do

professor – os instrumentos didáticos (as tarefas, por exemplo) de que se utiliza para ensinar

se baseiam no que ele conhece sobre o repertório de conhecimentos e de práticas de

letramento de que os alunos já se apropriaram e daquilo que são capazes de aprender.

Além disso, tendo finalizado a seqüência didática para o ensino de um gênero, o professor terá

elementos para avaliar, juntamente com os alunos, as dificuldades, os desafios e os avanços

encontrados no percurso de estudo do gênero. Esses dados podem ajudar o professor a ajustar

a seqüência quando a propuser a outra turma de alunos, em outro ano letivo. Com o passar do

tempo, o professor teria um arquivo significativo de seqüências (contendo tarefas, recursos

didáticos, procedimentos e instrumentos de avaliação da aprendizagem). Esse arquivo serviria

como referencial didático que, ao mesmo tempo em que testemunharia a memória do

cotidiano de suas práticas didáticas, comporia um mosaico de experiências passível de servir a

outros professores, ao projeto educativo da escola como um todo.

É preciso dizer que a proposta de seqüência didática descrita acima não é a única forma de

planejar o ensino. Essa proposta, entretanto, nos instiga a inventar outros modos de organizar

o ensino de um dado gênero. O que parece significativo é a idéia de que não há ensino casual:

programá-lo parece ser o passo inicial para que possamos desenvolver uma postura de

reflexão constante sobre ele, na sala de aula, na comunidade escolar, nos espaços de

formação, na sociedade como um todo.

5. Para continuar o diálogo

As questões apresentadas neste texto pretenderam pôr em questão os desafios que um

currículo que toma o texto como unidade de ensino do gênero como objeto de ensino coloca

para as práticas de ensino-aprendizagem da língua na escola. Quase uma década depois da

publicação dos PCN, temos incrementado a reflexão sobre o ensino de gêneros com um olhar

mais preciso (mas não definitivo) sobre o que significa uma proposta de trabalho centrada no

gênero.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 59 .

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Diferentes contextos socioculturais em que se ensina Português, pelo Brasil afora, têm-se

integrado, de modos os mais diversos, às discussões sobre o currículo de Português com base

no trabalho com gêneros. Algumas questões têm retornado e outras são propostas. Não seria

possível tratar de todas elas neste texto. Aponto para uma que me parece particularmente

significativa, relativa ao lugar do livro didático em um currículo centrado no trabalho com

gêneros. A conversa só está começando, o diálogo continua aberto.

Para saber mais... algumas referências

Textos teóricos

BAKHTIN, M., VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas

fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem [1929]. São Paulo: HUCITEC,

1979.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal [1952-3]. São Paulo:

Martins Fontes, 2003.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos da comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.

MEURER, J. L., BONINI, A. & MOTTA-ROTH, D. (orgs.). Gêneros – teorias, métodos,

debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

ROJO, R. H. R. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In:

Meurer, J. L., Bonini, A. & Motta-Roth, D. (orgs.). Gêneros – teorias, métodos, debates. São

Paulo: Parábola Editorial, 2005.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 60 .

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Textos que tematizam o gênero como objeto de ensino

De PIETRO, J.-F. & SCHNEUWLY, B. O modelo didático do gênero: um conceito da

engenharia didática. In: Moara – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, n. 26, 2006.

DOLZ, J., NOVERRAZ, M & SCHNEUWLY, B. Seqüências Didáticas para o Oral e a

Escrita: Apresentação de um Procedimento. In: Roxane Rojo & Glaís Sales Cordeiro (orgs.).

Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas. Mercado de Letras: 95-128. (Original

publicado em S'exprimer en Français. Séquences Didactiques pour L'oral et L'écrit. Bruxelas:

Editions de Boeck, 2001/2004.

GOMES-SANTOS, S. N. Recontando histórias na escola: gêneros discursivos e produção da

escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GUIMARÃES, CORDEIRO, G. S., AZEVEDO, I. C. M. Realidades sociais diferentes e

gêneros textuais: duas experiências do contexto escolar brasileiro. Moara – Revista do

Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará, Belém, PA, n. 26,

2006.

SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas: Mercado de

Letras (Roxane Rojo & Glaís Sales Cordeiro, org. e trad.), 2004.

ROJO, R. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular

e projetos. In: A Prática de Linguagem em Sala de Aula. Campinas: Mercado de Letras, 2000.

_____. ROJO, R. A Prática de Linguagem em Sala de Aula. Campinas: Mercado de Letras,

2000.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 61 .

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ROJO, R & CORDEIRO, G. S. Apresentação: gêneros orais e escritos como objetos de

ensino: modo de pensar, modo de fazer. In: Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas.

Mercado de Letras: 95-128. (Original publicado em S'exprimer en Français. Séquences

Didactiques pour L'oral et L'écrit. Bruxelas: Editions de Boeck, 2001/2004.)

Notas:

Professor da Universidade Federal do Pará. Doutor em Lingüística - Unicamp. Pós-doutor pela Universidade de Genebra, em colaboração com Bernard Schneuwly. Temas principais de pesquisa: práticas de ensino-aprendizagem de língua materna, processos de constituição da língua portuguesa como disciplina escolar, práticas de produção-recepção de gêneros textuais.

2 CHERVEL, A. La culture scolaire – une approche historique. Paris: Belin, 1998.

3 SOARES, M. Português na escola – história de uma disciplina curricular. In: BAGNO, M. (org.). Lingüística da Norma. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 155-177.

4 As considerações sobre a noção de forma escolar são creditadas a Bernard Schneuwly, em conferência intitulada “Genres et forme scolaire: enseignement e apprentissage de la langue première à l’école”, durante a abertura da Jornada de Estudos “Corpus et Genres: apport des grands corpus pour la caracterisation des genres scolaires”, em 10/06/2006, na Université de Paris X, em Nanterre (FR).

5 Agradeço a João Wanderley Geraldi por me ter chamado a atenção para a importância desse aspecto.

6 Esse aspecto foi explicitado por Roxane Rojo, por ocasião da Mesa Redonda “Análise de gêneros hoje: contribuições para a compreensão dos gêneros como elementos constitutivos das práticas sociais”, no V Congresso Internacional da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN), realizado no período de 28/02 a 03/03/2007, na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG).

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 62 .

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PROGRAMA 4PROGRAMA 4

COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS

Leitura e Escrita: Produção de sentidosLeitura e Escrita: Produção de sentidos

Estudo dos processos referenciais como um meio de (re)construir a coerência em

atividades de compreensão e produção de textos

Mônica Magalhães Cavalcante1

Vista como atividade sócio-interativa situada, a língua não é uma forma de representar a

realidade. Assim, é na interação (seja com um texto ou um outro indivíduo) que emergem

os sentidos numa espécie de ação coletiva, o que permite dizer que as relações que

possibilitam a continuidade temática e a progressão referencial no texto, fazendo surgir

coerência e coesividade, não são propriedades intrínsecas apenas. Coesão e coerência

não se esgotam nas propriedades léxico-gramaticais imanentes à língua enquanto código,

nem no texto enquanto artefato. Embora as relações léxico-gramaticais continuem

cruciais, requerem-se, ainda, atividades lingüísticas, cognitivas e interacionais integradas

e convergentes que permitam o acesso à construção de sentidos partilhados (...). Portanto,

mais do que um simples instrumento de representação e comunicação, a língua é uma

forma de ação e interação. É neste sentido que o texto pode ser visto como um sistema de

construção do conhecimento ou um lugar de explicitação da experiência humana e não

apenas um artefato lingüístico. (...) E será neste contexto que a questão central dos

processos referenciais deverá ser analisada (Luiz Antonio Marcuschi).

Uma explicação necessária

Os sentidos de um texto, falado ou escrito, não se esgotam naquilo que ele explicita.

Compreender ou produzir um texto envolve um processo de interação contínua entre o

enunciador e os possíveis interlocutores que, por sua ação conjunta de criar e recriar sentido e

referência, podem ser chamados de co-enunciadores. Como bem afirmou Bakhtin ([1929]

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1972), essa interatividade é inerente à própria língua e constitui um princípio universal de

dialogismo em todos os usos de fala e escrita. Nesse processo de construção e de reconstrução

da coerência textual, os mecanismos de referenciação são essenciais. Cada vez que, por meio

de expressões nominais e de pronomes substantivos, nós nos referimos a entidades presentes

no universo do discurso, para nomeá-las ou redesigná-las, estamos nos valendo de processos

referenciais. Assim, nos exercícios de compreensão de texto e de redação, mesmo quando os

manuais de ensino não mencionam tais processos, ainda assim, estão fazendo uso deles.

Compete, por isso, aos professores de Língua Portuguesa chamar a atenção dos alunos para o

modo como, somente através de estratégias de referenciação, é possível ir recuperando as

ligações entre as entidades que aparecem num texto e que se relacionam a muitos de nossos

conhecimentos de mundo. É dessa maneira que se compreende o que o enunciador de um

texto quis (ou não) revelar. E é dessa maneira que, quando elaboramos um texto, vamos

guiando o co-enunciador, por processos referenciais, para o rumo que pretendemos alcançar,

mas que ele alcançará a seu modo, conforme suas experiências e sua visão das coisas. Foi

pensando nisso que propusemos, aqui, algumas atividades de referenciação que poderão ser

úteis nas aulas de compreensão e produção de textos.

Uma estratégia fundamental para se produzir ou para se compreender um texto é ir

(re)construindo, gradativamente, as entidades a que se faz referência no universo do discurso.

Essas entidades, que criamos e recriamos em nossas práticas sociais e comunicativas, quando

elaboramos ou quando entendemos um texto, são os chamados referentes, que se manifestam

sob a forma de expressões referenciais, como nomes próprios, ou grupos nominais inteiros,

ou pronomes pessoais e demonstrativos. Assim, no trecho abaixo, podemos identificar, dentre

outros, um conjunto de referentes, designados pelas expressões referenciais grifadas:

(1) "O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão

sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.

Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me

alegra, montão. (...) Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou

perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa" (Guimarães Rosa – Grande Sertão:

Veredas).

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Quando interpretamos o exemplo acima, não podemos afirmar que os referentes de “as

pessoas”, ou de “a vida”, ou ainda de “as coisas feitas e perfeitas” sejam exatamente os

mesmos para todos os leitores, nem que correspondam às mesmas entidades idealizadas pelo

narrador da obra. Com certeza, o que o enunciador concebe como “pessoas” só coincide em

parte com o que cada leitor imagina serem as pessoas, porque cada um tem suas experiências

pessoais, familiares e culturais. Do mesmo modo, quando o enunciador fala do que “a vida lhe

ensinou”, o leitor não vai recuperar com precisão como era a “vida” a que ele se refere. Essa

coincidência total entre o que um escritor cria e o que um leitor recria nunca existirá. Haverá,

sim, muitos aspectos em comum nos sentidos e nas representações das entidades para

escritores e leitores, e é isso que basta para que se promova a (re)construção de um texto.

Nem o significado das expressões referenciais, nem os próprios referentes pelos quais

compreendemos o mundo têm total estabilidade num texto. Eles se encontram em constante

transformação, porque dependem do modo como os percebemos, do modo como nossa cultura

nos influencia a vê-los e a denominá-los, do modo como julgamos que nossos interlocutores

os encaram e até do modo como os textos, falados e escritos, guiam nosso olhar para eles.

Ao ser introduzida num texto uma dada entidade, constrói-se para ela uma referência, que não

começa nem termina no momento em que a representamos por uma expressão referencial,

mas que tem seqüência num processo amplo de referenciação, do qual participa não apenas

quem enuncia o texto, mas também quem há de possivelmente interpretá-lo e reconstruí-lo.

Os referentes criados no universo do discurso se relacionam uns com os outros de maneiras

diversas, o que produz uma espécie de continuidade referencial. Em termos técnicos, é o que

se costuma tratar como anáfora. Um tipo muito comum de relação anafórica acontece quando

um mesmo referente é retomado totalmente dentro do texto, como se dá com “Mário Lago”,

no exemplo (2).

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(2) Ai, que saudades de Lago

Mário Lago morreu, ontem, no Rio de Janeiro. Os 90 anos de vida sucumbiram a

um enfisema pulmonar, que já havia causado a internação do artista entre 15 de

fevereiro e 12 de março. Mário Lago deixou um rasto de histórias na dramaturgia,

boemia e até na política.

"O que lhe dá prazer?" Mário Lago, então com 87 anos, respondeu à jornalista:

"Viver. Eu digo sempre: meus pais, quando acabaram de me fazer, riam pra burro!

Então eu tenho que justificar essa alegria, né? Viver é uma grande coisa...". Até

que chegou aos 90 no dia 26 de novembro do ano passado. Viveu. "Eu nunca abri

mão da minha condição de boêmio. Nem na militância política. Eu dizia: 'A

minha tarefa está cumprida, então, agora, eu vou para o meu cabaré'".

Na verdade, Mário Lago queria mais um bocadinho de vida. "Tenho confiança de

que vou até os 100", anunciou ao Jornal do Brasil (20/01/2002). Mas a queria

lúcido. "O problema não é envelhecer, é encorocar... Não pode ficar velho

coroca". Aqui e agora. "Não sou aquele velho que diz: 'Ah, no meu tempo'. Meu

tempo é hoje" (O Povo, 20/5/2002).

O referente que é retomado tem recebido diferentes nomes nos estudos sobre o assunto, como

antecedente, gatilho, desencadeador e âncora. No exemplo acima, a âncora para os

anafóricos “Mário Lago”, “o artista”, “lhe” e pronomes elípticos é a própria expressão “Mário

Lago”, que é retomada outras vezes no texto. Como o anafórico e sua âncora coincidem neste

caso, porque representam a mesma entidade, dizemos que eles são correferenciais.

Mas existem outras espécies de anáfora que não são correferenciais: ocorrem quando um

referente não é diretamente retomado por inteiro, mas guarda com sua âncora (que, às vezes,

pode nem ser um outro referente, mas uma pista qualquer do texto) algum tipo de associação

no contexto de uso. Em (3), por exemplo, podemos considerar como anafóricas as expressões

referenciais “a professora” e “o fundo da sala”, não porque expressem a mesma entidade, mas

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pelo modo como se associam indiretamente com sua âncora “as crianças”, compondo um

cenário de escola e de aula.

(3) Todas as crianças haviam saído na fotografia, e a professora estava tentando persuadi-las a comprar uma cópia da foto do grupo.

– Imaginem que bonito será quando vocês forem grandes e puderem dizer: “Ali está a Catarina, é advogada”, ou também: “Este é o Miguel. Agora é médico".

Ouviu-se uma vozinha vinda do fundo da sala:

– E ali está a professora. Já morreu.

(Essas historinhas são verdadeiras – fonte: internet)

Observe-se que, ao contrário do anafórico “a foto do grupo”, que retoma uma entidade já

mencionada antes, no caso, “a fotografia”, as expressões referenciais destacadas em (3)

remetem a referentes que nunca foram mencionados no texto; aparecem ali pela primeira vez,

mas são formalmente manifestados como se já os conhecêssemos, porque o enunciador supõe

que saibamos da relação que há entre eles e suas âncoras, de acordo com os hábitos de nossa

comunidade cultural. A esse fenômeno, dá-se o nome de anáfora indireta, um dos principais

mecanismos de articulação das idéias num texto.

Não se empregam expressões referenciais simplesmente para dar continuidade a referentes

que vão sendo introduzidos, nem apenas para dar coesão ao tecido textual, mas,

principalmente, para fazer as referências irem progredindo aos poucos, a partir das indicações

deixadas pelo texto, que vão ativando na memória dos interlocutores informações e

sentimentos diversos. A seleção das diferentes formas de expressão referencial, por isso,

nunca é ingênua: atende sempre aos propósitos discursivos do enunciador em contextos

particulares de uso. Leia-se o texto seguinte:

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(4) Tempo de desejar, tempo de pensar

Amanhecer: o mais antigo

sinal de vida sobre a Terra.

Amanhecer: ainda o mais novo

sinal de vida sobre a Terra.

Amanhecer e vida humana

se entrelaçam na mesma luz.

Adia-se outra vez

a instauração do amor,

o advento da paz?

Mesmo assim, mesmo em sonho

outra vez se deseja

a instauração do amor,

o advento da paz.

(Carlos Drummond de Andrade)

Veja-se que, em (4), o referente de “amanhecer” vai ganhando novos contornos à medida que

novos predicados vão sendo atribuídos a ele, como “o mais antigo sinal de vida sobre a

Terra”, e, em seguida, num aparente paradoxo, “ainda o mais novo sinal de vida sobre a

Terra”, até chegar ao objetivo maior de compará-lo à instauração do amor e ao advento da

paz, que se renovam na vida humana. Podemos dizer, assim, que o referente vai sendo

recategorizado, isto é, vai sendo transformado, e que essas modificações podem ou não ser

reveladas para o leitor pelas próprias expressões referenciais, como aconteceu com o

“amanhecer” no texto acima.

Por vezes, porém, uma recategorização de referente pode se verificar apenas implicitamente,

e, nessa situação, compete ao receptor, como co-enunciador do texto, fazer as inferências

necessárias, que o enunciador espera que ele faça, para reconstruir a referência, a partir de

outras indicações contextuais. Isso acontece, por exemplo, com “álcool” na piada abaixo, que

passa de “bebida alcoólica”, na voz do médico, para “álcool etílico”, na voz do bêbado.

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(5) O médico tenta examinar o paciente, que está completamente embriagado.

– O senhor toma muito álcool?

– Não, doutor! Muito difícil... Só mesmo quando não tem uma cachacinha por perto (Piadas de bêbado – autor desconhecido).

Aqui, o jogo referencial se efetiva a partir da associação entre as âncoras “médico” e

“paciente” e o anafórico “muito álcool”, conduzindo o leitor a inferir que o médico estaria

elaborando uma pergunta rotineira sobre o hábito de o paciente consumir bebida alcoólica.

Ademais, a âncora “completamente embriagado” constitui um forte gatilho para disparar essa

inferência. A expectativa se quebra no instante em que o bêbado opõe “álcool” a “uma

cachacinha”, denunciando que estava se referindo ao outro tipo de álcool, ao qual costumava

recorrer quando se acabava sua cachacinha. É neste momento que se promove a

recategorização do referente e se atinge o propósito humorístico da piada.

Vale notar como gêneros dos discursos humorístico e literário lançam mão do artifício das

ambigüidades ou das vaguezas referenciais para obter uma ampla variedade de efeitos de

sentido e de transformações. O texto abaixo, como veremos, não explicita para o leitor qual é,

de fato, o referente do pronome “eles” nem dos pronomes elípticos que lhe são

correferenciais. Essa estratégia permite um raio maior de possibilidades referenciais e

favorece a leitura de uma situação comum, com a qual o leitor se identifica, em que as pessoas

se aproveitam de nossa passividade, de nosso costume de não reagir às invasões de

privacidade, às perdas de direito, às agressões em geral:

(6) Na primeira noite, eles se aproximame roubam uma flordo nosso jardim.E não dizemos nada.Na segunda noite, já não se escondem:pisam as flores, matam nosso cão,e não dizemos nada.Até que um dia,o mais frágil deles

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entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e,conhecendo nosso medo,arranca-nos a voz da garganta.E já não podemos dizer nada 2.

Outros gêneros do discurso também se beneficiam do recurso à vagueza dos significados e

das referências, especialmente certos anúncios publicitários, como encontramos abaixo:

(7) * Nenhuma mulher quer um homem bom de pia.

(Colchões Orthocrin)

* Nossos clientes nunca voltaram para reclamar.

(Outdoor de uma casa de serviços funerários) (Slogans maneiros – fonte: internet)

Existe, ainda, uma maneira diferente de estabelecer relações anafóricas de modo indireto:

consiste em usar uma expressão referencial para resumir trechos inteiros de um texto, como

no caso seguinte:

(8) Texto do Bial para Bussunda

Assisti a algumas imagens do velório do Bussunda, quando os colegas do

Casseta & Planeta deram seus depoimentos. Parecia que a qualquer instante iria

estourar uma piada. Estava tudo sério demais, faltava a esculhambação, a

zombaria, a desestruturação da cena. Mas nada acontecia ali de risível, era só dor

e perplexidade, que é mesmo o que a morte causa em todos os que ficam. A

verdade é que não havia nada a acrescentar no roteiro: a morte, por si só, é uma

piada pronta. Morrer é ridículo. Você combinou de jantar com a namorada, está

em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que vem, precisa autenticar

um documento em cartório, colocar gasolina no carro e no meio da tarde morre.

Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou pela

metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um cliente? Não sei

de onde tiraram esta idéia: morrer. A troco? (...) Que pegadinha macabra: você sai

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sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na

próxima esquina, começa a falar e talvez não conclua o que pretende dizer. Não

faz exames médicos, fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas

e mulheres magras e morre num sábado de manhã. Se faz check-up regulares e

não tem vícios, morre do mesmo jeito. Isso é para ser levado a sério? (...) Morrer

cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas. Morrer é um exagero.

E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das piadas. Só que esta não tem

graça (Pedro Bial).

Os anafóricos grifados no exemplo resumem, ou melhor, encapsulam os conteúdos de

extensão variada a que fazem remissão. Diferentemente dos casos anteriormente analisados,

aqui a âncora não é mais uma entidade pontualmente localizável, mas declarações inteiras que

o anafórico encapsula numa única expressão referencial. Chamamos esses casos de anáfora

encapsuladora, uma estratégia muito eficiente para sintetizar o que vem sendo dito no texto e,

ao mesmo tempo, para organizar o que vai ser comentado em seguida. Trata-se de um

excelente recurso argumentativo, muito eficaz na expressão dos pontos de vista que o

enunciador deseja revelar, como ocorre com o emprego de “pegadinha macabra” no exemplo

acima.

Explorar o uso de expressões referenciais nas aulas de compreensão e produção de textos é

fundamental para levar o aluno a reconstruir a coerência textual, avaliando como os referentes

se mantêm e como evoluem no discurso. Um texto é uma entidade abstrata, um espaço em

que se articulam relações entre o que é dito e um conjunto de informações socioculturais. Nas

ligações de sentido e de referência que compõem um texto, os conteúdos dados dão apoio à

introdução do novo. Cabe ao professor conduzir o aluno a conseguir lidar com os processos

referenciais, de modo a alcançar as relações entre o que está explícito no texto e o que só se

obtém de maneira implícita, por inferência. Sugerimos, a seguir, algumas atividades que

podem ser úteis nas aulas de Língua Portuguesa.

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Faça com seus alunos

Um dos exercícios básicos de compreensão leitora é solicitar aos alunos que identifiquem a

que se referem as expressões anafóricas sublinhadas num texto (ou seja, qual a âncora delas).

Os textos, evidentemente, devem ser adaptados a cada nível de ensino.

Atividade 1: Algumas das expressões anafóricas sublinhadas no texto abaixo remetem a

âncoras que podem ser precisamente reconhecíveis no próprio texto; outras podem ter mais de

uma âncora e outras podem encapsular porções textuais. Diga a que se referem essas anáforas

grifadas.

As meninas-dos-olhos

A luteína e a zeaxantina são as novas promessas na prevenção e no tratamento

da degeneração macular.

Todo mundo já ouviu dizer que cenoura faz bem para a vista. Isso porque ela é a

principal fonte de betacaroteno, um precursor da vitamina A, cujos poderes

antioxidantes são conhecidos desde a década de 80. Pois bem, a substância perdeu

o posto de menina-dos-olhos (com perdão do trocadilho) dos oftalmologistas para

outros dois nutrientes – a luteína e a zeaxantina. Os últimos estudos indicam que

elas, sim, são as principais aliadas na prevenção e no tratamento da degeneração

macular. Com 3 milhões de vítimas no Brasil, a doença é a principal causa de

cegueira de pessoas com mais de 60 anos. As propriedades das duas substâncias

vieram à tona graças à descoberta de que elas estão presentes em quantidades

abundantes numa das estruturas mais nobres dos olhos – a mácula, situada no

centro da retina e responsável pela visão central. Constatou-se também que, nos

pacientes com degeneração macular, a concentração de luteína e zeaxantina é

bastante reduzida. Com isso, abriu-se uma nova linha de pesquisa para o controle

da doença, a que investiga os efeitos da suplementação. Os resultados até agora

são animadores. Doses extras dos nutrientes evitam a evolução do mal,

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preservando a visão de doentes em estágio inicial. A luteína e a zeaxantina

funcionam como uma espécie de óculos de sol naturais, protegendo a mácula dos

raios mais nocivos. Além disso, como o betacaroteno, são antioxidantes, que

preservam a saúde das células maculares. (...) (Veja, 07/02/2007)

Comente com seus alunos sobre como, muitas vezes, rebatizamos algumas expressões

referenciais do texto, ou para não abusar das repetições, que comprometem o estilo, ou para

acrescentar novos significados e valores que ajudam a explicitar nossos pontos de vista. Você

pode elaborar uma atividade de compreensão e outra de produção para trabalhar a substituição

de expressões referenciais, como as seguintes.

Atividade 2: Discuta com os alunos as razões pelas quais, na reportagem abaixo, as

expressões referenciais foram recategorizadas. O objetivo, aqui, é mostrar como o emprego de

expressões que transformam o referente pode orientar a argumentação para o fim desejado.

Peça-lhes que respondam às seguintes questões:

a) Quais os meios de pesca da lagosta mencionados no texto?

b) Esses meios são designados ora como “esses apetrechos”, ora como “equipamento de

pesca”, ora como “apetrechos que servem à pesca predatória”. Mas é a recategorização “a

mais nova e ameaçadora estratégia para a captura da lagosta” que mais apóia o ponto de vista

defendido no texto. Que ponto de vista é esse? Alerte para o fato de que, ao empregar tal

expressão, ao mesmo tempo, todas as outras estratégias de captura são recategorizadas

também como ameaçadoras.

Do jereré à marambaia – pelo fim da pesca predatória

No começo, era o jereré, que se assemelha a uma rede de caçar borboletas.

Depois, a rede caçoeira, que foi da pesca porque captura espécimes de qualquer

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tamanho e destrói o hábitat das lagostas ao arrastar o que encontra no fundo do

mar, mas acabou sendo reintroduzida, desde 1995.

Além da rede caçoeira, difundiu-se a atividade de mergulho com uso de

compressor de ar, apesar de ilegal. Agora, a mais nova e ameaçadora estratégia

para a captura da lagosta é a marambaia, utilizada como recife artificial, também

clandestinamente. Todos, meios ou apetrechos que servem à pesca predatória.

É praticamente consenso entre os interessados no fim da crise da lagosta que o

único equipamento de pesca seja o manzuá. Mas o diretor da federação dos

pescadores, José Carlos dos Santos, observa que até mesmo esse apetrecho pode

ser usado como predador. “A questão é o tamanho da malha usada no manzuá”.

Como o esforço de pesca só cresce, os apetrechos vão sendo substituídos por

outros com maior capacidade de captura das lagostas. “Estão pegando as crianças

e matando”, alerta José Carlos, referindo-se aos indivíduos juvenis. No mesmo

tom de apelo, como se falasse de pessoas, o pescador aposentado Zé de Nana

questiona: “Mata-se o pai, a mãe, o filho. O que vai ficar mais?” (Revista

Universidade Pública – outubro de 2006).

Como vimos, os sentidos e as referências não estão congelados dentro de um texto: eles

apenas são ativados e guiados pelos indícios contextuais, a partir dos quais os enunciadores e

co-enunciadores constroem a referência em suas mentes.

Atividade 3: Pergunte a seus alunos que conhecimentos culturais foram ativados pelo

personagem do texto abaixo para mencionar a expressão referencial “a etiqueta” nesse

contexto.

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Um menino de três anos foi com seu pai ver uma ninhada de gatinhos que haviam

acabado de nascer. De volta a casa, contou com excitação para sua mãe que havia

gatinhos e gatinhas.

– Como você soube disso? - perguntou a mãe.

– Papai os levantou e olhou por baixo – respondeu o menino. Acho que ali estava a etiqueta. (Essas historinhas são verdadeiras – fonte: internet)

Além de tarefas de compreensão de texto, também exercícios de escrita explorando processos

referenciais podem ser muito úteis em aulas de redação. A atividade sugerida a seguir pode

ser realizada com produções dos próprios alunos, exibidas em transparência, por exemplo,

para que a turma, em conjunto, discuta algumas possibilidades de substituição (os alunos não

devem preocupar-se em tirar todas as repetições, pois, em algumas situações, elas podem ser

adequadas).

Atividade 4: A notícia a seguir foi adaptada para esta tarefa. As expressões referenciais que

designam quem cometeu o crime foram propositalmente repetidas por meio do pronome

“ele”. Você deve, primeiro, chamar a atenção para os problemas que são gerados a partir do

mau uso das expressões referenciais. Dependendo do nível da turma, algumas sugestões de

substituição podem ser fornecidas, como “o acusado”, “o assassino”, “o vigia” etc. É

importante também discutir que outras recategorizações não seriam adequadas e por quê.

TRAGÉDIA

O vigilante Antônio dos Santos, 36, assassinou a mulher, a filha de 16 anos e um

vizinho em Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza. Antes, ele teria

violentado uma mulher de 20 anos e tentado estuprar uma criança de 11. Ele,

segundo a polícia, desconfiava que a esposa o traía com o vizinho. Após o crime,

ele teria tentado se matar disparando um tiro no ouvido. Ele se encontra internado

no Instituto Dr. José Frota (IJF), em Fortaleza, e não corre risco de morte. O

delegado de Horizonte informou que ele será acusado em flagrante por crimes de

homicídio, estupro e tentativa de estupro.

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As tarefas propostas a seguir têm o propósito de salientar a importância de certos empregos

referenciais vagos ou ambíguos para a obtenção de sentidos inusitados em gêneros literários,

humorísticos e publicitários.

Atividade 6: Nem sempre a ambigüidade atrapalha a captação dos sentidos de um discurso,

pois pode se prestar à construção do humor. Solicite aos alunos que explicitem o duplo

sentido das expressões “uma ‘mudinha’”, “um extrato” e “um homem mais maduro”. Logo

após, comente como a âncora “o fim da picada” se recategoriza a partir do momento em que o

anafórico “o pernilongo” vai embora.

TROCADILHOS

Por que a plantinha não fala?

R: Porque ela ainda é uma "mudinha".

O que o tomate foi fazer no banco?

R: Tirar um extrato.

Por que a mulher do Hulk largou dele?

R: Porque ela queria um homem mais maduro.

Qual o fim da picada?

R: Quando o pernilongo vai embora.

Atividade 7: Neste exercício, assim como no anterior, você deve salientar o modo criativo

como a referência é construída, o que não acontece somente com as piadas e com os poemas.

Pergunte aos alunos qual o ponto de vista que o anúncio abaixo tenta incutir na mente dos

leitores, chamando atenção para o modo como o referente é designado nesta situação: “um

bumbum seco”.

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* Dê ao seu bebê algo que você não teve na infância. Um bumbum seco.

(Fraldas Johnson's) (Slogans maneiros – fonte: internet)

Atividade 8: Agora, você pode mostrar como a vagueza pode favorecer a reconstrução de

referentes distintos num texto literário, e a importância que isso tem para esse tipo de

discurso. Peça que identifiquem a que se referem as expressões grifadas e discuta todas as

possibilidades com os alunos.

Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é sombra

De árvores alheias.

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixa a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

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Está além dos deuses.

Mas serenamente

Imita o Olimpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

(REIS, Ricardo. In: PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

1981. p. 204.)

Sugestões de leitura para os professores

APOTHÉLOZ, D.; CHANET, C. Défini et démonstratif dans les nominalisations. In:

De MULDER & VETTERS, C. (eds.). Relations anaphoriques et (in)cohérence.

Amsterdan: Rodopi, 1997. p. 159-86.

APOTHÉLOZ, Denis; REICHLER-BÉGUELIN, Marie-José. Construction de la

référence et stratégies de désignation. In: BERRENDONNER, Alain e

REICHLER-BÉGUELIN, Marie-José (eds.) Du syntagme nominal aux objets-

de-discours. TRANEL, n. 23, p.227-71, 1995.

BLIKSTEIN, Izidoro. Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade. São Paulo:

Cultrix, 1983.

KLEIBER, Georges. L'anaphore associative. 1 ed. Paris: PUF, 2001.

KOCH, Ingedore G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.

_____. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Atos de referenciação na interação face-a-face.

Conferência apresentada por ocasião do II Congresso Internacional da

ABRALIN. Fortaleza, março de 2001.

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Notas:

Doutora em Lingüística, com pós-doutorado na área de Referenciação. Professora da Universidade Federal do Ceará.

2 Nota da edição: O texto, que aparece na Internet como se fosse de autor desconhecido, é um fragmento do poema "No Caminho, com Maiakóvski" e foi escrito nos anos 60 pelo poeta fluminense Eduardo Alves da Costa. Este mesmo fragmento também já circulou bastante em folhetos e camisetas tendo sido creditado, anteriormente, ao poeta russo Vladimir Maiakóvski e a Bertold Brecht.

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PROGRAMA 5PROGRAMA 5

A GRAMÁTICA NA ESCOLA

Língua Portuguesa: o ensino de gramática

Luiz Carlos Travaglia1

1. Introdução

Para falarmos do ensino de gramática, é preciso lembrar antes que toda metodologia é

resultado de uma série de opções que o professor faz, individualmente ou no contexto escolar.

Estas opções configuram aquilo em que o professor acredita e, portanto, são elas que acabam

dando forma às atividades de ensino/aprendizagem em sala de aula. Desse modo, uma real

mudança de postura metodológica do professor só acontecerá se as opções e crenças que o

guiam no ensino-aprendizagem mudarem. Por esta razão, julgamos pertinente falar, mesmo

que sucintamente, de algumas opções que dão forma à proposta para o ensino de gramática

que apresentamos a seguir2.

1.1. O que é gramática

O termo gramática pode ser usado com mais de um valor, por isto, para falar de ensino de

gramática, é importante saber o que se entende por gramática.

Há três concepções básicas e importantes de gramática:

a) Gramática é o próprio mecanismo da língua presente nas mentes das pessoas e que lhes

permite utilizar a língua tanto para dizer (falando ou escrevendo), quanto para compreender o

que é dito (ouvindo ou lendo). É o que se chama de gramática internalizada. Esta é o saber

lingüístico que um falante adquiriu, tendo em vista suas capacidades e o meio em que cresceu.

Quando o aluno chega à escola, ele já sabe esta gramática, pelo menos o mecanismo das

variedades lingüísticas com que ele teve contato no meio em que viveu (dialetos regional e

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social e registros de grau de formalismo e cortesia usados, essencialmente, por sua família e

amigos) e a utiliza, quase sempre, sem problemas, sendo um falante competente dessas

variedades do Português;

b) O segundo modo de conceber a gramática é o que se chama de gramática descritiva. Esta

gramática resulta do trabalho dos lingüistas ou estudiosos da língua que buscam dizer como é

o mecanismo da língua de que falamos em a, ou seja, como a língua é constituída (quais são

suas unidades, categorias, construções) e como ela funciona. Ao fazer isto, eles consideram as

variedades lingüísticas (dialetos, registros e modalidades: língua oral e escrita), registrando

que elas podem ter e têm gramáticas diferentes, mas com muita coisa igual e semelhante entre

si. A gramática descritiva é consubstanciada em uma metalinguagem com uma nomenclatura

própria, que compõe um conhecimento teórico sobre a língua. Ter esse conhecimento é saber

sobre a língua, o que é diferente de conhecer a língua, que é saber usá-la, mesmo que não se

saiba dizer nada sobre ela;

c) Finalmente temos a gramática normativa. Esta é constituída por regras que a sociedade

estabeleceu para o uso da língua. Por muito tempo a gramática normativa foi baseada

exclusivamente na variedade da língua que chamamos de “culta e padrão”. Esta variedade foi

eleita pela sociedade como sendo a melhor forma da língua não por critérios lingüísticos, mas,

sobretudo, por um critério elitista, porque era o modo como os grupos sociais de maior

prestígio (político, econômico e cultural) usavam a língua. Além desse critério, outros foram

utilizados para estabelecer o que pertence ou não a esta variedade chamada de culta e,

portanto, o que deve ou não ser usado nesta variedade da língua. Estes outros critérios são

essencialmente:

a) Lógicos, baseados na estruturação do pensamento a partir da concepção de língua como

forma de expressão do pensamento. Este critério recomenda, por exemplo, usar a preposição

“a” com verbos de movimento e não a preposição “em”, porque esta indica localização: “Vou

à cidade” e não “Vou na cidade”;

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 81 .

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b) Políticos, como o nacionalismo, que recomenda que não se usem estrangeirismos, ou seja,

palavras e construções de outras línguas;

c) Comunicacionais, pelos quais se recomenda a clareza, a precisão, a concisão da linguagem

e se condenam como defeitos o hermetismo e a dubiedade, a imprecisão e a prolixidade;

d) Históricos, que recomendam ou não o uso de determinados modos de dizer meramente por

tradição, como exigir que se use o verbo “assistir” (com o sentido de presenciar) com a

preposição “a” (João assistiu ao show), quando a lingüística já mostrou que este é um fato em

que está ocorrendo mudança e se encontra em variação na língua e, portanto, ocorrem os dois

modos de dizer. Este critério é altamente problemático, pois ele se aplica a alguns fatos e não

a outros (por exemplo: ninguém exige que hoje se fale “asinha” em vez de “depressa”, porque

antigamente era assim);

e) Estéticos pelos quais se recomenda fugir a tudo o que enfeie a língua (como pleonasmos

viciosos, ecos, cacofonias) e se use o que a torne mais bela (eufonia, figuras de linguagem,

harmonia).

Antigamente, a gramática normativa era constituída por uma série de recomendações do que

usar e de proibições de uso de outros elementos da língua. O que se podia usar era o que

estava de acordo com a norma culta e era “certo” e o que não se podia usar era o que não

estava de acordo com a norma culta e era “errado”. Hoje a gramática normativa é mais uma

atitude de despertar uma consciência de que a língua apresenta muitas variedades e que,

devido a regras sociais, é mais adequado ou menos adequado usar a língua de um modo ou de

outro, conforme a situação de interação em que estamos. A gramática normativa, hoje, é, pois,

o conhecimento social de uma “etiqueta” de como se deve usar a língua, semelhante a outras

etiquetas sociais, como, por exemplo, as regras que nos dizem que roupa é mais ou menos

apropriada ou recomendada para certas ocasiões (por exemplo: um professor – que não seja

de natação – não vai dar aula de calção de banho). Do mesmo modo, a sociedade estabeleceu

também certas regras para o uso da língua: quando podemos ou não dizer palavrões, por

exemplo. Assim sendo, a gramática normativa é vista, atualmente, mais como um conjunto de

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 82 .

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normas sociais para o uso das diferentes variedades da língua. O conceito de certo e errado foi

substituído por outro: o de adequado e não adequado. Temos que ensinar a norma culta e

padrão aos alunos, explicitando como ela é (em oposição às variedades não cultas) e quando

deve ser usada, mas não dizer para o aluno que o outro modo de dizer (que é permitido pela

língua) nunca pode ser usado. A adequação que a competência comunicativa deve considerar,

na escolha dos recursos da língua para compor os textos, é tanto da variedade lingüística à

situação de interação, quanto dos recursos lingüísticos escolhidos para a produção do efeito de

sentido que se pretende em função do objetivo que se tem (o que podemos chamar de

adequação comunicacional).

Como quase toda a produção cultural de nossa sociedade é registrada e veiculada na variante

considerada “culta e padrão”, o seu domínio é importante para se acessar com mais facilidade

toda essa produção. Cabe à escola ensinar a variedade chamada “Português padrão e/ou

culto”, tendo cuidado para não impor essa variante como modelo único de uso da língua na

fala e na escrita, mas sim como uma variedade importante em nossa sociedade e que devemos

usar em dadas circunstâncias que devemos indicar aos alunos.

É importante lembrar que a língua apresenta variedades de três tipos: 1) dialetos: de região,

de classe social, de sexo, histórico, de idade e de função; 2) modalidades: língua oral e língua

escrita; 3) registros nas seguintes dimensões: A) grau de formalismo (que vai do mais formal

ao coloquial); B) sintonia com várias dimensões: a) status; b) tecnicidade; c) cortesia; d)

norma3.

1.2. Concepção de linguagem

Quando trabalhamos na escola com a língua, a concepção que temos de linguagem e,

portanto, da língua, afeta fundamentalmente nosso modo de agir em sala de aula. Podemos

conceber a linguagem de três modos: a) como expressão do pensamento; b) como código

objetivo de comunicação, pelo qual transmitimos informações aos outros; c) como forma de

interação. Tudo o que sugerimos neste texto para o ensino de gramática baseia-se na

concepção de linguagem como forma de interação. Isto é, quando dizemos alguma coisa,

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 83 .

Page 84: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

agimos na sociedade para alcançar os objetivos que temos. Dizer é agir. Mas, como sempre

agimos sobre outro(s) e ele(s) reage(m), a ação, então, se dá entre interlocutores usuários da

língua, por isto temos interação.

A linguagem é, pois, um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção

de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um

contexto sócio-histórico e ideológico.

1.3. Objetivos de ensino de Língua Portuguesa

Em nossas aulas de Português para falantes da língua, podemos agir com objetivos diferentes.

Basicamente podemos: A) ensinar sobre a língua, formando pessoas que são capazes de

analisar a língua, analistas da língua que têm conhecimento teórico sobre a mesma; B)

ensinar a língua, formando usuários competentes da língua, isto é, pessoas que sabem usar a

língua em diferentes variedades da mesma, de modo adequado a cada situação de interação

comunicativa. Isto inclui saber usar a variedade escrita e a variedade culta, padrão, mas não

só.

Nossa proposta é que a formação de usuários competentes da língua é o objetivo prioritário

do ensino de língua materna, embora não o único. Como nos comunicamos por textos em

situações concretas e específicas de interação comunicativa (e para que haja comunicação os

textos devem produzir efeitos de sentido perceptíveis), entende-se que um usuário da língua

tem competência comunicativa quando é capaz de usar os diferentes recursos da língua de

forma adequada à produção e à compreensão de textos, que produzam os efeitos de sentido

pretendidos para a consecução dos objetivos desse usuário da língua em situações concretas e

específicas de interação comunicativa.

O que se pretende prioritariamente, portanto, é desenvolver a competência comunicativa do

aluno, ou seja, “fazer com que ele seja capaz de usar cada vez um maior número de recursos

da língua, de forma a produzir os efeitos de sentido desejados de forma adequada a cada

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 84 .

Page 85: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

situação de interação comunicativa em que esteja inserido” (TRAVAGLIA, 2004), para

alcançar seus objetivos.

Para chegar ao domínio das diferentes variedades lingüísticas, a estratégia básica e

fundamental é possibilitar o contato com essas variedades e seu uso pelo aluno. É importante

também que ele conviva com os mais diversos tipos, gêneros e espécies de textos4 para

descobrir a função e a especificidade de cada um.

Os recursos lingüísticos funcionam como pistas e instruções de sentido, para transmitir

elementos de significação. Estes, no todo e na relação com outros fatores, constituem o

sentido que o produtor do texto espera que seja percebido pelo recebedor em sua atividade

para compreender o texto. Se os recursos da língua são pistas e instruções de sentido, ao

trabalhar com o ensino de gramática, adotamos, sobretudo, a concepção pedagógica de que

no ensino, para o desenvolvimento da competência comunicativa, a gramática deve ser vista

como um estudo das condições lingüísticas da significação.

1.4. Organização do ensino5

Geralmente, as atividades de ensino/aprendizagem de língua materna costumam ser divididas

e organizadas em cinco grandes blocos:

1- Vocabulário;

2- Gramática;

3- Produção de textos;

4- Compreensão de textos;

5- Ensino de recursos e convenções da língua escrita, incluindo ortografia e pontuação.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 85 .

Page 86: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Essa divisão em blocos das atividades de ensino/aprendizagem de língua é mais uma questão

de facilidade de organização didático-pedagógica, porque, na verdade, todos os elementos da

língua atuam em conjunto na constituição e funcionamento dos textos e fazem parte da

gramática da língua, entendida como o mecanismo que permite que nos comuniquemos por

meio dessa forma de linguagem que é a língua. Assim, o léxico (exercícios de vocabulário),

bem como os tipos de textos e suas estruturas e características próprias, a significação dos

diversos tipos de recursos da língua e de cada recurso especificamente fazem parte da

gramática da língua. A gramática da língua inclui: a) todos os recursos que a constituem em

todos os planos (fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático) e níveis (lexical,

frasal, textual) e b) todas as regras, princípios e estratégias que tais recursos atendem ao

compor textos para funcionar na comunicação, criando efeitos de sentido. Portanto, deve-se

entender essa divisão apenas como um artifício para organizar o estudo da língua e o trabalho

correspondente em sala de aula.

As atividades de ensino de gramática podem ser organizadas a partir de dois pilares básicos6:

a) os recursos da língua; b) as instruções de sentido. No caso dos recursos da língua podemos

partir: a) de um recurso específico (cf. o exemplo 13) ou b) de um dado tipo de recurso — cf.

exemplos 12 (adjetivos e locuções adjetivas), 14 (colocação de palavras e elocução), 16

(pronomes possessivos) e 18 (preposições) — e trabalhar verificando que efeitos de sentido

eles são capazes de produzir em textos diversos. No caso das instruções de sentido, partimos

de um valor e buscamos todos os recursos da língua que podem exprimir a instrução de

sentido em questão, estabelecendo diferenças entre eles. Exemplos de instruções de sentido

com que podemos trabalhar são: comparação, quantidade, as modalidades (como a certeza e a

incerteza — cf. exemplo 17— obrigação, possibilidade, probabilidade, necessidade, ordem,

volição), causa e conseqüência, alternativa, adição, oposição, tempo, lugar, modo, etc.

Mais de uma vez falamos em recursos da língua. São recursos da língua:

a) Todas as suas unidades, no plano fonético-fonológico (sons, fonemas, sílabas);

morfológico (morfemas: raízes e radicais, também chamados de lexemas; sufixos, prefixos,

flexões: mudanças de forma para indicar categorias gramaticais); lexical (palavras); sintático

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 86 .

Page 87: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

(sintagmas, orações, frases, períodos simples ou compostos); semântico (semas = traços de

significado de uma palavra, campos semânticos); textual (os textos e suas diferentes

categorias: tipos, gêneros e espécies7);

b) Todas as formas de construção (ordem direta ou inversa, a ordem em geral, coordenação,

subordinação, repetições, concordância, etc.);

c) As categorias gramaticais: gênero, número, pessoa, tempo, modalidade, voz, aspecto;

d) Recursos supra-segmentais, tais como entonações, pausas, altura de voz, ritmo;

e) Outros.

2. Ensino de gramática

Como vimos, uma vez que nosso objetivo prioritário é o desenvolvimento da competência

comunicativa, a gramática, pedagogicamente, será essencialmente o estudo das condições

lingüísticas da significação, o que vai orientar a escolha dos recursos da língua em função do

efeito de sentido que se quer produzir e de acordo com a situação de interação comunicativa.

Por exemplo: Se tenho sede, e quero conseguir água numa dada situação (por exemplo, um

professor dando um curso em uma escola para colegas até então desconhecidos), posso usar

um dos textos de (1), mas qual ou quais será(ão) mais ou menos adequado(s)? Na situação

dada, certamente o texto (1a) seria inadequado (embora dito em norma culta), porque traria

efeitos de grosseria por parte do falante. O texto (1e) seria mais adequado, por exemplo, para

instruções escritas passadas pelo organizador de uma atividade de caminhada ou trilha.

Certamente um dos outros três seria mais adequado para a situação dada acima e a escolha

dependeria de outros fatores, inclusive o grau de cortesia.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 87 .

Page 88: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

(1) a) Fulano, vai buscar um copo de água para mim, anda! (com entonação de ordem peremptória)

b) Estou com a boca seca.

c) Fulano, seria muito difícil me arrumar um copo de água? (com entonação de pedido gentil)

d) Por favor, alguém podia me arrumar um pouco de água para beber? (com entonação de pedido gentil)

e) Trazer uma garrafa de água para a caminhada.

A gramática da língua é uma só: é o mecanismo lingüístico que permite ao usuário da língua

falar, escrever, ouvir e ler, comunicando-se por meio de textos lingüisticamente compostos.

Sugerimos em Travaglia (1996), como modo de abordar esse mecanismo e desenvolver a

competência comunicativa dos alunos, quatro tipos de atividades de ensino de gramática que

chamamos de:

a) gramática teórica;

b) gramática de uso;

c) gramática reflexiva;

d) gramática normativa.

Estes tipos de atividade não precisam ser usados sempre separadamente, às vezes, para

abordar um dado tópico, podemos lançar mão ao mesmo tempo de mais de um tipo de

atividade. É o caso, por exemplo, do que pode ser feito ao estudar a correspondência entre

oração adjetiva e adjetivo (Cf. atividades 10 e 12 mais adiante). Uma atividade pode ser ao

mesmo tempo de mais de um tipo, como as atividades (15) e (16), que são simultaneamente

reflexivas e de uso. Na atividade do exemplo (21), trabalha-se com a normativa, em seguida

com a teórica e, finalmente, com a de uso.

2.1. Gramática teórica

Realizamos atividades de gramática teórica quando ensinamos e cobramos do aluno a

metalinguagem com a nomenclatura própria da gramática descritiva a que nos referimos no

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 88 .

Page 89: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

item 1.1. Ensinamos classificação de unidades e outros recursos da língua, regras de

funcionamento e, depois, pedimos aos alunos que façam classificações e explicações de

elementos da língua que apresentamos. Assim são atividades de gramática teórica aquelas

com instruções como as que registramos de (2) a (7) e todas aquelas que, de um modo ou

outro, cobrem conhecimento lingüístico sobre a língua, conhecimento teórico presente na

gramática descritiva. Uma atividade como a de (8) já é uma atividade de gramática de uso,

mas exige um conhecimento teórico prévio.

2) Classifique as palavras sublinhadas no texto (ou nas frases) abaixo.

(3) Sublinhe os pronomes pessoais usados no trecho acima.

(4) Justifique a concordância do verbo com o sujeito nas frases abaixo.

(5) Diga o grau em que está o adjetivo sublinhado na frase abaixo.

(6) Qual das orações sublinhadas abaixo é subordinada adverbial causal.

(7) Relacione as duas colunas, usando a seguinte legenda: a) prefixo; b) sufixo.

(8) Complete as frases abaixo usando a forma do modo indicativo do verbo indicada entre parênteses (presente, pretéritos imperfeito, perfeito ou mais-que-perfeito, futuro do presente ou futuro do pretérito).

Nossa sugestão é que o ensino teórico, que muito comumente predomina nas aulas de

Português, deve ceder espaço para os outros tipos de atividade, ocupando um mínimo do

tempo disponível. Quando se trabalha com o ensino teórico, sugerimos8 que ele deve ter

objetivos, tais como: a) facilitar, no ensino, a referência a elementos da língua, mas não deve

ser cobrado dos alunos, sobretudo no Ensino Fundamental e em especial em suas séries

iniciais (1ª a 4ª ); portanto, ser um instrumento de mediação e não um fim em si; b) ser objeto

de uma cultura científica necessária na vida moderna; c) ser usado como um instrumento para

ensinar a pensar (objetivo geral da educação e não um objetivo de ensino de língua).

2.2. Gramática de uso

O próprio nome desse tipo de atividade já diz o que ela é. Temos uma atividade de gramática

de uso, quando o aluno é levado a usar recursos e regras da língua. Assim, são atividades de

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 89 .

Page 90: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

gramática de uso: a) todos os exercícios estruturais9 (veja exemplos 9 e 10); b) exercícios de

completar lacuna; c) todos os exercícios de vocabulário em que o aluno deve construir frases

ou textos, usando determinadas palavras; d) todos os exercícios de construção de frases ou

textos com determinados recursos da língua (por exemplo: uma dada classe de palavras, um

tipo de construção, uma figura de linguagem, etc.); e) atividades com variedades lingüísticas

(como passar de uma para outra ou, dada uma situação, identificar e usar a variedade esperada

e adequada; veja o exemplo 11, em que se trabalha com o registro de sintonia na dimensão da

cortesia); f) todas as atividades de produção e compreensão de texto, porque nestas atividades

o falante usa os recursos, regras e demais elementos da língua, que tem internalizados, para

construir ou para compreender o texto.

(9) Exercício de transformação, que leva ao uso do pronome pelo nome, evidenciando a

equivalência entre os dois.

Modelo: P- Meu colega desenhou seu cachorro.

A- Meu colega o desenhou.

P- Meu colega desenhou seu cachorro.

A- Meu colega o desenhou.

P- Eu desenhei meus brinquedos.

A- Eu os desenhei.

P- Minha irmã arrumou a cozinha.

A- Minha irmã a arrumou.

P- Eu arrumei minhas roupas.

A- Eu as arrumei.

P- José comprou os ingredientes.

A- José os comprou.

P- Antônio comprou o carro de Pedro.

A- Antônio o comprou.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 90 .

Page 91: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

(10) Exercício de transformação, que leva à percepção da equivalência entre adjetivos e

orações adjetivas e o uso de um pelo outro (ver o comentário em gramática reflexiva).

Modelo: P- O aluno que estuda é aprovado.

A- O aluno estudioso é aprovado.

P- O aluno que estuda é aprovado.

A- O aluno estudioso é aprovado.

P- Um homem que trabalha é bem visto por todos.

A- Um homem trabalhador é bem visto por todos.

P- As empresas que competem ganham muito dinheiro.

A- As empresas competitivas ganham muito dinheiro.

(11) Diga de maneira mais educada, gentil, cortês:

a) Passe-me o arroz!

Os alunos poderiam responder:

A1- Por favor, passe-me o arroz!

A2- Por favor, poderia me passar o arroz!

A3- Você quer me passar o arroz, por favor?

A4- Por favor, você me passaria o arroz?

A5- Tenha a bondade de me passar o arroz.

b) Saí da frente, sô!

c) Anda logo, sua pamonha!

2.3. Gramática reflexiva

As atividades de gramática reflexiva ocorrem quando perguntamos:

a) O que significa?

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 91 .

Page 92: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

b) Quais seriam as alternativas de recursos lingüísticos a serem utilizados? Se trocarmos o

recurso ou elemento da língua escolhido e usado, muda o sentido?

c) Em que situação pode e/ou deve ser usado determinado recurso ou elemento da língua e

com que fim, produzindo que efeito de sentido?

d) Se mudarmos a situação o sentido muda? Ou seja, comparar os efeitos de sentido que um

recurso ou diferentes recursos podem produzir em diferentes situações de interação

comunicativa.

Portanto, as atividades de gramática reflexiva se ocupam, sobretudo, com a forma de atuar em

sociedade usando a língua, o que se faz graças aos efeitos de sentido que se pode produzir

com os textos compostos para tal atuação social, e não se preocupam com a nomenclatura

(metalinguagem) usada na classificação dos elementos lingüísticos.

Observe-se que as atividades de gramática reflexiva, por discutirem o efeito de sentido, as

escolhas de recursos da língua em função do efeito de sentido, do objetivo e da situação são,

além de uma aula de gramática, também uma aula de produção de texto e de compreensão de

texto e, freqüentemente, também de léxico. Este fato faz com que estas atividades sejam um

fator de integração das diferentes áreas em que o ensino/aprendizagem de língua geralmente é

dividido.

Vejamos alguns exemplos.

No exercício (10) o professor pode perguntar ao aluno se os textos com a oração adjetiva

significam a mesma coisa que os textos com o adjetivo correspondente e, se não, qual a

diferença de sentido. A resposta é que não têm o mesmo sentido. Com o adjetivo parece que

se tem uma qualidade intrínseca da pessoa, algo que é permanente e que, muitas vezes, ela faz

com prazer. Assim “aluno estudioso” é aquele que sempre estuda, gosta de estudar, faz parte

de seu modo de ser estudar muito e sempre. Já “aluno que estuda” é aquele que estuda, mas

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Page 93: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

estudar não é uma característica intrínseca do aluno, significa que ele estuda para determinado

fim, mas nem sempre o faz com prazer. O mesmo tipo de diferença se nota nos demais textos

do exercício (10). Todavia nem sempre esta diferença ocorre, sobretudo quando a oração

adjetiva é uma espécie de definição do sentido do adjetivo, como no caso em (12).

(12) a- Os leões são animais carnívoros.

b- Os leões são animais que comem carne.

No exercício (13), trabalha-se com as várias funções e valores que um recurso da língua (no

caso a palavra “como”) pode exercer e ter em diferentes textos.

(13) 10 “BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA, como membro da livre imprensa que é, tenta

fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos

mestiços nacionais e nacionalistas.”

No trecho acima do texto “Artigo de Fundo” a palavra “como” significa “na condição de”,

“na qualidade de”. A palavra “como”, como vimos, pode ter muitos outros valores. Relacione

os valores indicados na primeira coluna com os trechos da segunda coluna.

a) Modo

b) Causa

c) Conformidade (algo ou alguém que age de acordo com algo estabelecido anteriormente por alguém, ou por uma instituição, lei, etc.)

d) Comparação

e) Admiração, espanto

f) Na condição de, na qualidade de

g) Introdutor de exemplo

h) Forma do verbo comer

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Page 94: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

i) No lugar de, substituição

(f) Divulgado como símbolo de Goiânia, é exibido como cenário nas fotografias dos turistas.

(g) Ele tinha muitas habilidades como tocar piano, cultivar plantas muito bem.

(d) Como Goiânia, outras cidades têm belos monumentos.

(a) Como posso chegar a São Paulo?

(b) Como não tinha medo mudou para o Brasil para tentar a sorte, para buscar uma vida melhor.

(i) Não podendo comprar um lindo ursinho de pelúcia, a menina tinha como ursinho uma lata de leite.

(e) Como São Paulo é grande!

(d) Não deixando Pasqualino brincar com seu ursinho de lata, Lisetta agiu como a menina rica.

(b) Como Ugo pediu, sua mãe parou de bater em Lisetta.

(c) Preparou a festa como sua mãe pediu.

(h) Eu não como carne de porco.

(a) Ela queria saber como devia se comportar.

(d) Entre elas uma alegre, que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta, também imigrante, que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

No exercício (14) temos uma atividade que enfoca, ao mesmo tempo, a colocação de palavras

e a elocução (no caso, o uso das pausas), evidenciando como a elocução interfere com o

sentido.

(14) A- A palavra “só” pode ser usada em diferentes posições em um texto. Conforme a

posição, o sentido do texto muda. Além disso, podemos falar o mesmo texto, fazendo pausas

em diferentes lugares, o que também pode mudar o sentido do texto. Nos textos abaixo a barra

(/) indica o lugar da pausa ao falar. Compare os textos, comentando a diferença de sentido

entre eles e quais têm o mesmo sentido, apesar da colocação diferente de “só” por

interferência do modo de falar (a elocução)

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a- Só Maria veio à reunião.

b- Maria só / veio à reunião.

c- Maria / só veio à reunião.

d- Maria veio só / à reunião.

e- Maria veio / só à reunião.

f- Maria veio à reunião só.

Provável resposta: No texto a o sentido é que apenas Maria veio à reunião, as demais pessoas

esperadas não compareceram. O texto b mantém o mesmo sentido, apesar da colocação da

palavra “só” depois de Maria, porque a pausa leva a esta leitura de que apenas Maria veio à

reunião. Já o texto c, com a mesma colocação de palavras de b, devido a uma elocução

diferente, com ligeira pausa após a palavra Maria, significa que a única coisa que Maria fez

foi vir à reunião. O texto e tem este mesmo sentido, mas devido à posição da pausa tem-se

uma espécie de ênfase no fato de ela ter vindo apenas à reunião, contrariando uma provável

expectativa do interlocutor de que ela provavelmente viria para mais alguma coisa. O texto d

assim como o texto f significam que Maria foi à reunião sozinha, desacompanhada. Neste

caso o texto f parece ser o melhor para exprimir simplesmente este sentido. Já d pode conter a

idéia adicional de que Maria poderia ter vindo sozinha a outros eventos.

(15) Tendo em vista a situação indicada, diga qual dos dois textos abaixo você usaria.

Textos: A) O doce está uma delícia.

B) Este doce está uma delícia.

Situação: Você foi almoçar na casa de sua amiga X. No final do almoço, ela serviu um doce

muito gostoso. Quando todos terminaram a sobremesa, ela retirou o doce da mesa e o guardou

na geladeira. Vocês ficaram conversando e chegou outro amigo, Y. Sua amiga X oferece

doce para o amigo Y, que acabou de chegar. Ele recusa. Você, que já comeu o doce e sabe

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 95 .

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que ele é muito bom, quer convencê-lo a aceitar, usando este argumento. Qual dos dois textos

diria? A ou B? Pode explicar por quê?

Provável resposta: usaria A, porque o doce não está visível. Se ele ainda estivesse sobre a

mesa, por exemplo, teríamos que usar o texto B. Esta é a diferença entre “o” e “este”. O

segundo só pode ser usado em textos quando o elemento que ele acompanha está presente na

situação de fala.

O exercício (16) explora valores não de posse dos pronomes possessivos. A forma pode ser de

coluna relacionada, conforme o grau e competência dos alunos.

(16) A- As palavras meu, teu, seu, nosso, vosso e seus respectivos femininos e plurais, como

vimos, indicam posse, isto é, que alguém é possuidor ou proprietário de algo. Você acha que

nos trechos abaixo essas palavras indicam posse? O que elas estão indicando?

a) José certamente tem seus cinqüenta anos.

b) Como vai, minha madrinha?

c) O nosso personagem teve então uma idéia mirabolante, meio maluca.

d) Mariana, o que acontece? Por que você faz estas coisas? Certamente você não saiu aos seus.

Provável resposta: Embora haja uma idéia de posse, ela se atenua e podemos notar que

aparecem os seguintes sentidos em cada trecho: a) quantidade aproximada, estimada; b)

afetividade: carinho, cortesia; c) familiaridade; d) parentes, familiares.

B- Escolha uma das palavras indicadoras de posse listadas acima e construa um pequeno texto

com um dos valores encontrados e que não seja de posse. Diga o valor com que você

empregou a palavra11.

(17) 12 4) a) No texto “O sonho de voar”, que frase do quarto parágrafo demonstra que o

narrador não está seguro de estar mesmo ficando mais leve que o ar?

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 96 .

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b) Que palavra da frase “Parecia que eu estava quase flutuando no ar”, do mesmo

parágrafo, indica que o garoto não estava certo se realmente flutuava?

5. Leia e responda no caderno:

a) Realmente eu estava flutuando no ar.

b) Provavelmente eu estava flutuando no ar.

c) Certamente eu estava flutuando no ar.

d) Eu estava flutuando no ar.

e) “Parecia que eu estava flutuando no ar.”

- O falante mostra certeza de flutuar em quais frases?

- O falante mostra incerteza, dúvida a respeito de flutuar em quais frases?

Respostas: 4a) A frase é “Ou era só impressão?”; 4b) A palavra é “parecia”; 5) Certeza:

frases a, c, d; Incerteza: frases b, e.

(18) 13 Estudo de valores de preposições

3) Leia: “A reportagem da Folha percorreu na sexta-feira e ontem o quadrilátero entre as

avenidas São João e General Olímpio da Silveira, Pacaembu, Rio Branco e Duque de Caxias e

encontrou entulho acumulado havia semanas.”

Nesse trecho, a palavra “entre” indica, em conjunto com os nomes, uma posição intermediária

a dois ou mais pontos citados. No trecho acima, são vários pontos no espaço. Esses pontos

podem ser também no tempo ou em outra idéia ou noção qualquer.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 97 .

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Copie, do quadro, o que a palavra “entre” indica nas frases seguintes:

a) posição intermediária no espaço;

b) posição intermediária no tempo;

c) posição intermediária em outra idéia ou noção.

a) Entre 1990 e 2004, a inflação no Brasil subiu e desceu várias vezes.

b) Nosso jardim era muito bonito. Entre a sibipiruna e o flamboyant, havia várias palmeiras..

c) Joãozinho estava entre alegre e triste com a notícia de que a família ia se mudar. Alegre

porque ia conhecer novos lugares, triste porque ia ficar sem seus amigos.

d) Entre surpreso e assustado, ele subiu para receber o prêmio.

e) Todas as manhãs eu caminhava muito para ir à escola, pois entre minha casa e a escola

havia dois quilômetros.

f) Trabalhei muito entre o amanhecer e o anoitecer, mas à noite fui descansar.

Resposta: a) posição intermediária no tempo; b) Posição intermediária no espaço; c) Posição

intermediária em outra noção: a dos sentimentos; d) Posição intermediária em outra noção: a

dos estados; e) Posição intermediária no espaço; f) Posição intermediária no tempo.

4) Faça três frases com “entre” indicando posição intermediária no espaço, no tempo e em

outra idéia ou noção.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 98 .

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(19) Diga os valores ou sentidos que a palavra “por” pode ter no texto abaixo. Dê exemplos

de situações em que esses sentidos podem ocorrer.

-“Antônio falou por Teresa”

Resposta possível: a) “no lugar de Teresa, representando-a, um porta-voz”. Por exemplo,

numa reunião ou solenidade a que Teresa não pôde comparecer; b) “a favor de Teresa”. Por

exemplo, numa situação em que a acusam de algo ou numa situação em que ela precisa de

ajuda de algum tipo (por exemplo, financeira) por algum motivo (por exemplo: doença); c)

“por meio de Teresa”. Neste caso, Teresa é como se fosse um aparelho. É um sentido

semelhante a “Falei com meu pai pelo telefone”. Numa situação de comunicação mediúnica,

em uma casa religiosa em que a mediunidade é exercida. Neste caso, Antônio seria um

espírito que falou com as pessoas por intermédio da médium, que é Teresa.

(20) As duas concordâncias abaixo são permitidas pela norma culta quando os sujeitos são

unidos por “com”. Mas os dois textos têm uma diferença de sentido, conforme usemos uma

ou outra concordância. Diga qual é a diferença de sentido.

a) O noivo com sua noiva entrou no salão de festas, sorrindo alegremente.

b) O noivo com sua noiva entraram no salão de festas, sorrindo alegremente.

Resposta: Em a com o verbo no singular entende-se que os dois entraram, mas somente o

noivo sorria, em b, com o verbo no plural, entende-se que os dois sorriam.

2.4. Gramática normativa

Nas atividades de gramática normativa, como já dissemos, sempre se valorizou a norma culta

escrita em detrimento das demais variedades da língua, inclusive, da língua falada. Como

vimos em 1.1, hoje se vê a gramática normativa como uma conscientização da existência de

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 99 .

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muitas variedades lingüísticas e do modo de usá-las de acordo com as normas estabelecidas

por nossa sociedade. Evidentemente, devido à importância social da norma culta, temos de

ensiná-la aos alunos que não a dominam, fazendo o contraste claro entre o que é da norma

culta e o que não é.

Na escola, as atividades de gramática normativa vão sempre mostrar as diferenças entre as

variedades lingüísticas, orientar quando usá-las ou não em termos de adequação, social e

comunicacional, dando um destaque à norma culta.

A atividade (11), vista como uma atividade de gramática de uso, é também uma atividade

normativa. A atividade (20) também envolve questões de normatividade: a regra de

concordância verbal com sujeito composto com os núcleos unidos por “com” (Cf. também

21). A seguir apresentamos mais alguns exemplos de atividades de gramática normativa.

21) Assinale os trechos em que a concordância do verbo com o sujeito não foi feita de acordo

com o que pede a norma culta. Explique porque não atende à norma culta14. Reescreva o

trecho para que fique de acordo com a norma culta15.

a- Eu com meus colegas exigem uma explicação.

b- O presidente com sua comitiva chegou pela manhã a Paris.

c- Eu com minha família oferecemos-lhe toda ajuda de que você precise.

d- Exige uma explicação, eu com meus colegas.

e- Meus pais com meus irmãos fizeram uma festa surpresa em meu aniversário.

f- Chegou para a festa meus amigos da faculdade com suas esposas.

g- Dançava sem parar os rapazes com suas namoradas.

h- Reformou a capela o padre com todos os paroquianos.

Resposta: Não estão de acordo com a norma culta: a (Eu com meus colegas exigimos uma

explicação.); d (Exigimos uma explicação, eu com meus colegas); f (Chegaram para a festa

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meus amigos da faculdade com suas esposas); g (Dançavam sem parar os rapazes com suas

namoradas). (Aqui não explicamos porque não atende à norma culta).

(22) Minha amiga chegou e disse-me:

“O meu primo que eu falei dele para você chegou. Está lá em casa.

Ao dizer isto, ela não usou a norma culta. Como ela deveria falar para usar a norma culta?

Resposta: O meu primo, de quem lhe falei chegou. Está lá em casa.

(23) Nos trechos abaixo, aparecem algumas formas de verbo muito usadas pelas pessoas, mas

que não pertencem à norma culta. Assinale-as e diga qual seria a forma do verbo na norma

culta.

a) Espero que você seje feliz.

b) Eu vou ponhá seu livro aqui, depois você o leva.

c) Não que eu esteje com raiva de você, mas você não foi minha amiga.

d) Quando eles vieram para a festa, eu já tinha chego há muito tempo.

Resposta: a) seje à seja ; b) ponhá à pôr ; c) esteje esteja ; d) tinha chego tinha

chegado.

Evidentemente as atividades de gramática normativa não se resumem a diferenças entre a

norma culta e outras variedades da língua, mas aqui não temos espaço para mais. No caso da

norma culta é preciso que se faça sempre um tipo de gramática contrastiva, mostrando como é

a forma ou construção na norma culta em contraste com a de outras variedades, pois não se

pode exigir norma culta dos alunos sem mostrar objetivamente como ela é. Além disso, não se

deve passar para os alunos a idéia de que se um texto está na norma culta ele está ótimo, não

tem problemas. Não é este o caso. Serve aqui o exemplo do repórter que disse “No tempo do

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frio as pessoas ficam mais favoráveis a ter problemas respiratórios”. O texto está em norma

culta, mas tem um problema de escolha lexical que cria uma inadequação comunicacional em

relação ao que ele queria dizer. “Ficar favorável” significa querer ter problemas respiratórios,

o que é pouco provável em nosso mundo. Talvez fosse mais adequado o repórter dizer “No

tempo do frio as pessoas ficam mais sujeitas a terem problemas respiratórios / mais

vulneráveis aos problemas respiratórios”.

3. Considerações finais

Como se pode perceber, o ensino de gramática é um problema complexo, que envolve

múltiplas facetas que o professor não pode negligenciar ao preparar as atividades de

ensino/aprendizagem para trabalhar com seus alunos. Nosso objetivo, neste texto, foi chamar

a atenção do colega professor para questões básicas envolvidas no ensino/aprendizagem da

gramática da língua, dentro de uma perspectiva textual-interativa, recomendada pelos PCN.

Esperamos ter chamado sua atenção e despertado seu desejo de saber mais. A pequena

bibliografia que colocamos contém textos importantes para este fim e, para quem deseja ir

ainda além, boas indicações em suas referências bibliográficas.

Referências Bibliográficas

FÁVERO, Leonor Lopes; ANDRADE, Maria Lúcia C.V.O. e AQUINO, Zilda G. O.

Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua. São Paulo: Cortez,

1999.

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP:

ALB/Mercado de Letras, 1996.

RAMOS, Jânia M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes,

1997.

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SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa: Uma abordagem pragmática.

Campinas, SP: Papirus, 1995.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos, ARAÚJO, Maria Helena Santos e ALVIM PINTO, Maria

Teonila. Metodologia e prática de ensino da Língua Portuguesa. 3a ed.

Uberlândia: EDUFU, 1995.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de

gramática. São Paulo: Cortez, 1996. (11a ed.: 2006).

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: Ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos (2003a). “Tipelementos e a construção de uma teoria

tipológica geral de textos”. In: FÁVERO, Leonor Lopes; BASTOS, Neusa M. de

O. Barbosa e MARQUESI, Sueli Cristina (org.). Língua Portuguesa pesquisa e

ensino – Vol. II. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2007: 97- 117.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Tipologia textual, ensino de gramática e o livro didático.

In: HENRIQUES, Cláudio Cezar e SIMÕES, Darcília (org.). Língua e

cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Europa, 2004, p.

114-138.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos, COSTA, Silvana e ALMEIDA, Zélia. A Aventura da

Linguagem – 4 volumes: 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries. Belo Horizonte: Dimensão,

2005.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos, COSTA, Silvana e ALMEIDA, Zélia. A Aventura da

Linguagem – Manual do Professor. Belo Horizonte: Dimensão, 2005a. 64 p.

VIEIRA, Sílvia Rodrigues e BRANDÃO, Sílvia Figueiredo (org.). Ensino de

gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007.

UM MUNDO DE LETRAS: PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA. 103 .

Page 104: Um mundo de letras práticas de leitura e escrita Cagliari, Koch, Travaglia

Notas:

Professor Associado de Língua Portuguesa e Lingüística do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia.

2 Para maiores informações e exemplos sobre tudo o que dizemos neste texto, recomendamos a leitura de Travaglia (2006), Travaglia (2003) e Travaglia, Araújo e Alvim Pinto (1995).

3 Veja o capítulo 5 de Travaglia (1996).

4 Cf. Travaglia [2003a] (2007).

5 Parte deste item foi transcrita do Manual do Professor, de Travaglia, Costa e Almeida (2005a, p. 14).

6 Para maiores detalhes e exemplos veja Travaglia (2003) capítulo 4: A sistematização do ensino de gramática.

7 Veja Travaglia [2003a] (2007).

8 Sobre os objetivos de ensino de gramática teórica ver o capítulo 5 (Para que ensinar teoria gramatical) de Travaglia (2003). Sugerimos também a leitura de Travaglia (1996), capítulo 12 (Gramática Teórica).

9 Sobre este tipo de atividade e outros de gramática de uso, ver Travaglia, Araújo e Alvim Pinto (1995).

10 Exercício elaborado por Luiz Carlos Travaglia, Maura Alves de Freitas Rocha e Vania Maria Bernardes Arruda-Fernandes, em 2007, para o livro 6 da Coleção A Aventura da Linguagem, a sair pela Editora Dimensão, Belo Horizonte.

11 (16B) e (18 – 4) são atividades de gramática de uso.

12 Exercícios do exemplo (17) extraídos, com pequenas adaptações, de Travaglia, Costa e Almeida (2005): A Aventura da Linguagem, 4ª série, pág. 11. Aqui está sendo explorada a modalidade do verbo.

13 Exercícios do exemplo (18) extraídos, com pequenas adaptações, de Travaglia, Costa e Almeida (2005): A Aventura da Linguagem, 3ª série, pág. 153. Naturalmente é o valor das preposições que está sendo explorado.

14 Esta parte é uma atividade teórica.

15 Esta parte é uma atividade de uso.

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Secretário de Educação a DistânciaRonaldo Mota

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