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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSO
PSICANÁLISE E LINGUAGEM: UMA OUTRA PSICOPATOLOGIA
INSTITUIÇÃO E PSICANÁLISE
UM ESTUDO SOBRE OPERADORES PSICANALÍTICOS PARA LEITURA DE PROCESSOS
INSTITUCIONAIS
DANIELA DIAS GONÇALVES
Orientadora: Ana Maria Rodrigues da Costa Monografia apresentada como
parte dos requisitos para o certificado de Especialização Clinica em “Psicanálise e Linguagem: Uma Outra Psicopatologia”.
São Paulo 2008
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que contribuíram diretamente e indiretamente para a
realização deste trabalho ao longo dos dois anos de formação. Portanto, seguirei da instituição
família à instituição trabalho, passando pelos amados amigos e outros vínculos.
Meu irmão, por ser o maior responsável pelo início dessa especialização, pelo total apoio e
incentivo.
Minha mãe por torcer por mim, pela base afetiva e por acolher com carinho parte das minhas
angustias ao longo deste processo.
Tio Zé por todo o suporte, pelo interesse efetivo no meu bem-estar, pela segurança que me
concede através do seu carinho.
Vó Virginia, tia Enis, tio Assis, tia Socorro, tio Gusto, tia Geralda, Thais, Tati, Bia, Ivan,
Caio, Dani, Fia e Vanice pelo amor e torcida que me deram tanta força.
Igor Carvalho, pelas diferenças de abordagens não serem empecilhos para realizarmos trocas
profissionais, pelo amor, pelo cuidado, pela força, por todas as palavras de apoio, por todos os
abraços, por nossos momentos “eu-tu”.
Priscila Cugler: pelas trocas psicanalíticas e de vida; companhia; cumplicidade; disposição
cultural; escuta; falas e risadas; indicações literárias e pela alegria de ter na vida uma amiga
como você.
Daniela Donadio, Greice Klem e Mariana Ascenção, por todo carinho da amizade, por
também dividirem comigo as delicias e dificuldades do processo de formação, pelos brindes
aos nossos sucessos. Sim, Mariana fez o curso!
Claudiney Yamagute, por partilhar as vivências profissionais, por nossa amizade sobreviver
aos meus chistes, pelo carinho, pelos bons e divertidos momentos juntos.
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Flavio Miguel: pelo incentivo e apoio, pelas alegrias e dificuldades compartilhadas, sendo
que, a primeira multiplicada e a última dividida, pelo amor, respeito e empatia inerentes à
nossa relação.
Assumpta Affini pela torcida, pela força, pela sua energia, por nossa cumplicidade, pelo
interesse, pelo amor que permeia nossa amizade.
Emily Vaz pelo carinho e acolhimento de forma meiga e delicada, por torcer e querer saber,
por poder contar com sua amizade desde nossa infância.
Glaucinéia Gomes e Beatriz Oliveira por unir dedicação, seriedade e carisma no trabalho de
ensinar. Por transmitir parte do que sabem de forma tão rica que reforçou minha escolha por
psicanálise. Adoro vocês! Bia, também agradeço pelo legado psicanalítico que nos concedeu
com sua dissertação de mestrado. Glauci por ter, gentilmente, aceitado meu convite para ser
parecerista.
Paulo Rona por “jogar xadrez” comigo colaborando com o meu encantamento pela
psicanálise.
Ana Maria Rodrigues da Costa por escutar e direcionar meu desejo de realizar este estudo.
Por acolher minha ansiedade dando subsidio para a aquisição de conhecimento. Por
considerar meu tempo. Por me deixar ouvir o que sabe.
Lílian Antonini por me apresentar o trabalho institucional e pela parceria.
Márcia Soléra e Christiane Ruggiero pela oportunidade e credibilidade. Márcia, em particular,
por suprir minha fome de aprendizado com trabalho. Além disso, por ter compartilhado sua
história e conhecimento através de sua dissertação de mestrado.
Maura, Marina, Elaine Garcia, Elaine Reis, Abigail, Ceres e Bell Pauletti que fizeram do dia-
a-dia na instituição um aprendizado prazeroso, pelas trocas que considero valiosas, por serem
um exemplo de dedicação, pela seriedade do trabalho de vocês não abalar os sorrisos/risadas
descompromissados (e vice-versa).
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DANIELA DIAS GONÇALVES: Psicanálise e Instituição - Um Estudo Sobre Operadores Psicanalíticos para Leitura de Processos Institucionais. 2008 Orientadora: Ana Maria Rodrigues da Costa
RESUMO Este trabalho tem como proposta realizar um estudo para verificar a possibilidade da
utilização de operadores psicanalíticos para leitura de processos institucionais, partindo das
teorizações dos psicanalistas Sigmund Freud e Jacques Lacan. Destaca-se deste último, a
teoria da formação do Eu e sua relação com o registro imaginário; a constituição do sujeito
pelas operações de alienação e separação; em seguida, as teorias de significante e discurso.
Tendo como referência que a instituição é um conjunto de saberes e praticas organizado por
um discurso, algumas características de grupo e instituição serão discorridas através da teoria
freudiana. Por fim, um estudo de caso irá ilustrar alguns dos pontos levantados na teoria
previamente apresentada, incluindo aspectos da entidade em questão: a família e a deficiência
intelectual. Sendo que a primeira será analisada à luz de proposições freudianas e lacanianas,
e a última, através da teoria de Maud Mannoni. Ao final, conclui-se que de fato é possível
realizar a leitura de processos institucionais através de operadores psicanalíticos.
Palavras-chave: Instituição, psicanálise, operadores psicanalíticos, deficiência intelectual.
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SUMÁRIO
Introdução 06 I. O Eu e os Laços Sociais 10 1.1 O Eu e o Outro
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1.2 Da fala ao discurso 15 II. Instituição e Psicanálise 19 2.1 Instituição 19 2.2 Psicanálise em algumas instituições 26 III. Um Caso Institucional 34 3.1 Família
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3.2 Deficiência intelectual 41 3.2.1 Debilidade: primórdios do conceito 41 3.2.2 Deficiência intelectual para a psicanálise 46 3.3 Discussão 50 IV. Considerações Finais 64 V. Referências Bibliográficas 67
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INTRODUÇÃO
A proposta que rege este trabalho nasceu de inquietações surgidas no meu trajeto
profissional.
No período em que realizava a especialização clinica, primeiramente, atuei como
voluntária em uma instituição que capacitava pessoas com deficiência intelectual para o
trabalho. Posteriormente, realizei atendimentos em uma clinica-escola e, simultaneamente, em
uma clinica que se ocupava de atendimentos a pacientes de convênios médicos. Ressalto que,
minha escolha pela psicanálise já havia sido feita desde os tempos de graduação.
A partir dessas vivências e das diferentes demandas e rotinas que havia em cada uma
dessas instituições, fui questionando sobre a psicanálise em cada uma delas.
Isto porque na clinica-escola havia o horário de uma hora reservado ao atendimento, a
limitação de uma sessão semanal, entre outras regulamentações. Já na clinica que atendia
convênios médicos, o limite era de cinco sessões ao ano, uma em cada semana e com duração
de 30 minutos, podendo este paciente continuar o atendimento particular sob valor estipulado
pela clinica.
Essas três experiências em locais diferentes contribuíram apenas para o inicio desta
minha questão. As minhas inquietações com relação ao uso da psicanálise em instituição
ganharam mais força quando voltei à instituição que realizei trabalho voluntário.
É sobre esta instituição que, ao longo deste trabalho, irei discorrer.
Trata-se de uma entidade não-governamental que tem como missão promover inclusão
social de jovens e adultos, com deficiência intelectual, por meio de capacitação profissional.
O dia-a-dia no local trazia alguns pontos que me faziam questionar minha pratica,
considerando minha escolha pela psicanálise, e a melhor forma de proceder diante das
situações que surgiam.
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O foco da entidade são os alunos que estavam ali para serem capacitados para o
trabalho, através da reciclagem de papel. Também se propõe orientar as instrutoras das
oficinas com relação a questões que apareciam diante da realização do trabalho; propicia
também o atendimento de famílias que queriam matricular seus filhos, ou mesmo, falar sobre
aqueles que já estavam matriculados e freqüentavam os atendimentos.
Era comum observar que as instrutoras me procurassem quando um aluno não as
obedecia. Eles queriam que eu conversasse com o aluno, esperando que depois disso, ele
voltasse à oficina mais obediente. Ou mesmo para dizerem: “Está difícil lidar com o ele”, no
caso de reconhecerem suas limitações diante da ação de um aluno e quererem falar sobre isso.
Alguns alunos tinham a idéia de que o objetivo do contato comigo era ser repreendido,
outros de falar sobre algo que não queriam que os colegas soubessem, ou em dias que se
sentiam tristes.
Havia responsáveis/familiares destes jovens que, por algumas vezes, pediam auxilio
para conseguir educá-los. Outros, ainda num primeiro contato telefônico comigo, expunham
suas dificuldades com o relacionamento com o aluno.
E como pensar na psicanálise fora dos consultórios e do setting de analítico? Pode a
psicanálise contribuir para o trabalho institucional que é diferente das condições de análise?
A psicanálise iniciou-se de uma clinica individual. Porém, ainda com Freud pudemos
vê-la sendo utilizada para fazer uma leitura do social por meio de textos, como: Totem e Tabu
e Psicologia das Massas e Análise do Ego. Eugene Enriquez e René Lourau também o
fizeram a partir de suas obras Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vínculo Social e Análise
Institucional e Prática de Pesquisa, respectivamente.
Portanto, é possível afirmar que a psicanálise pode ser utilizada fora dos consultórios
privados como leitura de elementos: contextos discursivos.
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Com o objetivo de averiguar esta afirmação, no primeiro capítulo recorre-se a alguns
operadores psicanalíticos lacanianos. Com a teoria da constituição do Eu advinda do estádio
do espelho, é possível destacar o registro imaginário. Registro que é dominante no âmbito das
relações interpessoais e institucionais. O registro simbólico se dá na relação do sujeito com o
Outro, através da linguagem.
Lacan entende que, a cadeia de significante que presentifica o sujeito reside no campo
do Outro. É neste campo, através das operações de alienação e separação, que o sujeito é
constituído. Por fim, diferenciaremos a fala, da linguagem e do discurso para destacarmos o
último como laço social. Um ponto relevante dentro das condições gregárias inerentes as
instituições.
No capítulo seguinte, isolaremos o conceito de instituição a parir do conceito do
discurso, ou seja, consideraremos que instituição é um conjunto de saberes e praticas
organizado por um discurso1. Faremos uso dos textos freudianos: “Totem e Tabu” e
“Psicologia das Massas e Análise do Ego”, para situarmos algumas características
institucionais e os efeitos subjetivos decorrentes das formações de grupos.
Com o intuito de pensar a psicanálise em instituições, a partir das condições de análise
propostas por Antônio Quinet, apresentaremos aspectos de dois trabalhos: um desenvolvido
em uma Unidade Básica de Saúde e, outro em ambulatório público. Em seguida, outros dois
trabalhos que fazem uso de operadores psicanalíticos para leitura de processos institucionais.
No terceiro capítulo, um estudo de caso visa ilustrar os conceitos apresentados até
então. Trata-se de uma entidade para deficientes intelectuais que também se ocupa dos
atendimentos de seus familiares. Portanto, a deficiência intelectual será abordada, através da
teoria da psicanalista Maud Mannoni. Novamente, utilizarei conceitos das obras de Jacques
1 Rodrigues da Costa, A. M., Ribeiro, L. P., Gomes, V. Análise e Tratamento Psicanalítico de Estruturas Discursivas: Uma Outra Possibilidade Clínica In Estilos da Clínica, n.3. Instituto de Psicologia USP, 1997.
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Lacan e Sigmund Freud a fim de elucidar algumas questões sobre a família, principalmente,
no que concerne a característica de transmissora cultural.
Quanto à metodologia, este trabalho vai proceder da seguinte forma: trata-se de um
estudo da possibilidade de construir argumentos para justificar o uso de operadores
psicanalíticos no contexto institucional. Assim sendo, isolaremos alguns conceitos de Freud e
Lacan e, a partir deles, examinar um caso de uma instituição que trabalha com deficientes
intelectuais.
Procederemos a análise do caso, tomando as ocorrências institucionais de um discurso
que produz efeitos sobre os sujeitos que se encontram sob sua competência. Ao analisarmos
esses efeitos, vamos mostrar a importância advinda da psicanálise para a realização desta
tarefa.
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I. O Eu e os Laços Sociais
O registro imaginário é prevalente no âmbito das relações interpessoais e institucionais.
Segundo Costa (1989), o essencial da teoria de Freud sobre o social é a discussão sobre o
Imaginário, no que concerne a relação indivíduo-grupo, ou indivíduo-social ou indivíduo-
cultura. Porque esta é uma categoria que permite tornar coerente as afirmações feitas sobre os
grupos, indivíduos, psicoterapias, sob o ponto de vista da psicanálise.
O autor afirma que, Lacan ao abordar a noção de imaginário em sua obra, cooperou com
magnitude para atribuir a importância deste registro. Com isso, prosseguiremos da onde nasce
o imaginário na teoria lacaniana, para em seguida, apresentar o registro simbólico.
1.2 O Eu e o Outro
“Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro...”
O Espelho – Machado de Assis
Lacan propõe o “estádio do espelho” como uma experiência de identificação
fundamental, durante a qual a criança faz conquista da imagem de seu próprio corpo. Esta
identificação primordial da criança com esta imagem irá promover a estruturação do “Eu”.
No Seminário 1, no texto A Tópica do Imaginário, o psicanalista parte do experimento
do buquê invertido para discorrer sobre questões ópticas inerentes ao estádio do espelho. Já
em seu texto “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu” Lacan explica que,
antes do estádio do espelho, a criança não experimenta seu corpo como uma totalidade
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unificada, mas como uma coisa dispersa. O autor refere-se a esta vivência psíquica como o
fantasma do corpo esfacelado. E esta experiência fantasmática, cujos vestígios aparecem na
configuração de alguns sonhos, como nos processos de destruição psicótica, é realizada na
dialética do espelho, cuja função é neutralizar a dispersão angustiante do corpo, favorecendo a
unidade do corpo próprio.
A experiência da criança no estádio do espelho organiza-se em torno de três tempos,
os quais caracterizam a conquista progressiva da imagem do seu corpo.
Primeiramente, tudo se passa como se a criança percebesse a imagem de seu corpo
como a de um ser real de quem ela procura se aproximar ou apreender. Ou seja, este primeiro
tempo acontece em função de uma confusão primeira entre si e o outro2.
Segundo Dor (1989), esta confusão é amplamente confirmada pela relação
estereotipada que a criança tem com seus semelhantes. Isto fica claro quando o autor remete-
se ao exemplo dado por Lacan de que quando uma criança bate, diz ter sido batida, ou quando
vê outra cair, chora.
Esta primeira etapa da fase do espelho evidencia de forma clara o assujeitamento da
criança ao registro imaginário. Já a segunda etapa, constitui um momento decisivo no
processo identificatório. A criança é levada a descobrir que o outro do espelho não é um outro
real, mas uma imagem. Com isso ela não mais procura apoderar-se da imagem, ela sabe
agora, distinguir a imagem do outro da realidade do outro.
Na terceira etapa e criança reconhecendo-se através de sua imagem, recupera a
dispersão do corpo esfacelado numa totalidade unificada, que é a representação do corpo
próprio. A imagem do corpo é, portanto, estruturante para a identidade do sujeito, que através
dela realiza assim sua identificação primordial.
2 Observe que “outro” aqui é escrito com letra minúscula porque se trata do pequeno outro (o), ou seja, ao semelhante com o qual a criança se confunde no plano imaginário.
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Esta conquista de identidade, segundo Dor (1989), é sustentada em toda sua extensão,
pela dimensão imaginária, e no próprio fato da criança identificar-se a partir de algo virtual (a
imagem ótica) que não é ela enquanto tal, mas onde ela se reconhece. Não se trata, pois, de
nada mais do que um reconhecimento imaginário, que, por outro lado, é justificado por fatos
objetivos.
O autor prossegue afirmando que nesta idade, a maturação da criança não a permite ter
um conhecimento específico do corpo próprio. O estádio do espelho é uma experiência que se
organiza, antes do advento do esquema corporal. Porém, se a fase do espelho simboliza a pré-
formação do “Eu”, ela pressupõe em seu princípio constitutivo seu destino de alienação do
imaginário.
Por motivos ópticos, o reconhecimento de si a partir da imagem do espelho efetua-se a
partir de índices exteriores e simetricamente invertidos. Ao mesmo tempo, é, portanto, a
unidade do corpo que se esboça como exterior a si invertida. A própria dimensão deste
reconhecimento prefigura, para o sujeito que advém, na conquista de sua identidade, o caráter
de sua alienação imaginária, de onde delineia-se o “desconhecimento crônico” que não
cessará de alimentar em relação a si mesmo.
Se na constituição do Eu se dá o imaginário, é na relação com o Outro3, através da
linguagem, que podemos notar mais um registro: o simbólico.
“O Outro é o lugar em que se situa a cadeia de significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer”. (LACAN, 1964, p.193)
O autor conceitua o significante como aquilo que representa o sujeito para outro
significante e, avança dizendo que, é no campo do Outro que se dá a constituição do sujeito,
sendo sua primeira operação essencial, a alienação, igualmente referida como vel. 3 Lacan diferencia “outro” (pequeno outro) de “Outro” (grande Outro). O primeiro se refere ao registro do imaginário da relação com semelhante e o último ao Outro simbólico.
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O vel da alienação se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, há por conseqüência um nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de se saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso. (LACAN, 1964, p. 200)
Com o intuito de fazer-se mais claro, o autor se vale do exemplo: “A bolsa ou a vida!”.
Se escolhermos a bolsa, perdemos as duas. Se escolhermos a vida, temos a vida sem a bolsa,
ou seja, uma vida decepada. Ainda sobre a escolha que define a alienação, Lacan ilustra com a
proposição do ser do sujeito, aquele que está ali sob o sentido.
“Escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso - Escolhemos o sentido, e o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é, falando propriamente, o que constitui na realização do sujeito, o inconsciente.” (LACAN, 1964, p.200)
Para Soler (1997), Lacan deixou claro que os dois termos de onde derivam o não-
senso e o sentido são dois termos da cadeia de significante: S1 e S2. Estes são os termos com
que simbolizamos a cadeia de significante. O sujeito tem uma só escolha entre petrificar-se
num significante ou deslizar no sentido, porque quando se tem um elo entre os significantes
(S1 e S2), tem-se sentido.
Segundo Laurent (1997), na alienação, no momento em que o sujeito se identifica com
um significante, ele é representado por um significante para outro (S1 S2). O autor
exemplifica com um garoto que é representado como um “menino mau” em relação ao ideal
de sua mãe. Logo, “menino mau” (ou qualquer outra identificação que serviu, num tempo,
como significante-mestre) funciona para o sujeito, como uma linha mestra durante toda sua
vida. Ele é definido como tal e se comporta como tal. No momento em que a pessoa se
identifica com esse significante, fica petrificado.
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O autor afirma que, sempre quando isolamos uma das identificações do sujeito,
precisamos encontrar a fantasia que a acompanha e que lhe traz um gozo.
A separação, como uma segunda operação de constituição do sujeito, não está regida
pela reunião (como a alienação), mas pela intersecção. De acordo com Lacan (1964), o sujeito
encontra uma falta no Outro pela intimação que lhe faz em seu discurso. Nos intervalos do
discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte questionamento: “Ele me diz
isso, mas o que é que ele quer?”.
O autor nos explica que neste intervalo cortando os significantes, está situada a
metonímia. E é deste lugar que se escapa o desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo
sujeito nas faltas do discurso do Outro. O sujeito traz a resposta da falta antes de seu próprio
desaparecimento, que ele situa como a falta percebida no Outro. Então, o primeiro objeto que
ele propõe a esse desejo parental, cujo objeto é desconhecido, é sua própria perda. Portanto, o
questionamento agora é: “Pode ele me perder?” A fantasia de sua própria morte é o primeiro
objeto que o sujeito coloca nesta dialética.
Desta forma, afirma Lacan (1964), uma falta recobre a outra. Por isso a dialética dos
objetos de desejo, no que ela faz junção do sujeito com o desejo do Outro. Trata-se de uma
falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à falta que surge no tempo
seguinte.
Segundo Soler (1997), a alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode evitar a
alienação porque é um destino ligado à fala. Entretanto, a separação não é destino. A
separação é algo que pode ou não estar presente porque tem relação com um querer (a want).
O sujeito precisa querer se separar da cadeia de significante, pois a separação supõe
uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa
dizer, para além daquilo inscrito no Outro.
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Soler (1997) afirma que, há uma condição no Outro que torna possível a separação, e
esta é a dimensão do desejo. A autora também diferencia o Outro implicado na alienação do
Outro implicado na separação. Considera que seja um outro aspecto do Outro, não o Outro (da
alienação) cheio de significantes, mas um Outro (da separação) que falta alguma coisa.
Para a autora, na intersecção entre o sujeito e o Outro, há uma falta, uma lacuna. O que
falta no Outro é o que Lacan chama de desejo. Um desejo que, necessariamente, aparece na
fala porque existe na fala uma impossibilidade de dizer o que se quer.
Como podemos notar, a fala tem um papel importante nos conceitos da teoria
lacaniana, bem como a linguagem e o discurso. Portanto, me ocuparei de discorrer sobre esses
pontos no capítulo a seguir.
1.2 Da Fala ao Discurso
No texto lacaniano Função do Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, o
autor afirma que, a descoberta freudiana na teoria do Ego, é a do campo das incidências, na
natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e a ascensão de seu sentido até
as instancias mais radicais da simbolização no ser. O homem fala então, mas é porque o
símbolo o fez homem.
A vida dos grupos naturais que constituem a comunidade é submetida às regras da
aliança. A aliança preside uma forma preferencial cuja lei implicando os nomes de parentesco
é para o grupo, como a linguagem, imperativa em suas formas, mas inconsciente em sua
estrutura.
Sobre a fala e a linguagem, o psicanalista afirma que, para libertar a fala do sujeito,
introduzimo-la na linguagem de seu desejo. A linguagem que apreende o desejo é,
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absolutamente, particular ao sujeito. Porém, a forma sob a qual a linguagem se exprime,
define por ela mesma a subjetividade. A linguagem se refere ao discurso do outro. Ela é
envolvida como tal na mais alta função da fala, como a condição que engaja seu autor ao
investir seu destinatário de uma realidade nova.
“A linguagem humana constituiria uma comunicação onde o emissor recebe do receptor sua própria mensagem sob uma forma inversa, fórmula que tivemos somente que retomar da boca do objetor para aí reconhecer a impressão do nosso próprio pensamento”. (LACAN, 1953, p.162)
O autor afirma que nos vangloriamos de encontrar alguém que fala a mesma
linguagem que a nossa. Porém, não podemos dizer que somos unidos no discurso de todos,
mas que somos unidos por uma fala particular.
Segundo Lacan (1953), existe um paradoxo nas relações da fala e da linguagem, uma
vez que, à medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se torna imprópria à fala, e ao
tornar-se demasiado particular para nós, ela perde sua função de linguagem. Pois para o autor,
a função da linguagem é de evocar, não de informar.
Sobre o ponto em que Lacan discorre sobre a linguagem, se referindo ao discurso do
Outro, Dor (1989) explica que, o sujeito só advém no discurso e pelo discurso para, aliás,
desaparecer. Este fading do sujeito provém de relação do sujeito com seu próprio discurso.
O significante produzido no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com o que chama a funcionar, a falar como sujeito. (LACAN, 1964, p. 197)
Dor (1989) diz que, é a relação instituída entre o Outro e o Eu (Je) na articulação do
discurso é que deve ser examinada.
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“[...] Canso de dizer que essa noção de discurso deve ser tomada como liame (gosto mais de traduzir "lien" por laço social ou se preferir vínculo) social fundado sobre a linguagem”. (LACAN, 1972-1973, p. 28)
Lacan propõe que, a noção de discurso que ele está introduzindo tem parentesco com o
que na lingüística, especifica-se como gramática (regras e de formação de palavras, frases e
sentidos). A gramática, que não deixa de ser uma instituição, é também uma estrutura
sem palavras que produz, sustenta ou possibilita laços sociais, na medida em que é o
sustentáculo formal da língua.
Com relação à estrutura do discurso, Lacan propõe quatro lugares, que são:
Agente Outro Verdade Produção/Perda
Para ocupar esses lugares, teremos S1 (o significante mestre), S2 (o saber), $ (o sujeito
dividido) e a (relativo a perda do gozo). As barras referem-se à resistência em relação ao que
está colocado embaixo, sob a barra; resistência a aparecer no discurso manifesto, do que está
no lugar da verdade e do que está em produção em cada estrutura discursiva, explica Oliveira
(2000).
Lacan, no Seminário 17, extrai quatro discursos das posições possíveis destes quatro
elementos, são eles: discurso do mestre, discurso universitário, discurso da histérica e
discurso do analista.
Com intuito de pensarmos no discurso em si, tomarei como referência a teoria
lacaniana do significante. Contudo, mencionei sobre a estrutura dos quatro discursos
propostas pelo mesmo autor, apenas para elucidar o discurso do mestre que, em uma
instituição, é o discurso que prevalece.
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Discurso do Mestre
S1 S2 $ a
No discurso do mestre, podemos ver a relação dialética entre o senhor e o escravo
introduzida por Hegel. Segundo Oliveira (2000), o significante-mestre, no lugar do agente,
comanda o Outro a trabalhar para produzir algo com que ele, agente, possa gozar. Porém, esse
gozo está interditado ao lugar do agente, que para ocupar esta posição, não pode saber de sua
divisão. Caso saiba, não mais suporá que seja o Outro quem lhe forneça uma forma de gozar.
Com isso, estabelece-se o impossível de “governar”, pois a produção do gozo escapa das
mãos do senhor.
Para Oliveira (2000) este discurso reúne o que ilustramos, anteriormente, sobre a
alienação e separação, uma vez que S1, no lugar de agente, determina os significantes que
representarão o sujeito, ou seja, aqueles que farão cadeia para dar sentido à sua existência
como faltante e, portanto, desejante do desejo do Outro. Nesse matema, observa-se a distinção
entre saber e verdade: enquanto o saber (S2), está do lado do sentido, a verdade está do lado
do ser. A verdade, em última instância, é a verdade da castração, da qual o sujeito não quer
saber e procura tampar sua falta, através de determinados modos de gozo.
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II. Instituição e Psicanálise
Ao ouvirmos falar em “Freud” e “divã” não seria difícil pensar em psicanálise, afinal
esta relação tem a ver com seu fundador, o neurologista Sigmund Freud, e com a forma com
que a técnica era utilizada.
Segundo Widlocher & David (1979), foi a partir da confrontação com histéricas que
Freud descobre o elo que liga a formação dos sintomas da histeria à dinâmica dos afetos
seqüestrados no esquecimento no inconsciente. A psicanálise parte daí.
Os autores discutem ainda sobre a mudança da técnica psicanalítica adotada por Freud
visto que, num primeiro momento, ele se colocava como um hipnotizador diante dos seus
pacientes e, posteriormente, ele passou a utilizar o divã. Freud então faz deitar o paciente, e
em vez de falar, põe-se a escutá-lo. Com isso surgem as regras fundamentais de neutralidade e
de atenção flutuante que o analista deve aplicar para responder ao pedido do paciente, o qual
deve submeter-se a regra de associação livre.
Nesta época, a psicanálise se dava no consultório particular. Contudo, seria possível
pensar em psicanálise em outro contexto, como exemplo, uma instituição?
2.1 Instituição
O conceito de instituição toma diferentes formas ao longo da história considerando os
campos da filosofia do direito e da sociologia. Não pretendo mencionar essas diferenças, no
entanto, exemplificarei com um sucinto recorte.
Segundo Lourau (1995), formas sociais visíveis dotadas de uma organização jurídica
e/ou material, como uma empresa, uma escola, um hospital, o sistema industrial, o sistema
escolar de um país são chamados de instituição. Assim como os fenômenos de fundar uma
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família, o ato do casamento, fundar uma associação. Outros termos são normalmente
utilizados na linguagem corrente para referir-se a instituição, como organização, associação e
entidade.
Para Berger & Berger (1977), a instituição é como um padrão de controle, ou seja,
uma programação da conduta individual imposta pela sociedade e organizada sob a forma de
regras e normas, objetiva à ordenação das interações entre os indivíduos e suas respectivas
formas organizacionais.
Lourau não entende que exista somente a instituição como um padrão de controle
social (“reguladora”), mas ainda, as instituições “operadoras”, ou seja, de produção.
Isolarei um conceito de instituição baseado no discurso4, desta forma, podemos
considerar que instituição é um conjunto de saberes e praticas organizado por um discurso.
Contudo, o poder é uma caracterítica presente na instituição, não é por acaso que é o discurso
do mestre que prevalece.
Costa (1989) se refere ao texto Totem e Tabu de Sigmund Freud, como o aparecimento
do social. Posteriormente, o autor diz que a tese central deste texto, não é do advento social
puro e simples. É a de que a sexualidade tem tal poder de coerção sobre a vida humana que só
uma força de igual porte, a ameaça de morte ou de culpabilidade pelo assassinato, pode contê-
la. E com isso, o que Freud deixa claro no vaivém do texto, é que somente uma instituição
que disponha do poder de morte sobre os indivíduos é capaz de barrar os excessos narcísicos.
Esta parte de Totem e Tabu é uma parábola sobre uma figura paterna que detinha
poder absoluto sobre os bens de prazer, ou seja, era detentor de mulheres, mesmo que fossem
suas filhas. Os filhos, deste pai primordial, sentiam-se prejudicados por não poderem usufruir
dos prazeres sexuais. Caso alguém o desafiasse, seria aniquilado.
4 Conceito proposto no artigo Análise e Tratamento Psicanalítico de Estruturas Discursivas: Uma Outra Possibilidade Clínica.
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Os homens da horda solucionaram este conflito assassinando o pai primordial e
formando um pacto de que ninguém ocuparia sua posição. No lugar deste pai faltante, deu-se
um totem, simbolizando assim a presença e ausência desta figura paterna na horda. Mas o que
vem a ser um totem? Freud o define no início de seu texto:
[...] Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras). O caráter totêmico é inerente, não apenas a algum animal ou entidade individual, mas a todos os indivíduos de uma determinada classe. (FREUD, 1913, p.22)
Neste texto, o psicanalista faz uma narração de construção mítica, na qual se confirma
a ausência da comprovação histórica fornecida pela memória da humanidade. Segundo
Birman (1994), é um mito das origens, onde o que funda a narrativa é a reminiscência do
sujeito e não a ordem da memória. Reminiscência essa que se revela pela experiência da
repetição que se apresenta no processo psicanalítico.
Com relação ao capítulo em que ele conta do assassinato do pai e o surgimento do
totem, Birman propõe que, nesta posição regulada pela oposição de presença e ausência, a
figura paterna não é uma figura real, mas de um símbolo no qual se delimita um espaço onde
se funda o poder.
Para o autor é no espaço vazio (ausência) que possibilitaria a constituição dos
interditos da ordem humana, em que a figura da morte seria o operador primordial, pois impõe
um limite absoluto para a onipotência originária, possibilitando a constituição da linguagem e
da ordem social. Pois é da morte do pai primordial que vem a condição para a constituição da
ordem simbólica e para a instituição de um pacto social que regularia a troca entre os iguais.
22
Segundo Enriquez (1990), no texto Totem e Tabu, Freud nos diz que o nascimento de
um grupo é correlativo a um crime cometido em comum.
Sobre os irmãos da horda, o autor afirma que, eles são irmãos em sua impotência
comum, fato que os torna semelhantes. O desejo deles é de exterminar sua impotência e de
escapar à fascinação mortífera à qual se submetem, bem como à admiração e o medo frente ao
onipotente. Ao fazerem isto, eles se identificam uns com os outros, exprimem sua
solidariedade e reconhecem o vínculo libidinal que os une no ódio comum contra o pai. Se o
ódio que transforma os seres submissos em irmãos, é seu assassinato que transforma o chefe
da horda em pai. Desta forma, o pai só existe enquanto ser mítico.
No caso do pai, enquanto real e vivo, ao provocar temor e angústia, ele se transforma
em chefe, aquele que transcende os outros. Se ele suscita amor, assume aspecto de grande
irmão, de amigo. Porém o pai, em sua função mítica, é aquele que provoca reverência, terror e
amor ao mesmo tempo, um pai que sufoca, castra e que deve ser morto ou vencido. Portanto,
seu assassinato é sucedido de culpa e veneração.
Enriquez (1990) considera que, os irmãos sentem-se culpados por terem matado o pai
que amavam e temiam (notem a ambivalência de sentimentos). Eles mitificam o pai,
instituindo-o como totem ou Deus, um emblema transcendente, respeitado e venerado, vivido
como fundador do grupo.
Costa apud Castoriadis (1989) afirma que, o totem a que Freud se refere, depois de
algum tempo, se torna o Panteão de deuses, ou o Deus único, ou a instituição, ou o partido. E
isto é o que os Lacanianos chamariam o “simbólico”. O autor conclui que, o totem nada mais
é do que o simbólico, tornado independente e investido por um poder mágico.
Quando Freud em seu texto da Psicologia das Massas propõe os contrastes entre a
psicologia individual e social, ele ressalta que as relações de um indivíduo com os pais, com
os irmãos, com o com seu médico e com seu objeto de seu amor, na realidade, todas as
23
relações podem ser consideradas como fenômenos sociais, e com isso, podem ser colocadas
em contraste com outros processos, descritos como “narcisistas”, nos quais a satisfação dos
instintos é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas.
Freud avança considerando que a psicologia de grupo interessa-se assim pelo
indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma
instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas que se organizaram em
grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido.
O autor discute sobre Psicologia das Massas a partir do pensamento do cientista social
francês, Gustave Le Bon, no qual considera que, os dotes particulares dos indivíduos se
apagam num grupo e que, desta forma, sua particularidade se desvanece. O inconsciente racial
emerge; o que é heterogêneo submerge no que é homogêneo. A superestrutura mental, cujo
desenvolvimento nos indivíduos apresenta tais dessemelhanças, é removida, e as funções
inconscientes, que são semelhantes em todos, ficam expostas à vista. Freud considera a
identificação como expressão de um laço emocional com outra pessoa.
[...] primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto;
segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto
libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego; e, terceiro, pode surgir
com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra
pessoa que não é objeto de instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum
é, mais bem-sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim
o início de um novo laço. (FREUD, 1921, p. 117)
Segundo Birman (1994), neste texto, Freud trata das dificuldades do funcionamento
social. Diz-se que a possibilidade da concórdia social reside na identificação mútua entre os
membros da massa e no controle da expansão narcísica.
24
O autor acrescenta que, a economia do narcisismo se materializa em figuras
fundamentais, que revelam diferentes relações com o Outro e com o prazer, considerando este
como o valor da regulação da subjetividade: o ego ideal e o ideal do ego.
Em ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma instância assim, capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de ‘ideal do ego’ e, a título de funções, atribuímos-lhe a auto-observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a principal influência na repressão. Dissemos que ele é o herdeiro do narcisismo original em que o ego infantil desfrutava de auto-suficiência; gradualmente reúne, das influências do meio ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode sempre estar à altura; de maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego. (FREUD, 1921, p. 119)
Birman (1994) afirma que, o conceito de narcisismo das pequenas diferenças
empregado no texto freudiano, é uma outra maneira para se tematizar a problemática do mal-
estar na cultura para a subjetividade, pois é pelo caminho do narcisismo das pequenas
diferenças que os corpos estabelecem relações de oposição entre si, para se distinguirem e
para o estabelecimento das formas diversas de dominação.
Pela tentativa de domínio sobre o corpo do outro, o sujeito pretende extrair os objetos passíveis para a promoção do gozo (ego ideal), mas é pelo obstáculo permanente que é interposto para essa violação predatória que se constitui também um sistema de diferenças entre os sujeitos (ideal do ego), inscrevendo a economia do narcisismo num espaço intersubjetivo regulado por valores transcendentes ao gozo imediato e absoluto. (BIRMAN, 1994, p. 133)
Para o autor, na organização da massa, a singularidade subjetiva se apaga, as
diferenças se anulam, as subjetividades se tornam homogêneas diante do imperativo do eu
devo representado pelo líder carismático. Em função disto as subjetividades, quando
dissolvidas no corpo da massa, se tornam capazes de realizar atos para os quais estariam
incapazes se estivessem sozinhas.
25
A massa, de acordo com Birman (1994), apresenta uma organização complexa e
polarizada. Desta forma existe o agrupamento homogêneo dos iguais que se contrapõe à
figura do líder como agenciador da massa. O líder representa o ideal do ego, mas frente a esse
destaque, as individualidades perdem suas diferenças face ao ideal maior, mesmo que
momentaneamente.
Segundo Costa (1989), o ideal do ego é uma fantasia imaginária e sua possibilidade de
se contrapor ao ego narcísico, e muitas vezes forçá-lo à mudança, advém da promessa de um
prazer ideal. O autor afirma que o imaginário imagina o ego narcísico e imagina o ideal do
ego. E quando imagina este último, captura a libido em sua tendência de prazer. Este ideal
existe porque entra na dialética do desejo do Outro.
O autor exemplifica a proposição descrita acima com a relação “mãe e filho”. A mãe
investe a imagem egóica do filho tendo em vista, a imagem do filho que ela gostaria que ele
fosse. O filho é amado como é e como deveria ser (com relação ao desejo materno). As
conseqüências entre, a distância desta imagem e a outra, tem relação com o fato de que o ideal
do ego é uma promessa de prazer que, para ser alcançada, exige que o ego narcísico seja
modificado. Sob este ponto, a fantasia do ideal do ego (portador de prazer ideal), representa,
imaginariamente, o sujeito enquanto falta.
Para Costa (1989), Freud não tem uma teoria aceitável do social, ou seja, não é
possível isolar em Freud uma teoria coerente do social ou de grupo, em sua gênese ou
funcionamento. O que é possível notar na obra freudiana (sobre o social e o grupo) é uma
descrição de um Imaginário, no qual os indivíduos e grupos são concebidos de uma certa
forma.
Contudo, podemos observar que quando uma pessoa entra em uma situação de grupo,
os fenômenos egóicos (imaginários especulares) são potencializados. Com isso, há
26
prevalência das formações do eu: eu ideal, ideal de eu e supereu5. O conceito de “Eu” adotado
neste trabalho, advém da proposição lacaniana do Estádio do Espelho, na qual a criança se
identifica a partir de algo virtual (sua imagem no espelho). Ou seja, em uma instituição, as
pessoas se remetem aos seus “eus” nos campos das relações interpessoais e institucionais6.
Por isso é possível afirmar que o registro imaginário é predominante nessas relações.
2.2 Psicanálise em Algumas Instituições
Caracterizado a questão do poder que as instituições têm e determinadas
características grupais inerentes a elas, ilustrarei a partir de agora como a psicanálise é
utilizada em algumas delas. Não me aterei ao processo histórico ou cronológico do método
psicanalítico passar dos consultórios particulares às organizações. Apenas esboçarei como a
psicanálise está presente em determinadas instituições.
No texto freudiano de 1919, Linhas de Progresso na Terapia Analítica, o autor discute
a questão da psicanálise, naquele momento, ter um alcance restrito a pessoas financeiramente
abastadas e da necessidade de uma expansão a outras classes sociais.
Presentemente nada podemos fazer pelas camadas sociais mais amplas, que sofrem de neuroses de maneira extremamente grave. Vamos presumir que, por meio de algum tipo de organização, consigamos aumentar os nossos números em medida suficiente para tratar uma considerável massa da população. [...] Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. [...] Mais cedo ou
5 Lacan utiliza os termos eu ideal, ideal de eu e supereu a fim de remeter-se ao que Freud chamou de ego ideal, ideal do ego e superego, respectivamente. 6 Rodrigues da Costa, A. M., Ribeiro, L. P., Gomes, V. Análise e Tratamento Psicanalítico de Estruturas Discursivas: Uma Outra Possibilidade Clínica In Estilos da Clínica (n.3) - Dossiê: Psicanálise e Medicina. São Paulo: Instituto de Psicologia USP, 1997.
27
mais tarde, contudo, chegaremos a isso. Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições. (FREUD, 1919, p. 180, 181).
Freud encerra o texto alertando que qualquer seja a forma que a psicoterapia possa
assumir em um âmbito mais abrangente, qualquer elemento dos quais se componha estes
atendimentos, os ingredientes mais efetivos estão ligados ao uso da psicanálise estrita e não
tendenciosa. Observa-se então que ele menciona o uso da psicanálise no tratamento de âmbito
clinico, discorre sobre as condições de análise.
Segundo Quinet (1991) as condições de análise são: entrevistas preliminares, divã,
dinheiro, tempo7. O autor menciona a transição de analisante a analista como quinta condição
(refere-se a ela como “+1”).
Explanarei sobre ao divã, o tempo8 e o dinheiro para posteriormente tomar esses
pontos na apresentação de dois trabalhos sobre os atendimentos fora de consultórios privados.
Para o autor, o divã é uma tática para dissolver a pregnância do imaginário da
transferência, para que o analista possa distingui-lo no momento de sua emergência nos
dizeres do analisante.
Quinet apud Lacan (1991) afirma que o olho institui, na relação do sujeito com o outro
imaginário, o desconhecimento de que sobre este desejável há um desejante (desejo do
analista). Cabe ir contra esse desconhecimento, a fazer com que, sob esse objeto de desejo que
contém o analista, surja para o analisante a interrogação sobre sua própria posição em relação
ao desejo do Outro, para que desta forma possa surgir o discurso do Outro.
Com o objetivo de explanar sobre o dinheiro, Quinet, discorre, brevemente, sobre a
teoria freudiana da libido. Considera que Freud a define como uma energia quantitativa das
pulsões que se referem a tudo o que se entende pelo nome de amor. É uma manifestação
7 O tempo de duração das sessões e o tempo de duração de uma análise. 8 O tempo das sessões.
28
dinâmica na vida psíquica da pulsão sexual. Os significantes da demanda, que são
representativos da pulsão, ficam recalcados e cifrados no inconsciente.
Com isso, para que haja o deciframento do processo analítico, é preciso postular que
algo já encontra cifrado. Este aspecto da pulsão que torna o sintoma analisável, por ser da
ordem da linguagem, e como tal, uma formação do inconsciente.
Dessa maneira, o autor considera que, o dinheiro na análise encontra-se na conjunção
entre o que é da ordem do ciframento e da ordem dessa energia quantificável tendo um valor
inestimável para o sujeito e que Freud designou como libido.
Para Quinet o pagamento se refere à transferência do sofrimento pelo preço pago com
o sintoma para o sofrimento do bolso, pois pagar implica em sofrimento, privações e
sacrifícios. O pagamento pelo analisando, transforma algo da ordem do destino em objeto de
troca, os significantes empregados para cifrar esse gozo.
O autor considera que, a análise leva a uma experiência de resignificação, permitindo
várias interpretações acerca do mesmo evento, o que permite ao sujeito assumir sua história e
sua participação nela. O corte é uma forma de interpretação em ato, uma pontuação que tem o
valor de uma intervenção, objetivando precipitar momentos concludentes.
Posto isto, ele discute sobre o tempo das sessões. O encadeamento de significantes
produzirá o sujeito e é a partir do corte da sessão, que irá surgir a dimensão do desejo como
questão. O encurtamento da sessão visa precipitar no sujeito o momento de concluir, para que
ele se declare, apontando para o não-sentido e para a falta no Outro, com isso, tira o sujeito de
uma temporalidade infinita.
Considerando a psicanálise para sustentar o atendimento psicológico em uma Unidade
Básica de Saúde, Katto & Cugler (2005), fazem um paralelo com algumas dessas condições
de análise às condições que o espaço de uma UBS oferece.
29
As autoras atribuem faltas, o abandono ao tratamento e atrasos dos pacientes
agendados ao não pagamento. Por outro lado, elas defendem que há um pagamento simbólico,
quando pensamos que se trata de uma população vulnerável (financeiramente) e tem que arcar
com o dinheiro da condução para chegarem ao posto de saúde, o dinheiro que perdem por não
trabalharem no dia (no caso de não conseguirem atestado ou serem profissionais autônomos),
ou mesmo o imposto como pagamento indireto, podem ser considerados na perda do gozo ao
sintoma.
Segundo Katto & Cugler (2005), em uma Unidade Básica de Saúde é comum haver
um grande número de pessoas para o atendimento e isto tem conseqüências. Em função da
demora entre o dia do agendamento da consulta até o dia do atendimento, a pessoa já não tem
mais motivos para comparecer e falta. Também há atendimentos em grupo. Eventualmente,
ocorre de um vizinho freqüentar o grupo, gerando incomodo à pessoa atendida. Esses aspectos
influem no tempo do atendimento (duração das sessões e duração do tratamento).
Porém, elas defendem que o argumento do tempo não pode ser um impeditivo para o
uso da psicanálise na rede pública se valendo da proposição freudiana sobre as possíveis
modificações que a psicanálise teria que fazer para adaptar-se as instituições.
De acordo com Katto & Cugler (2005), o contexto da UBS é marcado pela falta (de
espaço físico, profissionais, dos pacientes, do dinheiro, referencial teórico coeso). E nos
atentam que é com a falta que a psicanálise trabalha, buscando-se uma experiência de re-
significação, o que permite ao sujeito assumir sua história e sua própria participação. Ao
término da análise, há um desnudar-se das identificações e a constatação da pura falta. Com
isso, elas propõem que a psicanálise ultrapassa as fronteiras dos consultórios, podendo ocorrer
o manejo do discurso no consultório, no leito, nos corredores da UBS, pois o sujeito está onde
ele fala.
30
Figueiredo (1997) pauta-se em seu trabalho desenvolvido em um hospital público,
para mostrar os limites e possibilidades do exercício da psicanálise fora dos consultórios
privados. Ela defende que não há duas psicanálises, uma para o consultório e outra para o
ambulatório, uma vez que tem como referência primordial seu fundador, Freud.
Para a autora o ambulatório é um local privilegiado para a prática da psicanálise
porque mantém regularidade no atendimento pela marcação das consultas, preserva o sigilo e
propicia autonomia de trabalho para o profissional.
Figueiredo (1997) discute sobre algumas normatizações dos atendimentos
psicanalíticos como o tempo, o dinheiro e o divã.
Sobre o dinheiro, ela aponta que considerar que um paciente pague pelo atendimento
em um hospital púbico por meio de contribuições dos impostos, é um argumento insatisfatório
porque esta contribuição existe independente de uma oferta de serviço. Portanto, não pode ser
reconhecido como tal no empenho do sujeito em se tratar.
A autora considera que existam relevantes formas indiretas de pagamentos como um
custo real para os pacientes que se engajam nos tratamentos. Então, os meios são variados,
como: o tempo e dinheiro que gastam para chegar ao hospital toda semana; diaristas que
perdem um turno de trabalho e remuneração; donas de casa que saem e deixam seus filhos
sozinhos; jovens que perdem aulas e tem que haver com as provas e demanda dos professores;
trabalhadores que sofrem pressões para não se ausentarem regularmente dos empregos, etc.
Com relação ao tempo, Figueiredo (1997) menciona diversos exemplos da rotina
institucional para remeter ao encurtamento das sessões (cerca de 30 minutos). Descreve
determinados casos clínicos e a repercussão da questão do tempo em cada um, respeitando a
singularidade de cada caso. Porém, não considera de forma geral a implicação que possa ter
esta alteração no que chama de “padrões da psicanálise”.
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Segundo Figueiredo (1997), não há sala certa para se atender em um ambulatório, e
por vezes os profissionais atendem em salas com cadeira ginecológica, macas, ou parelhos
específicos de cada especialidade. Para ela, seja do divã à sala de oftalmologia, devemos
manejar o elemento a mais, na transferência, e que este elemento pode ser tão pregnante
quanto irrelevante no decorrer do processo.
De acordo com a autora, no hospital, não há regras para o divã. Ela afirma que, não há
divã, mas há cadeiras, e são com elas que os analistas lidam com a questão do olhar. Eles as
posicionam de frente uma para outra ou meio de lado, enfim.
Os recortes acima remetem ao que Freud havia previsto no trecho citado no início
deste capítulo, em um campo terapêutico. E nos dois exemplos, as autoras, assim como o
fundador da psicanálise, falam da eficácia do método psicanalítico ter a ver com o
cumprimento do seu rigor.
Porém o rigor que as autoras se referiam no trabalho da UBS, está relacionado com a
sustentação de apenas um referencial teórico. Pautam-se neste aspecto porque notavam a
miscelânea de abordagens teóricas utilizadas pelos psicólogos do local, os quais atuavam em
função do bem-estar imediato do paciente. Como se não pudessem sustentar a limitação que
uma abordagem possa ter diante de alguns casos, ou mesmo uma intolerância ao sofrimento
desses pacientes.
Já Figueiredo, considera que seu rigor reside em não dissociar a psicanálise de seu
fundador como referência primordial. Acrescenta que recorre às contribuições conceituais
lacanianas para resolver alguns impasses deixados por Freud, abrindo novas possibilidades de
recontextualização da psicanálise no próprio campo da teoria, com ênfase na função do
analista.
Ao observarmos estas correlações entre as condições de análise e os atendimentos em
ambulatório e/ou UBS, podemos questionar - será que todas as pessoas que procuram
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atendimento nestes lugares têm demanda para análise? Ou seria apenas uma questão
sintomática (na maioria dos casos) em que as entrevistas preliminares seriam suficientes para
resolver?
Segundo Rodrigues da Costa, Ribeiro & Gomes no artigo sobre Análise e Tratamento
Psicanalítico de Estruturas Discursivas, considerando a psicanálise estrutural, é plausível
afirmar que, a instituição sobredetermina a relação analista-analisante. Portanto, em função
disto, talvez não possamos mais falar em psicanálise. No entanto, deixo de lado a psicanálise
com cunho terapêutico com intuito de retomar a pergunta que orienta este trabalho – seria
possível considerar operadores psicanalíticos para leitura de processos institucionais?
De acordo com Birman (1994), a experiência psicanalítica admite várias
possibilidades, desde que nesta diversidade sejam reconhecidas as condições epistemiológicas
e éticas para a construção do espaço psicanalítico, ou seja, uma experiência centrada na fala,
na escuta e regulada pelo impacto da transferência. Assim a experiência psicanalítica se torna
possível em uma diversidade de espaços.
Sob este aspecto, tomando como referência o discurso psicanalítico em uma clinica-
escola de fonoaudiologia, Oliveira (2000) considera que, a partir de sua inserção em um
campo discursivo, na relação com os alunos da instituição (o que possibilitou o aparecimento
de demandas e transferências), encontrou os princípios que possam sustentar, nesse âmbito,
uma experiência psicanalítica.
A autora utiliza a teoria freudiana para estudar os efeitos subjetivos decorrentes das
formações de grupo e laço social. Posteriormente, a teoria lacaniana com os conceitos de
alienação e separação para articular o nascimento do mal-estar na instituição com o mal-estar
que é produto intrínseco à constituição do sujeito em uma estrutura de linguagem.
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Oliveira (2000) considera a psicanálise como uma experiência discursiva, e ainda
valendo-se da teorização lacaniana, verifica que sua transmissão rigorosa está pautada em
uma posição ética, a qual possibilita o uso da psicanálise em extensão.
Este é o caminho que a autora percorre para apresentar os impasses e possibilidades da
sustentação do discurso psicanalítico em uma instituição. Assim, conclui que cabe a cada
analista, a partir de seu desejo, sustentar a impossibilidade de um gozo total, procurando
formas de barrar o discurso instituído.
Soléra (2008), do mesmo modo, emprega alguns operadores psicanalíticos na leitura
sobre inclusão social de jovens e adultos com deficiência intelectual. Ela parte do contexto de
uma instituição para propor uma reflexão sobre as formas de relação que o sujeito estabelece
com o diferente, o estranho, no caso, o deficiente intelectual.
À luz da psicanálise, servi-se da teoria lacaniana sobre a constituição do Eu e os três
registros (Real, Simbólico e Imaginário.) para elucidar os descompassos e mal-entendidos
que, como efeito do Real, são produzidos nas identificações imaginárias e simbólicas que
demarcam a relação com o outro.
A autora afirma que a priori acreditou que poderia transformar a instituição em um
modelo ideal de inclusão. Porém, o Real na experiência vivida denunciou essa
impossibilidade. Desta forma, ela conclui que reconhecer esses limites pode nos tornar mais
pacientes, mais tolerantes e menos exigentes frente às diferenças, ao imprevisível e às
contingências da vida.
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III. Um Caso Institucional
Com o objetivo de esclarecer quais contextos institucionais recortei para pensarmos a
psicanálise, faz-se necessário evidenciar aspectos da entidade na qual surgiram meus
questionamentos.
Esta instituição existe a mais de 20 anos. Foi fundada por um grupo de senhoras e uma
assistente social cuja vontade era de formar um centro de reabilitação para o atendimento a
pessoas com deficiência intelectual. Deste modo, ela poderia dar continuidade ao trabalho
com deficientes, uma vez que tinha adquirido ampla experiência em um hospital com crianças
deficientes intelectuais.
Naquele tempo, as senhoras que participavam da entidade desenvolviam uma ação
social de cunho filantrópico e assistencialista no chamado Serviço de Obras Sociais (SOS). A
comunidade necessitava de programas que contemplassem o atendimento a adolescentes e
adultos, por isso, foi implantado em seu centro de reabilitação o Programa de Oficinas
Pedagógicas voltado para pessoas com deficiência intelectual a partir de 14 anos de idade.
Durante muitos anos houve um funcionamento na entidade que visava uma
padronização do comportamento desses jovens em nome de uma boa educação. Desta forma,
não se falava sobre sexualidade, não poderiam demonstrar afeto aos amigos com qualquer
aproximação física (abraços e beijos), os pais não recebiam permissão para adentrar a
instituição, etc. Enfim, todo um trato com esses alunos que apagava suas singularidades.
A entrada de uma “diretoranalista” (uma analista com o cargo de diretora) na entidade
foi modificando, radicalmente, esse funcionamento. Ela participava de reuniões mensais com
a equipe técnica, as instrutoras e com os membros da diretoria. Com o decorrer do tempo, a
instituição passou a funcionar de modo bem diferente, os jovens tinham espaço para
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demonstrarem o que sentiam e para falarem. A entidade já não era mais silenciosa e calma
como antes. As repercussões disso eram tratadas nessas reuniões com os funcionários.
Entendo que a atuação de uma pessoa que sabia da importância de convocar as pessoas
a falarem e de oferecer-lhes uma escuta teve conseqüências positivas não só com os alunos,
mas no trabalho das pessoas da entidade.
Devo dizer que ao iniciar meu trabalho nesta instituição, a percebia ainda mediante
uma fase de transição. Falava-se em capacitação para o trabalho através das oficinas, porém
nos projetos, assim como na origem institucional, as oficinas eram descritas como
pedagógicas.
O trabalho da área técnica de psicologia se estendia aos alunos das oficinas
profissionalizantes, aos seus familiares e instrutores. Sendo que as instrutoras e os alunos
eram atendidos individualmente e familiares em grupo.
Passei a ser requisitada do modo que descrevi na introdução, para dar “um jeito” no
comportamento inadequado dos alunos. Quando os alunos me procuravam era para contar um
segredo ou porque estavam tristes. Sempre os mesmos alunos, mas e os outros?
Abri horários para que todos pudessem falar comigo, semanalmente, e em grupo. Eles
determinavam o assunto.
Em algumas reuniões semanais com as instrutoras, discutimos o que as levava
encaminhar os alunos para mim. Esta discussão foi reforçada por vezes nas reuniões mensais
com a diretora.
Era notório que as instrutoras trabalhavam para que tudo desse certo. A cada atividade
que realizavam com os alunos ou evento que teria na entidade (como uma festa, por exemplo),
elas pensavam em todos os detalhes, antecipavam possíveis problemas e já criavam soluções.
Tudo deveria seguir em perfeita ordem. Ou seja, atuavam para servir a um ideal. Esta
expectativa recaía sobre os alunos. Era desejado que eles estivessem sempre bem. No
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momento em que choravam, demonstravam-se agressivos ou desobedientes, furavam o ideal
de que as instrutoras detinham um saber absoluto sobre como lidar com eles. Portanto, eu era
chamada como pedido de “socorro” para dar conta do mal-estar que este furo causava.
Através de uma das reuniões que realizávamos, elas perceberam a intolerância que
tinham com o sofrimento dos alunos e como isto tinha relação com a vontade de sustentar um
trabalho ideal que nem sempre era possível. Discutimos a importância de deixar que os alunos
vivenciassem algumas de suas emoções sem interferências.
Nas oficinas, durante o trabalho dos alunos, era muito comum que alguns deles
parassem de executar a tarefa dizendo estar cansados. Ou quando estavam adoentados,
justificavam dizendo não estarem se sentindo bem.
Uma pratica observável em parte daquela população de familiares era que os
filhos/parentes passassem o dia em instituições como escola especial/regular, oficina
profissionalizante, oficinas de artes, curso de dança, Instituto Kumon, etc. Muitas vezes os
horários e dias das atividades coincidiam. Os alunos eram mantidos em todas elas, e os
responsáveis iam manejando as faltas. Alguns familiares optavam por apenas uma atividade
no dia. Eles consideravam cansativo, para os alunos, terem mais de uma atividade diária de 4
horas.
Uma aluna que participava das oficinas no período da manhã e a tarde freqüentava a
escola, põe-se a chorar e gritar que não estava bem e que não ia à escola. Já era sabido,
através da própria aluna, que ela não gostava de estudar.
Poderíamos pensar como alguém que diz sentir-se tão doente tem tanta energia para
gritar e fixar-se em um lugar, a ponto de tornar impossível, para a mulher que vinha buscá-la,
fazê-la dar um passo. Ela só sairia dali se garantissem que não fosse à escola.
Ao me aproximar da aluna, perguntei o que estava acontecendo. Ela, aos gritos, me
explicou que não ia à escola porque não estava bem, estava doente. Eu perguntei se ela estava
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mal, como tinha tantas forças para gritar. Ela não respondeu a esta pergunta com palavras,
apenas repetiu que estava sentindo-se muito mal, desta vez, num tom de voz baixo. Ao
entrarem em contato com a mãe da jovem, sem mencionar o fato da aluna dizer que estava
doente, comunicaram que sua filha se recusava a ir para a escola. A mãe, prontamente, disse:
“Ah, mas ela não está bem hoje. Está com gripe. Fale para que venha para casa, tadinha!”.
Com o contato com os familiares ficava claro a reprodução que os alunos faziam de
suas falas, como apropriavam de suas idéias e se posicionavam diante disto. Desta forma,
prosseguirei com o aspecto familiar.
3.1. Família
A família desempenha um importante papel na transmissão da cultura, incluindo a
língua- mãe. No caso dos alunos da entidade, mesmo em atividades de lazer e sendo adultos,
estavam acompanhados dos familiares, esta convivência era quase em tempo integral.
A família, segundo Lacan (1985), surge como um grupo natural de indivíduos unidos
por uma dupla relação biológica: a geração, que dá os componentes do grupo; as condições do
meio que o desenvolvimento dos jovens postula e que mantém o grupo na medida em que os
adultos geradores assegurem sua função.
O autor avança especificando que, a espécie humana caracteriza-se por um
desenvolvimento singular das relações sociais, desenvolvimento esse que é sustentado por
capacidades excepcionais de comunicação mental, e por uma economia paradoxal dos
instintos.
Comportamentos adaptativos diversos são assim permitidos. Sua conservação e seu
progresso, por dependerem de sua comunicação, são obras coletivas e constituem a cultura.
38
Esta introduz uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica. Esta dimensão
especifica a família humana como todos os fenômenos sociais no homem.
Costa (1989), em um capítulo que discute sobre o grupo no pensamento freudiano,
afirma que, o texto Totem e Tabu de Freud é descrito como advento do social e o advento do
sujeito à palavra, à linguagem, tendo como pano de fundo a morte, a introjeção e a idealização
do pai.
Retomo mais uma vez a parábola em que os filhos matam o pai primordial e o pacto
que fizeram entre si de não ocuparem seu lugar para remeter ao laço consangüíneo, uma
característica familiar.
Por muito tempo depois, os sentimentos fraternais sociais, que constituíram a base de toda a transformação, continuaram a exercer uma profunda influência no desenvolvimento da sociedade. Encontraram expressão na santificação do laço de sangue, na ênfase dada à solidariedade por toda a vida dentro do mesmo clã. Garantindo assim a vida uns dos outros, os irmãos estavam declarando que nenhum deles devia ser tratado por outro, como o pai fora tratado por todos em conjunto. Estavam evitando a possibilidade de uma repetição do destino do pai. À proibição, baseada na religião, contra a morte do totem juntou-se então a proibição socialmente fundamentada contra o fratricídio. Foi somente muito depois que a proibição deixou de limitar-se aos membros do clã e assumiu a forma simples: ‘Não matarás.’ A horda patriarcal foi substituída, em primeira instância, pela horda fraterna, cuja existência era assegurada pelo laço consangüíneo. (FREUD, 1913, p.149)
Birman (1994) afirma que, Freud considera que o indivíduo funciona simultaneamente
em registros diferentes, e que isto implica em afirmar que o sujeito é de ordem intersubjetiva,
exigindo a referência a outros sujeitos para sua constituição. Além da presença de outros
sujeitos, porém, o corpo pulsional se polariza face a uma alteridade estrutural, onde o Outro é
representado pela linguagem, lugar onde se articula o sujeito do inconsciente pela inscrição
das forças pulsionais.
Para o autor é a ordem da linguagem que realiza a mediação possível entre diferentes
sujeitos, materializados pela morte da figura onipotente do pai e do poder absoluto.
39
Lacan (1985) afirma que, nas primeiras fases da função materna (na família humana),
traços de comportamento instintivo, identificáveis aos da família biológica, se pensar no que o
sentimento de paternidade deve aos postulados espirituais que marcaram seu
desenvolvimento, para compreender que nesse domínio as instâncias culturais dominam as
naturais. E mesmo umas substituindo as outras, não são paradoxais.
O psicanalista questiona se essa estrutura cultural da família humana é completamente
acessível aos métodos da psicologia concreta através da observação e análise. Em seguida
esclarece que estes métodos bastam para colocar em evidência traços essenciais, como a
estrutura hierárquica da família, e para reconhecer nela o privilegiado da coação do adulto
sobre a criança, coação à qual o homem deve uma etapa original e as bases arcaicas de sua
formação moral.
Porém, Lacan aponta para outros traços objetivos que obscurecem e embaralham as
relações psicológicas, como: o modo de organização dessa autoridade familiar; as leis de sua
transmissão; os conceitos da descendência e do parentesco que a ela estão unidos; as leis da
herança e da sucessão que aí se combinam, as suas relações íntimas com a lei do casamento.
Para interpretação desses pontos, deve-se recorrer a comparação de dados com a etnografia, a
história, o direito e estatística social. Portanto, coordenados pelo método sociológico, esses
dados estabelecem que a família humana seja uma instituição. Assim, análise psicológica
deve se adaptar a essa estrutura complexa.
Segundo Lacan (1985), entre todos os grupos humanos, a família desempenha um
papel primordial na transmissão da cultura. Se a manutenção dos ritos e costumes, tradições
espirituais, a conservação das técnicas do patrimônio são com ela disputados por outros
grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na
aquisição da língua materna.
40
Assim, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside
esta organização das emoções segundo tipos condicionados pelo meio ambiente, transmite
estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da
consciência.
Para Souza (1995), o ser humano tem grande necessidade da família como uma
estrutura na qual nasce, cresce, evolui, amadurece e morre. Toda criança precisa de uma
figura materna ou paterna para que, junto com eles, possam elaborar suas pulsões e
transformá-las em sublimações. Para cumprir sua função na família, essas figuras devem ser
capazes de lidar com a parte imatura da sua personalidade, a fim de poder acolher seus filhos,
na medida em que estes reativam essa parte imatura e primitiva; são tendências à simbiose, ao
narcisismo, ao incesto ou à hostilidade que serão revividas pelos pais ao cuidarem desses
aspectos em seus filhos.
Deste modo, os pais transmitem seus conhecimentos aos filhos, de acordo com as
possibilidades psicológicas que possuem, e estes os incorporam também de acordo com suas
características de personalidade.
Quanto à família moderna, Lacan a descreve como grupo reduzido, não se apresenta
ao exame como uma simplificação, mas como uma contração da instituição familiar. Este
grupo mostra uma estrutura muito complexa, da qual alguns pontos são esclarecidos pelas
instituições positivamente conhecidas da família antiga que pela hipótese de uma família
elementar que não se apreende em lugar algum. Mesmo assim, é possível procurar nesta
forma complexa um sentido que a unifique e talvez dirija sua evolução.
De acordo com Lacan (1985), este sentido é dado precisamente, quando à luz desse exame
comparativo, se apreende o remanejamento profundo que conduziu a instituição familiar a sua
forma atual; ao mesmo tempo, reconhece-se que é preciso atribuí-lo à influência prevalente
que assume o casamento, instituição que devemos distinguir da família.
41
3.2 Deficiência Intelectual
Os familiares desses alunos lidavam com a deficiência intelectual dos mesmos, com isso,
surgiam algumas questões peculiares ao tema. Era comum dizerem que não sabiam lidar com
seus filhos, demonstrarem gratidão à entidade por verem mudanças positivas no
comportamento deles ou por terem arrumado um emprego, de exporem suas angústias diante
do que achavam não saber, ou do que de fato, não queriam saber.
Muitos deles chegavam à entidade a procura de uma escola, não sabiam muito bem sobre
o objetivo institucional de capacitação profissional. Queriam que os filhos ocupassem o
tempo com alguma atividade.
No contato com os familiares também era evidente a insegurança quanto a um nome para
remeter a deficiência. Uma mãe uma vez me disse: “Meu filho não é normal. Se bem que
ninguém é normal, mas no caso, assim... de gente especial...”.
Os aspectos nosográfico e etiológico que cercam a deficiência intelectual não são
constantes ao longo do tempo, como veremos a seguir.
3.2.1. Debilidade: Primórdios do Conceito
A noção de debilidade mental, no século XX, passa do campo da semiologia
psiquiátrica para o domínio da pedagogia e da psicologia emergente, na instituição escolar. É
nesta época que a debilidade infantil toma força como categoria clínica autônoma no domínio
da psiquiatria infantil.
É observável que ainda nos dias de hoje, resquícios da inconsistência diagnóstica são
reproduzidos no senso-comum ou ainda em níveis mais técnicos, como o discurso médico,
42
por exemplo. Desta forma, discorrer sobre parte das mudanças que cercaram a noção de
debilidade, ilustra algumas confusões atuais.
Segundo Santiago (2005), para Pinel a alienação mental é uma doença que reflete
especialmente o “distúrbio das funções intelectuais” (funções superiores do sistema nervoso
central) e assim as classifica como “neuroses cerebrais”. Nesse grupo de neuroses, existem
dois tipos etiológicos: um que resulta na abolição da função e o outro, da perturbação da
função. Com relação ao segundo, reconhecido no texto de Pinel como “vesanias”,
compreende a alienação mental e a loucura.
O “idiotismo” situa-se nesse grupo de afecções cuja causa é a perturbação da função,
acrescenta a autora. Outros três tipos também fazem parte do grupo, são eles: a “mania”, a
“melancolia” e a “demência”.
O “idotismo” aparece como último grau da alienação mental, e caracteriza-se pela
abolição total das funções da compreensão. Postula-se o “idiotismo” como patologia inata ou
adquirida.
Na “demência”, ou “fraqueza intelectual generalizada”, não há julgamento de
verdadeiro ou falso, as idéias aparecem isoladas, há uma incoerência na manifestação das
faculdades mentais, desordem.
Vejam que o termo “fraqueza intelectual” não está distante do que ouvimos em
algumas escolas. Um aluno que tem dificuldades no estudo é considerado um aluno fraco.
Não é por acaso que onde se incorpora a idéia de fraqueza psíquica no conceito de
“idiotismo”, passa a ser o ponto de partida para a construção da noção de debilidade.
O conceito de “idiotismo”, prossegue Santiago, avança com a contribuição nosológica
de Étienne Esquirol. A principio, o termo é substituindo por “idiotia”. O que se ressalta no
trabalho de Esquirol, com relação à isso, é a separação que ele estabelece entre o que é da
ordem da fraqueza psíquica e o que é da ordem da insuficiência do desenvolvimento mental.
43
Uma outra evolução importante nas diferenciações nosológicas, de acordo com a
autora, culmina nas novas propostas de classificação das loucuras. No final do século XIX,
assiste-se a toda reorientação na abordagem psiquiátrica clinica das doenças mentais.
Segundo Santiago (2005), a classe de “loucuras degenerativas”, proposta por Magnan,
foi isolada a partir da aproximação que ele fez entre as formas de retardo mental e os
distúrbios de caráter e da personalidade. Ele divide a categoria das “loucuras propriamente
ditas” em dois grupos: “psicoses” e “loucuras dos hereditários degenerados”. O último grupo
engloba quatro classes: idiotia, imbecilidade e debilidade mental; anomalias cerebrais;
síndromes episódicas e delírios propriamente ditos. Vê-se ai, uma primeira caracterização
para “débeis mentais”.
A autora afirma que, Magnan caracteriza o estado mental dos sujeitos degenerados
pelo “desequilíbrio mental”. Noção que qualifica a perda de sinergia entre os centros nervosos
e resulta no desaparecimento da harmonia entre as diferentes funções. O débil recebe o
estigma de um ser desprovido de atributos morais – retardo intelectual, retardo afetivo e
inadaptação social; ou físicos – atrofias ou distrofias.
Uma outra tendência descritiva importante que segue a de Magnan é a de Emil
Kraepelin. Ele apresenta o quadro de nomenclatura de doença das “psicoses crônicas”
dividido em dois grupos: “psicoses maníacos-depressivas” e “demência precoce”, marcada
pela fraqueza psíquica progressiva que evolui para deteriorização intelectual nos sujeitos bem
jovens.
Para a autora algo que se observa, tanto nas descrições de Magnan quanto nas de
Kraepelin, embora tenham contribuído para alguns pontos, é a conservação da característica
congênita (irreversível) nas categorias de debilidade. Pinel havia enfatizado a dificuldade de
cura da idiotia em algumas crianças, mas também assinalado que a estimulação física precoce
poderia constituir em um meio de tratamento para esses casos.
44
Os artesãos da abordagem positiva da “idiotia adquirida” (abordagem que entrevê a
possibilidade de cura para o quadro da “debilidade mental”) são especialistas da psiquiatria
infantil, Édouard Seguin e Félix Voisin. Eles elaboraram uma concepção que não deixa de
conceber a “idiotia” como deformidade congênita, porém há possibilidade de reversão do
quadro, sob condição da criança idiota ser submetida desde muito cedo, a procedimentos
educativos especiais de estimulação. É a partir desta concepção que a “debilidade mental”
surge como categoria autônoma.
Santiago (2005) confirma que, o mérito desses psiquiatras consiste em ter definido o
idiota de uma maneira positiva: ele é inteligente e educável. Porém esta concepção ainda
admite um déficit orgânico, na origem da patologia, cujo alcance seria o de poder atingir e
comprometer qualquer uma das funções de cognição.
Abraçando esta corrente humanista da psiquiatria, Seguin ocupou-se do retardo mental
ocasionado por esse elemento deficitário. Seu procedimento é o de notificar todas as
anomalias apresentadas pelo idiota em razão de “sua parte faltante” e recupera-las com auxílio
de métodos educativos próprios. Estava aberta a via terapêutica para os sujeitos por meio da
educação especializada.
De acordo com Santiago (2005), Seguin teve dificuldades para estabelecer uma
classificação precisa das deficiências intelectuais no campo das formas de “idiotia”. A
psiquiatria pedagógica especial experimental promovida pela corrente humanista culmina, em
1909, na obra de Alfred Binet e Théodore Simon, no plano da abordagem psicométrica das
crianças anormais.
O método consistia em três avaliações: médica, pedagógica e psicológica. Sendo que a
primeira faria um diagnóstico do estado mental a partir da análise do corpo físico. A segunda
seria resultado do somatório das aquisições escolares. A terceira tinha o objetivo analisar o
45
estado intelectual por meio de solicitações para que o sujeito julgasse, raciocinasse,
compreendesse e inventasse.
A autora afirma que, desta forma, os “débeis”, “imbecis” e “idiotas” deixam o campo
de investigação da clinica psiquiátrica e fazem seu ingresso no domínio da psicologia
psicométrica e da pedagogia. Ingresso em que, a autora considera definitivo, pois além de a
noção de debilidade mental aparecer, pela primeira vez como forma conceitual, distinta dos
dois outros graus de retardo profundo que são a imbecilidade e a idiotia, ela torna-se solidária
a capacidade para aquisição de conhecimentos escolares.
Com esta “parceria”, Binet e Simon estabelecem uma indicação de tratamento para
pessoas cujos testes situavam entre Q.I. 50 e 70, que nos remetem as indicações atuais.
Hospício para aquele que não consegue se comunicar nem pela palavra, nem pela
escrita (idiotas). Ateliê para aquele que não consegue se comunicar pela escrita, mas tem boa
habilidade motora que lhe permite executar trabalhos manuais (imbecil). Escola para quem
consegue comunicação verbal e escrita cujos déficits de inteligência retardam os estudos
(débil).
As divergências nos resultados do teste Binet-Simon a partir de 1940, faz com que
haja distinção entre verdadeiros e falsos débeis. A debilidade verdadeira aparece associada ao
déficit orgânico, enquanto que a falsa, passa ser encarada como conseqüência de um conflito
psíquico. Está aberto ai uma via para a psicanálise, atenta a autora.
Na década de 1980, a Organização Mundial de Saúde (OMS) criou a Classificação
Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID), na qual a deficiência
está relacionada à perda ou à anormalidade de uma condição física ou funcional, uma
perturbação no órgão. A incapacidade é decorrente da imperfeição física e reflete as
dificuldades da pessoa para desempenhar uma atividade considerada “normal” para o ser
46
humano. A desvantagem está relacionada à socialização da deficiência, isto é, ao prejuízo que
a pessoa sofre na interação com o outro.
A Organização Mundial de Saúde, na revisão da CIDID na década de 1990, dá origem
à Classificação Internacional da Funcionalidade (CIF) que permite medir a funcionalidade e a
forma como uma deficiência é enfrentada pela pessoa, levando em consideração a experiência
pessoal, os fatores culturais, político-sociais e, até mesmo, os fatores ambientais que podem
tanto se constituir em barreiras como em apoios.
De acordo com Soléra (2008), os modelos de classificação CID, CIDID e CIF conceituam
a deficiência como um estado em que existe uma limitação funcional em qualquer área do
funcionamento humano, considerada abaixo da média geral pelo sistema social no qual a
pessoa está inserida. Ou seja, o diagnóstico da deficiência intelectual passou a ser considerado
relativo, mas em nenhum momento deixou de ser normativo.
3.2.2 Deficiência Intelectual para a Psicanálise
A abordagem da debilidade mental de crianças, na concepção lacaniana, tem uma possível
construção de hipótese clinica baseada no desejo.
Este empreendimento teórico-clínico, sob perspectiva de Jacques Lacan, inicia quando
Maud Mannoni (uma de suas alunas) publica “A Criança Retardada e a Mãe” na década de
1960.
Santiago (2005) diz que, o ensino de Lacan privilegiando, na constituição do ser falante, a
resposta do sujeito ao Outro materno, ou seja, as coordenadas que esse Outro lhe oferece em
termos do seu desejo, de seu gozo e de seus ideais, leva Mannoni a atenuar a veracidade do
47
laudo psicológico e buscar, na história do desejo dos pais, os elementos que marcam a história
da criança.
Sobre a conceituação da debilidade mental, a psicanalista responde:
“Escolhi deliberadamente, nunca saber. Quero dizer que, consciente do problema psiquiátrico que se coloca, dei-me sempre tempo para refletir; quando se trata de uma criança, o tempo do diálogo é prolongado o mais possível”. (MANNONI, 1999, p12).
Ao falar sobre a singularidade de cada caso, a autora ressalta que deve-se buscar para
além do sintoma, uma significação que poderá ter importância no tratamento. Uma vez
esclarecido a relação inter-humana de cada caso, permitia introduzir na linguagem o que
muitas vezes ficava imobilizado no sintoma. Ela considera importante não reeducar este
sintoma, não ficar a serviço de orientações que reeduquem esta criança, porque assim,
deixaria escapar uma possibilidade de expressão e se tornaria cúmplice da mentira dos pais.
De acordo com Souza (1995), com relação à inibição intelectual como forma de
sintoma, Freud aborda o tema em seus escritos sobre teorias sexuais infantis e no papel da
repressão da curiosidade infantil dessa fase. Freud discute sobre os dos distúrbios de
inteligência dos neuróticos, nos quais as inibições e sintomas substituiriam o prazer ligado ao
uso da inteligência.
Na descrição do caso clinico “O Homem dos Lobos”, Freud sugere que o problema
neurótico tinha causado prejuízos na capacidade intelectual do paciente.
“Sua atividade intelectual ficou seriamente prejudicada depois dessa primeira derrota. Não desenvolveu um amor pelo estudo, não mais mostrou a agudeza coma qual, apenas cinco anos de idade, criticara e dissecara as doutrinas religiosas”. (FREUD, 1980, p.91)
Santiago (2005) explica que, Mannoni busca o sentido da emergência da debilidade
para cada sujeito, sem desconhecer a origem orgânica do quadro. Desta forma, recusa-se a
fundar sua prática clinica com crianças débeis na diferença orgânica, psicogenética ou
48
psicológica, para fazer incluir o fator da incidência da linguagem sobre esses sujeitos, ao
longo do tratamento.
O conceito de debilidade, segundo Mannoni (1999), mostra-se conectado com o
resultado do próprio discurso do débil e de seus pais. O “dizer parental” que deixa a criança
encerrada em um tipo de relação fantasmática com a mãe.
A tese da autora é de que a debilidade resulta da “fusão de corpos”, ou seja, um tipo de
relação dual que a mãe oferece à seu filho, deixando-o aprisionado à sua própria fantasia
fundamental.
De acordo com Santiago (2005), de fato, isto é como Lacan assinala explicando que na
relação dual a criança fica exposta a tal suborno de fantasia inconsciente da mãe, que não lhe
resta outra saída, senão a de alienar em si mesmo, sob forma do déficit. Poderíamos entender
no caso do débil, a falta da mãe.
Esta “fusão de corpos”, segundo Mannoni (1999), resulta da frustração que a criança
induz na mãe por não realizar o seu desejo. Diante da impossibilidade de resolver a falta, a
mãe sobrepõe à criança uma imagem fantasmática, que fixa esta última em uma relação dual,
na qual a imagem paterna interditora não intervém. A criança encarna para a mãe algo da
ordem do não simbolizado, que não pode ser traduzido em palavras.
Ela não desenvolve uma imagem própria de seu corpo, ressalta a autora, pois não é
vista como um sujeito semelhante e, sim, como um duplo numa espécie de reflexo especular.
Um duplo do próprio corpo fusionado com o corpo do outro materno, formando um corpo só,
que por seu caráter compacto, não possibilita a entrada do pai.
Mannoni, seguindo perspectiva lacaniana, considera que o primário para o sujeito é
sempre o Outro e sua divisão, como ela mesma não deixa de considerar ao reconhecer, na
base da estrutura da relação dual, a dimensão da castração. A deficiência intelectual instala-se
por um processo inconsciente, marcado pela relação do sujeito feminino com a falta de objeto.
49
No caso da relação dual, de acordo com Santiago (2005), quanto mais a criança
preenche a mãe, mais ela a angustia. A mãe angustiada é aquela que não deseja, ou deseja
pouco, ou mal enquanto mulher.
Segundo Lacan (1985), o amor materno engana, porque o amor demanda amor. Não
cessa de demandá-lo. Mais ainda é o nome próprio a essa falha, onde, no Outro, parte a
demanda de amor.
Esta consideração de Lacan sobre a relação de amor com a falta indica que a verdade
da castração pode ser encoberta por uma demanda de amor, o que inaugura para a criança, no
campo do amor materno, uma demanda de realização enquanto mãe.
Para Santiago (2005), um ponto importante na elaboração da tese de Mannoni é
ressaltar que a função do objeto criança encobre a angústia materna na análise de crianças
com deficiência intelectual.
Tomando a angustia como uma situação em que há impossibilidade, para o sujeito, de
utilizar a palavra como mediadora, Mannoni (1999) discute sobre o dela no tratamento do
débil e de uma possível cura.
Se o filho é a falta da mãe, o que ocorre no caso de uma deficiência intelectual, em que
este filho é a verdadeira falta? A autora, segue dizendo que a angustia da mãe é, de certo
modo, mascarada pela preocupação de ter que “pôr qualquer coisa onde não há nada”.
Mas o que acontece se um dia este filho deixa de faltar? A mãe ou o pai, irá
manifestar, através do desnorteio, o seu próprio problema de castração, mascarado até então
pelo filho que tinha a missão de o significar. A cura do filho, alerta Mannoni, pode, em casos
extremos, significar a morte de um dos pais.
50
3.3 Discussão
Os usuários e familiares acreditavam que a instituição obtivesse um saber e um
manejo com a deficiência intelectual que eles não tinham. Desta forma investiam a instituição
de um poder quase mágico, por vezes, sagrado.
Certo dia, junto ao grupo de família, o pai de um aluno disse: “Para mim é Deus no
céu e vocês na terra!”. Ele se referia à entidade que, através da oficina profissionalizante,
mediou um emprego para seu filho em uma empresa. O pai contava mais sobre não acreditar
que seu filho pudesse trabalhar, e que sua concepção mudou quando este filho passou a
freqüentar a instituição. Falava também da transformação que o aluno teve com relação à
socialização, aquisição de novos conhecimentos, etc.
Para este pai, a instituição tinha o poder, tanto de fazê-lo acreditar no que parecia
impossível, quanto no fato de mediar um emprego para seu filho deficiente intelectual. É
possível observar o caráter totêmico que a entidade apresenta, uma vez que é considerada um
símbolo de poder e torna-se venerada por isso.
No matema do discurso do mestre, observa-se a distinção entre saber e verdade:
enquanto o saber, está do lado do sentido, a verdade está do lado do ser. A verdade, em última
instância, é a verdade da castração, da qual o sujeito não quer saber e procura tampar sua
falta, através de determinados modo de gozo.
Possamos inferir que neste caso, não se trata certamente de saber lidar com uma
pessoa com deficiência, mas ter que reconhecer a impossibilidade de lidar com as
diferenças/deficiências dos outros. Uma dificuldade que aponta sua própria deficiência. Saber
do que falta em si, é como reconhecer-se castrado. Quanto a isso, o sujeito nada quer saber, no
entanto, a instituição entra como quem sabe, tamponando a falta destes pais.
51
A instituição aparece como o que é utilizada para tampar a falta, mas também pode
impedir gozo o narcísico dos pais na relação de fusão com seus filhos. Uma vez na instituição,
em um grupo de iguais, os alunos vão se dando conta de suas responsabilidades, do que são
capazes de produzir, de que ser deficiente/diferente ali é, em alguns pontos, ser igual. Tudo
isto contribui para a autonomia, para a vaidade, para descobrirem-se adultos por não serem
tratados pela “idade mental”. Há desdobramentos disso, eles passam a falar e não mais serem
só falados, reivindicar onde querem ir, e não incluir os familiares em tudo.
Em algum momento, isto é vivido com desconforto por alguns familiares, eles já não
são mais extremamente necessários, o poder que tem sobre os filhos está em risco por esta tal
“independência”.
Algumas pessoas, em uma tentativa de não se haverem com suas próprias questões,
utilizam o jovem com deficiência como objeto. Abdicam de suas responsabilidades consigo
para dedicar ao outro. Desta forma, instituem um excesso de cuidado com estes jovens, os
tirando parte da autonomia. No momento em que atuamos fazendo o giro desses jovens de
objetos à significantes para esses familiares, esses jovens com deficiência passam a
representar a deficiência que estes pais tem com eles mesmos.
É quando eles se referem sobre a independência do filho com desprezo. Se antes
reclamavam que não podiam fazer nada porque tinham que tomar conta do filho, agora
reclamam de que não sabem o que fazer de sua própria vida porque o filho não mais quer sua
ajuda. Esses jovens destituem o poder desses familiares os deixando perceber o quanto não
podem.
Através da instituição as pessoas organizam-se em massa e neste tipo de organização,
a singularidade subjetiva se apaga, assim como algumas diferenças.
Uma instrutora observou que, seus alunos, durante as atividades nas oficinas,
demonstravam certo incomodo quando somente um era repreendido. O aluno que estava
52
sendo repreendido mostrava-se sem graça, e que os demais, incomodados com a atenção dada
a um só. No momento em que ela diz: “E isto serve para vocês também!”, continuando a
repreensão olhando para todos, notou que os demais alunos sorriram, colocando-se a ouvir o
sermão atentamente. O aluno que, em um primeiro momento estava só, agora também
esboçava o riso de contentamento, não mais embaraçado.
As pessoas ficavam incomodadas quando alguma diferença não era dissolvida no
grupo. O aluno que falasse muito no instante em que os demais estivessem quietos, ou que
não falasse no momento em que todos falavam, um único jovem que costumava “conversar”
com o amigo imaginário, alguém com o comportamento infantilizado em um grupo de jovens
adultos, etc. Os alunos costumavam blasfemar contra esses “diferentes”.
No grupo de atendimento aos familiares, a pessoa que expunha uma opinião
totalmente diferente das outras suscitava o incomodo visto por reações de raiva, revolta,
desprezo que resultava em uma calorosa discussão. Diante disto, algumas vezes a pessoa
mudava de opinião para concordar com os demais. Desta forma, os ânimos eram acalmados
no grupo quase que imediatamente.
Para Freud a identificação é a expressão de um laço emocional com outra pessoa.
Portanto, ter alguém no grupo que não se identifica com os demais, através de uma opinião ou
atitude, coloca o grupo em risco. Chega ser espantoso como em defesa desta união grupal, os
ânimos se exaltam. Tanto é que, uma vez que este risco não existe mais em função da
homogeneização (de idéias ou atitudes), o alívio seguido de calma volta a imperar.
[...] como seres da fala, tendemos a nos afastar daqueles que percebemos como diferente e a nos unir àqueles que reconhecemos como um igual. Essa tendência do sujeito a imaginarizar e simbolizar de forma a recobrir sua falta, leva o homem a projetar no outro, no diferente/deficiente, todo o seu desamparo inicial e a vivência primitiva de suas próprias deficiências que seu corpo é testemunha; imagem esta alienada de si, mas que alicerça sua constituição como sujeito. (SOLÉRA, 2008. p 110)
53
É notável que as subjetividades se tornem homogêneas diante do imperativo do eu
devo representado pelo líder carismático. Em função disto, as subjetividades, quando
dissolvidas no corpo da massa, se tornam capazes de realizar atos para os quais estariam
incapazes se estivessem sozinhas. No caso desses alunos, isto era evidente quando os
familiares comentavam que antes dos filhos freqüentarem a instituição, não se importavam
com a aparência física, não faziam nada em casa ou não conversavam. Através do convívio
com outros deficientes, aspectos como a vaidade, autonomia e a socialização emergiam.
Muitos jovens eram considerados, por seus familiares, incapazes de realizar tarefas,
portanto, nenhuma responsabilidade lhes era atribuídas. Ao executarem as etapas do processo
de reciclagem de papel junto ao grupo, esses alunos percebiam-se aptos e apropriavam-se de
sua autonomia. Não era por acaso, que muitos familiares surpresos com isso, diziam: “Mas
em casa eles não fazem nada!”. Em casa, eles são únicos, são diferentes e tratados desta
forma. Quando esses pais se convencem da capacidade de seus filhos e começam a requisitá-
los para as tarefas, como fazem com os outros da família, eles executam as tarefas e passam a
fazer parte do grupo (familiar).
A incapacidade, como uma característica considerada em todos os âmbitos, tem
relação ao estigma que o deficiente intelectual carrega consigo. Vimos no capítulo sobre
debilidade que, ao longo do tempo, a deficiência intelectual esteve ligada a aspectos como:
anulação total das funções de compreensão; fraqueza mental resultando em incapacidade de
julgar o que é verdadeiro ou falso; loucura e até mesmo imoralidade.
O estigma de deficiente intelectual ser desprovido de atributos morais veio à tona na
entidade quando os pais de uma jovem me procuraram porque ela havia saído de casa para
morar com uma amiga. Estavam preocupados porque, segundo eles, ela estava saindo com
pessoas que lidavam com drogas. Tinham receio de que ela fizesse algo errado (criminoso) e
54
tivessem que responder por ela, uma vez que ela tinha deficiência intelectual. Eles
acreditavam que, em função da deficiência, ela não poderia distinguir o que é certo e errado.
A aluna em questão, fazia parte de uma parcela de jovens que estavam no mercado de
trabalho. Eles se mantinham vinculados à entidade através de um projeto de emprego apoiado.
Ela trabalhava e estudava. A sua atuação e postura profissional eram apreciadas por sua
supervisora.
Penso que a questão não reside no fato da jovem ter mesmo um ciclo de amizades
perniciosas, porém, dos pais pensarem que ela não poderia discernir certo ou errado, em
função da deficiência intelectual.
Uma pratica ainda, rotineiramente, utilizada é diagnosticar a deficiência intelectual
através do grau do Coeficiente de Inteligência obtido em avaliações psicométricas. Alguns
familiares tomam este aspecto como parâmetro. Tratam seus entes com deficiência intelectual
conforme a “idade mental”.
Como a idade obtida nesses testes com essa população é infantil, as famílias os tratam
como crianças, fazendo uso desta informação para justificarem que seus filhos não podem:
namorar, trabalhar, sair com os amigos sozinhos, etc. Um dos pontos que esta justificativa
mascara é a incapacidade que os familiares atribuem a esses jovens.
Outra tentativa de mensurar e classificar e deficiência intelectual é proposta pelo CID,
sendo que os códigos deste manual apresentavam relevantes repercussões no dia-a-dia desses
jovens e familiares.
Considerar o código do CID para rotular o grau da deficiência intelectual causava
problemas para alguns alunos, uma vez que isto seria determinante para o modo que iriam
exercer o direito de utilizarem o transporte municipal gratuito.
Para pegarem o ônibus, esses jovens precisavam de uma “carteira especial”, ou seja,
um documento de identificação com foto, tipo de deficiência, alguns dados pessoais e se
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precisavam de acompanhante ou não. Caso a pessoa precise que alguém o acompanhe, este
também não paga pela passagem.
O critério médico para fornecer a avaliação que, iria permitir a pessoa com deficiência
retirar este documento, era que em caso de deficiência intelectual considerada leve (F70), não
precisaria de acompanhante. Pessoa com deficiência intelectual moderada e grave
(respectivamente, F71 e F72), sim.
Alguns alunos com deficiência intelectual considerada leve necessitavam de
acompanhante porque não tinham a menor noção espacial. Havia casos em que a questão era
de segurança, entravam em desespero ao perceberem-se sozinhos na rua.
Da mesma forma que existiam pessoas com deficiência moderada que se localizavam
muito bem e não tinham qualquer característica que os impedissem de pegar ônibus sozinhos.
Entretanto, se na avaliação médica constar o código “F71”, a pessoa não poderá pegar o
ônibus sem acompanhante, e no caso de “F70”, terá que estar sozinha.
Para a psicanálise, considerando Mannoni, não há necessidade de um conceito definido
para diagnosticar a deficiência intelectual. A psicanalista considera a teoria lacaniana que
privilegia, na constituição do ser falante, a resposta do sujeito ao Outro materno, ou seja, as
coordenadas que esse Outro lhe oferece em termos do seu desejo, de seu gozo e de seus
ideais. Com isso, Mannoni atenuou a veracidade do laudo psicológico e buscou, na história do
desejo dos pais, os elementos que marcavam a história da criança.
Para a autora o filho é a falta da mãe, e que no caso de um filho com a deficiência
intelectual, este é a própria falta. Isto faz com que a mãe mascare a angustia que sente diante
deste fato, com a preocupação de tentar colocar algo no lugar onde não há nada. Mannoni
afirma que, se esse filho deixar de faltar, os pais ficam desnorteados.
Durante um atendimento de uma mãe na entidade, ela reclamava de ter que fazer tudo
pelo filho. Ao ser questionada do motivo, ela chora e conta que tem pena dele por ele ser
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deficiente. Porém, ao longo de sua narrativa, ela vai mostrando vários sinais que o filho adulto
dava em busca da sua própria autonomia, como exemplo, ter ido ao prostíbulo, assim que
conseguiu um dinheiro fruto de um trabalho que realizou.
A mãe descreve que ficou muito surpresa, que não imaginava como ele poderia saber
que tinha este tipo de lugar, que tinha que pagar e que ele tivesse essas vontades (refere-se ao
desejo sexual). Ela mencionou com certo desprezo, que depois que ele passou a freqüentar a
instituição, não parava em casa. Qualquer demonstração de autonomia deste filho parecia
deixá-la perturbada.
Conforme falava, sutilmente, demonstrou entender que não era o filho que precisava
dela. Não era da deficiência dele que ela estava falando. Então, começou a contar de sua
relação com sua própria mãe acamada. Ela passou a falar de suas dificuldades em deixar que
alguém, que não fosse ela, tomasse conta desta mãe.
De fato, podemos notar que ela precisava de alguém para cuidar, e quando o filho não
mais queria permanecer nesta posição, esta mãe vivenciava isto de forma negativa.
A família neste trabalho foi analisada como meio de transmissão cultural. Isto era
notável quando percebíamos as conseqüências do lugar que esses jovens ocupavam na
família, através de como eram ditos por eles, ou não ditos.
Uma mãe contou que percebeu que durante as refeições em família, todos
conversavam, mas ninguém perguntava nada para o jovem com deficiência. Ele então saia da
mesa, assim que terminava a refeição. Não fazia parte do grupo que falava. Ao perceber isto,
a mãe passou a convocar o filho a falar, mesmo que sua opinião sobre alguma coisa, não fosse
considerada relevante. Os outros membros desta família assim o fizeram.
Uma outra mãe, ouvindo isso, disse: “Nossa! Na minha casa é assim como era na sua,
nós conversamos, mas o Albert não entra na conversa.”. Seguiu contando que ia conversar
com seu marido e seu outro filho sobre isso para que todos mudassem esta postura.
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No grupo com os alunos, o filho que é convocado a falar em família, expressa suas
opiniões, presta atenção no que os outros falam, faz pergunta e faz alusões do que está sendo
dito com sua vida. Albert, no grupo dos alunos, faz eco. Ele escuta o que os outros dizem e no
término da fala de cada um, ele reproduz o que foi dito baixinho. Alguém acaba de me dizer:
“Gosto de correr”. Albert diz: “Ele gosta de correr.”.
Bom, é possível constatar que ele aprendeu a conjugar verbos na terceira pessoa muito
bem, mas e o Eu? Se o Eu é constituído de forma imaginária e nossa entrada no campo
simbólico é através da linguagem, ou seja, no campo do Outro, para Albert ele é a fala do
Outro, portanto, só precisa reproduzi-la.
Se pensarmos no processo de separação para o entender a frase: “Isso é o que ele me
fala, mais o que ele quer de mim?”, ou seja, como estamos inseridos no desejo do Outro,
podemos inferir que, por enquanto, este jovem é desejado enquanto ouvinte. Talvez com esta
mudança familiar, a partir do que a mãe percebeu, ele passe a ser desejado como quem fala e
daí emirja o sujeito Albert que fale em primeira pessoa. Meu caro leitor, visto ser um fato
recente, eu lamento não poder satisfazer (por meio de um fechamento) a curiosidade que
imagino que suscitei com esta história.
Porém, posso assegurar que a leitura através de alguns operadores psicanalíticos no
trabalho institucional, suscitou em uma atuação voltada a dar espaço para que estes alunos
falem, espaço para que estes familiares e as instrutoras dividam seu saber, se dêem conta do
que não podem porque há uma impossibilidade ou mesmo uma impotência, mas também
percebam como utilizam o que podem e suas conseqüências.
Posto isto, poderei mostrar-lhes como esses pontos tem impacto na subjetividade das
pessoas através de um outro caso, desta vez, com fechamento. Em uma das oficinas, havia um
grupo de alunos composto por jovens e adultos com uma postura considerável mais madura e
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gostavam de falar sobre trabalho, namoro, lugares que costumavam sair com os amigos.
Apenas um deles (o mais jovem) gostava de contar sobre suas brincadeiras.
O resto do grupo mostrava-se muito intolerante com este aluno, mandando-o ficar
quieto cada vez que ia dizer algo. A instrutora interferiu para que eles o deixassem falar, uma
aluna então disse: “Mas ele só fala abobrinha!”. A instrutora respondeu: “Ele só fala
abobrinha, então responderemos mandioquinha, mas todo mundo aqui tem espaço para
falar!”.
Esta instrutora, por uma vez, havia sido agredida fisicamente por este aluno mais
jovem, que ao terminar de bater, pôs-se a chorar e pedir desculpas a ela. Quando ele fazia algo
de errado ficava muito preocupado em alguém contar para sua mãe. A instrutora, então,
combinou com ele que os problemas que eles tivessem seriam resolvidos entre os dois.
Este aluno foi recebido pela entidade com idade inferior aos 14 anos porque, devido a
recorrentes episódios de agressividade, havia sido expulso de diversos lugares, e a mãe já não
sabia mais para onde levá-lo.
Esta instrutora deu-lhe espaço a sua fala, o responsabilizou para resolver seus
problemas sem convocar a mãe. Há muito tempo, este aluno não agride ninguém.
Com relação à teoria do significante, me ocupo agora de discorrer sobre dois
significantes que permeavam o discurso institucional.
No começo do capítulo do caso institucional, falo dos alunos que se dizem cansados e
como isso parece reproduzir uma fala familiar. Porém o “cansado” nesta entidade aparece
com os alunos, instrutores e familiares.
Um dia em uma oficina de reciclagem, ao fazer uma atividade de enrolar papel, o
aluno por um instante soltou a tira que segurava. Imediatamente, a instrutora olhou para o
aluno e perguntou: “Você está cansado?”. O aluno respondeu que sim e então ela sugeriu que
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fosse dar uma volta ou bebesse uma água. Será que toda pausa representa cansaço? Bom, mas
não era somente desta forma que “cansado” ia tomando espaço na fala das instrutoras.
Nas reuniões comigo, quando falavam de alunos que não estavam focados nas
atividades, mostravam-se dispersos, ou com vontade de fazer outras coisas (conversar o
tempo todo, por exemplo), o diagnóstico era: “cansado”. Em alguns casos eu também
escutava: “Acho que não tem mais nada aqui que interesse este aluno, está cansado, talvez
fosse melhor arrumar outra coisa para ele fazer”. O “aqui” era a instituição e a “outra coisa”
era alguma coisa em outro lugar.
Em alguns momentos, observava que o uso do termo “cansado”, durante as atividades
da oficina, remetia ao que possamos considerar um “pacto velado” entre a instrutora e o
aluno. No momento em que o aluno não estava com vontade de realizar a atividade, ao
contrário de começar a conversar ou mostrar-se disperso, o que, provavelmente, resultaria em
uma ação mais incisiva da instrutora para implicá-lo na tarefa, ele só precisava dizer que
estava cansado.
A instrutora, prontamente, sugeria que parasse e que saísse da sala para dar uma volta,
como quem de fato acatasse que ele estivesse esgotado. Com isso, ela não teria que se
indispor com o aluno. O aluno voltava e retomava a atividade devagar para cumprir com a
“cena do cansaço”. Desta forma, o uso do termo “cansado” evitava um possível mal-estar.
Podemos inferir sobre este “pacto velado”, uma vez que estes alunos se diziam cansados ao
retornarem à oficina depois de meia hora de intervalo, sob somente alguns minutos de
realização de tarefa manual.
Nas triagens com os familiares, eles perguntavam sobre os dias que os alunos iam
freqüentar as oficinas e horários. Quando viam que os horários estavam próximos de outras
atividades que seus filhos faziam, ou a vaga era para vários dias da semana, diziam “Mas
acho que ele vai ficar cansado!”.
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Nos atendimentos ao grupo de alunos, alguns deles ao sentarem-se e olharem para
mim diziam: “Estou cansado hoje.”. Um dia perguntei para um aluno: “O que fez para que
ficasse cansado, está cansado de quê?”. Ele respondeu: “Nada”. “Por que diz estar
cansado?”, perguntei. Então, ele responde: “Estou cansado porque estou cansado, ué!”.
Percebemos que esses alunos já eram ditos cansados, tanto pela família quanto pelas
instrutoras, desta forma, era como se sentiam. Estavam petrificados neste significante, através
do processo de alienação. Daí o “Estou cansado porque estou cansado, ué!”, não havia o que
este jovem tivesse feito, era o que tinham dito dele. No mais, o uso do termo “cansado” para
referir sempre ao aluno com deficiência intelectual, me fazia pensar que não estavam
mencionando ao cansaço deste aluno, pelo menos, não só ao dele.
Os pais falam do cansaço do filho de ir para duas instituições no mesmo dia, porém
não é desta forma que eles se referiam aos filhos que não tinham deficiência intelectual. A
maioria desses filhos trabalhavam e estudavam, porém, iam e vinham sozinhos. Menciono o
“ir e vir” sozinho porque era usual que os familiares descrevessem como era penoso terem
que levar e buscar seus filhos com deficiência intelectual, eles consideravam cansativo. O
“cansado” para aludir ao filho e o “cansativo” para falarem do levar e buscar, não estavam
relacionados, senão pelo significante, que na cadeia produziam um outro sentido.
Outro ponto que me intrigava era que ao realizar as triagens, os familiares chegavam
sem saber o objetivo da instituição, mesmo quando recebiam encaminhamento de outra
instituição (do CAPS, da APAE, de uma escola especial).
“Vim porque encaminharam meu filho para cá”, me disse uma mãe. “Mas o que
disseram para a senhora?”, perguntei. A mãe responde: “Não sei direito, mas sei que é um
lugar para gente com deficiência.”. Esta fala se repetia em outras triagens.
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Em um dos atendimentos do grupo de alunos, eles enumeram os motivos de estarem
lá, são eles: porque as mães os trouxeram; para aprender a trabalhar; para estudar; para
melhorar a coordenação motora; porque era um lugar que gostavam ou não sabiam;
No atendimento do grupo de pais, com relação a esta mesma questão, boa parte disse
que procuraram uma escola, mas como não tinha vaga, acabaram indo para lá. Determinados
familiares responderam que o filho fica sem fazer nada em casa, procuraram um lugar que
tivesse atividade para ocupar o tempo.
Um lugar, e que lugar é esse?
Quando iniciei meu trabalho na entidade, me instruíram que na triagem, eu deveria
considerar pessoas com mais de 14 anos com deficiência intelectual e que fossem
independentes em Atividades de Vida Diária (comer, ir ao banheiro, higienização, etc). Isto
porque não havia estrutura física, nem de profissionais para dar conta de outros casos.
No trabalho com o grupo de alunos, observei que havia uma aluna que urinava na
roupa. Um jovem que respondia a perguntas prontamente, com considerações ricas e muito
pertinentes diante de alguns pontos não tão simples de discorrer. Ele só demonstrava certa
timidez, mas nada que pudéssemos considerar depreciativo no âmbito intelectual. Havia
muitos alunos que não queriam trabalhar. Outros que eram, nitidamente, impedidos pela
família em função de receberem o Benefício de Prestação Continuada assegurado pela Lei
Orgânica de Assistência Social.
Mas não era uma entidade que visava inclusão social de deficientes intelectuais por
meio da capacitação profissional? Como havia pessoas ali impedidas de trabalhar? E quem
não era independente em AVD?
Retomo a história da constituição da entidade, ainda hoje, continua contando com um
grupo de senhoras na diretoria, entre outras pessoas. Elas não são remuneradas pelo trabalho
que fazem na instituição, o que nos leva a considerar que ainda existe um caráter
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assistencialista e filantrópico nas ações das pessoas envolvidas com o trabalho da entidade.
Da mesma forma que as oficinas, inicialmente, tinham caráter pedagógico. O que dá margem
para referirem-se a instituição como escola.
É possível pensarmos que o assistencialismo e filantropia faziam parte do imaginário
institucional. Desta forma, mesmo sendo uma instituição de capacitação profissional, era um
lugar que acolhia quem quisesse estudo, mas não achou escola, quem não queria/podia
trabalhar, quem precisava de uma atividade para ocupar o tempo.
Um aluno, ao iniciar uma atividade uma vez por semana na entidade, chegou bem
mais cedo e ficou por lá acompanhado de sua mãe. Chamo atenção que o espaço físico da
entidade é uma casa ampla, portanto, permaneceram esperando na garagem. Aparentemente, a
garagem não era um lugar acolhedor.
No primeiro dia, ela disse me disse que moravam longe, e foram caminhando até a
instituição, por isso chegaram duas horas e meia antes do horário.
Da segunda vez, chegaram com três horas e meia de antecedência. No primeiro
momento, a mãe justificou reafirmando morar longe e vir caminhando. Desta forma, eu
pergunto: “Já é a segunda vez que vocês vêm. Você observou quanto tempo leva para chegar
aqui?”. Então, ela responde: “É que ele é muito inquieto e fica agitado querendo vir logo
para cá. Ele gosta de passear.”. “Passear?”, perguntei. “É, vir para cá e ficar aqui”.
Ao comentar sobre o assunto com uma das voluntárias da instituição, ela disse que
achava que não “podíamos fechar as portas”. Se referindo a poderem entrar no horário que
chegassem. E concluiu afirmando que se eles estavam vindo tão cedo é porque tinha uma
questão deles ali.
Realmente existia uma questão, os dois precisavam de um lugar para ir, ou melhor,
para passear. E a instituição, na opinião da voluntária, deveria abrir as portas, independente do
horário.
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As pessoas tinham diferentes razões para procurarem ou estarem naquela instituição.
A entidade, por sua vez, tinha um propósito: a inclusão social através da capacitação
profissional. Porém, acolhia diversas demandas. Veja bem que não era “o lugar”, mas “um
lugar”, indeterminado como ilustra o artigo indefinido, porém, que de certa forma, define o
período de transição que a entidade estava passando.
Quando pensava que estava ficando mais claro para as pessoas o propósito
institucional, o “um lugar” aparecia na fala de alguma pessoa, ou esta idéia emergia de
alguma situação que ocorria na própria entidade. É como o retorno do recalcado, os
primórdios institucionais sempre voltavam (filantropia, um lugar para se trabalhar com
deficiente intelectual, um lugar para deficiente intelectual...).
Ressalvo, que esta abertura da entidade também beneficiava muitos estudantes que
precisavam cumprir horas de estágios ou realizar atividades extra-curriculares, bem como
profissionais que tinham interesse em conhecer a instituição e desenvolver algum trabalho
voluntário lá. E que existia o cuidado de entender bem o propósito dessas pessoas, alinhando
com o objetivo de preparo para o trabalho para não expor os alunos.
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IV. Considerações Finais
É notável que os familiares atribuíssem um conhecimento e poder à entidade para lidar
com os jovens com deficiência. “Aqui vocês sabem como fazer com eles, a gente não.”, me
disse um pai que, sobre isto, teve adesão dos demais que estavam no grupo.
Este aspecto ilustra o caráter totêmico conferido à instituição, uma vez que é
reverenciada e considerada símbolo de poder. Neste caso, os familiares acreditavam que a
entidade soubesse a melhor forma de tratar seus filhos. Com relação a este “saber”, aludi ao
discurso do mestre em função da distinção entre saber e verdade: enquanto o saber, está do
lado do sentido, a verdade está do lado do ser. Esta verdade remete-se a castração, da qual o
sujeito não quer saber e procura tampar sua falta, através de determinados modo de gozo.
Neste trabalho foi considerado que não se trata de saber lidar com uma pessoa com
deficiência, porém de reconhecer a impossibilidade de lidar com as diferenças/deficiências
dos outros. Uma dificuldade que aponta a própria deficiência do sujeito. Saber do que falta em
si, é como reconhecer-se castrado. Sobre isso, o sujeito nada quer saber. Contudo, a
instituição ocupa a posição de quem sabe, tamponando a falta destes pais.
A entidade passa ser um ideal de eu para a família e alunos. As instrutoras,
respondiam a este ideal, uma vez que se desdobravam para que nada desse errado nas
atividades que se propusessem fazer. Quando algum aluno envolvido na atividade briga com
outro jovem ou chora, por exemplo, elas recorrem ao psicólogo para que este possa “tapar o
buraco”. Sustentavam a expectativa de que este profissional tinha conhecimentos que podiam
eliminar choro e agressividade rapidamente. Ou seja, recorrem a uma forma de que o furo
neste ideal não evidencie a falta de saber, impossibilidade ou impotência da instituição.
São nestas situações de lidar com as pessoas do grupo, com os pais e a instituição que
é possível afirmar que o registro imaginário é preponderante nas relações interpessoais e
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institucionais. Este registro é proposto por Lacan no Estádio do Espelho (fase em que se dá a
estruturação do “eu”).
Em função da deficiência intelectual dos alunos, a relação com seus familiares era de
muita dependência (de ambas as partes). A entidade, ao capacitar esses jovens para o trabalho,
contribuindo para que se apropriassem da autonomia e desenvolvessem suas habilidades,
intercedia nesta relação. Uma vez mais autônomos, os jovens já não precisavam de seus pais
como antes.
Os pais demonstravam-se desnorteados com esta “cura” e muitas vezes, estabeleciam
rivalidade com a instituição. Faziam com que seus filhos faltassem às oficinas, uma forma de
mostrarem quem é que mandava e também de boicotarem o desenvolvimento de seus filhos.
Este outro aspecto, igualmente, evidencia a característica totêmica da instituição - a
ambivalência de sentimento que ela desperta. No texto freudiano, os irmãos matam o pai da
horda e sentem-se culpados, porém aliviados, pois amam e odeiam este pai (enquanto figura
mítica).
Esta ambivalência era vivenciada pelos familiares, conforme descrito acima, e com os
alunos. Eles demonstravam gratidão à entidade na medida em que iam tomando gosto por
poderem realizar tarefas sozinhos e tinham espaço para colocarem em prática suas
capacidades. Porém, tornarem-se mais autônomos, demandava mais responsabilidade. Eles
não gostavam de resolver conflitos entre os colegas sozinhos, eles solicitavam que os
funcionários da instituição o fizesse. Esses profissionais não respondiam a esta demanda com
o objetivo de deixá-los amadurecer na resolução de seus problemas. Os alunos demonstravam
raiva, revolta e por vezes, comportamentos mais regredidos (infantilizados).
Neste estudo o “eu” e o sujeito foram diferenciados à luz da teoria lacaniana. Sendo
que a constituição do primeiro se dá através do estádio do espelho (registro imaginário), e do
segundo, com as operações de alienação e separação.
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Lacan propõe que o Outro é o lugar que se localiza a cadeia de significante que
comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito. O autor considera que o registro
simbólico advém da relação com o Outro, através da linguagem.
A partir da leitura de alguns dos significantes institucionais, evidenciou-se um
discurso instituído e as pessoas petrificadas nele, e até mesmo, uma forma de gozo. Penso que
é preciso barrar o gozo do discurso instituído para que, a partir da separação, possa emergir o
sujeito do desejo.
Embora, na instituição fossem endereçadas demandas à psicóloga (função por mim
ocupada) como “sujeito suposto saber”, percebi que se não sustentasse esse lugar dando-lhes
respostas, mas sustentasse um ato ético de interrogá-los e os fazer desejar, provocaria um
outro rumo ao discurso instituído. Desta forma não abro mão do “suposto” em nome de um
“saber” absoluto, pois a psicanálise na instituição, não se trata de um saber fazer, mas de uma
ética. Assim como Lacan, em seu Seminário 7, entendo que a ética da psicanálise reside no
desejo.
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