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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
BRUNA ROBERTA GONÇALVES
O PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO A LUZ DA TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DE PETER HÄBERLE:
Uma análise das manifestações do Ministro Gilmar Mendes em julgamentos emblemáticos do Supremo Tribunal Federal
São José
2010
BRUNA ROBERTA GONÇALVES
O PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO A LUZ DA TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DE PETER HÄBERLE:
Uma análise das manifestações do Ministro Gilmar Mendes em julgamentos emblemáticos do Supremo Tribunal Federal
Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito. Orientador: Prof. MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior.
São José
2010
BRUNA ROBERTA GONÇALVES
O PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO A LUZ DA TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DE PETER HÄBERLE:
Uma análise da jurisprudência produzida pelo Ministro Gilmar Mendes
em julgamentos emblemáticos do Supremo Tribunal Federal
Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e
aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de
Ciências Sociais e Jurídicas.
Área de Concentração:
Local, dia de mês de ano.
Prof. MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior UNIVALI – Campus de São José
Orientador
Prof. MSc. Nome Instituição Membro
Prof. MSc. Nome Instituição Membro
Dedico este trabalho a minha alma, que concretiza mais uma etapa de sua evolução, e que deve a todos que eu amo – e até aos que eu não aprecio tanto – o caminho que a trouxe até aqui.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que conhece mais de mim do que qualquer um, sem nunca me questionar,
sem nunca me dar as costas. Mais, principalmente, por ter deixado em minha vida
muitas pegadas na areia.
À Ana Carolina Gonçalves, a quem eu me desculpo pelo silêncio que se criará
quanto ao seu significado ou participação. Não há minha querida, estrutura
morfológica ou projeção racional que definam, mesmo que eu tentasse por todas as
folhas deste trabalho, o quanto meu coração sorri diante de ti. Você é,
essencialmente, minha melhor definição de amor.
Ao meu querido pai, por zelar permanentemente pela minha existência e à minha
maravilhosa mãe, por significar tudo que sei de importante. As lições de vocês foram
aquelas que, com certeza, me ensinaram tudo o que eu precisava saber.
A meus amados avós Ana, Rogério e Fabiano, fonte basilar da minha história e
autores da primeira oportunidade que a vida pode conceder a alguém: a família.
Especialmente à Maria Kniess Martins, anjo de luz mais cativante que cruzou o meu
caminho. Obrigado por ser aquela que, acima de tudo, me ensinou a forma mais
pura e verdadeira de amar.
Ao tio Zezinho e a tia Lédia, pelo amor e pela certeza inabalável na minha força
interior, mesmo quando eu não acreditei na sua existência. Obrigado, por todas as
vezes que me deram as mãos, mostrando o quanto o sonho ainda era possível.
À Bete e Bel, que significam muito mais do que o termo tias podem definir, por
estarem presentes em todos (e todos) os momentos e por fazer das pequenas
coisas grandes conquistas.
A meus primeiros paradigmas: tio Fernando, por personificar a primeira referência
profissional que me fez querer viver o Direito; e tia Kamilla, especialmente, por ter
acompanhado de perto os avanços acadêmicos, determinada a mostrar que meu
futuro iria muito além do que qualquer um poderia esperar.
Aos tios Chico’s, tia Tânia, tio Gustavo, tio Ricardo e tia Helena, além dos primos
Fernando, Fran, Kamilla e Fabiana (ainda que do seu jeitinho de criança), por darem
significado a momentos simples.
À Renata Schmidt Silvano, a quem eu chamo de irmã, que mesmo a distância foi um
pilar indispensável na construção deste sonho, além de grande parceira e maior
incentivadora de todo e qualquer sucesso.
À Marcos Júnior, por preferir ficar quando tanto o impulsionava a ir. Você representa
meu bem, tudo que faltava em minha vida. I’m yours.
à família Figueiró, pela comemoração de todas as vitórias de nosso ainda curto
período de convivência, mais especialmente aos queridos Marcos (pai) e Marly, que
me adotaram como filha e não medem esforços, em nenhuma oportunidade, para
me fazer sentir como se estivesse em casa.
aos meus queridos amigos de jornada: Álika, Bru, Cris, Gabi, Jo, Mari, Nany, Tatá,
Dan, Felipe, Rui e Thiago, por representarem a força que motivou as manhãs, tardes
e noites em que estivemos juntos durante esta conquista. Mas, especialmente, por
serem a maior recompensa da minha graduação.
ao estimado Edson, que mesmo à distância soube fazer tanta diferença.
aos pólens Ana, Bella, Leandro, Nesca, Poke, Leandro, André, Bia e Maikon, por
tantos momentos especiais.
ao meu estimado mentor e orientador, professor Luiz Magno, pelo apoio de todo o
período da academia. Obrigado por representar este indefinível exemplo de
magnitude acadêmica e, especialmente, por acreditar na minha capacidade pessoal
de vencer este desafio.
aos professores Marcelo Alves, Rodrigo Mioto, Jádel da Silva, Caroline Ferri, Camila
Prando, Samantha Buglione, Flaviano Tauscheck, Luiz Magno, Paulo Emílio,
Emanuel Dal´toé, Carlos Gonçalves, Claúdio Cathcart, Marcelo Dantas, Ricardo
Anderle, Roberta Westphal, Gilberto Callado e Helena Pitsica, por representarem,
acima de tudo, a melhor definição da palavra mestre. Vocês são, sem dúvida, a
causa de tudo que a Universidade me ensinou.
à Anderson Bäctold, um dos homens mais inteligentes que já conheci (ainda que só
ele não acredite nisso), por ter sido um anjo sem assas em um período em que
minha alma estava perdida.
à Durval da Silva Amorim, por oportunizar que eu apresentasse todos os meus
pensamentos, apoiar meu direcionamento profissional e, principalmente, por me
ensinar a forma mais generosa e gratificante de construir uma carreira.
à Ronaldo Maurer, pelas inúmeras vezes em que me fez recuperar o bom humor.
Seu apoio, meu caro, foi de suprema importância.
aos não nomeados, por serem parte fundamental na construção do meu mundo.
Suas idéias, ainda que abstratamente, correm em meu sangue. Nada seria sem a
existência, ou a passagem, de vocês em minha vida.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
Livro dos Conselhos
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade
pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, 3 novembro de 2010.
Bruna Roberta Gonçalves
RESUMO
O presente trabalho tem o intuito de conhecer e analisar a teoria do Estado Constitucional Cooperativo de Peter Häberle, bem como o processo de integração e aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro para, após, determinar o grau de adequação dos votos declarados pelo Ministro Gilmar Mendes em recentes julgamentos no âmbito do Supremo Tribunal Federal que versaram, principal ou subsidiariamente, sobre a incorporação daqueles tratados em relação a teoria original do autor alemão. Para a concretização do objetivo dividiu-se este estudo em três etapas: Inicialmente, propôs-se a análise do pensamento evolutivo do professor Peter Häberle, que acabou por culminar na identificação do conceito de Estado Constitucional Cooperativo. Abordou-se, para tanto, a teoria constitucional como elemento da ciência cultural, o paradigma dos níveis textuais e a identificação do arquétipo constitucional, bem como a proposta de instituição da sociedade aberta dos intérpretes constitucionais, todas compreendidas como características que, identificadas no plano interno dos Estados, expandiram-se à comunidade internacional e constituem, atualmente, as premissas teóricas que envolvem a teoria do Estado Constitucional Cooperativo; Em um segundo momento, para melhor compreensão da questão pertinente aos tratados internacionais de direitos humanos, tendo-se analisado sua evolução histórica, o processo de internalização destas normas e a hierarquia a si atribuídas no ordenamento jurídico brasileiro e, por fim, o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a temática. A última etapa, por sua vez, dedicou-se totalmente ao processo de análise combinada das decisões prolatadas pelo Ministro Gilmar Mendes em processos de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos e a teoria do Estado Constitucional Cooperativo, a fim de definir qual o grau de compatibilidade entre ambas. Apontou-se, assim, exatamente em que momentos e em que medida o julgador, de fato, implementou aos casos concretos os elementos que compõe o modelo teórico ou de que forma, efetivamente, os desvirtuou.
Palavra-chave: tratados internacionais, direitos humanos, cooperação internacional,
efetividade jurisprudencial, referencial teórico, Estado Constitucional Cooperativo.
ABSTRACT
The present study intends to know and analyze Peter Häberle’s Constitutional Cooperative State theory, as well as the integration process and the enforcement of international human rights treaties in the Brazilian’s legal system to afterwards determine the adequateness level of the votes declared by Minister Gilmar Mendes in recent trials at the Superior Court of Justice that discussed, mainly or subsidiarily, the incorporation of those treaties in relation to the original theory of the German author. For the realization of this purpose, this study was divided into three stages: firstly, it was proposed an analysis of Peter Härbele’s evolutionary thought, which culminated in the identification of the concept of Constitutional Cooperative State. To this intent this study addressed the constitutional theory as an element of the cultural science, the paradigm of the textual levels and the identification of the constitutional archetype, as well as the proposal of the institution of the open society of constitutional interpreters, all of them understood as characteristics that, identified in the internal plane of the State, have expanded to the international community and currently constitute the theoretical premises that involve the Constitutional Cooperative State. On a second moment, for better understanding of the question regarding the international human rights treaties, it is analyzed its historical evolution, the internalization process of these norms, the self-assigned hierarchy in the Brazilian’s legal system and, finally, the current position of the Superior Court of Justice on this subject. The last stage is entirely devoted to the combined analysis of the decisions made by Minister Gilmar Mendes in the incorporation lawsuits of the international human rights treaties and the Constitutional Cooperative State theory in order to define the compatibility degree between them. It was thus indicated exactly in which moments and to which extent the judge did in fact implement in real cases the elements that are part of the theoretical model or in which way he effectively misused them.
key-words: International treaties, human rights, international cooperation, judicial effectiveness, theoretical e Constitutional State Cooperative
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
1. ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE .................................. 16
1.1. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CIÊNCIA CULTURAL ............................. 16
1.2. PARADIGMA DOS NÍVEIS TEXTUAIS E ARQUÉTIPO CONSTITUCIONAL .... 22
1.3. SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES CONSTITUCIONAIS .................. 25
1.4. ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO ................................................. 29
2. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS ............................... 38
2.1. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ................................. 38
2.2. PROCESSO DE INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS NO BRASIL E A
QUESTÃO DO CONFLITO ENTRE NORMAS. ......................................................... 46
2.3. PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL COMO UM
DEBATE SOBRE HIERARQUIA DAS LEIS .............................................................. 56
2.4. EVOLUÇÃO DO TEMA NO ÂMBITO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ... 63
2.5. O PROBLEMA DA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR FIDUCIÁRIO COMO PANO
DE FUNDO PARA A DISCUSSÃO SOBRE O TEMA NO BRASIL (RE N. 466.343-1
E HC N. 88.585-8) ..................................................................................................... 66
2.6. EXISTE UM POSICIONAMENTO UNÍVOCO NO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL EM FACE DESTA MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL?
.................................................................................................................................. 72
3. ANÁLISE DA ADEQUAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL À TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DE
PETER HÄBERLE .................................................................................................... 74
3.1. ELEMENTOS DO CONCEITO DE ESTADO CONSTITUCIONAL
COOPERATIVO ........................................................................................................ 74
3.2. CASOS SELECIONADOS PARA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL .................... 78
3.2.1. Prisão Civil do Depositário Infiel (RE 466.343-1/SP) ....................................... 78
3.2.2. Exigibilidade do Diploma de Jornalista (RE 511.961/SP) ................................ 83
3.2.3. Não Recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130) ............................................. 88
3.2.4. Pedido de Revogação de Prisão Preventiva em caso de Extradição (HC
91.657-1/SP) ............................................................................................................. 91
3.3. GRAU DE ADEGUAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA PRODUZIDA PELO MIN.
GILMAR MENDES A TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO . 96
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 104
12
INTRODUÇÃO
A discussão acerca da hierarquia dos tratados internacionais no
ordenamento jurídico brasileiro a muito é suscitada no plenário do Supremo Tribunal
Federal. Inúmeros casos já haviam sido debatidos e confirmavam, sem exceção, o
posicionamento daquela corte em afirmar que qualquer norma internacional, seja
qual for sua matéria de regulamentação, teria status de norma infraconstitucional e
estaria vinculado aos princípios norteadores do conflito de normas (anterioridade ou
especialidade).
Em recente julgamento, a Suprema Corte brasileira, enfrentando uma vez
mais a discussão sobre a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, deliberou
expressamente no sentido de rever sua jurisprudência, passando a manifestar-se
pela incompatibilidade dos entendimentos anteriormente sustentados em face,
especialmente, da importância de tutela de direitos e garantias fundamentais.
Ocorre que, não obstante este fato, surge uma estreita discussão acerca
da hierarquia que deve ser atribuída as normas internacionais que versem sobre
direitos fundamentais, oportunidade em que se colocou a proposta de caráter
supralegal e constitucional destes diplomas legais. Estas teses foram defendidas,
respectivamente, pelos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello.
O Ministro Gilmar Mendes, em caráter mais específico, ao proferir voto no
recurso extraordinário n. 466.343-1/SP, apresenta, entre outros tantos argumentos,
a proposta de adequação do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal
Federal à teoria do Estado Constitucional Cooperativo de Peter Häberle. Indica, para
tanto, que o Estado já não se concebe voltado apenas para si, mas que deve se
abrir a cooperação com os demais membros da comunidade mundial, onde os
direitos humanos guardam estrita relevância.
Continua sustentando, desta forma, que a evidente especialidade das
normas que versem sobre direitos humanos, diante das disposições expressas de
abertura da Constituição da República, não poderiam ser renegadas a mera
hierarquia de norma infraconstitucional, devendo, para tanto, classificarem-se como
superiores as leis comuns, ainda que inferiores a Constituição.
13
O status de supralegalidade atribuído pelo Ministro aos tratados
internacionais de direitos humanos se justifica ainda, senão principalmente, pela
supremacia inerente a Carta Magna que, conforme seu entendimento, não precisa
ser reafirmada, vez que está insculpida em preceitos intrínsecos seus.Tratava-se,
portanto, não de um conflito evidente entre norma constitucional e disposição do
tratado internacional, mas sim de vedação pelo tratado de que o legislador derivado
regulamentasse o instituto da prisão civil por dívidas em caso de depósito.
Como dito acima, a categoria do jurista alemão “Estado Constitucional
Cooperativo” foi apresentada na forma de um fragmento que, juntamente com outras
razões concorrentes, pretendiam “persuadir” a corte sobre a necessidade de
mudança do posicionamento até então prevalente (status de legalidade dos tratados
em matéria de direitos humanos).
No entanto, ao se debruçar sobre esta proposta teórica podem ser
identificados os seguintes elementos constitutivos: efetiva abertura do Estado
soberano à proposta de realização conjunta de tarefas; disponibilização solidária aos
Estados estrangeiros; ainda, reconhecimento e efetivação de critérios claros de
abertura normativa e jurisdicional ao plano internacional; e, por fim, formalização da
importância e irrestrita aplicabilidade de formas de tutela dos direitos humanos e
fundamentais.
Pareceu-nos, diante deste quadro, que a teoria proposta pelo professor
Peter Häberle iria, naturalmente, muito além à hierarquização dos tratados
internacionais de direitos humanos. No entanto, a lógica contraria esta conclusão,
afinal, dada a expressa vinculação posta pelo Magistrado à proposta de Estado
Constitucional Cooperativo, não seria no mínimo desejável que a resolução final do
caso fosse, igualmente, adequada ao conceito do teórico alemão?
A referida percepção ensejou, portanto, a proposta objetiva deste
estudo em avaliar se as decisões proferidas pelo Ministro Gilmar Mendes para a
questão da internalização e aplicação das normas oriundas dos tratados
internacionais de direitos humanos implementam, de fato, os já indicados elementos
da teoria do Estado Constitucional Cooperativo.
Utilizou-se, para tanto, o método dedutivo, uma vez que, após identificar
as premissas teóricas que informam o conceito de Estado Constitucional
14
Cooperativo e os seus elementos constitutivos, pretende-se analisar o grau de
adequação das manifestações proferidas pelo Ministro Gilmar Mendes (pelos seus
fundamentos e resultados obtidos) em relação ao fundamento teórico invocado (a
teoria häberliana).
Para devida análise da questão se propôs, então, o detido estudo da
teoria original do Estado Constitucional Cooperativo, para que, ampliando o rol de
análise, fosse colocada não só em face deste julgado (relativo a prisão civil do
depositário infiel) como também em demais manifestações do Ministro Gilmar
Mendes acerca da incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos.
O primeiro capítulo abarca, exclusivamente, os elementos do pensamento
de Peter Häberle com o fim de subsidiar a compreensão da teoria em apreço. Ou
seja, parte-se de sua concepção da teoria da constituição como ciência cultura;
após, ao desenvolvimento de sua percepção analítica com o fim de identificar o
arquétipo constitucional que dá forma a teoria do paradigma dos níveis textuais;
ainda, tratou-se sobre a pretensão de formalização da sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição para, por fim, dar-se verdadeira forma ao conceito de
Estado Constitucional Cooperativo. Ressalte-se oportunamente que, salvo
raríssimas exceções, o estudo se desenvolveu com utilização exclusiva de obras do
referido teórico.
O segundo capítulo, por sua vez, dedica-se a exploração das teorias que
norteiam o processo de internacionalização das normas relativas aos direitos
humanos, bem como aqueles que tratam, propriamente, sobre os critérios de
incorporação destas normas ao ordenamento jurídico brasileiro. Coloca-se, ainda, a
questão da proposta de hierarquização promovida pelas jurisdições particulares aos
tratados internacionais de direitos humanos; e, finalmente, para desfecho da
proposta, abordou-se com mais precisão os argumentos e fatos peculiares que
nortearam o julgamento da causa relativa à possibilidade de prisão civil do
depositário infiel no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
No terceiro capítulo, em conclusão, propõe-se a resposta à questão que
deu azo ao presente estudo, mais propriamente a partir da descrição de julgados
que versaram sobre a incorporação e aplicação de tratados internacionais de direitos
humanos, mais especificamente os casos relativos à: prisão civil do depositário infiel,
exigibilidade do diploma de jornalista, não recepção da lei de imprensa e, por fim,
15
obrigatoriedade de decretação da prisão preventiva em processo de extradição.
Pretende-se, desta forma, a busca pelo apontamento dos elementos que compõem
o conceito de Estado Constitucional Cooperativo no corpo dos votos proferidos pelo
Ministro Gilmar Mendes, a fim de perceber se suas decisões e os fundamentos que
a subsidiam se compatibilizam com o preceito teórico proposto pelo professor Peter
Häberle.
16
1. ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE
1.1. TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO CIÊNCIA CULTURAL
A concepção clássica do Estado reconhece sua existência a partir da
presença de três elementos essenciais:1 território, povo e poder.2 O teórico alemão
Peter Häberle, no entanto, acredita que esta concepção é insuficiente para
compreensão do modelo de Estado moderno.3
Nasceria, neste particular, a teoria da Constituição, que teria a
incumbência de acrescer aos elementos essenciais do Estado à própria
Constituição, transformando o já estabelecido Estado moderno em um Estado
verdadeiramente constitucional.4 A Constituição, por sua vez, seria um pressuposto
do Estado democrático, enquanto diretriz necessária para construção da sociedade
aberta e a tutela de direitos fundamentais. A Constituição seria, neste sentido, senão
o primeiro elemento essencial do Estado, pelo menos o quarto, compondo o quadro
que permeia a existência legítima do atual modelo de Estado soberano.
A pretensão do autor, não obstante essas determinações, é demonstrar
que a Constituição, enquanto elemento que deve ser considerado essencial para
existência do Estado soberano, possui um base elementar, que determina seu
direcionamento e, como se verá, funda todos os seus critérios: a cultura.
A Constituição seria o produto do desenvolvimento cultural de um
Estado.5 Afirma-se, para tanto, que o texto constitucional fornece um primeiro
parâmetro para uma avaliação do grau do desenvolvimento cultural deste, servindo,
inclusive, como instrumento social de reconhecimento do estágio de afirmação
cultural do Estado soberano, principalmente por meio da tutela que oferece aos bens
1 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2001, p. 21. 2 Como também apontado, por exemplo, nas obras de Hans Kelsen (Teoria geral do direito e do
Estado. 4ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2005) e Dalmo de Abreu Dallari (Elementos da teoria Geral do Estado. 20ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2002). 33
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 21. 4 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2001, p. 1. 5 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2001, p. 5.
17
culturais e a preservação dos direitos fundamentais do cidadão.6 Nestes termos, a
constituição representaria, propriamente, o espelho cultural de um povo que, vivendo
num mesmo território, concretiza de forma expressa o poder conferido ao Estado
que o representa, ou seja, fala-se concretamente na expressão combinada de todos
os pressupostos do Estado.
Diante disso, a integração natural entre os seres humanos, o
compartilhamento de informações entre os povos, multiplicado pela globalização
mundial, bem como a inter-relação entre as gerações de um determinado grupo
social faz parte do ideal de Häberle na efetivação dos ditames constitucionais,7 como
garantia não só da validade ou perpetuidade da Constituição escrita, mas como
forma efetiva da perpetuação do próprio Estado.8
Aliás, ao tratar dos elementos essenciais do Estado, o teórico afirma,
inclusive, que a cultura seria pressuposto, também, daqueles elementos
tradicionalmente reconhecidos pelos autores clássicos, dado que perpassa todos à
medida que cada um destes é constituído a partir de um determinado contexto
cultural.9
Tem-se, desta forma, que os elementos reconhecidos como essenciais à
formação do Estado, inclusive a Constituição, não são independentes, mas se
completam na medida em que constituem verdadeiras derivações e representações
materiais da cultura – local, regional, de um povo ou, até mesmo, da própria
humanidade.
Neste contexto, é preciso conceber a cultura de forma ampla, ou seja,
como atividade humana. Trata-se, assim, de forma de interação humana que, no
6 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2001, p. 5. 7 Trata-se, especialmente, do reconhecimento de elementos culturais que são vividos, debatidos e/ou
identificados entre gerações distintas, que perpassam umas as outras os critérios para evolução ou aprimoramento de determinados aspectos da vida social. Este processo pode ser direto, como pelo compartilhamento de premissas históricas, concretizado no reconhecimento de experiências concretas dos antepassados – suas conquistas, derrotas e ascensão no que tange a efetivação dos direitos humanos; ou ainda de forma indireta, com a herança deixada pelos presentes às futuras gerações, sempre presente na literatura, arte, arquitetura e outros, que os servirão, em momento próprio, da mesma forma que a cultura passada, hoje, nos serve. 8 A preocupação parece diretamente ligada a possibilidade do conflito cultural, que funda todos os
elementos que sustentam o Estado soberano, inviabilizar a convivência pacífica, a interação entre os povos ou, até mesmo, a preservação plena de condições que assegurem a dignidade da pessoa humana. 9 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2001, p. 21.
18
curso do tempo ou dos embates filosóficos, constrói ou desenvolve um modelo ideal
de vivência e valores.10
Pode-se dizer, portanto, que a conjugação da cultura com o “elemento
povo” deriva, propriamente, do conceito de cultura, pois esta nasce das interações
sociais, ou seja, da participação e convivência efetiva da comunidade – povo – na
construção do Estado.11
Há, ainda, a relação com o “elemento território”, que deve ser concebido,
no modelo atual, como valor constitucional.12 Esta definição é perceptível, por
exemplo, quando o Estado soberano se abre à tutela de direitos fundamentais dos
estrangeiros, vez que se transforma, concretamente, em ferramenta de tutela de
direitos fundamentais do homem.13 Afirma-se, neste sentido, que se trata de
verdadeiro espaço para o reconhecimento da identidade e manifestação da história
de um povo, tornando-se, portanto, elemento permanente da cultura.14
O “elemento poder”, finalmente, quando avaliado a partir da perspectiva
do Estado constitucional, deve ser visualizado como própria manifestação de
determinações culturais, pois o Estado, nesta concepção, encontra-se limitado e
direcionado a atuar a serviço da dignidade humana, especialmente, da liberdade
cultural.15 Torna-se, portanto, verdadeiro elemento de tutela da diversidade cultural,
assegurando, acima de tudo, sua manifestação plena.
A cultura se transforma, portanto, no elemento verdadeiramente essencial
do Estado, vez que funda, cria ou sustenta em absoluto todos os já reconhecidos
elementos que constituem, em especial, o Estado constitucional.
O modelo atual de Estado constitucional, no entanto, vive a era do
desenvolvimento tecnológico, com o inevitável reconhecimento do intenso
compartilhamento cultural operado entre Estados soberanos, principalmente pelos
10
BASTOS Jr., Luiz Magno Pinto. Constituição como Processo – Categoria Central da Teoria Constitucional de Peter Häberle. Florianópolis, 2001, pg. 24-26. 11
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 242. 12
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 23. 13
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 24. 14
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 23. 15
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 22.
19
novos fenômenos relacionais e as novas formas de interações sociais. Ocorre que,
diante destes fatos, impera a instituição de uma nova premissa teórica para essa
intensa comunicação cultural que vem se expandindo progressivamente, que se
formaliza para o autor na idéia do Estado Constitucional Cooperativo.
Este, como se verá mais adiante, resulta da interação direta entre os
Estados, propriamente, de um compartilhamento progressivo de diversas culturas
sociais – principalmente quando se analisam os modelos de Estado, as relações
internacionais ou, fundamentalmente, os direitos e garantias individuais “nacionais”.
Há, nestes termos, o progressivo desenvolvimento de uma cultura mundial16 que
garanta e efetive as formas de proteção da dignidade humana.
A partir desta premissa, a primeira função do Estado seria estabelecer um
coeficiente de coexistência pacífica entre as diversas culturas, que futuramente se
estenderá para o âmbito mundial, vez que o objetivo central é, indispensavelmente,
a tutela das liberdades culturais, combinadas com a necessidade de proteção da
dignidade humana. Trata-se, em verdade, da chamada tolerância constitucional, que
é exemplificada pelo autor da seguinte maneira:
Na etapa atual de desenvolvimento é preciso que todos os Estados constitucionais, independentemente de mono ou multiculturais, concebam-se em todos os sentidos como pluralistas: inclusive a França, que encontra sua identidade cultural e política na “República”, deve encontrar um refugio
tolerante para o Islã, que já é a segunda religião em importância no país.17
Inicialmente, para compreensão absoluta do termo, faz-se necessária a
análise mais profunda do modelo de Estado constitucional enquanto forma de
determinação de elementos ideais e reais, ou seja, as possibilidades existentes e as
esperadas. Combinação esta que, concretamente, nenhum Estado alcançou, mas
que relaciona, objetivamente, as possibilidades ideais com as concretizações reais.18
16
Compreendida como a identificação de ações humanas comuns a diversas sociedades, ou seja, o efetivo compartilhamento de preceitos culturais entre as sociedades soberanas que fazem parte da comunidade internacional de Estados. 17
“En la etapa actual de desarrollo es preciso que todos los Estados constitucionales independientemente de lo mono o pluriculturales que puedan ser en la realidad, se conciban em todos sentidos como pluralistas: incluso Francia, que encuentra su identidad cultural y política en la “República”, debe encontrar un refugio tolerante para el Islam, que ya es la segunda religión en importancia en el país.” (HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 28-29). 18
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 1.
20
Desta forma, pode-se dizer que o modelo de Estado constitucional
preconizado por Häberle possui, como qualquer teorização, elementos essenciais,
que transcendem em muito a tríade clássica (poder-povo-território), são eles:
A dignidade da pessoa humana [...]; o princípio da soberania popular [...]; a Constituição como contrato [...]; o princípio da divisão de poderes [...]; os princípios do Estado de direito e do Estado social [...]; a garantia de direitos fundamentais; a independência da jurisdição.
19
Neste momento é imprescindível considerar, para uma adequada
compreensão do tema, a mencionada concepção da Constituição como contrato
promovido pela teoria constitucional.20 A aceitação deste preceito remete à realidade
constitucional da participação necessária da sociedade, mais propriamente a partir
de suas manifestações e desenvolvimento culturais.
Propõe-se, para tanto, a constituição de uma “mesa de negociação”, que
garantiria a legitimidade e maior eficácia das normas constitucionais a partir da
participação, ainda que parcial, de representantes da sociedade em geral.21 Trata-
se, em verdade, de forma garantidora de integração, reconhecimento e discussão da
percepção geral da cultura socialmente proposta, seja ela regional, nacional,
mundial ou, ainda, histórica.22
Está-se diante, portanto, da perpetuação dos pressupostos culturais que,
historicamente, são enraizados pela sociedade e compreendidos, neste momento,
como verdades23 que, ainda que não sejam absolutas,24 guardam os melhores
19
“la dignidad humana […]; el principio de la soberanía popular […]; la Constituición como contrato […]; el principio de la división de poderes […]; los principios del Estado de derecho y el Estado social […]; las garantías de los derechos fundamentales; la independencia de la jurisdición.” (HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 1-2). 20
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 14. 21
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 15. 22
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 14. 23
Verdade esta que constitui uma aceitação prática de determinados modos ou premissas que se impõe a partir identificação racional, ou seja, com fundamento no método de tentativa e de erro. Ou seja, não se trata de uma determinação absoluta da realidade, mas do alcance da maior possibilidade de acerto e da possibilidade de reconhecer que é possível estar errado. “O apelo à razão deve conjugar o realismo (como pressuposto epistemológico – problema) ao racionalismo (como atitude prática ao diálogo), uma vez que o racionalismo consiste em uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender com a experiência [...que resulta em...] admitir que eu posso estar errado e vós podeis estar certo, e, por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade.” (BASTOS Jr., Luiz Magno Pinto. Constituição como Processo: Categoria Central da Teoria Constitucional de Peter Häberle. Florianópolis, 2001, p. 92).
21
elementos de validade25. Esta cristalização cultural26, porém, não implica em uma
intangibilidade da própria constituição. Pelo contrário, a teoria häberliana concebe
ser ínsita à constituição, em face de sua característica de manifestação cultural, a
sua abertura estrutural e semântica27 às transformações decorrentes da
mutabilidade das relações sociais.
Concebe-se, neste particular, que na medida em que se transforma a
sociedade e se estabelecem novos traços culturais, transformam-se também os
temas essenciais que compõem o texto constitucional. A complementação se dará,
futuramente, por normas escritas (reformas constitucionais) ou não escritas
(interpretação constitucional). De acordo com o autor, a teoria constitucional assume
igualmente a obrigação de observar tais alterações e estabelecer, concretamente,
suas relações com o propósito específico de identificar as etapas textuais acrescidas
ao texto constitucional. Nas palavras do autor:
Em resumo: em um mundo em transformação mudam também os temas constitucionais. Enquanto mais antigas as Constituições, tanto mais a ciência e a prática complementam os textos escritos por meio de regras não escritas, o que pode ser motivo, mais tarde, para que outros constituintes, próximos ou distantes, traduzam sua “quinta essência” em novos textos, e a teoria constitucional pode acompanhar estes processos, descobrir suas inter-relações e inclusive reforçá-las (de maneira limitada). Assim lido, o paradigma dos níveis textuais não superestima nem subestima os textos
constitucionais.28
24
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 31. 25
Considera-se, nesta perspectiva, que a integração entre os seres, povos e sociedades, em um contexto geral, consiste, necessariamente, o mecanismo de legitimação do texto constitucional. Justifica-se: Häberle compreende a Constituição enquanto concretização dos pressupostos sociais necessários a manutenção da sociedade – efetivação de direitos e garantias fundamentais, forma de governo, determinação do território, entre outros –, nestes termos, enquanto forma de regulamentação e considerando, principalmente, que a Constituição é uma construção cultural, quanto maior a participação dos agentes em sua formulação, maior a abrangência de suas determinações. Como não se concebe na teoria constitucional, propriamente dita, a coerção ao Estado para que atenda a determinados pressupostos doutrinários na construção interna de seus textos constitucionais, o teórico se utiliza, sempre, da verificação da validade da norma, considerando que é mais válida aquela que, necessariamente, reconhece o pluralismo intrínseco ao Estado e agrega, de forma mais efetiva, as diversas culturas que visa tutelar. 26
Processo de solidificação dos preceitos culturais considerados verdadeiros pela sociedade negociante que são, consequentemente, inscritos nas Constituições dos Estados. 27
Estando a Constituição aberta a alterações formais, como as provenientes da promulgação de emendas constitucionais ou, até mesmo, hermenêuticas, concretizadas pela inovação do processo de interpretação e aplicação das normas postas pelo constituinte originário. 28
“En resumen: en un mundo en transformación cambian también los temas constitucionales. Mientras más antiguas las Constituciones, tanto más la ciencia y la práctica complementan los textos escritos mediante reglas no escritas, lo que puede ser motivo, más tarde, para que otros constituyentes, próximos o lejanos, traduzcan su “quintaesencia” en nuevos textos, y la teoría constitucional puede acompañar estos procesos, descubrir sus interrelaciones e incluso reforzarlas (de manera limitada). Así leído, el paradigma de las etapas textuales no sobrestima su subestima los
22
Tal perspectiva – de relação entre os preceitos atuais, estabelecidos nas
Constituições escritas, e as concepções futuras, originárias das novas relações
sociais – trata-se, em verdade, do que o autor chama de “pacto das gerações”.29
Representando, neste sentido, a interação cultural efetivada por meio da formulação
e interpretação das diretrizes constitucionais, como verdadeiro meio de perpetuação,
compartilhamento e evolução das formas de interações sociais, das garantias
fundamentais e dos modelos sociais filosóficos.
Ou seja, diz-se que o contrato social se apresenta como “pacto das
gerações” quando analisado a partir do elemento temporal.30 A Constituição não
poderia ser definida, meramente, como elemento do Estado, mas, com fulcro nesta
análise, como resultado do processo de integração e socialização que tem a
pretensão de servir, não somente ao momento, mas também à existência pacífica e
regular das gerações futuras.31 Tem-se, neste sentido, que a Constituição, enquanto
parte da cultura social construída e posteriormente cristalizada,32 acaba por
caracterizar o direito como verdadeira derivação das manifestações culturais.33
1.2. PARADIGMA DOS NÍVEIS TEXTUAIS E ARQUÉTIPO CONSTITUCIONAL
A partir da perspectiva da Constituição como expressão cultural
anteriormente abordada, Häberle passa a análise da individualidade de cada Estado
no que tange à concretização de suas premissas constitucionais, declarando, por
assim dizer, que não obstante a construção universal do tipo de “Estado
Constitucional”, sua evolução se dá, particularmente, no âmbito privado de cada
Estado.34
textos constitucionales.” (HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 7). 29
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 15. 30
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 15. 31
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 15-16. 32
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 21. 33
HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 44. 34
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 2
23
Para tanto, o autor propõe a construção de um modelo teórico que
permite a análise dos textos constitucionais de cada Estado a partir de uma espécie
de decomposição analítica das influências (do passado e de outras experiências
estrangeiras) 35 no seu texto atual, aquilo que ele denomina de paradigma dos níveis
textuais. Assim, ao mesmo tempo em que se coaduna com a idéia de que a
constituição é fruto do exercício pleno da soberania dos Estados, revelando, pois,
suas próprias características culturais e históricas; permite a identificação de
estágios evolutivos do desenvolvimento da democracia e da institucionalização de
formas de proteção da dignidade humana.
A análise dos níveis textuais de um texto constitucional permite a
construção de um modelo constitucional ideal, chamado de “Arquétipo
Constitucional”. Estes tipos-ideais seriam resultado direto do exercício de direito
comparado, já que seus elementos seriam recolhidos das diversas experiências
constitucionais concretas, os quais constituiriam uma espécie de standards mínimos
de proteção tanto de direitos fundamentais quanto de prerrogativas institucionais.
Pode-se falar, assim, na busca da teoria constitucional pelo “Espírito das
Constituições”36, que seria, necessariamente, a medida da evolução das
Constituições estatais, que quanto mais absorvesse o espírito constitucional, mais
avançada estaria.37 Este elemento permite, em síntese, que o texto constitucional
abra-se ao futuro, com perspectivas de desenvolvimento próprio ou comum, seja por
agregação cultural nacional ou percepção universal da evolução histórica da
humanidade.38
35
Estruturada a partir desta conexão de fundo, a teoria da recepção jurídica, tal qual formulada pelo autor, pode ser topicamente reproduzida tanto em vista sues pressupostos, características e conseqüências, nos seguintes termos: a) os textos constitucionais são resultado da conjugação de elementos da sua experiência pretérita de um povo (diacrônica) e da experiência atual compartilhada pelas diferentes nações (sincrônica), e reproduzem (e abrem-se a novas) expectativas (auto-reprodução das expectativas culturais). (BASTOS Jr., Luiz Magno Pinto. Constituição como Processo: Categoria Central da Teoria Constitucional de Peter Häberle. Florianópolis, 2001, p. 92). 36
Trata-se, assim, da expressão (explícita ou implícita) do sentimento de sociedade que norteia as normas constitucionais necessárias a Nação a qual ela se direciona com o fim de, principalmente, regular as relações culturais. Häberle trata, neste sentido, que é possível conceber um Espírito da Constituição universal, que faz a presença de preceitos como separação dos poderes, direitos e garantias fundamentais e estrutura democrática, bem como ao Espírito da Constituição regional, que incorpora a si, além daquelas características, parâmetros culturais da sociedade que regula. 37
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 2. 38
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 4.
24
Tal absorção concretiza-se, realmente, a partir da comunicação entre os
Estados Soberanos de seus aspectos culturais próprios. Nasce deste preceito, um
mecanismo intenso de envio e recepção de paradigmas textuais pré-estabelecidos.
Explica-se:
Um texto formalizado no âmbito de uma Nação passa,
necessariamente, por uma construção que combina referências
universais mínimas – constantes do modelo de Arquétipo
Constitucional –, com prioridades específicas próprias, que derivam
de concepções particulares ou momentos históricos vividos;
Quando formalizadas, tais disposições permitem seu
compartilhamento universal, ou seja, compartilhadas com outros
Estados – inclusive suas aplicações práticas, interpretação própria
e recepção das normas pelo povo que a absorve.
Estes, por sua vez, recepcionam parcialmente as diretrizes
apresentadas, visível tanto por manifestações formais – como texto
reescrito com novas premissas –, como materiais – pela
compreensão interpretativa particular de cada intérprete nacional;
A partir desta integração de pressupostos, o Estado receptor
acaba, naturalmente, oferecendo aos demais países sua própria
percepção da teoria que lhe foi oferecida, agregando a estas
particularidades culturais e elementos históricos que lhe são
relevantes.
Trata-se, portanto, de um verdadeiro mecanismo de (re-)envio e recepção
de preceitos legais ou experiências institucionais concretamente vivenciados em
determinadas sociedades, os quais acabam por atingir, em maior ou menor medida,
todos os Estados constituídos. Isto permite a interação e integração entre Estados e,
sobretudo, da própria cultura constitucional, como resultado do compartilhamento (e
interpenetração) de diferentes modelos Constitucionais.
Os níveis textuais seriam próprios, neste contexto, da percepção de
absorção, pelo Estado Soberano, dos princípios universais mínimos estabelecidos,
percebendo-se, inclusive, no âmbito privado dos Estados, sua evolução própria –
25
que atenta sempre as suas perspectivas cultuais particulares – de Constituições com
uma abrangência protetiva menor até uma maior.
Este critério determina, definitivamente, a característica de fenômeno
cultural das Constituições colocadas, demonstrando que elas não servem apenas
para a manifestação da cultura de uma sociedade em especial como, de fato,
contribuem para que as particularidades sociais postas sob sua jurisdição possam,
inclusive, ser compartilhadas com os demais Estados.
1.3. SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES CONSTITUCIONAIS
A partir do tema abordado, concretizada a idéia da Constituição como
fenômeno cultural, passa-se a análise própria da interpretação das normas
constitucionais.
Impera afirmar, neste ponto, que a interpretação constitucional, em parte
ignorando as inovações sociais, estava demasiadamente centrada no corpo jurídico
próprio, e caminhava a um estreitamento progressivo, vez que se atribuía, quase
que integralmente, à visão dos juízes constitucionais e do procedimento
formalizado.39
Afirma o autor, ainda, que a mera independência funcional combinada
com a imparcialidade conferida aos julgadores não constitui elementos suficientes
para efetivação da garantia de produção do significado pleno do dispositivo
normativo interpretado. Na verdade, tal liberdade funcional assenta-se nas
instituições estatais, enquanto estas, por sua vez, retiram sua legitimidade de
atuação do corpo social que, de fato, fornece o substrato material ao
estabelecimento e consequente aplicação das leis.40
Veja-se, diante de tudo que se disse anteriormente, que as diretrizes
culturais sustentam os elementos essenciais do Estado e fundamentam,
prioritariamente, a ordem constitucional imposta. Nada mais lógico, portanto, que a
39
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 149. 40
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 156.
26
incorporação dos agentes produtores de cultura – autênticos co-autores das normas
– ao grupo dos legítimos intérpretes das normas.
Neste contexto, Häberle prevê que o monopólio desenfreado dos meios
de interpretação das normas seja relativizado por novas formas de produção de
sentido normativo, que integre, necessariamente, o posicionamento das forças
públicas, como autoridades interpretativas em sentido amplo.41
Relevante frisar, ainda, que embora o preceito de vivência e construção
da norma se aplique a todo e qualquer instrumento normativo, sua importância no
que tange à interpretação das diretrizes constitucionais é especialmente mais
expressiva. O autor demonstra, neste particular, a expressão da força cultural que
atua diretamente nas disposições constitucionais:
Aqui se produzem movimentos, inovações, trocas, porém também “confirmações”, que são mais que um mero “material objetivo” para a interpretação constitucional (futura); são um pedaço de interpretação da Constituição, porque em seu marco se cria uma realidade pública e em ocasiões se modifica inadvertidamente.
42
Continua afirmando, inclusive, que o referido processo interessa a todos,
em medida que interfere e representa, propriamente, a vida em comunidade.43
Podendo-se dizer, por tais razões, que dados os fatos não se poderia tratar a
interpretação constitucional, nem em tese e muito menos na prática, como questão
sujeita a um monopólio estatal. Atua (e deve atuar em escala ampliada), em
verdade, toda comunidade política.44
O presente capítulo da história constitucional, especialmente no que
tange à derivação cultural da Constituição, bem como a questão relativa às suas
percepções ideais combinadas com a sua aplicação real ensejam a compreensão de
que a norma é, necessariamente, vivida por uma parcela significativa de um todo
41
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 162. 42
“Aquí se producen movimientos, innovaciones, cambios, pero también “confirmaciones”, que son más que un mero “material objetivo” para la interpretación constitucional (futura); son un pedazo de interpretación de la Constitución, porque en su marco se crea una realidad pública y en ocasiones se modifica inadvertidamente.” (HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 154). 43
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 153-154. 44
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 153.
27
que, naturalmente, atua na caracterização de seus preceitos.45 É preciso, portanto,
reconhecer aqueles que integram essa realidade constitucional.46
Há mencionar, especialmente neste momento, que o reconhecimento da
sociedade aberta dos interpretes constitucionais constitui uma das bases essenciais
ao estabelecimento pleno do Estado Constitucional Cooperativo, tendo em vista que
a legitimidade dos processos institucionalizados de interpretação da constituição, a
partir de uma perspectiva cidadã, deriva da incorporação de múltiplas análises e
vivências “sobre a constituição”. Necessário, portanto, abandonar a forma
centralizadora da construção jurídica da Constituição, avançando à concepção
desenvolvida pela sociedade pluralista.47
Importante estabelecer, no entanto, que a mencionada interpretação (em
sentido amplo), não afasta, necessariamente, a interpretação legal formulada por
aqueles expressamente legitimados pelo texto constitucional. Ocorre que, na nova
formulação, torna-se indispensável a abertura da interpretação à realidade social, o
que enseja, necessariamente, a agregação daqueles que, viventes daquela
realidade, são parte integrante de seu desenvolvimento pluralista.48
Vale mencionar, não obstante, que o afastamento da concentração
interpretativa busca, por assim dizer, a democratização da interpretação
constitucional, na medida em que esta tenha que buscar legitimação na teoria
democrática e vice-versa.49 Democracia implica, no seu entender, abertura aos
setores sociais. É evidente frisar que não se faz um Estado dito democrático com
canalização de responsabilidades, irrestritas e exclusivas aos órgãos estatais,
reconhecendo-se entre elas a interpretação constitucional.50
Assim, diante da proposta de reconhecimento da cultura como
pressuposto do Estado Constitucional, que caminha paulatinamente rumo ao
45
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 150. 46
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 149. 47
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 150. 48
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 156. 49
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 151. 50
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 158.
28
compartilhamento externo de preceitos basilares e estruturais das Cartas
Constitucionais, nada mais claro que atribuir a toda a sociedade – que constrói e
vive a cultura – a legitimidade para atuar na interpretação das normas
constitucionais. Aliás, impera reconhecer que é a abertura à sociedade pluralista
para participação interpretativa que legitima o sentido real da norma, tendo-se,
principalmente, que aqueles que moldam e a quem se dirigem os preceitos são,
naturalmente, os mais indicados a definirem seu sentido e abrangência.
Resta abordar, por fim, que a questão relativa à abertura progressiva da
interpretação a toda sociedade51 exige a complementação dos métodos
interpretativos. Inclusive, esta abertura, nos moldes do Estado Constitucional
Cooperativo, estende-se à comunidade internacional das diferentes tradições
constitucionais.
Häberle pretende, neste contexto, identificar como quinto método de
interpretação – que se soma aos clássicos pré-estabelecidos52 – a comparação.53
Determina, para tanto, que não há nada mais adequado que esta técnica para
identificação e difusão dos direitos fundamentais, bem como para o fornecimento de
alternativas que potencializem a aplicação de preceitos compartilhados entre as
diversas sociedades pluralistas. Afirma, inclusive, que:
Em minha opinião, a “canonização” da comparação jurídica como “quinto” método de interpretação, ao menos no direito constitucional do tipo de “Estado da doutrina da interpretação jurídica.
54
Assim, a partir do método comparado de interpretação, combinado com o
reconhecimento definitivo da participação social na atuação concreta que molda e
define o sentido e aplicação de tais preceitos, e não só na formação efetiva das
normas constitucionais por meio da formação cultural, têm-se a primeira
manifestação do Estado Constitucional Cooperativo.
51
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 163. 52
Histórico, gramatical, sistemático, teleológico. (BARROSO, Luís Roberto. “Princípios de Interpretação Especificamente Constitucional”, trecho de Interpretação e Aplicação da Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119-133) 53
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 162. 54
“Em mi opinión, la “canonización” de la comparación jurídica como “quinto” método de la interpretación, al menos en el derecho constitucional del tipo del “Estado constitucional”, no seíará sino consecuente con la historia de la doctrina de la interpretación jurídica.” (HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 164).
29
O aspecto surpreendente da teoria reside, principalmente, na forma em
que a sociedade aberta dos interpretes constitucionais se constrói a partir da referida
combinação, através da qual a identidade nacional/regional/local se mantém mesmo
em face da sua abertura à crítica formulada a partir das experiências constitucionais
compartilhadas pela comunidade internacional.55
1.4. ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO
O ponto de partida da concepção do Estado Constitucional Cooperativo,
como mencionado no início deste estudo, esta no reconhecimento de que a
evolução das relações inter-estatais é um fenômeno que, no decorrer dos anos, vem
se expandindo de forma acelerada. Desenvolvendo-se acentuadamente pela
necessidade de cooperação econômica, social e humanitária entre os Estados.56 Tal
evolução tem sido auxiliada – ou agravada –, ainda, pelo avanço ininterrupto das
tecnologias de telecomunicações, que acabam por integrar, cada vez mais, os
agentes sociais que vivem em espaços geográficos absolutamente distintos do globo
terrestre.57
Esta interação tem como consequência natural, como já debatido, a
integração de aspectos culturais distintos e/ou anteriormente desconhecidos. O
resultado deste processo é um envio e recepção de informações sociais que
acabam por interferir, a longo prazo, nas modalidades de vivências da comunidade
do Estado soberano que vivia, por assim dizer, isolado. Estas alterações culminam,
nestes termos, em uma reformulação gradativa dos critérios constitucionais de cada
Estado, que constituem, como já referido, verdadeiro reflexo cultural da sociedade a
qual se submete.
Nestes termos, acompanhando esse desenvolvimento de relações,
surgem novos aspectos na escala de direitos que, consideradas as exceções, têm
um grau de importância nos ordenamentos internos que transcende a idéia de
55
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Traducción Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 163-164. 56
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 19. 57
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 44.
30
Estado Constitucional Soberano, constituindo verdadeiro meio de integração entre
as diferentes Nações e povos. Determinados bens passam a constituir-se, em
verdade, como objeto de uma tutela comum de matiz mundial – ou ainda regional,58
compondo o modelo ideal de arquétipo constitucional desenvolvido pelo autor. É o
caso, por exemplo, da necessidade de proteção dos recursos naturais ou dos
direitos humanos.59
Percebeu-se, nessa perspectiva, que a crescente integração entre os
Estados Soberanos e o grau de importância atribuído a determinadas classes de
direitos internamente já tutelados (ou ao menos reconhecidos) desembocaria no que
se pode chamar de “direito comum”.60 Tais aspectos, vistos desta forma, não
poderiam ter resultado diverso, que não a integração destes Estados na busca das
melhores formas e condições de assegurar o desenvolvimento comum das Nações
ou, mais concretamente, a efetivação das garantias fundamentais conjuntamente
compreendidas. O preceito central da cooperação é, sem dúvida, a solidariedade.61
Assim, a teoria do Estado Constitucional Cooperativo, nas definições de
seu propositor, nada mais é que a concretização dessa evolução das interações
sociais que acaba convergindo ao compartilhamento de questões jurídicas
basilares.62 Trata-se, em verdade, da forma mais legitima de se compreender o novo
Estado Constitucional, que tem avançado de forma inevitável, e necessária, à
integração entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional.63
A citada cooperação seria precedida, certamente, de duas propensões
estatais essenciais: a disposição para uma ação comum e o compartilhamento de
objetivos solidários realistas.64 Tais requisitos, por assim dizer, seriam a condição
58
HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001, p. 71. 59
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 3. 60
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 38-41. 61
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 4. 62
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 2. 63
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 5. 64
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 8.
31
inicial para participação do Estado Soberano na constituição interna do Estado
Constitucional Cooperativo.
A cooperação surge, nesse ínterim, da disposição para o diálogo, da
consciência de sua necessidade, e se concretiza na disponibilidade de auxílio. Nas
palavras do Professor Häberle resulta em “’um estar à disposição do outro’”.65 Trata-
se, concretamente, da abertura interna do Estado ao plano internacional. É
imprescindível, nesse sentido, que esta idéia de abertura se efetive internamente,
apresentando-se, preferencialmente, expressamente nas Cartas Constitucionais66.
A concretização do Estado Constitucional Cooperativo se constituiria,
assim, em questão constitucional interna que legitima, especificamente, a integração
de direitos que surjam no âmbito internacional e que tenham um fim determinado,
quais sejam: a integração entre os povos, a paz das nações, a proteção dos
cidadãos – incluídos os apátridas e estrangeiros – e a solidariedade entre os
Estados.67
Esta abertura está presente, materialmente falando, de forma
absolutamente diversa nas constituições dos Estados soberanos. Estes textos
apresentam a disposição para cooperação, às vezes de forma mais enfática e
expressiva (dando mais validade ou dispondo sobra mais formas solidárias), por
vezes de forma mais branda e analítica (com expressões que dêem margem a
interpretação e em situações mais limitadas).68 Importa, no entanto, que não
obstante a diversidade de fórmulas, todas pretendem o mesmo objeto: aceitar as
perspectivas de outros países e/ou Instituições internacionais sobre a importância
dos direitos fundamentais ou suas formas de tutela.
Vale ressaltar neste momento, apenas, que independente do grau de
abertura formalizado pelos Estados soberanos, qualquer menção – direta ou indireta
– às relações internacionais, às proteções integrais e ao reconhecimento das
conclusões oriundas de debates exteriores serão consideradas pelo Estado como
65
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 9. 66
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 3. 67
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 4/8. 68
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 13-14.
32
instrumento para a busca do “bem comum” em concreto – paz mundial,
reconhecimento das Nações, concretização da igualdade, etc.69
O fato atual é que este Estado Constitucional, reconhecidamente aberto,
não mais se legitimará, se não na forma de Estado Constitucional Cooperativo,70
fazendo-se requisito para tal a sua disposição à integração, que se dá pela
compreensão e participação concreta das comunidades individuas nesta realidade
evolutiva.
O Estado Constitucional Cooperativo resolve-se, portanto, no aspecto
relativo à efetivação, pelo reconhecimento das Nações Soberanas de que é
necessário estabelecer uma forma comum de buscar uma sociedade mais justa e
igualitária, independente dos direitos que ela, particularmente, tutele em seu texto
constitucional. Os aspectos de abertura declaram, nesse sentido, que qualquer
direito reconhecido que vise aos objetivos anteriormente descritos serão
compreendidos, no âmbito interno, como verdadeira norma constitucional.
Resta dizer, ainda, que a idéia de paralelismo entre o Direito Internacional
e o Direito Constitucional Interno71, estabelecida pelo Estado Constitucional
Cooperativo, não pretende, de forma alguma, identificar o titular da convergência ou
aquele que estabeleceu a primazia da tutela. O importante é reconhecer, nesse
contexto, a real combinação de pressupostos. Um não sobrepõe ou antecede o
outro, eles pretendem, unicamente, unir-se, combinar-se,72 e assim atingir os
objetivos que lhes são comuns.73
Por esses motivos, chega-se à conclusão que os objetos de tutela do
Estado Constitucional Cooperativo devem ser compreendidos, certamente, para
além dos limites formais de cada Estado Soberano, visto como um direito que, a
despeito de sua instituição – interna ou internacional – faz parte de um rol de
69
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 23-60. 70
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 11. 71
MALISKA, Marcos Augusto. A cooperação internacional para os direitos humanos entre o direito constitucional e o direito internacional. Desafios ao Estado Constitucional Cooperativo. Revista Forense (Impresso), v. 391, 2007, p. 627-635. 72
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 65. 73
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 10-11.
33
proteção que se tornou, pelos contornos históricos e humanitários, um mínimo
indisponível. Esta seria a verdadeira incorporação estatal do arquétipo
constitucional.
A presente conceituação, nos termos expostos, acaba por formar uma
teoria supranacional, que transcende a idéia de Estados Constitucionais e induz ao
reconhecimento de um compromisso compartilhado destes na busca pela igualdade
de condições e efetivação de direitos.74 É a resposta legítima do Estado
Constitucional ao desenvolvimento iminente do direito internacional.75
Poderia se compreender, assim, que seu objetivo primordial seria a
integração dos próprios Estados, em prol de um desenvolvimento econômico
conjunto. Além, é claro, do compartilhamento dos mecanismos internos de tutela dos
direitos fundamentais comunitariamente reconhecidos, que seriam igualmente
direcionados, mesmo no plano interno, aos indivíduos nacionais, estrangeiros e, até
mesmo, apátridas. E é dessa forma que a comunidade internacional, conjuntamente,
estabeleceria melhores formas de proteção e desenvolvimento da sociedade
mundial. Legitima-se, assim, a atuação conjunta das nações, no que seria “a nova
interpretação da clássica idéia de bem estar social”.76
Quanto, especificamente, aos mecanismos de implementação das
garantias internacionalmente instituídas, poder-se-ia citar o aparecimento das
instituições internacionais de proteção e, em alguns Estados, o crescimento do
reconhecimento interno do direito internacional. Seria o caso, por exemplo, da Cruz
Vermelha, sujeito de direito internacional que, na forma de sua constituição, atua de
maneira a efetivar o acesso comum aos meios primordiais de vida.77 Ou ainda,
citando-se agora um exemplo do ponto de vista estatal propriamente dito, seria o
caso da Constituição Alemã que determina suas relações com o Direito Internacional
Privado de forma a possibilitar aos juízes nacionais a aplicação de uma norma
74
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 6. 75
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 10. 76
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 44. 77
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 45.
34
estrangeira78. Não há, na visão de Häberle mais demonstração da cooperação
internacional que esta.79
Postas todas estas questões, ver-se-ia que o Estado Constitucional
Cooperativo não seria, efetivamente, uma criação do teórico alemão, mas a
identificação de um fenômeno cultural que se apresenta hoje80 de maneira bem
mais evidente. Que tem, da mesma forma, crescido e se difundido no âmbito de
sociedades nada semelhantes – países desenvolvidos e subdesenvolvidos, por
exemplo.
Há uma percepção de que o Estado Constitucional do Direito Internacional entrou em uma nova fase: o entrelaçamento das relações internacionais [...] ganhou intensidade, extensão e profundidade, de forma que o Estado Constitucional ocidental precisa reagir adequadamente. Nesse sentido é
proposto o conceito Estado Constitucional Cooperativo.81
Um exemplo concreto da questão está na formação da União Européia
que nasce de uma necessidade concreta de desenvolvimento e apoio recíproco
entre os países que a constituem, ou até mesmo, do reconhecimento das
Organizações das Nações Unidas que, enquanto entidade internacional, tem a
mesma perspectiva de cooperação que os Estados Nacionais e, praticamente, a
mesma pretensão ideológica.82
Não se trata, portanto, de uma situação ideal projetada para o futuro, mas
de verdadeira espécie de teorização sobre as tendências que podem ser
concretamente identificadas nos dias atuais. Especialmente quanto se trata das
tendências de abertura à proposta de participação dos Estados no processo de
cooperação internacional, especialmente por dizer respeito a questões comuns que
são afetas a um grupo considerável de Estados – no plano econômico –, ou à
totalidade dos cidadãos – quando se fala em garantia de direitos fundamentais.
78
Há previsão com o mesmo objetivo na Constituição Federal de 1988: art. 5º, §2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm, em 23-6-2010, 15:50) 79
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 59. 80
Ressalte-se que a teoria analisada data, originalmente, de meados de 1977-1978. 81
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 2. 82
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 43-44.
35
Questiona-se a partir disso, portanto, a soberania absoluta e o
individualismo dos Estados, vez que o novo ideal busca, ao mesmo tempo, as
melhores formas de efetivação dos direitos mencionados, sendo responsabilidade
da comunidade internacional a obrigação comum de protegê-los.83
Cabe mencionar, no entanto, que a concretização desses não tem
suporte de qualquer forma efetiva que resguardasse os preceitos instituídos, ou seja,
a teoria carece de certo aspecto coercitivo, que são possíveis apenas no âmbito
individual dos Estados. As imposições internacionais em vista da preservação da
manutenção dos preceitos inerentes à teoria do Estado Constitucional Cooperativo
não tem, portanto, outra possibilidade que não a de estabelecer certo
constrangimento de coerção moral, mais propriamente entre os Estados aderentes.
Os Estados soberanos agiriam, assim, como verdadeiros fiscalizadores, restringindo
relações em caso de violações evidentes de direitos humanos, seja por ação ou
omissão.
O elemento relevante neste contexto é justamente, como já apontado, o
direcionamento dos Estados signatários à abertura das Constituições as normas
oriundas do direito internacional, em especial às relativas aos direitos humanos, bem
como a atenção destes com aqueles que, displicentemente, pretendem sua violação.
Vislumbra-se claramente, nesta questão, o grau de importância atribuído a estas
normas.
É a maior demonstração, portanto, de que a teoria constitucional
internacional indica que não há, por nenhuma outra forma, a possibilidade de se
conceber um Estado Democrático com decisões e manifestações legítimas no plano
internacional que não aquele que atenda às expectativas econômicas solidárias,
humanitárias e sociais, conjuntamente estabelecidas no plano das relações
internacionais.
A despeito da constituição de uma espécie supranacional de direitos (que
por sua produção contratualmente estabelecida entre os Estados soberanos teria
ainda mais legitimidade que as normas internas destes), como acima disposta,
percebe-se que, nas definições do Professor Häberle, este aspecto tem como
83
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 27-28.
36
conseqüência certa a integração entre os Estados e a busca compartilhada de
melhores condições de convivência, concretizados a partir da identificação de
critérios mínimos de proteção (quer seja através do trabalho juscomparativo, quer
seja através da formalização de declarações de direitos).
É a identificação própria da complementaridade do Direito Interno e do
Direito Internacional, que não pretendem a colisão ou o embate, mas a construção
de um quadro jurídico mais legitimado, tendo em vista a maior participação,
especialmente no que tange à tutela de direitos essenciais como os ligados à
garantia de preservação da dignidade da pessoa humana.84 Pode-se dizer, assim,
que o compromisso com a garantia de determinado conjunto de direitos, de forma
geral, sempre foi fator de legitimação externa de um estado constitucional. Mas que
hoje, ante as novas formulações das relações internacionais e a relativização das
fronteiras sociais, expandiu-se para uma “realização cooperativa dos direitos
fundamentais”.85
Para demonstração da afirmação apresentada, o autor propõe, inclusive,
que os direitos oriundos desta construção comum e internacional seriam
interpretados, no âmbito interno dos Estados, como se norma constitucional fossem,
ou seja, possuem o mesmo grau de importância – entenda-se, dessa forma, como
direitos equivalentes – das normas constantes da Constituição interna de cada
Estado.
O Estado Constitucional Cooperativo não conhece alternativas de uma “primazia” do Direito Constitucional ou do Direito Internacional; ele considera tão seriamente o observado efeito recíproco entre as relações externas ou Direito Internacional, e a ordem constitucional interna (nacional), que partes do Direito Internacional e do direito constitucional interno crescem juntas num todo. Assim, também não é completamente bem lograda a idéia de caracterizar tratados internacionais de direitos humanos em relação à Lei Fundamental como direito internacional paraconstitucional (völkerrchtliche Nebenverfassung). A rigor, essa Constituição paralela (Neben-Verfassung) é parte integrante da Constituição estatal da Lei Fundamental e, portanto, não se encontra apenas “ao lado” da Constituição.
86
Esta questão implica diretamente, como se verá em oportunidade própria,
na reformulação necessária da compreensão jurídica interna de um Estado das
84
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 11. 85
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 65. 86
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 12.
37
fontes e formas de aplicação do direito internacional. Cresce necessariamente, nesta
hipótese, a idéia de vinculação material no seio dos Estados constitucionais à
definição internacional de direitos. Eis que a legitimação de uma decisão seria
aferida, em situações concretas, a partir da avaliação do seu grau de observância às
interpretações concorrentes da norma propostas conjuntamente pelos agentes que
compõem a comunidade mundial.
Vale dizer, assim, que estas considerações têm ligação direta com as
definições da interpretação dessa norma que é, verdadeiramente, comum. Neste
campo, da mesma forma, prima-se pelo respeito das concepções dos Estados que,
considera o professor, não poderiam ter seus costumes, concepções internas e
realidade momentânea desconsiderado pelos demais. 87 No entanto, também não
poderia, ou melhor, nenhum Estado Constitucional Cooperativo poderá, por
fundamentações exclusivamente internas, relativizar a interpretação comum dos
direitos concretizados no âmbito internacional. Trata-se, na verdade, de troca, onde
um “possa aprender com o outro”, sem que se possa estabelecer critérios internos e
exclusivos de aplicação destas normas. 88
O autor delimita resumidamente, por fim, que a constituição do Estado
Constitucional Cooperativo pressupõe a abertura para as relações internacionais, a
concretização de normas constitucionais voltadas ao objetivo de trabalho conjunto
entre os Estados, bem como a solidariedade entre estes, enquanto disposição para
cooperação. Transformando-se, assim, as relações internacionais do direito de
coexistência em verdadeiro direito internacional de cooperação.89
Ocorre que, de forma específica, tal questão compreende o cerne central
do presente trabalho, mais precisamente no que tange aos critérios que o Supremo
Tribunal Federal (leia-se, o Ministro Gilmar Mendes) tem utilizado, em vista da
referida teoria, para julgar as questões relativas à internalização e aplicação das
normas oriundas dos tratados internacionais de direitos humanos, razão pela qual
será, em breve, individual e detalhadamente explorada.
87
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 60. 88
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 69. 89
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 70-72.
38
2. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
2.1. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Os tratados internacionais de direitos humanos, contemporaneamente,
são fonte de disseminação de direitos e garantias individuais que buscam,
precipuamente, a efetividade de formas de proteção da dignidade da pessoa
humana.
Entretanto, no período que compreende meados do século XIX e início do
século XX, não se tinha conhecimento de qualquer forma de tutela específica90 ou
envolvimento público amplo com as causas relativas aos direitos humanos.91 A
defesa dos cidadãos restringia-se, basicamente, a preocupação por parte de países
europeus com o tratamento recebido por seus nacionais no estrangeiro.92
André Ramos Carvalho destaca, sobre o tema, que as notícias de ações
de proteção por violações de direitos humanos direcionavam-se, exclusivamente, a
estrangeiros por meio do instituto da proteção diplomática93. Parece-nos, assim, que
a aplicação da concepção de soberania dos Estados legitimava qualquer tratamento
que estes dessem aos seus nacionais, inviabilizando intervenções externas em prol
destes.
Apesar desta realidade, há que se reconhecer que o instituto da proteção
diplomática, ainda que de forma embrionária, pode ser considerado o primeiro passo
na busca efetiva pela proteção das condições humanas no plano internacional.
90
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 51. 91
No plano internacional, as questões de proteção a direitos humanos poderiam encontrar respaldo, tão somente, nas Constituições de cada Estado, oponíveis, portanto, apenas no plano interno. (AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008, p. 440) 92
RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 20. 93
“A proteção diplomática é um instituto de Direito Internacional no qual o Estado cujo nacional sofreu danos por conduta imputada a outro Estado, considera tal dano como dano próprio e pleiteia reparação ao Estado responsável pelo ato lesivo. [...] Ou seja, protegia-se o ser humano, desde que estrangeiro e somente no caso de ser de interesse do Estado de sua nacionalidade.” (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 21)
39
A evolução natural desta garantia revelou-se no surgimento dos
chamados “partidários do padrão mínimo ou internacional” para o tratamento de
estrangeiros, que defendiam a existência e observância pelos Estados de um
catálogo pré-existente de direitos que garantiriam as condições mínimas de
existência de seus nacionais quando em territórios de jurisdição diversa.94 Ou seja,
abandonava-se a defesa individual dos nacionais com direitos humanos violados por
seu Estado perante o Estado estrangeiro, para chegar-se a um padrão de
tratamento que deveria ser garantido a todo e qualquer estrangeiro.
As críticas iniciais a estas ideologias de externalização das normas de
proteção versaram, especialmente, sobre a total inexistência de mecanismos
externos de mediação internacional. Diante deste quadro, temia-se pelo surgimento
de intervenções temerárias e o posicionamento arbitrário de um Estado sobre o
outro, dados, especialmente, os testemunhos de evidentes abusos na prática
diplomática do século XIX e início do século XX. 95
Tais aspectos, no entanto, não foram suficientes para barrar a evolução
dos direitos humanos, que se estendeu gradualmente até meados do século XX.
Pode-se mencionar, como primeiro avanço significativo, a expansão da possibilidade
de tutela de direitos das minorias que, mesmo que não oponíveis por qualquer
nacional, davam margem a garantias fundamentais;96 ou ainda, a representação
direta destas minorias quanto às violações internacionais de direitos humanos,97 que
resultou no afastamento definitivo da obrigatoriedade, antes imposta, de intervenção
dos Estados ao qual estivessem ligadas.98
94
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 52. 95
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 53. 96
Neste contexto, pode-se citar como exemplo a instituição do Capítulo XIII do Tratado de Versailles, de 1919, que cria a Organização Internacional do Trabalho e visa a instituição de um catálogo de direitos mínimos para os trabalhados, de qualquer nacionalidade. (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 21). 97
O Tratado germanopolonês de 1923 trata, especificamente, sobre a proteção de minorias, dispondo ainda de um rol específico de petições individuais para casos de violações de direitos humanos. (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 21). 98
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 53-55.
40
Contudo, ainda que diante de tantos avanços, é após o advento da
Segunda Guerra Mundial onde se pode observar sua mudança mais expressiva,
dando-se neste momento a grande fase de sua disseminação, fundada
especialmente no reconhecimento do seu valor ético e moral no plano internacional.
Diante das lástimas causadas à população mundial pelos conflitos
gerados no plano internacional nasce uma nova perspectiva da necessidade de
efetivação da proteção da pessoa humana. Flávia Piovesan descreve
significativamente este momento:
Com efeitos, no momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável.
99
Pode-se dizer, assim, que a internacionalização definitiva dos direitos
humanos constituiu, de forma mais significativa, a reação da comunidade mundial às
barbáries operadas à época, especialmente diante da demonstração, pelo nazismo,
da possibilidade de construção do Estado como maior violador das prerrogativas
inerentes a condição humana.100
Tem-se, portanto, o momento em que os direitos humanos começam a
assumir, no plano internacional, verdadeira forma de princípios gerais do direito
internacional ou, até mesmo, costume internacional,101 vez que a construção legal
de cada Estado, em particular, havia se mostrado insuficiente para garantia, seja na
ordem interna ou externa, da condição de existência dos indivíduos.102
Assim, diante da mobilização internacional em alterar o quadro histórico
que se impunha, editou-se a Carta de São Francisco, em 1945, criando a
Organização das Nações Unidas, cujos objetivos versavam, também, sobre “a
vontade da comunidade internacional em reconhecer e fazer respeitar os direitos
99
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 9. 100
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 8. 101
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 21-22 102
Especialmente com o repúdio aos atos fascistas e nazistas que, na época, colocaram-se ao poder e subjugaram os indivíduos com o maior genocídio que o mundo presenciou, mas, sempre, dentro dos ditames legais que guardavam seu Estado. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 9-10)
41
humanos no mundo”.103 Este tratado é concebido por André Ramos Carvalho como
marco histórico na consolidação da vontade internacional de reconhecimento dos
direitos humanos como imposições gerais e amplamente oponíveis.
Há quem diga, no entanto, que o efetivo marco legislativo fora a edição,
alguns anos depois, no âmbito daquela Instituição Internacional, da chamada
Declaração Universal de Direitos Humanos (1948).104 Pode-se mencionar, entre
estes partidários, a doutrina do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que
assim se manifesta sobre o tema: “A Declaração Universal afigura-se, assim, como a
fonte de inspiração e um ponto de irradiação e convergência dos instrumentos sobre
direitos humanos em níveis tanto global como regional.”105
Independente de qualquer pretensão de demarcação histórica, pode-se
dizer que a Declaração supramencionada foi a primeira norma internacional
específica quanto a matéria de proteção dos direitos humanos, sob a nova ótica
protetora, tendo como característica mais importante a implementação prática do
caráter universal e indivisível destes direitos.106
Continuamente, dado o significativo impacto daquela norma, bem como o
avanço dos debates teóricos acerca do tema, desencadeou-se um expressivo
avanço intelectual no plano da reafirmação do indivíduo e da necessidade de tutela
de suas condições de existência. Logo, ainda que em meio a intensos debates
ideológicos promovidos pela Guerra Fria, foram promulgados dois Pactos de Direitos
Humanos, que, somados àquela Declaração, formaram a Carta Internacional de
Direitos Humanos.107
Este documento revestiu-se, neste momento de complementação, de
marco definitivo entre os momentos de produção legislativa e o de efetiva
implementação de direitos e garantias fundamentais do homem.108 A partir dai, sem
103
RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 50. 104
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 57-58. 105
Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 65. 106
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 13. 107
TRINDADE, Antônio Augusto Caçando. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 60. 108
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 62..
42
abordar detalhadamente as particularidades cronológicas, abriu-se um intenso
processo de produção legislativa protecionista, cuja função primordial era a tutela da
condição humana.109
Multiplicaram-se, neste contexto, os tratados internacionais de direitos
humanos, que passaram a tratar, agora, não só de aspectos gerais de proteção
(vida, integridade física e psicológica), como também se voltaram a setores
especiais da sociedade (Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, e de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, por exemplo).110
Importa mencionar, ainda, neste momento marcante de expansão, o
avanço das discussões pertinentes a proteção dos direitos humanos no âmbito
regional. Estas ensejaram a promulgação de diversos tratados que versam tanto
sobre direitos humanos gerais como do protecionismo das classes, mas aplicavam-
se apenas a determinadas áreas geográficas.111
Percebe-se, nestes temos, que a evolução dos direitos humanos
ramificou-se ao plano mundial (com aspectos gerais e especiais de proteção), bem
como ao plano regional (onde se encontra um apelo mais expressivo quanto as
particularidades da região onde o diploma poderá ser aplicado). Vale dizer, neste
momento, que a existência de sistemas mundiais e regionais não tem a pretensão
de oposição, ao contrário, complementam-se na medida em que abarcam cada vez
mais prerrogativas as condições de existência humana.112
O grande tema a ser extraído deste quadro evolutivo é que o tempo
apenas consolida, até os dias atuais, os requisitos de essencialidade da efetiva
109
Nos moldes iniciais percebia-se a busca, principalmente, pelos direitos coletivos de determinadas categorias. Nas palavras de Augusto Antônio Cançado Trindade “[...] proteção de minorias, de habitantes de determinados territórios sob mandado, de trabalhadores sob as primeiras convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de refugiados e apátridas, etc.”. (Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 63). 110
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 64-65. 111
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27-28. 112
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 14.
43
tutela dos “atributos da pessoa humana”,113 sendo estes direitos e garantias, desde
sua construção, reafirmados e desenvolvidos constantemente pelas Cartas,
Convenções ou Tratados sobre o tema que se seguiram na história.
No entanto, ainda que diante de toda evolução histórica exposta, bem
como a evolução teórica apresentada e reafirmada nos últimos tempos, pesa sobre
a doutrina a discussão acerca do caráter objetivo destas normas, bem como da
vinculação direta dos Estados sobre as regras de proteção, independente da
existência de reciprocidade entre os contratantes.
Explica-se: os tratados internacionais de caráter geral (cooperação,
econômicos, etc.), subsistem sobre o requisito essencial da reciprocidade.114 Assim,
um Estado é liberado do cumprimento de suas obrigações internacionais, desde que
o outro Estado contratante não cumpra com sua parte. Faz-se, neste caso, clara
analogia com as regras de um contrato.
Os tratados internacionais de direitos humanos, no entanto, diferem
daqueles no que tange a este requisito. Quando um Estado soberano adere a um
pacto internacional sobre o tema, dada qualquer razão que o motive,115 este fica
obrigado à proteção irrestrita dos direitos fundamentais da pessoa humana, sem
qualquer contraprestação.116 Não lhe é lícito, por este motivo, vincular sua
observância ao já denominado requisito da reciprocidade, ou seja, ao cumprimento
mútuo das disposições por todos os Estados aderentes.117
Trata-se, como já mencionado, do caráter objetivo das normas
internacionais que versem sobre a proteção dos direitos humanos.118 Os dispositivos
inscritos nesses tratados são considerados, assim, valores essenciais para a
113
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 66. 114
RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 68. 115
André Ramos Carvalho indica como possíveis fatores que influenciam a ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos a busca: por diálogo entre os povos, de cooperação internacional, de favorecimentos econômicos, por legitimidade política, entre outros. (Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 60-67) 116
RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 60. 117
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33. 118
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27-28.
44
coexistência humana, e por isso são irrestritamente tutelados,119 não havendo
qualquer justificativa para sua violação e podendo qualquer Estado, aderente ou não
do pacto, demandar internacionalmente em face de sua violação.120
Denominando-se, portanto, a obrigação de observância destas normas
como obrigações erga omnes,121 sendo possível dizer, logo, que sua vinculação se
opera tanto em face dos Estados, das instituições internacionais, bem como dos
particulares, tendo todos estes o dever de observância das normas impostas.122
Cabe mencionar neste momento, inclusive, que tem crescido
consideravelmente a busca pela efetividade processual desta categoria de normas
no plano externo, ainda que iniciada a passos curtos como a própria teoria
material,123 por meio de sistema de implantação proporcionado pelos atuais órgãos
internacionais de supervisão. Estes têm atuado diretamente nos casos de violação
dos direitos humanos, considerando-se que sua intervenção é independente do
ambiente de violação, ou seja, a intervenção pode ser legítima no plano interno ou
externo do Estado soberano.
Estes órgãos agiriam, prioritariamente, como fiscalizadores,
acompanhando o Estado, detentor do legítimo poder de polícia, na implantação das
garantias relativas aos direitos fundamentais do ser humano. No entanto, verificada
sua inércia ou ineficácia, e sendo as violações devidamente comprovadas, agiria a
119
RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 73. 120
Clara exceção ao princípio da reciprocidade, onde o Estado carece de legitimidade para demandar internacionalmente quando não tem direitos afetados. No caso da violação de normas relativas a proteção de direitos humanos, toda a humanidade é afetada. (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33-34). 121
Compreende-se, como já mencionado, que a atenção as disposições internacionais que versem sobre direitos humanos tem aplicação imediata, não podendo o Estado aderente (e não contratante como nos tratados em geral) alegar causas diversas para escusar sua violação. Há, por óbvio, uma obrigação irrestrita, um dever de agir imediato e inescusável. (RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 72) 122
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 345. 123
É imprescindível considerar aqui a complexidade do sistema em que estes direitos envolvem-se, relevando sempre a necessidade de integração de diversas classes, culturas, origens e ordens jurídicas na busca, sempre, de um bem comum que é único e, muitas vezes, não faz parte de um plano ideológico compartilhados por toda a comunidade mundial. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 71).
45
Organização Internacional, em nome da comunidade internacional, pelas formas que
lhe couberem.124
Cumpre dizer, para finalização do tema, que a imposição da mencionada
superação do requisito da reciprocidade, bem como sua caracterização como norma
de caráter objetivo, nos tratados internacionais de direitos humanos, ocorreu pela
especial influência das normas de direitos humanitário.125 Estas deram os primeiros
passos e antecederam aqueles no que tange à característica clara da
unilateralidade, onde todos os Estados obrigam-se, irrestritamente, pelas normas
impostas.126
A distinção clara entre as categorias “direitos humanos” e “direito
humanitário” está, basicamente, em suas áreas de atuação: enquanto o primeiro
emerge do direito constitucional e se expande para o plano externo a fim de garantir
as condições de existência humana em caráter geral; o segundo nasce no plano
internacional com o fim de coibir os conflitos armados e proteger os indivíduos que
habitam as áreas de risco, enquanto pretensas vítimas daqueles.127
As convergências entre as referidas categorias, no entanto, mostram-se
muito mais evidentes que, efetivamente, suas diferenças. Veja-se, ambos os
institutos servem, não obstante a situação concreta em que se apliquem, para
prevenção e garantia de direitos de existência pacífica e digna, tanto em tempo de
guerra, quanto em tempos de paz.128 Ou seja, se prestam absolutamente a
salvaguarda do ser humano.129
A única consequência aceitável, nestes termos, é o compartilhamento
efetivo das teorias normativas relativas à interpretação e implementação daquelas
124
Tem-se, a título exemplificativo, as ações promovidas pelas subcomissões da Organização das Nações Unidas que, no entanto, permanecem confidenciais as medida tomadas. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 73-74). 125
Corroborada pela Convenção de Viena Sobre Direitos dos Tratados. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 352) 126
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 29. 127
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 346. 128
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 358-360. 129
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 341-343.
46
disposições, que em muito se integram e se influenciam.130 Tem-se, portanto, que os
debates e evoluções teóricas iniciados em um instituto têm influência decisiva nas
discussões operadas em sede do outro e contribuirão em muito, também, para o
avanço deste.
Pode-se perceber, inclusive, a fim de determinar a concreta relação entre
as categorias, a existência de normas de direitos humanos em tratados
internacionais de direitos humanitários, bem como a incidência de princípios do
direito humanitário em conflitos não armados. 131
Constata-se, portanto, que existe um verdadeiro aspecto de
complementação entre aquelas categorias,132 tendo-se a efetiva construção de um
sistema normativo internacional que busca, em toda e qualquer situação (seja
durante conflitos armados ou em causas civis cotidianas) a tutela e proteção das
condições de existência dos indivíduos, somando e criando novas formas e
perspectivas de efetivação que poderão ser, futuramente, aplicadas por ambas.133
2.2. PROCESSO DE INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS NO BRASIL E A
QUESTÃO DO CONFLITO ENTRE NORMAS.
As normas de cada Estado soberano costumam dispor sobre as formas
próprias de internalização de tratados internacionais ao seu plano jurídico interno.
Essas diretrizes estão previstas em leis ou nas Cartas constitucionais, como no caso
do Brasil.134
A primeira questão a ser suscitada, quanto ao ordenamento brasileiro,
versa sobre a competência para elaboração e participação destes acordos
internacionais. Encontra-se, neste tema, a primeira impressão relevante dos
equívocos terminológicos postos pelo constituinte brasileiro ao tentar regular a
130
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 351. 131
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 342. 132
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 389. 133
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 354-355. 134
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 295.
47
matéria. Vejamos: a Constituição, em seu artigo 21, inciso I,135 determina ser a
União competente para manter relações com os Estados estrangeiros.
Esta afirmação, a priori, faz induzir que a União seria a única habilitada
para participar de tratados internacionais. No entanto, José Afonso da Silva136 e
Valério de Oliveira Mazzuoli137 criticam a opção ao afirmar que, na verdade, a
República Federativa do Brasil é a única com personalidade jurídica de direito
público, e por isso capaz de manter relações internacionais e celebrar tratados.
Nestes temos, colocada tal questão como exemplo da problemática que
se verá a seguir, pode-se passar a elaboração concreta dos tratados. Há,
inicialmente, a estrita necessidade de que o Estado esteja representado por quem,
de direito, possa assumir obrigação internacional em nome de sua Nação, no nosso
caso, pela República Federativa do Brasil.
Enquanto no plano internacional esta legitimação se regula pela
Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados,138 no Brasil ainda que a
Constituição da República disponha expressamente sobre a competência do
Presidente da República para a celebração de tratados e acordos internacionais,139
o costume, no entanto, legitimou ainda para estes atos: o chefe de Estado; o
135
Art. 21. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais; (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>, em 25-8-2010, às 7:30). 136
Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 402. 137
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 307. 138
Artigo 7 1. Uma pessoa é considerada representante de um Estado para a adoção ou autenticação do texto de um tratado ou para expressar o consentimento do Estado em obrigar-se por um tratado se: a) apresentar plenos poderes apropriados; ou b) a prática dos Estados interessados ou outras circunstâncias indicarem que a intenção do Estado era considerar essa pessoa seu representante para esses fins e dispensar os plenos poderes. 2. Em virtude de suas funções e independentemente da apresentação de plenos poderes, são considerados representantes do seu Estado: a) os Chefes de Estado, os Chefes de Governo e os Ministros das Relações Exteriores, para a realização de todos os atos relativos à conclusão de um tratado; b) os Chefes de missão diplomática, para a adoção do texto de um tratado entre o Estado acreditante e o Estado junto ao qual estão acreditados; c) os representantes acreditados pelos Estados perante uma conferência ou organização internacional ou um de seus órgãos, para a adoção do texto de um tratado em tal conferência, organização ou órgão. (Disponível em <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm>, em 25-8-2010, às 8:15). 139
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>, em 2-11-2010, às 21:48).
48
Ministro das Relações exteriores; ou, ainda, terceiro munido de carta de plenos
poderes, autorizando este a representar o país na negociação internacional.140
Posta a questão, inicializa-se o processo de formalização com a
negociação internacional, que formará o texto definitivo do tratado internacional, seja
qual for sua matéria, sendo após subscrito pelos participantes.
Há, a partir desta concretização, uma particularidade a ser considerada.
Enquanto no plano internacional a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados
afirma que o tratado proposto pelas partes poderá prever que a mera assinatura do
texto finalizado constitui requisito de validade das normas por si instituídas,141 alguns
Estados possuem normas internas que regulamentam o procedimento de ratificação
e validação interna dos tratados internacionais, vinculando a vigência destas normas
ao cumprimento das formalidades internas.142
Desta forma, é evidente que, em que pese as previsões interna de cada
Estado, aqueles que aderiram à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados143
podem, em alguns casos, obrigar-se no plano internacional pela mera assinatura do
termo. Tal evidência constituiria, inclusive, requisito hábil para ensejar
responsabilização internacional em caso de descumprimento das disposições
acordadas.
O caso do Brasil, em particular, agrava a problemática do conflito antes
demonstrado, vez que há, em nossa Constituição, um complexo sistema de
incorporação da legislação internacional, que inclui discussões a cerca da
140
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 402. 141
Artigo 12 Consentimento em Obrigar-se por um Tratado Manifestado pela Assinatura 1. O consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado manifesta-se pela assinatura do representante desse Estado: a) quando o tratado dispõe que a assinatura terá esse efeito; b) quando se estabeleça, de outra forma, que os Estados negociadores acordaram em dar à assinatura esse efeito; ou c) quando a intenção do Estado interessado em dar esse efeito à assinatura decorra dos plenos poderes de seu representante ou tenha sido manifestada durante a negociação. 2. Para os efeitos do parágrafo 1: a) a rubrica de um texto tem o valor de assinatura do tratado, quando ficar estabelecido que os Estados negociadores nisso concordaram; b) a assinatura ad referendum de um tratado pelo representante de um Estado, quando confirmada por esse Estado, vale como assinatura definitiva do tratado.(Disponível em <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm>, 25-8-2010, as 8:15). 142
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 295. 143
Como é o caso do Brasil, que internalizou definitivamente o tratado internacional por meio do Decreto n. 7.030, de 14 de dezembro de 2009.
49
necessidade de participação conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo,144 bem
como da definição do ato que efetivamente dá vigência à norma no plano interno.145
Os primeiros embates versam basicamente sobre a particularidade da
competência efetiva para apreciação, aprovação, ratificação e determinação de
vigência das normas oriundas do plano internacional ao ordenamento jurídico
brasileiro. A Constituição da República, neste sentido, apresenta apenas dois
dispositivos específicos que tratam sobre a matéria, sendo eles:
Art. 49 É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;
[...]
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...]
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.
146
A pergunta, diante desses dispositivos, é a seguinte: há a efetiva
necessidade de participação do Congresso Nacional no processo de internalização
de todos os tratados internacionais?
Persistem, sobre o tema, dois posicionamentos básicos:147 enquanto
alguns autores entendem que todos os tratados internacionais do qual o Brasil
pretenda ser signatário devem ser apreciados pelo Poder Legislativo;148 outros
afirmam que meros acordos executivos, desde que reversíveis e com prévia
144
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 402. 145
AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008, p. 69-70. 146
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>, em 25-8-2010, às 7:45. 147
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 52. 148
Há, aqui, duas vertentes doutrinárias: alguns interpretam restritivamente a parte final do art. 49, inc, I, da Constituição da República, entendendo que não é possível conceber um tratado internacional que não acarrete ônus ao patrimônio nacional (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 403), enquanto outros afirmam que ainda que o legislador tenha optado pela infeliz menção daquele artigo (“[...] que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”), a disposição do artigo 84 (“[...] sujeitos a referendo do Congresso Nacional”) amplia o rol de vinculação para apreciação dos tratados internacionais pelo Poder Legislativo. (VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47).
50
disponibilidade orçamentária, poderiam ser formalizados apenas pelo Poder
Executivo.149
Sem razão para pormenorizar a discussão acima, cabe-nos apenas a
análise das etapas previstas pela legislação e/ou pelo costume interno para o
procedimento completo de internalização. Ou seja, será abordado aqui o caso em
que é colocada a indispensabilidade do referendo do Congresso Nacional,150 tendo
em vista que os supostos casos de atribuição exclusiva do Poder Executivo não
compõem uma sistemática tão densa.
Marcelo Dias Varella descreve este processo da seguinte forma:
o Ministério das Relações Exteriores traduz o texto negociado para o português, prepara uma minuta da Mensagem Presidencial, faz a análise jurídica da legalidade do texto e encaminha ao Presidente da República;
a Casa Civil da Presidência da República faz uma análise da legalidade e do mérito do trabalho, tecendo suas considerações;
o Presidente, estando de acordo, envia a Mensagem, acompanhada da Exposição de Motivos à Câmara dos Deputados;
a Câmara aprova o tratado, remete em seguida ao Senado Federal;
o Senado aprova o tratado;
o Presidente do Senado promulga, então, um Decreto Legislativo. [...]151
Este decreto legislativo é o documento que dá publicidade a decisão do
Congresso Nacional e autoriza o Presidente da República a proceder à devida
ratificação internacional do diploma normativo em apreço. Há dizer, no entanto, que
caso o projeto seja rejeitado pelo Poder Legislativo, não caberá ao Executivo
qualquer procedimento, sendo ele definitivamente rejeitado. 152
Vale citar, neste momento, a construção de Valério de Oliveira Mazzuoli,
que acredita que o verdadeiro poder de resolução definitiva sobre acordos
internacionais inscrita na Constituição da República está, especialmente, na
149
Nesta hipótese o Chefe do Executivo estaria tacitamente autorizado a acrescer a responsabilidade do Estado brasileiro em alguns aspectos, ou seja, quando o novo acordo: pretende interpretar a norma de algum tratado já vigente; complementam um tratado já vigente; ou que pretendam reforçar a relação entre os Estados e favorecer negociações futuras. Diz-se, assim, que estas autorizações estariam tacitamente incluídas na própria ratificação do tratado principal. (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 304-305) 150
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 402. 151
Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47-48 152
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 402.
51
possibilidade do Congresso Nacional decidir pele rejeição do projeto, seja pela
Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal.153
Assim, superada tal etapa – seja ela estritamente necessária a todo
tratado celebrado, ou não – é de responsabilidade definitiva do Presidente da
República a devida ratificação do instrumento no plano internacional, bem como a
edição de decreto executivo que, segundo alguns, dá efetiva validade à norma no
ordenamento jurídico interno.154
Têm-se, neste particular, novo impasse quanto à suposta obrigatoriedade
de ratificação do texto aprovado no Congresso Nacional pelo Presidente da
República: uma vertente doutrinária afirma categoricamente que não há razão para o
Presidente negar-se aos ditames impostos pelo Poder Legislativo, já que compete a
este, exclusivamente, decidir sobre aqueles tradados; outros afirmam que não há
qualquer previsão de obrigatoriedade, sendo que está a si adstrita a obrigação de
manutenção das relações do país com Estados estrangeiros, podendo este,
portanto, simplesmente optar por ratificar, fazer reservas, ou até mesmo arquivar a
referida proposta.155
A prática mostra, no entanto, que o Presidente pode abandonar projetos
de tratados internacionais que retornam do Poder Legislativo, de forma que,
simplesmente, opta por não formalizar a sua ratificação.
Não obstante, abre-se, ainda, novo impasse da doutrina quanto à
necessidade da edição do decreto executivo após o efetivo ato de ratificação do
tratado (quando este acontece), vez que aquele citado decreto legislativo já serviria
para a publicidade determinante à validação das normas no âmbito interno,156
concretizando, por si só, a vigência interna do tratado internacional. 157
153
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 314-315. 154
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 403. 155
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional. 2ª ed. rev. atual e ampl. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Renovar, 2000, p. 280. 156
Neste aspecto, cita-se que a Constituição é absolutamente omissa quanto ao ato que dará efetiva vigência da norma internacional no país. Nesses termos, sendo o texto definitivamente aprovado pelo Poder Legislativo e emitido o decreto respectivo, dando publicidade ao aceite do Congresso Nacional, restaria apenas o depósito ou a troca das notas diplomáticas para a imediata aplicação das normas no plano interno. A questão relativa a exigência de promulgação por decreto executivo, portanto, no entender destes teóricos, não guarda qualquer respaldo legal e, por constituir mero costume burocrático, não teria o condão de vincular a ordem interna. (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso
52
Impera mencionar, neste particular, que ainda que não haja qualquer
disposição constitucional ao respeito da matéria, o Supremo Tribunal Federal já se
manifestou expressamente sobre o tema, afirmando que o tratado internacional
passa a ter validade e a ser oponível no ordenamento jurídico interno apenas com a
promulgação do respectivo decreto executivo.158
Contudo, afastando-se mais uma vez os debates terminológicos e a
complexa sistemática posta pela doutrina pátria, tem-se resumidamente que:
havendo deliberação sobre o texto proposto no Congresso Nacional e sendo este
aprovado pelos membros da casa é publicado decreto legislativo que autoriza o
Presidente da República a ratificar o tratado no plano internacional e legitimar a
aplicação interna da norma proposta.
Ainda sobre o tema, independente dos entendimentos expostos, observa-
se que a maior parte dos teóricos afirma que o ato que dá efetiva validação a norma
internacional é a obrigação no plano internacional, ou seja, o ato de ratificação.159
Nestes termos, tendo em vista a atribuição do Chefe do Poder Executivo para
formalização definitiva dos tratados, pode-se dizer que cabe a este, de qualquer
forma, os trâmites finais de internalização.160
Há o óbice claro na referida questão, para os tratados internacionais de
direitos humanos, que interessam particularmente ao objeto em análise. A doutrina
trata, neste aspecto, uma particularidade ligada à espécie de direito tutelado por este
diploma internacional,161 bem como às disposições da Constituição da República
sobre o tema dos direitos humanos.
de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 326-330). 157
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47-48 158
AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008, p. 69. 159
Fica evidente, inclusive no posicionamento do Executivo brasileiro, que a pretensão de vigência da norma internacional ocorre a partir da ratificação no plano externo, tanto que os decretos executivos promulgados pelo Governo Federal datam a validade da norma internacional ao tempo do depósito ou da troca de notas diplomáticas. A ratificação é, portanto, o ato perfeito que formaliza a obrigação do Estado brasileiro. (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 326-327) 160
Seja necessária (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 403) ou não a promulgação do decreto executivo (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 326). 161
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 403.
53
Valério de Oliveira Mazzuoli,162 por exemplo, posiciona-se pela absoluta
desnecessidade de promulgação interna do ato de aprovação do tratado sobre o
referido tema, vez que o caráter essencial da norma vincula o Estado diretamente, a
partir da ratificação. Ou seja, sendo ratificado o tratado seria plenamente aplicável, a
despeito da publicação ou não de ato do Presidente da República. 163
Flávia Piovesan, por sua vez, justifica a diferenciação com a conclusão de
adoção, pelo Brasil, de um sistema misto de regulamentação das normas
internacionais, formalizando de forma distinta os tratados internacionais de direitos
humanos e os tratados internacionais em geral.164
A impressão que se extraí da formulação desses autores, ainda que
independentes e desconexas, é que o interesse na tutela pelos direitos humanos,
posta no aspecto mundial, transcende a qualquer problemática interna quanto a
aprovações, ratificações ou pressupostos de validade daquelas normas.
Os autores preferem, talvez para não especificar demais o tema, tratar
sobre aspectos pontuais de diferenciação (como a própria dispensabilidade do
decreto executivo para vigência), mas dão idéia da dimensão e importância que
deve ser assegurada a estas normas. Talvez com o intuito de construir, no futuro,
um processo absolutamente independente e sem qualquer formalidade demasiada
para integração destes tratados, como aparentemente julgam que já deveria ser.
Posta toda esta questão concernente ao processo de internalização dos
tratados, resta tratar, finalmente, sobre o conflito de normas no âmbito interno dos
Estados soberanos. Ante o fato de que este ato (de internalização) projeta a eficácia
dos diplomas internacionais no ordenamento jurídico interno, faz-se necessário lidar
com a questão da interação entre tais ordens normativas, questão esta que divide os
autores em duas grandes correntes teóricas: monismo e dualismo.165
162
Ainda que esta questão também seja posta na temática dos tratados internacionais em matéria geral, a característica objetiva dos tratados internacionais de direitos humanos e sua auto aplicabilidade consistiriam os fundamentos essenciais da dispensabilidade que agora se alega (Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 317/324). 163
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 88. 164
Esta questão será melhor explorada a seguir. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 67). 165
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 66.
54
Os denominados dualistas, originalmente vinculados à idéia de soberania
do Estado,166 compreendem que o sistema jurídico interno dos Estados e o plano
internacional constituem ordens jurídicas diversas.167 Esta construção pretende
demonstrar, basicamente, que estes sistemas normativos não guardam qualquer
relação entre si, sendo absolutamente independentes.168
Assim, para que uma norma internacional tenha aplicabilidade no âmbito
dos Estado, faz-se necessário um processo de internalização próprio, que (a
despeito de sua formação no plano externo) transformaria a norma analisada em
legislação propriamente nacional.169
Estes doutrinadores estabelecem, ainda, a diferenciação de fonte e
conteúdo entre o direito internacional e o direito interno. Afirma-se, por este
aspecto, que os planos jurídicos distinguem-se, em verdade, pelos seus objetos de
regulamentação: enquanto o direito internacional regularia apenas a relação entre os
Estados, o direito interno regularia a sua relação com o indivíduo, bem como destes
entre eles. Não haveria, nestes termos, qualquer possibilidade de conflito entre as
normas internas e internacionais, vez que as normas servem para propósitos
absolutamente diversos.170
Os denominados monistas, por sua vez, visualizam apenas uma ordem
jurídica, sem diferenciação substantiva entre o direito internacional e nacional.171
Estes institutos constituiriam, assim, ramos direito, mas que se integram e se
aplicam no sistema normativo.172
Tem-se, no âmbito desta teoria, a efetiva possibilidade de existência de
conflitos entre normas. Aqui, em flagrante oposição aos dualistas, vê-se
absolutamente possível a constatação de incompatibilidade entre aqueles diplomas
166
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16. 167
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 65. 168
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. 1º vol. Rio de Janeiro: Renova, 2004, p. 121. 169
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 67-68. 170
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 69-70. 171
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. 1º vol. Rio de Janeiro: Renova, 2004, p. 123. 172
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 72-73.
55
normativos, que podem, por exemplo, regular a mesma matéria de forma distinta.
Seria imprescindível, nestes termos, que os Estados, entre si ou individualmente,
criassem mecanismos eficazes de interação, definindo expressamente qual direito
prevaleceria em caso de conflito.173
Surge, a partir dessa questão, uma divisão entre os autores que adoram
esta teoria, que passam a debater acerca da prevalência normativa das normas, ou
seja, em caso de conflito, qual norma será aplicada? Ramificam-se, assim, entre os
partidários do “monismo internacionalista” e do “monismo nacionalista”.174
O monismo nacionalista, por óbvio, é marcado pela determinação da
sobreposição das normas internas em relação às internacionais. Tal definição
encontra fundamento, especialmente, na soberania do Estado. Os autores afirmam,
assim, que o Estado é o único detentor do poder de normatização e que o direito
internacional tira seu fundamento de validade do direito interno175 de cada Estado
soberano, razão pela qual este deve prevalecer.176
Os monistas internacionalistas, por outro lado, determinam que, em
verdade, o direito interno deriva do direito internacional, que seria uma ordem
jurídica superior. Tem-se, nessa concepção, a aceitação de que o plano mundial
constituí uma verdadeira sociedade, sendo os planos de soberania dos Estados
relativizados em face do interesse maior da coletividade mundial.177
Releva-se, nesses termos, a integração absoluta dos Estados em caso de
convenção. Ou seja, seria inconcebível que uma norma multilateral pudesse ser
revogada ou deixasse de ser aplicada em face de uma norma unilateral de um
Estado, considerada aqui de menor importância. Pode-se dizer, assim, que este
173
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16. 174
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 73-74. 175
Sobre este aspecto, o tratado internacional só é internamente obrigatório porque o direito interno, no exercício de sua discricionariedade nas relações internacionais, assim o dispuser. É a determinação máxima do princípio da supremacia da Constituição (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 78-79). 176
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. 1º vol. Rio de Janeiro: Renova, 2004, p. 123. 177
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 73-75.
56
entendimento está ligado a idéia de que a própria soberania dos Estados encontra
legitimidade, necessariamente, no direito internacional.178
2.3. PROCESSO DE INCORPORAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL COMO UM
DEBATE SOBRE HIERARQUIA DAS LEIS
Importa, agora, a análise da questão relativa à peculiaridade da hierarquia
atribuída às normas oriundas de tratados internacionais de direitos humanos, que,
exatamente como a questão da própria internalização vista anteriormente, guarda
relevantes peculiaridades no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim que passa a integrar o ordenamento jurídico interno, como já
anteriormente mencionado, o tratado internacional precisaria se estabelecer como
norma interna, para que então fosse considerado e aplicado no âmbito interno.
Nestes termos, quando aos tratados internacionais em matéria geral,
existem duas correntes doutrinárias dominantes: parte dos teóricos, como Marcelo
Dias Varella, compreende que o tratado incorporado torna-se paradigma da
legislação infraconstitucional;179 enquanto outros se posicionam pela
supralegalidade das normas internacionais, tendo em vista o caráter contratual da
norma internacional, que impossibilitaria que norma interna do Estado inviabilizasse
a aplicação do tratado.180
Assim, poder-se-ia dizer, em suma, que os tratados internacionais em
matéria geral serão, ou equivalentes a legislação infraconstitucional, ou
subordinados à Constituição, mais superiores às leis internas, revogando as que o
tivessem precedidos e não sendo alterados ou inaplicáveis pelas que sobrevirem.181
178
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. 1º vol. Rio de Janeiro: Renova, 2004, p. 124. 179
Atentando-se aqui para a fórmula legal necessária para regulamentação da matéria. Exemplo: se a matéria deverá ser regulamentada no país por lei complementar, o tratado será recepcionado como lei complementar; se a norma exigir edição de lei ordinária, o tratado será concebido como lei ordinária.(Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 67) 180
Afirma-se, nesta formulação, que apenas a efetiva denúncia internacional é apta para fundamentar a inaplicabilidade de um tratado internacional, seja qual for sua matéria. (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 344-347). 181
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 103-105.
57
Independente de todos os argumentos fáticos e legislativos que
fundamentam estas opções teóricas, importa mais a este estudo a abertura da
questão, não obstante a infindável contribuição destas referências teóricas, à
questão da incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos,
fundamentadas pelas disposições dos §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição da
República.
No que tange aos tratados internacionais de direitos humanos, além das
mencionadas teses da supralegalidade e da infraconstitucionalidade, acresce-se ao
tema as possibilidades de colocação das normas internacionais acima da
Constituição (denominada supraconstitucionalidade182), ou em condição equivalente
as próprias normas constitucionais (denominada constitucionalidade183).
A doutrina trata deste tema como delimitação de categorias184 onde os
tratados poderiam, necessariamente, ser enquadrados. Enquanto alguns autores,
como Flávia Piovesan,185 debatem as quatro linhas teóricas e apresentam toda
discussão posta por constitucionalistas e internacionalistas, outros, como Valério de
Oliveira Mazzuoli,186 preferem abarcar apenas a causa relativa aos mais impactantes
debates, relevando apenas o reconhecimento de algumas das teorias apresentadas.
Ressalte-se, antes da abertura determinante da matéria, que a questão
abarcada neste tópico versará exclusivamente sobre a visão doutrinária do tema,
reservando-se o entendimento jurisprudencial, particularmente relativo à visão do
Supremo Tribunal Federal sobre o tema, para o tópico que se seguirá.
Os debates, neste sentido, residem basicamente, como já apontado, na
interpretação de dois dispositivos inseridos na Constituição da República de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
182
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. O art. 5º da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Logo (org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, p. 25/26. 183
DALLARI, Pedro B. A. Constituição e Tratados Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 32/34. 184
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 342. 185
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. 186
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
58
[...]
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
187
O início da discussão remota a própria promulgação da Constituição,
momento em que existia tão somente o §2º supracitado. Naquela ocasião, além das
já aventadas construções da equiparação infraconstitucional e da preservação do
princípio contratual pela supralegalidade,188 como exposto em acerca dos tratados
internacionais em geral, abriu-se fortemente a concepção de que a disposição
constitucional em apreço dava aos tratados internacionais de direitos humanos
status constitucional.
Vale mencionar, inicialmente, que a tese da supraconstitucionalidade foi
brevemente considerada no plano interno do Estado brasileiro, tendo em vista,
principalmente, o reconhecimento irrestrito da supremacia da Constituição da
República, o que inviabilizaria considerar que os tratados internacionais, ainda que
sobre matéria tão relevante como os direitos humanos, se sobreporiam aquela
norma. Ainda assim, os partidários da tese abordam a questão com fulcro no
supremacia incondicional do plano internacional sobre a ordem jurídica interna dos
Estados Soberanos.189
A tese da equiparação constitucional, contudo, ganhou grande relevância
em face da considerada abertura da Carta Magna aos direitos e garantias oriundos
do plano externo. Trata-se, em verdade, da reafirmação do caráter materialmente
constitucional dos direitos fundamentais, estejam eles inscritos ou não na
Constituição da República.190 Neste aspecto, quando a Carta afirma que o texto não
187
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>, em 25-8-2010, às 17:50. 188
DALLARI, Pedro B. A. Constituição e Tratados Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 29/32. 189
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 68-70. 190
Diz-se, aqui, que a Constituição da República cuidou de assegurar condição especial as normas que dessem ensejo a preservação de direitos e garantias fundamentais, considerando-os como componentes materialmente legítimos da própria Constituição. Assim, um direito fundamental insculpido no art. 5º da Constituição da República teria tanta aplicabilidade quanto um insculpido, por exemplo, num tratado internacional de direitos humanos. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o
59
exclui os direitos e garantias oriundos dos tratados internacionais ele, tacitamente,
os inclui.191
Assim, o quadro geral promovido pelo referido dispositivo constitucional
possibilitaria a concepção de algumas formas distintas de apresentação dos direitos
e garantias fundamentais da pessoa humana, sendo eles: os expressos na
Constituição; os implícitos;192 e aqueles oriundos dos tratados internacionais de que
o Brasil seja signatário.193
A conclusão extraída da questão é simples: os direitos insculpidos nos
tratados internacionais de direitos humanos aderem ao bloco de constitucionalidade,
como forma de intensificar e complementar o caráter de proteção dos direitos
fundamentais já posto na Constituição da República.194 Afirmam os teóricos, ainda,
que a questão principal está em por em relação duas fontes legítimas de normas195
que, por versarem sobre temas conexos,196 integram-se de forma completa.
Nestes termos, tendo em vista a evidente convergência entre os
ordenamentos internos e externos no que tange à efetividade dos direitos humanos
não há fundamentação razoável para que elas entrem em conflito ou se anulem,
devendo-se ser concebidas como normas de hierarquia equivalente, aplicando-se
em caso de conflito a norma mais favorável ao indivíduo, seja ela interna ou
internacional.197
A teoria da supralegalidade, por sua vez, evoluiu com o tempo e o debate
acerca da pregoada elevação dos tratados internacionais de direitos humanos ao
nível constitucional. Assim, aqueles que pretendiam a preservação irrestrita da
Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 54). 191
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 52. 192
Aqueles derivados das próprias disposições colocadas na Constituição da República, bem como do regime ou dos princípios adotados por esta norma. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 174). 193
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 765-766. 194
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 54-55. 195
Constituição e tratados internacionais de direitos humanos. 196
Direitos e garantias fundamentais. 197
O objetivo de ambas as normas e acrescer a lista de direitos e garantias fundamentais do ser humano que, por isso, não devem buscar o conflito, mas a complementação. O resultado é a garantia de maior efetividade aos seus termos, aplicando-se, portanto, a norma mais favorável. (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 765-766).
60
soberania constitucional, passaram a estabelecer o caráter supralegal daquelas
normas não mais pela questão contratual dos tratados internacionais, mas pelo
efetivo caráter de especialidade das normas relativas aos direitos humanos.198
Explica-se: ainda que as normas em apreço sejam oriundas de acordos
externos, e por isso tenham a já concedida prevalência contratual, no que tange aos
tratados internacionais de direitos humanos é imperativo reconhecer: a) a relevância
a si atribuídas pelos artigos da Constituição da República; e b) a essencialidade
destas normas para a preservação do indivíduo em sua melhor condição de
exercício da cidadania.
O importante seria considerar, nestes termos, que ainda que a legislação
oriunda do plano externo, no estender destes doutrinadores, não fosse hábil a
interferir nas disposições constitucionais, ela suspenderia a eficácia de qualquer
norma infraconstitucional que fosse com ela conflitante.199
A tese da infraconstitucionalidade foi, ainda, cada vez mais afastada nas
determinações doutrinárias, restando apenas, como se verá, por um determinado
prazo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. De qualquer forma, impera
dizer que a concepção versava exatamente sobre os argumentos relativos aos
tratados de caráter geral: a norma não poderia ser Constitucional, dada sua
soberania, seria portanto infraconstitucional, como qualquer outro tratado.200
A controvérsia pretendeu ser superada, aparentemente, pela
promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, que agregou ao texto
constitucional o já citado §3º ao então vigente art. 5º. Ocorre que, não obstante a
plausível intenção do legislados, os termos superficiais e a delimitação deficitária da
questão acabaram por abarcar inúmeras novas justificativas para sustentação das já
mencionadas teses teóricas.
198
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 515. 199
Veja-se que não há revogação. O tratado internacional de direitos humanos não revogaria a lei antiga e não seria revogado pela lei nova, ele simplesmente inviabilizaria sua aplicação ao atuar como uma verdadeira peneira entre a disposição constitucional e a regulamentação infraconstitucional, tornado esta verdadeira letra morta, ainda que sem interferir em sua efetiva vigência. (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, j. em 22-11-2006, p. 28). 200
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 62-64.
61
Pode-se citar, inicialmente, os partidários da tese da
infraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, os quais
argumentam que o constituinte derivado estabeleceu uma forma específica de
elevação daquelas normas ao status constitucional,201 vez que elas só poderiam,
portanto, constituir legislação ordinária quando integradas da forma originalmente
prevista pela Carta de 1988.202
Aqueles que defendiam a mencionada tese da constitucionalidade, por
sua vez, desenvolvem ferrenha crítica ao enunciado do dispositivo, afirmando que
seria tanto melhor se o artigo dissesse, expressamente, que os direitos oriundos dos
tratados internacionais de direitos humanos integram o texto constitucional.203
Afirma-se, inclusive, que a incongruência é ainda mais clara quando são
estabelecidas formas distintas de incorporação de tratados de mesma identidade.
Ou seja, dois tratados internacionais, em que pesem serem ambos protetores dos
direitos humanos, podem ter caráter diverso no ordenamento pátrio (sendo um
equivalente as normas constitucionais e o outro não), em flagrante ofensa ao
princípio da isonomia.204
Estes teóricos ainda, com o fim de superar definitivamente a questão e
reafirmar o caráter inegavelmente constitucional dos direitos oriundos dos tratados
internacionais de direitos humanos, declaram que a consequência mais expressiva
da EC n. 45/04 é a possibilidade de formalização da equiparação constitucional.
Nestes termos, todos os tratados internacionais de direitos humanos já seriam, como
já dito, materialmente constitucionais, facultando-se ao legislador pátrio a concessão
do caráter formalmente constitucional a estes mesmos dispositivos com a aprovação
201
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 72. 202
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 35 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 297. 203
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 71. 204
Agrava-se a situação quando se concebe a possibilidade de um tratado secundário, interpretativo ou complementar de um principal já ratificado, puder obter a equivalência as normas constitucionais e seu principal não, tendo em vista a distinção do quorum de aprovação no Poder Legislativo. (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 772).
62
pelo quorum qualificado disposto no §3º do art. 5º daquela norma.205 Busca-se, de
qualquer forma, a predominância da substância sobre a forma.206
Entre os adeptos da categoria da supralegalidade, por fim, em grande
semelhança com a argumentação suscitada pelos partidários da
infraconstitucionalidade, estabeleceu-se que a edição da emenda mencionada
confirma a pretensão da Carta de manutenção de seu status exclusivo de norma
suprema.207 Tanto que não bastaria a mera incorporação dos tratados internacionais
para que estes aderissem a Constituição, mas sua votação especial e aprovação
por, no mínimo, três quintos dos membros das respectivas casas.208 Afirma-se, neste
sentido, que não é preciso que a Constituição se diga superior aos tratados, sejam
eles relativos a direitos humanos ou não.209
No entanto, como já fundamentado por estes teóricos antes do advento
da emenda constitucional em análise, os tratados internacionais de direitos humanos
guardam relevância tamanha em relação a matéria que tutelam que seria
incongruente, dados os aspectos do expansão destes direitos no plano internacional,
dar primazia as normas infraconstitucionais em prejuízo daquelas normas.210
Vale mencionar, por fim, que problemática se estende além, abarcando
agora a colocação hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos que
foram aprovados antes do advento da Emenda Constitucional 45/04.
Cita-se, quanto à questão, apenas duas perspectivas: a) os tratados já
aprovados foram recepcionados pela nova disposição constitucional, aderindo assim
à nova normatização, ou seja, possuem inequívoca equivalência as normas
205
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 72. 206
Entende-se que a preservação destes direitos é muito mais relevante do que o aspecto formal de enquadramento dos dispositivos jurídicos no plano hierárquico interno. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 74). 207
SILVA, José Afonso da. Comentários Contextual à Constituição. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 403. 208
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 10. 209
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 5. 210
Como se aprovados pelo quorum especial. (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 28).
63
constitucionais;211 e b) a legislação internacional já possui, naturalmente, o caráter
de norma constitucional, integrando o bloco de constitucionalidade, assim, de acordo
com a vontade do legislador, fica autorizada a nova votação do tratado internacional
de direitos humanos para que este se torne, enfim, formalmente constitucional.212
Inobstante toda construção doutrinária aqui colocada, é possível observar
no âmbito do Supremo Tribunal Federal uma forma peculiar de interpretação das
normas constitucionais e do ordenamento jurídico interno e externo, que ensejou
uma conturbada e complexa evolução jurisprudencial naquela corte no que tange a
recepção dos tratados internacionais. Esta questão será posta, desta forma, no
próximo tópico, a garantir-lhe a devida relevância, bem como para o melhor
desenvolvimento do tema.
2.4. EVOLUÇÃO DO TEMA NO ÂMBITO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
É imprescindível para a conclusão deste estudo a análise do
desenvolvimento histórico da questão de internalização dos tratados internacionais
de direitos humanos no âmbito do Supremo Tribunal Federal que, como dito
anteriormente: a) tratam de diversos casos; b) datam de muitos anos; e c)
apresentam profunda divergência em suas razões de decidir.
A construção que se dará nas próximas linhas, face esparsa abordagem
do tema na doutrina, terá como material básico de acompanhamento as construções
e indicações do Ministro Gilmar Mendes em seu voto-vista proferido para julgamento
do Recurso Extraordinário n. 466.343-1/SP. Trata-se, efetivamente, do melhor
material de análise que trate sobre a integralidade do tema proposto.213
O primeiro caso a suscitar o tema se deu com o julgamento do Pedido de
Extradição n. 07, entre 1913 e 1914, onde se estabeleceu a prevalência do direito
211
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 72. 212
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 790-791. 213
Esta linha de análise se justifica pela existência descompassada de referências históricas em obras como de Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli ou André Ramos. Enquanto estes doutrinadores documentam apenas de forma parcial a evolução do tema da internalização dos tratados internacionais de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes aborda detalhadamente os julgamentos que antecederam a presente análise e as teorias que prevaleceram em cada oportunidade.
64
internacional sobre a legislação interna.214 Nesta ocasião, prevaleceu entre os
julgadores o entendimento de que o tratado internacional, ao aderirem ao
ordenamento jurídico nacional, tem o poder de revogar a legislação nacional que
seja com ele conflitante. No entanto, dada sua integração e a subsistência do pacto
contratual internacional, após a internalização este guardaria o aspecto de legislação
supralegal, não podendo ser revogado por lei brasileira nova,215 salvo em caso de
efetiva denúncia.216
Tal precedente foi citado e seguido, posteriormente, nos anos de 1943 e
1951 (Apelação Cível n. 7.872 e Apelação Cível n. 9.587, respectivamente), em
julgamento de casos análogos.217 Têm-se, nestes termos, que a Suprema Corte
esteve, por em média 50 anos, inclinada ao reconhecimento da superioridade do
ordenamento internacional à legislação ordinária do país, reafirmado nas duas
ocasiões que o caráter contratual dos tratados internacionais, bem como seu caráter
especial de regulamentação, deveriam prevalecer à mera produção do Poder
Legislativo brasileiro.218
Contudo, exatamente no ano de 1977, por ocasião do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 80.004/SE, que tratava sobre a aplicabilidade da
Convenção de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas
Promissórias, este posicionamento se deslocou. A Corte passou, naquela
oportunidade, ao entendimento de que o tratado integrado ao ordenamento jurídico
interno tem status de legislação infraconstitucional, revogando as leis que o
precederam, mas, naturalmente, sendo revogados por aquelas que o sucederam.219
Fortemente criticada pelos internacionalistas, esta teoria teria marcado,
na visão de alguns, um retrocesso lamentável na colocação do Brasil no que tange a
preservação dos acordos internacionais e a atenção do país a estas disposições
214
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. 1º vol. Rio de Janeiro: Renova, 2004, p. 130. 215
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 62. 216
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 26. 217
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 23-24. 218
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 24-27. 219
O início da vigência do princípio lex posterior derrogat legi priori no âmbito do Supremo Tribunal Federal no que tange a integração dos tratados internacionais. (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 11-12)
65
normativas.220 Enfim, ainda que colocada a mencionada problemática, a nova
perspectiva subsistiu com o fundamento no sentido de que a norma oriunda dos
tratados internacionais, como qualquer outra vigente no país, estava sujeita ao
princípio da anterioridade.221
Continuamente, após o advento da Constituição da República no ano de
1988, passado razoável período de tempo desde o último pronunciamento, mais
precisamente no ano de 1995, o Supremo Tribunal Federal volta a debater a
questão dos tratados internacionais em plenário.222 Nesta oportunidade o caso em
apreço já versava, especificamente, sobre tratados internacionais de direitos
humanos e a questão da prisão civil do depositário infiel.223 Tratava-se, neste caso,
da possibilidade da prisão do devedor fiduciário, em atendimento a determinação
constitucional,224 em face da disposição do Pacto de São José da Costa Rica, que
admitiria apenas a prisão civil do devedor de alimentos.225
A resolução se deu, no entanto, sem enfrentar a questão do conflito entre
aquelas normas, vez que nesta ocasião tornou a prevalecer o entendimento da
incidência da legislação interna em detrimento do tratado internacional. A
justificativa, no entanto, difere-se significativamente daquela formalizada no ano de
1977. Nesta oportunidade os Ministros determinaram que a existência de Decreto
Lei n. 911/69, que regulamentava o instituto, ou seja, uma legislação especial que
garantisse sua incidência, prevaleceria em face da legislação geral e aberta
apresentada pelo Pacto de São José da Costa Rica.226
220
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15 ed. 1º vol. Rio de Janeiro: Renova, 2004, p. 131. 221
É a supremacia da última vontade do Poder Legislativo, que ao promulgar lei nova entende que o texto anterior já não serve a regulamentação daquelas situações. (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 11-12). 222
Mais exatamente no julgamento do HC n. 72.131/RJ. (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 13). 223
HC n. 72.131/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º-8-2003. 224
Art. 5, inc. LXVII, da Constituição da República: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>, em 6-10-2010, às 7:30). 225
Art. 7º do Pacto de São José da Costa Rica: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento
de obrigação alimentar.” (Disponível em
<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>, em 6-10-2010, às 7:35) 226
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 13-14.
66
A tese da infraconstitucionalidade das normas oriundas de tratados
internacionais foi novamente mencionada, ainda, no julgamento da medida cautelar
na ADI n. 1.480-3/DF, prevalecendo o entendimento de que estes diplomas
equiparam-se, sem ressalva, à legislação ordinária. Tal entendimento foi
reafirmando ainda, por fim, nos julgamentos do RHC n. 79.785, do RE n. 206.482-
3/SP e do HC n. 81.319-4/GO, mantendo-se a tão mencionada tese da
infraconstitucionalidade.227
No entanto, como se verá, o grande avanço da matéria naquela Corte se
deu, efetivamente, no julgamento dos RE n. 466.343-1 e HC n. 88.585-8, onde as
teses de prevalência daqueles diplomas sobre a legislação interna foram
expressamente declaradas. Esta alteração significativa da perspectiva teórica será
analisada, com maiores detalhes, no próximo tópico, onde se objetivará a
apresentação clara dos motivos que levaram os Ministros ao reconhecimento de
caráter especial das normas oriundas do plano internacional no que tange à matéria
de diretos humanos.
2.5. O PROBLEMA DA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR FIDUCIÁRIO COMO PANO
DE FUNDO PARA A DISCUSSÃO SOBRE O TEMA NO BRASIL (RE N. 466.343-1
E HC N. 87.858-8)
A controvérsia acerca da prisão civil do depositário infiel está sediada,
como já brevemente apontado, na discrepância entre as disposições da Constituição
da República e do Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional de
direitos humanos do qual o Brasil é signatário. Enquanto aquele prevê a
possibilidade de prisão do depositário infiel, este admite apenas o cerceamento de
liberdade do devedor de alimentos.
Há, ainda, para construção do caso, a vigência do Decreto Lei n. 911/69,
que equipara o devedor fiduciário ao depositário infiel, viabilizando assim a
decretação de prisão do indivíduo pelo mero inadimplemento de dívida civil.
227
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 14.
67
As mais recentes e significantes abordagens do tema da incorporação
dos tratados internacionais de direitos humanos conjugados à possibilidade da
decretação da prisão do depositário infiel se deram no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, em relação à possibilidade da prisão civil do depositário infiel, mais
especificamente no recente julgamento dos RE n. 466.343-1 e HC n. 88.585-8.
Como visto anteriormente, oportunizada a colocação desta problemática
naquela Corte, em meados dos anos 1995 (HC 72.131/RJ), teve-se a inevitável
conclusão pela declaração de paridade normativa entre os tratados internacionais de
direitos humanos e a legislação ordinária pátria.228
Este posicionamento obteve sua primeira manifestação de discordância
em relação aos tratados internacionais de direitos humanos, após o advento da
Constituição da República, quando no ano de 2000, proferindo voto nos autos do HC
79.758/RJ, o Ministro Sepúlveda Pertence apresenta a primeira manifestação
voltada ao reconhecimento do caráter especial daquelas normas e a sua
superioridade à legislação ordinária.229
A mais recente manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema
abarca exatamente esta questão, a superação da antiga tese da legalidade
enquanto equiparação entre leis ordinárias e tratados internacionais de direitos
humanos, bem como o embate entre supralegalidade vs. constitucionalidade.
O primeiro voto publicado no julgamento daqueles recursos, foi aquele
proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no RE n. 466.343-1/STF em 22 de dezembro
de 2006. Nesta oportunidade, ao analisar a possibilidade de prisão civil em
alienação fiduciária, o magistrado apresenta toda evolução histórica da temática,
como já exposta anteriormente neste estudo.
O primeiro caminho traçado pelo julgador, além da apresentação do tema
e da colocação das quatro teorias que versam sobre a hierarquia das normas
oriundas dos tratados internacionais de direitos humanos (supraconstitucionalidade,
228
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 63-64. 229
Nesta oportunidade, ainda que tenha prevalecido a tese da equiparação a lei ordinária, o Ministro sustenta que especialidade das normas relativas a proteção da pessoa humana merecem, face a redação do art. 5º, §2º, da Constituição da República, proteção especial. (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 21-22).
68
constitucionalidade, supralegalidade e infraconstitucionalidade) foi o afastamento da
possibilidade de equiparação destas normas às disposições constitucionais.
Veja-se, neste sentido, que na sua interpretação as próprias disposições
da Constituição da República resultam na inevitável conclusão de que a Carta impõe
a preservação de sua soberania, por razões lógicas. Tal questão é reafirmada,
inclusive, pela exigência de que: a) o tratado atenda as formalidades exigidas no
processo constitucional de incorporação das normas internacionais; e b) as normas
oriundas dos tratados não ofendam a ordem constitucional vigente, sob pena de
inconstitucionalidade.230
Na visão do Ministro esta tese seria confirmada, ainda, pela Emenda
Constitucional 45/04, que concretizou a concepção de que aqueles diplomas
normativos precisam, necessariamente, da aprovação especial pelo Poder
Legislativo para comporem o catálogo constitucional de direitos e garantias
fundamentais,231 sob pena de se caracterizarem como legislação infraconstitucional.
A questão se pôs, então, da seguinte forma: ao mesmo tempo que não
era possível conceber a equiparação dos tratados internacionais de direitos
humanos fora do cumprimento das disposições do §3º do art. 5º da Constituição da
República, tornava-se incongruente manter o antigo entendimento da menor
importância destas normas internacionais, que dado o caráter especial de seu objeto
de tutela mereciam reconhecimento e garantia de eficácia no plano interno dos
Estados Soberanos, especialmente, in casu, o Brasil.
É neste contexto que o Ministro resgata o antigo posicionamento, já
mencionado, do Ministro Sepúlveda Pertence, relativo à supralegalidade dos
tratados internacionais de direitos humanos, a fim de aplicá-los, nesta oportunidade,
aos diplomas normativos que integram o ordenamento jurídico brasileiro, mas que
foram aprovados fora do quorum qualificado instituído pela Emenda Constitucional n.
45/04.
Fundamenta-se, em síntese, que da mesma forma que esta reforma
constitucional demonstra claramente a não adequação da tese da
230
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 5. 231
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 10-11.
69
constitucionalidade daquelas normas, por outro lado demonstra a efetiva
especialidade daqueles diplomas. Diz-se, assim, que sua importância fica evidente a
partir do momento que resta possível transformá-los, concretamente, em normas
equivalentes as disposições da Constituição da República.232
Some-se a este fato, ainda, a expressiva expansão do tema no plano
externo, com o paulatino reconhecimento, no âmbito do direito comparado, da
essencialidade da abertura dos Estados soberanos a toda forma de tutela da pessoa
humana. Citou-se, ainda que passageiramente, por fim, o tema que nos é tão caro
neste estudo: o Estado Constitucional Cooperativo, de Peter Häberle, que
fundamentaria a inovação jurisprudencial da Suprema Corte brasileiro no que tange
a integração com a comunidade internacional, especialmente quanto a proteção dos
direitos humanos.233
Nestes temos, a aventada tese da supralegalidade teria, nos moldes
estabelecidos pelo Ministro Gilmar Mendes, o condão de possibilitar a aplicação do
tratado ao passo que, a despeito de não interferir nas disposições da Constituição
da República, paralisa a norma infraconstitucional que regulamenta uma situação de
ofensa aos direitos humanos.234
Ou seja, no caso em concreto, relativo à prisão civil do depositário infiel,
ainda que o tratado não tivesse o condão de atingir a disposição constitucional
inscrita no art. 5º, LXVII, ele seria hábil para paralisar a incidência do Decreto 911/69
ao caso, o que impossibilitaria a equiparação do devedor fiduciário ao depositário
infiel, inviabilizando, logicamente, seu cerceamento de liberdade.235
Contudo, em contraponto à referida construção lógica manifesta-se
expressamente o Ministro Celso de Mello, em julgamento nos autos do HC n.
88.585-8. Sua análise inicia com a colocação clara da relevância e do grau de
importância que deve ser conferido aos tratados internacionais de direitos humanos,
232
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, p. 11-12. 233
A menção do Ministro a teoria é absolutamente insuficiente a qualquer comentário mais pormenorizado, ele trata de indicar o instituto e declarar que, por conta dele, os Estados já não se voltam apenas para si, passando a voltar-se para os demais Estados enquanto participante de uma comunidade mundial (STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, p. 14). 234
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 28-29. 235
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 60-61.
70
especialmente no que tange aos pontos específicos de tutela da dignidade da
pessoa humana, a fim de assegurar, irrestritamente, o pleno exercício da cidadania
a qualquer indivíduo.236
Abre-se, no voto em apreço, a particularidade de seu posicionamento no
que tange à reconstrução histórica do fundamento da prisão civil por dívida,237 que
não constitui pena, mas mera forma de coerção jurídico processual que objetiva a
tendência de motivação do devedor ao adimplemento da dívida.238 Paralelamente,
argumenta o magistrado que a normatização brasileira a respeito da prisão civil do
depositário infiel guarda a seguinte particularidade: a Constituição da República não
instituí definitivamente o procedimento, mas possibilita que o legislador derivado o
faça, por ato próprio e discricionário.239
Esta brecha legislativa, que o Ministro opta por denominar “espaço de
autonomia decisória”, poderia ser naturalmente ocupada pelos tratados
internacionais de direitos humanos, ainda mais se lhes atribuírem o caráter já
suscitado de supralegalidade. Tal perspectiva enfatizaria mais uma vez, de qualquer
forma, a prevalência hierárquica daquelas normas em face da legislação ordinária.240
A seguir, estabelecida a importância das normas relativas à proteção
humana provenientes do plano internacional e devidamente incorporadas pelo
Estado brasileiro, reconhecendo-se assim a impossibilidade de caracterização da
infraconstitucionalidade daquelas, o Ministro trata de abarcar toda a teoria
doutrinária relativa à configuração da elevação de status constitucional aos tratados
internacionais de direitos humanos, com o fim de superar a já acatada
supralegalidade.
Nestes termos, estabelece-se todo embasamento teórico relativo à
caracterização do aspecto materialmente constitucional dos tratados internacionais
236
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 4-13. 237
Cita o magistrado a espécie de tratamento que se dava ao devedor civil na Roma antiga, mais especificamente no período do sec. V a.c. (STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 2-3) 238
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 13-14. 239
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 15-18. 240
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 18.
71
de direitos humanos, como já delimitado por Flávia Piovesan, bem como a idéia de
incorporação destas normas ao bloco de constitucionalidade.241 Estas colocações
são acrescidas, ainda, pela evidente percepção de que o magistrado inclina-se,
determinantemente, a concepção formulada pela citada constitucionalista de que
passam a existir, após a Emenda Constitucional 45/04, os tratados internacionais de
direitos humanos: a) com caráter materialmente constitucional (aprovados pelo rito
comum); ou b) com caráter formal e materialmente constitucional (aprovados com
quorum qualificado).242
O argumento que concretiza o posicionamento do Ministro acerca da
constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos encontra-se, no
entanto, na certeza de que a proposta do §3º do art. 5º da Constituição da República
era, efetivamente, a concretização do status constitucional daquelas normas,
independente de seu quorum de aprovação na época do processo de internalização,
vez que partiu de si a proposta ao Congresso Nacional para a referida reforma.243
Há que se relevar, finalmente, a sua afirmação que considera, inobstante
a elevação dos tratados internacionais de direitos humanos ao status de norma
constitucional, que este entendimento não ofende, de forma alguma, a soberania da
Constituição, vez que todo o ordenamento pátrio está adstrito as normas ali
instituídas. Esta característica possibilitaria, inclusive, sua decretação de
inconstitucionalidade.244
Estes são os termos em que se encontra, portanto, o posicionamento do
Supremo Tribunal Federal no que tange à hierarquia dos tratados internacionais de
direitos humanos, prevalecendo (com apertada maioria245) a teoria da
supralegalidade das normas internacionais de direitos humanos.
241
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 23-25. 242
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 27-28. 243
STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 37-38. 244
O Ministro cita, para tanto, Pontes de Miranda, afirmando que “Também ao tratado, como a qualquer lei, se exige ser constitucional”. (STF, HC 87.858-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto-Vogal Min. Celso de Mello, j. em 12-3-2008, p. 44-46/51). 245
Cinco Ministros se posicionaram pela supralegalidade (Gilmar Mendes, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito), três pela constitucionalidade (Celso de Mello, Cezar Peluso e Eros Grau), tendo os demais não se determinado acerca do tema específico (Marco Aurélio, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa).
72
Não obstante tal controvérsia, no entanto, impera dizer que ambos
posicionamento tenderam a impossibilidade da decretação da prisão civil do
alienante fiduciário, seja por inaplicabilidade de disposição constitucional ou da
própria legislação ordinária regulamentar do instituto.
2.6. EXISTE UM POSICIONAMENTO UNÍVOCO NO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL EM FACE DESTA MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL?
Posta toda a questão abordada no presente capítulo, resta delinear o
resultado da conclusão final do Supremo Tribunal Federal no que tange à
incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos, independente da
questão posta a respeito da possibilidade da prisão civil do devedor fiduciário.
Não é de difícil percepção que, não obstante o afastamento da
possibilidade de cerceamento de liberdade daquela modalidade de devedor civil, a
jurisprudência da Suprema Corte se estabelece, aparentemente, de forma
absolutamente distinta quanto o assunto versa sobre a hierarquia dos tratados
internacionais de direitos humanos (ora pendendo para supralegalidade, ora para a
constitucionalidade).
Há de relevante nesta característica, no entanto, que ainda que as
conclusões finais dos Ministros direcionem-se a teorias objetivamente diversas, os
fundamentos que o levaram até aquelas conclusões em muito se coincidem. Cabe
dizer, acerca desta afirmação, que não há um grande rol de fundamentação nas
decisões em comento, vez que se mencionam, de fato, poucos temas para subsidiar
a decisão final e, dada cada interpretação, justificar a adoção do posicionamento
colocado ao pleno do Supremo Tribunal.
Veja-se, como exemplo, que ambos convergem expressamente quanto ao
reconhecimento da relevância dos direitos oriundos daqueles tratados, bem como ao
grau de importância que o ordenamento jurídico brasileiro deve conceder a eles,
tendo em vista, especialmente, a especialidade do tema que regulamentam.
Afirmam, neste sentido, que normas internacionais que tenham o condão de instituir
direitos e garantias fundamentais, a fim de dar mais ênfase a tutela da dignidade da
73
pessoa humana, já não podem ser concebidas como uma norma qualquer, estando
o Estado obrigado a desenvolver melhores mecanismos de implementação.
Pode-se mencionar, ainda, a questão do absoluto conflito entre as razões
expostas pelos Ministros que, mesmo em face do reconhecimento mútuo da
supremacia da Constituição, atribuem a esta característica uma conotação
interpretativa diversa. Vê-se, em confirmação, que enquanto o Ministro Gilmar
Mendes acredita que tal requisito (supremacia) reafirma a impossibilidade de
equiparação entre os tratados internacionais de direitos humanos e as disposições
constitucionais, o Ministro Celso de Mello afirma que mesmo diante da disposição da
Constituição da República, cuja redação faz presumir que a Carta pretendia a
elevação destes ao patamar de norma constitucional, ficará o tratado, de qualquer
forma, adstrito à possibilidade de controle constitucional.
Parece, diante destes fatos, que a resposta à pergunta proposta no título
deste subitem, não seria, portanto, de todo exata e conclusiva, vez que a resposta
ao questionamento pode se dar de maneira diversa, deste que delimitado
distintamente o objeto de análise.
Diz-se, desta forma, que há, de fato, um posicionamento unívoco no
âmbito do Supremo Tribunal no que tange a afirmação de conceitos como:
supremacia da Constituição, afirmação de direitos fundamentais, necessidade de
abertura do plano interno ao plano internacional e, especialmente, necessidade de
alteração da jurisprudência recorrente da Corte acerca da hierarquia atribuída aos
tratados internacionais de direitos humanos.
Em contrapartida, ao observar apenas a decisão final dos Ministros, assim
determinando qual o efetivo status dos tratados internacionais de direitos humanos
no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se a bifurcação da jurisprudência, que pende
tanto à supralegalidade quanto à constitucionalidade, não havendo, desta forma
uniformidade.
74
3. ANÁLISE DA ADEQUAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL À TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO DE
PETER HÄBERLE
Este capítulo tem por finalidade a análise do grau de adequação das
decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal à teoria do Estado
Constitucional Cooperativo de Peter Häberle. Optou-se, no entanto, para a restrição
da análise a votos proferidos exclusivamente pelo Ministro Gilmar Mendes em casos
que versaram sobre a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos
e sua aplicabilidade no plano jurídico interno.
A justificativa a restrição é simples: como demonstrado no capítulo
anterior, o referido magistrado não só conhece a concepção do Estado
Constitucional Cooperativo como a invocou expressamente para fundamentar a
postura adotada relativa ao status de supralegalidade dos tratados internacionais de
direitos humanos. Nestes termos, dada a particularidade de sua menção, pretende-
se avaliar se o julgador, efetivamente teria se valido dos pressupostos da teoria
originalmente concebida por Häberle no julgamento dos recursos extraordinários n.
466.343/SP e n. 511.961/SP, além da arguição de descumprimento de preceito
fundamental n. 130 e do Habeas Corpus n. 91.657/SP.
3.1. ELEMENTOS DO CONCEITO DE ESTADO CONSTITUCIONAL
COOPERATIVO
Para melhor aferição do grau de compatibilidade das decisões a serem
analisadas a luz da teoria do Estado Constitucional Cooperativo se faz necessário,
ainda que resumidamente, identificar alguns elementos da proposta do professor
Peter Häberle na identificação do conceito de Estado Constitucional Cooperativo.
Diz-se, assim, que o modelo de Estado constitucional na sua feição
clássica já reconhecia a possibilidade (e a desejabilidade) de que os Estados
atuassem em cooperação. Portanto, desde os primórdios do direito internacional
moderno que as relações internacionais são forjadas por uma comunidade mundial
de Estados. Comunidade esta que, a partir da segunda metade do século XX, forja
75
inúmeros pontos de convergência, em especial, no tocante à tutela dos direitos
humanos246.
Ocorre que, como foi discutido no capítulo de abertura deste trabalho, a
noção de “estado constitucional cooperativo” pressupõe a presença de determinados
elementos que, em conjunto, postulam o desenvolvimento de um direito
internacional de cooperação que transcende o interno dos Estados soberanos,
superando definitivamente a visão consolidada em torno de uma certa idéia de
convivência pacífica entre os Estados.247
Esta proposta teórica está interligada, conforme construções do autor, a
presença de quatro elementos constitutivos: (a) presença de critérios institucionais de
solidariedade; (b) disponibilização para a realização conjunta de objetivos comuns; (c) o
reconhecimento da importância da tutela de direitos humanos/fundamentais; e (d)
predisposição à abertura ao plano internacional, que deveriam para melhor aplicação estar
previstas nas Cartas Constitucionais de cada Estado.
Pode-se abordar, inicialmente, os critérios institucionais de pretensão
teórica, norteados mais propriamente pela exigibilidade do reconhecimento de que a
condição de sociedade internacionalmente formada implica a “realização
internacional 'conjunta' das tarefas como sendo da comunidade dos Estados”,248
bem como a necessidade destes, enquanto membros igualitários de uma mesma
comunidade, estarem à disposição uns dos outros, estabelecendo critérios concretos
de solidariedade na busca de uma evolução social conjunta.249
Vale dizer, neste momento, que estes critérios de cooperação dificilmente
serão identificados em decisões judiciais, pois, como já apontado, a abertura ao
plano externo em termos de disponibilidade e propostas comuns são possíveis,
quase que absolutamente, se analisadas do ponto de vista Institucional. Ou seja,
trata-se de verdadeira atuação das instituições que compõe uma Nação de abertura
246
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 69. 247
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 6-7. 248
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 70-72. 249
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 9.
76
e compartilhamento de propostas de desenvolvimento comum entre os demais
Estados da já apresentada comunidade internacional.
Veja-se, no entanto, que não se tratam de institucionalização limitada de
cooperação, como dizer que apenas o Poder Executivo, por exemplo, por atuar em
nome do Estado, estaria apto a promover estas relações, mas de verdadeira
integração disseminada, estando as Instituições aptas a promover a integração
nacional no tocante as suas atividades típicas.
Cite-se, como exemplo, a proposta do próprio Supremo Tribunal Federal
em formalizar um padrão de cooperação internacional entre as cortes jurisdicionais.
250 Estas relações tem a pretensão mínima de compartilhar modelos e experiências
jurisdicionais entre os Estados soberanos, a fim de proporcionar um diálogo
permanente em busca da conciliação de preceitos ou formas que trabalhem a
atuação conjunta na busca da evolução permanente da ordem jurídica internacional
e, consequentemente, interna. Trata-se da própria materialização da proposta do
teórico alemão.
Superada esta questão se faz necessário apontar, ainda, o elemento que
determina que a busca da cooperação passa, objetivamente, pela efetiva abertura
dos Estados soberanos ao plano internacional. Abertura esta que é de tal
importância que constitui, definitivamente, o elemento básico de identificação da
pretensão de um Estado em adotar o modelo cooperativo às suas relações externas.
Este elemento constitutivo se relaciona, por sua vez, diretamente com o
maior pressuposto de legitimação de um Estado e, como aqui considerado,
elemento implícito do conceito de Estado Constitucional Cooperativo. Diz-se, desta
forma, que o maior elemento de convergência entre as Nações é, atualmente, a
objetividade de compartilhamento dos critérios materiais de proteção da dignidade
da pessoa humana, enquanto forma de tutelar não só os cidadãos em suas nações,
250
Exemplos de propostas da qual a Corte brasileira é membro: Permanent Forum of the Supreme Courts of MERCOSUR, Conference of Constitutional Jurisdictions of Portuguese Speaking Countries – CPLP, BRIC - Brazil, Russia, India and China, entre outros. Disponível em <http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfCooperacao_en_us&idConteudo=160010>, em 28-10-2010.
77
mas também os estrangeiros e apátridas em qualquer lugar em que se encontrem.
Esta é, verdadeiramente, a identificação do arquétipo constitucional.251
Instituí-se exatamente neste ponto a essencialidade de que o Estado
soberano esteja aberto não só ao direito, mas também a interpretação das normas
instituídas no plano internacional. Fundamentalmente porque o arquétipo
constitucional se desenvolve a partir do processo de recepção e envio de normas e
interpretações normativas estabelecidas pelos Estados soberanos em relação aos
direitos humanos ou fundamentais. É este processo, principalmente, que possibilita
a troca de experiências e a evolução das formas de proteção, com o propósito de
garantir a cooperação não só no plano normativo, mas especialmente quanto a
forma de aplicação efetiva destes preceitos ao caso concreto. É, definitivamente, a
expansão da sociedade aberta dos interpretes constitucionais ao plano mundial,
como proposta do tipo ideal de Estado do ponto de vista do Direito Internacional
Comunitário.252
Pode-se esperar, nestes termos, que a decisão proferida pelo Ministro
Gilmar Mendes em seu voto-vogal hora em análise deveria, pensamos, estar de
acordo com as disposições da teoria ora exposta, vez que o Magistrado se refere
expressamente a esta, bem como a utiliza como razão de decidir. No entanto, do
que se infere das disposições utilizadas no julgado, pode-se perceber alguns
aspectos de discrepância entre os argumentos gerais do julgador e as construções
originais do professor Peter Häberle, especialmente quando nos atentamos à
solução proposta em relação hierarquia atribuída aos tratados internacionais de
direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio.
251
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 19. 252
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 5.
78
3.2. CASOS SELECIONADOS PARA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
3.2.1. Prisão Civil do Depositário Infiel (RE 466.343-1/SP)
Este recurso, como já apontado no capítulo anterior, versava sobre a
possibilidade de prisão civil do depositário infiel em alienação fiduciária. Pesava
sobre o caso a disposição do art. 5º, LXII, da Constituição da República, que
possibilita o cerceamento de liberdade por dívida oriunda de depósito, bem como do
Decreto n. 911/69, que equipara o devedor fiduciário ao depositário infiel.
Em contrapartida, o Pacto de São José da Costa Rica, tratado
internacional de direitos humanos devidamente internalizado ao ordenamento
jurídico brasileiro no ano de 1992, reconhece como única exceção à proibição da
prisão civil a do devedor de alimentos. Argumenta-se, portanto, que dado os termos
do art. 5º, §2º, da Constituição da República “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”,253 razão pela qual não haveria critérios no ordenamento jurídico pátrio
para manutenção do instituto da prisão civil por dívida em caso de depósito.
Ocorre que, a despeito da discussão central do feito, abriu-se no âmbito
do Supremo Tribunal Federal uma questão de adequação dos tratados
internacionais de direitos humanos ao plano jurídico nacional, ou seja, travou-se um
intenso debate, como já analisado, acerca da questão da colocação hierárquica
destas normas.
Neste contexto, o Ministro Gilmar Mendes, em oportunidade própria,
proferiu voto-vogal nestes autos e utilizou como base de sustentação de seu voto,
entre outros aspectos, a necessidade de atenção à teoria do Estado Constitucional
Cooperativo, de Peter Häberle, nestes exatos termos:
Não se pode perder de vista que, hoje, vivemos em um “Estado Constitucional Cooperativo”, identificado pelo Professor Peter Häberle como aquele que não mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que disponibiliza como referência para os outros
253
Disponível em< www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>, em 9-10-2010, às 15:30.
79
Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais.
254
Vale mencionar, inicialmente, que não é possível estabelecer relação
entre as considerações do Ministro e os critérios de disponibilidade objetiva dos
Estados à realização conjunta de tarefas ou a qualquer abertura solidária255 aos
demais participantes da referida comunidade mundial. Entretanto, parece que a
caracterização destes elementos para a construção do voto em apreço seria, por
hora, irrelevante, vez que a decisão a ser estabelecida pela Corte nesta
oportunidade não abarcava, de fato, tal questão.
Em contrapartida, quanto aos demais elementos, aponta-se, em primeiro
lugar, a possível verificação de reconhecimento pelo Magistrado da existência do rol
de direitos que, como no caso dos direitos humanos, transcendem a questão da
nacionalidade da norma. Este chega a mencionar, neste ponto, a irrelevância de
persistirem os debates acerca da relação entre o Direito Interno e o Direito
Internacional (mencionadas as teorias monistas e dualistas) quando estiverem em
questão lides que tratem sobre direitos fundamentais.256
Parece, neste aspecto em particular, que o Ministro reconhece um
elemento substancial à construção do tipo de Estado Constitucional Cooperativo,
vez que coloca os direitos humanos entre os direitos presentes no arquétipo
constitucional, reconhecidos internacionalmente e imperativos diante de sua
relevância e que, especialmente neste caso, fornecem subsídios que asseguram a
proteção da dignidade da pessoa humana.
Aparentemente continua a atender a teoria, ainda, quando determina que
o desenvolvimento das relações sociais já não se supre meramente pelo Estado
Constitucional, pois este já não pode se reconhecer sozinho, devendo participar e
dar efetividade a preceitos internacionalmente consagrados em matéria de direitos
humanos. Ou seja, refere-se expressamente, como apontado na citação supra, à
abertura constitucional que os Estados soberanos devem promover em face do
desenvolvimento internacional de preceitos fundamentais.
254
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 14-15. 255
Enquanto desenvolvimento de ações objetivas que fornecessem auxílio específico a Estados necessitados. Não se trata de uma solidariedade abstrata, mas de tarefas efetivas que promovam mais igualdade e desenvolvimento comum. 256
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 2.
80
No entanto, quanto aos critérios efetivamente utilizados, impera
mencionar que a construção do elemento cooperativo formulada pelo Magistrado
não atende, salvo o critério apontado anteriormente, a determinados aspectos
teórico construídos pelo autor alemão. O critério de abertura ao plano internacional
é, inclusive, desvirtuado, principalmente quando aquele cita que “ainda que, numa
perspectiva internacional, muitas vezes a cooperação entre os Estados ocupe o
lugar de mera coordenação e de simples ordenamento para a coexistência pacífica
(ou seja, de mera delimitação dos âmbitos das soberanias nacionais) [...]”.257
Explica-se: este breve trecho, extraído do voto do Ministro Gilmar
Mendes, constituí uma transcrição literal da obra de Peter Häberle.258 No entanto, é
preciso considerar que o autor se refere a esta questão enquanto colocação do
quadro atual de relações desenvolvidas internacionalmente entre os Estados
soberanos.259 A aderência a idéia de Estado Constitucional Cooperativo, entretanto,
constitui exatamente o oposto, como se pode inferir da redação da obra do autor ao
determinar que “O Estado constitucional cooperativo se coloca no lugar do Estado
constitucional nacional. Ele é a resposta jurídico-constitucional à mudança do Direito
Internacional de direito de coexistência para o direito de cooperação na comunidade
de Estados [...]”.260
É certo, e não se afirmará o contrário, que o quadro mundial de
cooperação ainda reflete em larga medida a relação de coexistência citada pelo
Ministro. Não se nega, igualmente, que a postura frente a esta questão também
pode ser alterada ou relativizada no âmbito interno de cada Estado, proporcionando
paulatinamente a adequação aos critérios de cooperação. Entretanto, é imperioso
colocar a questão de que a aderência e aplicação da teoria do Estado Constitucional
Cooperativo constitui, efetivamente, o avanço definitivo da idéia de coexistência
257
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 15. 258
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 47. 259
Trata-se, em verdade, do paradigma dos Estados soberanos. Com dito anteriormente, este trecho constituí uma parte da obra do autor alemão, onde se delimita que a relação internacional entre os Estados apresenta-se, de fato, como elemento de coordenação ou com a função de assegurar a mera coexistência pacífica entre aqueles. Pode-se, por óbvio, que a transcrição se refere a introdução da obra “Estado Constitucional Cooperativo”, onde se pretende demonstrar em que aspectos há o abandono do modelo atual e de que forma se estabelece a evolução teórica. 260
HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução do original em alemão por Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 71.
81
pacífica para critérios materiais de reconhecimento e cooperação internacional no
desenvolvimento comum dos Estados. Trata-se de um engajamento mais enfático
em torno do ideal de cooperação, algo que o Ministro parece não assumir,
sobretudo, quando transcreve trecho que não versa sobre o estágio atual defendido
pelo jurista de Bayreuth.
Veja-se que esta teoria não se importa, propriamente, com qualquer
espécie de hierarquia de normas, seja no âmbito interno, seja no âmbito
internacional. Häberle atribui, de fato, maior legitimidade a norma instituída no plano
internacional dada a oportunidade de expansão dos aportes teóricos e,
especialmente, culturais na formulação daqueles dispositivos, vez que a participação
na construção dos elementos normativos estaria expandida ao plano mundial. Ou
seja, a maior participação social, na sua concepção, atribuiria mais legitimidade às
diretrizes normativas, exatamente como no plano da teoria constitucional do Estado
soberano.
Considera-se, no entanto, que seu maior elemento de verificação de
legitimidade de atos estatais é a preservação irrestrita da dignidade da pessoa
humana, por conseguinte, um critério de natureza eminentemente substantiva.
Coloque-se, nestes termos, que o autor parece deixar implícito que a negação a um
tratado internacional de direitos humanos seria irrelevante em casos em que o
Estado negasse aplicação a esta norma para aplicar outra, interna, mais benéfica ao
indivíduo. O critério de proteção estaria, neste caso, absolutamente acatado.
Aliás, esta justificativa resolveria a problemática posta como temerária
pelo Ministro a irrestrita elevação dos tratados internacionais de direitos humanos ao
grau de normas constitucionais. Na concepção deste, não seria recomendável
estabelecer que estas normas tivessem hierarquia constitucional, vez que poderiam
conter, localizadamente, normas de caráter estranho aos direitos humanos, ou seja:
“o risco de normatizações camufladas seria permanente”.261
A colocação do critério material de legitimidade proposto por Häberle a
esta questão seria facilmente superado, portanto, pela adoção do critério de
aplicação da norma mais favorável ao indivíduo. Apontados inclusive por juristas
261
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 6.
82
como, por exemplo, Valério de Oliveira Mazzuoli,262 este princípio interpretativo não
iria contra os elementos do Estado Constitucional Cooperativo e, ainda, superaria
definitivamente a discussão acerca da hierarquia entre as normas internas e os
tratados internacionais de direitos humanos. Todavia, esta não foi a opção tomada
pelo Magistrado. Tento ele a oportunidade de engajar-se em uma cooperação mais
estreita acaba por recuar e defender a tese da supralegalidade, invocando, para
tanto, a existência de riscos e supostas inseguranças correlatas.
Cumpre dizer, portanto, que apesar de considerar que, entre as teses
colocadas pelo julgamento em apreço a tesa da constitucionalidade seria aquela que
mais se compatibilizaria com o conceito de Estado Constitucional Cooperativo. Faz-
se questão de afirmar, no entanto, que parece mais imperioso deixar claro que os
tratados internacionais de direitos humanos não precisam, na concepção de
Häberle, ser mais que isso. Ou seja, sua característica de norma internacional que
versa sobre direitos e garantias fundamentais bastaria, por si só, como pressupostos
de aplicação imediata, restando absolutamente desnecessária qualquer abordagem
acerca de colocação hierárquica.
Ocorre que, diante de todo este contexto posto pelo voto proferido pelo
Ministro Gilmar Mendes, fica evidente a particularidade sensível de que a maior
pretensão do julgador parece ser, de fato, conciliar a preservação e efetividade dos
direitos fundamentais oriundos dos tratados internacionais de direitos humanos sem
que se coloque em xeque a noção de soberania da própria constituição brasileira.263
A teoria do Estado Constitucional Cooperativo presta-se para o Magistrado, nestes
termos, a mera justificativa para reconhecimento do grau de importância dos
tratados internacionais de direitos humanos, legitimada por uma abertura ao plano
internacional que, a despeito de mencionada, não se adéqua propriamente a
formulação do autor alemão.
Impera dizer, finalmente, que o voto proferido pelo Ministro nestes autos
restringiu-se, especificamente, a uma discussão posta exclusivamente no plano
interno brasileiro, ou seja, tratou-se sobre uma questão de hierarquia das normas,
enquanto Peter Häberle teria se atentado, ao que parece, a consideração de
262
. Curso de direito internacional público. 4.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 765-766 263
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 5.
83
efetivação dos preceitos fundamentais em comento de forma que se garantisse os
maiores elementos de implementação dos direitos humanos.
Nestes termos, define-se a questão de uma forma peculiar e
absolutamente restrita ao caso em concreto. Diz-se que, como se verá, a despeito
da referida decisão ter servido ao propósito da revogação da possibilidade da prisão
civil do depositário infiel, outros casos de violação de normas internacionais que
versem sobre direitos humanos podem não se resolver tão claramente,
especialmente quando se colocar a supralegalidade dos tratados internacionais em
matéria de direitos humanos em face a um conflito de normas que oponha,
exclusivamente, a Constituição e o Tratado (quando não houver, como neste caso
em concreto, norma infraconstitucional regulamentadora que possa ter seus efeitos
“paralisados” pelos tratados264).
Importa-nos definir, que dada toda a questão apresentada pode-se dizer
que a definição do grau de adequação da decisão à teoria do Estado Constitucional
Cooperativo é parcial, ainda que a conclusão final do julgador induzisse uma
colocação diferente,265 faz-se necessário afirmar que os fundamentos que norteiam
o julgado não estariam, totalmente, ligados a concepção original do teórico alemão.
3.2.2. Exigibilidade do Diploma de Jornalista (RE 511.961/SP)
O presente recurso versava sobre a incompatibilidade do Decreto-Lei n.
972/69 em relação à Constituição da República, vez que aquele exigia a devida
264
STF, RE 466.343-1/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Voto-Vogal Min. Gilmar Mendes, em 22-11-2006, p. 28. 265
Apresentou-se aqui, fora do objeto próprio de análise e por isso não abordado no curso do trabalho, que o Ministro Gilmar Mendes compreende, efetivamente, que a atenção ao Estado Constitucional Cooperativo se resolve pela colocação supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. Veja-se em suas palavras: “Não há dúvida de que, no Estado constitucional cooperativo, é mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não podem afrontar a supremacia da Constituição, mas têm lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária significa subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.” (sem grifo no original) (MENDES, Gilmar Ferreira; e RUFINO, André. A Influência do Pensamento de Peter Häberle no STF. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal?pagina=12>, em 3-10-2010, às 8:47).
84
comprovação de formação acadêmica em curso específico para o exercício da
profissão de jornalista.266 Argumentou-se, para tanto, que o decreto não fora
recepcionado pela Constituição da República, tendo em vista que violava direitos
fundamentais como a liberdade de expressão267 e o livre exercício de atividade
profissional.268
Na mesma linha de raciocínio, apontou-se como argumento,
subsidiariamente, a afronta do Decreto em questão à disposição do Pacto de São
José da Costa Rica, vez que este também guardava proteção à liberdade de
expressão,269 em termos estritamente semelhantes ao da Constituição brasileira.
Pleiteou-se, nestes termos, que independente da colocação hierárquica deste
tratado (constitucional ou supralegal), o dispositivo que regulamenta o exercício da
profissão de jornalista estaria irremediavelmente revogado.270
Diante deste quadro, na condição de relator do recurso em comento, o
Ministro Gilmar Mendes, após breve síntese dos fatos e argumentos postos à Corte,
determinou em longo voto que a interpretação dos dispositivos constitucionais
266
STF, RE 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 19-7-2009, p. 696-967. 267
Art. 5º da Constituição da República: incisos IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; e IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm, em 25-10-2010, às 7:30) 268
Art. 5º, inc. XIII, da Constituição da República: “XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” ((http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm, em 25-10-2010, às 7:35). Tratou-se, nesta oportunidade, sobre a impossibilidade de o Estado estabelecer restrições legais ao exercício da profissão de jornalista, vez que a atividade não exigiria, como alegado pelos recorrentes, conhecimento técnico específico. 269
Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão. 1. Toda pessoa tem o direito à
liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.(Disponível em
<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>, em 25-10-2010, às 8:25) 270
STF, RE 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 19-7-2009, p. 706.
85
suscitados impediam, especialmente diante dos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade, a regulamentação infraconstitucional do exercício da profissão de
jornalista no que tange à exigibilidade de formação superior.
Esta impossibilidade estaria ligada, especialmente, ao princípio do livre
exercício profissional. Veja-se, conforme sua construção, que a Constituição da
República assegura a todos o livre exercício de ofício, ressalvada a possibilidade de
regulamentação estatal por meio de lei, como já apontado. Ocorre que, ao seu ver, o
cabimento de regulamentação (imposição de restrição por meio do Estado) estaria
vinculado, obrigatoriamente, à existência de necessidades técnicas para a devida
prestação de serviço, bem como de risco à sociedade em estar diante de um
profissional que não fosse devidamente qualificado para a profissão como, por
exemplo, o desempenho da função de médico.
Avaliando-se, portanto, que inexistem conhecimentos técnicos e
específicos para desempenho da profissão de jornalista, o atendimento aos
princípios constitucionais em vigência impediriam o Estado, expressamente, de
exercer qualquer tipo de restrição ao exercício daquela profissão.
Não se quis dizer, conforme aponta claramente o Magistrado, que os
contratantes estariam impedidos de requerer comprovação de formação específica
de seus contratados ou, sequer, que não se mostrava razoável a um candidato a
profissão especializar-se por meio da formação acadêmica, mas que representa
clara ofensa à Constituição da República a instituição por parte do poder legislativo
de restrição direta ao exercício desta função.
Sustentou-se, igualmente, que a irregularidade da imposição estaria
expressa, ainda, pela ofensa ao princípio da liberdade de expressão, vez que o
desempenho da atividade estaria diretamente ligado a este direito fundamental. Ou
seja, na medida em que o Estado exige requisito específico para o desempenho
desta função ele estaria, ao mesmo tempo, não só dificultando o acesso à
informação pela população como estabelecendo critérios infraconstitucionais para o
efetivo exercício do direito de liberdade de expressão.
Nestes termos, dada todas as peculiaridades da profissão em apreço e
considerando a necessidade da máxima eficácia das normas constitucionais,
reconheceu o julgador que o art. 4º do Decreto-Lei n. 972/69, conforme requerimento
86
dos recorrentes, não fora recepcionado pela Constituição da República, restando
afastada a necessidade de comprovação da formação superior para o exercício da
profissão de jornalista. 271
Não obstante a toda construção teórica colocada pelo julgador, importa
realmente a temática deste estudo uma peculiaridade que se estendeu por diversas
páginas de seu voto, relativa propriamente a análise da compatibilidade do
dispositivo brasileiro infraconstitucional com o Pacto de São José da Costa Rica.
Ao colocar a questão em análise o Ministro faz considerações que se
aproximam a parte de suas razões de decidir já colocadas, em especial no que
tange ao exercício pleno do direito de livre expressão, vez que há significativa
semelhança entre os dispositivos aventados (o Pacto de São José da Costa Rica e a
Constituição da República) sobre este tema.
Guarda significativa relevância, no entanto, a citação promovida pelo
Ministro de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos em oportunidade
em que o Governo da Costa Rica propôs a sua jurisdição caso idêntico ao tema
levado ao Supremo Tribunal federal, ou seja, questionou a compatibilidade da
exigência de diploma de nível superior para o exercício da função de jornalista em
face à previsão do pacto de São José da Costa Rica acerca da liberdade de
expressão.272
Veja-se que, como no caso anterior, não poderá se inferir qualquer
menção à busca objetiva de realização de tarefas concretas entre os Estados
membros da comunidade internacional, bem como ao aspecto de solidariedade em
busca da evolução conjunta destes, vez que, novamente, são absolutamente
estranhos à resolução prática do caso concreto, que não propõe qualquer interação
institucional específica.
No entanto, no que se refere ao reconhecimento do direito fundamental à
liberdade de expressão ou ao grau de abertura do Estado brasileiro às fontes
normativas internacionais, bem como à interpretação dada no plano externo a estas
disposições, pode-se observar, de plano, relevante avanço em face da análise
anterior.
271
STF, RE 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 19-7-2009, p. 713-769. 272
STF, RE 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 19-7-2009, p. 767-784.
87
Restou absolutamente claro, neste caso, que o Magistrado não só
considerou os direitos oriundos do referido tratado como atribuiu significativa
relevância ao julgamento promovido no âmbito da Corte Interamericana de Direitos
Humanos supracitada. Pode-se dizer, inclusive, que não há como não perceber que
o Ministro reproduz razões de decidir em seu voto que foram concebidas,
originalmente, por aquela Corte, ainda que o faça antes de citar expressamente o
acórdão correspondente.
Fica evidente, neste sentido, que o julgador expande os horizontes de
análise da norma, abrindo-se claramente ao posicionamento adotado no plano
internacional para a resolução de casos concretos que são, como no presente,
idênticos ao debate proposto ao Supremo Tribunal Federal. Como já abordado no
capítulo de abertura deste trabalho, a consideração do Estado soberano das
perspectivas interpretativas colocadas no plano internacional é de especial
relevância a concretização dos objetivos da teoria do Estado Constitucional
Cooperativo.
A combinação de fatores que determina a integração dos Estados
participantes da comunidade mundial pode se dar, como visto, de várias formas.
Considera-se, no entanto, que o reconhecimento do plano normativo internacional e
a construção de formas concretas de tutela de direitos fundamentais constituem a
maior forma de verificação da abertura do Estado soberano ao plano externo.
Há, nestes termos, na presente decisão, uma verdadeira convergência
entre a interpretação dada pelo julgador nacional e a decisão da Corte internacional
a respeito da matéria aventada. Ou seja, é impossível não considerar que, neste
caso, o grau de adequação da decisão do Ministro Gilmar Mendes à teoria do
Estado Constitucional Cooperativo seria, de fato, máxima, vez que garantiu-se a
soberania do direito fundamental ao mesmo tempo que o Poder Judiciário brasileiro
se abriu ao plano externo para buscar formas de interpretação e razões de decidir.
Cabe considerar, no entanto, que não obstante esta evidente
compatibilidade de idéias, o caso guarda uma latente peculiaridade. Viu-se, quando
analisado o julgado anterior, que havia um conflito evidente entre as disposições da
Constituição da República e o Pacto de São José da Corta Rica, ocasião em que os
argumentos propostos pelo Ministro Gilmar Mendes acerca da abertura
constitucional ao plano normativo internacional serviram a sua decisão final, mas
88
foram significativamente incongruentes em relação à teoria do Estado Constitucional
Cooperativo.
Neste julgado, em particular, em que pese a significativa expansão da
análise promovida pelo Magistrado e a louvável aceitação de determinadas
premissas postas internacionalmente, impera mencionar que havia, da mesma
forma, evidente compatibilidade entre os dispositivos analisados.
Pode-se considerar, nestes termos, que a interpretação da norma
internacional, ainda que totalmente adequada ao conceito de Estado Constitucional
Cooperativo, foi de fácil aceitação, ao passo que não houve a necessidade, como se
verificou no caso anterior, de supostamente assegurar a soberania da Constituição
brasileira. Ou seja, tratou-se de uma combinação de dispositivos que, exatamente
nos mesmos termos das interpretações colocadas, apontavam para a mesma
direção.
3.2.3. Não Recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130)
A ação de descumprimento de preceito fundamental hora em apreço
versava sobre a suposta inadequação da chamada Lei de Imprensa (Lei federal n.
5.250/67) à ordem constitucional vigente em linhas muito semelhantes à
impugnação proposta no recurso extraordinário anteriormente analisado
(exigibilidade de diploma de jornalista). Suscitava-se neste caso, em especial, a não
recepção daquela norma pela Constituição da República, tendo em vista à afronta
de seus dispositivos aos direitos fundamentais insculpidos no art. 5º, incisos IV, V,
IX, X, XIII e XIV, além das disposições dos artigos 220 e 223, todos da Constituição
da República.273
O relator do caso, Ministro Carlos Ayres Britto, dispensadas as
peculiaridades de seu decisum, concedeu procedência total a ação, declarando que
a lei impugnada não fora, de fato, recepcionado pela ordem constitucional vigente.274
No entanto, conforme delimitação da temática proposta anteriormente,
importa a presente análise a manifestação do Ministro Gilmar Mendes que, após
273
STF, ADPF 130, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. em 30-5-2009, p. 14. 274
STF, ADPF 130, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. em 30-5-2009, p. 21-77.
89
formulação de longo voto, diferiu-se da decisão posta pelo relator para declarar
procedência parcial ao pedido inicial, considerando devidamente recepcionados os
dispositivos insculpidos na Lei 5.250/67 que versassem sobre o direito de respostas,
mais especificamente seus artigos 29 à 36.275
Esta construção se deu de duas formas distintas.
Em um primeiro momento o julgador reconhece que o direito à liberdade
de imprensa é indispensável para a manutenção da democracia, vez que a
disseminação da informação e abertura de questões ao debate social reforçam as
diretrizes do exercício do poder popular. Utiliza-se, para tanto, de relevantes
julgamentos ocorridos no âmbito das Supremas Cortes dos Estados Unidos da
América e Alemanha, transcrevendo, debatendo e reafirmando os argumentos
postos nestes julgamentos.
Assim, dada sua fundamentação e o respaldo da interpretação obtida no
direito comparado, o Ministro reconhece que, como nos termos do voto do relator,
determinadas disposições da Lei n. 5.250/67 ofendem o princípio constitucional da
liberdade de expressão, razão pela qual não seriam, de fato, recepcionadas pela
ordem constitucional posta.276
Por outro lado, reconhece que exercício do ofício de jornalista exige, de
certa forma, determinada precaução quanto às matérias por ele difundidas. Veja-se
que a relevância da mídia determina, de certa forma, possíveis desvirtuamentos de
seu poder de influência, tendo em vista principalmente a violência que pode exercer
na medida em que se abre a notícias e informações temerárias, por exemplo. Nestes
termos, em que pese a essencialidade da liberdade de expressão acima exposta,
faz-se necessário reconhecer que a imprensa pode, indevidamente, atingir a honra,
imagem ou privacidade de terceiros (seja pessoa física ou jurídica).
Impera ao ordenamento pátrio, portanto, identificar a possibilidade
eminente de conflito entre os preceitos fundamentais de liberdade e direitos a honra,
privacidade e imagem e regulamentar esta situação de tal forma que, na condição
275
STF, ADPF 130, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, voto Min. Gilmar Mendes, j. em 30-5-2009, p. 267-268. 276
STF, ADPF 130, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, voto Min. Gilmar Mendes, j. em 30-5-2009, p. 207-225.
90
de princípios que são, estes sejam sopesados a fim de haver não uma determinação
de um sobre o outro, mas uma adequação razoável à aplicação de ambos.
Diante desta argumentação o Ministro Gilmar Mendes define que, dado o
quadro fático, deve o Estado ser responsável pela regulamentação ao exercício da
liberdade de imprensa, garantindo que as atividades desproporcionais da mídia
possam, ao menos, serem abrandadas (moral e pecuniarimente, quando for o caso).
É exatamente nessa medida que se propõe a manutenção dos dispositivos relativos
ao direito de resposta, que constituem, no mínimo, uma forma de dar amplo
conhecimento ao erro ou má-fé do divulgador irresponsável.277
Para respaldar sua construção teórica o julgador faz, mais uma vez,
menção clara e extensa de normas e pareceres internacionais acerca do tema.
Aponta, para melhor debate sobre o tema, que diversos Estados estrangeiros não
apenas regulamentam o instituto da liberdade de imprensa como estabelecem
limites específicos para atuação quando há violação de direitos fundamentais de
indivíduos estranhos à atividade.
Nestes termos, dada toda colocação teórica do caso, importa
substancialmente mencionar que a despeito da decisão formalizada pela Corte,278
salta aos olhos o grau de importância conferido pelo Ministro Gilmar Mendes ao
direito internacional, mais especialmente ao direito comparado. O Magistrado não se
limita a citar, meramente, disposições normativas de outros Estados, mas amplia a
discussão com uma abertura a significativa descrição de julgamentos de Cortes
Superiores estrangeiras que abarcaram a necessidade de garantia da livre
expressão, além da legitimidade de uma regulamentação à liberdade de imprensa.
Trata-se, em verdade, de uma verdadeira e completa abertura do
ordenamento jurídico brasileiro ao plano normativo internacional, que nesta
oportunidade não se limitou a abarcar o entendimento proposto por uma corte
internacional, mas sim a diversas Cortes Constitucionais soberanas em atuação
absolutamente particular, tendo em vista que interpretavam, naquela oportunidade,
normas próprias de seu Estado.
277
STF, ADPF 130, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, voto Min. Gilmar Mendes, j. em 30-5-2009, p. 226-266. 278
Que acabou seguindo, por maioria, o voto do Relator e declarou não recepcionada pela Constituição da República a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67).
91
Há, assim, uma expressiva abertura ao plano internacional para
conhecimento da forma optada por diversos Estados para “viver” as normas
constitucionalmente colocadas. A análise da concepção interpretativa não se
restringiu a um caso ou a uma corte, mas se tratou de efetiva análise internacional
de aplicação das normas relativas a liberdade de expressão. O grau de adequação
desta decisão e de seus fundamentos ao conceito de Estado Constitucional
Cooperativo se apresenta, portanto, novamente completo e nesta oportunidade
ainda mais expressivo que no julgamento do RE 511.961/SP.
Pode-se dizer, por óbvio, que talvez ele não tenha se deparado, como no
caso anterior, com tão vasta jurisprudência sobre o tema da exigibilidade do diploma
de jornalista. Ainda assim, diante dos preceitos postos por Peter Häberle no
reconhecimento da evolução da teoria do Estado Constitucional Cooperativo,
este julgamento guarda significativa relevância em relação à efetiva proposta de
abertura concreta da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição ao plano
mundial.
No entanto, mais uma vez impera mencionar, como nas críticas e
possibilidades colocadas no caso anterior, que a abertura do julgado aos
pressupostos da teoria do professor Peter Häberle mais uma vez não ofendem, de
qualquer forma, a Constituição da República, sendo as normas em comento, ao
contrário, absolutamente convergentes. Ou seja, a despeito da absoluta adequação
da teoria aos critérios de verificação da adequação do julgado aos termos do Estado
Constitucional Cooperativo, faz-se necessário apontar que não houve qualquer
possibilidade de ofensa a soberania da Constituição brasileira, o que, novamente,
deve ter facilitado a interpretação proposta pelo Ministro Gilmar Mendes.
3.2.4. Pedido de Revogação de Prisão Preventiva em caso de Extradição (HC
91.657-1/SP)
Finalmente, para conclusão do processo aqui proposto, resta a análise do
presente Habeas Corpus, cujo objeto consistia na impugnação à decretação de
prisão preventiva pelo Ministro Ricardo Lewandowski em ação de extradição movida
pelo Panamá em face de cidadão colombiano domiciliado no Brasil. Alegava-se,
assim, além de vícios formais na decisão que determinou a prisão, que o paciente
92
não oferecia riscos ao devido andamento da instrução do processo relativo à
extradição, vez que possuía emprego, residência fixa e, principalmente, não havia
oferecido qualquer resistência para se apresentar em juízo.279 Ou seja,
concretamente, não atendia aos requisitos da prisão preventiva vigente no
ordenamento jurídico brasileiro.
O Ministro Gilmar Mendes, enquanto relator do feito, proferiu seu voto no
sentido de, inicialmente, afastar de plano todas as preliminares apontadas pelo
impetrante. Em relação à análise de mérito, no entanto, antes de considerar a
ponderação imposta no remédio constitucional, suscitou uma questão prejudicial à
causa.
Apresentou, para tanto, a controvérsia já suscitada no âmbito da corte
acerca da disposição do parágrafo único do art. 84 da Lei n. 6.815/80,280 cuja
redação determina a imposição de prisão em caso de requerimento de extradição,
devendo o processado ser mantido em cárcere até o devido trâmite do pedido.
Ocorre que, conforme fundamentação apresentada pelo julgador, esta
imposição ofenderia, inegavelmente, o direito à liberdade, vez que impõe
possibilidade de restrição de direito fundamental que não se coaduna com a ordem
constitucional em vigor desde 1988. Continua sua exposição, ainda, afirmando que o
instituto se trata de meio ilegítimo e desproporcional de lesionar direitos
fundamentais como a liberdade de locomoção e a presunção de inocência, a fim de,
unicamente, assegurar uma possível obrigação de entrega do extraditando ao
Estado estrangeiro requerente.
Cabe dizer, da mesma forma, que esta restrição de liberdade que seria,
conforme a norma em apreço, imperativa, vez que inconfundível com o instituto da
prisão preventiva instituída no processo penal pátrio. Ou seja, não se exige qualquer
critério para a decretação da prisão preventiva neste caso além da condição de
extraditando, permanecendo o agente nesta condição até a resolução final do
caso.281 Cabe mencionar, inclusive, que este cerceamento costuma perdurar por
279
STF, HC 9.657-1/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13-9-2007, p. 295-300. 280
Art. 84. Efetivada a prisão do extraditando (artigo 81), o pedido será encaminhado ao Supremo
Tribunal Federal. Parágrafo único. A prisão perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão albergue. (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L6815.htm>, em 26-10-2010, às 13:47). 281
STF, HC 9.657-1/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13-9-2007, p. 305-306.
93
tempo desproporcional a qualquer prisão brasileira, dadas as peculiaridades do
processo de extradição e a natural formalidade que se impõe às relações com
corpos diplomáticos estrangeiros.
Após estes apontamentos o Ministro desenvolve seu pensamento em
relação ao inevitável direcionamento da Constituição da República à tutela dos
direitos fundamentais, afirmando que diante da ordem constitucional vigente no
ordenamento jurídico brasileiro esta forma de restrição não pode ser admitida,
representando inegável retrocesso do Estado Democrático de Direito.282
Conclui, nestes termos, que “[e]m nosso Estado de Direito, a prisão é uma
medida excepcional e, por esta razão, não pode utilizada como meio generalizado
de limitação das liberdades dos cidadãos.”283 Já não existiria, portanto, seja na
Constituição da República, seja nos tratados internacionais do qual o Brasil seja
signatário, justificativa para a manutenção da aplicabilidade da disposição inscrita no
art. 84, parágrafo único da Lei n. 6.815/80.
Continua, particularmente a esta questão, afirmando que deve se
considerar, especialmente, que o Pacto de São José da Costa Rica, tratado
internacional de direitos humanos devidamente internalizado ao ordenamento
jurídico pátrio, eleva o direito a liberdade provisória a categoria de direito
fundamental.284
282
STF, HC 9.657-1/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13-9-2007, p. 309-311. 283
STF, HC 9.657-1/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13-9-2007, p. 312. 284
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. 2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas. 3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários. 4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela. 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Disponível em < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>, em 28-10-2010, às 21:58.
94
Assim, dada a decisão do RE 466.343/SP, já analisado por esta pesquisa,
afirma o Ministro que restou absolutamente definida a importância dos direitos
humanos no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente em face da nova
realidade mundial dos Estados soberanos, que não se podem permanecer isolados,
mas ligam-se aos outros em verdadeira pretensão de evolução conjunta segundo a
concepção da teoria do Estado Constitucional Cooperativo, de Peter Häberle.
Aliás, diante da já definida supralegalidade destas normas, não há outra
conclusão se não a de revogação do dispositivo infraconstitucional que
regulamentava o instituto da prisão ligada ao processo de extradição em trâmite,285 a
não ser, por óbvio, que face ao princípio da isonomia possa o julgador do caso em
concreto identificar razões penais que exijam o cerceamento de liberdade do
indivíduo. Como a hipótese aqui colocada não se aplicava aos autos, tendo o
investigado emprego e residência fixas, além de colaborar com trâmite do processo
de extradição, impor-se-ia sua imediata colocação em liberdade.
No que tange, especificamente, ao grau de compatibilidade dos
argumentos utilizados pelo julgador para resolução da causa com a teoria do Estado
Constitucional Cooperativo é preciso considerar, inicialmente, que o caso apresenta
o primeiro registro de formas de cooperação que pretendem a realização conjunta
de tarefas objetivas e, mais concretamente, de solidariedade entre os Estados
estrangeiros.
Parece, neste momento, que a disponibilidade de cooperação em face do
processo de extradição que, no presente caso, baseia-se em tratados internacionais
além da promessa de reciprocidade entre os Estados do Panamá e do Brasil se
apresenta, de fato, como uma proposta de um estar, efetivamente, à disposição do
outro, buscando a realização de tarefas conjuntas que parecem ser atribuídas muito
mais a comunidade de Estados que a um membro, propriamente dito.
Este critério, a muito existente no ordenamento jurídico pátrio a fim de
assegurar a já tratada coexistência pacífica dos Estados soberanos passa, agora, a
estabelecer-se com fundamento direto em normas de caráter internacional,
285 STF, HC 9.657-1/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13-9-2007, p. 313-316.
95
representando, neste momento, muito mais uma prestação cooperativa que uma
mera troca de favores entre entes independentes.
No que tange aos demais elementos (reconhecimento do arquétipo
constitucional e abertura do Estado ao plano externo), por sua vez, cabe se atentar,
diante das análises anteriores, da peculiaridade presente no julgado. Uma visão até
mesmo superficial poderia apontar que o presente caso mescla, de forma rápida e
genérica, toda a análise operada em face dos demais julgamentos.
Veja-se, em primeiro lugar, que conforme o julgamento do Recurso
Extraordinário que abordava a possibilidade de prisão civil do depositário infiel o
Ministro, novamente, reconhece o expressivo grau de importância das normas
produzidas para garantia da proteção da dignidade da pessoa humana,
determinados como direitos humanos ou fundamentais. Afirma, ainda, que impera ao
Estado brasileiro reconhecer que diante do fenômeno do Estado Constitucional
Cooperativo impõe-se a abertura do Estado soberano ao plano internacional.
Não obstante estas considerações, conforme disposição transcrita do
acórdão por si redigido na oportunidade de manifestação no recurso extraordinário
466.343-1/SP, o Magistrado novamente contrapõe-se a teoria do professor Peter
Häberle ao abordar, mais uma vez, uma concepção teórica que só tem o condão de,
face à proposta doutrinária, manter a soberania da Constituição.
Nesta oportunidade o Ministro volta a se referir à tese da supralegalidade
das normas oriundas dos tratados internacionais de direitos humanos como forma
de fundamentar a paralisação proposta pelo Pacto de São José da Costa Rica ao
art. 84 da Lei n. 6.815/80.
Importa dizer que esta consideração seria irrelevante para o desfecho
pretendido pelo teórico, vez que as disposições em apreço (constante do tratado
internacional e da Constituição da República) são, como no caso do RE 511.961/SP
e da ADPF 130, absolutamente convergentes, fato este que, a partir desta
perspectiva, não ensejaria qualquer manifestação acerca da hierarquia dos tratados
internacionais de direitos humanos.
Parece, portanto, que a despeito da inédita menção aos critérios objetivos
de cooperação relativos à proposta de realização conjunta de atividades comuns,
bem como a disponibilização solidária entre os Estados, a questão do
96
desvirtuamento da proposta de abertura ao plano externo denota, mais uma vez, a
adequação parcial do julgado a teoria do Estado Constitucional Cooperativo, ainda
que esta pudesse ter se dado de forma absolutamente diversa, tendo-se em vista
que as disposições normativas aqui interpretadas eram, absolutamente,
convergentes.
3.3. GRAU DE ADEGUAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA PRODUZIDA PELO MIN.
GILMAR MENDES A TEORIA DO ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO
Após as análises feitas neste capítulo é possível definir que o Ministro
Gilmar Mendes estabelece, em absolutamente todos os casos, significativa
importância à incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao
ordenamento jurídico brasileiro, fundando-se, propriamente, no grau de relevância
que a própria Constituição confere a estas normas.
Diz-se, em verdade, que a Constituição da República fornece todos os
parâmetros necessários a demonstração de sua intenção da garantia e efetivação
dos direitos fundamentais, seja pela abertura proporcionada pela Carta, seja pelo
extenso rol que se alarga pelos setenta e oito incisos do art. 5º.
Além de considerar, ainda, que o Estado brasileiro não poderia ficar inerte
ao expansivo desenvolvimento de teoria internacional de tutela dos direitos
humanos, que tem se disseminado na forma mais clara de cooperação entre os
Estados. Percebe-se, neste sentido, que o julgador apresenta critérios específicos
de abertura legislativa ao plano internacional, momento este em que, inclusive, cita
expressamente a teoria do Estado Constitucional Cooperativo.
A análise combinada dos julgados acima demonstra, no entanto, que a
utilização dos elementos teóricos postos pelo professor Häberle não é tão
concretamente afirmada pelo Magistrado quanto sua aparência parece transparecer.
Vejamos: ao declarar votos nos casos pertinentes à lei de imprensa e à
necessidade de diploma de jornalista para efetivo exercício da profissão há,
claramente, a fiel atenção do julgador a proposta do conceito de Estado
Constitucional Cooperativo. Seja pelo concreto reconhecimento do arquétipo, seja
pela fiel demonstração de atenção não apenas as normas internacionais sobre o
97
tema, mas especialmente pela fidelidade à interpretação concedida a elas pelos
Órgãos Judiciais Internacionais (como, por exemplo, Corte Interamericana de
Direitos Humanos e/ou Suprema Corte dos Estados Unidos da América).
Ocorre que, como visto durante a análise individual de cada caso
concreto, em que pese a absoluta compatibilidade da proposta argumentativa e do
desfecho do caso à proposta do Estado Constitucional Cooperativo, foi
absolutamente inevitável perceber que as normas postas em análise (inscritas na
Constituição da República e nos tratados internacionais de direitos humanos) eram
absolutamente compatíveis. Parece conveniente, portanto, que se dê a estes
dispositivos ou pareceres judiciais tanta relevância.
Esta convencionalidade resta absolutamente evidenciada quando se
atenta aos critérios de julgamento utilizados pelo Ministro para a definição da
impossibilidade de prisão civil do depositário infiel. Nesta oportunidade, apesar de
reconhecer relativas à proteção dos direitos humanos, o Magistrado estabelece
critérios desconexos aos critérios de cooperação para aplicabilidade destes tratados
internacionais, vez que vincula sua aplicabilidade ao estabelecimento da hierarquia
supralegal destas normas.
Neste exato momento, ao sopesar questões hierárquicas para resolução
do feito, o Ministro não apenas relativiza a aplicabilidade das normas internacionais
de direitos humanos como se estende a critérios que não parecem ter outro fim que
não o de garantir, injustificadamente, a soberania da Constituição brasileira a toda e
qualquer previsão normativa.
A abertura colocada como elemento de verificação da adesão do Estado
soberano ao conceito de Estado Constitucional Cooperativo não pode ser limitada a,
por exemplo, critérios de reafirmação da soberania Constitucional. Um Estado
particular que pretende a intangibilidade de sua Carta Magna não estaria disposto,
completamente, a reconhecer a legitimidade oriunda do compartilhamento legislativo
e interpretativo oriundo da comunidade internacional de Estados. Ou seja, nega-se
parcialmente, nestes termos, a proposta do direito internacional de cooperação.
A conclusão mais concreta extraída da composição desta análise,
portanto, é que o critério de abertura é claro e atende a proposta de abertura ao
plano externo colocada por Häberle no conceito de Estado Constitucional
98
Cooperativo quando o caso apresenta convergência entre as disposições da
Constituição e do tratado internacional, especificamente. É o caso, propriamente, da
abordagem do RE 511.961/SP e da ADPF 130, onde a previsão ao direito de
liberdade de imprensa e de expressão estava presente em ambos os textos
normativos. Nestas propostas a adequação é evidente.
No entanto, quando se propõe o embate entre a Carta Magna e os
tratados internacionais de direitos humanos, como apontado no RE 466.343/SP, a
discussão se esvazia em uma tentativa de determinar qual a hierarquia destas
normas ao serem incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro. A questão do
embate entre as teses postas neste julgamento, ou seja, a tentativa de opção entre
supralegalidade e constitucionalidade não atende a qualquer colocação da proposta
de Estado Constitucional Cooperativo.
Parece, neste sentido, que apesar do parcial grau de adequação entre o
conceito proposto pelo Professor Peter Häberle e a posição adotada pelo Ministro
Gilmar Mendes quando fundamenta suas decisões acerca da incorporação e
aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos, a conclusão posta por si
no Supremo Tribunal Federal encontra respaldo parcial naquele aporte teórico.
Esta verificação fica devidamente comprovada quando, na oportunidade
de julgamento do HC 91.657-1/SP as premissas confundem-se. Neste caso em
particular se apresenta uma hipótese de clara convergência entre os direitos
fundamentais assegurados pela Constituição da República e pelo tratado
internacional de direitos humanos invocado (Pacto de São José da Costa Rica),
ocorre que, não obstante esta realidade que, como visto, facilita e muito a utilização
da norma externa para fundamentação da decisão final, o Magistrado faz questão de
reafirmar o caráter supralegal destas normas.
A presente característica não teria outro condão que não o de demonstrar
que, efetivamente, o Ministro Gilmar Mendes acredita que a melhor adequação do
Estado brasileiro à teoria do Estado Constitucional Cooperativo é atribuir aos
tratados internacionais de direitos humanos este “grau de especialidade”, opinião
que, de forma alguma, compartilhamos.
O critério de garantia da supremacia das Cartas Constitucionais dos
Estados soberanos é absolutamente estranho à proposta do teórico alemão, para o
99
mesmo toda e qualquer contradição entre as normas fundamentais deve ser
resolvido por meio da aplicação da norma mais favorável ao indivíduo, quer oriunda
do ordenamento interno, quer proveniente de tratados internacionais de direitos
humanos.
A adequação da jurisprudência produzida pelo Ministro Gilmar Mendes a
teoria do Estado Constitucional Cooperativo só pode ser considerada, portanto,
absolutamente parcial, vez que dos dois critérios a serem sopesados atende-se a
um e se desvirtualiza o outro.
Vale registrar, por fim, que não se inferiu nesta análise final qualquer
proposta relativa a realização objetiva de tarefas comuns entre os Estados membros
da comunidade mundial ou critérios de solidariedade vez que estes elementos são,
quase que absolutamente, institucionais, oportunidade em que seria incongruente
pretender sua afirmação por parte das decisões postas pelo Ministro Gilmar Mendes
a casos emblemáticos levados ao Supremo Tribunal Federal.
100
CONCLUSÃO
As premissas teóricas do pensamento do Professor Peter Häberle foram
abordadas no primeiro capítulo a partir da apresentação de seus critérios de
concepção da teoria do estado constitucional como ciência cultural. Aponta-se, desta
forma, que todos os elementos que subsidiam a Constituição dos Estados
constituem, necessariamente, manifestações culturais que emanam da sociedade
que aquele documento normativo pretende regulamentar.
Estas características culturais de que se reveste a Carta Magna, quando
analisadas pelo viés do direito comparado, podem compor um modelo ideal de
Estado, ou seja, identifica-se os critérios de tutela compartilhado pelas sociedades e
inscritos em suas Constituições com o fim de definir os elementos do arquétipo
constitucional. Este modelo, por sua vez, representa a consolidação de um conjunto
mínimo de standards que servirão de parâmetro para que, conforme a presença de
seus pressupostos em determinada Constituição, sejam avaliados os diferentes
níveis textuais que se fazem presentes neste texto.
Ainda no primeiro capítulo se estabeleceram as formulações do teórico
alemão acerca da sociedade aberta dos intérpretes constitucionais. Nesta seara,
dados os apontamentos anteriores, chega-se a seguinte conclusão: se a
Constituição de um Estado se funda, basicamente, na concretização de premissas
culturais que podem, inclusive, servir de parâmetro para estabelecer um rol de
conceitos que estaria, regra geral, disseminado e/ou reconhecido mundialmente,
nada mais natural que se abra a toda sociedade que, diretamente, constrói as
normas constitucionais a possibilidade de participar de sua interpretação prática.
Aliás, trata-se aqui de uma concepção de mera aceitação do conceito
atribuído a estas normas pela sociedade em geral, pois ainda que sua concepção
não seja formalizada, faz parte do pensamento teórico do professor Peter Häberle a
consideração de que, faticamente, todo indivíduo que vive a norma constitucional é
interprete seu.
Por fim, abordaram-se concretamente os elementos que constituem a teoria
do Estado Constitucional Cooperativo. Nesta oportunidade é fundamental proceder à
101
expansão das premissas anteriormente abordadas ao plano internacional, ou seja,
os critérios culturais que identificam as previsões constitucionais partiriam, agora, ao
plano mundial, concretizando-se de forma específica no reconhecimento do
arquétipo constitucional e implementando-o concretamente ao plano interno dos
estados a partir de critérios próprios de abertura constitucional. Seria imprescindível
também, naturalmente, que a sociedade aberta dos interpretes constitucional se
expandisse ao plano internacional.
Estes critérios seriam reforçados pela eminente expansão dos meios de
comunicação que, de fato, expandiram de forma expressiva a integração entre os
diferentes povos que compões as Nações existentes. Estas relações, impulsionadas
por uma troca constante de culturas e, por suposto, de normas concretas, não pode
mais se restringir a normatização interna que limita as relações internacionais ao
direito de coexistência pacífica.
É imperioso que, no novo quadro de inter-relações avançadas da
comunidade mundial de Estados, as proposições colocadas nas Constituições para
abertura dos Estados Nacionais ao plano externo fundem, concretamente, um direito
internacional de cooperação que se edificará expressamente, por hora, na proposta
de reafirmação da necessidade de tutela da pessoa humana.
O segundo capítulo, por sua vez, prestou-se à identificação dos critérios de
tutela dos direitos humanos. Para tanto, abordou-se inicialmente a evolução do
processo de internacionalização dos direitos humanos, oportunidade em que os
pressupostos já inscritos nas Constituições expandiram-se para o plano
internacional e passaram a fazer parte de acordos multilaterias formalizados entre os
Estados soberanos.
A partir desta realidade foram definidos no âmbito dos ordenamentos
jurídicos nacionais critérios para a internalização dos tratados internacionais ao
plano interno. Estes critérios, no caso brasileiro em particular, geraram a colocação
de uma questão acerca da hierarquia das normas oriundas no plano internacional
para sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.
O debate relativo aos critérios de incorporação e colocação hierárquica dos
tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro se
deu, mais propriamente, a partir dos apontamentos formulados pelos Ministros do
102
Supremo Tribunal Federal acerca da prisão civil do depositário infiel. Esta recente
(re)discussão teve a pretensão de restringir o tema ao estabelecimento do status
constitucional ou supralegal para incorporação dos tratados internacionais de
direitos humanos, sendo imprescindível ressaltar que, ainda que os julgadores não
sejam convergentes em sua decisão sobre a hierarquia das normas (pois se dividem
entre a colocação supralegal e constitucional), convergem praticamente em
absolutamente todos os argumentos que fundamentam a sua opção pelas teorias
adotadas.
Não obstante todas estas considerações, importa realmente ao estudo o
momento emblemático em que o Ministro Gilmar Mendes cita expressamente a
observância do Estado Constitucional Cooperativo como forma de subsidiar o
estabelecimento do status supralegal das normas internacionais de direitos
humanos.
Este critério, em particular, subsidia a proposta deste trabalho que é
estabelecer se o posicionamento do referido julgador acerca da internalização e
aplicação das normas oriundas dos tratados internacionais de direitos humanos
atende à teoria do Estado Constitucional Cooperativo de Peter Häberle.
A partir desta delimitação passasse, já no terceiro capítulo, a análise dos
julgados que contaram com a participação ativa do Ministro Gilmar Mendes em
casos emblemáticos postos ao Supremo Tribunal Federal, mais especificamente os
casos relativos à prisão civil do depositário infiel (RE n. 466.343-1/SP), ao diploma
de jornalista (RE n. 511.961/SP), à lei de imprensa (ADPF n. 130) e à prisão
preventiva em caso de extradição (HC 91.657-1/SP).
Como detalhadamente demonstrado no terceiro capítulo, verificou-se
efetivamente nestes julgados que, ainda que a verificação dos critérios utilizados
pelo Magistrado induzisse à percepção de que este se atenta aos elementos que
compõe a teoria do Estado Constitucional Cooperativo, sua adequação ao conceito
proposto por Peter Häberle se percebeu, efetivamente, apenas parcial.
Afinal, em que pese a relevância atribuída pelo julgador a manutenção e
expansão da tutela dos direitos humanos, o critério material de abertura do plano
nacional as diretrizes estrangeiras (normativas e interpretativas) proposto pelo
teórico alemão é paulatinamente desvirtuado pela necessidade clara do Magistrado
103
em assegurar, especialmente por meio da sustentada teoria da supralegalidade das
normas oriundas dos tratados internacionais de direitos humanos, a soberania da
Constituição da República.
A colocação do status supralegal destas normas, inclusive, problematiza a
proposta de abertura de tal forma que, como apontado no corpo deste estudo, não é
possível vislumbrar o desfecho de uma causa em que o conflito seja exclusivamente
entre as normas constitucionais e o tratado internacional, sem que haja, como no
caso do depositário infiel, qualquer lei infraconstitucional a ser paralisada.
Cumpre dizer, de qualquer forma, que no âmbito da discussão
(supralegalidade vs. Constitucionalidade) posta no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, a proposta que mais se adequaria ao conceito de Estado Constitucional
Cooperativo seria, de fato, a colocação da equiparação material entre disposições
constitucionais e normas internacionais de direitos humanos.
No entanto, parece-nos que para o professor Peter Häberle a aplicabilidade
dos preceitos fundamentais independem de qualquer perspectiva de colocação
hierárquica de normas. Ou seja, tratados internacionais de direitos humanos não
precisam ser mais do que, propriamente, tratados internacionais de direitos
humanos, reconhecidos como tal no ordenamento jurídico pátrio e aplicados
conforme o princípio de aplicação da norma mais benéfica ao indivíduo.
Assim, como devidamente abordado no desfecho do terceiro capítulo,
parece-nos claro afirmar que a utilização da concepção teórica de Peter Häberle se
apresentou para o Ministro Gilmar Mendes como mero pressuposto de legitimação
da decisão, sem que, efetivamente, se atentasse aos elementos constitutivos da
referida teoria. Vale dizer, portanto, que seu apontamento teria apenas a pretensão
de demonstrar um determinado “grau de especialidade” das normas internacionais
de direitos humanos, dedução esta que, sem dúvida, não atende completamente a
proposta de Estado Constitucional Cooperativo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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