um estudo sobre a tanatopolítica neoliberal.pdf

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    DEPARTAMENTO DE DIREITO

    CURSO DE GRADUAO EM DIREITO

    Lucas Gonzaga Censi

    UM ESTUDO SOBRE A TANATOPOLTICA NEOLIBERAL

    Florianpolis

    2014

  • 2

    LUCAS GONZAGA CENSI

    UM ESTUDO SOBRE A TANATOPOLTICA NEOLIBERAL

    Trabalho de Concluso apresentado ao Curso

    de Graduao em Direito da Universidade

    Federal de Santa Catarina, como requisito

    obteno do ttulo de Bacharel em Direito

    Orientadora: Prof. Dr. Jeanine Nicolazzi Philippi

    Florianpolis

    2014

  • 3

    Autor: Lucas Gonzaga Censi

    Ttulo: Um estudo sobre a tanatopoltica neoliberal

    Trabalho de Concluso apresentado ao Curso

    de Graduao em Direito da Universidade

    Federal de Santa Catarina, como requisito

    obteno do ttulo de Bacharel em Direito.

    Florianpolis, 11 de julho de 2013.

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Jeanine Nicolazzi Philippi

  • 4

  • 5

    nonna Palma Censi,

    pelas aventuras entre galinhas, patos e marrecos.

    v Euclere Gonzaga,

    por ter me ensinado e estimulado leitura.

    O sentido que dou vida

    me foi transmitido por essas duas mulheres:

    imaginar, escrever, criar.

  • 6

    Preferiria no.

    - Bartleby, o Escriturrio -

  • 7

    RESUMO

    Esta monografia possui como objetivo investigar o significado da vida biolgica humana para

    a conjuntura poltico-econmica neoliberal e discorrer sobre qual estrutura jurdica capaz de

    inseri-la no ordenamento jurdico. Para isso, o primeiro captulo desenvolver estudo sobre a

    teoria poltica neoliberal e abordar duas correntes tericas relevantes: as aes de Estado do

    ordoliberalismo e a abordagem econmica dos comportamentos. No segundo captulo, por sua

    vez, focar-se- nas categorias prprias noo de biopoder, tanto nos termos do filsofo

    francs Michel Foucault quanto nas percepes de Giorgio Agamben. Nessa etapa da

    investigao, tambm, sero abordadas as teses eugnicas do nacional-socialismo, bem como

    se esboar os fundamentos jurdicos que caracterizaram a perseguio da pureza racial

    prpria a essa ideologia. O terceiro captulo, por fim, ter por objetivo compreender a

    contemporaneidade brasileira, levando em conta os conflitos militares envolvidos nas

    ocupaes das favelas cariocas.

    Palavras-chave: Neoliberalismo; governamentalidade; biopoder; estado de exceo; favela;

    tanatopoltica.

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................9

    1. O NEOLIBERALISMO..............................................................................11

    1.1. UMA TEORIA POLTICA DO NEOLIBERALISMO................................................11

    1.2. A ABORDAGEM ECONMICA DOS COMPORTAMENTOS E A TEORIA DO

    CAPITAL HUMANO...............................................................................................................18

    1.3. A GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL.......................................................22

    2. DO POVO RAA: SOBERANIA, EXCEO E VIDA NUA............26

    2.1. O BIOPODER...............................................................................................................26

    2.2. O ESTADO DE EXCEO E A RELAO DE BANDO: MEDIAO ENTRE

    SOBERANIA E VIDA NUA....................................................................................................29

    2.3. OS DIREITOS DO CIDADO E DO HOMEM EM SUA DIMENSO

    BIOPOLTICA .........................................................................................................................34

    2.4. DAR FORMA RAA...............................................................................................37

    2.4.1. O CAMPO COMO PARADIGMA BIOPOLTICO...................................................39

    3. ESTADO DE EXCEO PERMANENTE...............................................44

    3.1. A REDEMOCRATIZAO BRASILEIRA E O NEOLIBERALISMO.......................44

    3.2. A FAVELA: DE SOLUO HABITACIONAL A UMA QUESTO POLICIAL........48

    3.2.1. MERCADOS A QUALQUER CUSTO.........................................................................51

    3.3. A TANATOPOLTICA NEOLIBERAL...........................................................................57

    4. CONCLUSO................................................................................................60

    5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................64

  • 8

  • 9

    INTRODUO

    Em Saturno Devorando um Filho, Goya nos apresenta uma imagem

    desconcertante. Nela, um homem de propores gigantes, de aspecto sujo e amedrontador,

    agarra com as duas mos um corpo nu, ensanguentado e j decapitado, levando a sua boca a

    parte restante do brao esquerdo de sua vtima sacrificial.

    Trata-se de uma evocao da gnese do panteo helnico. Segundo a mitologia,

    Saturno, tit do tempo e filho mais novo de Urano, havia conquistado o posto de senhor sobre

    os demais irmos ao castrar o prprio pai e, ciente do risco de sofrer o mesmo golpe, devorava

    os prprios filhos ao nascerem.

    A pintura de Goya, ento, bastante condizente ao nimo do Senhor do Tempo. O

    corpo magro, com o torso arqueado sobre seu filho e as pernas ajoelhadas no cho; os olhos

    arregalados e desfocados, fitando um espao para fora da tela quem sabe ansiando o

    observador do quadro; as mos que se fecham sobre o sacrifcio e, com seus contornos

    vermelhos, causam a impresso de estarem esmagando o corpo do filho; a boca escancarada,

    carente de qualquer lbio, dente ou lngua, retratada como um espao negro e vazio.

    A relao entre Saturno e seu filho annimo, como se v, ambgua: ainda que

    represente a total sujeio de uma vtima ao seu algoz, denuncia a compulso desesperada de

    um soberano para manter sua autoridade. Para Goya, o Senhor do Tempo obedece a sua fome

    com a avidez e o temor prprios queles que sabem que, devorando tudo e todos, um dia

    restar-lhe- nada.

    * * *

    Possivelmente parecer estranho, mas, para o autor, esta monografia em Direito

    tratar sobre o que foi brevemente exposto acerca da obra de Goya, pois sua principal

    indagao diz respeito ao significado que a vida biolgica tem para o poder poltico e de que

    forma ela capturada pelo ordenamento jurdico.

    A relao entre vida e poltica foi amplamente abordada por Michel Foucault,

    principalmente entre os anos de 1977 e 1981, naqueles processos descritos na passagem de

    um Estado territorial para um Estado populacional e os quais empurraram a espcie

  • 10

    humana e seus indivduos ao centro das estratgias polticas para a consolidao do

    capitalismo.

    A relao entre vida biolgica e Direito, todavia, ainda que seja o cenrio do livro

    Vigiar e Punir, no foi destacada centralmente nas anlises do terico francs, visto que seu

    interesse estava mais direcionado s manifestaes capilares e menos formais das relaes de

    poder. Em seus prprios termos, seria necessrio, por uma questo de mtodo [...] fazer uma

    anlise ascendente do poder, [...] 1.

    Diante dessa escolha metodolgica de Foucault que, para responder ao interesse

    dessa pesquisa, dedicou-se ateno aos estudos de Giorgio Agamben sobre o biopoder, uma

    vez que o terico italiano procura a mediao jurdica entre a vida humana e a autoridade

    capaz de inscrev-la politicamente na ordem social.

    O interesse do autor pelo tema desta investigao decorre do desconforto diante

    das promessas das democracias contemporneas e as suas manifestaes reais na teoria do

    direito e no controle social. Afinal, em que pese o longo processo de reconhecimento de

    direitos e de liberdades formais - ou mesmo o desenvolvimento econmico acompanhado de

    uma relativa redistribuio de renda experimentado pelo neodesenvolvimentismo no Brasil -, a

    violncia militar contra parcelas significativas das populaes parece tomar contornos cada

    vez mais amplos e frreos.

    Nesse sentido, a resposta padro do senso comum jurdico de que os surtos de

    violncia institucional no passariam de situaes pontuais no parece dar conta da realidade,

    visto que a ilegalidade tornou-se um procedimento padro do prprio direito brasileiro.

    Conforme se argumentar ao longo desta monografia, s possvel conceber a constncia da

    antijuridicidade como uma exceo tornada regra.

    O real esforo dessa investigao, portanto, reside em seu ltimo captulo, uma

    vez que l est uma tentativa de aplicar as categorias de Foucault e Agamben

    contemporaneidade brasileira. O resultado, como se arriscar demonstrar, obriga-nos a

    considerar uma flexo na caracterizao do biopoder, principalmente em sua incidncia na

    multiplicidade de viventes.

    1 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, p. 27.

  • 11

    CAPTULO 1:

    O NEOLIBERALISMO

    1.1. UMA TEORIA POLTICA DO NEOLIBERALISMO

    Existe um certo tipo de anlise recorrente a qual, algumas vezes, pretende-se

    radical que, estudando o neoliberalismo, enquadra-o como um retorno economia liberal

    clssica, onde o prefixo neo representaria pouco mais do que uma enfeite para os novos

    tempos. Dessa maneira, no plano econmico o neoliberalismo no seria mais do que a

    reativao de velhas engrenagens e teorias acerca da produo de bens; na dimenso

    sociolgica, a generalizao de relaes mercantis no tecido social; no aspecto poltico, a

    reduo do Estado aos interesses de mercado.

    Pois bem, este trabalho no opta por essa abordagem. Entende-se, aqui, que o

    neoliberalismo possui uma estrutura bastante distinta do liberalismo do sculo XVIII, vez que

    parte de um projeto diferente de racionalidade governamental, ainda que tambm centrado na

    relao entre Estado e mercado.

    A teoria do liberalismo clssico est assentada no questionamento de como

    delimitar, dentro de uma sociedade, um espao, tornando-o livre da atuao estatal. Por detrs

    do princpio poltico do laissez-faire existe a hiptese de que quanto mais um indivduo seguir

    o prprio interesse, maior ser o lucro conquistado, tanto para si mesmo quanto para o outro.

    Ao lermos a Riqueza das Naes, podemos perceber que:

    No caso de quase todas as outras raas de animais, cada indivduo, ao atingir a

    maturidade, e totalmente independente e, em seu estado natural no tem necessidade

    da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade

    quase constante da ajuda dos semelhantes, e intil esperar esta ajuda simplesmente

    da benevolncia alheia. Ele ter maior probabilidade de obter o que quer se

    conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que e

    vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. isto o que faz

    toda pessoa que prope um negcio a outra. D-me aquilo que eu quero e voc ter

    isto aqui, que voc quer - esse o significado de qualquer oferta desse tipo; e dessa

    forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos servios de que

    necessitamos. No da benevolncia do aougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que

    esperamos nosso jantar, mas da considerao que eles tm pelo seu prprio

    interesse. Dirigimo-nos no a sua humanidade, mas a sua autoestima, e nunca lhes

    falamos das nossas prprias necessidades, mas das vantagens que adviro para eles.2

    2 SMITH, Adam. A riqueza das Naes. Volume I. So Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 74.

  • 12

    A ironia que esse interesse individual escapa ao controle e conscincia de seu

    agente, pois a vontade e a atuao de cada um est atrelada a uma contingncia de elementos

    externos. Esse sujeito econmico, ento, est localizado em [...] um duplo involuntrio: o

    involuntrio dos acidentes que lhe sucedem e o involuntrio do ganho que ele produz para os

    outros sem que tenha pretendido.3

    nesse sentido, portanto, que o deixar-fazer liga-se ao outro famoso conceito de

    Adam Smith, a mo invisvel. Usualmente se interpreta essa metfora como uma causalidade

    otimista no campo econmico a qual, apesar de inapreensvel aos indivduos, totalmente

    transparente a um observador cuja mo invisvel tece uma trama com todos esses interesses

    dispersos.4 Todavia, tal leitura soa incompleta, pois ressalta uma possibilidade de

    racionalidade e de providncia dos processos econmicos, quando se esquece da necessria

    ignorncia do interesse coletivo ao agente econmico. A invisibilidade desta mo

    completamente indispensvel na exata medida em que impede a perseguio do bem comum.

    No que tange a esses agentes, por sua vez, no apenas aos indivduos ou s

    corporaes mercantis, mas aos atores polticos a mo tambm precisa ser invisvel. Em um

    primeiro momento, o governo no deve regular o jogo dos interesses individuais na medida

    em que o egosmo que trabalha de forma eficaz para a sociedade. Avanando alguns passos,

    Smith conclui, tambm, que impossvel ao Estado desenvolver um ponto de vista total

    acerca dos elementos econmicos e administr-los, justamente porque [...] para a

    consumao conveniente dessa tarefa, no h nenhuma sabedoria humana e nenhum

    conhecimento que baste. 5

    As teses neoliberais, por sua vez, invertem essa relao. Isso , se o liberalismo

    tradicional concebia o mercado como um espao indecifrvel e intocvel, a questo agora ser

    exatamente a oposta, justamente porque o conceito essencial e fundador do mercado ser

    alterado.

    Para os tericos do liberalismo clssico, a essncia do mercado estava nas relaes

    de troca, na [...] troca livre entre dois parceiros que estabelecem por sua prpria troca uma

    equivalncia entre dois valores 6, e ao Estado no se prescrevia outra poltica seno, no

    mximo, a superviso das liberdades das relaes mercantis e o impedimento de formao de

    monoplios.

    3 FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 378.

    4 Ibidem, p. 379.

    5 SMITH apud FOUCAULT, Ibidem, p. 395, nota 34.

    6 Ibidem p. 161.

  • 13

    J para os economistas do sculo XX, o fundamento do mercado no est na troca,

    mas na concorrncia, na exata medida em que esta forma de relao garante a regulao

    econmica pela estabilidade dos preos, os quais, [...] na medida em que h concorrncia

    plena e inteira, so capaz [sic] de medir as grandezas econmicas e, por conseguinte, regular

    as escolhas.7

    Todavia, os neoliberais devem ser reconhecidos por seu pragmatismo, vez

    admitem que a concorrncia no um fenmeno natural, no sendo o resultado de um jogo

    dos instintos ou comportamentos humanos. Isso significa dizer, portanto, que [...] a

    concorrncia como lgica econmica essencial s aparecer e s produzir seus efeitos sob

    certo nmero de condies cuidadosa e artificialmente preparadas. 8 Ela , por isso,

    consequncia de uma srie de investimentos.

    Deve-se atentar, ento, ao ponto crucial de diferenciao entre o neoliberalismo e

    o liberalismo clssico: de um mercado sob vigilncia distante do Estado para um Estado sob

    vigilncia estrita do mercado. 9 A concorrncia, por ser historicamente frgil e politicamente

    cara aos neoliberais, exige constantes intervenes para sua permanncia. Foucault, ento,

    afirma que o laissez-faire uma:

    Posio ingnua aos olhos neoliberais, cujo problema no saber se h coisas em

    que no se pode mexer e outras em que se tem o direito de mexer. O problema

    saber como mexer. o problema da maneira de fazer, o problema, digamos, do

    estilo governamental.10

    Para demonstrar a natureza desse estilo governamental, o terico francs

    apresenta as teses dos neoliberais alemes, cuja corrente terica ficou conhecida por

    ordoliberalismo. A conjuntura de implementao dessas teses, pode-se imaginar, eram

    bastante dramticas; afinal, precisava-se reconstruir um estado a partir do vcuo tico e

    poltico deixado pelo nacional-socialismo. As dificuldades dessa exigncia mediam-se pela

    reconverso de uma economia de guerra para uma economia de paz, reedificao de um

    potencial econmico desmantelado, integrao de novos dados tecnolgicos, demogrficos e

    geopolticos que garantissem a soberania nacional desde que no conduzissem ao gigantismo

    governamental.

    A fobia em relao ao estado, tpica das construes tericas de Ludwig Von

    Mises e Friedrich Hayek, assim sendo, servia de nimo ideolgico e econmico

    7 Ibidem, p. 162.

    8 Ibidem, p. 164.

    9 Ibidem, p. 159.

    10 Ibidem, p. 184.

  • 14

    administrao da Alemanha Ocidental recm-sada da guerra. O vis da interveno de

    mercado desse modelo neoliberal foi teorizado e aplicado no seio da convergncia entre o

    receio do totalitarismo e a exigncia de reconstruo do estado alemo. 11

    H que se

    apresentar, por isso, duas formas de intervenes de governo: primeiro, sobre as duas espcies

    de aes econmicas conformes; segundo, acerca da poltica social.

    No que toca questo das aes econmicas conformes, tratam-se de medidas

    sintetizadas em um texto pstumo de Walter Eucken chamado Grundstze der

    Wirtschaftspolitik Os Fundamentos da Economia Poltica, de acordo com os ttulos

    traduzidos para o portugus. Em Os Fundamentos, o economista alemo afirma que o governo

    desse novo liberalismo, constantemente ativo e vigilante, deve intervir de duas maneiras: ou

    atravs de aes reguladoras ou por meio de aes ordenadoras.

    A primeira modalidade de atuao governamental, denominada de ao

    reguladora, pode ser definida como aquela destinada a estimular as condies internas,

    necessariamente econmicas, da concorrncia de mercado, levando estabilidade de preos.

    Conforme leciona Foucault:

    necessrio ento, diz ele [Eucken], intervir no nos mecanismos da economia de

    mercado, mas nas condies do mercado. Intervir nas condies do mercado vai

    significar, de acordo com o prprio rigor da ideia kantiana de regulao, identificar,

    admitir e deixar agir para favorec-las e de certo modo lev-las ao limite e plenitude da sua realidade as trs tendncias que so caractersticas e fundamentais nesse mercado, a saber: tendncia reduo dos custos, tendncia reduo [das

    margens] do lucro da empresa e, por fim, tendncia provisria, pontual, a aumentos

    do lucro, seja por uma reduo decisiva e macia dos preos, seja por uma melhoria

    da produo. So essas trs tendncias que a regulao do mercado, que a ao

    reguladora deve levar em conta, na medida em que elas so as tendncias prprias da

    regulao do mercado. 12

    O objetivo nico de uma ao reguladora deve ser a estabilidade de preos,

    entendida no como uma fixidez, mas como o controle da inflao, e h dois exemplos de

    instrumentos bastante conhecidos realidade brasileira para a persecuo desse fim: a poltica

    de oferta de crdito subsidiado e a reduo de impostos. Nessa receita, porm, h que se evitar

    os instrumentos empregados pela planificao a saber, tabelamento de preos, subsdio a um

    setor do mercado, criao sistemtica de empregos e investimento pblico na medida em

    que obstruem a livre concorrncia de mercado. 13

    11

    Ibidem, p. 109-112. 12

    FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 190. 13

    Ibidem, p. 191.

  • 15

    Mais interessante ao foco desse trabalho so as aes ordenadoras o segundo

    grupo das aes polticas conformes propostas por Eucken , as quais podem ser definidas

    como aquelas cuja funo tambm intervir nas condies do mercado, mas em permetros

    mais gerais, mais estruturais em relao queles citados anteriormente. Pois no se pode

    esquecer que o projeto neoliberal, declaradamente, visa sustentar o mercado enquanto

    regulador econmico e social; o que no significa dizer, entretanto, que este seja reconhecido,

    pelos prprios tericos liberais do sculo XX, como um fenmeno natural ou um elemento

    fundante da sociedade. Com o perdo pela repetio, [...] ele [o mercado] constitui, no topo,

    uma espcie de mecanismo sutil muito seguro, mas s se funcionar bem, se nada vier

    perturb-lo. 14 A interveno governamental, portanto, deve garantir as condies de

    existncia do mercado, isto , aquilo que os neoliberais chamam de moldura.

    Em Os Fundamentos da Poltica Econmica, Eucken discorre sobre a situao da

    agricultura na Alemanha e, sobre o objeto de ao poltica apto a equalizar esse ramo de

    produo economia de mercado, 15

    afirma:

    Sem dvida, h limites para a ao da poltica econmica sobre os dados globais.

    Mas cada uma delas [sic] influencivel. Mesmo o clima de um pas pode ser

    influenciado pela interveno humana. A fortiori, outros fatores, como a quantidade

    de populao, seus conhecimentos e aptides, etc. O maior campo de ao

    oferecido pelo sexto dado, a ordem jurdica e social.16

    14

    Ibidem, p. 192. 15

    Para explicar o conceito de moldura, o professor francs sintetiza o raciocnio de Eucken: O que uma poltica de moldura? Creio que o exemplo aparecer claramente se tomarmos um texto de Eucken, justamente

    em suas Grundstze, isto , um texto de 1952, em que ele retoma o problema da agricultura, da agricultura

    alem, mas, diz ele, isso vale tambm para a maioria das agriculturas europeias. Pois bem, diz ele, essas

    agriculturas, no fundo, nunca foram integradas normalmente, completamente, exaustivamente economia de

    mercado. Elas no o foram por causa das protees aduaneiras que, em toda a Europa, delimitaram, recortaram a

    agricultura europeia, os espaos agrcolas europeus; protees aduaneiras que se tornavam indispensveis ao

    mesmo tempo pelas diferenas tcnicas e, de modo geral, pela insuficincia tcnica de cada uma das agriculturas.

    Diferenas e insuficincias, todas elas ligadas existncia de uma superpopulao que tornava intil e, na

    verdade, indesejvel a interveno, a insero desses aperfeioamentos tcnicos. Por conseguinte, se se quiser o texto data de 1952 fazer a agricultura europeia funcionar numa economia de mercado, o que ser preciso fazer? Ser preciso agir sobre dados que no so diretamente dados econmicos, mas so dados condicionantes

    para uma eventual economia de mercado. Ser preciso agir sobre o qu, portanto? No sobre os preos, no

    sobre determinado setor, assegurando o apoio a esse setor pouco rentvel tudo isso so intervenes ruins. As boas intervenes vo agir sobre o qu? Pois bem, sobre a moldura. Isto , em primeiro lugar, sobre a populao.

    A populao agrcola numera demais pois ento ser preciso diminu-la por meio de intervenes que possibilitem uma migrao, etc. Ser preciso intervir tambm sobre as tcnicas, pondo disposio das pessoas

    certo nmero de ferramentas, pelo aperfeioamento tcnico de certo nmero de elementos relacionados aos

    adubos, etc; intervir sobre a tcnica tambm pela formao de agricultores e pelo ensino que lhes ser

    proporcionado, que lhes possibilitar modificar de fato as tcnicas [agrcolas]. Em terceiro lugar, modificar

    tambm o regime jurdico das terras, em particular com leis sobre a herana, com leis sobre o arrendamento das

    terras, tentar encontrar os meios de fazer intervir a legislao, as estruturas, a instituio de sociedades por ao

    na gricultura, etc. Em quarto lugar, modificar na medida do possvel a alocao dos solos e a extenso, a

    natureza e a explorao dos solos disponveis. Enfim, no limite, preciso intervir sobre o clima. Ibidem, p. 193. 16

    EUCKEN apud FOUCAULT, Ibidem, p. 214, nota 42.

  • 16

    Quantidade de populao, conhecimentos, aptides, ordem jurdica e, at mesmo,

    o clima: todos esses elementos so dados globais, no diretamente econmicos, os quais so

    influenciveis segundo a dinmica do mercado. Para os neoliberais, no manejo das aes

    ordenadoras, o raciocnio no dado o estado de coisas, qual o sistema econmico mais

    adequado. Trata-se do inverso: uma vez que o processo de regulao econmico-poltico

    e no pode ser seno o mercado, como alterar as bases materiais, culturais, tcnicas e

    jurdicas. 17

    No que toca s polticas sociais, a segunda interveno governamental

    exemplificada por Foucault, pode-se conceitu-las como medidas de Estado que estabelecem

    como objetivo repartir parte do acesso de cada cidado aos bens de consumo, sendo possvel

    dimension-las em trs aspectos. Primeiro, tratam-se de contrapesos a processos econmicos

    que, por si mesmos, induzem os efeitos de desigualdade e, de maneira geral, desarticulam a

    sociedade civil. Segundo, seu o principal instrumento a transferncia de elementos de renda

    e a socializao de certos bens de consumo, como sade, cultura, educao. Por fim, terceiro

    aspecto, uma economia atravessada por polticas sociais admite a elevao dessa

    redistribuio de riqueza conforme for maior crescimento econmico. 18

    Contra esses trs aspectos as novas teorias econmicas logo lanaram dvidas e

    trataram de redimension-las conforme seu projeto social. Primeiro porque uma poltica

    social, para se integrar economia neoliberal, no pode lhe servir de contrapeso e no deve

    ser definida como um processo de compensao. A promessa de relativa equalizao e o

    acesso a certos bens de consumo no pode ser trabalhada enquanto objetivo, justamente

    porque o processo de regulao econmica o mecanismo de preos deve ser dado pela

    concorrncia, a qual pressupe em seu terreno o constante embate de diferenas entre os

    agentes econmicos. Em um famoso adgio neoliberal, A desigualdade a mesma para

    todos.

    Em segundo lugar, a ferramenta da pretensa poltica social neoliberal no ser,

    conforme bem se percebe, a socializao do consumo e da renda; ser, muito pelo contrrio, a

    privatizao. Isto , no se convocar mais o Estado ou os demais cidados para que garantam

    a qualidade de vida ou minimizem os seus riscos. Doenas, danos materiais, educao,

    segurana, energia eltrica, telefonia: o mximo possvel de campos vitais sero destinados

    economia para que todo indivduo com rendimentos adequados possa, seja individualmente

    17

    Ibidem, p. 193. 18

    Ibidem, p. 195.

  • 17

    ou em sociedades de ajuda mtua, garantir-se a partir de si mesmo contra os riscos que

    existem. 19

    Trata-se de [...] conceder a cada um uma espcie de espao econmico dentro do

    qual podem assumir e enfrentar os riscos. 20

    Esses dois elementos o abandono de qualquer tentativa de equalizao e o

    deslocamento de deveres sociais do Estado para a contratao de servios privados

    conduzem concluso de que a nica poltica social cabvel para o neoliberalismo o

    crescimento econmico. Ser ele que, por si s, permitir aos indivduos alcanar um padro

    de renda que lhes d acesso propriedade privada, aos seguros individuais, capitalizao

    pessoal ou familiar, com as quais podero absorver esses riscos que antes cabia ao Estado

    absorver. Trata-se, nas palavras de Foucault, de uma poltica social privatizada. 21

    Tudo que foi exposto, ento, permite-nos suspeitar da crena de que o

    neoliberalismo significa menos governo, menos Estado. A comparao entre as aes

    econmicas conformes aquelas intervenes governamentais dirigidas, direta ou

    indiretamente, economia e o crescimento econmico como sinnimo nico de poltica

    social demonstra a natureza do governo neoliberal. Para o professor francs:

    [...] o neoliberalismo, o governo neoliberal no tem de corrigir os efeitos

    destruidores do mercado sobre a sociedade. Ele no tem de constituir, de certo

    modo, um contraponto ou um anteparo entre sociedade e processos econmicos. Ele

    tem de intervir sobre a prpria sociedade em sua trama e em sua espessura. No

    fundo, ele tem de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a

    cada instante e em cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores

    e nisso que a sua interveno vai possibilitar o que o seu objetivo: a constituio de um regulador de mercado geral da sociedade. Vai se tratar, portanto,

    no de um governo econmico, como aquele com que sonhavam os fisiocratas, isto

    , o governo tem apenas de reconhecer e observar as leis econmicas; no um

    governo econmico, um governo de sociedade. 22

    Investir maciamente sobre a sociedade para garantir que o seu princpio

    regulador seja a concorrncia: eis o que est em jogo para o governo neoliberal. Para

    Foucault, no se est mais diante de uma sociabilizao equalizada pela dinmica dos

    processos de troca de mercadorias; vive-se em uma poca [...] submetida dinmica

    concorrencial. No uma sociedade de supermercado uma sociedade empresarial, 23 onde o

    sujeito que se pretende constituir no o do liberalismo clssico, homem da troca ou do

    consumo, mas aquele do empresariamento.

    19

    Ibidem, p. 197. 20

    Ibidem, p. 198. 21

    Ibidem, p. 199. 22

    Ibidem, p. 199. 23

    Ibidem, p. 201.

  • 18

    Isso quer dizer, conforme veremos ao longo desse trabalho, que o que est em

    questo a constituio de uma trama social onde as unidades de base tenham exatamente a

    forma de empresas. A estratgia para a manuteno do capitalismo no ter mais o seu foco

    no investimento em colossais conglomerados nacionais ou internacionais, e tampouco

    apostar em empresas estatais. No se est simplesmente na sociedade regida pela

    uniformidade, na sociedade de massa, na sociedade de consumo, na sociedade de

    mercadorias, na sociedade do espetculo, na sociedade dos simulacros. O atual

    multiculturalismo capitalista24

    conjuga todas essas formas em uma equao cujo resultado,

    prega-se, o fim das ideologias. 25

    O tempo presente, enfim, o de uma sociedade indexada concorrncia de

    mercado generalizada, a qual promete aos homens multiplicidade e singularizao, porm sem

    avis-los de que so essas as condies de seu assujeitamento.

    1.2. A ABORDAGEM ECONMICA DOS COMPORTAMENTOS E A TEORIA DO

    CAPITAL HUMANO

    Buscou-se enfatizar nas pginas recentes que o neoliberalismo, ao focar na

    concorrncia uma matriz reguladora da sociedade, desconstri a necessidade do laissez-faire

    de Adam Smith. Longe de exigir inatividade do Estado, essa corrente poltica prev um

    constante governo daqueles fatores de moldura, daqueles elementos no-econmicos que

    garantam as condies apropriadas concorrncia nas mais diversas tramas sociais.

    Por certo que a corrente neoliberal americana tambm se debruou em aspectos

    macroeconmicos capazes de erguer esse novo capitalismo; todavia, pode-se perceber em

    alguns de seus tericos como Becker, Schultz e Robbins uma abordagem das relaes

    sociais capaz de conduzir o projeto de novo liberalismo a uma radical capilaridade por dentro

    das relaes individuais. Tal qual Foucault afirma, trata-se de uma maneira pela qual os

    neoliberais americanos utilizam a economia de mercado e as anlises que lhe so

    caractersticas para compreender relaes no mercantis, vulgarmente chamadas de sociais. 26

    24

    Sobre esse tema, bastante interessante a leitura de Condio Ps-Moderna, de David Harvey. 25

    ANDERSON, Perry. Balano do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Ps-

    neoliberalismo: as polticas sociais e o Estado democrtico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 09-23. 26

    Ibidem, p. 329.

  • 19

    E essa anlise econmica de objetos no econmicos anunciada de forma nem

    um pouco tmida. Em A Abordagem Econmica dos Comportamentos Humanos, 27

    Gary

    Becker categrico:

    Na realidade, eu cheguei concluso de que a economia to abrangente que

    aplicvel a todo o comportamento humano, seja ele um comportamento envolvendo

    preos de dinheiro ou custos de oportunidade imputados, decises repetidas ou

    pouco freqentes, decises grandes ou pequenas, fins emocionais ou mecnicos,

    pessoas ricas ou pobres, homens ou mulheres, adultos ou crianas, pessoas

    brilhantes ou estpidas, pacientes ou terapeutas, empresrios ou polticos,

    professores ou alunos. 28

    O autor americano admite que, para chegar a essa concluso alargada,

    necessrio admitir um conceito tambm alargado de economia. Assim, so apresentadas trs

    definies: (1) a alocao de bens materiais para a satisfao de demandas materiais; (2) o

    setor de mercado; e (3) a alocao de recursos escassos para a satisfao de fins concorrentes,

    alternativos.

    A primeira hiptese, para o economista, muito estreita e pouco satisfatria, uma

    vez que no visualiza o mercado de bens imateriais. A ltima delimitao lhe , por sua vez, a

    mais apropriada, pois aborda a cincia econmica pela natureza do problema a ser

    solucionado a limitao de bens e por ser a mais abrangente de todas. 29

    Dessa forma, a anlise econmica possui como ponto de partida e como referncia

    geral o estudo da maneira pela qual os indivduos promovem suas escolhas, alocando recursos

    escassos para a satisfao de fins alternativos. No se trata, portanto, de compreender um

    determinado processo de produo de riqueza; economia dada a tarefa de investigao

    [...] da anlise da racionalidade interna, da programao estratgica da atividade dos

    indivduos. 30

    De acordo com a hiptese de Becker, a conduta humana parte de dois

    pressupostos simples. O primeiro o reconhecimento de que todo o comportamento busca a

    maximizao de seu resultado, sempre buscando valer-se de uma relao ideal de eficincia

    entre o custo e o objetivo almejado. O segundo pressuposto de que os preos e outros

    instrumentos de mercado determinam a disponibilidade dos recursos escassos dentro de uma

    27

    Nessa monografia se est trabalhando com a edio original, em ingls, cujo ttulo The Economic Approach

    to Human Behavior. Todas as citaes apresentadas so tradues livres dessa obra. 28

    BECKER, Gary Stanley. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: The Universtity of Chicago

    Press, p. 8. 29

    Ibidem, p. 4. 30

    FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 307.

  • 20

    sociedade, razo pela qual constrangem os desejos e coordenam as aes dos agentes

    econmicos, tal qual as [...] funes designadas estrutura nas teorias sociolgicas. 31

    Quando aplicada ao conceito de trabalho, essa anlise econmica trouxe mais uma

    importante distncia entre as teorias neoliberais e os postulados do liberalismo clssico.

    importante ter em mente que para a economia poltica clssica, a qual se assenta

    majoritariamente nos estudos de Ricardo, o trabalho sempre foi definido de maneira

    quantitativa e segundo a varivel temporal; 32

    contudo, se considerar-se, tal qual os

    neoliberais, que a tarefa da economia analisar a estratgia e raciocnio dos indivduos na

    alocao de recursos escassos para a satisfao de fins alternativos, ento se deve

    compreender o trabalho a partir do ponto de vista de quem trabalha.

    O trabalhador no ser encarado, portanto, conforme um objeto de oferta e

    procura pela sua fora de trabalho; para os neoliberais, o trabalhador ser um sujeito

    econmico ativo, o que implica dizer que seu salrio no lhe representa o preo de venda da

    sua mo de obra: , to somente, uma renda. Resgatando o conceito de Irving Fisher, 33

    se por

    renda entende-se o produto ou rendimento de um capital, percebe-se que o salrio ser

    rendimento de um patrimnio representado pelo [...] conjunto de todos os fatores fsicos e

    psicolgicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele trabalho. 34

    A decomposio do trabalho em capital e renda reflete uma consequncia

    importante dentro da ordem de governo neoliberal, pois, sendo definido como o somatrio de

    elementos que habilitam algum a um determinado salrio, trata-se de um [...] capital

    humano na medida em que, justamente, a competncia-mquina de que ele renda no pode

    ser dissociada do indivduo humano que seu portador. 35 Dessa maneira, estar dentro dos

    clculos do trabalhador agregar aptides e competncias sobre si prprio, de modo que possa

    elevar seus rendimentos sobre o patrimnio que constitui o seu corpo, a sua intelectualidade e

    as suas emoes.

    Na compreenso de Theodore Schultz, advogando pela teoria do capital humano:

    Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, no pela difuso da propriedade

    das aes da empresa, como o folclore colocaria em questo, mas pela aquisio de

    conhecimentos e de capacidades que possuem valor econmico. Esse conhecimento

    31

    BECKER, Gary Stanley. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: The Universtity of Chicago

    Press, p. 5. 32

    FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 303. 33

    Irving Fisher (1867-1947) foi um economista, professor da Universidade de Yale, cuja produo acadmica

    inaugurou o pensamento econmico conhecido por monetarismo. 34

    Ibidem, p. 308. 35

    Ibidem, p. 312.

  • 21

    e essa capacidade so em grande parte o produto de investimento e, combinados

    com outros investimentos humanos, so responsveis predominantemente pela

    superioridade produtiva dos pases tecnicamente avanados. 36

    Nesse sentido, essa categoria de investimento tambm entraria nos lares e nas

    fases mais imaturas do ser humano:

    Uma classe particular de capital humano, consistente do capital configurado na criana, pode ser a chave de uma teoria econmica da populao. A formao do capital configurado na criana pelo lar, pelo marido e pela mulher comearia com a criao dos filhos e prosseguiria ao longo de sua educao por todo o perodo da

    infncia. Uma abordagem de investimento relativamente ao crescimento da

    populao acha-se, atualmente, trilhando um novo caminho. 37

    H a possibilidade de se falar, tambm, dos cuidados mdicos e higinicos, [...]

    que aparecem assim como elementos a partir dos quais o capital humano poder primeiro ser

    melhorado, segundo ser conservado e utilizado pelo maior tempo possvel. 38 Schultz

    tambm menciona a questo, vez que as atividades sanitrias implicam em consequncias

    quantitativas e qualitativas, apontando, tambm, que a alimentao adicional possui carter de

    bem produtor, principalmente nos pases subdesenvolvidos. 39

    Trata-se de uma complementao bastante interessante teoria neoliberal alem e,

    ironicamente, em um movimento inverso. Se as exposies de Eucken partem da

    macroeconomia em direo disperso de unidades de base formatadas em empresas, as

    teses americanas iniciam-se em comportamentos individuais para reverberar em polticas

    governamentais estruturais baseadas em uma teoria econmica da populao, conforme

    a citao de Schultz.

    Isso permite reiterar a hiptese de que o neoliberalismo no sinnimo de menos

    governo; na verdade, sequer libertrio em suas teorias.

    36

    SCHULTZ, Theodore. O capital humano Investimentos em educao e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 35. 37

    Ibidem, p. 9. 38

    FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 316. 39

    SCHULTZ, Theodore. O capital humano Investimentos em educao e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 43.

  • 22

    1.3. A GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL

    Na primeira seo deste captulo, buscou-se demonstrar a teoria macroeconmica

    bsica do neoliberalismo: a necessidade de atuao do Estado na sociedade, tendo em vista o

    seu objetivo de ressaltar uma regulao social baseada na concorrncia, vez que ela seria o

    elemento fundamental economia e regulao de preos. Para Foucault, tal poltica teria

    como consequncia, portanto, a formatao de uma sociedade de sujeitos no da troca, mas do

    empresariamento.

    Posteriormente, quando se mencionou as teses americanas que utilizam a

    economia de mercado e os saberes que lhe so prprios para explicar condutas e prticas

    sociais genricas, ficou demonstrada a reformulao do conceito de trabalhador.

    Considerando-o um agente econmico ativo, os neoliberais americanos afirmam a inerente

    capacidade subjetiva de investir sobre si mesmo elementos que lhe gerem mais renda. Todo o

    indivduo , segundo essa corrente terica, empresrio de si.

    Ora, pode-se perceber que tais teorias se complementam. Ao mencionar medidas

    governamentais que interfiram na moldura do mercado, Eucken cita como exemplo a [...]

    quantidade de populao, seus conhecimentos e aptides, etc., 40 ou seja, h instrumentos

    pelos quais o Estado gerencia as massas de indivduos no intuito de alcanar determinado fim.

    Em um nvel individual, por sua vez, as teses comportamentais americanas compreendem a

    vida enquanto uma competncia-mquina geradora de renda, a qual no pode ser dissociada

    do humano que seu portador. 41

    Conclui-se, portanto, que a vida um recurso administrvel, porm esse no um

    fato novo, criado por uma teoria poltica neoliberal; trata-se, na verdade, do cerne da poltica

    ocidental desde o incio da modernidade. Valendo-se da obra datada de 1555, O Espelho

    Poltico Contendo Diversas Maneiras de Governar, de Guillaume de La Perrire, Foucault

    define como governo [...] a correta disposio das coisas, das quais [sic] algum se encarrega

    para conduzi-las a um fim adequado, 42 sendo que:

    [...] aquilo a que o governo se refere no , portanto, o territrio, mas uma espcie de

    complexo constitudo pelos homens e pelas coisas. Quer dizer tambm que essas

    coisas de que o governo deve se encarregar, diz La Perrire, so os homens, mas em

    suas relaes, em seus vnculos, em suas imbricaes com essas coisas que so as

    40

    Ibidem, p. 214, nota 42. 41

    Ibidem, p. 312. 42

    FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 127.

  • 23

    riquezas, os recursos, os meios de subsistncia, o territrio, claro, em suas

    fronteiras, com suas qualidades, seu clima, sua sequido, sua fecundidade. So os

    homens em suas relaes com estas outras [sic] coisas que so os costumes, os

    hbitos, as maneiras de fazer ou de pensar. E, enfim, so os homens em suas

    relaes com estas outras coisas que podem ser os acidentes ou as calamidades como

    a fome, as epidemias, a morte.43

    Esse complexo constitudo pelos homens e pelas coisas precisamente o conceito

    de populao, a qual deve ser percebida como finalidade e instrumento de governo, e no

    como mera demonstrao de fora da nao. Finalidade de governo na medida em que

    melhorar o destino da populao o prprio objetivo da governamentalidade. 44

    E

    instrumento de governo justamente porque a obteno dessa finalidade dar-se- atravs de

    instrumentos dirigidos direta ou indiretamente populao: campanhas de natalidade,

    controle dos fluxos migratrios, vigilncia sobre a higiene, novos projetos urbansticos,

    instrumentos de seguridade social.

    Reafirmando, a populao dotada de interesses, anseios e aspiraes, mas, ao

    mesmo tempo, um objeto manejvel:

    [Ela aparece] como consciente, diante do governo, do que ela quer, e tambm

    inconsciente do que a fazem fazer. O interesse como conscincia de um dos

    indivduos que constitui a populao e o interesse como interesse da populao,

    quaisquer que sejam os interesses e as aspiraes individuais que a compem, isso

    que vai ser, em seu equvoco, o alvo e o instrumento fundamental do governo das

    populaes. 45

    A conduo dessa massa de homens, conforme razovel suspeitar, no se d ao

    acaso e espera-se ter demonstrado isso pelas construes tericas apresentadas nas duas

    sees anteriores desta monografia. Pois, no que tange ao projeto neoliberal, definiu-se que

    sua principal poltica de sociedade a abertura de espaos, no interior da trama social, para os

    mecanismos de concorrncia de mercado, sendo tal processo desencadeado pela generalizao

    da forma empresa. Dessa maneira, pode-se definir uma governamentalidade neoliberal a

    partir de duas instncias.

    A primeira diz respeito configurao de uma grade de racionalidade interna

    governamentalidade neoliberal a qual [...] deve permitir testar a ao governamental, aferir

    43

    Ibidem, p. 128-129. 44

    No sentido dessa compreenso da populao enquanto finalidade do governo, interessante a afirmao de

    Rousseau: Qual o fim da sociedade poltica? A conservao e prosperidade de seus membros; e qual o sinal mais seguro de que eles conservam e prosperam? Seu nmero e populao. No busqueis noutra parte to

    disputado sinal. Propores observadas, o governo sob o qual, sem meios estranhos, sem naturalizao, sem

    colnias, os cidados multiplicam e povoam mais, infalivelmente o melhor; aquele, onde o povo diminuiu e se

    arruna o pior. Calculadores, agora vos pertence contar, medir, comparar. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social - ou Princpios do Direito Poltico. So Paulo: Editora Martin Claret, 2000, p. 79. 45

    FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 140.

  • 24

    sua validade, deve permitir objetar atividade do poder pblico seus abusos, seus excessos,

    suas inutilidades, seus gastos pletricos. 46 Trata-se de formar uma matriz de inteligibilidade

    capaz de ponderar a utilidade e a eficincia das aes de Estado, precisamente nos termos do

    jogo de oferta e demanda, nas condies de eficcia quanto aos dados desse jogo, nas

    dimenses dos custos implicados por essa interveno do poder pblico no campo do

    mercado. A crtica dirigida governamentalidade, importante ressaltar, no tem sua origem na

    poltica ou no direito:

    uma espcie de tribunal econmico permanente em face do governo. Enquanto o

    sculo XIX havia procurado estabelecer, em face e contra a exorbitncia da ao

    governamental, uma espcie de jurisdio administrativa que permitisse aferir a ao

    do poder pblico em termos de direito, temos aqui uma espcie de tribunal

    econmico que pretende aferir a ao do governo em termos estritamente de

    economia e de mercado. 47

    A segunda instncia de definio da governamentalidade neoliberal, por sua vez,

    trata da constituio do sujeito e da sua subjetividade. Ainda que se tenha dito que o intuito da

    governamentalidade seja melhorar o destino da populao, por bvio que h um interesse

    subjacente nessa melhoria, pois a cada sujeito est ligada uma corporeidade, a qual est

    implicada a sua utilizao econmica. O corpo investido por relaes de poder e dominao,

    em larga medida, por conta de sua fora de produo, que s possvel explorar mediante

    processos de sujeio, nos quais, muitas das vezes, as prprias necessidades vitais so

    utilizadas como um instrumento poltico. Por isso, o corpo s se torna fora til se , ao

    mesmo tempo, produtivo e submisso. 48

    nesse sentido que Foucault recomenda certa cautela:

    Mas no devemos nos enganar: a alma, iluso dos telogos, no foi substituda por

    um homem real, objeto de saber, de reflexo filosfica ou interveno tcnica. O

    homem de que nos falam e que nos convidam a liberar j em si mesmo o efeito de

    uma sujeio bem mais profunda do que ele. Uma alma o habita e o leva existncia, que ela mesma uma pea no domnio exercido pelo poder sobre o

    corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia poltica; a alma, priso do

    corpo. 49

    Pelas caractersticas dos objetos que a determinam, a governamentalidade

    neoliberal possui a especificidade de articular os mecanismos de subjetivao atravs da

    inteligibilidade prpria s teorias econmicas. Conforme se trabalhou acerca da teoria

    econmica dos comportamentos humanos, viu-se que as dinmicas da subjetividade so

    46

    FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Bipoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 338 47

    Ibidem, p. 339. 48

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Nascimento da Priso. Petrpolis: Editora Vozes, 1997, p. 29. 49

    Ibidem, p. 32.

  • 25

    compreendidas atravs do raciocnio da alocao de recursos escassos a finalidade

    alternativas; nesse sentido, seres humanos so assimilados na forma de empresas de si.

    Assim sendo, o espao de vivncia dessa multiplicidade deve ser modulado ao mximo na

    estrutura do mercado, pois esse o meio no qual as relaes se medeiam pelas regras da

    concorrncia. Desta maneira, os mecanismos de anlise e interferncia social so oriundos das

    variveis probabilsticas prprias s teorias econmicas: dficit, nvel de salrios, nvel de

    desemprego, nvel de atividade econmica, rendimento per capita, juros mdios, taxas de

    cmbio, inflao geral e setorial de preos, balana comercial, taxa concorrencial.

    Ainda que sua genealogia remonte modernidade e esteja revestida de um

    discurso sofisticadamente atual, a governamentalidade do neoliberalismo rearticula uma srie

    de tecnologias de poder. Pela radicalidade com que reescreve o exerccio da soberania e pela

    acuidade com que operacionaliza o biopoder, esses sero os temas de estudo do prximo

    captulo.

  • 26

    CAPTULO 2:

    DO POVO RAA: SOBERANIA, EXCEO E VIDA NUA

    2.1. O BIOPODER

    Conforme j se mencionou brevemente, o fato de a populao ser abordada como

    recurso administrvel tanto por tericos neoliberais quanto por pensadores do sculo XVI traz

    a suspeita de que a governamentalidade uma estratgia de poder bastante consolidada, pelo

    menos nos Estados ocidentais. Ao objetivo de conduo dos homens em um dado territrio,

    nesse sentido, foi fundamental a rearticulao de instituies e saberes ao longo da

    modernidade. 50

    Para Foucault, o desenvolvimento do capitalismo industrial s foi possvel atravs

    da insero controlada dos corpos humanos nos aparelhos de produo, ensejando um

    equilbrio entre os fenmenos populacionais e os processos econmicos. A ateno

    despendida ao corpo exigiu a mais diversa gama de tticas e investimentos, sendo que:

    [...] foi-lhe necessrio o crescimento tanto de seu reforo quanto de sua

    utilizabilidade [sic] e sua docilidade; foram-lhe necessrios mtodos de poder

    capazes de majorar as foras, as aptides, a vida em geral, sem por isto torn-las

    mais difceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado,

    como instituies de poder, garantiu a manuteno das relaes de produo, os

    rudimentos de antomo e de bio-poltica, inventados no sculo XVIII como tcnicas

    de poder presentes em todos os nveis do corpo social e utilizadas por instituies

    bem diversas (a famlia, o Exrcito, a escola, a polcia, a medicina individual ou a

    administrao das coletividades), agiram no nvel dos processos econmicos, do seu

    desenrolar, das foras que esto em ao em tais processos e os sustentam;

    operaram, tambm, como fatores de segregao e de hierarquizao social, agindo

    sobre as foras respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relaes de

    dominao e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulao dos homens do

    capital, a articulao do crescimento de grupos humanos expanso das foras

    produtivas e a repartio diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possveis

    pelo exerccio do bio-poder com suas formas e procedimentos mltiplos. O

    investimento sobre o corpo vivo, sua valorizao e a gesto distributiva de suas

    foras foram indispensveis naquele momento. 51

    Essa captura da vida humana pelo poder poltico foi categorizada pelo terico

    francs como biopoder e se trata de um acrscimo significativo ao exerccio da soberania,

    50

    FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio, Populao. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 142. 51

    FOUCAULT, Michel. A Histria da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988,

    p. 153-154.

  • 27

    pois ultrapassa o seu direito tpico, a saber, a deciso sobre a vida e a morte dos sditos. Nos

    termos da teoria poltica clssica possvel dizer que, em relao ao poder do soberano, no

    se plenamente vivo nem plenamente morto, uma vez que [...] simplesmente por causa do

    soberano que o sdito tem direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar

    morto. 52 De forma mais incisiva, contudo, importante perceber que a real essncia desse

    poder reside na execuo capital do sdito. O direito de julgar morte o que separa o

    soberano de outras autoridades estabelecidas. Por consequncia, somente se est vivo porque

    ainda no se foi morto pela ordem poltica; nesse sistema, viver fruto de uma omisso do

    exerccio da soberania. S se vive porque assim se deixou e s se morre porque assim foi feito.

    A soberania clssica pode ser definida pelo adgio deixar viver ou fazer morrer.

    De modo inverso, com a captura da vida pelo exerccio do poder poltico, a

    frmula clssica da soberania ser alterada, pois lhe caber, agora, gerir as potncias vitais das

    massas humanas e, no por acaso, o desenvolvimento do biopoder acaba por restringir a

    aplicao da pena de morte. 53

    Dessa forma, por ter como novo fundamento a obrigao de

    conservar, proteger, reforar, multiplicar e ordenar a vida, a soberania moderna ser definida

    como um poder de fazer viver ou deixar morrer.

    Essa transformao, como de se esperar, no se deu repentinamente e, pelo

    menos no campo das tecnologias de poder, possvel observar duas formas especficas de se

    lidar com o corpo. A primeira modalidade de manifestao do biopoder atinge considervel

    desenvolvimento no final do sculo XVII 54

    e caracterizada por um regime de constante

    esquadrinhamento do corpo em sua individualidade atravs de procedimentos dirigidos ao

    controle do espao, do movimento e do tempo. Trata-se de um regime disciplinar que se

    centrou no corpo tratando-o como uma mquina, o qual pode ter suas dinmicas controladas,

    suas aptides ampliadas, suas foras estorcidas, sua utilidade e docilidade paralelamente

    fomentadas, sua existncia integrada ao modo de produo de riquezas. 55

    Essa poltica anatmica do corpo humano teve como espaos de aplicao as

    escolas, os hospitais, os locais de trabalho especialmente as fbricas , as academias

    militares, os crceres; enfim, de forma mais abrangente, todo espao fechado que, gestando

    indivduos hierarquicamente, permitisse sua repartio, sua observao e sua identificao. O

    modelo ideal dessa organizao disciplinar foi proposto pela arquitetura benthaminiana do

    52

    FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 202. 53

    FOUCAULT, Michel. A Histria da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1988,

    p. 150. 54

    FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 203. 55

    Ibidem, p. 151.

  • 28

    Panptico, o qual se caracteriza por um anel perifrico dividido em celas incomunicveis

    entre si, porm expostas s sesses exterior e interior; no centro desse anel, uma torre cuja

    altura permite a uma autoridade vigiar cada sujeito trancafiado sem, no entanto, ser exposta.

    Nos termos de Foucault:

    Da o efeito mais importante do Panptico: induzir no detento um estado consciente

    e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automtico do poder.

    Fazer com que a vigilncia seja permanente em seus efeitos, mesmo se

    descontnua em sua ao; que a perfeio do poder tenda a tornar intil a atualidade

    de seu exerccio; que esse aparelho arquitetural seja uma mquina de criar e

    sustentar uma relao de poder independente daquele que o exerce: enfim, que os

    detentos se encontrem presos numa situao de poder de que eles mesmo so os

    portadores. Para isso, ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro

    seja observado sem cessar por um vigia; muito pouco, pois o essencial que ele se

    saiba vigiado; excessivo, porque ele no tem necessidade de s-lo efetivamente. Por

    isso Bentham colocou como princpio de que o poder devia ser visvel e

    inverificvel. 56

    A segunda forma de exerccio do biopoder, por sua vez, surge na segunda metade

    do sculo XVIII. Sem excluir a tcnica disciplinar, trata-se de uma tcnica que a integra e a

    refora ainda mais nas esferas capilares da sociedade atravs de operaes dirigidas em uma

    escala geral. Ela no se dirige ao homem-corpo, mas ao homem-espcie; para o filsofo

    francs, essa biopoltica:

    [...] se dirige multiplicidade dos homens, no na medida em que eles se resumem

    em corpos, mas na medida em que ela forma, com contrrio, uma massa global,

    afetada por processos de conjunto que so prprios da vida, que so processos como

    o nascimento, a morte, a produo, a doena, etc. Logo, depois de uma primeira

    tomada do poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualizao,

    temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, no individualizante, mas

    que massificante. 57

    Os alvos de controle da biopoltica, como se v, so diversos dos da disciplina.

    Por meio das medies estatsticas, das estimativas demogrficas, dos clculos de pirmide

    etria, o campo de interveno desse poder o conjunto de eventos humanos e coletivos, os

    quais alguns so universais e outros so acidentais; observados no homem indivduo, so

    aleatrios e imprevisveis, mas, tomados no plano coletivo, so constantes de fcil

    constatao. 58

    Para ilustrar o foco da biopoltica, pode-se perceber que a morbidade, a partir

    do sculo XVIII, no encarada unicamente pelos surtos de epidemias caractersticos da

    Idade Mdia; medida que a medicina social comeou a controlar os tempos de morte

    56

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Nascimento da Priso. Petrpolis: Editora Vozes, 1997, p. 191. 57

    FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, 2010, p. 204. 58

    Ibidem, p. 206.

  • 29

    iminente, o governo viu-se capaz de considerar as endemias, ou seja, aquelas doenas que

    constantemente se alojavam em uma populao, porm sem a fora para matar seus

    indivduos. No mais como sinnimo de morte, a doena ser atacada por ser um evento

    permanente de [...] subtrao das foras, diminuio do tempo de trabalho, baixa de energias,

    custos econmicos, tanto por causa da produo no realizada quanto dos tratamentos que

    podem custar. 59

    A funo desse aparato globalizante de biopoder, por sua vez, reside na previso

    dos fenmenos ligados vida e na interveno sobre as determinaes desses fenmenos

    gerais espcie. Trata-se, ento, de desenvolver instrumentos reguladores que fixem um

    equilbrio, que determinem uma curva mdia, que assegurem compensaes; trata-se, enfim,

    de instalar e aperfeioar dispositivos de previdncia em torno do aleatrio que inerente a

    uma populao humana com o objetivo de otimizar um estado de vida. 60

    Em linhas gerais, essa a abordagem de Michel Foucault sobre a transmutao da

    frmula da soberania poltica. No mais um julgamento de vida e morte sobre o sdito, o

    poder soberano irradiar seus efeitos atravs da manuteno e da conduo das vidas que

    compem a nao.

    Nas prximas pginas, porm, seremos obrigados explorar um campo que

    desnuda a limitao do estudo foucaultiano sobre o biopoder. Ironicamente, isso no implica

    na desconstruo da hiptese at aqui sustentada; pelo contrrio, retomaremos o conceito de

    soberania em sua concepo radical para demonstrar que o biopoder uma forma que

    antecede modernidade.

    2.2. O ESTADO DE EXCEO E A RELAO DE BANDO: MEDIAO ENTRE

    SOBERANIA E VIDA NUA

    Em que pese ter abordado constantemente o direito, Foucault empreendeu tal

    tarefa nos campos concretos das relaes de poder, buscando ao mximo esquivar-se da

    anlise tradicional baseada em modelos jurdico-institucionais. Em seus prprios termos, o

    professor francs afirma:

    59

    Ibidem, p. 205. 60

    Ibidem, p. 207.

  • 30

    O sistema do direito e o campo judicirio so o veculo permanente de relaes de

    dominao, de tcnicas de sujeio polimorfas. O direito, preciso examin-lo, creio

    eu, no sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos

    procedimentos de sujeio que ele pe em prtica. Logo, a questo, para mim,

    curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da

    obedincia dos indivduos submetidos a essa soberania, e fazer que aparea, no lugar

    da soberania e da obedincia, o problema da dominao e da sujeio. Assim sendo,

    era necessrio certo nmero de precaues de mtodo para procurar seguir essa

    linha, que tentava curto-circuitar a linha geral da anlise jurdica ou desviar dela.61

    no ponto cego da pesquisa de Foucault, na convergncia entre o biopoder e a

    soberania, que Giorgio Agamben dedica seu esforo intelectual. Dessa forma, a inquietao

    do autor italiano pode ser definida como [...] qual o ponto em que a servido voluntria dos

    indivduos comunica com o poder objetivo? 62

    Para Agamben, fundando-se na elaborao terica de Carl Schimitt, a soberania

    produz um paradoxo: na medida em que o ordenamento jurdico reconhece no soberano o

    poder de proclamar o estado de exceo e de suspender o direito, o soberano est, ao mesmo

    tempo, dentro e fora do ordenamento jurdico; [...] o soberano, tendo o poder legal de

    suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. 63

    A justificativa para tal suspenso reside no fato de que uma norma de direito no

    possui sua aplicao contida em si, vez que, sendo geral, apenas manifesta um determinado

    sentido a casos particulares; dessa maneira, depende de uma situao de estabilidade das

    relaes da vida qual possa ser aplicada a sua regulamentao. Citando Schmitt, Agamben

    destaca que:

    Esta normalidade de fato no um simples pressuposto que o jurista pode ignorar;

    ela diz respeito, alis, diretamente sua eficcia imanente. No existe nenhuma

    norma que seja aplicvel ao caos. Primeiro se deve estabelecer a ordem: s ento faz

    sentido o ordenamento jurdico. preciso criar uma situao normal, e soberano

    aquele que decide de modo definitivo se este estado de normalidade reina de fato.

    Todo direito direito aplicvel a uma situao. O soberano cria e garante a situao como um todo na sua integridade. Ele tem o monoplio da deciso ltima.

    Nisto reside a essncia da soberania estatal, que, portanto, no deve ser propriamente

    definida como monoplio da sano ou do poder, mas como monoplio da deciso,

    onde o termo deciso usado em um sentido geral que deve ser ainda desenvolvido. 64

    61

    Ibidem, p. 24. 62

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010,

    2 edio, p. 13. 63

    Ibidem, p. 22. 64

    SCHMITT, apud AGAMBEN, ibidem, p. 23.

  • 31

    Essa suspenso da lei criada, como se depreende do texto de Schmitt, um

    dispositivo que responde possibilidade de caos, o qual ofende diretamente eficcia

    imanente da norma na medida em que retira a sua base de incidncia. A possibilidade de

    instaurao do estado de exceo, por essa razo, uma medida inerente ao Estado de Direito,

    uma vez que nele a lei inafastvel; trata-se de uma situao peculiar de excluso, onde a

    norma tem seu contedo neutralizado pelo soberano justamente como forma de garantir a sua

    vigncia: suspendido o seu contedo, mantm-se garantida a sua existncia. O estado de

    exceo , por isso, a dramtica criao de uma situao de normatizao efetiva do real, 65

    onde um ato revestido de pura fora de lei busca materializar um comando cuja referncia foi

    suspensa: 66

    A afirmao segundo a qual a regra vive somente da exceo deve ser tomada, portanto, ao p da letra. O direito no possui outra vida alm daquele que consegue

    capturar dentro de si atravs da excluso inclusiva da exceptio: ele se nutre dela e,

    sem ela, letra morta. Neste sentido verdadeiramente o direito no possui por si nenhuma existncia, mas o seu ser a prpria vida dos homens. A deciso soberana traa e de tanto em tanto renova esse limiar de indiferena entre o externo e o

    interno, excluso e incluso, nmos e phsis, em que a vida originariamente

    excepcionada no direito. 67

    O plano de existncia cercado pela exceo possui a particular caracterstica de

    no ser definido nem como uma situao de fato e nem como uma situao de direito, pois

    precisamente a instituio do limiar de indiferena entre estas. A exceo soberana no tem

    por finalidade controlar ou neutralizar o excesso; somente atravs da amlgama entre

    faticidade e juridicidade consegue definir o espao no qual o sistema jurdico-poltico resgata

    a sua aplicao realidade. 68

    Dessa forma, se a exceo o fundamento do poder soberano,

    ento a soberania no uma categoria exclusivamente poltica, nem um conceito jurdico,

    nem uma potncia fora do direito, nem uma norma suprema do ordenamento jurdico: ela

    um instituto originrio no qual o direito se vincula existncia e a internaliza atravs de sua

    prpria derrogao. 69

    Por isso, viver sob a sombra de uma lei sem significado no pode representar

    outra condio seno o mesmo que estar abandonado ao limiar entre o no pertencimento e a

    65

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceo. So Paulo: Boitempo Editorial, 2 edio, 2008, p. 58. 66

    O estado de exceo um espao anmico onde o que est em jogo uma fora de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: fora de lei). Ibidem, p. 61. 67

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010,

    2 edio, p. 34. 68

    Ibidem, p. 25. 69

    Ibidem, p. 35.

  • 32

    pertena, entre a liberdade da prpria sorte e a exposio potncia total da norma. A relao

    do bando, figura do antigo direito germnico a qual representava tanto o comando do lder

    quanto a excluso da comunidade, faz ressoar atravs da soberania essa ambiguidade: uma

    vida completa merc tanto da excluso quanto da captura da lei. 70

    Tal existncia, para Agamben, encontrada em um instituto do direito romano

    arcaico no qual o carter do sagrado ligado a uma vida humana. Resgatando o verbete homo

    sacer do compndio Sobre o Significado das Palavras escrito pelo gramtico Sexto Pompeu

    Festo, l-se o seguinte:

    Homem sacro , portanto, aquele que o povo julgou por um delito; no lcito

    sacrific-lo, mas quem o mata no ser condenado por homicdio; na verdade, na

    primeira lei tribuncia se adverte que se algum matar aquele que por plebescito sacro, no ser considerado homicida. Disso advm que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado de sacro.

    71

    Sem dvida, o homo sacer uma figura enigmtica. Ainda que julgado pelo povo

    pelo cometimento de um delito, no permitido imputar-lhe uma pena; 72

    mesmo eleito como

    sagrado, no h condenao contra qualquer um que o matar. A sacralidade, portanto, era o

    assujeitamento a uma dupla exceo: tanto uma vida no punvel pelas regras de direito

    quanto uma vida no protegida contra o homicdio de seus pares. Ao mesmo tempo, o homo

    sacer capturado pela norma na justa medida em que a prpria lei afirma no lhe ser

    aplicvel. 73

    H, por sua vez, outra condio de existncia em Roma bastante significativa, pois

    o vitae necisque potestas o direito de vida e de morte, usualmente confundido como

    originrio do poder soberano , ao designar o incondicional poder de morte do pater familias

    sobre os filhos homens, tambm ilustra a incluso da vida humana na comunidade atravs da

    sua excluso ao amparo da lei. essencial considerar:

    Que este poder absoluto e no concebido nem como a sano de uma culpa nem

    com a expresso do mais geral poder que compete ao pater enquanto chefe da

    domus: ele irrompe imediatamente e unicamente da relao pai-filho (no instante em

    70

    Ibidem, p. 35. 71

    Ibidem, p. 186. Na verso em latim, original: At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque faz este um immolari, sed qui occidit, parricidi non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur si quis eum , qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit. Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appelari solet. Ibidem, p. 74. 72

    As formas mais antigas de execuo capital de que temos notcia (a terrvel poena cullei, na qual o condenado, com a cabea coberta por uma pele de lobo, era encerrado em um saco com serpentes, um co e um

    galo, e jogado ngua; ou a defenestrao Rupe Tarpea) so, na realidade, antes ritos de purificao que penas de

    morte no sentido moderno: [...] Ibidem, p. 83. 73

    Ibidem, p. 84.

  • 33

    que o pai reconhece o filho varo alando-o do solo adquire sobre ele o poder de

    vida e de morte) e no deve, por isso, ser confundido com o poder de matar que pode

    competir a marido ou ao pai sobre a mulher ou sobre a filha surpreendidas em

    flagrante adultrio, e ainda menos com o poder do dominus sobre seus servos.

    Enquanto estes poderes concernem ambos jurisdio do chefe de famlia e

    permanecem, portanto, de algum modo no mbito da domus, a vitae necisque

    potestas investe ao nascer todo cidado varo livre e parece assim definir o prprio

    modelo do poder poltico em geral. No a simples vida natural [das mulheres, dos

    servos], mas a vida exposta morte (a vida nua ou a vida sacra) o elemento

    poltico originrio. 74

    Toda essa exposio sobre a vida nua reitera a estrutura de incluso atravs da

    excluso, e supera a mera analogia com a forma da soberania. Soberano e vida nua so

    categorias necessariamente conexas na medida em que a primeira quem decide sobre o

    estado de exceo e a segunda criada a partir dele. Soberana a esfera na qual se pode

    matar sem cometer homicdio e sem celebrar um sacrifcio, e sacra, isto , matvel e

    insacrificvel, a vida que foi capturada nessa esfera. 75

    A genealogia jurdico-institucional do biopoder, centrada na deciso soberana,

    revela que:

    [...] a vida humana se politiza somente atravs do abandono a um poder

    incondicionado de morte. Mais originrio que o vnculo da norma positiva ou do

    pacto social o vnculo soberano, que , porm, na verdade somente uma dissoluo

    [da norma positiva ou do pacto social]; e aquilo que esta dissoluo implica e produz

    - vida nua, que habita a terra de ningum entre a casa e a cidade , do ponto de vista da soberania, o elemento poltico originrio.

    76

    Chega-se, aqui, a uma primeira concluso de Agamben: o investimento poltico

    sobre a vida anterior modernidade, pois j encontrado no homo sacer e no sujeito

    poltico romano. Caber s prximas linhas, ento, resituar a figura do homem sacro e da vida

    nua nos termos polticos que a modernidade constri sobre os escombros das antigas

    monarquias.

    74

    Ibidem, p. 88-89. 75

    Ibidem, p. 85. 76

    Ibidem, p. 91.

  • 34

    2.3. OS DIREITOS DO CIDADO E DO HOMEM EM SUA DIMENSO

    BIOPOLTICA

    Foucault alerta para o fato de que, desde a Idade Mdia, o pensamento jurdico foi

    erguido em torno do poder rgio. A favor das monarquias, o retorno ao direito romano foi o

    empreendimento a partir do qual se reconstruiu a armadura constitutiva do poder feudal,

    monrquico, administrativo e, ao final, absolutista. Posteriormente, quando o poder jurdico

    foi retirado do controle rgio, quando as revolues da modernidade voltaram-se contra as

    monarquias, a questo ser sempre os limites a esse poder e as competncias que cabem

    soberania. Que os juristas tenham sido os servidores do rei ou tenham sido seus adversrios,

    de qualquer modo sempre se trata do poder rgio nesses grandes edifcios do pensamento e do

    saber jurdicos. 77

    No sculo XVIII, no calor da disputa terica e material por um novo destino

    poltico, a mesma teoria da soberania continua a ser invocada; porm, dessa vez, trata-se de

    interpor ao poder absolutista um projeto alternativo, o da distribuio democrtica do

    exerccio soberano. Nas palavras de Rousseau:

    Por qualquer lado que cheguemos ao princpio, sempre se toca a mesma concluso:

    isto , que o pacto social estabelece entre os cidados uma igualdade tal, que eles se

    obrigam todos debaixo das mesmas condies, e todos devem gozar dos mesmos

    direitos. Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto , todo ato

    autntico da vontade geral obriga ou favorece igualmente todos os cidados, de

    maneira que o soberano s conhece o corpo da nao e no distingue nenhum

    daqueles que o compem. Que pois rigorosamente um ato de soberania? No

    uma conveno do superior com o inferior, mas uma conveno do corpo com cada

    um de seus membros; conveno legtima, porque se escora no contrato social; justa,

    por ser a todos comum; til, porque no pode ter outro alvo seno o bem geral; e

    slida, porque a fora pblica e o poder supremo lhe servem de garantia. Enquanto

    os vassalos esto sujeitos a tais convenes, no obedecem a ningum, salvo

    prpria vontade; [...]78

    Ora, viu-se que ao longo do sculo XVIII foi desenvolvida uma nova estrutura

    geral do poder, centrada no corpo para adestrar e explorar suas foras. Mais do que

    meramente punir, essa emergente mecnica servia ao capitalismo industrial como forma de

    extrair das massas tempo e trabalho, alm de prepar-las para uma nova conformao social

    baseada no enclausuramento, na produo e na vigilncia constantes. Tratava-se, enfim, do

    77

    FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, 2010, p. 23. 78

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. So Paulo: Editora Martin Clare Ltda., 2008, 3 edio, p. 41-

    42.

  • 35

    biopoder disciplinar, o qual foi amplamente amparado por essa nova teoria da soberania na

    medida em que ela permitia [...] sobrepor aos mecanismos da disciplina um sistema de

    direito que mascarava os procedimentos dela, que apagava o que podia haver de dominao e

    de tcnicas de dominao na disciplina e, enfim, que garantia a cada qual que ele exercia,

    atravs da soberania do Estado, seus prprios direitos soberanos. 79 nesse sentido, por

    exemplo, que devem ser lidas as polticas pblicas de assistncia como a Lei dos Pobres -, a

    preocupao com a sade social, a substituio do suplcio pblico pelo confinamento no

    crcere; no uma humanizao da soberania, mas um novo arranjo nas tcnicas de

    assujeitamento ao poder.

    bastante significativo, todavia, refletir sobre a dimenso biopoltica da

    Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789. J a comear pelo seu ttulo,

    parece implcita uma ambiguidade na insero das palavras homem e cidado, pois no est

    claro se os dois termos distinguem estatutos polticos diversos ou se formam, em vez disso,

    uma combinao nica, onde o primeiro j est englobado no segundo. 80

    Ao abrir suas disposies com Os homens nascem e so livres e iguais em

    direitos., a declarao francesa institui que um fato da vida biolgica, o nascimento, que

    fundamenta o surgimento de direitos. O segundo artigo, por sua vez, determinando que A

    finalidade de toda associao poltica a conservao dos direitos naturais e imprescritveis

    do homem., demonstra que na figura dos cidados os integrantes da associao poltica

    que a vida qualificada politicamente e os direitos so conservados. E, por ter inscrito o

    nascimento natural no ncleo da associao poltica, a terceira clusula pode instituir que O

    princpio de toda a soberania reside, essencialmente, na nao, conferindo nao cuja raiz

    vem do latim natio, aquele que nasceu o encerramento da cadeia iniciada pelo nascer do

    homem. 81

    A cidadania, ento, no uma simples sujeio autoridade de um sistema de

    leis; trata-se do estatuto poltico que fundamenta a forma moderna de soberania e a

    consequente inscrio de determinados viventes em um ordenamento jurdico delimitado.

    preciso, portanto:

    [...] cessar de ver as declaraes de direitos como proclamaes gratuitas de valores

    eternos metajurdicos, [...], para ento consider-las de acordo com aquela que a

    79

    FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2 edio, 2010, p. 33. 80

    AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2

    edio, 2010, p. 123. 81

    Ibidem, p. 124-125.

  • 36

    sua funo histrica real na formao do moderno Estado-nao. As declaraes dos

    direitos representam aquela figura original da inscrio da vida natural na ordem

    jurdico-poltica do Estado-nao. Aquela vida nua natural que, no antigo regime,

    era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criao, a Deus, e no mundo

    clssico era (ao menos em aparncia) claramente distinta como zo da vida poltica

    (bos), entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se alis [sic] o

    fundamento terreno de sua legitimidade e da sua soberania.82

    Essa centralidade da noo de cidadania, acompanhada do seu vnculo ao

    biopoder da soberania, permite a compreenso do fato de que, to logo foram declarados os

    direitos do homem e do cidado, iniciou-se o debate jurdico sobre a distino entre direitos

    passivos e ativos83

    .

    Deve-se afastar destas distines de direitos a concluso de uma ofensa ao

    princpio democrtico e igualitrio que a Revoluo prometia instituir; afinal o que est em

    questo para o exerccio de poder operado pela soberania a constante incluso-exclusiva de

    formas de vida. Na diferenciao entre a cidadania plena e a incompleta est em jogo a

    continuidade de uma prerrogativa para delimitar qual vida est dentro e qual est fora.

    Conforme foi trabalhado no comeo deste segundo captulo, a ordem jurdica precisa garantir

    a sua incidncia em todo o fato significativo da realidade e, naquelas situaes limtrofes s

    quais no h referncia normativa, preciso lanar mo da exceo, fazendo vigir uma norma

    sem contedo algum.

    atravs da estrutura do ato de pura fora de lei vazia que devem ser captados os

    fenmenos do biopoder, sejam nas formas da disciplina ou da biopoltica. Em cada louco

    normalizado, em cada delinquente corrigido, em cada doente examinado, em cada operrio

    explorado: uma vida nua.

    Longe de solucionar a mortfera relao entre vida nua e soberania, a modernidade

    espalha-a para as mais capilares relaes sociais. Ser no sculo XX, com as experincias

    totalitrias, que essa manifestao de poder ser radicalizada.

    82

    Ibidem, p. 124. 83

    [...] les droits naturels et civils sont ceux pour le maintien desquels la societ forme; et les droits politiques, ceux par lesquels la societ se forme. Il vaut miex, pour la clart du langage, appeler les premiers droits passifs et

    le seconds droits actifs... Tous les habitants dum pays doivent jouir des droits de citoyen passif... tous ne sont

    ps citoyens actifs. Les femmes, du moins dans ltat actue, les enfants, les trangers, ltablissement public, ne

    doivent pont influencer activement sur la chose publique. SIEYES, apud AGAMBEN, Ibidem, p. 127.

  • 37

    2.4. DAR FORMA RAA

    Nas palavras de Alfred Rosenberg, o principal terico racial do nazismo, [...] a

    viso de mundo nacional-socialista parte da convico de que solo e sangue constituem o

    essencial do Germnico, e que , portanto, em referncia a estes dois datismos que uma

    poltica cultural e estadual deve ser orientada. 84 sintomtico considerar, ento, que a

    frmula ius soli (o nascimento em certo territrio) e ius sanguinis (o nascimento lastreado de

    genitores cidados) so os critrios para identificar, desde o direito romano, a cidadania e sua

    consequente autorizao participao da vida na ordem poltica.

    Dessa forma, o incio do sculo XX o laboratrio poltico para o rompimento da

    continuidade entre o nascimento e a nacionalidade, o que coloca em evidncia o teor ficcional

    da origem da soberania moderna. Bastante significativo, nesse sentido, o alastramento de

    leis por toda a Europa que autorizavam a desnaturalizao e desnacionalizao em massa dos

    prprios cidados. A figura dos refugiados representa uma existncia inquietante na medida

    em que [...] rompendo a continuidade entre homem e cidado, entre nascimento e

    nacionalidade, eles pem em crise a fico originria da soberania moderna. 85 E

    desarticulando de forma irremedivel at o tempo contemporneo o nexo entre nascimento e

    cidadania, somente aps a completa desnacionalizao o que implicava, inclusive, na perda

    da cidadania residual das leis de Nuremberg era autorizado o envio dos judeus aos campos

    de concentrao ou de extermnio.

    Dentro desse panorama, tambm, interessante dedicar espao anlise do

    programa de eutansia do Terceiro Reich, pois as circunstncias, to pouco favorveis aos

    valores eugnicos da poltica nacional-socialista, demonstram que as razes humanitrias de

    Hitler e Himmler estavam fundamentadas pela expanso do biopoder. Afinal, a legislao de

    proteo sade do povo alemo proibia o casamento com pessoas portadoras de doenas

    hereditrias, alm do fato de que boa parte dos doentes submetidos ao programa no possuam

    condies de se reproduzirem. H que se considerar, tambm, os seus custos financeiros e

    logsticos levados a cabo em plena invaso da Europa Ocidental. Enfim, ainda que houvesse

    qualquer senso de piedade frente aos doentes incurveis, a relativa ineficincia do Euthanasie-

    Programm assinalava o disseminado exerccio da deciso soberana sobre a vida nua. 86

    84

    ROSEMBERG, apud AGAMBEN, Ibidem, p. 126. 85

    Ibidem, p. 128. 86

    Ibidem, p. 137.

  • 38

    A constante interveno sobre a populao permite perceber a singularidade da

    governamentalidade nazista, cujos dirigentes percebiam muito claramente o cruzamento entre

    vida e poltica. Assim, cumpre citar a compreenso de Verschuer, mdico responsvel por

    pesquisas eugenistas em Frankfurt, sobre o papel do Estado nacional-socialista na questo

    racial:

    O novo Estado no conhece outro dever alm do cumprimento das condies necessrias conservao do povo. Estas palavras do Fhrer significam que todo ato poltico do Estado nacional-socialista serve a vida do povo... Ns sabemos hoje

    que a vida de um povo garantida somente se as qualidades raciais e a sade

    hereditria do corpo popular (Volkskrper) so conservadas. 87

    Reiterando que a herana gentica da espcie no puramente biolgica, mas

    atravessada pela poltica e pelo direito, categorizou o cientista: Poltica, ou seja, o dar forma

    vida do povo. 88

    Assim, por perceberem no corpo popular um fator que no era somente biolgico,

    apresentava-se imperioso aos nazistas a promulgao de normas que controlassem a sade

    hereditria. Que em 14 de julho de 1933 tenha sido promulgada a lei para preveno da

    descendncia hereditariamente doente prevendo a esterilizao de cidados que

    apresentassem risco sade gentica do povo alemo , em 18 de outubro de 1933 fosse

    proibido o matrimnio com portadores de doenas hereditrias e, em 1935, fossem

    promulgadas as Leis de Nuremberg para configurao da cidadania plena e proteo do

    sangue e honras alems, apenas deixa claro que [...] at os cidados de sangue ariano

    deveriam mostrar-se dignos da honra alem (deixando pender implicitamente sobre cada um a

    possibilidade de desnacionalizao).89

    A ateno pormenorizada da historiografia convencional s leis de discriminao

    dos hebreus ofusca a concluso de que a doutrina de purificao racial afetava todo o ser

    humano no territrio alemo; valendo-se da hiptese sustentada por esta monografia, significa

    dizer que toda a vida estava inscrita pela possibilidade de suspenso do ordenamento jurdico

    e, portanto, era nua e sacra insacrificvel, porm matvel. Pois se o fim ltimo do Estado

    era a conservao das qualidades raciais e hereditrias do povo, cuja forma determinada

    pela poltica, ento tal tarefa deveria ser desempenhada tambm no interior das populaes

    germnicas:

    87

    Ibidem, p. 143. 88

    Ibidem, p. 144. 89

    Ibidem, p. 145.

  • 39

    Depois de um exame de raios X em toda a nao, o Fuehrer receberia uma lista de

    pessoas doentes, particularmente os portadores de molstias do pulmo e do corao.

    Segundo essa nova lei de sade do Reich (...) essas famlias j no podiam

    permanecer misturadas ao pblicos [sic] nem gerar crianas. O que ser feito delas

    objeto de futuras ordens do Fuehrer.90

    Essa fantica e constante redefinio sob