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IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Florianópolis, 06 a 08 de julho de 2016 Área Temática: AT7 - Segurança Internacional e Defesa SEGURANÇA, DEFESA E COOPERAÇÃO MARÍTIMA – UM ESTUDO DE CASO DA CPLP Daniele Dionisio da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro

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IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos

Florianópolis, 06 a 08 de julho de 2016

Área Temática: AT7 - Segurança Internacional e Defesa

SEGURANÇA, DEFESA E COOPERAÇÃO MARÍTIMA – UM ESTUDO DE CASO DA

CPLP

Daniele Dionisio da Silva

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Resumo:

Hoje, no mapa geoestratégico, o Atlântico é visto como secundário, entretanto, para

Brasil, Portugal e para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPS), ele

deveria ser parte dos objetivos nacionais permanentes e estratégicos. O Atlântico constitui

inegável fonte de riquezas, mas também preocupação na área da segurança. Crescem

nesse ambiente a pirataria, a imigração ilegal e o tráfico de armas e drogas. Apesar da

exploração de recursos naturais oceânicos e do fluxo de mercadorias, há carência de meios

militares e de tecnologia de ponta para combater esses crimes. Os oceanos são um desafio

para a defesa dos Estados ao apresentarem uma concepção diferenciada de limites e

fronteiras. Além disso, a CNUDM atribuiu aos países direitos e deveres sobre suas áreas

oceânicas, reforçando a lógica que para explorá-las há que se garantir a segurança

marítima de todos. Assim, o presente trabalho busca analisar, no primeiro plano, o Atlântico

como elemento discursivo ao longo da história recente, nas instruções normativas e nos

planejamentos político-estratégicos de Brasil e de Portugal, tendo como fontes os

documentos publicados pelos Ministérios da Defesa, tais como PDN, END, Livro Branco de

Defesa, Conceito Estratégico de Defesa Nacional, bem como documentos de algumas

outras estruturas estatais para o ambiente marítimo. Ademais, o trabalho também propõe

analisar a Agenda de Segurança e Defesa da Comunidade dos Países de Língua

Portuguesa de 1996 a 2013, principalmente para o ambiente marítimo, considerando os

atores, as ações e os planejamentos da Componente de Defesa da CPLP.

Palavras-chave: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP, Agenda de

Segurança e Defesa, Atlântico, CNUDM, Segurança Marítima.

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1 – Introdução.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP, foi criada em julho de

1996 pela congregação dos países que têm o português como língua oficial - Angola, Brasil,

Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, registrando-se a

inclusão do Timor-Leste em 2002 e da Guiné Equatorial em 2014. Ilhas Maurício (2006),

Senegal (2008), Japão, Geórgia, Namíbia e Turquia (2014) seriam observadores

associados. A CPLP se afirma como uma comunidade plural que se propõe a ser um fórum

multilateral privilegiado para aprofundamento da amizade mútua entre os Estados membros,

e teria como um dos pilares a materialização de projetos de promoção da língua portuguesa.

A Comunidade tem dois outros pilares: a concertação político-diplomática entre os membros

em matérias internacionais, visando o reforço da sua presença nos fóruns internacionais; e a

cooperação em vários domínios. Porém, a Comunidade não tinha como um dos objetivos

iniciais a cooperação no âmbito da segurança ou da defesa, ou no da segurança marítima.

Nesse século XXI, há conjuntura linguística e cultural de criação da Comunidade se

adicionaria outro pilar: o oceano. Um oceano já não mais considerado apenas como um

meio de deslocamento onde a principal questão securitária seria a manutenção do comércio

marítimo. Um oceano visto agora também como fonte de recursos delimitados pela

Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) estabelecida em 1982. Há

que se considerar aqui que todos os países de língua portuguesa são países oceânicos com

mar territorial, zona contígua, zona econômica exclusiva estabelecidas pela CNUDM, e

alguns com pedidos requeridos de extensão de suas plataformas continentais para além das

200 milhas. Isso lhes gerou direitos de exploração e explotação das riquezas da coluna

d’água, do leito e subsolo em suas áreas de jurisdição, mas também deveres a cumprir, e

isso irá requer alguma projeção de poder marítimo ou naval.

Levando essa conjuntura em conta, é que surge objeto deste artigo: a Agenda de

Segurança e de Defesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP,

principalmente as discussões relativas à dimensão marítima. Há que se acrescentar que a

Agenda para o ambiente marítimo seria basicamente focada em tempos de paz e na

formação de uma consciência situacional marítima para o gerenciamento das plataformas

continentais estendidas, mesmo que em países periféricos os meios e o capital humano

utilizado sejam os mesmos nos dois tempos. Deve-se pontuar ainda que esse artigo é parte

de uma tese de doutorado em história comparada1 defendida por mim em outubro de 2015

1 Durante a pesquisa se fez também uma comparação entre documentos oficiais portugueses e brasileiros para o ambiente atlântico, e destes com documentos do ambiente oceânico comunitário (CPLP). Nesta análise consideram-se os documentos produzidos de 1996 até 2013; e primeiramente fez-se uma análise global da Agenda de Segurança e Defesa propunha, para depois focar no ambiente marítimo. Quando esse trabalho de pesquisa começou desejava-se também fazer uma análise comparativa que incluísse as análises dos documentos de defesa e segurança relativos ao oceano dos países africanos de língua portuguesa, entretanto, frente aos obstáculos de acesso encontrados durante a pesquisa, a dificuldade de confiabilidade nos dados, e

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na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contudo, deveria acrescentar que a Agenda de

Segurança e de Defesa da CPLP, apesar da ampla diversidade de temáticas discutidas,

avançou muito pouco para além de um fórum multilateral de discussão, mesmo que já

tenhamos tidos projetos bilaterais de formação de capital humano de curta duração,

exercícios de treinamento militar multilateral, e doação ou venda de meios de pequeno

porte. Para isso dois fatores, dentre outros, podem ter contribuído: carência de recursos

para ações, e dificuldade de integrar ações e políticas no médio e longo prazos.

No âmbito securitário, optar estudar a CPLP e seus documentos oceânicos pode ser

considerado algo a margem se comparado com estudos de documentos oceânicos

produzidos pela OTAN. Talvez fosse falar de um assunto sem valor frente à Marinha de

Guerra Americana com mais de uma dezena de submarinos nucleares, ou frente à produção

offshore da empresas petrolíferas britânicas ou mineradoras japonesas que estão no alto

mar a explorar toneladas de riquezas oceânicas que deveriam ser patrimônio da

humanidade. Porém, o que se deseja mostrar é que se compararmos o know-how marítimo

(militar ou civil) de Brasil e Portugal com, por exemplo, EUA e Inglaterra, esses dois países

seriam considerados relativamente inferiores nas capacidades militares e pouco relevantes.

Todavia, se compararmos o know-how marítimo (militar ou civil) de Brasil e Portugal com o

dos outros países africanos de língua portuguesa (Palops), estes dois poderiam ser

considerados relativamente superiores nas capacidades militares para atividades marítimas

de safety e security já histórica e politicamente estabelecidas. Mesmo que careçam de

recursos e meios para projeção do poder marítimo ou naval, ou mesmo que careçam de

ciência, tecnologia e inovação de ponta, e ainda que tenham que ser submetidos ao

cerceamento tecnológico das grandes potências, estes dois tem sido atores relevantes nos

fóruns oceânicos como a CNUDM, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, a

Organização Marítima Internacional (IMO), a Comissão de Limites da Plataforma Continental

(CLPC), dentre outros, projetando-se em uma lógica que o Professor Dr. Heitor Romana

descreve como um multilateralismo multivariável, onde um país joga em vários tabuleiros em

simultâneo com poderes pontuais sem ter grande projeção de poder no todo2.

uma provável desestruturação dos órgãos de competência marítima optou-se por uma breve análise dos documentos oficiais obtidos no âmbito das Marinhas dos Palops. Logo no início da pesquisa optou-se por excluir a análise dos documentos relativos ao mar do Timor-Leste já que o contexto geopolítico regional no qual o país está inserido é diferente do Atlântico, com a presença de potências costeiras regionais diferentes (Índia, China, Indonésia e Austrália), e que dificultariam muito qualquer análise comparativa. Cabe também pontuar que apesar de situado mais próximo ao Oceano Índico, Moçambique foi considerado também como um país atlântico por estar incluído geopoliticamente no contexto e ter influência dessa conjuntura nas suas principais questões marítimas. Disponível em: http://objdig.ufrj.br/34/teses/830312.pdf . 2 Palestra intitulada “O Atlântico Sul: uma visão estratégica portuguesa” proferida no 1º Seminário Internacional CEPE-EGN/ISCSP-Universidade de Lisboa cujo título era O Atlântico Sul: as visões estratégicas da CPLP, realizado em setembro de 2015, na Escola de Guerra Naval da MB. O Seminário contou ainda com a presença de representantes do EMA português, do Comando da MB e do Centro de Análise Estratégica da CPLP.

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Além disso, o capital humano desta estrutura burocrática estatal para atividades

marítimas de safety e security, incorporados nas duas Marinhas, transita, sem muito controle

dos atores políticos nacionais (a não ser pelas limitações orçamentárias), nas esferas de

discussão das temáticas marítimas das potências; lêem os mesmo referenciais teóricos

dessas (dentre eles Mahan, Corbet, Aube, Coutau-Begarie, Geoffrey Till); nas academias

militares estudam a mesma perspectiva da história militar atlântica; usam ou almejam ter os

mesmo meios navais que essas potências; e participam com certa frequência de exercícios

militares conjuntos com Marinhas mais desenvolvidas. De alguma forma, o que se quer

pontuar aqui é a mundialização de valores securitários oceânicos, marítimos ou navais, que

aconteciam do Norte para Sul na Pax Britânica e na Pax Americana, e agora, no século XXI,

pode surgir ou ressoar em estruturas, às vezes ditas como paralelas, como a CPLP, o CDS

ou a União Africana, de Sul para Sul, algo que alguns diriam ser de “segunda linha”, ou de

menor valor relativo. Entretanto, para os Palops, essa mundialização de valores securitários

do Sul para Sul teria relevância, onde esses poderiam conhecer as experiências

desenvolvidas e estruturadas de Brasil e Portugal e optar por adaptá-las a suas realidades

locais ou regionais; um exemplo disso seria a Autoridade Marítima de Brasil e Portugal.

Essa mundialização de valores securitários marítimos ou navais no âmbito da

Marinhas, apesar de ser desenvolvida e propagada em instituições militares consideradas

como politicamente diferenciadas, não seria diferente do que acontece com a mundialização

de valores do meio ambiente, de engenharia, de economia ou da agricultura. Algumas

correntes teóricas ocidentais pontuam que quanto mais democraticamente estruturado for

um país mais seus valores e regulamentações serão influenciados pela internacionalização

de ideologias, promovendo, por exemplo, o que se convencionou aqui chamar de

mundialização de valores securitários oceânicos. Mesmo que ainda encontremos diferenças

relevantes no pensamento estratégico de Portugal membro da OTAN e da União Europeia,

e no pensamento estratégico do Brasil membro do CDS e da ZOPACAS, ambos são

também membros da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, da IMO e da CLPC, e

viveriam inseridos em uma rede de valores securitários oceânicos partilhados.

Esse estudo também permitiu sinalizar que há uma carência de pesquisas no Brasil

sobre a Cooperação Técnico-Militar (CTM), seja a realizada por potências, seja por

potências emergentes como o Brasil. Em contrapartida, foram encontrados vários artigos em

sites portugueses ou africanos sobre os projetos de CTM realizados por Portugal, dando a

impressão que comparativamente Portugal, realizaria muito mais ações de CTM que o

Brasil3, uma potência emergente que almejava ser um global player. No entanto, percebeu

3 Alguns projetos catalogados na ABC/MRE para as áreas de defesa e segurança com os Palops: Capacitação em Técnicas Militares de Oficiais Moçambicanos no Exército Brasileiro; Capacitação em Técnicas Militares de Oficiais Cabo verdianos no Exército Brasileiro; Capacitação de Militares Moçambicanos no Exército e

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que Portugal tem sua CTM focada nos países de língua portuguesa e mais centralizada no

Ministério da Defesa Nacional (Divisão de Serviços de Cooperação Técnico-Militar) e por

isso divulga essas ações em maior amplitude. Enquanto, que no Brasil até bem pouco

tempo não se computavam as ações de cooperação internacional das Forças Armadas

como ações de cooperação brasileira. Além disso, cada força realizava seus projetos de

cooperação autonomamente, estando esses muitas vezes desconectados das áreas

estratégicas propostas para Política Externa Brasileira (PEB) daquele momento.

Estudos focados na componente militar como elemento de cooperação pontuam

normalmente uma proposta de cooperação verticalizada, norte-sul, ou a proposta de análise

de um complexo de segurança sobre o guarda-chuva de uma potência regional ou global.

Assim sendo, nessa pesquisa seria inovadora a análise da proposta de inserção das

temáticas de segurança e defesa em uma cooperação sul-sul iniciada com foco linguistico e

cultural. Nesse caso, as ações envolvem os Ministérios da Defesa e as Forças Armadas dos

países de língua portuguesa para treinamento, capacitação técnica, formação de oficiais e

fortalecimento da capacidade institucional, mas também visariam uma concertação político-

diplomática em fóruns que incluam essas temáticas. Essas ações também permitiriam

análises político-militar de ambientes regional e internacional, conjunturas, cenários

prospectivos, ameaças e vulnerabilidades. Outro ponto inovador do estudo é à análise da

Agenda de segurança e defesa para o ambiente marítimo da CPLP levando em conta a

CNUDM e a delimitação de soberanias nos espaços oceânicos, em uma lógica que propõe a

transformação do oceano de meio de deslocamento para também fonte de recursos, o que

irá requerer dos países signatários uma capacidade de gestão e manutenção da segurança

marítima nas áreas sob suas jurisdições. Para permitir uma análise multidimensional das

temáticas Segurança, Defesa e Cooperação Marítima dos países de língua portuguesa, o

artigo foi dividido em três partes: a construção do atlântico de língua portuguesa na história

recente, onde é também incluída uma breve análise da dimensão militar e estratégica do

desse oceano; a Agenda de Segurança e Defesa da CPLP, onde é também incluída uma

breve análise da Agenda para o ambiente marítimo; e por fim algumas breves conclusões.

2 – A construção do atlântico de língua portuguesa na história recente.

Para falar dos países de língua portuguesa e de sua relação ao longo dos últimos

350 anos temos de pontuar a triangulação imperfeita entre Portugal, o Brasil e a África, que

Aeronáutica do Brasil (formação de oficiais); Missão de Prospecção para Estabelecer Projeto de Cooperação Técnica com São Tomé e Príncipe na Área de Polícia Criminal; Capacitação de militares de Guiné-Bissau; Capacitação Técnica para a Polícia de Investigação Criminal de São Tomé e Príncipe; Capacitação de Militares de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola (2012 e 2013); Desenvolver Atividades no Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau; Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau; Capacitação em gestão de unidades prisionais para formação de multiplicadores em Moçambique, pelo Departamento Penitenciário Nacional do MJ do Brasil; Fortalecimento da capacidade institucional da Agência de Aviação Civil de Cabo Verde. Disponível em: <www.abc.gov.br/projetos/pesquisa>. Acesso em 28 mar. 2013.

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muitas vezes polarizou opiniões envolvendo até a sociedade civil, coisa rara para ações de

política externa brasileira. Entre várias idas e vindas, a temática vai de um sentimento

antilusitano existente no Brasil ao longo do século XIX, passa por Jânio Quadros e João

Goulart quando se sinaliza a possibilidade de formação de uma comunidade luso-afro-

brasileira, e chega ao discurso de fraternidade repontuado por José Aparecido e Itamar

Franco, materializados na idealizada CPLP. Pode-se dizer que essas relações, entre esses

três vértices são ora revestidas de intensa subjetividade e emotividade ora impregnadas de

interesses econômicos e políticos. Pode-se dizer ainda que no Brasil recente tornou-se

enfático o discurso da herança africana, em uma lógica que propõe a reorientação da PEB

para África; mas em um discurso que também envolve interesses políticos, econômicos e

estratégicos. Já no âmbito político português, pode-se dizer que permanece o discurso do

país ser a ponte entre a Europa desenvolvida e a África carente e rica em recursos minerais;

algo às vezes visto como uma tentativa de ser o centro da articulação entre o Atlântico Norte

e o Atlântico Sul em uma estratégia de segurança global. Essa África de língua portuguesa é

elemento relevante também nas relações bilaterais entre Brasil e Portugal.

As histórias da África de língua portuguesa e do Brasil estiveram intimamente ligadas

e impulsionaram o império português no Atlântico, e tiveram uma longa fase de relação

econômica e política sustentada no tráfico de escravos, um comércio que chegou a ser feito

entre os dois lados do Atlântico com relativa autonomia em relação à metrópole. Após a

independência do Brasil e a pressão inglesa pelo fim do tráfico, o Atlântico Sul foi perdendo

espaço para o Norte, gerando um retrocesso nas relações e o afastamento da África de

língua portuguesa e do Brasil. A África só irá adquirir importância para a diplomacia

brasileira com a proposta da Política Externa Independente (PEI), iniciada pelo governo

Jânio Quadros e prosseguida por João Goulart, quando o país pela primeira vez sinaliza a

favor do direito à autodeterminação das colônias. Nessa época, a ação brasileira para o

continente africano estaria associada, dentre outros fatores, aos primeiros, mais incipientes,

mapeamentos offshore das reservas petrolíferas na costa brasileira, algo que sinaliza para a

existência de uma reserva estratégica energética de hidrocarbonetos, recursos que desde o

início eram pontuados como patrimônio nacional, antes mesmo do estabelecimento da

CNUDM. Todavia, o golpe de 1964 impediu que esta política fosse materializada e que

gerasse ganhos de médio e longo prazo.

Nessa época, o tema da segurança coletiva hemisférica e sua expansão para o

Atlântico Sul, para fazer frente ao comunismo, essencial à geopolítica norte-americana da

Guerra Fria, era à base do pensamento estratégico. Nesse cenário, apesar do foco ser mais

o Atlântico Norte circunscrito na Organização do Tratado do Atlântico Norte, também surge

uma proposta argentina de uma reunião entre Brasil, Uruguai, África do Sul e Argentina para

o Atlântico Sul (Organização do Tratado do Atlântico Sul - OTAS). Novas iniciativas de

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reaproximação com a África só ocorreriam no 3º governo militar de Médici, principalmente

pelo milagre econômico brasileiro e pela comprovação da existência de recursos

energéticos offshore na costa brasileira. Uma época em que se iniciavam as primeiras

Conferências das Nações Unidas sobre Direito do Mar, e nesse âmbito as discussões sobre

a partilha ou soberania dos recursos vivos e não vivos dos oceanos; fóruns de discussão

que interessavam ao Brasil e nos quais se faz ativamente presente desde o início4.

Com a Revolução dos Cravos e a independência das colônias portuguesas, no

governo de Ernesto Geisel sob a ótica do pragmatismo responsável, as ações do Brasil

evoluem timidamente em favor do estabelecimento e consolidação de relações políticas e

econômicas com as ex-colônias portuguesas. Enquanto isso Portugal inicia um processo de

redefinição de suas relações internacionais, deslocando-se de um relativo isolamento

internacional como metrópole para um processo de integração à Comunidade Econômica

Europeia a partir de 1985. Após ter experimentado um relativo crescimento nos anos 1970 e

1980, o interesse brasileiro pelo continente africano, no início da década de 1990, encontra-

se mais uma vez em declínio. No governo Fernando Henrique, o lugar da África nas PEB do

Brasil tem um papel intermediário. No âmbito militar, a partir de 1995, o exército brasileiro

participou ativamente das missões de paz da ONU em países africanos. No âmbito

marítimo, em 2001, na gestão de FHC, foi realizado um estreitamento das relações entre a

Marinha do Brasil e a Marinha da Namíbia, por meio do Acordo de Cooperação Naval, que

visava criar e fortalecer a Ala Naval da Namíbia, o que foi continuado nos governos Lula.

Entretanto, este acordo foi mantido com os próprios recursos da MB. Entre 1970 e 1980, o

relacionamento político-militar com a África já tinha sido explorado quando muitas empresas

de produtos militares exportavam para região, desde botas a veículos blindados.

Fernando Henrique promoveu a criação da Comunidade, acreditando que o futuro da

mesma seria restrito às questões linguístico-culturais, já que a dimensão atlântica da PEB

de FHC tinha um papel diminuto. O governo adotava uma prática de opções seletivas no

continente em que se destacam a Nigéria, a África do Sul e, secundariamente, Angola. Com

isso, países como Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde não

representavam áreas de interesse para o Brasil, o que sinalizava um esvaziamento da

4 Deve-se ressaltar que tanto Brasil quanto Portugal tem tido representantes nos mais altos postos dos órgãos da ONU referentes à CNUDM. Por exemplo, o Embaixador brasileiro na Jamaica, Antonio Francisco da Costa e Silva Neto foi recentemente eleito presidente da Assembleia da Autoridade Internacional de Fundos Marinho, bem como o brasileiro Carlos R. Leite foi também eleito como membro da Comissão Jurídica e Técnica. Além disso, a Comissão de Limites da Plataforma Continental, no mandato de 2012-2017, tem um membro brasileiro, Oficial da Marinha do Brasil Jair A. R. Marques e um membro Moçambicano, o geofísico Estevão S. Mahanjane. Portugal teve representação de 2002 a 2007, o Oficial da Marinha Portuguesa Fernando M. M. Pimentel. Contudo, deve-se acrescentar que para os assuntos marítimos no âmbito dos fóruns internacionais normalmente Brasil e Portugal tem optado por representações de técnicos do quadro de oficiais de suas Marinhas, principalmente por sua longa formação acadêmica e profissional voltadas para as ciências do mar, o que não acontece do mesmo modo com as Marinhas do Palops, carentes até mesmo de instituições estruturadas de formação em ciências navais, talvez por isso o representante seja um geofísico professor universitário.

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CPLP. Em contrapartida, na época da criação da Comunidade, Portugal, por sua adesão à

UE, encontrava-se em condições mais favoráveis de cooperar com os Palops que o Brasil.

Enquanto o governo FHC tinha na África interesses dirigidos aos países fontes

consideráveis de recursos e mercados como Angola, Nigéria e África do Sul, o governo Lula

propõe logo de início uma expansão da integração política e econômica da América Latina

para a África. Na agenda da integração, os temas econômicos e comerciais tiveram para

FHC prioridade, enquanto para Lula, o social e o político parecem assumir precedência. Os

dois governos tinham uma política africana, entretanto, com estratégias diferentes. O Brasil

de Lula tornar-se-ia até mesmo audacioso e investiria além da CPLP na revitalização de um

Fórum que incluía quase todos os países do Atlântico Sul, a Zona de Paz e Cooperação do

Atlântico Sul (ZOPACAS), criada no contexto da Guerra Fria onde as ameaças nucleares

eram o foco. A maior parte dos membros da CPLP também faz parte da ZOPACAS: Angola,

Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe.

A África de Lula poderia ser incluída em uma lógica dual de combater a pobreza e

integrar afrodescendentes. Lula e Celso Amorim logo nos primeiros discursos sinalizavam

que o continente seria prioritário na PEB. A África tornar-se-ia um laboratório da cooperação

Sul-Sul. Vários projetos de cooperação nas áreas de saúde, agricultura, educação,

formação profissional, segurança alimentar e esportes foram realizados. Sabia se que os

Palops eram extremamente carentes, mas não se sabia em que essa carência realmente

residia, de modo que o Brasil de Lula recebeu vários pedidos de cooperação, disse que os

cumpriria, mas acabou por não perceber que sem prioridades estratégicas não daria conta.

Essa cooperação técnica brasileira teve a especificidade de utilizar a própria estrutura

governamental brasileira de excelência em determinadas áreas, como a Embrapa, a

Fiocruz, o Sistema S ou a Marinha do Brasil. Entretanto, percebe-se que a solidez dessa

parceria reside muito mais na capacidade técnica de internacionalização do órgão estatal do

que da vontade do governo. Esse elemento, capacidade técnica de internacionalização do

órgão estatal, terá uma relevância considerável na análise da atuação das Marinhas

Brasileira e Portuguesa nas ações propostas para Agenda CPLP para o ambiente marítimo.

Cabe ressaltar que a PEB de Lula já considera, no âmbito do que propõe a CNUDM, os

recursos estratégicos offshore do Atlântico Sul e a disputa pelos oceanos como fonte de

recursos energéticos e minerais, além dos recursos vivos; algo que seria intensificado em

2004 com a criação do conceito de Amazônia Azul e em 2008 com o anúncio da descoberta

do pré-sal. A cooperação na vertente militar emerge no governo Lula, principalmente na

END e na PND, documentos que remetem à questão da segurança atlântica à importância

do combate aos problemas estruturais relacionados ao pouco desenvolvimento africano e

sul-americano no âmbito marítimo, em uma perspectiva ampla de defesa nacional e

segurança regional. Pode-se pontuar que uma das causas da cooperação na vertente militar

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ter emergido no 2º governo Lula, seria a presença do ex-ministro de Relações Exteriores

Celso Amorim à frente do Ministério da Defesa. Ele teria ampliado as possibilidades de

cooperação estratégica Brasil-África para a vertente militar e/ou securitária, principalmente

na CPLP. Contudo, essa cooperação técnica na área militar na CPLP não inclui

institucionalização de uma amplitude de segurança coletiva ou de uma força militar conjunta

a atuar nos países da CPLP. Podemos dizer que, no pensamento político brasileiro,

teríamos algo diferente da OTAN, e acrescentaríamos aqui que esse pensamento parece

encontrar similaridades em Portugal.

De acordo com os dados obtidos nas entrevistas feitas para tese de doutorado, para

os atores da paradiplomacia ministerial (oficiais e técnicos que participam nas Conferências

Temáticas do Mar), a aproximação com o continente africano não deveria visar cooperação

incluída na lógica no curto prazo, esse seria um pensamento diferente dos atores políticos

partidários que visam, a priori, apenas à próxima eleição. Essas ações deveriam levar em

conta os interesses políticos e estratégicos de longo prazo, principalmente pela

implementação e renovação periódica dos projetos bilaterais, e também o estabelecimento

de acordos de cooperação marítima no plano multilateral que realmente se materializassem

em ações. Acreditamos que a CTM requer uma visão estratégica de médio e longo prazo,

pelo menos uma geração de formação militar constante (pelo menos 30 anos) em tempos

de paz para que consiga se criar laços, construir estruturas, produzir doutrinas,

regulamentações e leis nacionais. Só assim o Estado brasileiro estaria atuando pela

Cooperação Sul-Sul na África do século XXI.

Nas relações entre Brasil, Portugal e a África de língua portuguesa em perspectiva

comparada, emerge muitas vezes como relevante a tensão entre uma cooperação

transoceânica voltada para o sistema de segurança coletiva do Atlântico Norte (decorrente

do pertencimento português a OTAN) e outra voltada para o gerenciamento estratégico do

Atlântico Sul pelos países inseridos na região. Essa tensão poderia representar um

empecilho para qualquer proposta de cooperação no âmbito da segurança e da defesa.

Essa tensão parece ter sim relevância para a amplitude política dos governos, e está

presente em discursos de Chefes de Estado e Ministros da Defesa, principalmente

brasileiros, como pontuou, por exemplo, Nelson Jobim ao ser perguntado sobre as

iniciativas de associar as duas áreas geoestratégicas do oceano Atlântico na perspectiva da

OTAN. Entretanto, pelas entrevistas pode-se também perceber que para os atores técnicos

estatais de Brasil e Portugal, esse contexto de cooperação é muito mais limitado pelos

desígnios dos Chefes de Estado e Ministros da Defesa, e das contenções frequentes dos

recursos para defesa ou para cooperação, do que pela tensão entre a existência ou não da

OTAN no Atlântico, não que esse elemento deva ser desprezado. Há que se considerar

ainda que na dimensão militar-estratégica do atlântico de língua portuguesa, as ameaças

11

existentes são na maior parte das vezes fruto de vulnerabilidades ou incapacidades das

burocracias estatais ligadas à segurança marítima, em geral burocracias desestruturadas

que não conseguem gerir estrategicamente as áreas sobre suas soberanias e jurisdições.

2.1 – A dimensão militar e estratégica do atlântico de língua portuguesa na

história recente.

Desde os primórdios da civilização humana, o ambiente marítimo tem sido lugar de

conquista, disputas e conflitos armados. A Conferência de Berlim, de novembro de 1884 a

fevereiro de 1885, foi uma dessas disputas, propagada como a Conferência que dividiu a

África em várias colônias europeias, na verdade, era um acordo para garantir a livre

navegação nos grandes rios africanos. A divisão e a delimitação de terras foram feitas

posteriormente por meio de acordos bilaterais. Quando o comércio internacional de

mercadorias se intensificou por meio da navegação oceânica, houve a necessidade de

regulamentações que privilegiassem o uso ordenado do mar, assim surgiram às primeiras

convenções sobre segurança marítima. Na segunda metade do século XX, os oceanos

passam a ser vistos não apenas como meio de deslocamento, mas também como fonte de

recursos, principalmente pela pesca industrial e pelo desenvolvimento de tecnologia para

exploração offshore. Nesse momento, os Estados iniciam uma série de conferências a fim

de delimitar soberania e jurisdição sobre as regiões marítimas, surgindo assim a CNUDM.

Contudo, a Convenção não acabou com disputas pelos espaços marítimos. Na verdade, foi

apenas uma forma de ordenar litígios de acordo com normas estabelecidas em um fórum

com participação ativa de países costeiros em desenvolvimento. E assim a partir de 1994, a

CNUDM passa a fazer parte do pensamento político-estratégico dos países costeiros.

Cabe lembrar que até a década de 1960, o pensamento político-estratégico para os

oceanos era produzido pelas grandes potências, cabendo aos países costeiros apenas a se

alinhar ou não a essas. Nessa mesma década, com o início das pesquisas científicas para o

mapeamento dos oceanos, se começa a pensar no ambiente oceânico como uma fonte de

recursos a ser explorada. Não que já não se pensasse assim para os recursos vivos, mas

eles também de certo modo se moviam e eram mais difíceis de serem submetidos a

jurisdições. Ressaltaria que tanto a história militar como as temáticas da CNUDM acabaram

de alguma forma por moldar ou se refletir na agenda marítima de segurança e defesa da

CPLP, principalmente por que ambas de alguma forma serviram de base para o

pensamento marítimo ou naval dos países. Porém, devo acrescentar que nesse Atlântico

hoje corre um fluxo intenso que além de mercadorias lícitas, transporta também drogas,

contrabando, armas, terroristas, imigrantes ilegais ou piratas, em uma lógica conceitual de

12

ditas “novas ameaças”5. Seria um oceano onde os homens são guiados por uma lógica

ultramoderna, um monitoramento via satélite que ultrapassou astrolábios e estrelas, mas

que transformou corsários de pratarias em piratas de superpetroleiros.

Outra questão relevante na dimensão militar e estratégica do atlântico de língua

portuguesa é que após a criação dos Estados-nações e das institucionalizações da Forças

Armadas, o ator estatal que foi acumulando técnica, capital humano e know-how naval

seriam as Marinhas, ou em alguns Estados arquipélagos, as Guardas Costeiras. Assim,

esse ator tornou-se um agente de influência política para regulamentações, ações e

planejamentos estratégicos que envolvam os assuntos marítimos. Podemos acrescentar que

por uma história cruzada, a origem da Armada Nacional (como foi chamada a Marinha de

Guerra brasileira durante o regime monárquico) remonta à Marinha Portuguesa. Com a

transferência da sede do Reino de Portugal para o Brasil, em 1808, foi também transferida

uma parte importante da estrutura, pessoal e navios da Marinha Portuguesa. Estes

formariam o núcleo da futura Marinha do Brasil com a independência em 1822. Podemos

pontuar ainda que essa origem comum das Marinhas Portuguesa e Brasileira ainda hoje

teria reflexos em funções, missões e regulamentações tático-operacionais, e de algum modo

contribuiria para cooperação técnico-militar da CPLP. Acrescentaria que ambas as Marinhas

também de certo modo foram influenciadas pelo “ocidente marítimo”, a Pax Britânica que

existia no pós Revolução Industrial, e a Pax Americana do século XX, principalmente pelo

surgimento do submarino. Já o contexto da Guerra Fria, propagado para o mundo político

como divisor de ideologias e estratégias capitalistas e socialistas, não apresentava a mesma

divisão no mundo militar naval, onde permanecem ideologias e estratégias das Marinhas

focadas na guerra antissubmarino para negação do uso do mar ou controle da área

marítima. Essas estratégias estabelecidas antes da CNUDM permaneciam focadas no apoio

a manutenção do comércio marítimo agora transoceânico. Contudo devo acrescentar que no

Atlântico de língua portuguesa, durante a Guerra Fria, somente poderiam ser considerados

atores marítimos, as Marinhas do Brasil e de Portugal, pois as colônias africanas

portuguesas, ou posteriormente ex-colônias socialistas, viviam centradas em conflitos

terrestres, e suas Forças Armadas não pensavam estrategicamente o oceano, algo que

tende a ser diferente no início do século XXI considerando os recursos pós CNUDM.

Considerando a dimensão naval, no fim do século XX, as inovações ficariam por

conta do avanço dos sistemas digitais, do monitoramento via satélite de navios, da

propulsão nuclear, mas, acima de tudo, por uma profissionalização dos marinheiros que

agora precisam ter não apenas capacidade física de combate, precisam ser capazes de

5 Essa lógica serviria de base para explicar o porquê da Agenda de Segurança e Defesa da CPLP para o ambiente marítimo, apesar de estar centrada na visão multidimensional do oceano e de sua passagem estratégica de meio de locomoção para fonte de recursos, ainda sim também estaria alinhada com a proposta atual de securitização de novas ameaças para o mar proposta pelas potências atuais.

13

atuar em rede com artefatos militares modernos. Isso gera um gap imenso entre as

Marinhas das potências e as Marinhas dos países em desenvolvimento, e um gap maior

ainda, insuperável no médio prazo, entre as Marinhas das potências e as Marinhas das ex-

colônias. Além disso, uma das consequências da Guerra Fria foi o encarecimento dos meios

militares pelas inúmeras inovações tecnológicas incluídas, isso sem levar em conta as

medidas estabelecidas para cerceamento tecnológico. De modo que hoje mesmo que

Angola tivesse recursos para comprar um submarino dos Estados Unidos, isso não seria

possível pelos cerceamentos atuais. Hoje poucos são os países com orçamentos capazes

de custear os gastos militares navais com meios modernos de alto valor agregado e

cerceados tecnologicamente, bem como custear a capacitação de militares em uma lógica

de meios em permanente mudança científica e tecnológica. Todos esses elementos

influenciam o planejamento estratégico de um país, dimensionam sua Marinha e criam

parâmetros operativos para seus meios e permitem a projetação de seu poder naval.

Para além de se pensar o mar como ambiente de guerra e as Marinhas como

executoras dessa, a Guerra Fria traz uma inovação para o poder naval, seu emprego em

tempo de paz por meio de missões de diplomacia naval, seja no âmbito bilateral, seja das

Nações Unidas, seja na OTAN, seja na União Europeia, seja na CPLP. Entretanto, pode-se

dizer que a diplomacia naval não é uma prática recente sendo utilizada desde a Antiguidade.

A Pax Britânica, no século XIX, amplia essa aplicação a fim de promover pressões para

desencorajar mudanças políticas contrárias ao interesse inglês, como a campanha contra o

tráfico de escravos (diplomacia das canhoneiras). Com o fim da Segunda Guerra, a Royal

Navy perde o poder para a Marinha norte-americana, hoje indiscutivelmente a maior

marinha do mundo capaz de despertar o fascínio até dos maiores contestadores do seu

poder, como marinheiros russos e chineses. De certo modo, neste século XXI, Brasil e

Portugal parece quererem usar suas estruturas navais como instrumentos diplomáticos, e o

ambiente da CPLP tornou-se profícuo para isso.

Poderíamos dizer que segundo o conceito de emprego político do poder naval,

seriam ações de diplomacia naval para África, o que Brasil fez na Nigéria em 1984,

enviando duas corvetas ao realizar sua primeira ação militar conjunta com a África; o que

faz hoje na Namíbia, por meio do Acordo de Cooperação Naval; o que fará com Angola no

âmbito do Programa de Desenvolvimento do Poder Naval de Angola (PRONAVAL)

estabelecido em setembro de 2014, e a criação pelo Brasil em fevereiro de 2015 de um

núcleo de missão naval em São Tomé e Príncipe. Além disso, o país realiza na África:

cursos de formação de soldados fuzileiros navais para Guarda Costeira de São Tomé e

Príncipe ministrado por oficiais da Marinha do Brasil; curso de capacitação para oficiais

cabo-verdianos em suas escolas militares de amplitude naval; disponibiliza vagas a oficiais e

praças dos países de língua portuguesa em suas escolas militares de amplitude naval;

14

atividades muito similares às que Portugal faz em sua diplomacia naval desde a década de

1980 com os Palops. Além disso, ambos os países têm tentado manter uma representação

militar para assuntos navais (adidos navais) junto suas embaixadas nos Palops, sendo essa

uma ajuda mais técnico-militar e menos político-estratégica. Têm sido comuns também

visitas operativas e de boa vontade, como, por exemplo, visitas em portos africanos de

marinheiros africanos a embarcações brasileiras recém-compradas na Europa. O Brasil

realiza ações também com a marinha da Namíbia, da África do Sul e com algumas marinhas

dos países que compõem a ZOPACAS. Já Portugal tem uma longa trajetória de exercícios

com as marinhas dos países que compõem a União Europeia e a OTAN, também com os

Palops. Para a aplicação da diplomacia naval, o falar a mesma língua, o português, torna-se

um elemento valioso. Contudo, o carro chefe da diplomacia naval brasileira, a Namíbia não

é falante do português, apesar de esse país ter se associado recentemente como membro

observador da CPLP. Essa parceria naval do Brasil com os Palops de algum modo parece

estar associada à manutenção da segurança da área de exploração do petróleo offshore na

ZEE brasileira, mas também visa a preservar as linhas de comunicações marítimas. Há que

se considerar que a Marinha do Brasil vem participando desde 1960 de atividades navais no

continente africano, quando esse entrou no roteiro do Navio-Escola Custódio de Mello

realizando o chamado “Périplo Africano”, uma viagem dedicada a mostrar bandeira.

A história do Atlântico de língua portuguesa como foi apresentada aqui começaria

com as descobertas e conquistas portuguesas, passaria pelo período da Pax Britânica, pela

Pax Americana, pela Guerra Fria (polarizada pelos Estados Unidos e União Soviética), até

chegar ao conceito de fronteira oriental introduzido pelos geopolíticos brasileiros que tentam

promover o Brasil como potência regional. Percebe-se uma sequência de potências

marítimas a produzir e propagar valores, ideias, ameaças nesse oceano. Contudo, essas

potências seriam atores do hemisfério norte. O Brasil, nesse século XXI, parece querer olhar

o Atlântico a partir do hemisfério sul e tentar prover uma visão coerente com os interesses

nacionais ou regionais. Não que isso seja uma particularidade brasileira, China e Índia têm

tentado também regionalizar suas questões marítimas mais prementes, muitas vezes pela

diplomacia naval associada à política externa. Essa necessidade de garantia da soberania

no Atlântico estaria associada à riqueza energética offshore, a existência de diversas bacias

petrolíferas como os campos do delta do Níger, no litoral nigeriano; Cabinda, no litoral

angolano; e a bacia de Campos no Brasil6. Poderíamos dizer que a região costeira do Brasil,

da África Ocidental e do Golfo do México formariam o novo chamado “triângulo de ouro” ao

6 “Sem incluir o potencial do pré-sal brasileiro, a produção diária de petróleo no mar na América do Sul pode crescer de 2,5 milhões de barris em 2005 para 6,1 milhões até 2030 (aumento de 144%). No mesmo período, a produção no litoral da África pode passar de 4,9 milhões barris a 12,4 milhões (crescimento de 153,5)”. MELO, Jaqueline L. X. O petróleo offshore no Atlântico Sul. In: SILVA, Francisco C. T. da et al. Atlântico – a história de um oceano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 523.

15

concentrarem as maiores reservas de petróleo e gás offshore. E a garantia de exploração

desses recursos pelos Estados costeiros depende do reconhecimento internacional da

soberania e jurisdição desses Estados sobre os recursos vivos e não vivos da coluna

d’água, do solo e subsolo da plataforma continental estendida. Contudo, o direito aos

recursos impõe um dever de gerenciar para fins de safety e security toda essa área.

3 - Agenda de Segurança e Defesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Como dito no início a CPLP não tinha como objetivos a cooperação no âmbito da

segurança ou defesa, apesar das ações de treinamentos entre Forças Armadas portuguesas

e dos Palops serem executadas a mais de trinta anos, e a participação brasileira nas

operações de paz realizadas pelas ONU durante os conflitos em Angola, Moçambique e

Timor-Leste. Diante desse contexto de conflitos intraestatais africanos e das novas ameaças

a segurança, estes domínios foram reconhecidos pelos Estados membros como objetos

importantes, principalmente visando à cooperação técnico-militar. Assim, apenas dois anos

após a criação da CPLP foram incluídas já as primeiras linhas orientadoras nestas

temáticas. Hoje, no âmbito da Comunidade acontecem, periodicamente, reuniões

ministeriais setoriais, chamadas de Conferências Temáticas, normalmente anuais, que são

constituídas pelos ministros e secretários de Estado. Relacionadas à temática marítima há

as Conferências de Assuntos do Mar, de Defesa, de Pesca, e das Marinhas da CPLP. Em

1999, aprova-se um documento sobre a Globalização da Cooperação Técnico-Militar, tendo

também sido criado o Secretariado Permanente para os Assuntos de Defesa (SPAD),

vislumbrando-se um dia a criação de centros de instrução militar, unidades de comandos e

fuzileiros, engenharia, centros de reparação de material. O SPAD deveria ser o “coração e o

cérebro” da componente de defesa da Comunidade, tendo como missão estudar e propor

medidas concretas para a implementação da cooperação multilateral. Todavia, ainda hoje, a

sua missão se confronta com o fato de não dispor de verba própria estando vinculado ao

Ministério da Defesa Nacional de Portugal dentro da Direção-Geral de Política de Defesa

Nacional, sob responsabilidade do Serviço de Cooperação Técnico-Militar. Em 2000, na VI

reunião do Conselho de Ministros, os estatutos da CPLP foram revistos para que nos

objetivos se incluísse a cooperação na área da segurança e defesa. Em 2002, passa-se a

ter um Centro de Análise Estratégica para Assuntos de Defesa (CAE), localizado em

Moçambique, cujas missões principais seriam pesquisar e compartilhar conhecimentos com

importância estratégica para a Comunidade, e a promoção do estudo de questões

estratégicas de interesse comum que facilitem a concertação dos seus membros em outros

fóruns. Propôs-se que o CAE estivesse disseminado pelos seus membros por meio dos

Núcleos Nacionais sobre responsabilidade de cada Ministério da Defesa. Contudo, ainda

hoje há países que não possuem seus Núcleos em funcionamento.

16

No âmbito da defesa, as discussões têm sido focadas nas Reuniões dos Ministros da

Defesa (MDs), nas Reuniões dos Chefes dos Estados-Maiores-Generais (CEMGFAs), que

acontecem anualmente, bem como nas Reuniões do SPAD (duas por ano) e nas

Conferências das Marinhas (a cada dois anos). Na análise das atas das Reuniões de

Ministros da Defesa podem se apontar discussões no âmbito da reestruturação dos setores

de segurança e de defesa, de exercícios conjuntos de treino para operações de paz e de

ajuda humanitária, de segurança marítima e da prevenção de conflitos. Por uma análise das

atas de 1998 a 2014 pode-se também perceber um aumento da densidade dos temas

abordados, bem como um aumento do conhecimento mútuo e dos problemas individuais e

regionais de cada Estado membro. Pode-se ainda apontar que na 1ª Reunião de Ministros

da Defesa, em 1998, os focos de discussão foram à rebelião militar na Guiné-Bissau e a

situação político-militar de Angola, e houve também uma primeira proposta de preparação e

treino de unidades militares para operações de paz e ajuda humanitária. Já na 13ª Reunião

de MDs em 2011, a segurança marítima surge como um tópico a ser privilegiado na

cooperação da Comunidade, principalmente pelo destaque de ações recorrentes de pirataria

como uma ameaça à navegação marítima não só na costa da Somália ou no Canal de

Moçambique, mas também para a costa ocidental da África (Golfo da Guiné).

Em 2006 é aprovado o Protocolo de Cooperação da CPLP no Domínio da Defesa7

que tem como objetivos: promover e facilitar a cooperação por meio da sistematização e

clarificação das ações a empreender; a criação de uma plataforma comum de partilha de

conhecimentos em matéria de defesa, a promoção de uma política comum de cooperação

nas esferas de defesa e militar, e contribuir para o desenvolvimento das capacidades

internas com vista ao fortalecimento das Forças Armadas. Nos Palops, este protocolo

auxiliaria a disposição de Forças Armadas modernas, disciplinadas e democráticas, para

garantir a paz e a estabilidade interna e regional. Contudo, até hoje o Protocolo não entrou

em vigor pela morosidade dos Estados em ratificá-lo. A fórmula proposta no Protocolo de

cooperação militar seria de todos com todos em uma perspectiva multilateral.

No âmbito técnico-militar, a CPLP organiza anualmente, desde 2000, em um sistema

rotativo pelos Estados membros, os exercícios conjuntos e combinados da Série FELINO.

De amplitude mais terrestre, os exercícios seriam uma oportunidade para testar a

interoperabilidade das Forças Armadas, construir uma doutrina conjunta e treinar as forças

para o emprego em operações de paz e de assistência humanitária, com o intuito de criar

sinergias e estreitar os laços entre os militares. Portugal teve a missão de organizar o 1º

Exercício Felino em 2000. No Exercício de 2013 realizado no Brasil, aconteceu pela primeira

7 O Protocolo estabeleceu como componente da defesa da CPLP os seguintes órgãos: Reunião de Ministros da Defesa Nacional dos Estados Membros; Reunião de Chefes de Estado-Maior-General das Forças Armadas; Reunião de Diretores de Política de Defesa Nacional; Reunião de Diretores dos Serviços de Informações Militares; Centro de Análise Estratégica; e Secretariado Permanente para os Assuntos de Defesa.

17

vez atividades de desembarque anfíbio, em uma embrionária proposta de associação entre

a projeção de poder naval e terrestre. Ao longo dos anos, esses exercícios militares têm

sido adensados em complexidade e estrutura, e obtido relativo êxito como forma de

capacitação de recursos humanos e interoperabilidade. Sendo feito mais no âmbito tático-

operacional, seus ensinamentos podem ser utilizados para cimentar e reforçar a cooperação

na área da segurança e defesa, principalmente pelo fato de colocar militares dos países de

língua portuguesa em um mesmo ambiente operacional, o que permitiria a formação futura

de uma rede de operações conjuntas.

Considerando a proposta da Estratégia Geral de Cooperação da CPLP, aprovada em

2006, de que “em cada Cimeira sejam examinadas inflexões ou adaptações a introduzir na

estratégia de cooperação, tendo em conta a evolução da própria Organização e do contexto

internacional”, na Cimeira de Lisboa, em julho de 2008, surge uma nova temática para ser

incluída na estrutura de segurança e defesa, o foco marítimo e o desenvolvimento de uma

política da Comunidade para os oceanos. Nesse sentido, foi incentivada a realização de

uma reunião dos ministros responsáveis por assuntos do mar com o objetivo, dentre outros,

de coordenar posições em fóruns internacionais que abordam questões relacionadas com

os oceanos. Essas Reuniões de Ministros da CPLP responsáveis pelos Assuntos do Mar

têm também como objetivo promover o desenvolvimento e a gestão sustentável dos

espaços oceânicos sob as suas respectivas jurisdições nacionais, inclusive por meio da

cooperação internacional; a elaboração de um Atlas dos Oceanos e a criação do Centro de

Estudos Marítimos da CPLP. Há a proposta de constituição de uma plataforma de partilha

de informação do mar, que agregue unidades de investigação universitárias dos Estados

membros no sentido da dinamização da produção científica, da constituição de uma rede de

informação e da compatibilização de bases de dados. Pode-se dizer que esta apresentaria

uma perspectiva multidimensional e multissetorial que envolveria elementos civis e militares.

O primeiro material produzido, em 2009, por essa equipe multidisciplinar, foi a

Estratégia da CPLP para os Oceanos. A equipe propôs também a realização de uma análise

cooperativa das plataformas continentais e dos recursos naturais dos fundos marinhos dos

Estados membros, bem como a realização de ações com foco na segurança e vigilância

marítima, sendo todos esses elementos ajustados à proposta estabelecida na CNUDM.

Cabe acrescentar que no âmbito dos oceanos, mesmo ainda não institucionalizados na

estrutura da CPLP, já foram realizadas quatro Conferências das Marinhas dos Países de

Língua Portuguesa, sendo a primeira com a temática do papel das Marinhas no atual

contexto internacional (2008 em Portugal); a segunda com a temática as Marinhas e os

desafios do Século XXI (2010 em Angola); a terceira com a temática da garantia da defesa e

segurança marítimas, em âmbito nacional, regional e global - a cooperação entre as

Marinhas para o monitoramento e o controle do tráfego marítimo nas águas jurisdicionais

18

dos países (2012 no Brasil); e a quarta com a temática a importância do mar para o

desenvolvimento dos países da CPLP (2015 em Moçambique). Nessas Conferências foram

feitas recomendações ao nível político-estratégico. Além disso, aconteceram também

Conferências dos Ministros responsáveis pela Pesca e o Encontro de Portos da CPLP.

3.1 - A Agenda e o ambiente marítimo

De fato o oceano é um desafio para a segurança dos Estados, pois necessita de uma

concepção diferenciada de fronteiras e uma gestão partilhada da segurança; principalmente

para Estados carentes de recursos como é o caso do Palops. Deste modo, no contexto

internacional atual, com a exploração de recursos oceânicos e com o fluxo transoceânico de

mercadorias, a segurança marítima é reposicionada como um assunto crucial para

comunidade internacional. Alguns autores apontam que um dos imperativos da CPLP seria

aumentar a afirmação internacional dos países membros, e uma das oportunidades seria

tornar-se referência ou voz ativa nas discussões dos oceanos nos foros internacionais.

Devemos considerar também que vários países da Comunidade apresentam reservas de

hidrocarbonetos e minerais oceânicas já em exploração ou com potencial exploratório. Além

disso, os oceanos constituir-se-iam como fonte de recursos para o desenvolvimento

sustentável dos países e deveriam fazer parte do pensamento político-estratégico desses.

O documento orientador da Agenda da CPLP para o ambiente marítimo é a

Estratégia da CPLP para os Oceanos, e este se baseia nos pilares do desenvolvimento

sustentável, destacando oito princípios de cooperação: a segurança e a vigilância marítima;

a concertação político-diplomática marítima; o desenvolvimento do conhecimento científico

do mar; o desenvolvimento de clusters marítimos para criação potencial de uma indústria

naval dos países da CPLP; a gestão portuária; a proteção do meio ambiente marinho; a

divulgação e informação pública sobre a importância dos oceanos; e a vertente do

desenvolvimento das economias associadas aos oceanos. Há que se considerar ainda a

importância dada pelo documento ao ordenamento do espaço marítimo e os conflitos entre

os variados usos dos oceanos; a extensão das PCs apresentadas a Comissão de Limites da

Plataforma Continental da CNUDM; os fundos marinhos e o conhecimento dos recursos

existentes; as biotecnologias marinhas; o potencial energético (energia das marés, das

ondas, o aproveitamento da biomassa marinha, a conversão da energia térmica, energia

eólica offshore e hidrocarbonetos); a pesca e a aquicultura; a pirataria e o turismo marítimo.

Na Agenda da CPLP para o ambiente marítimo, inicialmente, três pontos podem ser

considerados. Primeiro, é o que efetivamente propõe a Estratégia da CPLP para os

Oceanos, considerando que a gestão adequada dos recursos oceânicos pode contribuir

para a estabilidade das nações e para o fortalecimento das relações entre os países da

Comunidade. Por meio da cooperação internacional, a elaboração dessa estratégia conjunta

19

de concertação visando à construção de uma visão integrada de promoção do

desenvolvimento sustentável dos oceanos sob as suas respectivas jurisdições nacionais,

constitui-se um instrumento extremamente válido. Porém, a Estratégia não estabelece ações

com metas e prazos pré-determinados, e não cita quais seriam as fontes de financiamento

para programas e projetos. Outro ponto é que a Estratégia não sinaliza como esta poderia

ajudar a promover políticas nacionais dos Estados membros, levando em conta a

diversidade de realidades marítimas existentes entre os países membros.

O segundo ponto a ser explorado é a proposta de criação de uma Agência de Língua

Portuguesa de Monitoramento no Atlântico Sul, como um dos órgãos da vertente de defesa

da Comunidade. O Atlântico Sul banha seis dos nove países da Comunidade e tem sido

considerado uma área marítima de menor importância estratégica. Contudo, recentemente

readquiriu relevância, devido à descoberta de grandes reservas petróleo no Golfo da Guiné,

nas águas jurisdicionais do Brasil (pré-sal) e em alguns países da costa oeste da África; a

ampliação do tráfego marítimo na região; o aumento dos investimentos financeiros

estrangeiros nos países lindeiros; a utilização de meios navais mais complexos e de maiores

dimensões (superpetroleiros mais de 20 metros de calado) e a impossibilidade de esses

utilizarem o Canal do Panamá (no máximo 12 metros de calado) ou o Canal de Suez (no

máximo 16 metros de calado). Deve-se salientar que tal iniciativa seria um grande

empreendimento comunitário que auxiliaria muito todos os países de língua portuguesa.

Um terceiro ponto seria a autonomia e exclusividade das Marinhas no pensamento

estratégico sobre os assuntos marítimos. Cabe aqui acrescentar que no Brasil a Comissão

Interministerial de Recursos do Mar, esfera nacional de decisão sobre assuntos do mar é

presidida pelo Comandante da Marinha apesar de ter representantes de outros Ministérios;

o mapeamento da plataforma continental foi feito pela Marinha; a Autoridade Marítima

Nacional é o Comandante da Marinha; o assessoramento dos assuntos marítimos ao

Congresso é feito por oficiais de Marinha; a representação do Brasil na Comissão de Limites

da Plataforma Continental da ONU é de um oficial de Marinha; toda a parte de hidrografia,

navegação, busca, resgate e salvamento, e previsão do tempo no mar também é feita pela

Marinha. Além disso, no âmbito das Conferências de Assuntos do Mar da CPLP, o Brasil se

fez representar por meio do Comandante da Marinha. Em Portugal, essa questão não

parece ser muito diferente, já que o mapeamento da plataforma continental foi feito pela

Marinha; a Autoridade Marítima Nacional é o Comandante da Marinha; o assessoramento

dos assuntos marítimos na Assembleia da República é feito por oficiais de Marinha; a

representação de Portugal na Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU é por

um oficial de Marinha; toda a parte de hidrografia, navegação, busca, resgate e salvamento,

e previsão do tempo no mar também é feita pela Marinha. Além disso, até 2010, o Ministério

da Defesa Nacional chamava-se Ministério da Defesa Nacional e Assuntos do Mar, quando

20

a pasta de Assuntos do Mar passou a fazer parte do Ministério da Agricultura. Considerando

essa conjuntura, podemos dizer ainda que as Marinhas de Portugal e do Brasil acabaram

por atuar como elemento motor para o desenvolvimento de uma estratégia marítima no

âmbito da CPLP. De forma extensa e programática construíram uma agenda técnico-

estratégica para o ambiente marítimo até bem mais densa que a política pensada nas

reuniões de Chefes de Estado e de governo. Complementando, a reunião mais recente dos

Ministros de Defesa e a IV Conferência das Marinhas apontaram para possibilidade do

desenvolvimento de uma estratégia naval (perspectiva militar) da CPLP, onde o Golfo da

Guiné seria prioritário nas ações de treino e fiscalização marítima, por conta da importância

da região para o transporte internacional, e dos recursos energéticos offshore existentes.

Outros pontos a serem considerados na Agenda da CPLP para o ambiente marítimo

seriam desdobramentos diretos da CNUDM. Em 1982, com a conclusão dos trabalhos da III

Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, o mundo passava a ter uma

“Constituição Universal para os Oceanos”, uma Lei para o Mar, um documento amplamente

discutido de forma multilateral; que regulamentou os parâmetros de delimitação das áreas

de soberania e jurisdição dos Estados costeiros. A CNUDM, ao regulamentar essas áreas

marítimas, hierarquizou os Estados, produzindo alguns privilegiados com pequenas áreas

marítimas abundantes em recursos, outros com grandes áreas marítimas e poucas riquezas,

outros sem áreas marítimas e nem riquezas, outros que nem mesmo sabem os recursos

existentes em sua área marítima, e ainda haverá outros que nem mesmo pretendem se

submeter a qualquer regulamentação multilateral marítima, como por exemplo, os Estados

Unidos e a Venezuela. No âmbito da CNUDM e da Agenda da CPLP para o ambiente

marítimo poderíamos destacar algumas questões como prioritárias, já que aparecem

recorrentemente nas discussões das esferas políticas e técnico-militares da Comunidade,

apesar de algumas ainda não terem se materializado em ações concretas.

a) Deve-se considerar que em áreas sob sua jurisdição, o Estado costeiro deve

determinar a sua capacidade de capturar os recursos vivos e quando não tiver

capacidade para efetuar a totalidade da captura deve dar aos outros Estados o acesso ao

excedente, bem como deverá comunicar informações científicas, estatísticas de captura e

de pesca e outros dados para a conservação das populações de peixes, pontua-se que isso

irá requer uma estrutura de mapeamento científico e tecnológico que a maior parte dos

países africanos de língua portuguesa não possui. Contudo, a própria CNUDM sugere que

Estado costeiro e organizações sub-regionais, regionais ou mundiais, cooperem, conforme o

caso, para tal, uma iniciativa possível no âmbito da Agenda da CPLP.

b) Deve-se considerar que em áreas sob sua jurisdição, o Estado costeiro deve

adotar leis e regulamentos para segurança da navegação e regulamentação do tráfego

marítimo; conservação dos recursos vivos do mar; prevenção de infrações às leis e

21

regulamentos sobre pesca do Estado costeiro; preservação do meio ambiente do

Estado costeiro e prevenção, redução e controle da sua poluição; investigação

científica marinha e levantamentos hidrográficos; prevenção das infrações às leis e

regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários do Estado costeiro,

dentre outras. Todas estas questões regulatórias apresentaram-se como áreas passíveis

de cooperação no ambiente da CPLP e são áreas nas quais os países africanos de língua

portuguesa não têm atuação consistente e estruturada.

c) Deve-se considerar que em áreas sob sua jurisdição, o Estado costeiro pode a fim

de garantir os seus direitos de soberania na exploração, aproveitamento, conservação e

gestão dos recursos da ZEE, tomar as medidas necessárias, incluindo visita, inspeção,

apresamento e medidas judiciais, para garantir cumprimento das leis e regulamentos

por ele adotados. Essa atividade, mesmo que com carência de meios navais, tem sido

realizada nos países de língua portuguesa pelas Marinhas ou Guardas Costeiras.

d) Deve-se considerar que seguindo especificações técnicas apresentadas na

Convenção, o Estado costeiro pode requerer a ampliação do bordo exterior da sua margem

continental até 350 milhas marítimas (plataforma continental estendida), sendo possível

nessa área a jurisdição sob o leito e o subsolo; e que para isso o Estado costeiro deverá

depositar junto a ONU (especificamente a Comissão de Limites da Plataforma Continental)

mapas e informações pertinentes, incluindo dados geodésicos, que descrevam os limites

exteriores da sua PC. Essa questão de extensão da plataforma continental e seu

mapeamento para submissão tem tido relevância considerável para o Atlântico de língua

portuguesa ao se tornar objeto de cooperação entre os Estados com participação ativa de

oficiais e meios das Marinhas do Brasil e de Portugal.

e) Deve-se considerar que todo Estado deve exercer, de modo efetivo, a sua

jurisdição e seu controle em questões administrativas, técnicas e sociais sobre navios

que arvorem a sua bandeira, bem como tomar medidas necessárias para garantir a

segurança no mar, no que se refere a: construção, equipamento e navegabilidade do

navio; composição, condições de trabalho e formação das tripulações, tendo em conta os

instrumentos internacionais aplicáveis; utilização de sinais, manutenção de comunicações e

prevenção de abalroamentos. Essa parte de segurança marítima (safety) tem sido um ponto

recorrente na Agenda da CPLP, principalmente por que normalmente cabe às Marinhas

essa tarefa de Autoridade Marítima. Essa parte da CNUDM apresenta ainda outras medidas

a serem cumpridas pelos Estados para assegurar a navegabilidade dos mares, medidas que

requerem uma estrutura estatal permanente para o ambiente marítimo, muitas vezes áreas

de competências das Marinhas e que os Palops não possuem.

f) Deve-se considerar que todo Estado costeiro deve promover o estabelecimento, o

funcionamento e a manutenção de um adequado e eficaz serviço de busca e salvamento

22

para garantir a segurança marítima e aérea, e, quando as circunstâncias exigirem,

cooperar para esse fim com os Estados vizinhos por meio de ajustes regionais. Esses itens

também estão associados ao conceito de safety e requerem estrutura estatal permanente

para o ambiente marítimo, novamente áreas de competências das Marinhas e que os

Palops não possuem.

g) Deve-se considerar que todo Estado deve combater a pirataria e estabelecer

medidas legais e práticas constantes para tal fim, bem como poderia apresar um navio

ou aeronave pirata, ou um navio ou aeronave capturado por atos de pirataria e em poder

dos piratas e prender as pessoas e apreender os bens que se encontrem a bordo desse

navio ou dessa aeronave; sendo que só podem efetuar apresamento por motivo de

pirataria os navios de guerra ou aeronaves militares, ou outros navios ou aeronaves que

tragam sinais de navios ou aeronaves ao serviço de um governo e estejam para tanto

autorizados. Pode-se dizer que essa parte da Convenção atribui ao Estado em geral, e as

Marinhas e as Guardas Costeiras em particular, à função de combater a pirataria e requer

dessas medidas legais e práticas constantes para tal; medidas que requerem uma estrutura

estatal permanente para o ambiente marítimo, e que os Palops não possuem.Há que se

acrescentar que a CNUDM apresenta similar estrutura de competências para o combate ao

tráfico de escravos e de ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

h) Deve-se considerar que todo Estado tem a obrigação de proteger e preservar o

meio marinho. Pontua ainda que os Estados devem tomar, individual ou conjuntamente,

medidas e regulamentações para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho.

Estes seriam um daqueles deveres que a CNUDM atribui aos Estados costeiros e que para

os países mais pobres seria uma tarefa não muito fácil de se cumprir, bem como irá requer

uma estrutura estatal permanente para tal atividade e que os Palops não possuem.

i) Deve-se considerar que de acordo com a CNUDM, somente funcionários

oficialmente habilitados, bem como os navios de guerra ou aeronaves militares ou outros

navios ou aeronaves que sejam identificáveis como estando ao serviço de um governo e

para tanto autorizados, podem exercer poderes de polícia em relação a embarcações

estrangeiras. Nessa parte, mais uma vez pode-se dizer que a Convenção atribui ao Estado

em geral, e as Marinhas e as Guardas Costeiras em particular, à função de exercer o poder

polícia, algo não tão simples para Estados como limitado poder naval como os Palops.

j) Deve-se considerar que todos os Estados e as organizações internacionais têm o

direito de realizar investigação científica marinha sem prejuízo dos direitos e deveres de

outros Estados, bem como que os Estados e as OIs devem, de conformidade com o

princípio do respeito da soberania e da jurisdição e na base de benefício mútuo, promover a

cooperação internacional no campo da investigação científica marinha com fins pacíficos. Já

os Estados costeiros têm direito exclusivo de regulamentar, autorizar e realizar investigação

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científica marinha nas suas áreas de jurisdição. Todavia, esta investigação científica

marinha é atividade que requer recursos tecnológicos e econômicos significativos, o que os

países de língua portuguesa não possuem. É ainda uma atividade que no Brasil e Portugal

quase sempre acontece com apoio das Marinhas. Poderíamos acrescentar que esta parte é

enfatizada na Estratégia da CPLP para os Oceanos, passível de ser ponto de cooperação.

4 - Conclusões

Tendo como base a CNUDM, nesse início de século XXI, pode-se dizer que os

países de língua portuguesa têm tentado se tornar presença ativa nos fóruns de assuntos

marítimos. O interesse português seria porque, dada sua extensão da PC na área

continental e nos Açores e Madeira, o país teria uma área marítima de quarenta vezes seu

território continental sob sua jurisdição, a maior plataforma continental da Europa, podendo

explorar nela recursos vivos e não vivos de valor considerável, apesar não ter reserva

mapeada de hidrocarbonetos. Já Angola teria interesse estratégico nas reservas de

hidrocarbonetos offshore de sua PC. De modo similar, o Brasil já explorador de petróleo e

gás em águas profundas recentemente mapeou a imensa reserva do pré-sal. Como listado

antes a CNUDM atribui amplos direitos e ganhos econômicos aos Estados costeiros, mas

em contrapartida requer deveres desses Estados; deveres em parte relacionados às

atuações militares navais, sendo essas ações apresentadas como pontos convergentes de

cooperação na CPLP. Porém, essas ações têm acontecido no âmbito bilateral, o que alguns

analistas pontuam como uma questão que enfraqueceria a concertação político-diplomática

entre os membros ou inviabiliza o reforço da presença conjunta nos fóruns internacionais.

Acrescentaria que o fato da CPLP funcionar como um fórum de concertação político-

diplomática com pontuais ações cooperativas não deslegitima documentos produzidos sobre

as temáticas das Conferências marítimas. Deve-se ressaltar que CPLP não é a única

instituição onde países de língua portuguesa e seus representantes se reúnem; não é algo

fechado em si ou em suas próprias questões, acaba por refletir questões de outros fóruns

internacionais, principalmente no âmbito da ONU. Observamos hoje uma interdependência

complexa de pertencimento estatal a instituições internacionais ou regionais, bem como de

pertencimento de atores estatais com finalidades específicas, como por exemplo, as

Autoridades Marítimas, a vários fóruns e instituições com temáticas relacionais.

Se observarmos as questões de segurança e defesa para o ambiente marítimo e

cooperação marítima pensada para a CPLP podemos dizer que há relativo alinhamento

entre política externa e política de defesa nos casos brasileiro e português. Entretanto, os

diagnósticos securitários, apesar de coerentes, possuem ameaças muitas vezes importadas

das potências e não baseadas nas demandas prementes dos países de língua portuguesa.

Tenderia a afirmar que a desestruturação das Marinhas e Guardas Costeiras do Palops

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seria a maior vulnerabilidade das suas seguranças marítimas. Pela CNUDM, dentre as

missões a se realizar nessa área estaria atividades militares e não militares (constabulares),

como fiscalização e controle das atividades de pesca; detecção e controle de atividades

ilícitas e imigração ilegal; detecção de poluição marinha; ações contra pirataria; vigilância,

comando e controle do tráfego marítimo; exercício da autoridade marítima, e ações de

busca e salvamento (SAR), bem como operações realmente militares.

Sim, a percepção dos problemas e das vulnerabilidades Comunitária no âmbito da

segurança é um pouco impregnada de percepções de problemas e vulnerabilidades

marítimas mundiais, contudo, as soluções parecem tentar se adequar aos recursos e

projetos já disponíveis, principalmente contando com o apoio de Brasil e Portugal, que

teriam uma estrutura militar e naval um pouco mais desenvolvida e conseguiriam realizar

uma cooperação técnico-militar de peso relativo. Nessa lógica, para o ambiente marítimo,

falamos aqui da possibilidade de se desenvolver uma cooperação regulatória, científica e

tecnológica com os países africanos de língua portuguesa que envolveria as Marinhas

Portuguesa e Brasileira como articuladores principais, mas não exclusivos, e que ações

pontuais já estariam sendo desenvolvidas.

Por fim ressalto que CNUDM sinaliza uma mudança paradigmática do oceano, o

oceano ganha status jurídico de fonte de recursos. Porém, permanecem preocupações

como meio de deslocamento, principalmente a gestão de ameaças como pirataria, tráfico de

drogas e armas, terrorismo e poluição ambiental. A CNUDM também atribui ao Estado à

função de gerenciamento dos oceanos, seja nas partes que lhe cabem jurisdição, seja nas

partes que são patrimônio da humanidade, função que a Convenção sugere ser exercida

pelas Guardas Costeiras ou Marinhas. A CNUDM fala ainda sobre as pesquisas científicas

no ambiente oceânico e a importância da cooperação entre Estados para esse fim já que a

atividade requer altos recursos econômicos. Para encerrar devemos mais uma vez pontuar

que para se ter direitos de exploração dos recursos oceânicos, há que se ter o dever e a

capacidade de patrulhá-lo e mantê-lo livre das ameaças, sejam estatais ou não. Assim,

encerro o artigo com uma citação do Professor Adriano Moreira que reflete bem a realidade

da segurança e defesa marítima dos países de língua portuguesa.

Desta vez as coisas passam-se com muito maior gentileza. Chamam-se diretivas, já não se chamam ultimatos, mas a minha ideia é que a Zona Econômica Exclusiva tende para ser submetida à mesma regra: ou temos capacidade efetiva de a gerir ou perdemos o direito. Julgo que a redação do tratado permite isto, julgo que basta que o permita para que se esteja atento e se exija uma reflexão muito aprofundada sobre a questão [...] Nesta conjuntura, julgo que Portugal tem uma coisa a salvaguardar.8

8 MOREIRA, Adriano. O Mar no Conceito Estratégico Nacional. Uma Visão Estratégica do Mar na Geopolítica do Atlântico. Caderno Naval, n. 24, p. 48, 2008. Disponível em: www.marinha.pt/PT/noticiaseagenda/informacaoReferencia/cadernosnavais/cadnav/Documents/Cadernos_Navais_24.pdf. Acesso em: 12 dez. 2013.