um enigma entre estantes (conto)

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Um enigma entre estantes Ainda me lembro de o ver repor, carinhosamente, aqueles blocos de papel envelhecido e carcomido pelo tempo, enquanto os folheava, humedecendo os dedos nos lábios ocasionalmente. Mas “o arrumador de livros estava morto. Transformara-se em nada mais do que um espírito, uma memória na forma de um corpo, como uma fotocópia antiga e engelhada. Cego para o mundo, dediquei-me a vasculhar o secreto mundo da insónia. Por todo o lado surgiam pistas: nas obras de filosofia, nas biografias, nos romances” ... A minha cabeça turbilhonava com pensamentos. Decidi afastar as águas revendo minuciosamente os acontecimentos da noite anterior. O odor característico do adeus permanecia entranhado no tecido russo da minha camisola. A Universidade já estava fechada àquela hora, no entanto fechada não significava vazia. Ao abrir a porta pesada da biblioteca senti o familiar calor da salamandra que aquecia todos os cantos daquele lugar. Esperava ouvir o habitual “Ainda aqui andas, jovem?”, o que conduziria a uma longa conversa sobre os mais variados e inesperados tópicos, todavia o silêncio foi a única saudação que eu recebi. Comecei a procurar o meu companheiro por entre as altas e sábias estantes, até que o encontrei. O horror percorreu todo o meu corpo, paralisando-o. Lembro-me que no momento a frieza daquela morte me impediu de reagir por longos minutos, mas, com as mãos trémulas, acabei por tirar o telemóvel do bolso pedindo auxílio. Quando regressei à realidade em que me encontrava, já o tinham levado, o arrumador de livros não passava de um peso morto dentro daquela bolsa negra. Não me conformei com as palavras do enfermeiro que diziam tratar- se de uma morte ocasional, tinha de haver algo por trás daquela despedida tão brusca. Na manhã seguinte voltara ao local e recebera a confirmação das minhas suspeitas, ainda não tinha chegado a sua hora, fora envenenado. Tentara saciar a minha sede por respostas, mas a minha entrada fora barrada, “Apenas pessoal autorizado”, disseram. A minha teimosia, defeito bastante criticado pelo arrumador de livros, falara mais alto, e não me restara outra opção senão tentar forçar a minha entrada através de uma porta secundária pouco conhecida. Tal não foi a minha surpresa quando, ao abrir a porta, um indivíduo alto e entroncado foi de encontro a mim, fazendo-me perder o equilíbrio. Ouviu-se um baque surdo provocado pelos vários livros que ele carregava ao caírem no chão de pedra. A rapidez com que os apanhou surpreendeu-me, porém a sua perícia falhou ao deixar um deles abandonado aos meus pés. Ainda tentei devolvê-lo ao seu dono, mas ao virar-me já este se encontrava no monovolume que eu associei ao homem forte e espadaúdo que chocara contra mim havia meros instantes, o meu professor de Botânica. Que faria ele ali? Guardei este pensamento para mais tarde, prosseguindo com o meu objetivo, entrar na biblioteca. As minhas esperanças caíram novamente por terra assim que avistei outra equipa de seguranças ao fundo do corredor. Não tinha tido outra alternativa senão voltar para trás, regressar a casa. Os meus pés repetiam o mesmo percurso no chão do quarto. Parei diante do espelho retangular que refletia outro que não eu. Os olhos que habitualmente transbordavam de um verde vivo e sereno, o cabelo achocolatado e naturalmente alinhado, a pele vívida e embelezada pelo Sol que me caracterizavam, haviam desaparecido. Frente a frente comigo próprio, senti-me outro. Os olhos apagados e desinteressantes encontravam-se encurralados por uma mancha arroxeada, resultado de uma noite em claro; o cabelo emaranhado pela inquietação e frustração e a pele macilenta que se assemelhava à do espírito aprisionado pelo desconhecido dentro de mim. Já se fazia tarde lá fora, no mundo exterior ao meu pensamento, o frio contrastante com o calor do quarto embaciava o vidro das janelas, impedindo-me de ver as luzes da cidade. “Que faria ele ali?” esta pergunta escapou pelos meus lábios involuntariamente, e forçado a regressar àquele momento intruso à desordem que se passava na minha cabeça, peguei no livro esquecido em cima da minha escrivaninha. Folheei as páginas amarelecidas com uma passagem do meu polegar à espera de qualquer pista que saltasse lá de dentro, esclarecendo todas as minhas dúvidas. Para meu espanto, algo barrou o movimento hipnotizante entre duas folhas brancas. Aí encontrava-se um pedaço de papel dobrado em quatro que me pareceu pouco relevante ao início, até que decidi explorá-lo, só por curiosidade. “094; 139; 210” Os números escritos numa caligrafia clássica estavam acompanhados por referências a páginas, linhas e palavras. Um pouco da esperança que havia perdido regressou, pincelando os meus olhos com um verde mais vivo. Tinha de voltar à biblioteca. Abri a porta do meu “simpático” apartamento de rompante e os meus pés, a uma velocidade estonteante, guiaram-me pelas ruas atarefadas em direção ao meu destino. O local abandonado convidou a minha ânsia por respostas a elevar a fita que restringia a passagem acima da minha cabeça. Desdobrei novamente a folha para me relembrar daquilo que procurava. “094”, não encontrava nenhum significado aparente para aqueles algarismos, ou será que encontrava? Olhei à minha volta para as

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Page 1: Um enigma entre estantes (conto)

Um enigma entre estantes Ainda me lembro de o ver repor, carinhosamente, aqueles blocos de papel envelhecido e carcomido pelo tempo, enquanto os folheava, humedecendo os dedos nos lábios ocasionalmente. Mas “o arrumador de livros estava morto. Transformara-se em nada mais do que um espírito, uma memória na forma de um corpo, como uma fotocópia antiga e engelhada. Cego para o mundo, dediquei-me a vasculhar o secreto mundo da insónia. Por todo o lado surgiam pistas: nas obras de filosofia, nas biografias, nos romances”... A minha cabeça turbilhonava com pensamentos. Decidi afastar as águas revendo minuciosamente os acontecimentos da noite anterior. O odor característico do adeus permanecia entranhado no tecido russo da minha camisola. A Universidade já estava fechada àquela hora, no entanto fechada não significava vazia. Ao abrir a porta pesada da biblioteca senti o familiar calor da salamandra que aquecia todos os cantos daquele lugar. Esperava ouvir o habitual “Ainda aqui andas, jovem?”, o que conduziria a uma longa conversa sobre os mais variados e inesperados tópicos, todavia o silêncio foi a única saudação que eu recebi. Comecei a procurar o meu companheiro por entre as altas e sábias estantes, até que o encontrei. O horror percorreu todo o meu corpo, paralisando-o. Lembro-me que no momento a frieza daquela morte me impediu de reagir por longos minutos, mas, com as mãos trémulas, acabei por tirar o telemóvel do bolso pedindo auxílio. Quando regressei à realidade em que me encontrava, já o tinham levado, o arrumador de livros não passava de um peso morto dentro daquela bolsa negra. Não me conformei com as palavras do enfermeiro que diziam tratar-se de uma morte ocasional, tinha de haver algo por trás daquela despedida tão brusca. Na manhã seguinte voltara ao local e recebera a confirmação das minhas suspeitas, ainda não tinha chegado a sua hora, fora envenenado. Tentara saciar a minha sede por respostas, mas a minha entrada fora barrada, “Apenas pessoal autorizado”, disseram. A minha teimosia, defeito bastante criticado pelo arrumador de livros, falara mais alto, e não me restara outra opção senão tentar forçar a minha entrada através de uma porta secundária pouco conhecida. Tal não foi a minha surpresa quando, ao abrir a porta, um indivíduo alto e entroncado foi de encontro a mim, fazendo-me perder o equilíbrio. Ouviu-se um baque surdo provocado pelos vários livros que ele carregava ao caírem no chão de pedra. A rapidez com que os apanhou surpreendeu-me, porém a sua perícia falhou ao deixar um deles abandonado aos meus pés. Ainda tentei devolvê-lo ao seu dono, mas ao virar-me já este se encontrava no monovolume que eu associei ao homem forte e espadaúdo que chocara contra mim havia meros instantes, o meu professor de Botânica. Que faria ele ali? Guardei este pensamento para mais tarde, prosseguindo com o meu objetivo, entrar na biblioteca. As minhas esperanças caíram novamente por terra assim que avistei outra equipa de seguranças ao fundo do corredor. Não tinha tido outra alternativa senão voltar para trás, regressar a casa. Os meus pés repetiam o mesmo percurso no chão do quarto. Parei diante do espelho retangular que refletia outro que não eu. Os olhos que habitualmente transbordavam de um verde vivo e sereno, o cabelo achocolatado e naturalmente alinhado, a pele vívida e embelezada pelo Sol que me caracterizavam, haviam desaparecido. Frente a frente comigo próprio, senti-me outro. Os olhos apagados e desinteressantes encontravam-se encurralados por uma mancha arroxeada, resultado de uma noite em claro; o cabelo emaranhado pela inquietação e frustração e a pele macilenta que se assemelhava à do espírito aprisionado pelo desconhecido dentro de mim. Já se fazia tarde lá fora, no mundo exterior ao meu pensamento, o frio contrastante com o calor do quarto embaciava o vidro das janelas, impedindo-me de ver as luzes da cidade. “Que faria ele ali?” esta pergunta escapou pelos meus lábios involuntariamente, e forçado a regressar àquele momento intruso à desordem que se passava na minha cabeça, peguei no livro esquecido em cima da minha escrivaninha. Folheei as páginas amarelecidas com uma passagem do meu polegar à espera de qualquer pista que saltasse lá de dentro, esclarecendo todas as minhas dúvidas. Para meu espanto, algo barrou o movimento hipnotizante entre duas folhas brancas. Aí encontrava-se um pedaço de papel dobrado em quatro que me pareceu pouco relevante ao início, até que decidi explorá-lo, só por curiosidade. “094; 139; 210” Os números escritos numa caligrafia clássica estavam acompanhados por referências a páginas, linhas e palavras. Um pouco da esperança que havia perdido regressou, pincelando os meus olhos com um verde mais vivo. Tinha de voltar à biblioteca. Abri a porta do meu “simpático” apartamento de rompante e os meus pés, a uma velocidade estonteante, guiaram-me pelas ruas atarefadas em direção ao meu destino. O local abandonado convidou a minha ânsia por respostas a elevar a fita que restringia a passagem acima da minha cabeça. Desdobrei novamente a folha para me relembrar daquilo que procurava. “094”, não encontrava nenhum significado aparente para aqueles algarismos, ou será que encontrava? Olhei à minha volta para as

Page 2: Um enigma entre estantes (conto)

numerosas estantes e reparei nos códigos de três dígitos que correspondiam a diversos temas. “000-100 Filosofia”, dirigi-me a esta secção tentando descobrir a que me conduzia a primeira pista. Percorri as lombadas dos livros com o olhar focado nas etiquetas das mesmas até me deparar com o tal livro. Retirei-o apressadamente do seu conforto, abri-o e dirigi-me à página que pretendia. Contei as linhas e as palavras, o entusiasmo começou a crescer dentro de mim devido à proximidade a que me encontrava de uma potencial solução para este enigma. Rabisquei grosseiramente a palavra descoberta. Repeti o processo com as restantes pistas, obtendo uma mensagem pouco clara e incoerente, mas percetível. Esta indicava-me um local, um dia e uma hora. O nome era-me familiar, referia-se ao ilustre Museu da história da minha cidade natal. O dia era o presente. A hora aproximava-se. Tinha de ponderar cuidadosamente o próximo movimento, pois agora que estava tão perto do final deste episódio confuso não podia dar um passo em falso. Como o tempo era escasso decidi que, enquanto me dirigisse para o local, telefonaria à polícia para os alertar de algo que nem eu sabia o que era, fornecendo-lhes apenas o conteúdo da mensagem. O ar tão frio e cortante da noite passava por entre as madeixas do meu cabelo à medida que corria. A minha ansiedade não dava lugar a qualquer medo que tentasse travar as minhas ações. Ouvi o chiar de uns travões em protesto, o que me fez parar repentinamente, e olhar para o monovolume que travara bruscamente a meu lado. De dentro deste saiu, esbaforido e atrapalhado, o meu professor de Botânica, exigindo que lhe dissesse onde se encontrava o tal livro que deixara caído a meus pés quando havíamos chocado. Apercebi-me de que ele estaria intimamente relacionado com a mensagem que o livro continha, tal não era o seu estado de impaciência. Decidi revelar-lhe o que sabia, garantindo que a polícia o tomaria como suspeito. Fui obrigado a acompanhá-lo ao local de encontro, pensando ele que estaria a impedir-me de denunciar os seus atos, mas eu já me havia precavido. Chegámos ao museu mais depressa do que eu julgava ser possível, enquanto, numa luz amarela, os dígitos do meu relógio mostravam a hora marcada. Dois vultos saíram de dentro de uma carrinha preta no mesmo instante em que eu era empurrado agressivamente para fora do carro. O sangue começou a pulsar nos meus ouvidos à medida que o receio me inundava, até que ao fundo se começou a ouvir o som estridente mas apaziguador das sirenes. O pensamento de que estava salvo acalmou a minha inquietação. Os momentos a seguir passaram num piscar de olhos, a confusão de corpos e sombras que andavam num corrupio em meu redor extinguiu-se em pequenos instantes. Ao longe ouvi a voz rouca do meu professor de Botânica, dirigindo-se a mim: — A curiosidade há-de fazer-te sofrer como ao teu amiguinho! Foi aí que compreendi o que tinha acontecido. Uma mistura de emoções, raiva, frustração, angústia, ódio e desgosto apoderaram-se de mim, levando-me a agarrar os colarinhos da sua camisa axadrezada e empurrá-lo com uma força inumana contra a parede. Num berro, com uma voz que não reconheci como sendo minha, exigi-lhe explicações. Um riso maldoso acompanhou a sua resposta. Custou-me ouvir as palavras que saíram da sua boca, descobrir que a vida lhe tinha sido ceifada de uma maneira tão injusta. O simples gesto de folhear o livro, humedecendo os dedos nos lábios ocasionalmente, havia levado o veneno das páginas corroídas até ao seu organismo. A descoberta de todo um esquema criminoso para o assalto falhado daquela noite fez com que fosse silenciado para sempre. Agora, ajoelhado perante ti, como sinal de respeito, relembro os teus olhos plúmbeos ternurentos, as tuas mãos engelhadas e marcadas por uma vida tão cheia de dedicação e humildade, e o teu saber extraordinário que aumentava de dia para dia. Pois tu não eras apenas um arrumador de livros, eras um amigo.

Realizado por:Ana Rita Mira Mª Cristina Fialho 10ºD