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Um copo de mar para nave gar

Luísa Duar t e

o ensaio comento obras de artistas representantes do produçõo brasileira emergente destes primeiros anos de século 2 I, buscando estabelecer uma converso

entre os trabalhos e certos limites e aberturas que se apresentam no situaçõo contemporônea.

- - _ ._._ --­Jovens ortis tas, situação con temporôneo, novos poss íveis.

Em uma seqüênCia do, vídeo Com o oceano inteiro poro nadar, I dedicado à obra de Leonilson,2 ouvimos, em off, a seguinte fala do artista sobre um trabalho que acabara de ver, intitulado The right place for the heart: "De repente, no meio desse heavy metal todo que é o mundo da gente, tem um cara que dedica o tempo dele para fazer uma obra de arte, uma coisa delicada, uma coisa amorosa, e coloca isso a público".

Este mundo heavy metal indicado por Leonilson, sabemos bem, tornou-se ainda mais heovy metal daquele início da década de 1990 para cá, ano de 2004. Mas se a constatação de vivermos num mundo que a cada dia parece pesar mais é sensível, o outro lado da moeda, encontrado tanto na fala do artista quanto ern sua própria obra, também ganhou espaço. Esse outro lado é o trabalho artístico que, em meio ao estardalhaço, nos faz lembrar da leveza insuspeita que ainda pode habitar este mesmo mundo heovy metal.

A obra de Leonilson não é o objeto deste ensaio; entretanto, não só a seqüência do vídeo quanto também alguns aspectos de seu trabalho podem iluminar o caminho a ser traçado ao longo destas linhas. A marca da ambigüidade, que faz com que a obra não se entregue de uma só vez e, por isso mesmo, seja avessa a totalizações; a narrativa dos afetos tecida ao longo do tempo de trabalho em trabalho, que pode ser lida como uma tentativa de doar coerência a uma experiência fragmentada; a escala intimista e singela presente nas obras da última fase; a indicação da presença de uma consciência sabedora da incapacidade de alcançar um ideal; a exposição de uma fragilidade que é tanto dos materiais

empregados quanto do próprio sujeito são todos aspectos passíveis de ser atribuídos ao trabalho do artista.

Tal fisionomia - mesmo que delineada de forma apressada - possibilita enxergarmos a obra de Leonilson como uma manifestação artística que, a um só ternpo, surge como signo do desengano e do desamparo da época atual, e é, ela mesma, a indicação da abertura de novas possibilidades que este mesmo tempo desenganado traz consigo. Essas novas possibilidades estariarn então nessa multiplicidade de narrativas, de pequenos e diversos mundos a serem construídos, ativados, potencializados.

É justamente desta contemporaneidade arnbígua, que aparece com as marcas da desilusão e da abertura de novos caminhos, que teremos a oportunidade de nos aproximar ao longo deste ensaio, mediante comentários de trabalhos de quatro artistas plásticos e uma dupla - Marilá Dardot, Matheus Perpétuo, Pedro Motta, Sara Ramo e Cinthia e Marilá - todos representantes da produção brasileira emergente destes primeiros anos do século 21 .

Não encontraremos na obra de nenhum desses nomes traço algum da subjetividade de cunho romântico ou mesmo os rneios de expressão (pintura, desenho, bordado), presentes no trabalho de Leonilson. Entretanto, arrisco trazê­lo como um capítulo importante da arte brasileira recente que encarna, simultaneamente, uma fragilidade e uma riqueza que dizem respeito não só a certas poéticas no campo das artes plásticas, mas, quem sabe, à experiência contemporânea num sentido mais ampl03

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a/e REV I S T A DO PROGRAMA DE PÚS-GRADUAÇÃO EM ARTES V I SUA I S EBA • UFR J · 2004

Todos os jovens artistas aqui destacados, com exceção da dupla Cinthia e Marilá,4 fizeram parte do 27º Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte - Bolsa Pampulha, um programa de estímulo à produção emergente, de natureza inédita no contexto cultural brasileiro. Concebido pelo Museu da Pampulha, trata-se de uma reformulação do antigo Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte, hoje transformado num programa que concede a 12 artistas, bienalmente, bolsas de incentivo para que produzam novas obras. Os artistas residem em Belo Horizonte por um ano e realizam exposições individuais, aos pares, no Museu da Pampulha, ao longo do ano seguinte. Durante o primeiro ano, todos recebem visitas mensais de acompanhamento, realizadas por críticos e curadores. Em 2004 ocorreram as exposições do primeiro grupo de bolsistas 5

Arriscaremos aqui, a partir dos comentários de obras específicas desses jovens artistas, derivar uma espécie de narrativa em cínco atos, a saber: uma série de fotografias Sem título (2003/2004), de Pedro Motta; o vídeo Se eu tivesse terra debaixo de meus pés (2004), de Marilá Dardot; a o bra em fotografia A Mensagem Imperial (2004), de Matheus Perpétuo;6 o vídeo-performance Oceano Possível (2002), de Sara Ramo; e a ação­proposição Irmãs (2003), da dupla Cínthia e Marilá7

A narrativa

Eram para ser entradas e saídas, mas está tudo obstruído. Era para ser a ponte entre o públiCO e o privado, no entanto, a ligação entre ambos está interrompida. Era para levar de um lugar a outro, mas surge ligando o nada a lugar nenhum.

Estamos diante de uma série de nove fotografias de Pedro Motta, que registra portas, janelas, fachadas inteiras tampadas por tijolos e concreto. Duas, das nove fotos que compõem a série, formam um conjunto em separado, no qual avistamos grandes viadutos que tiveram suas construções não concluídas.

As fachadas bloqueadas são fotografadas sempre frontalmente, com planos fechados. Temos a nossa frente um cenário urbano abandonado, decadente, cujo denso preto-e-branco com que é registrado tem o poder de doar contornos desoladores. Fachadas cegas, que se tornam

símbolos de impedimentos. Impossibilidade de trânsito, impossibilidade de visão, impossibilidade de troca entre o público e o privado. Estamos diante de uma encarnação da impotência. As fotografias de Pedro surgem como uma espécie de constatação silenciosa dessa condição. Como bem apontou Rodrigo Moura, 'I\pesar do caráter realista, as imagens agrupadas traduzem uma idéia de tristeza ou de impotência face à realidade, e nunca se traduzem como denúncia, mas quase como contemplação".

Em uma das imagens não avistamos uma fachada bloqueada, mas sim uma escada deteriorada cujo destino foi totalmente obstruído. A escada, metáfora da ascensão, de uma possível liberdade, de uma fuga, encontra­se aq ui interrompida, numa alusão contundente às impossibilidades de mudança.

Pedro Motta sai às ruas da cidade com sua máquina fotográfica, e o seu olho parece buscar justamente aquilo que impede a visão. Os blocos de concreto, erguidos para impedir a entrada em propriedades temporariamente abandonadas por seus donos, simbolizam não só inviabilidade de deslocamento, como também de o olhar conseguir avistar um horizonte. Nesse sentido, a expressão "fachada cega" é sugestiva. Sabendo-se que o movimento depende do olhar para encontrar sua direção, findamos por constatar um cenário em suspenso, de paralisia, que não enxerga nem entradas, nem saídas.

No conjunto de outras três fotografias que compõem a série, as interrupções são de uma ordem diversa. Surgem planos mais abertos, nos quais avistamos paisagens de estrada, um céu pesado, uma vegetação seca ao redor da pista, e ao fundo grandes viadutos inacabados, tendo apenas seus tabuleiros concluídos (tabuleiro é o termo técnico para a parte do viaduto, sobre pilares, que faz a ligação entre os pontos de sustentação). MaiS uma vez a marca da impossibilidade está presente. Os viadutos surgem não como símbolos do progresso, da possibilidade de deslocamento , mas, sim, desprovidos de sua funcio nalidade, aparecem como ruínas, transfigurações de um tempo inconcluso. Imagens desconcertantes de pontes "que, afinal, aparecem ligando nada a lugar algum"8

O tempo, em toda essa série de fotografias, surge suspenso; evocando a experiência de

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vive rmos uma época de extrema velocidade, mas que, de alguma forma, parece não sair do lugar. Uma "frenética imobilidade". Os viadutos inconclusos são exemplares dessa experiência. Eles, que deveriam estar ali suportando a mobilidade, as mudanças, surgem inacabados, por fim, não possibilitando movimento algum.

Da impotência encarnada num tempo imóvel, encontrada na obra de Pedro Motta, passamos para a desorientação encarnada num tempo que surge vertiginoso no vídeo de Marilá Dardot, Se eu tivesse terra debaixo de meus pés.

A eminência da perda de chão leva a um caminhar t rêmulo, que se desloca em idas e vindas. Sobre areia, sob água, sobre mato, sobre folhas secas. Uma procura, uma busca, que não encontra seu fim. O olhar está permanentemente voltado para baixo e encontra-se turvo, desfocado. Aos poucos é possível notar que estamos próximos da beira de uma praia, ou seja, a linha do horizonte encontra-se logo ali ao lado. Entretanto, esta é solenemente ignorada. Aqui não há horizonte, perspectiva, ponto de chegada.

Trata-se de um plano-seqüência de 21 minutos (mas a sensação que temos é a de um loop contínuo) que registra uma travessia à deriva. Espécie de drama sóbrio passado em uma paisagem inesperada para um drama. À luz do sol , com cores luminosas, barulhos de vento, do mar, dos pés pisando água, mato. Numa obra que cria um tipo de tensão, ao mesmo tempo em que oferece a luminosidade, a beleza das cores e os sons da beira de uma praia, irradia uma vertigem angustiante que pulsa das imagens de um caminhar no mundo cuja natureza é a i nstabi I idade.

A experiência de assistir por algum tempo à obra de Marilá é realmente esta, de uma vertigem angustiante. Ficamos esperando o momento em que aquele andar irá ganhar um rumo, ou que vá parar, que o olhar deixe de ser turvo e ganhe nitidez ou que, enfim, se erga, abandone a terra que parece perder-se debaixo dos pés, e aviste um horizonte à frente, encontrando assim um ponto no qual se fixar. Nossa ânsia por alguma estabilidade não suporta toda essa desorientação. Na constatação de que se trata de uma travessia cíclica, da qual não se sai, tomamos nós outra direção, desviando o olhar e procurando rapidamente algum ponto firme e estát ico, a fim de retomar a visão e fazer

aos poucos diluir a vertigem de que estamos tomados.

Esse mal-estar experimentado depois de algum tempo assistindo a Se eu tivesse terra debaixo de meus pés é provocado por uma temporalidade arremessada numa espécie de presente contínuo. Um caminhar ininterrupto, sem memória, sem norte, sem o seu à frente e o seu atrás; no qual não há vestígios de linearidade, de planejamento, mas, sim, uma entrega às diversas oscilações dos terrenos, dos ventos, das marés. Aqui não se finca, por um momento que seja, o pé em algum ponto fixo. "O devir único e etemo, a inconsistência total de todo real, que somente age e flui incessantemente sem alguma vez ser, é ( ...) uma idéia terríve l e atordoadora - muitíssimo afim ( ...) ao sentimento de quem, num tremor de terra, perde a confiança que tem na terra firme"9

A questão do tempo surge também no trabalho de Matheus Perpétuo, A Mensagem Imperial. Trata-se aqui de uma série de cinco fotografias. Em cada foto vemos pedaços de palavras inconclusas. Quando muito, avistamos uma palavra inteira e outras em fragmentos. As fotos, montadas em seqüência numa linha horizontal. formam um plano de imagens que nos convida a tentar alinhavar os fragmentos e extrair dali algum sentido. Esses enunciados incompletos são trechos de um grande mural fotografado em dose-up pelo artista, presente no Museu da Cidade, na Capital Federal , no qual está sendo relatada a história da construção de Brasília.

De uma prime ira e possível tentativa de ler as cinco fotos, podemos retirar a seguinte seqüência: "proclamo da forçai uma fragilidade o valor/ que cometas/ das coisas palavras/ em definitivo o executor". Dessa busca por costurar os cacos de palavras, podemos tentar obter algum sentido: proclama-se uma força, ligada a uma fragilidade, com essa frágil força, das coisas , palavras, iríamos então cometer o ato de tornarmo-nos um executor.

Ora, obviamente essa é "uma" leitura desta espéCie de mensagem aos pedaços que nos é dada a lerJver, ent re dezenas de outras possíveis. A Mensagem Imperial é uma obra aberta, que fala Justamente das inúmeras possibilidades de pontos de vista diante da história. No caso, o discurso que narra a const rução da cidade de Brasília, um mito da

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a/e R E v 1ST A o o P R o G R A M A o E PÓS· G R A o U A ç A o E M A R TE S V I SUA I 5 E B A • u F R J • 2 o o 4

modemidade tardia do Brasil, ainda crente em utopias. Mito porque Brasília, símbolo da crença no progresso, guarda hoje não somente as belas curvas de Niemayer, mas também, e sobretudo, a marca de uma cidade cujo projeto (que a ergueu) faliu.

A Mensagem Imperial vale-se de um possível lado feliz de um tempo que há muito já rompeu seus elos com o passado e o futuro, sendo assim descontínuo por excelência. O trabalho de Matheus lembra que nem só impotência e desorientação se desdobram dessa condição, mas indica antes o que seria uma produtividade da perda. No caso, a perda da tradição, que fez com que nós, homens do presente, compartilhássemos todos a mesma sensação, descrita com precisão por René Char, de que "nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento". 10 Sem testamento - o que equivale a dizer sem tradição - não temos mais uma determinação do que fazer com a nossa herança. Se, por um lado, essa ausência gera um estado de desamparo, por outro, ela também pode significar uma insuspeita liberdade. Pois, sem testamento - que possui a utilidade de dizer aos herdeiros o que devem fazer com o que foi deixado - , encontramo-nos então livres para manejar, transmitir e ler a mesma herança de inúmeras formas.

A obra de Matheus tem seu título inspirado no conto de Kafka "Uma mensagem imperial". Nessa pequena estória, um imperador, prestes a morrer, revela a um súdito uma mensagem, ao pé do ouvido. A mensagem é enviada pelo imperador moribundo, mas nunca chega a ser transmitida pelo mensageiro. Como afirmou Jeanne Marie Gagnebin, Kafka soube, como poucos, nos contar "com uma minúcia extrema (...) que não temos nenhuma mensagem definitiva para transmitir, que não existe mais uma totalidade de sentidos, mas somente trechos de histórias e de sonhos. Fragmentos esparsos que falam do fim da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaça de destruição, mas também - e ao mesmo tempo - esperança e possibilidade de novas significações". I I

Na leitura que fizemos aqui da Iv1ensagem de Matheus, tentamos costurar um dos muitos sentidos possíveis contidos nessas ruínas semânticas. Nesse, a mensagem, em cacos, tentava nos falar de uma força proveniente da fragilidade. Podemos arriscar a pensar que essa

fragilidade remete lustamente à condição fragmentada, descontínua, que é o modo de ser da própria experiência contemporânea. E, seguindo a escutar os ecos da IVlensagem, ouviríamos que é daí mesmo - da fragilidade ­que sobrevém uma força capaz de nos fazer cometer o ato de nos tornar um executor, ou seja, que, diante das ruínas, sejamos construtores de novas e possíveis leituras, narrativas, em um mundo que não se apresenta fechado, mas, sim, aberto, múltiplo. Construtores de uma história sempre inconclusa - uma mensagem enviada, mas que nunca chegará. "Você, no entanto, está sentada à janela e sonha com ela quando a noite cai" . '2

*

Através do contato com os trabalhos de Pedro Motta, Marilá Dardot e Matheus Perpétuo, tivemos a oportunidade de nos aproximar de uma situação contemporânea ambígua, que acena ora traumática, ora bem-vinda. Na próxima obra a ser comentada, Oceano possível, de Sara Ramo, veremos essa condição ambivalente presente numa mesma manifestação.

Oceano: sinônimo de grandeza, imensidão. Imensidão tal, que o olhar, o nadar, o navegar de um homem só não dá conta. O Oceano possível - um vídeo-performance de três minutos e meio - não é vasto nem imenso. Não há o céu acima nem o horizonte à frente. Ele está entre quatro paredes, restrito ao espaço doméstico, num banheiro. É feito de água em baldes e bacias de plástico, azuis e verdes, que se encontram em torno de uma mulher sentada de costas, nua (a própria artista). Ela se lava com um pequeno pedaço de pano, molha o corpo, os cabelos, rema nos baldes e bacias com duas grandes colheres de madeira. Ao fundo ouvimos pequenos ruídos, um rádio, o som de uma gaita, barulhos da rua.

Essa obra nos faz lembrar os versos de Jorge de Lima: "Há sempre um copo de mar/para um homem navegar". "Nestes versos, as palavras empregadas são do cotidiano, a rima é comum, e a sintaxe não poderia ser mais simples. Entretanto, são dois versos generosos para a imaginação."' 3 Assim também surge o trabalho de Sara: feito de objetos do cotidiano, num ambiente doméstico, que articulados pela artista ganham uma densidade poética de extrema generosidade. E, assim como os versos de Lima,

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indica que, a despeito da impossibilidade do oceano inteiro, haverá sempre um pedaço dele para ser navegado, simbolizando a existência de uma riqueza passível de ser explorada, ao alcance das mãos.

o campo do possível é o oposto do ideário utópico, inalcançável. O possível está muito mais próximo do tempo presente do que do futuro. Por meio de sua obra, Sara nos conduz a pensar sobre a face feliz da ausência de um futuro idealizado. Quem sabe, essa ausência possa fazer com que devotemos uma nova e mais cuidadosa atenção para o tempo presente, considerando uma rea lidade próxima como ponto de partida para as realizações no mundo. Sugerindo talvez que, no lugar das transformações grandiosas que habitavam os sonhos de algumas décadas atrás, um novo campo de atuação ganhe lugar, no qual uma escala menos heróica e mais intimista de deslocamentos, proposições, mudanças, entra em cena.

Assim, Oceano possível surge não só como uma constatação levemente melancólica dos desenganos desta nossa época pós-utópica. Mas, também, como signo da descoberta de brechas dentro de dimensões prosaicas da experiência que habitam esta mesma época. Brechas nas quais é possível inserir pequenas

transformações, indicando a presença de um tempo presente vivo , pulsante, que está aí para ser ativado, reinventado, em suas insuspeitas gamas de possibilidades.

Vale notar como não só em Oceano possível, mas também em trabalhos como Ceia e O que acontece na normalidade das coisas, 14 a artista subverte a costumeira ordem doméstica, promovendo uma bagunça que finda por jogar novas luzes em objetos, utensílios, coisas que até al i se encontravam silenCiosamente adormecidas pelo hábito. Em suas bagunças, Sara descobre "o novo de novo". 15

Irmãs, da dupla Cinthia e Marilá, assim como Oceano Possível, sugere uma ativação/transformação numa esfera prosaica da experiência. A ação-proposição nos instrui: "Escolher seu par. Compartilhar o fazer das fiores. Passear pela cidade, encontrar as árvores. Nas amarelas, deixar flores roxas. N as roxas, amarelas. Os ipês flo rescem uma vez por ano, de julho a setembro". No mesmo livrinho no qual se encontra essa instrução, há a indicação de como fazer flores de ipês em papel crepom e o registro da ação realizada. Duas mulheres (a dupla de artistas), uma vestindo camiseta amarela, a outra , camiseta roxa. Ambas com mochilas transparentes nas costas cheias de flores de papel crepom. A de camiseta amarela

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a/e REVISTA DO PROGRAMA DE POS·GRADUAÇ Ã O EM ARTES VISUAIS EBA .. UFRJ. 2004

traz a mochila repleta de nores roxas, a que veste roxo traz nores amarelas. Elas encontram os ipês. A que veste roxo deixa as nores roxas de seu par embaixo dos ipês amarelos; a que veste amarelo, por sua vez, deixa as nores amarelas de seu par sob os ipês roxos.

Irmãs, em sua extrema simplicidade, propõe pequenos desvios no cotidiano. Encontrar seu par e compartilhar o fazer das nores (proposta do encontro com o outro), sair à procura dos ipês (devotar atenção à natureza tantas vezes ignorada pelo homem citadino) e "gastar" o tempo nessa ação (disponibilizar o tempo para uma atividade não "produtiva", em meio a uma vida pautada pelo trabalho e o capital). Tudo isso para uma ação aparentemente inútil. Mas nessa espécie de finalidade sem fim de Irmãs ocorre uma fina inversão de sinais nos hábitos cotidianos, propondo sutis deslocamentos perceptivos e temporais. Os que se disponibilizam a fazer Irmãs estarão experimentando esses deslocamentos e sendo os agentes da realização de uma paisagem pública inesperada que, por sua vez, também provocará deslocamentos perceptivos nos que testemunham a ação Já realizada nas ruas. Afinal, nores roxas surgem estranhamente sob a copa de um ipê amarelo, e vice-versa. Pelo contraste entre as duas cores complementares a dupla de artistas cria uma atmosfera lúdica, onírica, em meio à realidade acachapante do centro urbano, buscando assim tomar vivos os olhos dos habitantes para a experiência diária - e tantas vezes esquecida - dos ipês nas ruas da cidade.

A intensa composição cromática presente em Irmõs revela que esse é também um trabalho de pintura, uma espécie de "natureza viva", que mescla os ipês reais com os ipês de crepons. São ainda as cores que nos levam a uma leitura poética da obra, na qual o roxo - em sua tonalidade fúnebre, o roxo que é a cor dos cadáveres - surgiria simbolizando a morte, e o amarelo - solar, aberto, hélio - , simbolizando a vida. Dando-se então, no contraste entre ambas, um encontro entre esses dois extremos. Em Irmãs, Vida e morte surgem juntas. "Primeiro norescem os ipês roxos, exuberantes de cor fúnebre. Como se a morte fosse anterior à vida que virá com os amarelos, resplandecentes de luz. É bela essa inversão: da morte à vida. Por pouco tempo as duas cores coincidem na paisagem. Nesse período as irmãs caminham de mãos dadas, cada uma veste uma cor e transporta a cor oposta. Misturam a vida à

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morte, a morte à vida, sem fim nem origem". 16

Vale ainda notar que Irmõs traz a marca da participação do outro como possível realizador da obra. Assim, o artista aparece aqui não só como um criador, mas também como um propositor. E o público toma-se um participador em potencial. Fazem parte da obra o livrinho com as instruções e o registro da ação para que o outro venha a realizar a experiência, as mochilas transparentes e as camisetas; mais dois rolos de papel crepom e um par, e se tem todo o equipamento necessário para fazer Irmás nas ruas da cidade.

**

O título deste ensaio, valendo-se de uma tripla inspiração (o nome do vídeo dedicado a Leonilson, os versos de Jorge de Lima e o trabalho de Sara Ramo), buscou resumir o espírito desta pequena narrativa, sinalizando a ambivalência existente numa produção emergente que constata limitações e dilemas da época atual, e também revela que dentro desses limites e diante de tais dilemas, pode ainda habitar um campo férti l de possibilidades.

Nesta exposição, a primeira parte privilegiou o comentário de manifestações que nos levaram a pensar acerca de certos impasses caros à contemporaneidade, como a impotência presente nas fotos de Pedro, a desorientação angustiante do vídeo de Marilá e o tempo fragmentado na obra de Matheus. Os trabalhos Oceano possível e Irmás, por ssua vez, não s6 permitiram a continuidade de uma observação a respeito da situação contemporânea, como também sinalizaram a busca pela ativação de uma esfera ordinária da realidade, que vê de soslaio objetos já enquadrados pelo senso comum e apressado, valendo-se de fragmentos do mundo, periféricos, banais. Tendo como guia a convicção de que 'algo precioso possa encontrar-se nas entrelinhas das coisas mínimas e cotidianas, guardadas no tempo presente.

Este ensaio pressupôs que, ao reunirmos os comentários das cinco obras num mesmo espaço, estaríamos indicando que a renexão sobre os trabalhos que tomam uma dimensão cotidiana da experiência como ponto de partida para criação, se torna mais rica caso realizada à luz dos impasses esboçados nos três primeiros comentários, num exercício sucinto de

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contextualização que pode ampliar o campo de compreensão dos significados dessas investidas e evitar que elas sejam vistas, de forma apressada, como manifestações que denegam uma realidade superlativa do mundo contemporâneo.

Esta intervenção procurou também chamar atenção para alguns nomes relevantes na compreensão dos novos rumos da arte no país. Eles estão aqui representados por trabalhos específicos, os quais compõem uma tentativa de exposição de um pensamento maior. Assim, somente um o lhar atento e exclusivo a cada uma de suas trajetórias pode legar um melhor entendimento de suas investigações. Entretanto, esperamos que os momentos de suas obras aqui registrados possam refletir algo que lhes seja familiar. Épreciso dizer que este ensaio teve nas conversas travadas com os respectivos artistas um substrato importante para sua construção. Dessas trocas e do contato com as obras, fica a convicção de que os caminhos aqui apontados possam ser boas portas de entrada para começarmos a pensar algumas questões caras a parcela da nova produção. Produção essa que su rge , ao mesmo tempo, atravessada pela experiência deste nosso mundo heavy metal, e apostando na potência dos fragmentos que murmuram em meio ao ruído disseminado. Pequenos anúncios de, quem sabe, alguma esperança.

4 A artista Clnthla Marcelle também fez parte do programa Bolsa Pampulha com seu trabalho au tônomo em relação à dupla com Marilá Dardot.

s Esse programa loi instaurado quando Adr iano Pedrosa ocupava o posto de curador do Museu da Pampulha. em 2003. e seguiu sua realização sob a gestão de Rodrigo Moura como o novo curador. em 2004 .

6 Até o prime iro semestre de 2004, o artista assinava como Matheus Rocha Pitta .

7 Até hoje os respec tivos trabalhos loram exibidos nas seguintes ocasiões: sér ie de lotos sem título , Museu da Pampu lha, Exposição Bolsa Pampulha (BH). 2004. Se eu tivesse terra debaixo de meus pés , Museu da Pampulha, ExpoSIção Bolsa Pampu lha (BH), 2004. A Mensagem Imperial. Museu da Pampulha, Exposição Bolsa Pampulha (BH), 2004. Oceano Possível, Panorama de Arte Brasileira (desarrumado), Paço Impenal (RJ) e MAM (SP), 2003. Irmãs. Galeria A Gent,1 Canoca, Exposição In(an til (RJ). 2003, e Ga leria Vermelho (S P), Exposição Grótis, 2004

8 Moura, Rodrigo. em: volante impresso para a exposição Bolsa Pampulha: Pedro Motta - Museu da Pampulha. Be lo Horizonte, 2004.

, Nietzsche, Friedrich. ''A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos" . Citado por Rocha, Silvia Pimenta Vel loso. Os Abismos do Suspeito - Nielzsche e o perspect lVismo. RIO de janeiro: Re lume Dumará. 2003: 56.

lo Essa ci tação dá iníCIO ao prelácio do livro de Hanna Arendt, Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva , 1997: 31 .

II Gagnebin, jeanne Mane. Walter Benjamin ou a hist6na aberta. Prefácio do liVro Obras Escolhidos de WaJ ter Benjamlll - /vi agia e Técnico Arte e Político. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

12 Trecho do conto de Kafka "Uma mensagem imperr al", com. tradução de Lúcia Nagib, transcrito no prefácio do livro Obras Escolhidos de Waller Benjamin . Magia e Téc[1ÍCQ Arte e f'oI,Qco. São Paulo: Editora Brasi: (~nse, 1987.

IJ Comentário de Raduan Nassar a respeito dos versos de Jorge de II'11a, em entrevISta concedida pe lo escritor ao Cadernos de Literatura . do I ns~; tu to Moreira Salles. dedicado a sua ob,a. 1996: 24.

Lu i'Sa Duarte é jornali sta e cr ít lGl de ane. Em 2004 cursa o último ano da EspecialIzação em Arte e Filosofia do Departamento de t osofla da PUC~ Rio

Notas

I Vídeo dll'igido por Karen Hal'ley. Uma realização da Prefe ',t ra do Rio de janeiro - RioArte. 1997.

2 Artista plástico cearense. morou a maior parte da vida em São Paulo, nasceu em 1957 e fa!eceu em 1993. por complicações decorrentes do víru s da Aids.

J Como o leitor poderá co· ·'errr mais d Irente, a construçâo deste ensaio teve nas conversas estabele idas com os jovens artistas aqu I destacados um s lJ ~strato impo rtante para sua construção. Entretanto. esta Introdução via Leonilson não loi levantada nessas conversas, sendo uma indicação que alTisco trazer aquI sob minha responsabil idade. D iante da vISada breve do trabalho desse importante artIS ta aqui rea lizada, cabe indicar que o livro São Tantas os Verdades. de lisette Lagnado, consti tui-se numa relerêncla bibliográfica lundamental sobre a obra de Leoni lson.

14 CeIO é outro vídeo-performance no qual a artista promove, de forma serena, um pequeno LdOS em uma cozinha. Na série O que acontece no norma /idade das coisas há sempre uma dupla de fotos. Em uma de las aVistamos um ban ileim em sua maiS pe rfeita ordem, na o utra, resultado de uma ação da art ista. todas as coISas que estavam guardadas em seus deVidos lugares su rgem do lado de fora, formando uma paisagem inesperada.

". Essa Idê,a de que nas bagunças se acha o novo de novo encontra-se em um pequeno texto do al110ta Tunga, que Introduz seu livro Borroco de Urias: "Sempre gostei de bagu·1ça. Não de ordem nem desordem. Bagunça. O que tenho a mão vou mexendo até perder. prá depois achar de novo. Achando o que perdi acho o novo de novo, reencontro o novo no velho - é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo",

" Trecho de um pequeno texto de O nthia e Manlâ sobre Irmõs.

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