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VALQUÍRIA MARIA CAVALCANTE DE MOURA UM CASO DE ABOLIÇÃO DO VERSO NA POESIA BRASILEIRA: MISSAL, DE CRUZ E SOUSA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, da Universidade Federal de Alagoas, para obtenção do título de Mestre, na área de Concentração Literatura Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Fernando Otávio Fiúza Moreira. UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA Maceió, fevereiro de 2006

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VALQUÍRIA MARIA CAVALCANTE DE MOURA

UM CASO DE ABOLIÇÃO DO VERSO NA POESIA BRASILEIRA: MISSAL, DE CRUZ E SOUSA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, da Universidade Federal de Alagoas, para obtenção do título de Mestre, na área de Concentração Literatura Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Fernando Otávio Fiúza Moreira.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA

Maceió, fevereiro de 2006

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VALQUÍRIA MARIA CAVALCANTE DE MOURA

UM CASO DE ABOLIÇÃO DO VERSO NA POESIA BRASILEIRA: MISSAL, DE CRUZ E SOUSA

MACEIÓ, fevereiro de 2006

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Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas

Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico

Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale

M926u Moura, Valquíria Maria Cavalcante de. Um caso de abolição do verso na poesia brasileira : missal, de Cruz e Sousa / Valquíria Maria Cavalcante de Moura. – Maceió, 2006. 122 f. : il. Orientador: Fernando Otávio Fiúza Moreira. Dissertação (mestrado em Letras e Lingüística : Literatura Brasileira) – Univer- sidade Federal de Alagoas. Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística. Maceió, 2006. Bibliografia: f. 83-87. Anexos: f. [88]-103.

1. Sousa, Cruz e, 1861-1998 – Crítica e interpretação. Missal. 2. Critica literária. 3. Literatura brasileira. 4. Poemas em prosa. I.Título.

CDU: 869.0 (81)-1.09

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Fernando Otávio Fiúza Moreira, pela orientação bem direcionada que tornou este trabalho menos árduo. Aos membros da banca examinadora, Profª. Dr.ª Gilda Vilela Brandão e Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira. À minha família, pelo apoio ao longo do curso. As demais pessoas que de uma forma ou de outra contribuíram para esta pesquisa. Aos funcionários do PPGLL e da biblioteca do curso, pela ajuda ao longo da pesquisa. À CAPES, pela bolsa que auxiliou a concretização desta pesquisa.

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RESUMO

Este trabalho propõe uma leitura do livro Missal, de Cruz e Sousa. Investiga a origem do

poema em prosa, na literatura francesa, focalizando os principais problemas suscitados pelo

novo gênero. Analisando os poemas de Cruz e Sousa, a pesquisa aborda o projeto poético

global do autor. Na análise, os poemas acham-se reunidos de acordo com as temáticas,

consideradas pertinentes para a compreensão da obra. Ao centrar a discussão sobre a

dimensão discursiva do poema em prosa, sobre os operadores de tensão de sua construção e

sobre as figuras de dualidade, o trabalho apóia-se nos estudos teórico-críticos, desenvolvidos

por Tzvetan Todorov.

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RESUMÉ

Ce travail propose une lecture du livre Missal, de Cruz e Sousa. Il investigue les débuts du

poème en prose dans la littérature française, en focalisant les principaux problèmes suscités

par le nouveau genre. En analysant les poèmes en prose de Cruz e Sousa, cette recherche

aborde le projet poétique global de l’auteur. Au cours de l’analyse, les poèmes se trouvent

réunis d’après les thématiques, considerées pertinentes pour la compréhension de l’ouvre. La

dimension discursive du poème en prose, les operateurs de tension pris en charge dans sa

construction et les figures de dualité reposent sur les études théoriques et critiques de Tzvetan

Todorov.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 6

CAP. 1 – O POEMA EM PROSA: ORIGEM E DEFINIÇÃO 8 1.1 A definição do poema em prosa 15 1.2 A questão dos gêneros 18

1.3 A recepção crítica do Simbolismo 22 e do poema em prosa no Brasil

CAP. 2 MISSAL E AS FIGURAS DE DUALIDADE 29

2.1 Poemas metalingüísticos 32

2.2 A ambivalência 37

2.3 Da ambivalência para a antítese 47

2.4 A inverossimilhança 51

CAP.3 MISSAL E O “ÂNGELUS” 56

3.1 O “Ângelus” 61

3.2 O “Ângelus” em prosa 64

3.3 O “Ângelus” em verso 73

CONCLUSÂO 81

Referências bibliográficas 83

Anexos 88

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INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como corpus de análise um livro que se insere em um gênero

que, até o momento, mostra-se hostil a definições a priori. O trabalho tem como objetivo

analisar os poemas em prosa de Missal (1893), de Cruz e Sousa, levando em consideração as

características do gênero. Para isso, serão adotadas as perspectivas teóricas de Todorov (1980)

e Hugo Friedrich (1978), além do referencial teórico específico do gênero.

O primeiro capítulo pretende traçar a origem do poema em prosa, problematizando as

definições dadas até o momento. Esse capítulo introdutório ao gênero, com parcial autonomia

em relação ao trabalho, se faz necessário em função da falta de difusão do gênero no Brasil.

O trabalho parte de um breve itinerário do poema em prosa até sua manifestação na literatura

brasileira. Nesse contexto, a recepção crítica dos poemas em prosa de Missal adquire um novo

significado. O Simbolismo já se constituía como uma razão para a hostilidade do público e da

crítica contemporânea. Ao adotar o poema em prosa, Cruz e Sousa se insere em um dupla

ruptura com o campo literário da época.

No segundo capítulo, são abordadas as características dominantes em Missal,

analisando-se os poemas a partir da reflexão teórica de Todorov (1980) sobre as propriedades

discursivas do gênero. As análises, portanto, serão orientadas por esse embasamento teórico.

Para a análise do poema “Psicologia do Feio”, que não se enquadra na dominante do livro,

será adotado o posicionamento de Wolfgang Kayser (1986, p.159) sobre o grotesco,

complementando as figuras de dualidade elaboradas por Todorov e o princípio de tensão que

organiza o poema em prosa.

O terceiro capítulo do trabalho relaciona a prosa e a poesia versificada de Cruz e Sousa,

cotejando Broquéis (1893) e o poema em prosa de Missal, tendo em vista as suas relações

intertextuais. A análise tem como hipótese a inter-relação do poema em prosa e da poesia

versificada cruz-sousianos. Poemas que possuem o mesmo objeto, em prosa e em verso, são

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uma oportunidade de comparação dos procedimentos próprios a cada forma escolhida. A

poesia em prosa fornece uma contraposição à poesia versificada de Cruz e Sousa, mais

canônica e estabelecida.

O percurso adotado no trabalho, partindo da origem do poema em prosa na França,

chegando às questões teóricas, à problematização da crítica e da recepção do poema em prosa

no Brasil, foi necessário para a análise da obra especificamente. Nessa seqüência, o trabalho

se propôs a analisar Missal em uma perspectiva histórica, teórica e crítica.

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CAPÍTULO 1: O POEMA EM PROSA: ORIGEM E DEFINIÇÃO

1.1 A ORIGEM DO POEMA EM PROSA

A relação entre prosa e poesia foi objeto de muitas problematizações na teoria da

literatura. A primeira distinção entre poesia e versificação remete a Aristóteles que, na sua

Poética (1997), já assinala essa disjunção. Um texto versificado não é necessariamente um

texto poético:

Costuma-se dar esse nome a quem publica matéria médica ou científica em versos, mas além da métrica, nada há de comum entre Homero e Empédocles: por isso, o certo seria chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta (ARISTÓTELES, 1997, p.20).

Apesar das considerações de Aristóteles, durante o Renascimento a poesia foi

concebida como a arte da versificação. Durante o Romantismo francês, a discussão em torno

do fenômeno literário ampliou o conceito de gênero, que por sua vez ampliou o conceito de

poesia. O poema em prosa surge como um gênero que problematiza ambas as esferas do

discurso literário.

O questionamento do conceito de gênero literário intensifica-se na passagem do século

XVII para o XVIII, com a Querela entre Antigos e Modernos, através da contestação das

rígidas posições neoclássicas, ampliando a teoria tradicional dos gêneros pela crença na

autonomia da obra literária. Essa tensão atinge o ponto máximo com a doutrina romântica.

Em 1827, Victor Hugo apresenta uma síntese dessas idéias no prefácio de Cromwell, dando

origem ao drama, um novo gênero. A obra literária passa a ser concebida como autônoma, ou

seja, independente de modelos rígidos e predeterminados.

Assim como a noção de gênero, que sofria uma grande transformação, a poesia

começou a ser problematizada com o surgimento da prosa poética, resultando em uma poesia

independente do verso. Isso contribuiu sobremaneira para o surgimento de um novo gênero, o

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poema em prosa, que levou às últimas conseqüências a sensibilidade de uma poesia não

versificada (COMBE, 1989, p.93).

No século XVIII, o termo poema em prosa era utilizado para designar romances

heróicos, a exemplo de Télémaque (1699), de Fénelon. De acordo com SANDRAS (1995,

p.45), essa obra foi classificada como poema em prosa, e veio a se constituir modelo do

gênero, manifestando os critérios de poeticidade adotados na época: prosa poética e

descritiva; tema épico; intervenção de entidades míticas; comparações e hipérboles. Porém, o

valor da obra continua associado aos critérios clássicos de valorização dos gêneros. As obras

eram legitimadas na medida em que estivessem vinculadas aos gêneros considerados maiores

(lírico, épico e dramático). Em Télémaque, essa valoração se deu através do tema (epopéia) e

da prosa ritmada (versificação).

Desse modo, o poema em prosa era considerado como um gênero defeituoso e não

estabeleceria diferenças significativas dos demais. A expressão poema em prosa foi adotada

como uma estratégia para o reconhecimento da qualidade dos textos, mantendo a ligação com

a epopéia e o verso (SANDRAS, 1995, p.46). Os poetas prosadores visavam atingir o verso,

porém o ritmo do verso era perceptível na prosa, sendo possível encontrar elementos que

remetiam à versificação no poema em prosa. O verso permanecia como o critério para a

avaliação da poeticidade dos textos.

De acordo com COMBE (1989, p.93), foi na passagem do século XVIII para o XIX

que o poema em prosa adquire relativa autonomia genérica, em confluência a um panorama

fomentador para o seu surgimento:

Nenhuma contradição, então, entre a “noção de poema em prosa” quando esta aparece, e o modo narrativo, e muito pelo contrário: o “Télémaque” de Fénelon é citado como arquétipo do gênero. É interessante observar que é precisamente na mesma época que a grande poesia épica narrativa começa a ser criticada, e que cresce a moda dos fragmentos e dos poemas breves, como se o poema em prosa assumisse o que a poesia versificada tinha dificuldade de conservar. No entanto esta tendência declina rapidamente visto que o poema em prosa, desde o momento em que ele se afirma como gênero

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autônomo no fim do século XVIII e início do século XX, deve reivindicar sua especificidade em relação à prosa simples (COMBE, 1989, p.93)1.

A contestação da rima e da versificação a partir do Romantismo, como critérios

preponderantes para a definição da poeticidade, levou, por conseqüência, ao questionamento

da noção tradicional de poema que passou por uma modificação.

Dessa forma, o poema em prosa é o gênero que marca o momento culminante da

disjunção entre poesia e versificação. Essa transformação não se deu de maneira repentina.

Dentre os elementos que contribuíram para essa passagem, pode-se mencionar: a prosa

poética, de Fénelon, de Chateaubriand e outros; a prosa bíblica, principalmente os salmos,

pelos versetos e pela brevidade; e as pseudotraduções de autores estrangeiros para a língua

francesa2. Esses elementos propiciaram a discussão em torno de uma poesia em prosa,

contribuindo com o surgimento do gênero, que só seria institucionalizado definitivamente por

Baudelaire, no século XIX (VADÉ, 1996, p. 49).

Ao lado da prosa poética, as traduções abriram novos caminhos à literatura francesa,

permitindo as primeiras tentativas de uma poesia em prosa. Os leitores e tradutores do século

XVIII entraram em contato com uma poesia não versificada através dessas traduções. Eles

foram os primeiros a se darem conta da necessidade de explorar os recursos da linguagem

1 Aucune contradition, donc, entre la notion de “poème en prose » lorsque celle-ci aparaît, et le mode narratif, et bien au contraire : le Télèmaque de Fénelon est cité comme l’archétype du genre. Il est interéssant de remarquer que c’est précisément à la même époque que la grande poésie épique narrative commence à être critiquée, et que croît la vogue des fragments et des poèmes brefs, commme si le poème en prose assumait ce que la poésie versifiée avait de la difficulté à conserver. Pourtant cette tendance s’infléchit très vite car le poème en prose, dès alors qu’il affirme comme genre autonomeà la fin du XVIII et au début du XIX siècle, doit révendiquer sa spécificité par rapport à la prose simple (COMBE, 1989, p.93). 2 Cf. SANDRAS, M. Lire le poème en prose, p.46. “Os romances, as narrações ‘épicas’, as traduções em prosa de poemas versificados vão progressivamente reivindicar um lugar no campo prestigioso da poesia. Eles vão contribuir para alargá-lo e transformá-lo”. [Des romans, des narrations ‘épiques’, des traductions en prose de poèmes versifiés vont progressivement revendiquer une place dans le champ prestigieux de la poèsie. Ils vont contribuer à l’élargir et à le transformer.]

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independentemente da versificação. A tentativa de superação dos obstáculos impostos pela

tradução tinha como objetivo manter o mesmo efeito dos textos originais, escritos em versos

livres. Para atingir tais efeitos, os tradutores não podiam nem se ater a uma prosa simples e

convencional, nem à versificação.

Os textos traduzidos passavam por grandes modificações que chegavam a

comprometê-los enquanto traduções. Na realidade, os poemas eram pseudotraduções, já que

se constituíam como recriações dos textos originais. Eles passavam por seleções que

implicavam a composição de outro poema. Os poemas eram cortados, eliminando-se

digressões e partes narrativas para condensar fragmentos especialmente líricos ou com teor

fortemente dramático, relativizando-se os princípios da rima e da metrificação francesas. A

condensação dos textos teve como resultado a modificação do estilo e do plano da

composição, afastando as traduções dos textos originais.

Os poemas de Bertrand deram início a uma das características estéticas do poema em

prosa, fornecendo componentes para uma poética da descontinuidade, observável nas suas

descrições, narrações e diálogos. Bertrand funda o gênero com um “modelo próximo da

balada romântica, de natureza narrativa” (COMBE, 1989, p.94). O seu manuscrito se intitula

Gaspard de la nuit: fantaisies à la manière de Rembrandt et de Callot (1842). O termo

fantaisies “designa uma obra em que a imaginação relativiza as regras, atendendo aos

desígnios do autor” 3. O livro é dividido em seis partes que contêm vários poemas, cuja

maioria inicia-se com uma epígrafe, indicando simetria e regularidade na concepção da obra

(SANDRAS, 1995, p. 57).

Na carta-prefácio de Petits poèmes en prose – Le spleen de Paris (1869), Baudelaire

faz alusão ao poeta Aloysius Bertrand, declarando o desejo de experimentar algo análogo ao

Gaspard de la nuit, buscando adaptar os quadros pitorescos da vida antiga à vida moderna. 3 Cf. SANDRAS, M. Lire le poème en prose. p.56. “Ele designa uma obra de imaginação, liberada de regras, em acorde com o capricho de um compositor”. [ Il désigne une ouvre d’imagination, affranchie des règles, accordèes au caprice d’un compositeur.] (1995, p.56)

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Baudelaire expõe sua concepção de poema em prosa na carta ao seu editor. Esses recursos de

ruptura de tons e dissonâncias estariam relacionados às quebras de ritmo. A referência aos

movimentos líricos da alma é um indicador da subjetividade do ponto de vista que perpassou

seu projeto poético:

Tenho uma pequena confissão a fazer-lhe. Foi folheando, pela vigésima vez, no mínimo, o famoso Gaspard de la Nuit de Aloysius Bertrand (um livro conhecido por você, por mim e por alguns dos nossos amigos não tem todo o direito de ser chamado famoso?), que me veio a idéia de tentar algo análogo, e de aplicar à descrição da vida moderna, ou melhor, de uma vida moderna e m,ais abstrata, o procedimento que ele havia aplicado à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca. 4

Baudelaire compreende a prosa musical como um procedimento relacionado à

evocação e à criação poética, que serão processos inerentes à poesia do simbolismo. O poeta

não considera a rima um recurso puramente formal. A rima e todos os recursos poéticos, nessa

perspectiva, deveriam ter por finalidade despertar determinados estados de espírito no leitor.

No século XIX, além do poema em prosa, surgem muitas formas literárias novas,

como o verso livre, por exemplo. O poema em prosa, no entanto, tem como característica

marcante uma contradição por tentar se constituir como gênero, ao mesmo tempo em que

nega as formas existentes em nome de uma suposta liberdade criativa. O conflito está

implícito na denominação do gênero: poema em prosa, que estabelece um princípio de tensão

inerente, já que, durante muito tempo, a poesia foi concebida com indissociável da

versificação. Nessa perspectiva, o poema em prosa seria impraticável. As tentativas de

4 “J’ai une petite confession à vous faire. C’est en feuilletant, pour la vintième fois ou moins, le fameux Gaspard de la Nuit , d’Aloysius Bertrand ( un livre connu de vous, de moi et de quelque-uns de nos amis, n’a –t-il pas tous es droits à être appelé fameux ? ) que l’idée m’est venue de tenter quelque chose d’analogue, et d’appliquer à la description de la vie moderne,m ou plutôt d’une vie moderne et plus abstraite, le procedé, qu’il avait appliqué à la peinture de la vie ancienne, sietrangémente pitoresque”. (BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poèmes en prose; pequenos poemas em prosas. Trad de Dorothée de Bruchard. Florianópolis: Editora da UFSC, 1996)

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definição do poema em prosa foram muitas, mas todas apresentaram limitações ou lacunas,

em função do seu caráter protéico.

Em Le poème en prose: de Baudelaire jusqu’à nos jours (1959), Suzanne Bernard

delineia um panorama do poema em prosa desde o Romantismo, passando por Baudelaire,

até simbolistas e surrealistas. A autora aborda o poema em prosa como uma associação de

contrários. De acordo com a autora, o poema em prosa pode ser classificado como formal ou

iluminação, manifestando uma dualidade inerente ao gênero. O poema formal se

fundamentaria em estruturas recorrentes do qual o maior exemplo é o poema em prosa “Um

hemisfério numa cabeleira”, de Baudelaire. O poema em prosa “iluminação” se basearia em

uma poética da descontinuidade e na negação do universo real, característica dos poemas em

prosa de Illuminations (1886), de Rimbaud (TODOROV, 1980, p.121).

Ao analisar os poemas em prosa de Baudelaire, Suzanne Bernard salienta umas das

características mais relevantes dos textos baudelairianos: a mudança e a variedade de tons. Os

poemas em prosa oscilariam entre a ironia e o lirismo. Essa variação implica a construção dos

textos e o desenho da frase, que deve atender à oscilação do sujeito em face de uma realidade

em transformação. O propósito de Baudelaire manifesta-se inclusive na decisão do poeta pela

prosa5. Ela seria mais adequada para traduzir as nuances da consciência do homem moderno

em todas as suas peculiaridades. Essa diversidade de tons, que seria expressa de maneira mais

adequada pela prosa, vai de encontro à antiga estética regida pela uniformidade de tons, que

correspondia a uma sensibilidade clássico de unidade do indivíduo (BERNARD, 1959, p.

111).

De acordo com BERNARD (1959, p.129), na obra Petits poèmes en prose – Le spleen

de Paris (1869), aliado à variedade de tons, acrescenta-se o desenho da frase que funcionaria

5 Cf. VADÈ, Y. Les poèmes en prose et ses territoires. p.207. “Concebe-se que a recusa da prosódia convém à expressão de um universo em expamsão, descentrado, dilacerado, tal qual, por razões históricas, sociológicas, epistemológicas nos aparece o mundo moderno”. [On conçoit que le refus de la prosodie convienne à l’expression d’un univers èclaté, décentré, déchiré, tel que, pour des raisons tout à la fois historiques, sociologiques, epistemologiquesnous apparaît le monde moderne.]

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como um “microcosmo”, “uma parte de um conjunto mais vasto que é o poema”. Essa

oscilação observa-se na tipologia frasal que Baudelaire utilizou para atender aos propósitos

estabelecidos na carta ao seu editor.

As frases contrastantes estariam impregnadas de um tom sarcástico e irônico; as frases

ondulatórias, longas e sinuosas seriam apropriadas ao devaneio; e uma frase lírica, ascendente

e dinâmica, na qual sons e imagens se conjugam para dar o aspecto lírico aos poemas. Os

poemas em prosa de Baudelaire são textos breves, nos quais há grande variedade temática e

manifestação da subjetividade. Nesse contexto, vale lembrar a importância de Edgar Allan

Poe para a elaboração de uma estética em que o domínio dos meios expressivos exerce um

papel basilar. No texto “Filosofia da Composição”, Poe expõe a construção do célebre poema

“O Corvo”. Suas considerações iniciais partem da extensão da obra como recurso para atingir

a totalidade de efeito. Segundo o autor, se uma obra não pode ser lida seguidamente, em um

só momento, ela abdica do efeito da unidade de impressão. Entre os dois momentos da leitura

haveria uma interrupção do efeito e entre eles se colocaria novamente a vida cotidiana,

desviando a concentração e a atenção do leitor. Desse modo, o conjunto e a totalidade seriam

prejudicados. Sabe-se que Baudelaire foi o tradutor de Poe para o francês e dele adotou vários

posicionamentos estéticos. Dentre eles, destacam-se a totalidade de efeito que se refere,

concomitantemente, à intenção do autor e à percepção do leitor. Essa totalidade se traduz

através de três conceitos. O primeiro é a composição: “interdependência absoluta entre as

partes do texto”, no qual o “desenho global” implicaria uma relação entre o “assunto tratado”

e o “tom escolhido”; o segundo critério se refere à “leitura integral” e sem interrupções do

texto; e o terceiro é a significação que permanece implícita. A lógica matemática da

elaboração do poema não resulta em um sentido único limitado. Para Poe, o texto é uma

combinatória, na qual cada elemento se relaciona com os outros, procurando evitar todo

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componente casual ou fortuito que desqualifique a obra (POE, apud GROJNOWSKI, 1996,

p.104).

No século XIX, após a publicação da coletânea de Baudelaire, a prática do gênero

torna-se mais freqüente. Os simbolistas promovem, principalmente, a vertente mais musical

do poema em prosa. A diferença entre prosa e verso era concebida como uma variação de

grau e não de natureza e o poema em prosa simbolista seria uma modulação possível entre

esses elementos (BRAYNER,1979, p.20).

O poema em prosa, na estética simbolista, faz parte de uma “retórica da conciliação”

dos gêneros, assim como o romance poético e o romance em verso (COMBE, 1989, p. 91).

Com a ópera wagneriana6, as produções estéticas são colocadas sob o código da fusão,

voltadas para a realização da integração das artes através do uso de formas deliberadamente

inclassificáveis. O poema em prosa é um meio de atingir uma síntese dos gêneros e uma etapa

no processo de construção da Grande Obra.

1.2 A DEFINIÇÃO DO POEMA EM PROSA

A tentativa de distinguir o poema em prosa de outros gêneros é uma tarefa difícil, uma

vez que ele se constitui como o espaço de contato e diálogo entre formas literárias mais

estabelecidas, como, por exemplo, a narração e a descrição. A procura por uma suposta

essência dos gêneros não teve resultados satisfatórios, mas, quando se trata do poema em

prosa, a dificuldade assume maiores proporções (VADÉ, 1996, p.203). Essa dificuldade

começa na sua denominação. O gênero foi designado com elementos já existentes no discurso

literário, com uma combinação de palavras que já possuíam uma carga semântica

6 Cf. BALAKIAN, A. O Simbolismo. p.40. “Wagner misturou paganismo, lenda gótica e cristianismo, criando um plano da realidade que era místico sem ser religioso, em um sentido paralelo ao da atmosfera hipnótica de criada por meio de palavras por Edgar Allan Poe. [...] Para Baudelaire, Wagner foi o verdadeiro artista, o artista completo que em sua combinação de drama, poesia, música e cenário exemplificou a realização da perfeita inter-relação das percepções sensoriais que deviam ser o ideal do poeta.”

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determinada, articulando dimensões discursivas consideradas anteriormente irreconciliáveis

(VADÉ, 1996, p.15).

Entretanto, a denominação fornece os critérios mais elementares para definir o poema

em prosa. O primeiro critério leva a considerar o poema em prosa como um poema, um

universo autônomo que se fecha sobre si mesmo. De acordo com essa concepção de poema,

os trechos de novelas, de romances e todo fragmento em prosa extraído de textos mais amplos

não podem ser classificado de poema em prosa. Essas observações conduzem a um outro

critério de distinção: a brevidade (VADÉ, 1996, p. 11).

A unidade, característica do poema em prosa, só se manteria através da brevidade e da

tensão poética, visto que um poema longo resvalaria para o narrativo, o descritivo ou

argumentativo (VADÉ, 1996, p.12). É interessante observar que a noção de tensão poética no

poema em prosa é, de certa forma, recorrente entre os teóricos que se detiveram sobre

assunto. O que Todorov (1980) chama de figuras de dualidade, Suzanne Bernard (1959)

denomina associação de contrários e Yves Vadé (1996), princípio de tensão.

A brevidade não é uma característica do gênero propriamente dito, mas uma condição

para a produção da tensão poética. O que diferenciaria o poema em prosa de uma página

qualquer, seria um “princípio de tensão”: “um poema em prosa não é uma página de prosa

ordinária porque esta página é estendida entre dois pólos contrários, cuja oposição comanda

toda a organização do texto” 7. O poema em prosa é considerado o espaço privilegiado para

uma temática de oposição e conflito. Essa temática não é exclusividade do gênero, outros

textos permitem o diálogo entre diferentes práticas discursivas, sendo freqüentes os exemplos

de narrativização da poesia (Homero e Camões) e liricização da prosa (Chateaubriand e

Guimarães Rosa). Muitos poemas em prosa de Baudelaire e Cruz e Sousa não estariam

7 Cf. VADÉ, Y. p.207. “Un poème en prose n’est pas une page en prose ordinaire parce que cette page est etendue entre deux pôles contrires, dont l’oppossition commande toute l’organization du texte” (VADÈ, Y. Les poèmes en prose et ses territoires.Paris: Belin, 1996)

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fundamentados unicamente em um princípio de analogia, mas em uma subjacente tensão

poética, estruturada de diversas formas.

Além da brevidade, a intensidade e a gratuidade são consideradas como características

indispensáveis ao poema em prosa. A brevidade, como já foi dito, estaria relacionada à

totalidade de efeito. Já a intensidade se refere à “concentração de meios”, um “trabalho sobre

os diversos planos do significante”. A característica que suscita mais controvérsia é a

gratuidade. O poema em prosa não deve “conter referências às circunstâncias exteriores,

elementos biográficos, digressões ou desenvolvimentos explicativos”. Essa condição merece

muitas ressalvas, porque desconsidera a característica mais marcante do poema em prosa, a

plasticidade. Trata-se de uma tentativa de “isolar o poema em prosa dos elementos

considerados impuros”, baseada na concepção do poético com exclusão do narrativo e do

descritivo (SANDRAS,1995, p.45).

O segundo critério, inferido a partir da designação poema em prosa, indica que o

poema deve ser escrito em prosa. A condição não é tão tautológica quanto parece, à primeira

vista. O poema em prosa, freqüentemente, é confundido com textos escritos em versos livres

ou versetos. Em outras ocasiões, ele é identificado com qualquer texto escrito em prosa

poética. A prosa poética é característica da escritura e pode estar presente em diversos gêneros

(romances, contos, novelas). O poema em prosa pode ser escrito em prosa poética, explorando

os recursos rítmicos e prosódicos. Contudo, ela não é um fator indispensável para a

determinação do gênero e não o distingue de outras formas literárias (VADÉ, 1996, p.11).

O gênero, devido a sua versatilidade, pode se utilizar de qualquer tipo de prosa8, como

a prosa notacional, uma etapa preparatória para a produção poética. As descrições na prosa

notacional tentam analisar as sensações, criando uma “aglutinação de imagens” e convertendo

“o objeto em sensação” (SCOTT, 1999, p.291). A prosa de arte, que distingue, examina ou 8 Cf. VADÈ, Y. Les poèmes en prose et ses territoires. p.14. “Todos os tipos de prosa, em uma palavra, podem ser utilizados pelo poeta em prose”. [ Tous les types de prose, en un mot, peuventêtre utilisés par le poète en prose.]

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avalia um objeto já estabelecido como obra de arte, no poema em prosa, é um recurso para

captar o pré-poético. Ela pode ser compreendida como uma tentativa de apreensão e

exploração de materiais que podem ser condensados em um poema, mas não pode ser tomada

como um aspecto inerente ao gênero (SCOTT, 1999, p.289). O poema em prosa pode adotar a

prosa notacional, a prosa poética e a prosa de arte, mas não são características determinantes

do gênero.

A polarização do poema em prosa observada na sua construção, estende-se ao

tratamento dado a linguagem na suas vertentes mais evidentes. O texto pode conservar uma

organização, através de simetrias formais, ou uma insubordinação, que resulta em poemas

anárquicos, como os poemas de Rimbaud. No entanto, essa aparente anarquia é construída e

elaborada para criar uma outra ordem não facilmente identificável (BRAYNER, 1979, p.231).

1.3. A QUESTÃO DO GÊNERO

A partir dos critérios do poema em prosa extraídos da sua própria denominação, ser

escrito em prosa e ser um poema, dois caminhos são possíveis na abordagem do gênero. A

poesia está ligada a marcas formais, como, por exemplo, a prosa poética com efeitos de

ritmos, aliterações, assonâncias, entre outros; ou as marcas formais não são inerentes à poesia,

a ênfase na mensagem enquanto tal pode ser atingida sem um trabalho sobre o significante9.

Alguns poemas não se servem da prosa poética e adotam uma prosa trivial,

substituindo as equivalências formais por equivalências no plano semântico. Essa

equivalência semântica fundamentaria o poema em prosa, mantendo a relação de analogia de

9 Cf. VADÈ, Y. Les poèmes en prose et ses territoires. p.203. “Um poema em prosa pode ser escrito em uma prosa seca, grinçante, voire trivial, sem nenhum efeito estilístico que o distinga com evidencia de uma passagem de prosa ordinária”. [ Un poème en prose peut être écrit dans une prose sèche, parfois grinçante, voire triviale, sans aucune effet stylistique qui le distingue avec èvidence d’une passage de prose ordinaire.]

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outra forma 10 (VADÉ, 1996, p.204). As relações antitéticas não são evidentes em todos os

poemas em prosa. Os poemas de Baudelaire são um exemplo dessa versatilidade. Os textos

podem ter relações analógicas ou antitéticas como princípio organizador e estruturante. Os

poetas-prosadores podem entrar em confronto com a analogia que preside à versificação

substituindo um princípio formal por um semântico: a tensão poética (VADÉ, 1996, p.207).

A natureza nova do poema em prosa é adquirida por meio de repetições e estruturas

recorrentes, procurando os efeitos da poesia, a partir da volta de estruturas fonéticas,

prosódicas, lexicais e sintáticas. Entretanto, alguns poemas em prosa não oferecem um objeto

fechado e autônomo. A posição é oposta, privilegiando a descontinuidade do ritmo e da

forma, instaurando a tensão poética. O poema em prosa se torna, então, um objeto de outra

natureza, através, por exemplo, da metalinguagem, do uso inesperado de palavras ou imagens,

de neologismos, entre outros (VADÉ, 1996, p.204).

Formas tidas como antipoética11 participam da construção do poema em prosa. No

discurso sobre a poesia, essa é definida geralmente em oposição aos outros gêneros literários e

outras formas a eles relacionadas, como, por exemplo, o drama, a descrição e a narração. Essa

posição é bastante visível em Hugo Friedrich, quando estuda a lírica moderna:

O isolamento moderno do poeta reflete-se no pensamento de que do ápice solitário da lírica não há caminho algum que conduza às encostas planas da literatura. Estas poéticas insistem sempre sobre a distância infinita entre a lírica e o resto dos escritos narrativos e dramáticos, baseados nas relações objetivas e na lógica. (FRIEDRICH, 1978, p. 147)

10 Cf. VADÈ, Y. Les poèmes en prose et ses territoires. p.204. “Passando do verso para a prosa , passar-se-ia de um sistema de equivalências formais a um jogo infinitamente variado de equivalências figurais, mas a poeticidade permaneceria comandada, em todo caso, pelas relações analógicas”. [En passant des vers à la prose, on passerait d’un système d’équivalences formalles à um jeu infinimant varié d’équivalences figurales, mais la poéticité resterait commandé, dans tous les cas, par des rapports analogiques] 11 Cf. COMBE, p.94. “Historicamente, a lógica que rege o poema em prosa não é portanto diferente daquela da poesia versificada : a poeticidade já se define aí, antes mesmo de Baudelaire, pela exclusão do narrativo”. [ Historiquement, la logique qui régit le genre du poème en prose n’est donc pas différente de celle de la poésie versifiée : la poéticité s’y définit déjá, avant même Baudelaire, par l’exclusion du narratif. ]

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São muitos os poemas que se desenvolvem em torno da descrição de paisagens ou se

configuram como variações sobre um tema. A tensão poética do poema em prosa pode não

ser evidente, estruturando-se de maneira implícita. Alguns temas, com uma ressonância

tradicional, podem ser tratados com perspectivas inusitadas. Em alguns casos, a tensão está

evidente nos títulos-paradoxos, na dissonância entre o plano formal e temático do poema,

criando uma contradição interna. Os operadores de tensão fundam o paradoxo e a contradição

interna dos textos (VADÉ, 1996, p. 211).

Diante de tantas exceções, o que permite que o poema em prosa seja considerado um

gênero? Ao tentar chegar a uma possível origem dos gêneros, TODOROV (1980, p.47)

procura defini-los como uma “classe de textos que foram percebidos como tais no decorrer da

história”. A definição como classe de textos encerra uma questão mais complexa.

Dependendo da concepção que se adote de um termo e de outro, o objeto não será mais o

mesmo. O termo classe oferece dificuldade devido a sua freqüência. O fato de serem

encontrados dois textos com propriedades comuns não é o suficiente para denominá-los um

gênero. Por isso, os gêneros serão aqueles que foram definidos empiricamente, a partir da

história da literatura. Esse reconhecimento histórico pode ser verificado através dos

metadiscursos, o discurso sobre o próprio gênero e, eventualmente, nos próprios textos

literários, ambos presentes no poema em prosa.

Para TODOROV (1980), “Um gênero, literário ou não, nada mais é do que essa

codificação de propriedades discursivas” (p.48), funcionando como horizontes de expectativa

para os leitores e modelos de escritura para os autores, que escreveriam em função de um

sistema genérico, seja para contestá-lo ou conservá-lo (p.49). Os leitores, por sua vez, lêem

em função desse sistema, “que conhecem pela crítica, pela escola, pelo sistema de difusão do

livro ou simplesmente de ouvir dizer” (p.49).

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As figuras de dualidade presentes nessa temática de oposição, destacadas por Todorov

nos poemas em prosa de Baudelaire, são três. A primeira é a inverossimilhança, que se

manifestaria “quando um único fato é descrito, mas ele se enquadra tão mal nos hábitos

comuns, que não podemos impedir-nos de contrapô-los aos fatos e acontecimentos ‘normais’”

(1980, p.115). Em uma observação preliminar, essa figura não é muito freqüente nos poemas

de Cruz e Sousa. Todorov explica a ambivalência, segunda categoria, como a diferença entre

a essência e a aparência das coisas:

“Os dois termos contrários estão aqui presentes mas caracterizam um único e mesmo objeto. Às vezes, de modo mais propriamente racional, a ambivalência explica-se como o contraste entre o que as coisas são e o que parecem ser: um gesto que se acredita nobre e mesquinho (“La fausse monnaie”, “La corde”), uma certa imagem de mulher é a verdade de uma outra imagem (“La femme sauvage” e “la petite maîtresse”). Mas, com mais freqüência, é o próprio objeto que é duplo em sua aparência como em sua essência: uma mulher é ao mesmo tempo feia e atraente (“Un cheval de race”)[...]. Alguns lugares ou momentos são valorizados exatamente porque podem representar a ambigüidade: assim o crepúsculo, lugar de encontro entre o dia e a noite (“Le crépuscule du soir”), ou o porto, interpenetração da ação e da contemplação ( “Le Port”).Essa pode se estabelecer em objetos, gestos e lugares. Um exemplo dessa ambivalência está no poema em prosa “O porto”, de Baudelaire, em que ação e contemplação se interpenetram (TODOROV, 1980, p115).

Essa figura é mais freqüente nos poemas em prosa de Cruz e Sousa, talvez por estar

mais vinculada à atmosfera simbolista.A terceira figura mais freqüente em Baudelaire, a

antítese, é definida como “a justaposição de seres ou fatos dotados de qualidades contrárias”

(1980, p.116). A antítese pode estar disfarçada por um sistema de correspondência. As

figuras de dualidade que são exploradas por Baudelaire podem ser apontadas como uma

vertente do poema em prosa. A aplicação dessas figuras aos poemas em prosa de Cruz e

Sousa pode ser considerada como a realização particular do gênero, em que se dá o encontro

entre uma poética geral num texto específico (1980, p.50).

Porém, a posição de Todorov pretende dar conta apenas do plano discursivo dos

poemas em prosa, partindo das considerações de Suzanne Bernard. Mas não são critérios

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suficientes para distinguir o poema em prosa de outros gêneros. As figuras de dualidade são

um indicador de apenas um caminho possível entre as inúmeras possibilidades do poema em

prosa; elas também podem se manifestar em contos, poemas em verso e romances. A questão

mais problemática do gênero ainda permanece, uma vez que as figuras de dualidade são

elementos que podem apresentar determinada recorrência nos poemas em prosa, seu espaço

privilegiado, mas não exclusivo. Portanto, a presença dessas figuras em um texto não é

suficiente para distingui-lo de outros gêneros.

O poema em prosa, ao mesmo tempo em que pretende destruir as distinções genéricas

tradicionais, também tenta criá-las e institucionalizá-las. Ao tentar fugir do cânone genérico,

torna-se um gênero circunscrito, após a publicação de Petits poèmes en prose, de Baudelaire.

Segundo Todorov, quando um gênero se torna uma espécie de estatuto, através de uma série

de fenômenos literários, transforma-se também em uma regra. Nesse sentido, “nunca houve

literatura sem gêneros” (TODOROV, 1980, p.49).

1.4. A RECEPÇÃO CRÍTICA DO SIMBOLISMO E DO POEMA EM PROSA NO

BRASIL

A primeira manifestação do poema em prosa na literatura brasileira pode ser

encontrada na obra do poeta da segunda geração romântica Vitorino Palhares (publicada em

1868). No entanto, o mais apropriado é atribuir às Canções sem metro (obra escrita em 1883),

publicada em 1900, de Raul Pompéia, a manifestação definitiva do gênero no Brasil (PIRES,

2000, p.23). As Canções sem metro têm uma composição cíclica em que os motivos iniciais

são retomados como as chaves finais dos textos. O crítico Alfredo Bosi (2000) considera a

poesia em prosa de Raul Pompéia inferior ao romance O Ateneu, do mesmo autor. Dentro da

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obra poética dos dois poetas que adotaram o novo gênero, o poema em prosa é comumente

considerado uma produção inferior em relação aos gêneros canônicos.

De acordo com Andrade Murici, Gouaches, do poeta português João Barreira, teve

bastante impacto sobre os poetas brasileiros, mas “foi sobretudo o verbo de Missal que teve

descendência entre nós” (1986, p.466). Embora não tenha sido a primeira obra do gênero no

Brasil, Missal12 teve maior influência, como se pode observar pelo título que Murici dá ao

“movimento de 1893”, ano do lançamento dos dois livros de Cruz e Sousa. Missal e Broquéis

foram publicados pela editora Magalhães & Companhia, que se voltava para revelação de

novos talentos, privilegiando autores inéditos, como Cruz e Sousa e Coelho Neto13. A edição

não teve o sucesso esperado, e Domingos de Magalhães faliu. Cruz e Sousa não voltaria a

publicar, após a falência do seu editor e das críticas negativas veementes. Missal e Broquéis

foram os únicos livros publicados em vida por Cruz e Sousa, cujo reconhecimento se deve à

poesia versificada. Nesse sentido, Broquéis é mais prestigiado pela crítica do que Missal e

Evocações (poema em prosa). Dentre as duas obras em prosa, Evocações (1898) tem mais

prestígio em decorrência do poema “Emparedado”, única página em prosa comparada a sua

poesia versificada. De acordo com Glória Amaral (1996, p.275), em Evocações os poemas

tendem a ser mais extensos e oscilam entre narração e ensaio de estética. Os ensaios se

afastam do que é definido como poema em prosa, mas apresentam um diálogo bastante

moderno entre o discurso poético e o crítico.

Após a morte de Cruz e Sousa, Nestor Vítor faz publicar Evocações (em 1898), Faróis

(em 1900) e Últimos sonetos (em 1905). Em termos de crítica especializada, Sílvio Romero 12 Todas as referências ao texto de Cruz e Sousa serão da seguinte edição: Missal e Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998. [Coleção Poetas do Brasil]. A partir de agora, as citações dessa obra serão acompanhadas apenas do número da página. 13 “Depois dos esforços de Paula Brito, duas editoras destacaram-se no mercado livreiro do Brasil no século passado: Irmãos Garnier e Laemmert. No início dos anos 90, surgiu Magalhães & Companhia. Por imposição do mercado, essa editora teve de investir em autores inéditos, sobretudo aqueles que, com algum escândalo, garantissem evidência ao novo empreendimento. [...] Todavia, Cruz e Sousa não foi recebido com o sucesso esperado” (MARTINS, 1998, p. ix)

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foi o primeiro a se manifestar a favor da obra de Cruz Sousa (CAROLLO,1980, p.444).

Posteriormente, José Veríssimo reconsiderou seu posicionamento em relação ao poeta. Porém,

a ponderação que Veríssimo ensaiou tomou ainda como termo de comparação a clara

expressão e a moda clássica.

As duas obras foram duramente criticadas, mas Missal teve uma recepção ainda mais

desfavorável do que Broquéis. As críticas partiram de alguns simbolistas e de seus opositores

mais declarados. Essas manifestações, a favor ou contra, evidenciam que não houve

indiferença às publicações, atestando a contribuição da obra cruz-sousiana à literatura

brasileira. Dentre os que se manifestaram a favor da obra, estão Adolfo Caminha e Arthur de

Miranda, ambos ligados ao movimento simbolista. Este último afirma que “O Missal é um

livro singular, para mim. Da arte para a Arte, ele limitou o número de seus leitores”

(MIRANDA, apud CAROLLO, 1980, p. 189). Adolfo Caminha diz que “Se me

perguntassem, porém, qual o artista mais bem dotado entre os que formam a nova geração

brasileira [...] eu indicaria o autor dos Broquéis, [...] muito embora sobre mim caísse a cólera

do Parnaso inteiro” (CAMINHA, apud CAROLLO,1893, p. 180)). Araripe Júnior, por sua

vez, coloca Missal e a obra em verso no mesmo patamar: “Que direi de Broquéis que já não

tenha dito a propósito da prosa ritmada de Missal?” (ARARIPE,1980.p199). A crítica mais

severa a Missal foi, sem dúvida, de José Veríssimo, que afirmou:

O livro de prosa do mesmo escritor, Missal, tem ainda menos valor que os Broquéis. É um amontoado de palavras, que dir-se-iam tiradas ao acaso, como papelinhos de sortes, e colocadas uma após outras na ordem em que vão saindo, um raro desdém da língua, da gramática e superabundante uso das maiúsculas. Uma ingênua presunção, nem um pudor em elogiar-se e sobretudo nenhuma compreensão, ou sequer intuição, do movimento artístico que pretende seguir, completam a impressão desse livro em que as palavras servem para não dizer nada (VERÍSSIMO, apud CAROLLO, 1980, p. 369).

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Veríssimo identifica defeitos em Missal e enumera-os. As “falhas” são atribuídas ao acaso e à

displicência gramatical, não sendo interpretados com um posicionamento estético consciente.

Em uma crítica que ataca mais o Simbolismo do que a obra especificamente, o crítico adota o

Parnasianismo como critério valorativo. Posteriormente, algumas características apresentadas

como defeitos de construção de Missal, análogas em Broquéis, funcionarão como argumento

para Ivan Teixeira (1998, XI) defender a modernidade de Broquéis.

O suposto processo de elaboração de Missal, exposto por Veríssimo, curiosamente

aproxima Cruz e Sousa do movimento Dadaísta (1916). É interessante observar as

semelhanças entre o processo de composição de Missal, segundo Veríssimo, e a receita de um

poema no último manifesto de Tzara:

Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar ao seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público (TZARA, apud TELES, 1997, p. 132).

As aproximações com o Dadaísmo limitam-se ao afastamento do público e o

enfrentamento da ideologia dominante³. O Dadaísmo tinha um “desprezo total pela

participação do leitor [..] que, já em 1916, na França, não conseguia acompanhar a linguagem

dos novos poetas” (TELES, 1997, p. 133). A aproximação entre O Dadaísmo e o Simbolismo

tem como finalidade exclusiva problematizar o posicionamento da crítica, relativizando seus

julgamentos. Os simbolistas, no plano discursivo, não desejavam a conquista do grande

público e, por não estarem inteiramente comprometidos com o mercado, poderiam se dedicar

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à procura da “Originalidade”. Desse modo, a obra não solicitaria mais o leitor, mas criaria o

seu público. O Simbolismo solicitaria um leitor que possa interagir de forma ativa,

completando a “sugestão” do texto, que está deliberadamente inacabado. O crítico Jean

Paulhan (1982) distingue duas categorias de escritores, no que concerne ao tratamento da

linguagem. Os simbolistas, assim como os românticos, e os surrealistas seriam os terroristas

da linguagem (apud HAUSER, 1982, p. 1121). Seu objetivo é abolir os lugares-comuns, as

formas convencionais e os clichês na busca da experimentação, ou seja, recusam toda

manifestação artística estabelecida. Os escritores retóricos, por sua vez, adotam lugares

comuns e elementos da tradição, preferindo uma linguagem não-problemática. A “hipertrofia

da recusa do real” presentes no Dadaísmo e no Surrealismo seriam um prolongamento do

“beco sem saída” simbolista. O Dadaísmo realiza de forma mais veemente a busca pela

destruição dos meios de expressão instituídos, estendendo a tensão simbolista (HAUSER,

1982, p. 1121).

Tecendo considerações sobre o campo literário brasileiro, podemos dizer que a batalha

travada entre simbolistas e parnasianos foi importante para as realizações literárias

subseqüentes. A resistência aos simbolistas na Academia Brasileira de Letras só foi quebrada

em 1913, com o ingresso do poeta Félix Pacheco (MURICY, 1962, p.119). Cruz e Sousa não

foi reconhecido pelas instâncias de consagração máxima da época, no entanto, ele se enquadra

no que Bourdieu (1996) afirma como o novo princípio de legitimidade que consiste em “ver

na maldição presente um sinal de eleição futura”(p.81). Em Cruz e Sousa, há uma

coincidência entre a marginalidade social e a marginalidade artística. Nesse contexto, a

adoção do poema em prosa se inscreve em uma dupla ruptura: com o Simbolismo, desafia a

confortável poesia parnasiana, e, com o poema em prosa, desafia o cânone com um gênero

considerado inviável por alguns, até hoje.

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O Simbolismo instaura uma “nova relação com o real”. A crítica contemporânea de

Missal, com um arsenal crítico incompatível em relação às propostas da nova estética, resistiu

ao código simbolista, que não se concentrava em questões ligadas ao contexto. A partir dessa

cosmovisão surgem as transformações da linguagem e a contestação do código estético

vigente, através da produção de uma poesia “incompleta” (CAROLLO, 1980. p.3) .

As revistas tinham o objetivo de preparar o público e congregar os poetas simbolistas.

Elas foram o principal veículo das transformações poéticas, o palco das polêmicas e

profissões de fé de uma nova postura estética. Os poetas se utilizavam das revistas para sua

consolidação, através da elaboração conceitos e vertentes. Assim como as revistas, os jornais

tinham a dupla função difundir a mudança da sensibilidade estética, ao mesmo tempo em que

criavam um público novo (CAROLLO, 1980. p.212).

No Simbolismo, os estudos que se concentram mostram que as revistas e os jornais são

as fontes para a definição dos grupos de poetas de variadas vertentes. Os materiais esparsos

possibilitam a ampliação do conhecimento sobre os limites e o alcance do Simbolismo

(CAROLLO, 1980. p.212). Os periódicos permitem a perspectiva de conjunto do movimento

e as revistas sintetizam os esforços dos grupos voltados para a discussão dos princípios entre

os próprios componentes do movimento. Antes das publicações de Missal e Broquéis, os

novos publicavam apenas em revistas e jornais e seu combate se resumia às páginas da Gazeta

Popular, da qual Emiliano Perneta era secretário; depois, publicaram em Novidades, que tinha

Oscar Rosas na direção. Após as duas publicações de Cruz e Sousa, formaram-se novos

grupos, fundaram-se revistas que duraram poucos números. Dentre as revistas mais

relevantes, podemos citar: Thebaida (1895), Rio-Revista (1895), Pierrot (1897); Revista Azul

(1895), Cenáculo (1895) e Sapo (1898) (CAROLLO, 1980, p. 213). Essas revistas também

assinalaram o período mais combativo dos poetas simbolistas. Os jornais do período de 1888-

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90 foram um foco de propagação de idéias e de polêmicas entre novos e velhos (CAROLLO,

1980, p.327).

O breve itinerário histórico do poema em prosa já assinala os obstáculos a sua plena

codificação. O poema em prosa traz em sua denominação instâncias do discurso literário que

foram tradicionalmente classificadas como contrárias e contribui para dar outra perspectiva ao

poético, sendo o produto de um questionamento e um agente dessa mesma indagação. Essa

outra perspectiva do poético é percebida no seu percurso inicial até a sua institucionalização

como gênero. Foram textos traduzidos que permitiram entrever uma outra possibilidade do

poético. Com Alouysius Bertrand e Baudelaire, o poema em prosa começa a manifestar

explicitamente as características que serão apontadas posteriormente como vertentes do

poema em prosa, indicadas por Suzanne Bernard, são um desdobramento da dualidade interna

do gênero. A tensão poética e as figuras de dualidade, como já foi assinalado, não funcionam

como critérios absolutos para delimitar definitivamente o poema em prosa. A análise dos

textos solicita a presença de várias perspectivas que abranjam suas propriedades discursivas e

características formais.

Ocorre, no poema em prosa, o questionamento do fenômeno poético e o discurso crítico

tradicional, uma vez que instâncias apresentadas como antipoéticas são incorporadas ao

poema. A plasticidade do poema em prosa implica a diversidade dos textos colocados sob

essa designação, desencadeada pelo diálogo e pela afinidade com outras formas mais

tradicionalmente reconhecidas (SANDRAS, 1995, p.94).

No Brasil, esse gênero é praticado, principalmente, através de contato com os textos de

João Barreira. Posteriormente, Cruz e Sousa publica Missal, obra na qual os operadores de

tensão do poema em prosa obedecem ao código simbolista, tendo como figura dual mais

recorrente a ambigüidade.

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CAPÍTULO 2: MISSAL E AS FIGURAS DE DUALIDADE

Missal não foi o primeiro livro de poemas em prosa, mas é considerado o iniciador da

vertente mais freqüente na literatura brasileira. Nesse sentido, é a obra que instala o gênero

em nossa literatura, criando um horizonte de expectativa para os leitores e um modelo de

escritura para os autores. Uma das causas desse posicionamento decorre de uma concepção

errônea do poema em prosa e da confusão entre eu lírico e narrador. Os poemas cruz-

sousianos revelam um poeta que se serve da prosa, não um contista. As considerações

incidem de modo equivocado, quando consideram o poeta em prosa como um prosador

tradicional. Os poemas que possuem um tênue fio narrativo permanecem com suas

características de poema e devem ser avaliados com os critérios teóricos da poesia, não como

os critérios da análise da narração.

Os poemas de Missal apresentam as características usuais dos poemas em prosa

simbolistas. Os textos são variações que giram em torno de um mesmo tema, com modulações

que terminam por transmitir um estado de espírito próprio do Simbolismo. O poema em

prosa de Cruz e Sousa enquadra-se no que Suzanne Bernard denomina poema artístico,

vertente mais freqüente na nossa literatura, em detrimento das atitudes mais radicais, que

recusam as categorias temporais e lógicas, como em Rimbaud (BRAYNER ,1979, p. 239).

Os textos de Missal são objetos construídos e estabelecem um conjunto de relações em

seus diversos planos. A construção do poema confere à prosa uma noção de conjunto e de

universo autônomo, atendendo aos princípios de totalidade de efeito, brevidade e densidade.

Cruz e Sousa compõe um mundo organizado em que retornos confirmam a ordem analógica

do universo, como indica a estrutura circular que inicia e conclui o conjunto de 45 poemas.

A disposição dos poemas “Oração ao Sol” e “Oração ao mar”, o primeiro e o último do

volume, respectivamente, comprovam a natureza cíclica que orienta a organização da obra.

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As descrições e visões místicas são os motivos dominantes de Missal, mas os poemas

que problematizam a recepção da obra também são freqüentes. Em alguns poemas - “Oração

ao sol”, “Ritmos da Noite” e “Sugestão”, podemos observar as alusões feitas à poesia

parnasiana. Em “Oração ao Sol” (ver Anexo1), como o título indica, o sol é personificado

através de inúmeros vocativos: “Sol, rei astral, deus dos sidérios Azuis, Sol, imortal, pagão,

[...]” (p.3). O eu lírico invoca a proteção solar para enfrentar a incompreensão dos leitores

contemporâneos: “E faz, igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros,

broncos e tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro como incisivas

pedradas fortes” (p.4). Os poemas “Oração ao sol” e “Oração ao mar” contêm insinuações que

condenam os leitores contemporâneos da obra. O poeta é visto com um artista

incompreendido, que só será reconhecido após a sua morte. Os poemas adotam um tom

heróico e altissonante, como se percebe pela abundância de palavras escritas em maiúsculas,

pelo uso de interjeições e pela presença de vocativos.

Quatro poemas possuem divisões que denotam uma passagem de tempo que estaria

relacionada à narração. Alguns fragmentos se constituem como conclusões separadas do

corpo do texto, assinalando uma interrupção na enunciação, rompendo com o curso e

desenvolvimento linear. O poema “Tísica” é fragmentado em cinco partes, indicando

momentos distanciados no tempo para acompanhar o agravamento da doença da mulher,

objeto da observação do eu lírico.

Os poemas que se aproximam de textos ensaísticos são longos, ameaçando a unidade e

a brevidade, critérios de definição do gênero. “Psicologia do Feio”, “Página Flagrante”

“Mulheres”, “Som”, e “Sabor” situam-se em uma fronteira interessante entre a narração e a

reflexão. Porém, a unidade e a tensão são mantidas por meio das recorrências e paralelismos

sintáticos e semânticos.

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“Oração ao Sol,” poema que abre o livro, é particularmente importante, pois

problematiza as disputas no cenário literário da época. Uma literatura que busca uma poesia

pura e uma outra que se transforma em uma escrita de combate coexistem, em contínua

tensão, e essa tensão é evidente nos primeiros parágrafos do poema:

Sol, rei astral, deus dos sidérios Azuis, que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento. Permite que um instante repouse na calma das Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio de igrejas góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas (p.3).

No poema, um eu lírico isolado sente-se atormentado e pede proteção. A

animosidade dirige-se contra os adversários contemporâneos do livro. No entanto, a

animosidade está vinculada à obsessão pela busca da poesia pura, um dos temas constantes

em Missal e na poesia simbolista. Além do desejo de uma obra intocável e da pureza da arte,

pode-se entrever o desejo de que um determinado código estético prevaleça sobre um outro.

No poema, do primeiro para o segundo parágrafo, há uma oscilação de ênfase que

passa do sol para os oponentes da obra. Essa ênfase pende para os inimigos, o leitor mediano

e a crítica oficial, como atesta a freqüência de vocábulos do campo semântico da guerra.

Posteriormente, o desejo de proteção se converte em um pedido de vitória: “Permite que um

instante repouse na calma das Idéias”; “Concede-me, Sol, que os manipansos não possam [...]

imperar sobre mim”; “Livra-me tu, Luz eternal, desses argumentos coléricos”; “[...], faculta-

me a Graça real, o magnificente poder de rir – [...]” (p.4). O caráter beligerante do poema

concretiza-se no último parágrafo, quando o eu lírico expressa um desejo de expansão: [...]

“que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos paços esplendorosos e lá para sempre vibre, se

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eternize através das forças firmes, num som álacre, cantante, de um clarim proclamador e

guerreiro” (p. 4).

A tensão poética configura-se na elaboração de um espaço artístico não conspurcado,

que tematiza um confronto estético. A oração tem como objeto de ataque uma estética

privilegiada no contexto literário da época. O eu lírico não está enclausurado, indiferente ao

seu contexto. Através da sua negação aparente à interferência do real empírico na poesia, ele

apresenta as condições do campo literário da época e traz o oponente que deseja combater,

textualmente.

2.1 POEMAS METALINGÜÍSTICOS

Os motivos de “Oração ao Sol” manifestam-se ao longo de toda a obra, em maior ou

menor intensidade. “Dolências...” e “Sugestão” (ver Anexos 2 e 3) são poemas que possuem

características em comum com o poema em questão. Os textos concentram-se no “como” da

poesia, problematizando a sua recepção pela crítica especializada e pelos leitores, aludindo à

repercussão do livro do qual fazem parte.

“Dolências...”. Nesse poema, o eu lírico dirige-se a uma segunda pessoa, um artista

assim como ele. Desde o início, torna-se evidente a religião da arte que preside o Simbolismo

e a obra de Cruz e Sousa. No primeiro parágrafo, o artista é comparado a um peregrino e a

arte a uma via-sacra “torturante” e “perigosa”. O artista é um velho fatigado e a arte, um

encanto “doloroso” e “acerbo”. A frase que desencadeia todo o poema é o símile “Tu, [...] te

sentirás, um dia, velho, fatigado, como um peregrino[..]”(p.5). A arte, por sua vez, é

comparada à religião, incluindo os sacrifícios e a abnegação necessárias.

A aproximação entre o eu lírico e o artista a quem ele se dirige transparece na

utilização dos dêiticos, fazendo com que o poema ganhe um tom confessional. A enunciação

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se dá como se o poeta estivesse presente: “esse encanto”, “Essa maravilhosa seiva de

pensamentos”, “toda essa púrpura espiritual.” O retorno é ocasionado pelos paralelismos

sintáticos, como as construções em que dois adjetivos qualificam o mesmo substantivo

“doloroso e acerbo”, “torturantes e perigosas” (p.5). Os agrupamentos binários indicam uma

busca pela simetria, com procedimentos que remetem a sua poesia versificada. Portanto, a

utilização desses recursos permite identificar a escritura do poema como prosa poética.

No primeiro parágrafo de “Dolências...”, o ritmo é dado pela alternância entre um

primeiro momento mais fragmentário e um seguinte mais longo e menos entrecortado. A

progressão semântica é lenta, no segundo parágrafo, já que os sintagmas se referem ao mesmo

objeto. O ritmo da seqüência seguinte é mais lento ainda e está repleto de pausas que dão a

impressão de que a degradação física descrita corresponde a uma desaceleração do ritmo,

numa coincidência entre significante e significado. A lentidão torna-se mais evidente com a

repetição de fonemas nasais e com as retomadas da palavra “brilho”:

Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho esmaecido, vago, brilho branco e virgem das estrelas glaciais (p.5).

O terceiro parágrafo estrutura-se na comparação entre a alma condenada do artista e as

“formosuras claustrais de monjas” (p.5). O vocabulário religioso confirma-se nas palavras

como: “alma”, “condenada”, “celas.” No parágrafo seguinte, o poeta é descrito em um futuro,

em estado decrépito, no qual perde as expressões humanas e entra em um estado de

indiferença e imobilidade, “emudecido e gelado” (p.5).

Essa letargia leva o eu lírico gradualmente a um estado semelhante à morte, definida

em termos de ausência e negação: “[...] - sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos-

[...]”; “não crer em nada, não sentir nada, não pensar em nada, será tua filosofia da

senilidade”(p.5).

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No poema, o eu lírico sonhou com a glória e a elevação, mas o envelhecimento o

transforma em um “sol apagado”. Conectando-se com o primeiro poema de Missal, o “sol

apagado” refere-se ao fracasso dos pedidos dirigidos à divindade. As súplicas não foram

atendidas. Apesar desse estado paralisante, tudo o que foi objeto estético para o poeta será

lembrado. Esses objetos são o ocaso e suas verberações, a Lua e o luar, os navios, as escunas,

as embarcações de modo geral, ou seja, os motivos de Missal. O artista a quem o eu lírico se

dirige é ele mesmo, fazendo do texto um jogo especular.

O parágrafo que se segue é uma síntese do anterior e começa com “Tudo o que...”

(p.6). O eu lírico enumera os procedimentos artísticos seguidos e praticados por ele: “o que

trabalhaste pela Forma, lutas com o estilo e com a frase” (p.6). Apesar da decrepitude, o eu

lírico permanecerá como um “egrégio vencedor, imortal, só e sereno” (p.6) na torre de

marfim.

O título “Dolências...” fornece indicações da música dolente e lenta que perpassa o

poema, acentuada pelas reticências e pelas frases longas que caminham lentamente e se

prolongam, construindo a atmosfera inconclusa do poema. A atmosfera e o ritmo dolentes

também são construídos nos paralelismos fonéticos e semânticos que reiteram o mesmo

estado de diversas formas, sendo, mais do que uma simples repetição, uma aglutinação de

impressões: “doloroso e acerbo”, “torturantes e perigosas”, “o brilho branco e virgem”,

“solidão e silêncio”, “emudecido e gelado” (p.5); “mãos aveludadas e brancas”, “alvas e

frias”, “fecundadora e ardente”, “com nervos e com sangue”, “luar glacial e imóvel”,

“tristezas noturnas e lancinantes” e “só e sereno” (p.6). Os substantivos apresentam adjetivos

pospostos e antepostos a ele: “vivas forças impetuosas” (p.5), “os finos frios radiantes” (p.6),

“estranha rosa branca (p.6)”. As frases, somadas e acrescentadas, num contínuo que não se

fecha, prolongam o efeito dolente que o texto propõe. No último parágrafo do poema (p.7), há

uma retomada do começo do primeiro parágrafo que se inicia com “E, tu, velho, embora,

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[...]”. A velhice é citada diretamente quatro vezes: “[...], te sentirás, um dia, velho,

fatigado,[...]”(p.5), “Mas, velho, já, [...]”(p.6), “a tua filosofia da senilidade” (p.6) e “E tu,

velho, embora,[...] “(p.7).

Também são freqüentes as aliterações: “brilho branco” (p.5), [...] “grandioso, solene,

como os Salmos de Salomão” (grifos meus, p.6). O poema estrutura-se como uma seqüência

de lamentações que giram em torno da decadência física e de uma recompensa pelos

sacrifícios exigidos pela arte. Numa atitude tipicamente simbolista, postula que o poeta

permanecerá numa torre de esmeralda, acima do Mundo.

“Sugestão”. Aqui, o eu lírico também se dirige a um interlocutor que seria um artista,

mais especificamente um poeta “obscuro para muitos” e possuidor de um “espírito sugestivo”

(p.110). Há uma alusão direta à “firmeza artística” (p.110), “Artista” (p.111), “escritor”

(p.112), que é mais velada no poema “Dolências...”. A recepção da obra através dos jornais é

mencionada no poema: “Não sabem [...], não entendem aquilo...” (p.110). O poeta é adepto de

uma seita de “princípios transcendentais” (p.110). A obscuridade, o anonimato e a

incompreensão da sua obra decorrem da adesão a este princípio artístico, levando à separação

do poeta em relação ao mundo: “as pompas do mundo” e “as pompas das idéias” (p.111). No

poema, a obscuridade também é conseqüência da busca do poeta pela originalidade e pelo

surpreendente. Nesse poema, o eu lírico faz referência à “nevrose da composição” (p.110) e

ao “nervosismo psíquico” (p.111). Pode-se observar as alusões aos critérios artísticos

adotados pelo poeta, que indicam uma percepção muito ligada à concepção de prosa poética

concebida como uma prosa ornamental nas expressões: “ornamentação de estilo” e “estilo

nobre” (p.111). Assim como em “Dolências...”, o poeta relaciona a arte à religião ou à seita

religiosa.

“Sugestão” é interrompido quando se descreve a preparação para a publicação e o

clima de expectativa em torno do acontecimento: “Andam já longe. Caminham. Chega já ao

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domínio de todos a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra” (p.111). A repetição da palavra

“já” visa dar ênfase ao clima de expectativa, assim como as frases curtas. Há uma antecipação

da consagração da obra que é interrompida por uma narração. O poeta sugestivo vai a um

teatro e adoece de pneumonia. Algum tempo depois de sua morte, há um diálogo que

sintetiza, de certa forma, o campo literário da época: a hostilidade aos poetas simbolistas e a

publicação em jornais. Como já foi dito, as revistas de efêmera duração e os jornais foram os

maiores meios de divulgação e combate entre poetas simbolistas e parnasianos.

Em “Sugestão”, o resultado do esforço e do trabalho com a linguagem não é

recompensado nem mesmo pela torre de marfim. É interessante traçar um paralelo entre os

dois poemas, principalmente nos últimos parágrafos de cada um:

E, tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda, ficarás egrégio vencedor, imortal, eterno, só e sereno, ao alto, sob as estrelas eternas... (“Dolências...”p.7) E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra, sem nunca teres vencido! com a ironia dessa glória de néscio a rir de ti, perpetuamente, à chuva, aos vendavais e ao sol, do alto da tua cova! (“Sugestão”, p.113)

A obra consome “uma porção de nervos e sangue” (p.113), mas o resultado é bastante

diverso nos dois poemas. Em “Dolências...” e em “Sugestão” faz-se alusão a nervos e sangue,

dando relevo ao desgaste físico que a criação implica. Em “Dolências...” se faz alusão à

glória: “[...], sonhaste com os opulentos, doirados prestígios da Glória [...]” (p.6). Em

“Sugestão”, fala-se na “ironia dessa glória de néscio a rir de ti [...]”. A diferença entre as duas

glórias está assinalada pela maiúscula e minúscula com que são escritas.

Os poemas “Dolências...” e “Sugestão” permitem algumas aproximações. Ambos

dirigem-se a uma segunda pessoa. Em “Dolências...”, o conflito se dá entre o poeta, suas

próprias limitações físicas e seus princípios artísticos. Apesar da decrepitude, o artista terá o

seu posto assegurado na torre de marfim, numa posição acima do mundo. Em “Sugestão,” a

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oposição em relação à recepção da obra se faz sentir desde o princípio, ao se fazer referência à

obscuridade. Não há consolo, nem glória para o artista deste tempo, o poeta não permanece

em uma torre, mas observa tudo antiteticamente “do alto da sua cova” (p.113), e seu cadáver

apodrecerá na indiferença; na relação conflituosa com seu tempo, não superará o mundo, mas

sofrerá com uma “ironia de néscio”(p.113), sem honra e sem glória. Portanto, os poemas

enunciam, com diferentes modulações, a situação inicial do primeiro poema, indicando um

motivo que será recorrente ao longo do livro. A poesia pura transforma-se um espaço de

combate estético, que simboliza um confronto que ocorre no campo literário da época.

2.2 A AMBIVALÊNCIA

As figuras de dualidade, elaboradas por Todorov (1980), podem indicar caminhos

analíticos possíveis para a compreensão de Missal. Na obra, os poemas são

predominantemente descritivos. Alguns textos estão mais diretamente vinculados ao código

simbolista, mesclando estados litúrgicos a estados sensoriais. Dentre estes poemas, “Umbra” e

“Vitalização” representam duas vertentes do poema em prosa de Cruz e Sousa. O primeiro

apresenta uma temática menos freqüente na configuração da obra; o segundo possui uma

temática recorrente. Ambos são textos breves, confirmando a concepção de unidade de efeito

proposta por Poe (1965), em “Filosofia da composição” e difundida por Baudelaire. Os

poemas que têm como motivos perfis femininos são estreitamente relacionados à

ambigüidade. O poema “Psicologia do Feio” não pertence à dominante do livro, estando mais

relacionado ao grotesco. Além desse aspecto, o poema configura-se como texto reflexivo que

apresenta uma razoável teorização.

“Umbra”. O poema se constrói em torno de imagens urbanas. O eu lírico observa

homens cavando valas para o encanamento da cidade. A partir dessa cena e das impressões

causadas por ela, o poeta será levado a uma reflexão sobre a morte. As impressões que

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surgem após a contemplação da cena têm um aspecto fantástico e acontecem numa atmosfera

ambígua, na noite mais absoluta, onde a paisagem é distorcida pelas sombras:

Noite glacial e melancólica. [...] Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério (p. 85-86).

O título do poema em prosa é um indício do seu teor simbolista. No ensaio “O som no

signo”, do livro O ser e o tempo da poesia (2000), Alfredo Bosi expõe a posição dos

defensores do simbolismo orgânico que estabelecem uma relação direta entre os sons e os

estados de espírito. A vogal /u/, por exemplo, grave, fechada, velar e posterior, evocaria signos

que teriam como correspondência estados e objetos obscuros. Assim como sensações

negativas, relacionadas à morte e à angústia. O vocábulo “umbra” relaciona-se ao escuro e ao

sombrio, ao fantástico e ao misterioso, atmosfera que impera no texto. A palavra serve como

verdadeiro objeto, através das múltiplas sensações que evoca. O simbolismo orgânico, embora

deva ser acolhido com restrições, é adequado ao que se refere ao valor explicativo do título do

texto e da ocorrência de algumas palavras-chaves.

Na escuridão em que se passa a experiência do eu lírico, as formas dos objetos se diluem,

desencadeando uma metamorfose do aspecto da cidade, que, a partir desse momento, passa a

se constituir como um espaço tumular, como deixa entrever os fragmentos: “À turva luz dos

lampiões de petróleo, em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros, vêem-se fundas e

extensas valas cavadas de fresco [...]” (ver Anexos 4, p. 85). A imersão da cidade torna-a

indefinida, sem contornos, estabelecendo-se uma experiência construída através do olhar, por

si só bastante ambivalente, assinalando duas realidades que se conjugam num só espaço como

realidades superpostas. Essa experiência ambivalente configura-se, principalmente, nessa

relação dúplice que o eu lírico mantém com o espaço urbano (p. 115). Pode-se chegar à

conclusão de que todo o poema é um percurso entre esse ver e esse sentir.

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É o olhar que desencadeia todas as impressões que irão perpassar o poema. Olhar que se

volta não apenas para baixo, mas, além disso, para o subterrâneo, dirigindo-se para as camadas

profundas da cidade. A cidade teria, portanto, uma estrutura fragmentária, evidente na sua

estratificação, implicando várias imagens de acordo com o olho e a memória de quem a

percebe.

Essa fragmentação pode ser vislumbrada na configuração do texto. O poema, em seus

nove parágrafos, está todo no presente do indicativo. A paragrafação no poema em prosa

revela a perspectiva adotada pelo eu lírico. Em “Umbra”, os primeiros parágrafos são mais

curtos e mais fragmentários, em oposição aos três últimos, que têm seus predicados mais

extensos. Nesse primeiro momento, há uma descrição sumária da paisagem:

Volto da rua. Noite glacial e melancólica. Não há nem a mais leve nitidez de aspecto, porque nem a lua nem as estrelas, ao menos, fulgem no firmamento. Há apenas uma noite cerrada que lembra o mistério. Faz frio...(p. 85).

Do momento em que a reflexão se aprofunda até o seu “desfecho”, os parágrafos

tornam-se mais longos e dão maior lentidão ao texto em oposição ao dinamismo do primeiro

momento. É pertinente afirmar que, embora o texto esteja todo no presente do indicativo,

existem dois ritmos no poema. Para corroborar essa afirmação, pode-se citar a seguinte

passagem:

À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha, dando a noite lúgubres pavores de enterros, vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade (p. 85).

Ao traçar um paralelo entre o poema em prosa de Cruz e Sousa e seus poemas em

versos, podemos encontrar algumas recorrências. Na poesia simbolista, não há progressão

temática. No poema em prosa, essa progressão existe, no entanto, ela se dá muito lentamente,

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já que é submetida a uma descrição subjetiva de um espaço sem contornos definidos, pois

descreve a transformação da cidade.

Numa descrição, a inclusão do sujeito nunca é aleatória ou indiferente. Em “Umbra”,

essa inscrição se dá na primeira frase: “Volto da rua” (p.85). Nesse momento já se estabelece

uma tensão entre o eu lírico e o mundo exterior. Uma relação que, tendo em vista o código

simbolista, é de oposição. No poema, existem dois espaços: primeiro é explicitado; o segundo

é apenas insinuado, sendo inferido pela oposição de um ambiente exterior e interior. O poeta

simbolista não se coloca como um representante ou porta voz da humanidade, ao contrário,

ele se isola de qualquer círculo de ação social mais amplo, apresentando-se como um ser

superior que se distingue do resto da humanidade. Daí decorre seu isolamento e sua

marginalidade. A torre de marfim é a síntese da posição do poeta simbolista perante a

sociedade.

O presente do indicativo, tempo verbal utilizado para descrever a paisagem urbana

antevista, faz com que a paisagem assuma a forma da percepção do eu lírico, pois a

contemplação da cidade acontece num passado recente, mas se torna presente desde a primeira

frase, o que confere simultaneidade a essas impressões. O vocabulário do poema inclui um

léxico de objetos da modernidade: “lampiões de petróleo”, “tecla elétrica”, “encanamento das

águas da cidade”, temática muito recorrente em Baudelaire: a cidade em transformação.

No poema “Umbra”, predominam o fragmentário, o instantâneo e o fluxo de

consciência. Há uma descontinuidade temporal e espacial. O texto termina em um estado de

suspensão, numa incompletude.

Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica onde se cala de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na Morte... (p. 86).

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Nessa perspectiva, há uma convergência em vários planos das figuras de dualidades

que operam no texto ou um principio de tensão. Para os simbolistas, a linguagem poética não

permitiria a sensação de triunfo total da compreensão, na medida em que a comunicação

poética se dá por meio de declarações indiretas. O buraco que é cavado nas ruas da cidade é o

buraco do próprio texto, um buraco cavado na linguagem.

A ambigüidade e a antítese em “Umbra” estão justapostas nas camadas da cidade, em

sua superfície e suas entranhas. Paralelamente a esses elementos da modernidade, existe uma

camada arcaica subjacente a ela. Abaixo do pavimento, em uma camada de terra, existem

“formidáveis ventres abertos e bocas escancaradas na treva” (p.85). A cidade é um espaço

tumular, e a morte é concebida como devoração. A ambigüidade está nessas duas realidades

que ora se superpõem, ora se contradizem.

“Núbia”. Em Missal, os poemas “Núbia”, “Esmeralda”, “Gata”, “Astro frio”,

“Tísica”, “Sofia” e “Mulheres” podem ser classificados como poemas ambivalentes. Em

“Núbia”, mais do que descrever propriamente uma mulher, o eu lírico transmite as sensações

que são evocadas pelo nome que dá título ao poema, no plano do significante e do significado.

O vocábulo “Núbia” é repetido ao longo do poema quase como um refrão, dando mais ênfase

ao significante e valorizando a sonoridade (ver Anexo 5).

A palavra “Núbia” evoca elementos escuros, no plano do significante. O texto é o

desenvolvimento do duplo “Núbia-núbil”, que se concretiza ao término do poema no duplo

“Núbia-Noiva”. Em “Mulheres”, Cruz e Sousa afirma que as mulheres são um “organismo

feminino dúbio” (ver Anexo 6, p.97). O poema “Núbia” pode ser compreendido como o

desenvolvimento das paronomásias: “Núbia”, “núbil” e “dúbio”.

No primeiro parágrafo do poema, são inseridas palavras do campo semântico ligadas

ao matrimônio: “véus”, “grinaldas”, “tálamo”, “epitalâmios” (p.57). A relação entre a mulher

e a Arte se traduz desde o primeiro momento, através das palavras que surgem em

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maiúsculas: “Núbia”, “Noiva” e “Arte”. Na poética de Cruz e Sousa, a mulher configura-se

como um manancial do qual o artista se serve para a criação poética. Esse processo é descrito

no poema “Mulheres”.

No poema em questão, Cruz e Sousa expõe o papel da mulher em relação à arte, que

se apresentará de maneira indireta, nos perfis femininos, os poemas que se enquadram nessa

temática. A mulher é amada com um “sentimento d’Arte”(p.57), amada carnal e

espiritualmente.

De início, o objeto do poema “Núbia” é caracterizado por elementos que evocam a

escuridão e a lubricidade: “âmbar negro”, “azeviche”, “olhos como pérolas negras”,

“penumbra da noite”, “lábios mádidos, tintos e sulferinos”, “sangue quente”, “púrpuras de

luxúria” (p.57). Como Núbia também é uma região da África, o título do poema ainda remete

ao exótico e ao desconhecido.

A natureza dúbia de Núbia é adquirida pela sua dupla condição de negra, com a

educação requintada de uma mulher branca: “[...] e recebeu também, em linhas de conjunto,

do mesmo meio onde desabrochou, essa suavidade e graça núbil que é todo o encanto

vaporoso aéreo, do ser feminino” (p.58).

Sua natureza dúbia também se constrói pelas nuances que lhe são atribuídas. De início,

ela é descrita com palavras que evocam a escuridão; posteriormente, com elementos que

evocam a luminosidade. Ela apresenta então uma natureza que está em fronteira, numa

posição dúbia e ambígua: “[...] como se Ela de repente parasse na existência e se sentisse no

vácuo, perdida e só, nos caminhos desolados, desertos, de onde veio outrora, sem leito e em

lágrimas, a caravana gemente da sua raça [...]” (p.58). Sua dubiedade manifesta-se nas

diferentes interpretações às quais ela se presta, por meio da perspectiva do artista, natureza

que não pode ser definida objetivamente. A alma de Núbia é descrita como uma “forma

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singela e branca”, que possui “meigas claridades” (p.59). A sua voz tem o “timbre argentino,

claro e fresco”, “Tudo ela possui de luminoso e perfeito” (p.59).

O poema está fundamentado na analogia, como se percebe pela recorrência da palavra

“como.” A mulher é uma “página viva da paixão humana, que vibra e canta o amor da mesma

maneira que a arte deve vibrar e cantar” (p.58). Desse modo, o poeta é o único ser capaz de

compreender profundamente essa natureza ambígua da mulher e convertê-la em poesia. A

figura feminina tem afinidades com a forma poética e funciona como um ponto de partida e

estímulo para elaboração artística: “O que excita o artista [...] é simplesmente a Forma, é toda

essa roupagem deslumbrante que faz as mulheres parecerem auroras boreais [...] é a plástica

olímpica, o onipotente esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios, os alabrastros

dos corpos flóreos”( “Mulheres”, p.100).

“Mulheres” aproxima-se de uma reflexão, permanecendo em uma posição limítrofe.

O processo de criação de imagens, desvendado no poema, permite estabelecer algumas

relações entre “Mulheres” e os demais poemas de inspiração feminina. Os textos que se

enquadram na temática feminina, de certa forma, têm seu processo criativo revelado. Elas são

apenas um elemento de sugestão estética moldável às necessidades estéticas do sugestionado.

“Sofia”. O poema é um dos textos de Missal que apresentam uma bipartição,

assinalando momentos diferentes (ver Anexo 7). Os fragmentos funcionam como uma

conclusão ou uma interrupção do discurso efetuado até aquele momento. Na primeira parte, a

descrição de uma sala prepara o ambiente onde a mulher que toca piano será focalizada pelo

eu lírico. Em seguida, há uma descrição das características físicas e psicológicas da mulher

título do poema: alta e branca; nervosa e triste.

Na segunda parte, uma interrupção ocorre no tom do poema, que muda bruscamente.

Essa mudança se inicia com uma interjeição que é acompanhada por uma intensificação etérea

do léxico mais característico ainda do Simbolismo e da utilização de procedimentos formais,

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tais como a aliteração: “Ó aromas, sutilíssimas essências dos finos frascos facetados[...],

“alma ansiosa dessa sonhadora Sofia”, “aromas vaporosos”, “maravilhosos perfumes”;

“eflúvios castos, os fluidos luares”(p.115, grifos meus).

O segundo momento do poema é uma interpelação do eu lírico aos aromas e às

essências, na tentativa de desvendar os sentimentos do objeto título do poema. Os aromas

possuem uma linguagem alada além das possibilidades das vozes humanas. Essa linguagem

entra em contraste com a mudez e o silêncio da mulher que é objeto de indagação do poeta. O

texto termina com reticências que dão mais imprecisão a sua atmosfera, enfatizando sua

incompletude, mencionada em “Mulheres”. Também se faz alusão à Arte, o que indicaria

mais uma vez como os poemas que se incluem em perfis femininos, de alguma forma, têm

como tema subjacente o processo poético.

No último parágrafo, que começa com a conjunção “e”, há uma espécie de síntese que

evoca todas as características assinaladas anteriormente: “todo esse nobre ser delicado, todo

esse perfil [...]” (p.114). O eu lírico, a partir da sua percepção singular, desvenda uma

melancolia sob sua aparência, que faz com que ele chegue à hipótese de que Sofia seria a

inspiração dos compositores que ela tocava. Mendelsohn, Schumann, Bach e Beethoven

também teriam como modelo uma mulher e teriam transformado a percepção em obras de

arte, tal como Cruz e Sousa expõe em “Mulheres”.

“Astro Frio”. Podemos perceber a conexão de “Astro Frio” (ver Anexo 8) com

“Sofia”. O poeta enfatiza as celas de um convento e o canto. O poema se configura como o

desenvolvimento da tensão frio/calor, agora/antes, convento/mundo exterior.

Portanto, a mulher evocada no poema desempenha a função designada pelo poeta,

sendo um manancial de inspirações artísticas. A frieza é uma indiferença para com os

“fulgores do mundo”, essa indiferença culminará na última comparação do poema: “[...]

mergulhada, enfim, na necrópole de um convento, como um astro através de frígidas e

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espessas camadas de neve...” (p.17). No poema a vinculação da imagem da mulher com arte

se dá também pelo vocabulário utilizado: “sentimento artístico” e “Arte”.

Os três poemas, “Núbia”, “Astro frio” e “Sofia” são perfis femininos ambivalentes.

“Núbia” apresenta a mulher como um ser ambivalente através de uma dupla condição,

descrita de início com palavras que se referem à escuridão e, posteriormente, com elementos

que evocam a luminosidade. Em “Astro frio”, o conflito se dá entre um agora e um antes; o

frio e o calor. A mulher evocada no poema, embora enclausurada, apresenta uma faísca do seu

passado mundano, produzindo dimensões coexistentes.

Os poemas que têm uma temática feminina mantêm conexão com a metalinguagem do

poema “Mulheres”, que aborda de maneira mais reflexiva o processo e os procedimentos

envolvidos na relação entre a mulher, a obra de arte e o poeta. Os poemas com temática

feminina convergem para a estética que o eu lírico expõe em “Mulheres”. Esse diálogo faz

com que esses poemas tragam em si os elementos que ressaltam sua elaboração. Porém, os

que melhor se prestam a essa argumentação são aqueles com uma temática mais voltada para

a religiosidade.

“Sob as naves”, “Os cânticos”, “Gloria in excelsis”, “Ângelus” e “Artista sacro”

podem ser reunidos em um grupo de poemas que teria como característica principal a temática

religiosa. Essas visões místicas são tipicamente cruz-sousianas.

“Sob as naves”. No poema, o título-tema é o espaço físico de um templo. No entanto, não há

descrição do templo, mas das sensações místicas e dos efeitos que o eu lírico experimenta ao

se encontrar em tal local.

A descrição tem uma perspectiva vertical, conforme o movimento do olhar do eu

lírico, que descreve suas sensações enquanto observa o templo. A verticalidade se dá com

símbolo da ascensão espiritual, marcada implicitamente pelos verbos “elevar” e “descer”. A

descrição desse espaço visa exaurir as virtualidades do signo, através das sensações por ele

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evocados. As impressões, como o olhar do eu lírico, oscilam entre a aproximação e a

distância. O distanciamento ocorre quando o eu lírico adota uma perspectiva perpendicular, de

cima para baixo. A perspectiva do olhar do eu lírico, em outro momento, parece estar no

mesmo plano do objeto observado.

No primeiro parágrafo já se tem a perspectiva adotada pelo eu lírico, que observa tudo

de dentro do templo: “[...] eu penetrei no templo iluminado” (p.10). E a perspectiva vertical

está implícita no título: “Sob as naves”. O olhar do eu lírico segue esse percurso descritivo do

alto para baixo, como se vê pelas indicações espaciais: “altas naves”, “Do alto do altar-mor”.

O poeta está no interior do templo em posição imóvel, mas atua em uma perspectiva oscilante

e móvel, já que se dá verticalmente, do alto do templo para o altar. O olhar vertical se dá

também no plano semântico: o poeta passa do divino ou religioso até chegar ao carnal. A

perspectiva também ocorre no plano horizontal, em recuo e proximidade.

Depois de uma descrição panorâmica, que abrange o templo como um todo, o olhar se

concentra em detalhes como “velas”, “jarras” e “lâmpadas”. A vela e a lâmpada estão

relacionadas à emanação da luz. A vela se relaciona à vida ascendente através da sua chama

que é vertical. As jarras e a prata se relacionam à bebida da imortalidade e à sabedoria divina.

Do interior do templo, o eu lírico descreve os “altares laterais”, detendo-se nas imagens dos

santos, que encerrariam a contradição entre a santidade e o pecado. O altar desempenha então

seu papel de catalisador do sagrado, em que este se apresenta no máximo de sua condensação

e o altar também é o espaço onde algo se torna sagrado.

O eu lírico tem a impressão de ver Nossa Senhora descer do altar, mas percebe que

os olhos que julgava serem os de Nossa Senhora, na verdade, são de mulher humana, ou seja,

não de uma divindade. Desse modo, o olhar, compreendido como uma fonte de revelação,

denota não apenas quem é objeto do olhar, mas também quem é o agente da ação. A

observação dirigido para as imagens de Nossa Senhora e dos santos revela mais das paixões

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de quem os observa. A descida de Nossa Senhora do altar é o ponto chave do poema, que se

constrói em torno da isotopia da dualidade alto/baixo, divino/ humano.

No poema, muitos elementos reiteram a indefinição do ambiente do templo. A hora do

crepúsculo, muito cara aos simbolistas, tende a contribuir para essa atmosfera imprecisa e

fronteiriça. As luzes das velas são “oscilantes, trêmulas” como “almas na indecisão do viver”

(p.11). Os santos, como Nossa Senhora, encarnam o conflito entre matéria, luxúria e as

“cousas abstratas” (p.11).

A identificação entre a mulher carnal e Nossa Senhora se dá por meio da momentânea

identidade de ambas, provocada por um lapso da percepção do eu lírico. É o olhar, portanto,

que estabelece a semelhança e o olhar que configura o poema em prosa “Sob as naves”, já que

o poema é uma experiência do olhar do eu lírico, no interior do templo, que assim estabelece a

sinestesia.

A descrição do poema em questão é, sobretudo, uma experiência fundamentada na

percepção visual, especialmente ambivalente. A ambivalência está indicada na temática, na

trajetória do olhar do eu lírico e na percepção dúbia da imagem de Nossa Senhora. Os

sentimentos evocados, as sensações desencadeadas pelo templo, as imagens dos santos e de

Nossa Senhora que descem do altar compõem uma isotopia da ambivalência.

2.3 DA AMBIVALÊNCIA PARA A ANTÍTESE

Já no poema “Vitalização” (ver Anexo 9), há um movimento crescente da ambigüidade

para a antítese. Inicialmente, o título do poema já revela que se trata de um processo, como

indica o sufixo, o processo de vitalizar a paisagem.

O texto é eminentemente descritivo, porém a descrição é subjetiva e impressionista. Não

há propriamente uma paisagem só vista, mas uma paisagem vista e sentida. A natureza que é

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descrita no poema obedece a critérios estéticos, é antes figurada do que observada com

critérios objetivos.

A ambivalência manifesta-se no momento em que essa transformação da paisagem

acontece, o crepúsculo. Um instante de passagem, quando ocorre um entrecruzamento do

tempo. A dualidade apresenta-se tanto pelo momento em que se dá a percepção, como nas

duas paisagens que se originam dessa dupla percepção.

No poema, as afinidades com a descrição de caráter impressionista são percebidas

principalmente em decorrência das referências à luminosidade e ao calor: “irradiação”,

“esbraseamento do sol”, “verberações quentes”, “vegetação estuante de calor” (p.41). Essa

luminosidade, que se configura nos dois parágrafos do texto, transforma-se em frieza e

imobilidade, no seu término.

As imagens são predominantemente visuais. Novamente é a percepção através do

olhar que resulta numa paisagem dupla, que possui uma conotação de decadência, já que ela

se apresenta como o declínio do dia, atuando como metáfora para o declínio da vida. A

passagem fugaz do tempo é percebida, nessa transformação, na mesma paisagem que sob uma

luz diferente torna-se uma outra paisagem. A realidade não é um ser, mas um devir de um

mesmo ser. A natureza é interpretada como um processo constante de crescimento e

decadência, ou seja, um processo ininterrupto.

A primeira frase do poema é declarativa e funciona como um tópico textual em torno

do qual as imagens seguintes serão desenvolvidas: “Há uma irradiação larga e opulentíssima

nos ares” (p.41). O texto também apresenta uma estrutura dividida, quando se trata dos tempos

verbais. Nos três primeiros parágrafos, o tempo verbal é o presente do indicativo:

O esbraseamento do sol do fim da tarde dá fortes verberações quentes à paisagem, que resplandece, e de cuja vegetação estuante de calor parecem rebentar as raízes túmidas de seiva como veias imensas latejando de sangue oxigenado e vivo (p.41).

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No último parágrafo, porém, o tempo verbal é o futuro. Vale destacar que, quando o

tempo verbal passa a ser o futuro, é justamente o momento em que se dá a transformação

da paisagem, ou seja, a transformação da paisagem é acompanhada da transformação do

tempo verbal, estabelecendo uma correspondência entre um elemento formal e um

elemento do conteúdo. O último parágrafo do texto inicia-se com a conjunção “e”,

articulando esses dois tempos:

E, daí a pouco, a Lua através das matas do vale, anelante e álgida, surgirá, rasgará d’alto as nuvens no céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada, vagarosa e tristemente, como uma dor que gelou... (p. 41).

Ao longo do poema, as comparações são freqüentes, ao todo são quatro, em um texto

relativamente curto:

[...] as raízes túmidas de seiva como veias imensas latejando de sangue oxigenado e vivo. Nessa elaboração enorme da Terra que procria e fecunda, na gestação desses mundos que, como astros gravitam em cada grão de areia, pululando e vibrando, a Natureza é como uma grande força animada e palpitante dando entendimento e sentimento à Matéria e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte (p. 41, grifos meus).

[...], a Lua, [...] surgirá, rasgará d’alto as nuvens no céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada, vagarosa e tristemente, como uma dor que gelou...(p. 41, grifos meus)

Observando o poema numa outra perspectiva, pode-se constatar que, sob a aparente

relação de semelhança, existe uma dualidade que se realiza não só através das figuras de

ambivalência, mas também através da antítese, que, de acordo com Todorov (1980), seriam as

propriedades discursivas do poema em prosa baudelairiano.

Os símiles presentes nos texto poderiam levar à conclusão de que o poema se

fundamenta em uma relação de analogia, pois instauram um sistema de semelhanças entre

realidades de níveis diferentes, estabelecendo correspondências entre o microcosmo e o

macrocosmo e originando uma concepção de unidade fechada do universo:

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[...], na gestação desses mundos que, como astros gravitam talvez em cada grão de areia, pulando e vibrando, [...] (p. 41, grifos meus).

Os simbolistas colocavam palavras em letras maiúsculas para dar um sentido absoluto

aos termos. Trata-se, portanto, de um recurso morfo-semântico. No poema em questão, a

ocorrência das palavras em maiúsculas pode contradizer a suposta relação de analogia:

[...], a Natureza é como uma grande força animada e palpitante dando entendimento e sentimento à Matéria e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte. (p. 41, grifos meus)

No fragmento citado, temos um exemplo da tensão subjacente à analogia. Embora o

texto tenha como título “Vitalização”, é a morte que é tomada no seu sentido mais absoluto

(escrita em maiúscula), em detrimento da palavra “vida” (escrita em minúscula).

A passagem citada seria um exemplo de manifestação dessa dualidade, ou até mesmo

de uma contradição, já que se pode interpretar esse procedimento como se a morte fosse

também um processo de vitalização, ou ainda como se esse processo não pudesse ocorrer

senão através da morte.

Retomando a perspectiva impressionista, podemos observar que o texto não termina de

maneira definitiva, mas com reticências, dando a entender que esse tempo é cíclico, um devir

da paisagem que se transforma constantemente, sendo o poema uma tentativa de captar esse

instante fugidio e passageiro, mas constante. A descrição da paisagem é uma sucessão de

imagens que se aglutinam e parecem ampliar o tempo do poema. O percurso do poema

acontece entre o presente e o futuro, mas tem como principal característica a tentativa de fazer

uma prosa instantânea, no sentido de captar o efêmero.

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2.4 A INVEROSSIMILHANÇA

O poema em prosa “Psicologia do Feio” (ver Anexo10) apresenta uma investigação

indireta sobre o grotesco, evidente no número de referências específicas que revelam a

reflexão acerca do grotesco, orientadora do poema. A intertextualidade apresenta-se desde os

primeiros parágrafos, nas citações dos poetas Alphonse Karr, Gustavo Droz e Henry Heine. O

vocábulo “Feio” escrito com inicial maiúscula demonstra a intenção de compreender essa

categoria nos diversos matizes da sua “psicologia negra”, elevando-o a um valor absoluto.

No segundo parágrafo, com uma referência ao cientista Charles Darwin, o feio é

identificado à natureza animalesca. Pode-se observar o léxico de cunho cientificista da

nomenclatura zoológica. A seleção lexical demonstra uma dissonância entre os estratos

animais e espirituais do homem: “Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma ancestral

comum dos seres organizados: eu te vejo bem as saliências cranianas do Orango, o gesto

lascivo, o ar animal e rapace de símio” (p.37).

O feio é definido inicialmente através dos adjetivos “soturno”, “triste” e “desolado”. A

abundância de adjetivos também se apresenta em outros componentes, como, por exemplo,

“O Livro de Lázaro”, caracterizado como “pungente, doloroso e estranho” (p.37). Além

dessas palavras que pertencem a um mesmo campo semântico, outros vocábulos se orientam

para a direção oposta: o humorismo é “alucinante e alado”, há uma “flamejante e

espiritualizada epopéia do Amor” (p.37). Essa tensão configurada no léxico torna-se explícita

em vários momentos do poema, evidenciando uma tensão latente, inerente ao grotesco. Na

tentativa de captar a psicologia do feio, a percepção torna-se fragmentária. A observação

divide-se em uma enumeração que abrange as suas feições, sua gesticulação e sua voz.

A gesticulação do feio é “epilética”, “nevrótica” e “clownesca” e a voz “coaxa” e

“grasna”. Todas essas palavras remetem ao desarmônico e à inquietude: “Faz parte da

estrutura do grotesco que as categorias do mundo falhem” (KAYSER, 1986, 159). A sua voz

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desagradável teria como objetivo nos aliviar da monotonia do belo. A música do feio,

portanto, é uma música dissonante. Assim como as suas feições, as suas vestes também

compõem da sua psicologia, vestes que fazem com que ele seja comparado a um grande

morcego, perdendo todo o aspecto familiar:

Outras vezes, porém, lembram as asas de um grande morcego monstro, imensas e membranosas, causando asco nauseante e enchendo tudo de uma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e esvoaçamentos medonhos(p.38).

O poema segue na tentativa de apreensão desse conceito, a partir de múltiplos

aspectos: as feições, as vestes, a voz e a gesticulação. A psicologia do feio é apreendida em

seus estratos mais exteriores, mas extratos estes que revelam sua subjetividade. No poema, há

uma mudança nessa descrição, quando o espaço é interrompido por um cenário, ao qual o feio

não seria adequado, composto por “árvores frondentes e undiflavadas de sol” (p.38). Em

seguida, o eu lírico volta-se para a capacidade que pertenceria apenas à sensibilidade artística:

a de perceber a qualidade do que é desagradável, transformando-o através da arte. O objeto

do poema, um ser disforme, está deslocado em relação ao mundo que o circunda.

Nos últimos parágrafos, são feitas outras alusões literárias e filosóficas. São citados o

filósofo Schopenhauer e as personagens Ofélia, Julieta e Margarida que remetem às peças de

Shakespeare (Hamlet e Romeu e Julieta) e ao texto de Goethe (Fausto). As alusões, nos

penúltimos parágrafos, vão de Hamlet ao filósofo Büchner. O número de citações literárias,

filosóficas e científicas deixa subentendida a necessidade de embasamento às considerações

sobre o grotesco que se delineia ao longo do poema. As citações funcionam com um

argumento que intensificam e exemplificam as considerações do eu lírico.

O eu lírico deixa claro que a atração que o feio desperta nele vem do fato de que o

grotesco provoca um desequilíbrio, negando “a absoluta correção das Formas perfeitas e

consagradas” (p.39). Porém, apesar de compreendê-lo, o eu lírico deixa claro que entrevê uma

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ordem própria, que apenas difere da ordem corrente. Essas considerações são visíveis na

passagem em que são relativizadas a beleza e o disforme, quando há uma comparação entre a

estrela e o sapo, e os dois são colocados em um mesmo nível, já que ambos teriam, cada um a

seu modo, uma correção que lhes é própria:

[...] - como o sapo, coaxando cá em baixo na lodosa argila, tem, no entanto, a repelente correção própria do sapo; - como a estrela fulgindo, lá, em cima, no precioso Azul, tem a serena e sidéria correção própria d’estrela (p.39).

Desse modo, tudo teria uma ordem particular e, mesmo no que é aparentemente

desagradável, existiria uma beleza oriunda de suas características peculiares, não vinculadas a

um modelo. A comparação entre a estrela e o sapo deixa implícita a noção analógica do

universo, uma correlação entre os planos terrenos e celestes entre o macrocosmo e o

microcosmo. A definição do feio e de sua psicologia, mais uma vez, dá-se através de

analogias.

Os últimos parágrafos do poema deixam entrever que a temática do poema não é

propriamente o feio, mas a fascinação que este exerce sobre o eu lírico que o idolatra e o

adora:

Não houvesse dentro de mim, [..], um sentimento melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio (p.40).

Além da investigação sobre a sua psicologia em vários aspectos (a voz, a gesticulação,

as vestes, as feições), o poema em prosa em questão seria também uma tentativa de desvendar

os efeitos que o feio desencadeia no eu lírico, as sensações e associações que ele suscita no

receptor, que, neste caso, é o eu lírico dotado da sensibilidade necessária para o processo. O

poema, portanto, não aborda de modo exclusivo a psicologia do feio, mas também a

psicologia do poeta reagindo a esse estímulo. Pode-se compreendê-lo, portanto, como um

manancial poético para o eu lírico, resultando na produção do poema. Há uma similitude

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entre o grotesco e a ironia. De acordo com Octávio Paz, a ironia “revela a dualidade daquilo

que parecia uno, a cisão do idêntico, o outro lado da razão: a quebra do principio de

identidade” (1984, p.68). Essa ruptura, muitas vezes, se realiza através do grotesco.

Dentre as três categorias elencadas por Todorov (1980), a que se mostra mais

adequada ao poema em questão é a inverossimilhança. Os fatos descritos em alguns poemas

baudelarianos, como “Assommons les pauvres!”, por exemplo, não se enquadram no que se

denomina normalidade, resultando, muitas vezes, num contraste entre o sujeito da enunciação

e os demais integrantes da sociedade. A metamorfose do feio no poema transforma-o em algo

que ultrapassa os limites do humano, transfigurando-se em algo sinistro e monstruoso. São

muitas as palavras que reiteram essa noção, ao longo do poema: “gesticulação epilética”, “as

esquisitas abas dessa veste”, “esvoaçamentos medonhos”. Um poema em prosa “grotesco”

reuniria duas esferas literárias. Ao adotar o poema em prosa, Cruz e Sousa pretende produzir

um texto menos acadêmico e ao selecionar elementos grotescos constrói um duplo embate

estético.

Além da inverossimilhança, porém, a exploração da dualidade também se daria em

“Psicologia do Feio” através da antítese. O poema se configuraria na tensão entre analogia e

ironia. Apesar de o objeto do poema ser o grotesco, ou sua psicologia, o texto obedece a uma

organização analógica. A prosa, no que concerne a sua musicalidade, apresenta a elaboração

visível em outros poemas de Missal. A maior variação diz respeito ao léxico, que não tem

muita afinidade com o restante do livro.

A palavra “feio” é a mais freqüente no poema, reiterando a busca da compreensão do

conceito. Os agrupamentos binários são recorrentes, assim como em outros poemas de Missal.

O poema termina circularmente, com uma frase que finaliza o primeiro parágrafo do poema.

Além do título, existem outros paralelismos fônicos e sintáticos: “As tuas feições, duras,

secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a confluência

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interior dos desesperos e das torturas, [...]” (p.37). Embora o grotesco seja definido no poema

como “a ironia da Formosura” (p.39), é através de analogias que este pode ser compreendido.

Nesse sentido, a analogia que preside a organização do poema, principalmente no estrato

fônico, teria como temática um objeto dissonante e uma linguagem analógica, revelando que

“o seu conteúdo verdadeiro reside na dramática das forças formais tanto exteriores como

interiores” (FRIEDRICH, 1978, p.18).

Os poemas em prosa de Cruz e Sousa apresentam as características do poema em

prosa simbolista. Os textos são, à primeira vista, regidos pelo signo da analogia, mas,

subjacente a esta, há um principio de tensão, demonstrado através das figuras de dualidade. A

dualidade se constrói em vários planos do texto, apresentando oscilações na intensidade da

tensão estabelecida. A figura dominante na obra é a ambigüidade, em função do código

estético simbolista, porém, em alguns momentos, essa ambigüidade se transforma em antítese.

A inverosimilhança ocorre em menor escala, mas produz textos significativos, por estabelecer

uma relação de tensão em relação à obra como um todo, a partir do título, que indica poemas

analógicos e de feição religiosa. As figuras de dualidade lançam uma outra perspectiva de

análise sobre um gênero que, para a crítica brasileira, permanece no limbo.

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CAPÍTULO 3: MISSAL E O “ÂNGELUS”

O tirso, bastão envolto por hastes de videira cobertas de folhas e frutos, era atributo de

Baco. O poema “Le thyrse”, de Baudelaire, segundo Todorov, sintetiza a dualidade do poema

em prosa e transforma esse objeto ambivalente, ao mesmo tempo espiritual e material, no

símbolo do poema em prosa (Todorov, 1980, p.118). O tirso, além de ambivalente, é também

um objeto antitético porque reúne a linha reta e a curva, arquétipos do prosaico e do poético.

No ensaio “Verso e prosa”, Octavio Paz define o poema como uma ordem fechada e a prosa

como uma construção aberta e linear (1990, p.2). Desse modo, o poema em prosa pode ser

interpretado como a tensão entre linhas retas e curvas.

Os textos em prosa de Cruz e Sousa podem funcionar como uma contraposição a sua

poesia em verso, fornecendo uma visão complementar da obra do poeta através das

semelhanças e diferenças. Os poemas em prosa cruz-sousianos negam algumas características

da poesia versificada, abdicando da métrica, da rima e da estrofação, mas permanecem as

assonâncias e aliterações.

A utilização da prosa poética e do poema em prosa não implica a abolição do verso, no

sentido de extinção completa. Missal e Broquéis foram publicados com uma diferença de

apenas alguns meses. Broquéis é um livro composto por 54 poemas dos quais apenas sete não

são sonetos. O soneto é um poema de forma fixa que exige concentração e economia de

meios, cuja origem remonta à Idade Média. Adotando uma forma fixa, Cruz e Sousa se

conecta a uma longa tradição. A composição em sonetos, numa perspectiva radical, não seria

conciliável com o poema em prosa. O poema em prosa foi uma revolta contra o monopólio

da versificação francesa. Portanto, não há abolição total do verso na obra de Cruz e Sousa,

mas uma outra opção em relação à poesia versificada é demonstrada no soneto intitulado “O

Soneto”, do livro Últimos sonetos (1997): “Nas formas voluptuosas o Soneto/ Tem fascinante,

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cálida fragrância [...],” “A graça nobre e grave do quarteto [...]”, “Ondula, ondeia, curioso e

belo, [...]” (p.189).

Ao adotar o poema em prosa, o autor tem como objetivo ampliar a noção e a tensão

do fenômeno poético. A poesia versificada não é um tópico negativo, nos poemas em prosa de

Cruz e Sousa. A animosidade do poeta se dirige ao campo literário da época e não poesia à

versificada. Nos textos há uma argumentação em favor da legitimação da prosa como meio

expressivo do fenômeno poético.

Nesse processo, os poemas dialogam com outras instâncias do discurso literário.

Alguns poemas possuem divisões que designam uma passagem de tempo que estaria

relacionada à narração. Alguns fragmentos se constituem como conclusões separadas do

corpo do texto, indicando uma interrupção na enunciação e rompendo com o curso e

desenvolvimento linear do poema.

Os poemas que se aproximam de textos ensaísticos são longos, ameaçando a unidade e

a brevidade, critérios de definição do gênero. “Psicologia do Feio”, “Página Flagrante”

“Mulheres”, “Som” e “Sabor” situam-se em uma fronteira interessante entre a narração e a

reflexão. Porém, a unidade e a tensão são mantidas através das recorrências e paralelismos

fonéticos, sintáticos e semânticos.

Quanto aos aspectos estilísticos, as assonâncias, as repetições, o uso de maiúsculas e

os advérbios terminados em “–mente” são alguns dos recursos que perpassam a poesia em

verso e em prosa. A constante mais relevante na poesia em prosa de Cruz Sousa está na

preocupação sonora e musical que preside a construção dos textos. Essa preocupação persiste

em Missal, através de uma prosa poética atenta à musicalidade, com a predominância de

cadências regulares e simetrias binárias e ternárias. A ênfase dada à sonoridade dos textos é

um recurso que implica uma concepção mística da arte, palavra que é grafada com a inicial

maiúscula, assumindo a noção de arte como revelação.

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Em Missal, assim como na poesia em verso, há uma fusão entre a realidade física e o

estado de espírito interior do eu lírico. Os poemas em prosa apresentam descrições de

paisagens que dialogam com o Impressionismo. A palavra “tom” ocorre na maioria dos

poemas e remete Missal, ao mesmo tempo, à música e à pintura. Há referências ao tom como

“tom de bronze”, “tons violáceos”, “tom de marfim velho”, ou seja, o grau de brilho das tintas

ou cores; o tom também é apresentado como uma maneira particular, um modo de ser ou de

proceder: “o tom soturno dos mineiros”, “o tom do teu Ideal”, “o tom de vida”. Porém, o tom

como a modulação da voz, seu abaixamento ou elevação, não se dá de maneira explícita, mas

na subjetividade que interfere na descrição, modulando a percepção em face da realidade

observada.

A gradação das cores nas descrições e a variação de tons conferem diferentes matizes

às paisagens. Há uma justaposição de tonalidades nas descrições, na tentativa de captar seu

aspecto cambiante, surpreendendo o instante. O vínculo com a música se dá na constante

presença da palavra “ritmo”: “ritmo indefinível”, “ ritmo campestre”, “ritmo simpático do

momento”, “ritmar em claras árias de luz”, “navios num ritmo leve” e “ritmo de música”.

Assim como o poema em verso, os poemas em prosa de Cruz e Sousa utilizam

procedimentos reiterativos, principalmente nas descrições em que a captação dos detalhes faz

com que a progressão temática se processe mais lentamente, inclusive pela aglutinação de

adjetivos do mesmo campo semântico e locuções adjetivas que têm o mesmo substantivo

como referente. Essa aglutinação tem por objetivo a captação em termos concretos da

impressão fugidia da paisagem que o eu lírico tenta angustiadamente apreender.

Os poemas descritivos tornam seus objetos mais rarefeitos e diluídos. Nesses poemas,

há uma oscilação entre o Simbolismo e o Impressionismo. De acordo com Scott:

“O impressionismo literário é – o que não surpreende - uma questão de técnicas lingüísticas, a tentativa de fazer da linguagem o ato perceptivo, em lugar de uma análise do ato, de fazer dela uma atividade da experiência, em vez de uma descrição da atividade” (1999, p.179).

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As descrições impressionistas apresentam uma visão sensorial das paisagens, muitas

vezes a partir de uma visão caleidoscópica da realidade e da paisagem, que é objeto da

observação do eu lírico. A alusão ao Impressionismo apresenta-se inclusive pelos títulos de

alguns poemas: “Visões”, “Perspectiva”, “Ocaso no mar”, “A janela”.

A condição de Assinalado apresenta-se em vários poemas em prosa de Cruz e Sousa,

posição que está de acordo com a perspectiva simbolista compartilhada com sua poesia em

versos (AMARAL,1996, p. 273) . Em “O Assinalado”, em Últimos sonetos (1997), o poeta

indica a condição particular do artista: “Tu és o Poeta, o grande Assinalado/ Que povoas o

mundo despovoado/ De belezas eternas pouco a pouco” (p. 193). No livro de poemas em

prosa Evocações, posterior a Missal, alguns poemas legitimam a busca de novas

possibilidades poéticas. O poeta tentaria demonstrar, através dos poemas em prosa, que ambas

as práticas discursivas são válidas como recursos ou expressões artísticas.

Acompanhada da concepção do artista como “assinalado”, a arte como a busca da

originalidade também assume papel relevante na escritura de Cruz e Sousa. Esse conceito

intensifica-se durante o Romantismo, o “gênio artístico” anseia ser completamente diferente

dos seus contemporâneos, portanto, não se submeteria às regras estéticas e sociais

preestabelecidas

Em função da originalidade, o poeta torna-se mais sensível às sutilezas e à

materialidade da linguagem. A necessidade de atingir a transcendência do significado direto

dos textos poéticos transforma a sua condição de poeta e faz com que seja incompreendido

pelo público. Alguns poemas de Missal dirigem-se à classe literária, que seria qualificada

como medíocre e convencional. Por isso, o poeta se recolhe e, através do seu recolhimento,

procura as relações ocultas entre as coisas, as correspondências.

As semelhanças e diferenças mais significativas em relação a Baudelaire se

concentram nos temas e no discurso metalingüístico em torno do poema em prosa. A

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diferença mais marcante diz respeito à cidade. Nos poemas em prosa de Cruz e Sousa, a

cidade e a vida moderna não têm o mesmo destaque que em Baudelaire e não chegam a se

configurar como uma temática marcante. Ela permanece como cenário ou pano de fundo para

os poemas que refletem sobre a morte ou sobre a condição do artista na sociedade

(AMARAL,1996, p.273).

Quanto ao discurso metalingüístico, como Baudelaire, Cruz e Sousa reivindica maior

liberdade para o artista. As características mais marcantes do poema em prosa seriam

justamente sua plasticidade e variedade, possibilitando maiores opções de criação para que o

artista possa explorar as virtualidades da linguagem. A liberdade é concebida como uma

insurreição às formas dogmáticas e prefixadas.

Na carta de Baudelaire ao seu editor, Arsène Houssaye, o poeta indica as

características do poema em prosa. A carta torna-se um documento especialmente relevante,

visto que Baudelaire é considerado o fundador moderno do gênero. O poeta assinala sua

procura por uma prosa que atenda aos movimentos líricos da alma. Algumas considerações

podem ser feitas a partir dos indícios da carta prefácio de Baudelaire.

No ensaio “Mallarmé em Oxford” (2004, p.89), Roberto Calasso identifica a presença

do que denomina “alexandrinos internos” na prosa de Baudelaire. De certa forma, a pesquisa

confirmaria a concepção poética de Mallarmé quanto à presença da música na linguagem

literária. Baudelaire não teria atingido a prosa sem rima e sem ritmo que pretendia. Portanto,

por via indireta, confirmaria a concepção de Mallarmé sobre a poesia. A prosa não passaria de

um verso quebrado que joga com timbres e rimas dissimuladas. Tudo é verso, mais ou menos,

evidente. Por conseqüência, a diferença entre as versões dos poemas em prosa e em verso de

Baudelaire não residiria na diferença entre prosa e versificação, mas em dois tipos de metro.

No entanto, as considerações sobre o poema em prosa de Baudelaire não se aplicam

indeterminadamente a todos os poemas. Os alexandrinos internos não são encontrados em

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todos os seus textos. Assim, a questão sobre a prosa pretendida por Baudelaire continua em

aberto.

Os Petits poèmes en prose (1869) apresentam uma grande variedade de temas, dentre

os quais a temática e os flashs urbanos merecem destaque. Em Missal, a temática é menos

variada. O tema mais freqüente são as paisagens e os poemas litúrgicos que fundem

características abstratas e concretas, associando-as a um estado interior do eu lírico. O poeta

em prosa, assim como o poeta em verso, possui uma percepção refinada e por isso os textos

exigem leitores dispostos a decifrar a linguagem ambígua e sugestiva dos textos simbolistas

. Digo que nossos simbolistas estavam unidos, tão diferentes, estavam unidos por alguma negação, e essa negação era independente de seus temperamentos e de função de criadores. [...] Eles concordavam em uma resolução comum de renúncia ao sufrágio do número: desdenham a conquista do grande público (VALÉRY, 1991, p.66).

Esse seria, inclusive, um traço de identidade do Simbolismo. Em Cruz e Sousa, essa

oposição será caracterizado pelo confronto que fará ao mundo burguês e à literatura oficial,

representada pela poesia parnasiana.

3.1 O “ÂNGELUS”

O poema em prosa não pode ser definido em termos puramente formais. Ao

desenvolver as figuras de dualidade, Todorov tem como objeto de análise a dimensão

discursiva do gênero. Contudo, a maior questão que o poema em prosa coloca à literatura

ainda diz respeito aos aspectos formais. Um poema em verso com um poema equivalente em

prosa dá ensejo a uma análise que tenha como objetivo identificar os recursos inerentes a cada

prática específica.

Na obra de Baudelaire, a comparação entre o poema em prosa “Um hemisfério numa

cabeleira” (“Un hémisphère dans une chevelure”) e o poema em verso “A cabeleira” (“La

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chevelure”) oferece uma oportunidade de análise produtiva. No poema em verso, Baudelaire

utiliza o alexandrino, que, pela sua extensão, permite agrupar unidades sintáticas inteiras e o

desenvolvimento de frases mais complexas. Os recursos poéticos utilizados estão relacionados

à composição em estrofes, à recorrência de certos elementos (palavras, sons, estruturas

sintáticas) e ao uso da linguagem que permitiram o entrecruzamento do plano da expressão e

do plano do conteúdo. Percebe-se claramente o eco do poema em verso no poema em prosa.

O poema tem sete parágrafos, assim como o poema em verso tem sete estrofes, cujos motivos

se sucedem na mesma seqüência.

Ao contrário dos poemas de Baudelaire, os poemas em prosa cruz-sousianos não

possuem elementos equivalentes tão identificáveis. No entanto, a comparação do poema em

prosa “Ângelus”, de Missal, e do poema em verso “Ângelus...”, de Broquéis (ver Anexos11)

permite algumas considerações sobre a poesia de Cruz e Sousa.

Quanto ao poema em verso, os poemas simbolistas adotam uma cadência menos

marcada, apoiada na quarta sílaba. O metro, portanto, perde o rigor do parnasianismo. Há

deslocamento da cesura, e o alexandrino é dividido em medida ternária. Os efeitos poéticos

desses procedimentos do poema em verso podem ocorrer no poema em prosa, mas não com a

utilização dos mesmos recursos.

O poema em verso “Ângelus” é composto por dez quartetos; o poema em prosa

homônimo é composto por doze parágrafos e não há uma correspondência direta entre os

motivos das estrofes do poema em verso e os parágrafos do poema em prosa. No entanto, o

vocabulário litúrgico ocorre em ambos.

Os títulos são semelhantes, mas não idênticos. A diferença reside no uso das

reticências no título do poema em verso. Essa diferença implicaria uma possível supressão,

indicando um discurso inacabado ou indefinido, de acordo com a “sugestão” simbolista. Os

títulos dos poemas mantêm uma ligação estreita com o título do livro. A palavra

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“missal”refere-se ao livro que contém as preces para a missa, ritual da Igreja Católica, mas

também composições vocais do século XIV ao XVI destinadas à ilustração dos textos

litúrgicos. A palavra “ângelus” designa a prece que se reza ou se canta de manhã, ao meio-dia

e ao entardecer. Há uma diferença operada inclusive na relação entre o título dos poemas e os

respectivos títulos dos livros. A relação entre o poema em prosa e o título do livro é evidente,

mas essas relações não são tão claras no que concerne ao poema em verso. O termo

“broquel” está relacionado ao campo semântico da defesa e proteção, além de indicar uma

preocupação ornamental que orientaria a construção do livro.

No “Prefácio interessantíssimo” de Paulicéia Desvairada (1979), Mário de Andrade

teorizou o verso harmônico, reconhecendo o uso esporádico na literatura. No entanto, Mário

não menciona a poesia de Cruz e Sousa.

Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais [...] fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de não se seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mais harmonias. (ANDRADE, 1979, p.23)

Na introdução de Missal e Broquéis (Martins Fontes, 1998), Ivan Teixeira atribui a

Cruz e Sousa a invenção do verso harmônico. Apesar de algumas manifestações anteriores na

literatura brasileira, como, por exemplo, Gonçalves Dias e Olavo Bilac, coube a Cruz e Sousa

a sistematização dessa modalidade de verso. O poema em verso “Ângelus” é um exemplo da

utilização do verso harmônico, levando-se em consideração que a justaposição de frases

nominais é uma das chaves estilísticas da poesia de Cruz e Sousa. As três primeiras estrofes

do poema não têm verbos, sendo uma seqüência de impressões em torno de um mesmo

motivo, uma combinação de palavras isoladas sem conexão sintática aparente. Além da

escassez de verbos, a reiteração e a enumeração dos adjetivos são procedimentos que têm por

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finalidade enunciar sensações suscitadas pelos objetos, contribuindo para os efeitos poéticos

do verso harmônico.

3.2 O “ÂNGELUS” EM PROSA

O poema em prosa “Ângelus” se inicia com o crepúsculo que é descrito em termos de

cor e luminosidade: “esplendores de púrpuras luminosas [...]”, “sol em sangue [...]” (p. 55).

Do primeiro para o segundo parágrafo, praticamente não há progressão semântica,

configurando-se uma visão fragmentária e reiterativa do objeto da descrição. O parágrafo

seguinte é o mais longo do poema. A atmosfera crepuscular é predominantemente solar, sendo

descrita em termos de “luminosidade” e “opulência” (p.55).

Não há uma relação direta com o título, o vocábulo “Ângelus” está relacionado ao

contexto espaço-temporal, indicando a transição em que o poema se constrói, a passagem do

entardecer ao anoitecer. A “sugestão cultual” dessa hora será compreendida através da

apreensão do fragmento da paisagem em um determinado instante e em uma determinada

perspectiva, estando intimamente relacionada ao aspecto temporal.

O poema em prosa se constrói em uma estrutura dicotômica. O “Ângelus” é

composto por doze parágrafos que assinalam dois momentos diferentes do poema, podendo

ser divididos em duas partes, cada uma composta por seis parágrafos. As duas partes

apresentam uma mesma paisagem em momentos diferentes. Na primeira parte, há termos que

remetem à realeza e ao poder:

Um sol em sangue alastra, mancha prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do Firmamento. Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras luminosas dão uma glória sideral à tarde. E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora, os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que desce, d’envolta com douramentos faustosos, fazem lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos Papas, um festivo desfilar católico de bispos e

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cardeais, através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados (p.55)

As palavras que remetem ao campo semântico da religião estão organizadas em torno

do aspecto majestoso do sol. O poema será a ampliação e desenvolvimento da primeira frase,

que funciona com um tópico textual. A partir dessa primeira declaração sobre a paisagem,

serão feitas digressões que procuram exaurir as virtualidades e as variações que essas

atmosferas acarretam sob outros aspectos.

Os parágrafos seguintes retomam os elementos dos parágrafos anteriores e

acrescentam gradativamente outras modulações do crepúsculo descrito. Essa progressão lenta

intensifica a visão em prismas e fragmentos que o eu lírico experimenta. A paisagem é mais

sentida do que descrita. As frases partem em espirais, em retomadas que as prolongam, dando

voltas em torno da oração principal. É, portanto, uma descrição em que, aos poucos, os

contornos da paisagem são delineados. Em Missal, o sol representa o impulso do ato criativo,

como se observa no poema “Oração ao Sol”. A transformação construída ao longo do poema

se apresenta desde a primeira frase, já que o sol se converte em outro estado: “em sangue”.

A repetição dos verbos confere uma gradação crescente da amplitude e do alcance

da luz do sol. O verbo “manchar” refere-se ao espaço de cor diferenciado no tecido do

Firmamento. O termo “alastrar” implica o alargamento gradual dessa mancha que se propaga,

a difusão dessa cor no espaço. Essa amplitude é reiterada até a saturação, através do advérbio

“prodigiosamente” e do “adjetivo largo”. Pode-se dizer que há também a reiteração da noção

de ostentação que está explicitada no vocábulo “luxuoso” e subtendida no vocábulo

“damasco”, tecido de seda ornado em alto-relevo.

Essa noção será reiterada nos dois parágrafos seguintes. O léxico do segundo

parágrafo pertence ao mesmo campo semântico: “Opulentos, riquíssimos esplendores de

púrpuras e glória” (p. 55). A noção se acentua devido ao adjetivo superlativo absoluto

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sintético, que indica a saturação da opulência. O procedimento da gradação crescente também

se dá no segundo parágrafo, com a seqüência dos adjetivos: “Opulentos, riquíssimos”. Esse

fenômeno também é observado através dos vocábulos “prodigiosamente” e “luminosas” que

trazem, em sua constituição morfológica, marcas de intensificação e abundância através dos

sufixos.

Nos dois parágrafos iniciais, a ênfase é colocada no sol e nos seus efeitos visuais,

sujeitos dos enunciados, destacando os elementos que desencadeiam as analogias e sensações

descritas no poema. A posição temporal é referida de forma mais explícita apenas na ultima

palavra da frase: “tarde”. O momento crepuscular é assinalado de forma mais explícita pela

referência à cor vermelha e ao astro que desce. O crepúsculo é o espaço privilegiado da

ambivalência, lugar de encontro do dia e da noite. Além do contraste entre o que as coisas são

e o que aparentam ser, o próprio objeto é duplo. Há uma coexistência de realidades com

componentes opostos.

O parágrafo seguinte começa com a conjunção “e”, que indica uma relação de idéias

similares colocadas no mesmo plano sintático. Além de marcar uma relação de adição, o

léxico envolvido nessa adição permite compreender conjuntamente uma relação

complementar de conseqüência (confirmada na preposição “pela”). A paisagem delineada nos

primeiros parágrafos tem como efeito uma sugestão cultual. O vocábulo “sugestão” faz parte

do código estético simbolista que se complementa com a linguagem das correspondências. A

sugestão indica que o estado objetivo e o estado de espírito a ele associado não devem ser

revelados aberta e claramente, mas apenas sugeridos. Quanto ao adjetivo “cultual”, pode-se

compreendê-lo em uma dupla direção. O culto supõe uma atitude externa, ligada às

cerimônias e festividades e uma dimensão interna, relacionada ao que se tributa à divindade

em manifestações interiores de consciência.

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Os vocábulos do terceiro parágrafo configuram-se como uma ampliação e

enumeração dos parágrafos anteriores: “[...] os deslumbrantes efeitos escarlates do grande

astro que desce [...]” (p.55). A palavra efeito, nesse contexto, é bastante significativa. Pode

indicar um vínculo com visualidade, no que se refere a uma mudança aparente de coloração,

quando se adiciona a luz branca a um feixe de luz.

Nesse parágrafo, há uma enumeração das evocações insinuadas pela paisagem. Essas

paisagens mantêm relações dúbias que perpassam a religiosidade e a opulência, ambas

insinuadas anteriormente no poema. As imagens religiosas surgem em função de uma

intensificação do aspecto opulento do sol, sugerida pela hora em que a paisagem é percebida.

O sol é captado no momento de culminante esplendor que antecede, antiteticamente, o seu

declínio. Em decorrência desse declínio, há uma mudança no campo semântico do poema, na

segunda parte, abandonando os vocábulos do campo semântico do poder e da suntuosidade. É

interessante observar que na enumeração ocorre uma ordem hierarquizada que remete à noção

de poder indicada anteriormente: “Papa”, “bispo” e “ cardeais.” Essa hierarquia perpassa o

texto como um todo na hierarquização e na seqüência dos elementos percebidos na paisagem

e a ênfase sobre determinados aspectos dessa.

Depois da enumeração de três aspectos hierarquizados da cerimônia, há uma

enumeração ternária de três acidentes. O “festivo desfilar católico” se dá através de vitrais,

que indica a transversalidade e a deformação de uma realidade percebida através de prismas.

O parágrafo seguinte é distinto sintaticamente, já que começa com o verbo indicando

ênfase sobre “Embalsamam”. A relação entre o verbo e o sujeito é muito estreita. A palavra

faz parte simultaneamente do campo semântico da perfumaria e da farmácia. Por isso, os

aromas “são definidos como frescos, sãos e purificadores” (p. 55). O verbo nomeia o

tratamento dado aos cadáveres em decomposição com a impregnação de bálsamos e

perfumes. Além disso, o bálsamo é uma infusão de plantas narcóticas em óleos de aromas

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agradáveis. A palavra “emanados” reforça o caráter volátil dos aromas, provenientes da

“saúde”, ou das “virgindades eternas”, simbolizando o que é imaculado e puro:

Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos, purificadores, como emanados da saúde, das virgindades eternas. Um ar olímpico, talvez o sopro vital de mares verdes e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes a nitidez, o esmalte do aço. Como a Natureza, nesse esmaecer do dia, tem mocidades imortais e como que as forças, as origens fecundas da terra, desabrocham em rosas (p.55).

A mesma seqüência sintática do início do poema é repetida no quinto: “Um sol em

sangue”, “Um ar olímpico”. A partir do contexto, podemos inferir que, nesse caso, o adjetivo

“olímpico” refere-se, por uma derivação por metáfora, ao aspecto grandioso e sublime do “ar”

da tarde. Neste caso, a palavra ar possui uma dupla orientação, já que pode corresponder ao

espaço que circunda a superfície terrestre e ao aspecto da percepção do ambiente.

Nesse parágrafo, inicia-se a gradual transição que se apresentará de modo mais

concreto no sétimo parágrafo, principalmente através do verbo e do advérbio “eterifica

harmoniosamente”. O verbo “eterificar” implica converter em éter, que diz respeito a uma

quinta-essência, supostamente um fluido imaterial que permearia todo o espaço. O elemento

etéreo que formaria as esferas celestes, distinto por sua quase imaterialidade das quatro

propriedades naturais, que seriam água, terra, fogo e ar. O éter simboliza um elemento de

caráter puro, essencial e dominante que comporia os seres vivos, possuindo inclusive

propriedades curativas. Há, portanto, uma tensão no que concerne à presença desse elemento:

“a curva das montanhas” que é “eterificada harmoniosamente” se torna nítida, com “esmalte

do aço”. O aço indica uma rigidez que contrasta com o aspecto etéreo da paisagem. A nitidez

se refere à luminosidade e à transparência, por derivação de sentido, ao inteligível.

Há uma ampliação semântica no que diz respeito ao sujeito que passa a ser a

“Natureza”, que, paradoxalmente, no “esmaecer do dia”, no momento em que perde a cor e o

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vigor, tem “mocidades imortais”. No momento de declínio, a Natureza parece não ter fim, ser

infindável e permanente, não estando sujeita à morte. A observação da paisagem fornece os

elementos para uma reflexão sobre a Natureza em sua totalidade, ampliando o campo

semântico inicial.

No sétimo parágrafo, há uma transição entre as duas partes do poema. O declínio da

paisagem aos quais os fragmentos anteriores fazem menção é indicado mais explicitamente. A

divisão do poema mostra-se claramente na retomada do eixo principal: “O rubente esplendor

solar”. O uso do artigo definido salienta essa anáfora, já que o esplendor foi descrito nos

trechos anteriores.

A referência à veludosa suavidade faz uma retomada do damasco do primeiro

parágrafo, já que alude ao aspecto táctil da imagem relacionada à maciez e à suavidade, à

textura ou à aparência do veludo. Nesse contexto, pode-se dizer que o poema transita de um

tecido a outro. O Firmamento, primeiramente concebido como um damasco converte-se em

um veludo. A transição, contudo, é gradual como indica o advérbio “gradativamente”. Esta

noção é reiterada com o verbo “smorza”, que se refere ao campo semântico da música,

indicando uma diminuição gradual do som até extingui-lo, criando uma relação que se

aproxima do pleonasmo, “gradativamente gradual”. Pode-se dizer que essa passagem gradual

é decrescente, já que a cor se transforma de vermelho para cor-de-rosa, sendo, portanto,

dégradé. Essa gradação atinge também o aspecto tátil, considerando que o damasco é um

tecido que possui alto relevo, diferente da maciez do veludo.

A suavidade se propaga no parágrafo seguinte, principalmente no sentido de indicar

ausência de movimentos e tranqüilidade: “Serenamente, lentamente, uma pulverização

neblinosa desce das amplidões infinitas...” (p.56) O termo “pulverização”, através do sufixo,

indica um processo, acentuando a noção de graduação e de dissolução da paisagem. Essa

dissolução é acentuada pela grande dimensão da paisagem e pela falta de delimitação de seus

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contornos: “[...] neblinosa; [...] amplidões infinitas ...” Esse espaço sem limites é confirmado

pelo uso das reticências, indicando que a paisagem não tem fim, ou melhor, trata-se de uma

paisagem cujos horizontes são inconclusos. É interessante observar que o “grande astro que

desce” (p.55), do segundo parágrafo, é substituído, por uma “pulverização neblinosa” que

desce. Desse modo, compreende-se que a metamorfose da paisagem opera em uma relação de

verticalidade, de cima para baixo:

Serenamente, lentamente, uma pulverização neblinosa desce das amplidões infinitas... Névoas crepusculares envolvem afinal a imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios. Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos vales e das colinas adormecem além, repousam num fluido noctambulismo... Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora, canta amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e mudas. Canta para as estrelas! E parece que a sua voz, errante na vastidão infinita, vai inundada do mesmo perfume original que a alma viçosa e branda dos vegetais exala na Noite...(p.56).

Ocorre o término desse processo no parágrafo subseqüente: “Névoas crepusculares

envolvem afinal a imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios”(p.56). A atmosfera

que se inicia com contorno e recorte, finaliza com toda a paisagem contida na atmosfera

crepuscular, abrangendo-a e cingindo-a completamente. Uma paisagem referida como

“imensidade”, um espaço incomensurável. O termo “recolhimento” coloca-se em uma relação

contrária à imensidade, demonstrando uma tensão entre concentração e dispersão. Ao mesmo

tempo que acentua uma recusa do mundo exterior, citando um espaço sintomático da recusa

do mundo. A paz dos ascetérios indica que essa concentração é espiritual, relacionando-se ao

isolamento e à vida ascética.

Em seguida, a paisagem é contaminada pelo “fluido noctambulismo”, que se

expande como um líquido. As paisagens enumeradas combinam verticalidade e

horizontalidade, através da indicação subjacente da altitude: “campos”, “vales” e “colinas”.

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Pode-se dizer que, à medida que a paisagem se eteriza, aumenta o grau de

subjetividade do poema. Há, portanto, um crescendo de tensão, que culmina na presença de

uma voz de mulher. Só quando a paisagem adormece, a voz de mulher é percebida. A

dissolução da paisagem e do mundo faz com que as fronteiras entre realidade e sonho tornem-

se mais frágeis. O poema volta-se novamente para o Firmamento, mas não é o sol ou a

neblina que desce, mas uma voz que se eleva para as estrelas. Desse modo, a perspectiva

ainda é vertical, porém não mais de cima para baixo, descendente, mas de baixo para cima,

numa perspectiva ascendente.

Esse cantar amorosamente para as estrelas pode ser compreendido como uma alusão

ao lirismo. O crescendo torna-se visível, principalmente com a repetição da frase “Canta para

as estrelas!” que, além de repetida, é intensificada com a exclamação. A voz da mulher “vai

inundada”, referência à fluidificação da paisagem. Ao contrário dos verbos anteriores no

presente do indicativo, o verbo nessa frase, embora no presente, indica uma ação durativa,

uma ação que está ainda em desenvolvimento. A sua voz se dispersa na vastidão infinita na

Noite, finalizado com reticências para reiterar o caráter infinito da paisagem e a ausência de

limites.

O texto apresenta as sensações simultâneas que a paisagem desperta no eu lírico,

embora ele não esteja textualmente explicito. O texto descreve as transformações progressivas

na paisagem e os efeitos na sensibilidade do eu lírico. A paisagem não contém alusões

específicas porque é desligada do lugar, signo cultural da natureza. Essa relação se dá de

maneira diferenciada no poema em prosa baudelairiano “O crepúsculo da tarde” (“Le

crépuscule du soir”). Nesse poema, está implícita a presença de uma multidão através de um

rumor subjacente à atmosfera crepuscular. O poema também transita do entardecer ao

anoitecer.

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No poema, não existe um eu lírico explícito, ele está subjacente como depositário de

um ponto de vista, através das marcas da subjetividade que indicam que a mesma paisagem,

com tonalidades diferentes, referem-se às disposições interiores do eu lírico. A paisagem

existe para o eu lírico como um suporte para simbolizar a progressão dos sentimentos,

objetivando, de alguma forma, uma subjetividade volátil e tornando sensíveis às analogias

entre a alma e o mundo, através do reflexo transformador dos fenômenos. O poema constitui-

se como uma penetração do eu lírico na paisagem e penetração da paisagem no eu lírico,

tecendo analogias entre a alma e a paisagem, através da penetração da alma nas coisas. Há

uma fluidificação da paisagem e uma tentativa de sensibilizar a matéria, tentando captar o

sentido do espetáculo natural e uma explicação do universo.

Alguns modalizadores acentuam o caráter artificial da paisagem e surgem como

uma elaboração do eu lírico: “Um ar olímpico, talvez o sopro vital” (p.55); “Névoas

crepusculares envolvem afinal a imensidade, [...]” (p.56), “a sugestão quase religiosa da hora”

(p.55). Esses modalizadores acentuam a incerteza e a posição de quem descreve em relação ao

seu próprio enunciado. O poema parte de uma matriz descritiva para, através das analogias,

fazer uma reformulação do tema título “Ângelus”. Para isso, é feita uma decomposição do

objeto da descrição em suas partes ou efeitos. Portanto, através da situação inicial do primeiro

parágrafo, os componentes dessa paisagem se re-elaboram criando um novo espaço, o espaço

do poema.

Nessa paisagem, no espaço do poema, temos uma tentativa de restauração do

universo analógico, através das correspondências entre o poema e o cosmos, relacionando

coisas visíveis, tangíveis e sensíveis e procurando a ordem misteriosa do universo. Através da

observação da paisagem procura-se chegar às verdades primordiais: “Natureza”, “origens

fecundas da terra”, “forças”, “perfume original” (p.56).

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O sétimo parágrafo acentua a dualidade da paisagem assinalando o momento de

declínio do sol: “Um rubente esplendor solar gradativamente smorza num cor-de-rosa leve,

de veludosa suavidade” (p.55, grifos meus). Trata-se, portanto, de um parágrafo de transição

que conecta as duas partes, retomando o eixo principal do poema.

Pode-se falar em uma isotopia elaborada a partir das palavras escritas em maiúsculas

no poema: “Firmamento”, “Natureza” e “Noite”. O poema em prosa teria a visualidade como

dominante, aliada a uma maleabilidade descritiva, na qual luz e sombra revelam as paisagens

psíquicas. No oitavo parágrafo, a atmosfera torna-se mais vaporosa em função do léxico. A

predominância de parágrafos curtos acentua a visão fragmentária, aglutinando as impressões

vivenciadas pelo eu lírico. Esse procedimento poderia estar relacionado à busca dos efeitos do

verso harmônico do poema em verso. De acordo com Ivan Teixeira (1993), o verso

harmônico utilizaria palavras isoladas sem conexão sintática, entre outras possibilidades.

3.3 O “ÂNGELUS EM VERSO”

A concisão do poema em verso se contrapõe à distensão do poema em prosa. Onde o

poema em verso sugere, o poema em prosa descreve e estende. O léxico que remete ao vago

e ao impreciso já seria um indício da relevância da sugestão no poema. As palavras escritas

em maiúsculas “Ângelus”, “Flor do Sol”, “Mistério”, “Estrela Polar dos Simbolismos”, “Lua”

e “Santa Tereza”, no poema em verso, não coincidem com o poema em prosa. Como o uso

das maiúsculas é um recurso morfossemântico, essa diferença acentua as divergências entre os

dois poemas, que, no entanto, adotam um vocabulário litúrgico.

Ah! lilases de Ângelus harmoniosos, Neblinas vesperais, crepusculares, Guslas gementes, bandolins saudosos, Plangências magoadíssimas dos ares... Serenidades eterais d’incensos, De salmos evangélicos, sagrados,

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Saltérios, harpas dos Azuis imensos, Névoas de céus espiritualizados. Ângelus fluidos, de luar dormente, Diafaneidades e melancolias... Silêncio vago, bíblico, pungente De todas as profundas liturgias (p. 190).

Na primeira estrofe do poema, podemos notar a grande diferença em relação ao poema

em prosa, além das distinções gerais entre prosa e verso. O verso não é um mero artifício

tipográfico, implica a transformação no pacto de leitura do texto com o seu receptor. No

verso, os espaços em branco são significativos. No poema em verso, existem efeitos

estilísticos que não são possíveis na prosa na mesma intensidade. As rimas e a métrica

proporcionam uma simetria que não acontece no poema em prosa. A pausa entre os versos

separa o que a prosa reagrupa. O Ângelus é evocado a partir de sensações. A música é

dominante no poema, como indicam as alusões a elementos musicais. A dominante no poema

em prosa é a visualidade. O canto surge apenas no final do poema, em uma espécie de

momento epifânico, o momento em que o lirismo atinge um ponto de intensidade máxima, em

um crescendo de subjetividade.

O poema inicia-se com uma interjeição, indicando um estado emotivo e um vivo

sentimento diante de um acontecimento. Diferente, portanto, do poema em prosa, que começa

com uma frase declarativa que funciona como uma idéia núcleo do poema. No poema em

prosa, a exclamação surge num crescendo de subjetividade, quando surge a figura feminina,

ressaltando a função emotiva:

A chamada função emotiva ou “expressiva”, centrada no remetente, visa a uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que se está falando. [...] O estrato puramente emotivo da linguagem é apresentado pelas interjeições (JAKOBSON, 1995, p.124).

A estrofe tem início com uma exclamação, indo de encontro à oração declarativa do

poema em verso. A ênfase é dirigida para o título do poema, que surge na primeira linha,

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enquanto no poema em verso nem sequer é citado uma única vez. Desde a primeira estrofe

percebe-se a relação com a música através das referências aos instrumentos musicais “gusla”

e “bandolim” e do adjetivo “harmoniosamente”. Essa junção com a música só será

apresentada no poema em verso bem mais posteriormente. Além dessas referências à música,

existe uma alusão a esta na elaboração do texto, através da busca da poesia pura subjacente ao

poema.

A segunda estrofe do poema em verso apresenta alguns elementos que estão presentes

no poema em prosa, como, por exemplo, a enumeração das sensações evocadas pelo Ângelus.

Os incensos indicam uma relação vertical com a religiosidade e se remetem ao aroma que

deles emana. A sua fumaça ou perfume tem a função de elevar uma prece ao céu, ligando o

homem à divindade.

Uma série de procedimentos que perpassam a obra em verso e em prosa, como, por

exemplo, os agrupamentos binários, que denotam uma busca de simetria, apresentam-se na

estrofe seguinte. A hora do Ângelus é, assim como no poema em prosa, marcada por uma

atmosfera aérea e diáfana, fixando o momento de luminosidade imprecisa, é a hora da

transição. A preposição “entre” é um indício desse estado intermediário, que pode ser

compreendido em relação ao tempo e ao espaço.

É nas horas dos Ângelus, nas horas Do claro-escuro emocional aéreo, Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras Ondulações e brumas do Mistério.

Na estrofe, há uma referência às “horas do Ângelus”, que permite uma aproximação da

hora “quase religiosa” do poema em prosa. O poema em verso tem mais explicitada a noção

de mistério, que é menos intensa no poema em prosa. O mistério está reiterado nas palavras

“labirinto” e “sonho”. O labirinto se prenuncia ao mesmo tempo como o sagrado e o perigoso.

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Ele é colocado em lugar para proteger algo, portanto, também é um indicador do sagrado. As

horas do ângelus são o prenuncio do surgimento da Flor do Sol que é enunciada na quinta

estrofe. A lua é privada de luz própria, e sua luminosidade é um reflexo da luz do sol. Há uma

diferença no que diz respeito à lua que não existe no poema em prosa, já que há referência

apenas à noite e às estrelas. No poema em prosa, a ênfase é colocada sobre o sol; no poema

em verso, a ênfase se concentra na lua, em um lirismo alvar dominado pela luz dos astros e

pela vaguidade, pela abstração e pela configuração ondulante dos elementos.

Surges, talvez, do fundo de umas eras De doloroso e turvo labirinto, Quando se esgota o vinho das quimeras E veneno romântico do absinto. Apareces por sonhos neblinantes Com requintes de graça e nervosismo, Fulgores flavos de festins flamantes, Como a Estrela Polar dos Simbolismos (p.191).

A segunda estrofe, principalmente o terceiro verso, tem conexão mais estreita com o

poema em prosa, através das referências à luminosidade e à cor vermelha. Na sétima estrofe o

eu lírico é enunciado claramente, que sente os tons siderais da lua. No poema em prosa,

acentuadamente descritivo, o eu lírico não se explicita, mas jaz subjacente à toda visualização

da paisagem. O eu lírico surge citado textualmente nessa estrofe, fenômeno que não ocorre no

poema em prosa.

Num enlevo supremo eu sinto, absorto, Os teus maravilhosos e esquisitos Tons siderais de um astro rubro e morto, Apagado nos brilhos infinitos. O teu perfil todo o meu ser esmalta Numa auréola imortal de formosuras

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E parece que rútilo ressalta De góticos missais de iluminuras (p. 191).

A voz de mulher do poema em prosa se contrapõe à mulher textualmente citada: Santa

Teresa. Considerando o título do poema, a alusão a Santa Tereza e à recorrência do título do

poema, pode-se confirmar que o poema em verso está mais condensado, não tendo digressões

como o poema em prosa.

Cruz e Sousa é um fanático da Arte, como as Santas Teresas são as fanáticas da Religião [...]. A religiosa é freqüentada de visões extravagantes, tem atitudes e gestos que vos parecem irrisórios, correspondentes a uma visualidade enferma, por conseguinte, fatalmente errada, o artista é cheio de concepções extravagantes também, e de expressões desprositadas, [...]. (VITOR, 1969, p.18).

A mulher que canta no poema em prosa, reza no poema em verso. A oração, uma

súplica dirigida a Deus, é bastante diferente de cantar que não está diretamente relacionado à

religiosidade. Na última estrofe do poema em prosa, as últimas palavras são Santa Tereza; no

poema em prosa é a “Noite”.

Nos êxtases dos místicos braços Abro, tentado de carnal beleza... E cuido ver, na bruma dos espaços, De mãos postas, a orar, Santa Tereza!...

Considerando as proposições acima, pode-se dizer que o que diferencia o poema em

verso do poema em prosa diz respeito, sobretudo, à linearidade. No poema em prosa, temos

uma paisagem em processo. Existe uma linearidade, mesmo que subjugada pela musicalidade.

A figura geométrica que simboliza a prosa é a linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante,

mas sempre para adiante e com uma meta precisa (PAZ, 1990, p.12).

O poema em prosa aborda a paisagem de modo fragmentário, mas é possível perceber

a seqüência na transformação de seus aspectos. No poema em verso, essas identificação não é

possível, uma vez que a linearidade não está ordenada em uma seqüência lógica. De certa

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forma, nos limites da prosa poética, o poema em prosa seria mais coerente, sendo possível

identificar as etapas da transformação. No poema em prosa, ao descrever a atmosfera que

envolve a tarde, ocorre uma digressão que não é permitida no poema em verso, devido a sua

condensação. Essa digressão compõe o maior parágrafo do poema que tem como idéia central

a “sugestão cultual”.

A tarde torna-se “Noite”. As imagens da paisagem são rarefeitas, no segundo

momento do poema em prosa, e indicam uma personificação das forças etéreas e misteriosas

que circundam o homem, como a voz da mulher que canta para as estrelas. Embora a

paisagem interior esteja refletida na paisagem exterior, nenhum desses elementos tem um

caráter autônomo, mas representa os vários tons e flutuações do estado de espírito do eu lírico.

O processo de declínio da paisagem denota o tempo e a sua passagem, colocando o eu lírico

que observa a paisagem diante dos dois pólos da existência humana. A transformação da

paisagem não é pressentida no poema em verso.

Ao produzir metáforas polivalentes, o poema em verso indica uma idéia mesclada de

todas as impressões que a paisagem sugere. No poema em verso, não se identifica uma

seqüência lógica, que possa dividir o poema dicotomicamente, como ocorre no poema em

prosa. O poema em verso não destaca, em um primeiro momento, o esplendor do sol, para,

depois, debruçar-se sobre o seu declínio e o surgimento de uma outra paisagem, embora

objetivamente seja a mesma. O poema em verso não apresenta as figuras de dualidade de

forma tão esquemática como o poema em prosa. No poema em prosa, a seqüência lógica está

razoavelmente visível na seqüência das palavras escritas em maiúsculas: “Firmamento”,

“Natureza” e “Noite”. A noite surge como uma intrusa, à espera na sombra, está presente em

todos os lugares, afastando-se da força vital, indicada pela palavra “Natureza”.

O poema em prosa, além da prosa como fator discriminador, tem como aspecto

considerável a contaminação do Impressionismo; o poema em verso tem como dominante o

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Simbolismo, como pode-se perceber através da referência à música, identificável desde a

primeira estrofe e que está mais diluída no poema em prosa. No poema em verso, a realidade

se dilui, considerada como realidade percebida, não como realidade determinante.

No entanto, é possível encontrar pontos de intersecção do poema em verso e do poema

em prosa. A seleção lexical tem base no simbolismo: “Névoas crepusculares”, “Neblinas

vesperais”, “crepusculares”; “rútilo”, “harmoniosos”, “harmoniosamente”, “neblinas”,

“astro”, “fluido”, entre outros. Em ambos os poemas, há uma:

“dissolução das formas exteriores dos objetos, diluindo-os na bruma do sonho, e terminando com a volta à matéria sutilizada e preciosa, cintilação de cristal ou de jóia, certamente encarnação da Forma Inteligível, mas encarnação em algo que nada mais tem de sensual e que nada retém do calor do concreto (MURICI, 1962, p.165).

No poema em prosa, a repetição do verbo se dá apenas no ultimo parágrafo. Os

verbos são agrupados para indicar uma gradação: “contorna-as, recorta-as, dá-lhes a nitidez,

[..]” (p.55). O número de verbos no poema em prosa é bem maior do que os do poema em

verso. A retomada dos verbos acontece em duas ocasiões no poema em verso, indicando uma

relação mais estreita com a musicalidade do poema em verso e uma menor concentração no

poema em prosa. Em alguns momentos, comparando os dois poemas, percebe-se a

concentração das imagens no poema em verso e a expansão do poema em prosa. O poema em

verso apresenta: “Com o segredo da lua nas paisagens” (p.191). O poema em prosa tem uma

enumeração dessas paisagens: “Os campos, as terras de lavoura, a vegetação dos vales e das

colinas adormecem além, [...]” (p. 56). Os paralelismos não são tão coesos como no poema

em verso.

A prosa do poema de Missal é notacional e poética, uma tentativa de captar o

instantâneo. O poema em prosa não utiliza os recursos da poesia versificada (metro rima,

estrofe). Entretanto, não renuncia ao ritmo, à metáfora, à comparação e aos paralelismos

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fônico, sintático e semântico. O poema em verso não pode ser denominado como uma

descrição. Na descrição da paisagem do poema em prosa o eu lírico não é referido de maneira

evidente. Apesar de ser uma paisagem sentida, a impessoalidade é predominante. No poema

em verso, o eu lírico surge textualmente de maneira mais explícita na sétima e décima

estrofes: “Num enlevo eu sinto, absorto; Abro, tentado de carnal beleza [..]. E cuido ver, na

bruma dos espaços,[...]” (p.191). Os verbos do poema em prosa têm como sujeitos o sol que

“alastra, mancha”, os aromas frescos que “embalsamam”, uma pulverização neblinosa

“desce”, o rubente esplendor solar “smorza”, névoas crepusculares “envolvem”, entre outros.

O poema em verso tem como foco, à primeira vista, o espetáculo da natureza.

A partir dessas considerações, observa-se que os poemas em prosa e em verso foram

construídos sob os mesmos princípios estéticos. Porém, não são duas “versões” de um

mesmo poema, cada um contém os procedimentos diferenciados para estabelecer os fatores de

poeticidade. A característica comum mais evidente está na prioridade que é dada à

musicalidade. O poema em prosa não dispõe do verso harmônico, mas a prosa poética e a

prosa notacional criam uma maleabilidade na sintaxe. O poema em prosa, embora escrito em

prosa poética, não possui as mesmas simetrias que os poemas em verso.

A adjetivação abundante de Broquéis funcionou como um argumento a favor da

qualificação da obra. No entanto, o julgamento de Missal baseia-se nos mesmos argumentos

da crítica contemporânea ao lançamento do livro. Esses argumentos que justificam a

modernidade de Broquéis também justificam a classificação de Missal como obra inferior à

forma poética mais canônica. A análise mais aprofundada dos dois poemas contesta os

julgamentos que enxergam no poema em prosa apenas um “gênero inviável”.

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CONCLUSÃO

O estudo das relações entre poema em prosa e a poesia versificada está muito

distante de um esgotamento teórico e crítico. Ao longo do trajeto do poema em prosa,

constataram-se as lacunas das definições e a comunicação que o poema em prosa favorece,

ampliando suas virtualidades poéticas e dificultando definições estanques.

As produções em prosa de Cruz e Sousa atendem aos critérios de poeticidade e à

poética do gênero ao qual pertencem. Ao longo do trabalho, pode-se perceber que o poema

em prosa traz intrinsecamente uma estrutura centrada na oposição. O poema em prosa de Cruz

e Sousa, fundamentado em relações analógicas, traz, de maneira subjacente, figuras de

dualidade, gerando um princípio de tensão que comanda a organização do texto. Em seguida,

observou-se que a crítica brasileira deteve-se mais nas características do Simbolismo do que

da poética do poema em prosa. As críticas feitas ao poema em prosa de Cruz e Sousa foram

relativizadas, indicando que os princípios críticos que fazem com que uma obra seja

depreciada podem funcionar como um argumento para a valoração de uma outra obra, em um

outro contexto. As características tidas como um fator de inferioridade podem se transformar

em um critério de valoração.

Enfim, pode-se observar as relações profícuas entre prosa e poesia versificada. A

poesia versificada de Cruz e Sousa mantêm relações com os poemas em prosa. Desse modo,

as considerações feitas sobre a produção de Cruz e Sousa solicitam estudos mais

aprofundados e concentrados nessa outra esfera de seu discurso poético. O esquecimento do

poema em prosa de Cruz e Sousa faz parte de um contexto mais amplo da crítica literária que

ainda demonstra resistência a esse novo gênero.

Ampliando a questão para a literatura brasileira, nota-se a necessidade de um estudo

que abranja a prática do gênero na literatura brasileira. Apesar de não ter uma definição rígida

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e preestabelecida, observação consensual entre os estudiosos do assunto, o poema em prosa

existe como prática literária. Ele não é regido por grandes oposições genéricas, oferecendo,

assim, dificuldade na sua delimitação referente a outras formas literárias, com as quais

dialoga.

A prática do poema em prosa na literatura brasileira não foi objeto de uma

investigação cuidadosa, até o momento, sendo considerado por alguns críticos uma forma

pouco significativa. Esse posicionamento, contudo, não tem se fundamentado em critérios

suficientemente válidos. O poema em prosa é gênero plástico, polimorfo e, sobretudo, pouco

estudado, que persiste enquanto produção literária. Estudando a difusão do poema em prosa

no Brasil, na poesia moderna, pode-se chegar à constatação da forte presença do gênero,

superando a negligência da crítica canônica e oficial.

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ANEXOS

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ANEXO 1

Oração ao Sol

Sol, rei astral, deus dos sidérios Azuis, que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento.

Permite que um instante repouse na calma das Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio das igrejas góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas.

Concede, Sol, que os manipansos não possam grotescamente, chatos e rombos, com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas, que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos da Infalibilidade, para aqui não venham com solene aspecto abençoador, babar sobre estas páginas os clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica-megatério.

E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros, broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro como incisivas pedradas fortes.

Livra-me tu, Luz eternal, desses argumentos coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira das armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões nas selvas africanas.

Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! a miraculosa caixa de música dos discursos formidáveis! E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente, até o riso alastrar, derramar-se, dispersar-se enfim pelo Universo e subir, nos fluidos do ar, para lá no foco enorme onde vives, Astro, onde ardes, Sol, dando então assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao teu clarão.

Pelo cintilar de teus raios, pelas ondas fulvas, flavas, ó Espírito da Irradiação! pelos empurpuramentos das auroras, pela clorose virgem das estepes da Lua, pela clara serenidade das Estrelas, brancas e castas noviças geradas do teu fulgor, faculta-se a Graça real, o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar…

Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos paços esplendorosos e lá para sempre vibre, se eternize através das forças firmes, num álacre, cantante, de clarim proclamador e guerreiro.

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ANEXO 2

Dolências...

Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo da Arte, te sentirás, um dia, velho, fatigado, como um peregrino que percorreu ansiosamente todas as vias-sacras torturantes e perigosas.

Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho esmaecido, vago, brilho branco e virgem das estrelas glaciais.

A tu’alma será condenada à solidão e silêncio, como certas formosuras claustrais de monjas que brumalmente aparecem por entre as celas, deixando no espírito de quem as vê, quase que o mistério de um religioso esplendor...

E, já assim emudecido e gelado para as nobres sensações do Amor, ficarás então como se estivesses morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos – sem nenhuma dessas expressões físicas que tornam os seres humanos harmoniosamente perfeitos.

Em vão te recordarás da doçura de mãos aveludadas e brancas, da amorosa diafaneidade de uns olhos claros...

As tuas Iedos, as tuas Lésbias e as tuas Aldas, fluidamente te passarão na memória, alvas e frias... Por infinitamente tratar de idéias como astros prodigiosos, sonhaste com os opulentos doirados

prestígios da Glória; pensaste na Elevação como na solenidade augusta das montanhas. Mas, velho, já, lembrarás um sol apagado, cuja forma material poderá persistir talvez ainda e cuja

chama fecundadora e ardente se extinguirá para sempre... Não crer em nada, não sentir nada, não pensar nada, será tua filosofia da senilidade. E, neste estado do

ser, mais cruel que o Budismo, deixarás, como disse Heine, que a morte vá enfim tapar-te a boca com um punhado de terra...

No entanto, pela tua retina cansada, desfilará tudo o que tu outrora amaste com intensidade: os ocasos afogueados, de verberações de metal sobre o mar e sobre o rio. Os finos frios radiantes, de azul resplandecente. A Lua, como estranha rosa branca, perfumando o ar, derramando lactescências luminosas nos campos alfombrosos. Os navios, as escunas e os iates, todas asa embarcações admiráveis, que fazem sonhar, balouçando nas ondas, em relevos nítidos, em gravuras esmaltadas ao fundo dos horizontes.

Tudo o que pensaste, o que trabalhaste pela Forma, com nervos e com sangue; tudo o que te deixou despedaçado, na amargura das lutas com o estilo e a frase, cantará saudosamente no teu peito, cantará grandioso, solene, como os Salmos de Salomão.

Com essa natureza mística, quase religiosa, que possuis, o Mundo te parecerá uma catedral vastíssima, colossal, de biliões e biliões de torres de cristal, de safira, de rubim, de ametista, de ônix, de topázio e d’esmeralda.

E, à hora longínqua de profundo luar glacial e imóvel, de cada uma dessas torres surgirá um espectro branco dos teus sonhos, como um ronda fantástica, e os sinos plangentemente vibrarão ao mesmo tempo, com tristezas noturnas e lancinantes, por todo o sepulcramento dos teus Ideais.

E tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda, ficarás egrégio vencedor, imortal, eterno, só e sereno, ao alto, sob as estrelas eternas...

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ANEXO 3

Sugestão

Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos, embora, tens um grande espírito sugestivo. Os jornais andam cantando a tua verve flamante, pertences a uma seita de princípios transcendentais. Na tua terra os cretinos gritam, vociferam. Não sabem o que tu escreves. Não entendem aquilo… Palavras, palavras, dizem. Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão profunda firmeza artística, que não te abalas com a vozeria

que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria viva das idéias.Não recuas, escreves.

Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto, original, surpreendente, vais arrancar à nevrose da composição, encrustar, como pedrarias, na escrita cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras com verdadeira êxtase de uma devotada seita religiosa.

E, apesar das frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso, conquanto simules o contrário, sempre te desvanece.

Então, para que o teu esplendor seja maior e mais completo, andas a preparar um livro de estilo nobre e que, segundo pensas nas horas de nervosismo psíquico, há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba triunfante dos imbecis.

E assim, com a tua elevação mental e disciplina, julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a pompa das idéias!

O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o mais elegante coupé tirado por éguas de raça, de amplas ancas carnudas e luzidias, cheias de nervosidades, de altivezes bourbônicas, com um fino sentimento mulheril nas linhas, tudo isso, Artista, não vale a página mais simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação de estilo, que tu, por acaso, escrevas.

Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do mundo pelo livro que daí a meses deve entrar para o prelo. Os reclamos soam pelos jornais, como clarins. Andam já longe. Caminham. Chega já ao domínio de todos

a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra. Vai aparecer, brevemente, cintilante, a duas cores, em tipos Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin, nas lustrosas vitrinas, acendendo um clarão em torno do teu nome, como um facho de fama.

Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo. Sentas-te na poltrona junto à orquestra. Num intervalo suas demasiadamente. Estás abafado do calor da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes. Um sorvete, um gelado.

E, seguro de teu vigor de mocidade, da tua saúde e do radiante rubor do teu rosto, que é admirado na rumorosa cidade onde habitas, tomas, sem o maior receio, o gelado que te trazem.

Daí sentes-te logo como que atordoado. Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a espinha. Vertigens cálidas fisgam-te a cabeça. Ardem-te os

olhos e se umedecem sob a luz flagrante e crua da ribalta; mesmo o gás te dá mais febre; parece que te estalam as fontes, latejando fortemente – e tu não podes mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala iluminada e cheia de multidão matizada que formiga e aplaude.

Então, um de teus amigos te conduz à casa, já abatido e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias, corre a dolorosa notícia, – ó amargurado Espírito moderno! – de que morreste de uma pneumonia aguda…

E após a tua morte ainda se haveria de contentar o teu merecimento. Muitos diriam: -Também não deixou um livro que significasse a sua individualidade. A que outros responderiam: - Mas deixou escritos nos jornais. - Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o curto espaço de um minuto ou de um segundo e, muitas

vezes, até sem os lermos, com os mais resplandecentes pensamentos contidos em suas colunas, os deitamos pela janela fora… Um livro sintetiza qualquer individualidade. Não se pode acreditar, portanto, não há documentos que atestem, criticamente, o valor intelectual desse escritor que morreu.

Daí então, só no preciso decurso de tempo para o teu cadáver apodrecer na soberana indiferença da terra, aparece o teu livro, aquele mesmo onde tanto trabalhaste, que fecundaste de idéias, onde tanto derramaste o vivo

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poder de teu cérebro, onde consumiste uma porção de sangue e de nervos, assinado, e com outro título, por uma vulgaridade batráquia, na qual toda a gente acredita, e, oh!! comparando-a contigo, acha-a mais superior, extraordinária, sem igual até.

E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra, sem nunca teres vencido! com ironia dessa glória de néscio a rir de ti, perpetuamente, à chuva, aos vendavais e ao sol, do alto da tua cova!

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ANEXOS 4

Umbra

Volto da rua. Noite glacial e melancólica. Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque nem a lua, nem as estrelas, ao menos fulgem no

firmamento. Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério. Faz frio… Cai uma chuva miúda e persistente, como fina prata fosca moída e esfarelada do alto… À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros,

vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade.

A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos, revolta e calcárea, com imensa quantidade de pedras brutas sobrepostas, dá idéia da derrocada de terrenos abalados por bruscas convulsões subterrâneas.

Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica onde se calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na morte…

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ANEXO 5

Núbia

Amar essa Núbia – vê-la entre véus translúcidos e florentes grinaldas, Noiva hesitante, ansiosa, trêmula,

tê-la nos braços como num tálamo puro, por entre epitalâmios; sentir-lhe a chama dos beijos, boca contra boca, nervosamente – certo que é, para um sentimento d’Arte, amar espiritualmente e carnalmente amar.

Beleza prodigiosa de olhos como pérolas negras refulgindo no tenebroso cetim do rosto fino; lábios mádidos, tintos e sulferinos; dentes de esmalte claro; busto delicado, airoso, talhado em relevo de bronze florentino, a Núbia lembra, esquisita e rara, esse lindo âmbar negro, azeviche da Islândia.

O seu sangue quente, aceso em púrpuras de luxúria, através da pele sombria e veludosa, recorda avermelhamentos de aurora dentre uma penumbra de noite, como o deslumbramento boreal das regiões polares…

No entanto, amar essa carne deliciosa de Núbia, ansiar por possuí-la, não constitui jamais sensação exótica, excentricidade, fetichismo, aspiração de um ideal abstruso e triste, gozo efêmero, afinal, das naturezas amorfas e doentias.

Senti-la, como um desejo que domina e arrasta, querê-la no afeto, para fecundá-lo e flori-lo, como uma semente d’ouro germinando em terreno fértil, é querer possuí-la para a Arte, tê-la como uma página viva, veemente, de paixão humana, vibrando e cantando o amor impulsivo e franco, natural, espontâneo, como a obra d’arte deve vibrar e cantar espontaneamente.

Crescida, desenvolta aos poucos no meio culto, entre relações de simpatia inteligente e harmônica, sob um sol saudável de cuidados, de apuro de tratos e de maneiras, que tornou mais leve e penetrante, iluminando, o seu cérebro simples, de ignorância ingênua, a Núbia abriu em flor de carícia, alvorou com a doce meiguice dos tipos galantes e preclaros de mulher e recebeu também, em linhas de conjunto, do mesmo meio onde desabrochou, essa suavidade e graça núbil que é todo o encanto vaporoso, aéreo, do ser feminino.

No seu rosto oval, de uma penugem sedosa de fruto sazonado, há, por vezes, certa expressão de melancolia, de cisma dolorosa, que punge e contrista; o tênue, já quase apagado raio errante de uma lembrança vaga, – como se Ela de repente parasse na existência e se sentisse no vácuo, perdida, e só nos caminhos desolados, desertos, de onde veio outrora, sem leito, e em lágrimas, a caravana gemente de sua raça…

Então, nesses momentos em que um dolorimento secreto, misterioso, a conturba e magoa, Ela parece serena divindade aureolada de martírios, macerada de prantos; e é talvez bem pequeno, bem frágil todo o amor do mundo para proteger, para amparar, como numa redoma sagrada de Misericórdia, essa humilde criatura que o fatalismo das forças fenomenais da Natureza condenou à indiferença gelada e à desdenhosa ironia das castas poderosas e cultas.

Assim, adorá-la em compunção afetiva, trazê-la no coração como relíquia rara num relicário estranho, claro é que não significa banal emoção transitória, que o rude desdém da análise fria pode, apenas com um golpe brusco, extinguir para sempre.

Essa emoção, esse amor cada vez mais profundo e espiritualizante, penetra impetuoso no sangue como a luz e o ar, deliciando e ao mesmo tempo afligindo como a Idéia e Forma igualmente delicia e aflige…

E, nem mesmo, no fundo íntimo de qualquer ser tocado de uma intuição maravilhosa da origem terrestre da felicidade, podem resplandecer, mais do que a Núbia, as belezas de neve da Escócia e da Irlanda ou as formosuras originais da Armênia e da Circássia.

Tudo ela possui de luminoso e perfeito, como a noite possui as Estrelas e a Lua, visto e sentido tudo através da harmonia espiritual, da alta compreensão requintada e subjetiva de quem a ama e deseja.

A sua alma, de forma singela e branca de hóstia, tem ritmos de bondade infinita, meigas, claridades brandas e consoladoras de piedade e enternecimento, e a sua voz sonorizada, com a vivacidade nervosa e o alado timbre argentino, claro e fresco, de um gorjeante cristal de pássaro, derrama por toda a parte a música emocionante, sugestiva e curiosa, de violino afinado…

E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval nobiliárquica será mais gentil e delicado que o seu peito, donde jorra, com firmeza e força, em onda original, talvez manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde dos arbustos.

Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada com religioso fervor artístico, com a fé suprema, a unção ritual dos evangeliários do Pensamento; e todo esse feminino ser precioso brota agora em exuberâncias de afeto, em pompa germinal de extremos lascivos, floresce em rosas juvenis e polínicas de puberdade, abertas sexualmente nos seios pundonorosos e pulcros…

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ANEXO 6

Mulheres

Magnólias de aroma tépido, finos astros, que elas sejam, olhos faiscantes, como águas dormentes de

delicioso Danúbio que a luz sonoriza e doura, humildes e imperiosas, ninguém jamais saberá o mistério que as envolve…

Amar e gozar as nebulosas mulheres, mergulhar, engolfar a alma infinitamente, inefavelmente, em repouso, como num harmonioso luar, sem sobressaltos e ansiedades, na alma enevoada que elas ocultam sempre, só é dado às naturezas vulgares, que amam com a carne, que amam com o sangue apenas, no ímpeto brutal de todos os instintos, com a luxúria viva da carne, que fazia, desde os romanos, a carne viçosa e rica.

Os que a amam e gozam sensualmente, à lei da sexualidade, não lhes ouvem a vaporosa música embriagante do vinho dos encantos da voz e do sorriso; não lhes sentem o perfume delicado de úmidas bocas purpúreas, de níveos colos cor de camélia, de volumosos seios macios como a alva plumagem fresca de um pássaro real; não lhes percebem o amoroso ansiar de etéreas cintilações d’estrela nos olhos indagadores, que atravessam, costumam passar em visão, pesados de luz, com o brilho aceso e fagulhante de preciosas e raras pedrarias, as geladas noites brumosas do Ciúme…

Para esses, que só as possuem sexualmente, elas trazem um deleite, um atrativo, como no Oriente o fumo, que dá prazeres insubstituíveis, voluptuosas graças de viver, atila e acende a imaginação, faz abrir e flamejar, incomparavelmente, de todos os pontos do mundo, os mais inauditos sóis do Espírito…

Esses, ainda outros ou todos, poderão decerto inundar-se no esplendor da beleza das mulheres, fruir delas toda a fremente carícia, possuí-las, dominá-las sem hesitação e embaraços estranhos.

Para todos elas não terão sombrias torcicolosidades de serpentes, anseios, anelos indecifráveis, enigmas tremendos, que nos deixam deslumbrados, extáticos, na mais intricada rede de perplexidade.

Elas serão para todos o eterno feminino, leve, simples, fácil a conquista, fácil a vitória, tendo para os homens os arrastamentos prontos de um animal que se abandona à lubricidade.

Ninguém saberá ver nas mulheres esse complicado segredo de nervos, que ora se patenteia claro penetrável e que ora mais se condensa, se intensifica de obscuridade, torturando, afligindo, vago, abstrato como a dor e por isso ainda mais terrível, mais esmagador e frio…

Só um ser, consubstanciação de todas as angústias, de todas as incertezas e dilaceramentos do espírito, um ser contemplativo, amargurado pelas análises, ferido sempre pela observação, pelas idéias que sangram e vivem perpetuamente a martirizá-lo, para seu gosto excêntrico e único, só esse ser as compreenderá, mudo e solene, encerrado na solidão dos seus pensamentos, como um missionário, alheio às exterioridades dos corpos delas, às linhas, ou só as amando por sentimento estético e analisando continuamente, sondando, perscrutando o feminino organismo dúbio.

Só a psicologia desse ser, que é o artista, saberá ver fundo o delicado ser das mulheres e penetrar nas sutilezas, nas direções variadíssimas e múltiplas que toma o seu espírito, à maneira das aves que voam alto, sem rumo, além, indefinidas na distância…

Esse poderá querê-las muito, adorá-las com outra chama sagrada; mas nunca as poderá amar carnalmente, friamente com os nervos – porque aparecerá sempre o analista sufocando o afeto espontâneo que não se delimita nem regulariza, o entendimento artístico, que ama a Forma, destruindo o fator humano que fecunda a carne, que perpetua a Espécie.

Quanto mais elas forem complexas, segredantes, misteriosas, tanto mais a análise se manifestará mais arguta, mais penetrante, de um modo experimental, nu, amplo; e as mulheres, afinal, ficarão diante do artista, como documentos palpitantes de uma dada natureza, provas flagrantes de paixões veementes, de desejos, de vontades, de uma infinidade de atributos e qualidades radicalizadas na alma feminina e que o pensamento do artista investiga, conhece, põe para fora, à toda a luz, como se expusesse, na presença do mundo, explicando a função de cada um, os milhares de glóbulos de sangue que circulam no organismo humano.

A dor de tudo isso, porém, a pungitiva dor de tudo, é que o artista não pode, assim como todos, espontaneamente amar.

Ele ama um golpe de luz, um olhar, a fascinação de uns cabelos quentes, a polpa virgem de uns seios, a graça idealizante e alada de um sorriso, o talho vermelho de uns talhos frescos, o tom das elegâncias fidalgas dessas Flores escarlates das Babéis de ouro, que passam na corrente das civilizações e na febre, no delírio dos luxos fortes.

Vendo para dentro de si, como para o fundo de um mar prodigioso, ele domina com o olhar perscrutante, inquieto, que apanha de pronto as situações, a maravilhosa ductilidade das mulheres, vendo também perfeita e singularmente o que se dá dentro delas, as suas inquietudes, as suas paciências, os seus receios, os seus caprichos

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inesperados, as suas volubilidades doentes e curiosas, as suas resoluções bruscas, os seus ímpetos de leoa, os seus enternecimentos ingênuos e monocórdios, os seus momentos horríveis de crises hiper-histéricas, sem causa determinada, sem assinalamentos de origem, mas assoberbantes, convulsos e que de repente cessam como vieram, para tornarem ainda, mais desabridos e persistentes.

As mulheres, para o artista, para a estesia exigente, requintada, são apenas um elemento de sugestão estética amoldável às necessidades artísticas do sugestionado. Elas falam, abrem-se mesmo ao amor em rosas fecundas de sinceridade, dizem os ardores apaixonados, as recônditas sensações, a vida íntima do seu afeto; mas o artista as ouvirá, como artista que é, a frio, simulando interesse, formando já, mentalmente, com as palavras delas, com essa confissão franca, pura e sentida, embora, verdadeiras páginas de emoção e estilo.

E, no entanto, ele as quererá amar muito, eternamente e sem reservas, abrir-lhes os braços ao amor, com todas as forças másculas, vigorosas e livres de homem, com a firmeza mais casta dos carinhos e das ternuras, estremecendo-as, idolatrando-as.

Mas, um ligeiro contato apenas, um leve roçar de lábios, um abraço desfalecido, murcho, algumas frases balbuciadas materialmente, ao acaso – e aí estará de novo o mentalizado, o espiritual, descendo a investigações, medindo cada gesto e cada olhar, inquieto, aflito com a expressão de um toque de luz numa trança de cabelos, que ele quer levar para a sua Obra ou preocupado com o fino Sèvres que fulgurou uma noite em certo boudoir, faiscando centelhas d’astro.

Contudo, quando esse luminoso torturado as vê descendo ou subindo os átrios claros de palácios festivos, altas Valquírias de neve nas pompas orgulhosas das sedas que roçagam, como que fica preso, magnetizado por aqueles aromas fluidos, vivendo na auréola majestosa do clarão que elas de si desprendem; e então, como na cauda constelada e rojante, os fulgores sedosos levam aspirações, sonhos que ficam errantes e que quereriam talvez subir ou descer, opulentamente, como as deusas resplandecentes, os mesmos festivos palácio de átrios claros.

Entretanto, não é aí o amor, o sentimento que se manifesta ainda na alma artística; não é uma expansão afetiva – mas uma verdadeira expressão d’arte, um desejo de posse, que logo invade as naturezas dominadoras, altivas, onde as idéias predominam, atuando, fatais e intensas, nos fenômenos da Vida, os mais elementares ainda.

O que excita o artista, seja nos átrios claros de palácios ou em toda a parte, é simplesmente a Forma, é toda essa roupagem deslumbrante que faz as mulheres parecerem auroras boreais; o que lhe incita a pensar nelas, a desejá-las, é a plástica olímpica, o onipresente esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios, o alabastro dos corpos flóreos. . O que o surpreende, deixa atraído e fascinado é o ar gelado da carne alva das loiras, que deliciam, o ardente sol tropical da carne tentadora das morenas, que cheiram a sândalo e matas.

Amar as mulheres, profundamente, com simplicidade, com singeleza, sem cuidados latentes de observá-las a toda hora, com os mínimos detalhes, linha por linha, traço por traço, sem essa preocupação doente que as exigências provocam, não é para a concentração, para a contenção nervosa dos falangiários da Arte, que, de todas as coisas, querem arrancar o germe de que necessitam, o pólen que lhes é mister para a fecundação de sua Obra.

A linguagem feminina, algumas fiorituras das frases passageiras constituem, de certo modo, um tecido primoroso, os fios delicadíssimos com que a Arte contextura, urde a tecelagem da Forma.

Mas o desolado psicologista do Pensamento não as pode amar com intensidade e desprendimento espirituais, sem as querer observar sempre, desataviá-las das plumagens garridas e ver-lhes, à luz , o que elas sentem e pensam de nebuloso…

Por isso é que muito naturalmente, por intuição própria, elas percebem que não poderão jamais amar os artistas, tendo até para eles uma repulsão como que instintiva e sendo mesmo indiferentes às suas solicitações mais veementes e calorosas.

Vendo-se a cada instante o objeto das interpretações deles, reveladas através de seus pensamentos tão recatados como os seus seios, os pudores dos seus corpos angélicos, em tantas páginas dilacerantes e impiedosas, as mulheres não buscam sistematicamente os artistas para amar, feridas nos seus orgulhos melindrosos, nas suas vaidades excessivas e principescas, nas suas finas suscetibilidades de formosos seres triunfantes e inaccessíveis.

Só raramente, por singularidade, uma ou outra mulher ama o artista, quando já acaso existe nela qualquer corrente de simpatia mental, qualquer relação de afinidade que estabeleça entre ambos uma claridade e harmonia de sentimentos mais ou menos congêneres, equilibrados.

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ANEXO 7

Sofia

Foi na sala branca, de leves listrões d’ouro, que eu a vi interpretar um dia ao piano Mendelsohn, Schumann, as fugas de Bach, as sinfonias de Beethoven.

Tinha um nome bíblico, lembrando palmeiras e cisternas: chamava-se Sofia. Era alta, de uma brancura de hóstia, como certas aves esguias que os aviários conservam e que aí vivem

num grande ar dolente de nostalgia de selvas, de matas cerradas, de sombrios bosques. Nervosa, de um desdém fidalgo de fria flor dos gelos polares, e triste, traía a Arte aquele altivo aspecto, a

orgulhosa cabeça erecta em frente às partituras, que os seus olhos garços liam e que os seus dedos rosados e aristocráticos executavam com perfeição, com claro entendimento nas teclas.

E de todo esse nobre ser delicado, de todo esse perfil de imagem de jaspe, irradiava uma harmonia vaga, melancólica, uma auréola de pungitiva amargura, mais desoladas que as sinfonias de Beethoven, como se todas aquelas músicas excelsas tivessem sido inspiradas nela.

_____________

Ó aromas, sutilíssimas essências dos finos frascos facetados do luxuoso boudoir dessa musical Magnólia;

aromas vaporosos, maravilhosos perfumes que incensais, à noite, de volúpia, a sua alcova, como as purpurinas bocas das rosas, falai a linguagem alada que as vozes humanas não podem falar e dizei os murmúrios estranhos dos sentimentos imperceptíveis, imaculados, que alvoroçam a alma ansiosa dessa sonhadora Sofia.

Só os aromas, só as essências terão os eflúvios castos, os fluidos luares de expressão, o ritmo inefável para contar que latentes palpitações traz Ela no sangue, que chama d’astro lhe inflama o peito, quando volta triste dos concertos egrégios e vai enclausurar-se na alcova, – muda, muda, talvez sob a névoa de lágrimas, na comovente concentração dos que morrem amando…

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ANEXO 8

Astro frio

Por entre celas místicas, silenciosas, lá te foste emudecer para sempre, ó harmonioso e célebre pássaro do canto, nos pesados claustros.

Cor de rosa e de ouro na iluminada sala dos teatros, trinava para o alto inefavelmente, e, agora, não sei por que tormentosa paixão que te desolou um dia, ficaste infinitivamente reclusa, sob os fuscos tetos de um convento, como uma rara rosa opulenta numa estufa triste, fugindo ao sol dos prados.

Fria e muda, estarás, talvez, a estas horas, ajoelhada na capela de um Cristo glacial de marfim sagrado — branca, mais glacial e de mais branco marfim do que esse Cristo, com as níveas mãos de cera e face também de cera macerada pelos jejuns e pelos cilícios, dentro de sombrias vestes talares.

E, assim muda e assim fria, perpassarás como a sombra de um vivo afeto ou de um profundo sentimento artístico, ao frouxo clarão de âmbar das lâmpadas lavoradas.

O teu alado perfil, as tuas linhas suaves, serão, no religioso crepúsculo da capela, como que a recordação do aroma, da luz, do som que tu para a Arte foste.

Nos olhos, apenas uma centelha, uma leve faísca evidenciará o passado esplendor, o encanto que eles tiveram, quando amaram, cá fora no mundo, com as violências do desejo, com os ímpetos frenéticos, vertiginosos da carne.

E os corações que te adoraram, que te ouviram outrora os incomparáveis gorjeios da garganta, que te sentiram a carnação formosa palpitando sob a vitória dos aplausos, ficarão saudosos e perplexos ao ver-te agora assim para sempre enclausurada, para sempre gelada aos fulgores e sensações do mundo, mergulhada, enfim, na necrópole de um convento, como um astro através de frígidas e espessas camadas de neve…

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ANEXO 9

Vitalização

Há uma irradiação larga e opulentíssima nos ares. O embraseamento do sol do fim da tarde dá fortes verberações quentes à paisagem que resplandece, e

de cuja vegetação estuante de calor parecem rebentar as raízes túmidas de seiva como veias imensas latejando de sangue oxigenado e vivo.

Nessa elaboração enorme da Terra que procria e fecunda, na gestação desses mundos que, como astros, gravitam talvez em cada grão de areia, pululando e vibrando, a Natureza é como uma grande força animada e palpitante dando entendimento e sentimento à Matéria e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte.

E, daí a pouco, a Lua, através das matas do vale, anelante e álgida, surgirá, rasgará d’alto as nuvens no céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada, vagarosa e tristemente como uma dor que gelou...

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ANEXO 10

Psicologia do feio

Peters, esse humorismo ao mesmo tempo alucinante e alado; o pessimismo paradoxal de Alphonse Karr e Gustavo Groz, tão semelhantes nas linhas gerais; todo aquele pungente, doloroso, estranho Livro de Lázaro, de Henri Heine, tudo isso, fundido numa cristalização de lágrimas e sangue, como a flamejante e espiritualizada epopéia do Amor, exprimiria bem, talvez, a noite de tua psicologia negra, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio.

Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma ancestral comum dos seres organizados: eu te vejo bem as saliências cranianas do Orango, o gesto lascivo, o ar animal e rapace do símio.

As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a confluência interior dos desesperos e das torturas, abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes uma gesticulação epiléptica, nevrótiva, clownesca, faz impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto a tua voz coaxa e grasna, numa deprecação de morte, com ásperas e absurdas variabilidades ventríloquas de tons.

O teu horror não é deplorável só, não causa só piedade – mas é um obsceno horror – e as abas compridas e esfrangalhadas duma veste que te fica em rugas, em pregas encolhidas na largura neste teu corpo esquelético, e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que houvessem desenterrado – as esquisitas abas dessa veste, sob o chicote elétrico do vento, alçam-se em vôo, deblateram para trás de ti, ansiosas, aflitas, puxando-te, num arrebatamento histérico, como se fossem fúrias tremendas que te quisessem arrojar pelos ares, num delírio de darem-te a morte.

Outras vezes, porém, lembram as asas de um grande morcego monstro, imensas e membranosas, causando asco nauseante e enchendo tudo duma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e esvoaçamentos medonhos.

Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vegetais em flor; campos verdes, afofados na verdura tenra, como estofos de veludos e sedas rutilosas e orientais, não são já para a tua alegria, recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da torturante desilusão de seres Feio.

Os perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o teu coração; e, aí, tudo o que dele se aproxima, outros corações que te buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante da tangibilidade gwinplainesca da tua fealdade.

Só eu, numa suprema hora de spleen, de esgotamento de forças psíquicas, em que me falte extensamente o humor – essa bondade hilariante do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio! que da luxúria pantagruélica dos vermes devoras na treva os sonhos – porque não os podes alimentar, nem ver florir, nem crescer! Sem que a diabólica verdade flagrante esteja a rir de teu amor e a pintar picarescamente caricaturas na quase apagada perspectiva da tua existência.

Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis, quase feminis, podem amar-te; enquanto que as individualidades ocas, estéreis, áridas, duras, sem vibração sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem aroma, fugirão para sempre de ti como à repelência asquerosa de um putrefato.

Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! porque és a escalpelante ironia da Formosura, a sombra aurora da Carne, o luto da matéria doirada ao sol, a cal fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta correção das Formas perfeitas e consagradas, conquanto tenhas também, na tua hediondez, toda a correção perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa argila, tem, no entanto, a repelente correção própria do sapo; - como a estrela, fulgindo, lá, em cima, no precioso Azul, tem a serena e etérea correção própria d’estrela.

Por uma espécie apenas de schopenhaurismo é que eu adoro-te, ó feio! e quereria bem rolar contigo nesse Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da morte, vendo surgir, como de lagos de quimeras, em estalagmites de neve, diante de mim, sombrios e álgidos, pesadelos de mulheres amadas; pálidas Ofélias, Margaridas loiras, Julietas atormentadas, visões, enfim, como nas tragédias de Macbeth ou a nevoenta Visão germânica do Graal.

Numa seda negra d’Arte, vestidos de negro, à semelhança desse trágico Hamlet da Dinamarca, iríamos os dois, através dos largos e profundos cemitérios silenciosos, consultar as rígidas caveiras das virginais Ilusões que se foram, e que, à nossa aproximação, sorririam, talvez, felizes, como se lhes levássemos a palpitante matéria animada de nossos corpos para cobrir, fazer viver as suas galvanizadas carcaças frias.

Mas ah! eu quisera bem, por vezes, também, ter o rude materialismo analítico de Büchener, que, certamente, não sentiria por ti, ó Feio! esta extravagante, excêntrica, singular influência mórbida que nas funções de meu cérebro vem, contudo, como doença amarga, um tédio amarelo e pesado de chim que o ópio estuporou e enervou.

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Não houvesse dentro em mim, através das Ilíadas do Amor, das Bacanais do Sonho, um sentimento melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio!

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ANEXO 11

ÂNGELUS

Um sol em sangue alastra, mancha prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do Firmamento. Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras luminosas dão uma glória sideral à tarde. E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora, os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que

desce, d’envolta com douramentos faustosos, fazem lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais, através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados.

Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos, purificadores, como emanados da saúde, das virgindades eternas.

Um ar olímpico, talvez o sopro vital de mares verdes e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes a nitidez, o esmalte do aço.

Como que a Natureza, nesse esmaecer do dia, tem mocidades imortais e como que as forças, as origens fecundas da terra, desabrocham em rosas.

O rubente esplendor solar gradativamente smorza num cor-de-rosa leve, de veludosa suavidade. Serenamente, lentamente, uma pulverização neblinosa desce das amplidões infinitas... Névoas crepusculares envolvem afinal a imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios. Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos vales e das colinas adormecem além, repousam num

fluido noctambulismo... Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora,

canta amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e mudas. Canta para as estrelas! E parece que a sua voz, errante na vastidão infinita, vai inundada do mesmo

perfume original que a alma viçosa e branda dos vegetais exala na Noite...

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ANEXO 12

ÂNGELUS... Ah! lilases de Ângelus harmoniosos, Neblinas vesperais, crepusculares, Guslas gementes bandolins saudosos, Plangências magoadíssima dos ares... Serenidades eterais d’incensos, De salmos evangélicos, sagrados, Saltérios, harpas dos Azuis imensos, Névoas de céus espiritualizados. Ângelus fluidos, de luar dormente, Diafaneidades e melancolias... Silêncio vago, bíblico, pungente De todas as profundas liturgias. É nas horas dos Ângelus, nas horas Do claro-escuro emocional aéreo, Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras Ondulações e brumas do Mistério. Surges, talvez, do fundo de uma eras De doloroso e turvo labirinto, Quando se esgota o vinho das quimeras E veneno romântico do absinto. Apareces por sonhos neblinantes Com requintes de graça e nervosismo, Fulgores flavos de festins flamantes, Como a Estrela Polar dos Simbolismos. Num enlevo supremo eu sinto, absorto, Os teus maravilhosos e esquisitos Tons siderais de um astro rubro e morto, Apagado nos brilhos infinitos. O teu perfil todo o meu ser esmalta Numa auréola imortal de formosuras E parece que rútilo ressalta De góticos missais de iluminuras. Ressalta com a dolência das Imagens, Sem a forma vital, a forma viva, Com os segredos da Lua nas paisagens E a mesma palidez meditativa. Nos êxtases dos místicos braços Abro, tentado de carnal beleza... E cuido ver, na bruma dos espaços, de mãos postas, a orar, Santa Tereza!...