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UFRJ CCJE COPPEAD o HOMEM NO DISCURSO O RGANIZACIONAL: IMAGENS E VALOR ES LUCE LENA ABRANT ES F ER REIRA MESTRADO EM ADMINISTRAÇ Ã O DE EMPRESAS ANNA MARIA CAMPOS RIO DE JANEIRO 1997

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U FRJ CCJE COPPEAD

o HOMEM NO DISCURSO ORGANIZACIONAL: IMAGENS E VALORES

LUCELENA ABRANTES FERREIRA

MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS

ANNA MARIA CAMPOS

RIO DE JANEIRO

1997

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o HOMEM NO DISCURSO ORGANIZACIONAL: IMAGENS E VALORES

Lucelena Abrantes Ferreira

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para obtenção do grau de Mestre em Ciências (M. Se.) .

Aprovada por:

Professora Anna Maria Campos Presidente da Banca

-r' rofessor Everardo Rocha PUC-Rio

UFRJ

Rio de Janeiro, RJ - Brasil Março de 1 997

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Ferreira, Lucelena Abrantes

o Homem no discurso organizacional: imagens e valores. Rio de Janeiro: Coppead, 1 997.

xx, 96 p.

Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coppead.

1 . Discurso organizacional. 2. Ser Humano. 3. Tese (Mestr. Coppead/UFRJ)

I . Título

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Para Sergio.

Para meus pais.

IV

Para Anna Maria e seu coração iluminado.

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AGRADEÇO

A Tompinha e Serpa, irmãos.

À Eliana Yunes, inspiradora sempre.

Ao Edgar, grande amigo, início de tudo.

À Isinha, Jack e Doce, companheiros antigos.

Ao Rodrigo Pecego, recente, renovador.

À família Cepelowicz (incluindo Dona Léa, Laís, Maurício e Gérson!).

À professora Anna Maria Campos, pela sabedoria que parfilha com sabor,

pela confiança na capacidade de seus a lunos, pelo carinho que difere.

Ao professor Everardo Rocha, mestre de palavras coloridas,

com a minha intensa admiração.

À professora Angelo Fabiano, pelos desvios que me amplia.

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"Nasci para administrar o à-toa

o em vão

o inútil.

Pertenço de fazer imagens. "

Manoel de Barros

VI

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RESUMO

Dissertação apresentada à COPPEAD/UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do grau de Mestre em Ciências (M. Se.) .

O HOMEM NO DISCURSO ORGANIZACIONAL: IMAGENS E VALORES

Lucelena Abrantes Ferreira 1 997

Orientadora: Anna Maria Campos Programa: Administração

Propõe-se, neste estudo, uma investigação do tratamento dado ao Homem no discurso organizacional e suas implicações.

Inicialmente, é discutido o papel da linguagem na construção social da realidade, especialmente na criação das organizações. A linguagem verbal é estudada sob um enfoque cultural. como produção do Homem. Procura-se mostrar que a linguagem é veículo para ideologias.

Parte-se, então, para a análise de artigos da revista Ser Humano, editada pela Associação Brasileira de Recursos Humanos. A análise dos textos é realizada a partir das figuras de linguagem, revelando valores que embasam o discurso e suas consequências para o Homem e a organização.

Sustenta-se que o monopólio do discurso organizacional é uma forma de controle social, inibindo a ação criadora e transformadora do Homem trabalhador.

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ABSTRACT

Thesis presented to COPPEAD/UFRJ, as partial fulfil lment for the degree of Master of Sciences (M. Se.) .

o HOMEM NO D ISCURSO ORGAN IZACIONAL: IMAGENS E VALORES

Lucelena Abrantes Ferreira 1997

Chairperson : Anna Maria Campos Department: Administração

It is proposed, in this study, an investigation of the treatment that Mankind receives throught the organizational discourse and its implications.

Initially, it is discussed the role of language in the social construction of reality, specially in organizations. Verbal language is studied in a cultural prospect, as a Mankind production. It is shown that language is a vehicle for ideologies.

Then, some articles of Ser Humano magazine, edited by Associação Brasileira de Recursos Humanos, are analysed. This text analysis concentrates on figures of speech, revealing the values in which the discourse is based on and its consequences to Mankind and to the organization.

I t is stated that the monopoly of organizational discourse is a way of social control. inhibiting laborer Man ' s actions to create and transformo

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CAPíTULO 1: INTRODUÇÃO

1 . 1 Objetivo

1 .2 Relevância

CAPíTULO 2: METODOLOGIA

SUMÁRIO

CAPíTULO 3: LINGUAGEM - seu papel na construção

social da realidade

3 .1 Mundo e realidade

3.2 Linguagem verbal

3.3 Construção social da realidade

3.3 . 1 Percepção condicionada

3.3.2 O processo de tipificação

3.3.3 A criação das instituições

a) legitimação

b) Reificação

C APíTULO 4: ESCRITA - a questão do escritor-leitor

4 . 1 A fala e a língua

4.2 O leitor

4 .2 . 1 Colheita

4.2.2 Socialização primária

4.3 O escritor

IX

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4.4 Sociologia do con hecimento

4.5 Concepção marxista de ideologia

4.6 A ideologia de mercado no discurso organizacional:

Homem ou máquina?

CAPíTULO 5: S IGNO LINGü íSTICO - a liberdade da metáfora

5 . 1 Algumas definições

5.2 Conotação

5.3 Metáfora e outras figuras de linguagem

5.3 . 1 Definições

5.3.2 Metáfora e valores do narrador

5.3.3 leituras da metáfora

5.4 Estilo

CAPíTULO 6: ANÁLISE DOS TEXTOS

6 . 1 Informações iniciais

6. 1 . 1 Sobre a revista

6 . 1 .2 Sobre os artigos e os autores

6.2 Análise dos textos a partir das figuras de linguagem

6.2.1 Visões reducionistas do Homem

a) A coisificação do Homem

b) Homem visto como recurso da organização

c) Negação da singularidade

d) A lógica do mercado

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6.2.2 A reificação da organização 7 1

a) Organização viva ( 'humanizada ' ) 72

b) Organização ativa 75

c) Inversão: organização criadora e Homem criatura 77

6.2.3 Intenções conscientes X escolhas inconscientes 79

CAPíTULO 7: CONCLUSÕ ES E CONSIDERAÇÕES FINAIS 82

7 . 1 Algumas considerações sobre o trabalho 83

7.2 O monopólio do discurso e suas consequências 83

7 .3 O conteúdo do discurso: a ideologia dominante 85

7.4 Sugestões para pesquisas 88

7.5 Uma última palavra 88

B IBLIOGRAFIA 89

ANEXOS 95

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CAPíTU LO 1

INTRODUÇÃO

"A gente é cria de frases

escre ver é cheio de casco e de pérola"

Manoel de Barros

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"Palavra que eu uso me inclui nela"l, diz o poeta Manoel de Barros.

Todo texto está inexoravelmente relacionado à figura de um narrador -

seu produtor - inserido em determinada época, local e cultura. Portanto, o

texto está relacionado à singularidade e (inter)subjetividade do narrador,

aos seus desejos, idéias e valores, aos interesses de seu grupo social. Assim,

a linguagem pode funcionar como veículo para ideologias.

Deriva deste fato o perigo do 'monopólio do discurso ' (oral e escrito)

nas organizações. Ou seja, se somente um grupo social produz o discurso

legitimado que circula, seus valores serão reforçadOS.

No processo de construção de um texto, a escolha de

determinadas metáforas (e outras figuras de linguagem), pode revelar

idéias e valores que embasam o discurso.

1.1 OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é pesquisar as consequências da situação

atual de 'monopólio do discurso ' nas organizações. Pode-se observar que

determinado grupo social - os Homens trabalhadores de baixa renda -

está praticamente ausente da produção do discurso veiculado sobre as

organizações, especialmente nos meios acadêmicos e mídia

especializada. Quais são os efeitos desse processo especifiCO de criação

e circulação do discurso organizacional dominante?

1 BARROS, o livro das ignorãças, página 63. Os poemas transcritos parcialmente neste trabalho (com exceção das epígrafes) aparecerão em versão integral nos anexos. Sobre este poema, ver anexo I.

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Sabe-se que a empresa não é um espaço de equalização de

poder. A linguagem, ou melhor, a possibilidade de expressão, não é

concedida igualmente para todos dentro de uma organização, o que se

transforma num mecanismo de dominação e de manutenção da

realidade estabelecida.

Há uma questão primordial para o desenvolvimento deste trabalho:

o que norteia e o que prega o discurso dominante veiculado? Ou seja,

que interesses e valores o embasam? Mais especificamente: que

tratamento é dado ao Homem neste discurso?

Por fim, quais são os efeitos, sobre a classe "muda", do discurso

organizacional dominante, já que este não é produzido por ela? Como

esta situação influi na construção de sentidos para a empresa, que se

impõe como instituição fundamental da realidade de um grupo social

(Homens operários de baixa renda) que depende dela para sobreviver?

Estas são questões sem respostas precisas, que sevirão de guia a este

trabalho.

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1.2 RELEVÂNCIA

Duarte Jr. define existência como "a vida (biológica) mais o seu

sentido. Sentido que advém da linguagem, instauradora do humano, que

advém da palavra, criadora da consciência reflexiva e do mundo".2

A relevância do estudo envolvendo a linguagem (mais

especificamente a linguagem verbal, nesta pesquisa) repousa na

importância desta para a definição do Homem. Roland Barthes esclarece

a questão:

" ... 0 linguagem não pode ser considerada como um simples instrumento,

utilitário ou decorativo, do pensamento. O homem não preexiste à

linguagem nem filogeneticamente nem ontogeneticamente. Jamais

antingimos um estado em que o homem estivesse separado da linguagem,

que elaboraria então paro "exprimir" o que nele se passasse: é a linguagem

que ensina a definição do homem, não o contrário". 3

Assim, o Homem não antecede a linguagem: sua definição

depende dela. O mundo só é experimentado pelo Homem como

linguagem. Eliana Yunes realça a necessidade de se pensar a

"constituição do sujeito a partir da capacidade de se organizar na

linguagem", 4 A linguagem dá ao Homem a possibilidade de simbolizar,

de construir significados, diferenciando-o dos outros animais. Sobre a

linguagem verbal, afirmam Chanlat e Bédard:

2 DUARTE Jr., 1 991 , página 20. 3 BARTHES, 1 988, páginas 3 1 e 32. 4 YUNES, "Leituras da leitura", página 183.

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"Todas as espécies animais possuem códigos mais ou menos elaborados de

sinais para se comunicarem, mas nenhuma tem acesso à linguagem,

instrumento das faculdades de abstração e de generalização que são

particularmente humanas. O homem é, antes de tudo, um homo /oquens. é

através da linguagem que ele constrói seu mundo, e o espaço é, antes de

tudo, um universo de palavras".'

5

A organização, como instituição criada socialmente, depende da

linguagem para existir. Assim, esta pesquisa volta-se para o estudo da

linguagem como fator determinante na criação de sentidos para o

Homem e para as organizações.

'CHANLATe BÉDARD, "Palavras: a ferramenta do executivo", página 127.

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CAPíTULO 2

METODOLOGIA

"A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um

sabíá

mas não pode medir seus encantos.

A ciência não pode calcular quantos cavalos de força

existem

nos encontos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de

adivinhar.· divinare.

Os sabiás divinam. "

Manoel de Barros

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Na introdução vimos que "o homem é, antes de tudo, um homo

/oquens; é através da linguagem que ele constrói seu mundo, e o espaço

é, antes de tudo, um universo de palavras".6

Esta pesquisa permitiu um passeio pelo universo - misterioso - das

palavras. Foi feita uma análise do emprego e dos significados possíveis de

metáforas e outras figuras de linguagem presentes em artigos produzidos

por profissionais atuantes em organizações. Os textos estudados foram

veiculados pela ABRH - Associação Brasileira de Recursos Humanos, por

meio da revista mensal Ser Humano, e abordam questões que envolvem o

Homem nas organizações.

Objetivou-se, essencialmente, desvendar valores e interesses que

sustentam o discurso organizacional, enfocando o tratamento dado ao

Homem (e à sua presença nas empresas) . Optou-se pela análise de textos

produzidos recentemente, já que reproduzem valores que estão

embasando a fala (e outras ações) de seus autores nas organizações.

Foram utilizados 35 artigos, presentes nos doze números da revista Ser

Humano publicadOS no ano de 1 996 pela ABRH.

A pesquisa teve caráter exploratório, de acordo com a definição de

Antônio Carlos Gil?, buscando clarear uma visão geral acerca do tema e

formular possibilidades de investigações complementares. Foi utilizado o

método hermenêutico de aproximação com o texto.

6 CHANLAT e BÉDARD, "Palavras: a ferramenta do executivo", página 127. 7 GIL, 1 989.

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A palavra hermenêutica está associada ao deus Hermes, da

mitologia grega. O deus Hermes era condutor de mensagens, permitindo

(mediando) a comunicação entre homens e deuses. A Hermenêutica

trabalha com a interpretação, promovendo uma investigação dos

sentidos de um texto.

Segundo Gilberto de Andrade Martins, as abordagens

Fenomenológicas-hermenêuticas

" ... privilegiam estudos teóricos e análise de documentos e textos.( ... )

Manifestam interesse por práticas alternativas, e se utilizam de técnicas não-

quantitativas. Buscam relação entre o fenômeno e a essência, o todo e as

partes, o objeto e o contexto. A validação da prova científica é buscada no

processo lógico da interpretação e na capacidade de reflexão do

pesquisador sobre o fenômeno, objeto de seu estudo".B

De acordo com o autor, essas abordagens apresentam "grande potencial

para investigação de fenômenos administrativos".

Já que não se recorreu ao método empírico indutivo, inadequado

aos objetivos da pesquisa, esta pode ser classificada como não

convencional, na conceituação de Martins.9 As pesquisas não

convencionais são freqüentemente denominadas pesquisas qualitativas,

devido à constante utilização de análises qualitativas. Isto ocorre neste

trabalho, que não propõe a elaboração de certezas ou verdades exatas

ou absolutas, mas sim a construção de uma leitura (interpretação) possível.

, MARTINS, 1994. 9 MARTINS, 1994.

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A estratégia de análise textual utilizada nesta pesquisa é pouco

explorada no campo da Administração de Empresas, devido à sua

ligação com a Lingüística (estudo da língua) e, mais especificamente,

com a Estilística. Este trabalho não tem como meta aprofundar o estudo

destas duas áreas, limitando-se a tomar-lhes alguns conceitos básicos que

facilitem a aproximação com o texto administrativo.

A Estilística concentra-se no estudo do estilo, ou seja, do modo

singular de cada escritor usar a língua. A preocupação com o estudo do

estilo remete ao uso analógico da linguagem, que inclui a criação de

sentidos figurados (conotação), com a utilização das figuras de

linguagem.

Como, nesta pesquisa, o olhar e o prazer estão voltados para a

multiplicidade de sentidos sugerida pela conotação, optei, em geral, pelo

uso de poemas para ilustrar idéias e teorias citadas. Manoel de Barros foi o

poeta escolhido para nos acompanhar neste trabalho, pelo casamento

dos seus temas com as questões aqui discutidas, e, muito especialmente,

pelo fato de sua poesia estar muito presente na minha vivência

(experiência) cotidiana. Creio na lição do poeta: "Se a poesia

desaparecesse do mundo, os homens se transformariam em monstros,

máquinas, robôs".lO

10 BARROS, Gramática expositiva do chão, página 3 1 1.

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Como resultado desta pesquisa, foi produzida uma leitura, dentre as

múltiplas possíveis, dos valores que permeiam o discurso sobre a

organização e suas implicações. Ao refletir sobre esta leitura realizada a

partir da plurissignificação das figuras de linguagem, lembrei-me de

Roland Barthes, quando afirma que "a conotação permite {aí está a sua

vantagem mora� colocar o direito ao sentido múltiplo e liberar a leitura:

mas até onde? Ao infinito".ll

11 BARTHES, 1988, página 45.

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CAPíTULO 3

LINGUAGEM:

SEU PAPEL NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE

"Sou puxado por ventos e palavras"

Manoel de Barros

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3 .1 MU NDO E REALIDADE

O mundo, na experiência cultural dos Homens, é todo linguagem.

A linguagem permite que [re]inventemos o mundo, ao lhe atribuir

significações. De uma forma mais simples: através da linguagem, o

Homem dá sentido ao mundo.

Mundo é tudo o que pode ser expresso pela linguagem. É, portanto,

um conceito humano. Nesse contexto, há várias realidades possíveis de

serem construídas, de acordo com a perspectiva e a intencionalidade do

Homem na interação com o mundo. Num exemplo simples, a realidade

de uma pepita de ouro, para um garimpeiro, é certamente diferente da

realidade desta pepita para um químico que estuda a sua composição.

O Homem, a partir da sua consciência reflexiva, na relação com o

mundo constrói realidades, que são, portanto, socialmente edificadas. E

isto é possível através da linguagem, entendida como "sistema simbólico

pelo qual se representa as coisas do mundo, pelo qual este mundo é

ordenado e recebe significação".12 Com isso, o Homem se diferencia dos

outros animais, presos irremediavelmente às possibilidades dos sentidos, ao

'aqui e agora '. A linguagem permite a transcendência do tempo e

espaço presentes. Sendo território de re-presentação, a linguagem pode

presentificar (tornar presentes) objetos e pessoas física ou temporalmente

distantes. Segundo Duarte Jr., "vivemos, assim, não apenas num universo

12 DUARTE Jr., 1991, página 18.

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físico, mas fundamentalmente simbólico. Um universo criado pelos

significados que a palavra empresta ao mundo. ( ... ) Pela palavra se faz o

mundo" . 1 3

3.2 LINGUAGEM VERBAL

o poder de criação de significados estende-se a várias linguagens,

não dependendo unicamente da palavra (linguagem verbal), mas

" ... quando ela se instala, produz uma economia de tal ordem que se tarna

suporte de simultaneidades. E essa capacidade do verbo de condensar o

significado, paradoxalmente, é que dá à palavra esse caráter mágico. esse

caráter sagrado. Não é que a imagem não tenha isso na sua origem. Mas a

palavra nos deixa ( ... 1 uma ilusão de que é possível apreender na sua

integridade o objeto pela nomeação".l4

A linguagem verbal (oral/escrita) permite ao Homem simbolizar,

representar o mundo por meio de signos lingüísticos que lhe asseguram

sentido e, portanto, que o constróem. Segundo Hagége, "se, para os

Homens, o universo possui uma existência, é porque suas línguas dão

nomes àquilo que seus sentidos e órgãos podem perceber"1 5. Apenas o

que é nomeado existe para o Homem.

A l inguagem verbal é a mais estruturada e organizada, servindo de

norma ou padrão a outras l inguagens (ou ao estudo de outras

13 DUARTE Jr., 1991, página 20. 14 YUNES, "Leituras da leitura", página 181. 15 HAGÉGE, 1985. Apud: CHANLAT, 1993, v. I, página 131.

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l inguagens) . Vivemos, então, num mundo de símbolos, em que os símbolos

l ingüísticos são básicos para a construção social da realidade. É válido

ressaltar que a relação do signo lingüístico com o seu referente (objeto ou

a parcela do real que representa) é arbitrária, e depende de convenções

sociais. A linguagem não é, portanto, natural, mas sim convencional. É

produto humano, socialmente construído.

A linguagem elementar na nossa sociedade, de aquisição menos

difícil entre os Homens, é a linguagem verbal oral.

3.3 CONSTRU ÇÃO SOCIAL DA REALIDADE

3.3.1 Percepção condicionada

Pode-se dizer que a realidade é produto da nossa percepção

cultural. A linguagem condiciona esta percepção, atuando como

(de)formadora do real. Chanlat e Bédard lembram o exemplo clássico da

l íngua esquimó inuif, "na qual a noção de neve comporta uma variedade

de palavras que designam a neve fresca, a neve assemelhada ao pó, a

neve congelada, a neve enrijecida etc. "16, o que contribui para que os

esquimós tenham uma percepção mais aguçada do que os brasileiros, por

exemplo, em relação às diferenças sutis de consistência e textura da

neve. Ou seja, os nossos sentidos são influenciados ( 'educados ' ) pela

16 CHANLAT e BÉDARD, "Palavras: a ferramenta do executivo", página 131.

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1 5

l inguagem. Numa relação dialética, o Homem constrói a linguagem e é

'construído' por ela, não escapando aos limites que ela lhe impõe.

3.3.2 O processo de tipificação

Um processo importante na construção social da realidade é o da

tipificação, ou seja, a classificação dos indivíduos em tipos, o que

padroniza, de certa forma, a interação entre eles. Assim, por exemplo,

classifico imediatamente uma determinada pessoa que me pede

informações na rua como 'homem ' , 'estrangeiro ' , 'executivo ' , 'sério' etc.

E ele possivelmente me classificaria como ' mulher' , 'jovem' , ' brasileira ' ,

'casada' , ' alegre ' etc. A nossa interação vai se basear nessa tipificação

recíproca. Assim, também, as relações entre tipos se tipificam, de modo

que possamos imaginar os comportamentos 'adequados' e socialmente

esperados em determinadas situações de interação humana. Como

exemplo, cito a relação patrão-empregado (a que mais interessa a este

trabalho) . Ambos sabem, entre outras coisas, que é esperado

(convencionado socialmente) que o empregado não grite e não ofenda

o seu patrão durante uma comunicação entre eles. O conjunto das

tipificações e dos consequentes padrões de interação estabelecidos

formam a estrutura social. que assegura uma estabilidade e até uma certa

previsibilidade nas interações humanas, tornando-se um "elemento

essencial da realidade da vida cotidiana".J7

17 BERGER e LUCKMANN, 1996, página 52.

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3.3.3 A criação das instituições

a) Legitimação

16

A partir das idéias discutidas neste capítulo, pode-se então tratar de

um fenômeno crucial para se entender o processo de construção social

da realidade: a criação das instituições, ou a institucionalização. Duarte Jr.

define institucionalização como

" ... uma decorrência da tipificação reciproca entre pessoas em interação,

de forma que tal tipificação seja percebida por outros de maneira objetiva,

ou seja, constituindo papéis que podem ser desempenhados por outras

pessoas. I . . . ) A instituição significa o estabelecimento de padrões de

comportamento na execução de determinadas tarefas, padrões estes que

vão sendo transmitidos a sucessivas gerações".'B

Toda institucionalização é precedida por processos de formação de

hábitos, que facilitam a reprodução de ações humanas.

Com base nestas idéias, pode-se considerar a empresa

(organização) como uma instituição - ou um conjunto de instituições -

fundamental para o funcionamento da sociedade industrial capitalista

modema.

Um ponto importante destacado por Berger e Luckmann é que

todas as instituições implicam em controle. Afirmam os autores que as

instituições,

18 DUARTE Jr., 199 1 , página 39.

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" ... pelo simples fato de existirem, controlam a conduta humana

estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a

canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que

seriam teoricamente possíveis" . 19

A linguagem verbal (escrita e falada) pode desempenhar, neste

campo, uma função importante para as instituições e, particularmente,

para as empresas, ao funcionar como instrumento para explicá-Ias e

justificá-Ias, Por meio da linguagem verbal, o Homem atribui sentido às

instituições, num processo de legitimação que veicula e instaura um

conjunto de definições institucionais como única realidade possível. É

válido ressaltar que a necessidade de legitimação surge quando se

precisa transmitir a ordem institucional a uma nova geração (ou a novos

funcionários, no caso específico das empresas). A transmissão contribui

para a cristalização de determinados sentidos atribuídos à realidade.

Berger e Luckmann confirmam que "o edifício das legitimações [de uma

instituição] é construído sobre a linguagem e usa-a como seu principal

instrumento" .20 Está claro que o processo de definicão da realidade está

intrinsecamente relacionado com o processo de produção da realidade,

A essa altura, surge uma questão importante: quem constrói o discurso

organizacional que legitima?

Sêneca já apontava para o perigo e as consequências da

dominação pelo discurso, quando afirmava que o mundo é dividido em

19 BERGER e LUCKMANN, 1996, página 80. 20 BERGER e LUCKMANN, 1996, página 92.

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18

bons e maus, e a classificação é feita pelos primeiros. Na nossa sociedade

atual, verifica-se a criação e utilização de diferentes variações lingüísticas,

que são as variações sociais/culturais no uso da língua, denominadas

dia/elos sociais ou socio/elos. O valor delas, em geral, está associado ao

do grupo social (incluindo classes sociais) que a produziu e utiliza . Por

exemplo, a desvalorização social do socioleto do favelado está

relacionada à desvalorização do favelado. Quem está no poder elege e

impõe a sua variação lingüística como correta. Manoel de Barros aborda

essas questões num poema de chamado "A draga"21, do qual destaco

alguns versos (só não o reproduzo na íntegra devido à sua extensão) :

"Dos viventes do drago era um o meu amigo Mário­

pego-sapo.

Ele de noite se arrostava pelo beiro dos cosos como um

caranguejo trôpego

À procuro de velórios.

Gostava de velórios.

Os bolsos de seu coso co andavam estufados de jios.

Ele esfregava no rosto os suas barriguinhas frios.

Geléia de sapos!

Só os crianças e os putos do jardim entendiam o suo

falo de fumos brenhentos.

Quando Mário morreu, um literato oficial, em

necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Capturo-Sapo!

Ai que dor!

2I BARROS, Gramática expositiva do chão, página 45. Ver anexo 2.

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19

Ao literato cujo fazia-lhe nojo a forma coloquial.

Queria captura em vez de pega para não macular (sic)

a língua nacional lá dele ...

o literato cujo, se não engano, é hoje senador pelo

Estado.

Se não é, merecia.

A vida tem suas descompensações."

No ambiente organizacional pode-se verificar a criação de uma

"língua administrativa"22 - dialeto social produzido pela classe dominante -,

instituída como única representativa do discurso organizacional e,

portanto, legitimadora dos valores que sustentam este discurso. Na nossa

sociedade atual impera o pensamento etnocêntrico de que há ' língua

certa ' e ' língua errada' (referindo-se às variações lingüísticas) e, por

extensão, de que há culturas superiores e culturas inferiores. "A norma

lingüística utilizada pelos que detêm o poder transforma-se na 'língua'

modelar", considerada correta, e "as variedades lingüísticas usadas pelos

segmentos sociais subalternos são consideradas erros, transgressões e seus

usuários são, por isso, ridicularizados" .23

Isso corresponde a um mecanismo para conservar as significações

dominantes atribuídas a uma instituição, denominado aniqui/açãcf24• Pelo

mecanismo de aniquilação, a classe dominante promove a atribuição de

22 Este termo, utilizado por CHANLAT e BÉDARD (In: CHANLAT, 1 993, v. 1 , página 1 39), é aqui definido com um sentido mais específico. 23 FIORlN, 1995, página 7. 2 4 Este conceito é desenvolvido por BERGER e LUCKMANN, 1 996.

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20

um valor negativo e inferior às variações lingüísticas usadas pelos grupos

sociais não dominantes, com vistas a negar (aniquilar) o conteúdo que

veiculam, ou seja, as interpretações divergentes sobre o status quo.

Além disso, institui-se, na organização, um 'culto ao silêncio ' , em que

a fala dos empregados é considerada ' roubo ' do tempo de serviço pago

pelo empregador. "Tempo é dinheiro", diz o ditado. Verifica-se, então, por

parte dos empregados, o "mutismo cotidiano que lhes impõem as

direções patronais".25

A "língua administrativa" domina o espaço da organização e os

espaços de produção e veiculação do discurso organizacional legitimado,

incluindo a mídia especializada (que engloba a revista Ser Humano),

impondo-se como modelo. Transforma-se, então, no dialeto social padrão

da empresa, considerado melhor do que os outros.

Omar Atkouf realizou um estudo etnográfico em duas cervejarias

(uma em Montreal e outra em Argel), englobando as diferenças entre a

língua falada pelos Homens operários e a falada pelas pessoas de

posição hierarquicamente superior. A 'fala hierárquica' , obedecendo

rigorosamente às normas cultas da língua, freqüentemente abordava

temas como produtividade, produto e patemalismo. Já o discurso dos

Homens operáriOS evidenciou um sentimento de exclusão, de "ser deixado

à margem: 'eles não nos conhecem', ' para eles, a única preocupação é

"CHANLAT, 1 993, v.l, página 1 45.

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2 1

a produção ' "26, o que acabou gerando raiva e hostilidade em relação

aos chefes e ao produto da empresa. Este exemplo aponta para uma

possível consequência do conflito entre variações lingüísticas numa

instituição, diante de uma situação em que uma variação lingüística é

imposta como mais correta do que as outras. Se o discurso organizacional

ancora-se numa "língua administrativa" que determinadas classes não

dominam, estas estão automaticamente impedidas de participar de sua

produção, o que pode gerar sentimento de afastamento e hostilidade em

relação ao grupo produtor do dialeto social padrão.

Nesta situação de 'monopólio do discurso ' , onde a linguagem atua

como legitimadora das instituições, é freqüente o estabelecimento de

uma 'memória oficia l ' construída pelo discurso dominante. Neste processo,

ocorre a fixação de uma significação para o passado (ou para atitudes ou

procedimentos institucionais originados em épocas passadas), refundado

ou ressignificando retroativamente o passado, de modo que justifique o

presente. Para uma ilustração poética, vejamos como o poeta Fernando

Pessoa produz significações para o seu passado (e seu presente) neste

poema, especialmente na última estrofe:

"Pobre velha música!

Não sei por que agrado,

Enche-se de lágrimas

Meu olhar parado.

26 CHANLAT, 1 993, v. l , página 1 42.

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Recordo outro ouvir-te.

Não sei se te ouvi

Nessa minha infãncia

Que me lembra em ti.

Com que ãnsia tão raiva

Quero aquele outrora!

E eu era feliz? Não sei.'

Fui-o outrora agora. "27

22

Ainda no processo de legitimação de uma instituição, pode ocorrer

a construção de uma 'memória do futuro ' , em que o discurso dominante

propõe (impõe) um sentido 'oficia l ' para o presente, a ser lembrado no

futuro como verdadeiro.

b) Reificação

Esta construção e imposição de significações pelo discurso

dominante contribui para o perigoso processo de reificação de uma

instituição (organização). É interessante lembrar que a palavra latino res

(origem de reificação) significa coisa. No curso da história de uma

instituição, seus significados vão sendo transmitidos às novas gerações, que

passam a apreendê-Ia como coisa ou fato natural, ' dado ' , estranho,

independente do Homem, e não mais como criação social. O Homem

esquece ou perde a consciência da sua posição de construtor da

realidade. E pode, ainda, perceber as instituições como entidades

27 PESSOA, 1 990, página 141 .

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23

sobre-humanas, ao constatar que já existiam antes de seu nascimento e

permanecerão após sua morte.

O que advém desta situação é uma possível inércia da ação

intencionalmente transformadora, ou 'aliena-ação ' . Ou seja, o Homem se

distancia da idéia de que, se as instituições são um produto humano,

podem ser alteradas pelos Homens a qualquer momento. Estes procuram

adequar-se a elas (e aos papéis que lhes cabem), e acomodam-se numa

imobilidade conformada, já que as transformações parecem não estar ao

seu alcance. Os comportamentos ficam, portanto, guiados pelas

instituições.

Reduz-se, assim, a ameaça de redefinição e subversão da ordem

institucional. Controle social ou condicionamento da ação humana: eis o

perigo do processo de reificação.

Em última instância, pode-se concluir que o estabelecimento (e

constante transmissão a novas gerações) de significações dominantes

para a realidade inibe a tranformação social. Isto verifica-se,

particularmente, no caso das organizações, em que a classe dominante

se resguarda o direito de produzir as significações a serem transmitidas.

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24

CAPíTULO 4

ESCRITA:

A Q U ESTÃO DO ESCRITOR-lEITOR

"Esconder-se por trás dos palavras para mostrar-se. "

Manoel de Barros

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25

4.1 A FALA E A LíNGUA

Com base nas idéias de Ferdinand de Saussure, pode-se dividir a

linguagem verbal em /angue ( língua) e paro/e (fala - oral/escrita) . A língua

é um sistema estruturado de signos lingüísticos. O léxico, a fonética e a

gramática são as três divisões do sistema da língua. São os traços

fonéticos, gramaticais e lexicais que servem de norma a todo produto da

fala. A grosso modo, língua é a linguagem verbal em 'estado de'

gramática e dicionário. Segundo Saussure, a língua é "um produto social

da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias,

adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos

indivíduos".28 Assim, língua é uma abstração, criada para atender à

necessidade de comunicação dos homens. A fala é o uso da língua, é a

aplicação deste sistema, é a língua 'em ação' . Neste sentido, a fala é

individual. e é ela a responsável pelas alterações que a língua sofre no

tempo. Quando uma inovação (fonética, sintática ou semântica) da fala

torna-se aceita e repetida constantemente pela comunidade, ela pode

ser incorporada pela língua. Assim, um fato da fala torna-se um fato da

língua. Busquei uma ilustração poética para esta questão. Manoel de

Barros encerra o seu poema chamado "A draga"29 com os seguintes

versos:

28 SAUSSURE, 1 991, página 1 7. 29 BARROS, Gramática expositiva do chão, página 45. Ver anexo 2.

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Da velha drago

Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram as ex­

pressões: estar na drago, vi ver na drago por estar sem

dinheiro, viver na miséria

Que ora ofereço ao filólogo Aurélio Buarque de

Hollanda

Para que as registre em seus léxicos

Pois que o povo já as registrou.

26

Saussure foi O criador da Lingüística, que se volta para o estudo da

língua. Assim, o autor defende que nem todas as inovações da fala tem o

mesmo êxito (no sentido de serem incorporadas pela língua), e,

"enquanto permanecem individuais, não há porque levá-Ias em conta,

pois o que estudamos é a língua: elas só entram em nosso campo de

observação no momento em que a coletividade as acolhe".3o O foco de

atenção desta pesquisa será voltado para a fala, privilegiando, portanto,

as inovações individuais.

4.2 O LEITOR

4.2. 1 Colher e nomear

Um ato permanente do homem no mundo é o ato de leitura. Não

podemos conhecer a essência dos objetos, mas sim fazer uma leitura

deles. As coisas são o que elas representam ou significam para uma

determinada pessoa, inserida numa dada época e cultura.

30 SAUSSURE, 1 99 1 .

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27

Importante ressaltar que o conceito de leitura aqui utilizado está

ampliado para além da decifração do código escrito. Leitura é entendida

como a capacidade de atribuir sentidos às coisas, de interagir, de

interpretar textos em diversas linguagens. Não se lêem apenas livros, mas

lêem-se também filmes, quadros, propagandas, gestos, mutações da

natureza e tudo o mais que se nos apresenta com possibilidade

interpretativa. Roland Barthes, ao tratar da transitividade do verbo ler (Iê­

se 'alguma coisa'), afirma que os Objetos diretos a ele relacionados, ou

seja, os 'objetos de leitura'

" ... são tão variados que não posso unificá-los sob nenhuma categoria

substancial, nem mesmo formal; apenas posso encontrar neles uma unidade

intencional: o objeto que eu leio é fundado apenas pela minha intenção de

ler."31

Com esse conceito de leitura, que ultrapassa a decodificação do

código escrito, reforça-se a idéia de que se lê o mundo, antes mesmo de

se poder ler o texto escrito. Conclui-se que leitura não é hábito, mas sim

atividade permanente da condição humana, é exercício permanente do

homem em sociedade. Assim, a criança lê o mundo antes mesmo de sua

alfabetização. Constrói significados para tons de voz, cheiros, expressões

faciais, hierarquias, relações de poder... Nessa perspectiva, leitura é

prática de vida.

3\ BARTHES, 1 988, página 44.

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28

Eliana Yunes amplia a discussão. De acordo com a autora, o olhar

do homem sobre o mundo sempre foi,

" . . . necessariamente, mesmo quando essa consciência do sinal. da letra, não

existia, um olhar de ledor. Sem esse olhar ledoré impossível a sobrevivência.

o homem lê desde sempre e lê não só o verbo; lê todos os significantes que

estão disponíveiS e nos deixou os de sua primeira invenção no mundo das

cavernas. Essa potencialidade para significar, que é germe mesmo dessa

condição humana, faz com que o homem imediatamente compreendo os

objetos, os outros homens, dentro de uma ótica de apropriação de uma

imagem, uma imagem por ele mesmo 'desenhada' e que, muitas vezes, não

corresponde ao objeto de que trata, senão por analogia criada".3'

o processo de leitura é um exercício de interação do leitor com o

texto, a partir de suas referências pessoais, históricas, sociais. Segundo

Yunes, o texto demanda o leitor e seu repertório de leituras: "não se vai nu

ao encontro com o texto, mas com toda a carga de memória que se tem,

e das próprias experiências".33 Ou seja, a leitura mobiliza o acervo pessoal

do leitor (suas memórias, vivências, valores, desejos, necessidades ... ), para

a construção de sentidos.

Ao se considerar o mundo como texto, percebe-se a necessidade

de um recorte para a leitura. Na impossibilidade de apreender e atribuir

sentidos a tudo, o Homem faz um recorte antropocultural do mundo,

traduzido em linguagem.

32 YUNES, "Leituras da leitura", página 1 8 1 . 33 YUNES, "Leituras da leitura", página 183.

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29

o sentido da palavra ler; na sua etimologia, está associado à idéia

de colheita. O leitor nomeia (atribui sentido a) o que (es)colhe (consciente

ou inconscientemente) . E colhe de acordo com seus desejos,

necessidades e interesses. Esta leitura (de mundo) é, portanto. orientada

por um viés pessoal e um viés histórico-social. inter-relacionados.

O viés pessoal diz respeito à singularidade de cada sujeito leitor,

com sua maneira única de sentir e se expressar. Como manifestação

desta singularidade na escrita. pode-se perceber que o estilo de cada

autor é único e inimitável. Estilo é aqui entendido como um modo único e

particular de usar a língua.

O viés histórico-social está relacionado à época e ao grupo

(especialmente à classe) social do sujeito leitor. Seu grupamento social vai

determinar, a partir da socialização primária, a aquisição de uma dada

variação lingüística (que veicula significados e valores de um grupo social),

influenciando, conseqüentemente, sua percepção de mundo (já que os

nossos sentidos são 'educados' pela linguagem) e seu modo de pensar.

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30

4.2.2 Socialização primária

"Carrego meus primórdios num andor.

Minha voz tem um vício de fontes. "

Manoel de Barros

A interiorização de uma variação lingüística (relacionada a

determinado grupo social) ampara o processo de socialização primária,

que ocorre basicamente dentro da família. A linguagem é o principal

instrumento da socialização. Por meio dela a criança se socializa, ou seja,

aprende a viver em sociedade e torna-se membro dela, interiorizando a

realidade tal como é percebida pelo seu grupo social (tendo a família

como representante/reprodutora dos valores, interesses, significações e

formas de pensamento deste grupo) . Nessa etapa, a criança assume essa

realidade particular (moldada pela leitura de mundo de seus pais) como

única realidade possível. Por esse motivo, "o mundo interiorizado na

socialização primária torna-se muito mais firmemente entrincheirado na

consciência do que os mundos interiorizados nas socializações

secundárias".34 A socialização secundária é "qualquer processo

subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do

mundo objetivo de sua sociedade" .35

No processo de socialização primária, a mediação entre a criança

e o mundo - percebido como realidade social dotada de significação - é

feita pelos pais ou pessoa encarregada de sua socialização. Estes

34 BERGER e LUCKMANN, 1 996, página 1 80. " BERGER e LUCKMANN, 1996, página 1 75.

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3 1

mediadores são, de acordo com Berger e Luckmann, "outros significativos"

com os quais a criança se identifica (e, por isso, interiorizo a realidade a

partir da leitura deles) . O processo de socialização primária, normalmente,

apóia-se na relação afetiva entre a criança e seus "outros significativos", o

que reforça o conteúdo interiorizado nesse período.

A identidade da criança, seus valores, seus interesses, sua forma de

pensar, falar e agir, vinculam-se, assim, à sua posição na estrutura social.

4.3 O ESCRITOR

Nossas ações decorrem da nossa leitura de mundo. Isto se verifica

também no processo da escrita. A leitura é, portanto, parte da escrita: o

escritor escreve o que lê do mundo. O conceito de escritor está aqui

ampliado para significar o produtor de texto escrito.

A palavra texto vem de tecido, vem do verbo tecer. Texto é um

tecido cultural. Segundo Manuel Antônio de Castro, "é o entrelaçamento

de linhas, no caso, as orações, os períodos". Diz o autor:

" ... 0 texto ( ... ) expressa e manifesta a relação do homem com as realidades

e dos homens entre si. Então o texto tem de ser visto e relacionado a três

referentes: o homem, a realidade, a expressão. ( ... ) Todo texto é o resultado

de uma leitura. Uma leitura, enquanto modalidade de relação radical do

homem com a realidade, resulta em produtividade, conforma um texto. O

texto é, pois, em última instãncia, uma elaboração humana, um trabalho. O

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trabalho é a ação humana pela qual o homem textualizando, significando o

real se significa", 36

Todo texto é produzido por alguém, pertencente a algum lugar

social. em determinada época, com valores e interesses, expressando um

mundo lido. Assim, o texto, como ponto-de-vista, afirma a existência de

determinado sujeito (narrador) . Portanto, toda escrita pressupõe um leitor -

que a produziu.

Nietzsche já afirmava : "não existe fato em si. É sempre preciso

começar por introduzir um sentido para que haja um fato",37 Ou seja, o

que há não são fatos, mas sim interpretações. O filme Rashomon, do

cineasta japonês Akira Kurosawa, é uma bela ilustração desta questão.

No início deste filme, o espectador vê um casal passeando num bosque.

De repente aparece um outro homem, que estupra a mulher do casal

inicial . O filme mostra, depois, o julgamento do estuprador, em que o

espectador ouve quatro versões para o crime: a da mulher violentada, a

do marido (que foi morto pelo estuprador, mas envia seu depoimento

através de uma médium), a do estuprador e a de uma testemunha que

estava escondida no bosque e presenciou a cena. Devido à composição

magistral do cineasta, o espectador descobre, atônito, que as quatro

versões narradas, apesar de diferentes (e até opostas, em alguns casos),

36 CASTRO, "Natureza do fenômeno literário", página 31. 37 Apud BARTHES, 1988, página 1 55,

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33

são possíveis para expressar (significar) a cena que nos foi mostrada no

início do filme.

Volto à idéia de que os fenômenos em si não têm sentido, o homem

é que lhes atribui sentido, através da leitura. O que existe são leituras, são

versões sobre os fatos. Ou, como afirma Barthes, "o fato nunca tem mais

do que uma existência Iingüística".38 Ao descrevê-lo (expressá-lo), o sujeito

fala de si próprio, já que exprime uma leitura singular, orientada por um

viés pessoal e um viés histórico-social, como foi visto.

Pensar o mundo é pensá-lo numa linguagem. Para organizar num

discurso uma leitura de mundo é necessário seleção e organização. Na

montagem de um texto, tem-se que escolher e trançar fios

(leituras/sentidos/palavras) . Ao se considerar a escrita como expressão de

uma leitura singular de mundo, atrela-se o texto escrito ao viés pessoal e

social que orienta a leitura. A fala (incluindo a escrita) do sujeito está,

portanto, vinculada à localização deste na estrutura social, sendo

marcada pelos valores, interesses e, essencialmente, pela variação

lingüística de sua classe social. Vista por este ângulo, a fala tem caráter

individual e social.

Resumindo, não existe texto que não tenha sido construído por

alguém. Neste sentido, os discursos são marcados pelo ponlo-de-vista do

narrador. E cada sujeito é marcado pelo que viu, ouviu, leu, viveu. É

38 BARTHES, 1 988, página 1 55.

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34

atravessado pela intersubjetividade, já que ele não é um sujeito isolado,

mas sim um sujeito entre sujeitos. Seu olhar é embaçado por um véu

pessoal, histórico e social. O conteúdo da fala (oral/escrita) é sempre

filtrado por este véu. Pela fala, o sujeito vai dando forma a si mesmo e ao

mundo, numa linguagem que ele mesmo elege e conforma.

4.4 SOCIOLOGIA DO CONHEC IMENTO

Karl Mannheim, no domínio da Sociologia do Conhecimento,

estudou a influência da posição social (grupamento social) na fala do

sujeito. Ao mencionar grupamentos sociais, refere-se não apenas a classes

sociais (como ocorre no marxismo), mas também a gerações, seitas,

grupos de status etc. Apesar disto, o autor afirma:

"É claro que não pretendemos negar que o mais importante. dentre os

grupamentos e unidades sociais ( . . . ) . seja a estratificação de classes. uma

vez que. em última análise, todos os demais grupos sociais surgem e são

transformados como partes das condições mais básicas de produção e

dominação".39

A Sociologia do Conhecimento é teoria e método (histórico-

sociológico) de pesquisa. Como teoria, assume a forma de investigação

empírica, por meio da descrição e análise estrutural da influência da

posição social (e histórica) no pensamento (e, consequentemente, no

,. MANNHEIM, 1968, página 297.

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35

discurso) . Segundo Mannheim, um número crescente de casos concretos

evidencia que:

" ... a) toda formulação de um problema somente é possibilitada por uma

experiência humana própria efetiva que envolve tal problema; b) a seleção

da multiplicidade de dados implica um ato de vontade do sujeito

cognoscente; e c) as forças que emergem da experiência vivida são

significativas para a direção que o tratamento do problema tomará".40

Em suma, a Sociologia do Conhecimento busca clarear a

correlação entre processos sociais (e históricos) e processos de

pensamento.

Com este fim, Mannheim introduz o conceito de perspectiva, como

sendo o "modo g lobal de o sujeito conceber as coisas, tal como

determinado por seu contexto histórico e social".41 Em outras palavras,

perspectiva seria o 'ângulo pessoa l ' pelo qual o sujeito lê o mundo,

vinculado também à sua época e grupo social. Estabelece-se, então,

uma relação obrigatória entre discurso (oral/escrito) e perspectiva do

sujeito narrador.

Pode-se ' localizar' (histórica e socialmente) as pessoas pela

perspectiva de seu discurso. O mundo particular que elas representam se

faz presente na fala. Já vimos que cada grupo social constrói e utiliza uma

variação lingüística que expressa seus valores, interesses e significações.

40 MANNHEIM, 1 968, página 290. 41 MANNHEIM, 1 968, página 288.

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Portanto, palavras (e conceitos) mudam de significado de acordo com a

posição social do narrador.

É importante, neste momento, ressaltar também a historicidade dos

discursos. As palavras e expressões (e, portanto, os discursos) também

mudam de significado de acordo com a época em que são

pronunciadas. Já que o sistema capitalista de mercado (relevante para

esta pesquisa) se desenvolveu especialmente a partir da Revolução

Industrial , cito o exemplo da palavra revolução. De acordo com Hanna

Arendl, o significado original do termo revolução circunscrevia-se aos

movimentos dos corpos celestes cujo percurso - inevitável e inexorável -

conduz sempre ao mesmo ponto inicial, como um movimento regular e

sistemático de eterno retorno a este ponto. Era, portanto, um termo

astronômico, posteriormente utilizado como metáfora que trazia a idéia de

retorno a um mesmo ponto. Após as grandes revoluções do século XVI I I

(especialmente a Francesa), o significado da palavra revolução muda

radicalmente, e passa a se associar às idéias de inovação e ruptura (da

antiga ordem), opostas ao significado anterior. Segundo a autora,

"Quando, de início, a palavra desceu dos céus e foi introduzida para

descrever o que acontecia na terra entre os mortais, apareceu claramente

como uma metáfora, transportando a noção de um movimento eterno,

irresistível. ( . . . ) o palavra revolução [já utilizada como metáfora] significou

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originalmente restauração, algo, portanto, que para nós representa

exatamente ° oposto".'2

Concluindo, uma análise dos conceitos presentes em um discurso

contribui para caracterizar a perspectiva do narrador, vinculado a um

grupo social distinto e a uma determinada época.

Modelos de pensamento que guiam os discursos também oferecem

pistas para vincular uma perspectiva a uma dada época ou situação

social. Para um exemplo pertencente à nossa sociedade atual, cito o

modelo marxista, que, basicamente, orienta o pensamento de classes

sociais que se opõem ao sistema capitalista e defendem um outro sistema

sócio-político-econômico (socialismo) .

Além disso, Mannheim propõe outras características do discurso que

podem ajudar a desvendar a perspectiva que o modela. Dentre elas,

figuram o fenômeno do contraconceito, a ausência de certos conceitos,

a estrutura do aparato categórico, o nível de abstração e a ontologia

pressuposta . 43

A análise de conceitos (percebidos a partir das figuras de

linguagem) presentes nos artigos da revista Ser Humano, será útil na

investigação das perspectivas que guiam os discursos.

A Sociologia do Conhecimento diferencia-se do estudo das

ideologias, preocupado em "desvendar os enganos e disfarces mais ou

4 2 ARENDT, 1990, página 34. 43 Para um aprofundamento destas idéias. consultar MANNHEIM, Karl. ldeolo'gia e Utopia. Capítulo 5.

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3 8

menos conscientes dos grupos de interesses humanos".44 Mesmo quando a

Sociologia do Conhecimento utiliza o termo ideologia, foge de intenções

morais ou denunciadoras.

Como explica Mannheim, a Sociologia do Conhecimento

" .. . não está tão interessada nas distorções devidas ao esforço deliberado de

iludir, mas nos modos variáveis segundo os quais os objetos se apresentam

ao sujeito, de acordo com as diferenças das conformações sociais. Assim, as

estruturas mentais são inevitavelmente formadas diferentemente em

conformações sociais e históricas diferentes".45

Então, este ramo da Sociologia evita a conotação moral que

envolve o termo ideologia, e se detém sobre a idéia da perspectiva (que

direciono os discursos) . U m estudo da noção de ideologia poderá

contribuir para esta pesquisa.

4.5 CONCEPÇÃO MARXISTA DE IDEOLOGIA

Os conceitos de ideologia são tantos, que levam Berger e Luckmann

a declarar: "o termo ' ideologia ' tem sido usado em sentidos tão diferentes

que é possível perder a esperança de usá-lo de alguma maneira

precisa".46 Pode ser útil a este trabalho a idéia marxista de Marilena Chaui:

"A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de

representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) ( ... ) Ela

é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras,

44 MANNHEIM, 1 968, página 287. 45 MANNHEIM, 1 968, página 287. 46 BERGER e LUCKMANN, 1996, página 1 66.

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preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar

aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação

racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir

tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na

esfera da produção"."

Por esse ângulo, a ideologia é um corpo teórico que legitima

interesses de determinado grupo (classe) social dominante. Nem sempre

ela evidencia esses interesses, preferindo camuflá-los para evitar conflitos

com as classes dominadas, e para que estas possam incorporar a

ideologia da classe dominante como legítima para toda a sociedade.

Neste sentido, entende-se ideologia como instrumento de dominação de

classe.

Falando sobre as diferentes representações da realidade, Leandro

Konder defende, com enfoque marxista, que

"A partir da divisão social do trabalho, desapareceu a possibilidade de se

desenvolver um ponto de vista universal espontaneamente comum a todos

os homens. ( ... ) As classes dominantes, ao governarem a sociedade dividida,

utilizam o aparelho do Estado para inculcarem nos indivíduos das classes

exploradas a ideologia que serve para justificar a exploração. Ou, no melhor

dos casos, a ideologia que prejudica qualquer ação eficaz contra o sistema

que convém aos exploradores".48

47 CHAUI, 1 996, página 1 1 3. 4' KONDER, 1 983, página 70.

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40

Assim, as idéias da classe dominante sao sempre as idéias

dominantes da sociedade. Marx afirma que os indivíduos que constituem a

classe dominante

" . . . dominam também como pensadores, como produtores de idéias,

regulam a produção e a distribuição de idéias do seu tempo; que, portanto,

as suas idéias são as idéias dominantes da época. Numa altura, por

exemplo. e num país em que o poder real. a aristocracia e a burguesia

lutam entre si pelo domínio. em que portanto o domínio está dividido,

revela-se idéia dominante a doutrina da divisão dos poderes. que é agora

declarada uma « lei eterna» ".49

Estas "leis eternas" compõem a ideologia da classe dominante, e

justificam seus interesses. Desse modo, a classe dominante influencia o

pensamento de todas as outras classes que, freqüentemente, quando

desejam e pensam em mudanças para o status quo, continuam

assumindo como válidas (ainda que sem percepção consciente)

determinadas "leis eternas", impostas pela classe dominante como válidas

para todos.

Marx resume as questões discutidas da seguinte forma: "As idéias da

classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes, ou seja,

a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo

tempo, o seu poder espliitua/dominante."50

49 MARX e ENGELS, 1 984, página 57. 50 MARX e ENGELS, 1 984, página 56.

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Um ponto especialmente importante para esta pesquisa é o fato de

que a classe dominante 'distribui' e implanta suas idéias através de

instituições sociais como família, escola, partidos políticos, igreja, meios de

comunicação de massa, entre outras. A revista Ser Humano figura como

representante dos meios de comunicação de massa, não estando,

portanto, imune a ideologias e doutrinas.

Uma outra aproximação possível do caráter social do discurso é

pela filosofia marxista da linguagem. Desta linha de pensamento, o que

interessa, basicamente, a esta pesquisa. é a idéia de que as linguagens

funcionam como veículos para ideologias. De acordo com Mikhail Bakhtin.

"a filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar como base de

sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como

estrutura sócio-ideológica".51 A enunciação é entendida como o

produto/ato da fala (incluindo a escrita) . Toda enunciação é socialmente

dirigida. é produto de interação social (há sempre um interlocutor - ao

menos potencial) . A situação social orienta a enunciação. Para a filosofia

marxista da linguagem. a palavra funciona como "elemento essencial

que acompanha toda criação ideológica"52 (seja em discurso interior -

sem expressão externa - ou exterior). Esta linha de pensamento coloca a

palavra como objeto primordial do estudo das ideologias, já que a

" BAKHTIN, 1995, página 126. " BAKHTIN, 1995, página 37.

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42

entende como o "fenômeno ideológico por excelência"53. Bakhtin é

categórico ao afirmar que "sem signos não existe ideologia".54

4.6 A I DEOLOGIA DE MERCADO NO DISCURSO ORGANIZACIONAL:

HOMEM OU MÁQUINA?

"Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:

quando cheias de areia de formiga e musgo - e/as

podem um dia mi/agrar de f/ores. "

Manoe/ de Barros

Numa crítica à atual teoria da organização, Guerreiro Ramos

esclarece que "antes da sociedade de mercado, nunca existiu uma

sociedade em que o critério econômico se tornasse o padrão da

existência humana. A presente teoria da organização é, sobretudo, uma

expressão da ideologia de mercado".55 Neste contexto se encaixam os

artigos da revista Ser Humano analisados nesta pesquisa.

Pela ideologia de mercado, o Homem é visto sob uma ótica

reducionista, que conduz "à identificação do comportamento econômico

como constituindo a totalidade da natureza humana".56 O que, no

entanto, não corresponde à realidade. Comportamento econômico é

aqui entendido como "qualquer tipo de ação empreendida pelo Homem,

53 BAKHTlN, 1995, página 38. Para um maior aprofundamento sobre a filosofia marxista da linguagem (que escapa aos objetivos desta pesquisa), consultar BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da

linguagem.

54 BAKHTIN, 1 995, página 3 1 . 55 RAMOS, 1 989, página 127. 56 RAMOS, 1989, página J 2 1 .

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43

quando ele é movido, apenas, pelo interesse de elevar ao máximo seus

ganhos econômicos".57 De acordo com Guerreiro, a sociedade de

mercado transforma o Homem num "animal econômico", cujas ações são

guiadas pelo caráter utilitário, imanente às organizações econômicas

formais de hoje (que servem, de um modo geral, à acumulação de

capital ) . As organizações formais são "fundadas em cálculo e, como tal,

constituem sistemas projetados, criados deliberadamente para a

maximização de recursos".58 Mas o "animal econômico", visto muitas vezes

como recurso da organização, não corresponde ao Homem em todas as

suas dimensões. A singularidade e a subjetividade de seus sentimentos,

emoções, desejos e necessidades pessoais nem sempre são considerados

pela organização formal, o que pode esvaziar o sentido da parcela de

vida dispendida no ambiente organizacional. Ainda que enxerguemos o

problema dentro da ótica econômica, poderá se observar queda de

produtividade, derivada de falta de motivação e mesmo infelicidade do

Homem trabalhador.

57 RAMOS, 1 989, página 1 2 1 . " RAMOS, 1 989, página 125.

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44

CAPíTULO 5

S IGNO LINGüíSTICO:

A LIBERDADE DA METÁFORA

"Se você prende uma água, ela escapará pelas frinchas.

Se você tírar de um ser a liberdade, ele escapará por metáforas. "

Manoel de Barros

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45

5.1 ALGUMAS DEFIN iÇÕ ES

Será interessante, a essa altura, clarear alguns conceitos presentes

nos capítulos anteriores.

Entende-se que a linguagem (verbal ou não verbal), em definição

semiológica, é um sistema de signos (que permite a comunicação) . O

signo é o objeto de estudo da semiologia.

Pela definição geral de Charles Sanders Peirce, signo é qualquer

elemento que representa outro. Mais especificamente, o signo é uma

criação/convenção social, que corresponde à unidade de significação.

Todos os signos são formas de representação, estabelecidas com maior ou

menor grau de arbitrariedade. Assim, estão vinculados à cultura de uma

dada comunidade. Os signos são, portanto, elementos que permitem a

construção de significação. Podem ser lingüísticos ou não lingüísticos.

Acerca das questões levantadas, Chanlat e Bédard esclarecem:

"Com a linguagem, o homem chega à faculdade de simbolizar, vale dizer,

à faculdade de representar o real através de um 'signo' , e de compreender

o 'signo' como representante do real; ou seja, chega à faculdade de

estabelecer uma relação de significação entre duas realidades distintas,

uma concreta, outra abstrata. Em outros termos, é dessa possibil idade de

'manejar os signos da língua que nasce o pensamento' (Benveniste, 1 966, 1. 1 :

26, 741. Tal conquista decisiva da faculdade de abstração concederá ao

homem a possibilidade de apossar-se do universo e transformá-lo".59

" CHANLAT e BÉDARD, "Palavras: a ferramenta do executivo", página 127.

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o signo lingüístico é a unidade lingüística de significação, resultante

da relação entre significante (imagem acústica) e significado (conceito).

No cérebro humano, os conceitos se acham associados às representações

dos signos lingüísticos ou imagens acústicas que servem para exprimi-los.

o elo estabelecido entre o significante e o significado é arbitrário. Desse

modo, a idéia ou o conceito de 'casa' não tem nenhuma relação

necessária com o conjunto de segmentos fõnicos c-a-s-a (que lhe serve

de significante) - a relação se forma por convenção social. Percebe-se

que qualquer outro conjunto de segmentos fônicos poderia igualmente

representar a idéia de casa, desde que se convencionasse socialmente.

Segundo Gilberto Mendonça Teles, "é desse distanciamento entre

( .. . ) o significante e o significado que resulta a idéia de ambigüidade, de

conotação"60, já que não há uma relação lógica, exata, obrigatória ou

natural entre um significante e determinado significado. Portanto, o

sentido que vai prevalecer para um significante, num determinado texto,

dependerá, mais uma vez, da leitura/interpretação do sujeito leitor.

5.2 CONOTAÇÃO

Conotação designa "os vários sentidos que um signo lingüístico

adquire no contato com outros signos dentro do texto"61, alterando-se o

sentido literal (denotativo) . Por este prisma, o sentido conotativo depende

60 TELES, 1 989, página 30. 61 MOISÉS, 1995, página 95.

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do contexto, ou da relação com as outras palavras do contexto. O termo

contexto é derivado do latim contextu(m), que quer dizer tecido

conjuntamente. Segundo Massaud Moisés, o contexto é o

"encadeamento de palavras do texto numa sucessão inextricável,

formando um conjunto que se autojustifica" .62 Assim, o contexto torna-se

fundamental para direcionar sentidos possíveis.

Apesar da pOlissemia possível (pluralidade de significações) que

envolve a palavra, ela não deixa de ser una - na permanência de uma

composição fonética e na manutenção de um sentido (ou de um campo

de significação) convencional (norma) . Assim, o dicionário fixa uma

significação descontextualizada. Mas é o contexto que vai determinar os

significados possíveis.

Retomo o texto de Eliana Yunes citado no terceiro capítulo, indo

mais à frente:

" . . . 0 palavra nos deixa ( . . . ) uma ilusão de que é possível apreender na sua

integridade o objeto pela nomeação (para em seguida negá-Ia pela

ambigüidade) . Vamos instalando com relação à palavra uma certa

desconfiança, porque é portadora de um mistério e, quanto mais se busca

fixá-Ia, mais ela impõe o seu duplo e seu mistério" .63

O mistério da palavra remete à ambigüidade, à impossibilidade de

um sentido fixo e único para cada palavra ou expressão. Isto é explorado

62 MOISÉS, 1995, páginas 97 e 98. 63 YUNES, "Leituras da leitura", página 1 8 1 .

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48

de forma especial com o uso das figuras de linguagem em que há um

deslocamento ou desvio do campo de significação usual.

5.3 METÁFORA E OUTRAS F IGURAS DE L INGUAGEM

5.3. 1 Definições

Para simplificar, tenho usado os termos texto, escrita, discurso,

narrativa com o sentido de texto escrito (produzido por um sujeito que

venho chamando de narrador, autor ou escritor) . Será analisado, agora,

um recurso peculiar de sua construção: as figuras de linguagem. E, mais

especificamente, a metáfora.

Figuras de linguagem são "aspectos que assume a linguagem para

fim expressivo, afastando-se do valor linguístico normalmente aceito".64 As

figuras podem ser de palavras (ou tropas), de sintaxe (ou de construção)

ou de pensamento. Nas figuras de palavras (incluindo a metáfora), há um

desvio no significado convencional, normalmente associado a

determinado significante. Ou seja, opera-se uma mudança semântica. Nas

figuras de sintaxe, observa-se uma alteração na estrutura normal da frase.

Já as figuras de pensamento "resultam de uma discrepância entre o

verdadeiro propósito da enunciação e sua expressão formal "65, se

entendermos enunciação como fala psíquica (sendo o enunciado a fala

64 CAMARA Jr., 1977, página 1 16. 65 CAMARA Jr., 1 977, página 1 16.

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física. ou seja, a expressão formal da enunciação) .66 Nesta pesquisa, as

figuras de linguagem analisadas a partir da leitura dos textos da revista Ser

Humano (capítulo 6) serão figuras de palavras.

A palavra metáfora se origina do grego metaphoró, que significa

transporte, translação. Estas duas categorias estão associadas a

movimento. No seu uso em língua portuguesa, que tipo de movimento a

metáfora pode proporcionar? De sentidos, talvez.

De acordo com a definição atual e esclarecedora de Rocha Lima,

presente em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa. a metáfora

. , ... consiste na transferência de um termo para uma esfera de significação

que não é a sua, em virtude de uma comparação implícita. ( ... ) Assenta a

metáfora numa relação de similaridade, encontrando o seu fundamento na

mais natural das leis psicológicas: a associação de idéias. Assim, ela

transporta o nome de um objeto a outro, graças a um caráter qualquer

comum a ambos"P

Ou seja, com o uso da metáfora, o narrador faz um recorte no conceito

total, privilegiando determinado caráter ou característica em detrimento

dos demais. Nesse sentido, a metáfora pode, em alguns casos, dar ensejo

ao reducionismo. É importante ressaltar que a relação de similaridade,

mencionada por Lima, é subentendida, e não explícita, o que favorece a

ambigüidade.

66 Para um maior aprofundamento dessas idéias, consultar CAMARA Jr., 1 977, página 1 16; LIMA, 1 996, capítulo 33. 67 LIMA, 1 996, páginas 50 I e 502.

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50

Já que se falou em lei psicológica, aproveito para realçar o caráter

subjetivo da criação da metáfora. Mattoso Câmara Jr. atenta para esta

questão, afirmando que esta figura de linguagem fundamenta-se "numa

relação toda subjetiva [entre a significação própria ou convencional e a

figurada], criada no trabalho mental de apreensão"68 do narrador. Este

"trabalho mental de apreensão", como vimos em capítulos precedentes,

é também influenciado pela posição social do sujeito narrador.

Uma modalidade de metáfora que será freqüentemente analisada

nesta pesquisa é a personificação. Também chamada de prosopopéia ou

animismo, a personificação é uma figura de linguagem que implica na

"atribuição a seres inanimados de ações, qualidades ou sentimentos

próprios do homem"69.

Uma outra figura de linguagem relevante para este trabalho é a

sinédoque. Baseada numa relação de contigüidade, a sinédoque

"fornece-nos, por assirn dizer, a amostra de algo: uma parte se destina a

equivaler ao todo, a espéCie representa o gênero, o conteúdo trai a

forma que lhe dá molde etc."}O Assim, no exemplo 'a vela navegava corn

dificuldade ' , o nome de um objeto (barco) foi substituído pelo nome de

uma de suas partes (vela), que está representando o objeto inteiro. Na

análise de sinédoques, observa-se que a escolha de determinada parte

6' CAMARA Jr., 1 977, página 166.

69 LIMA, 1 996, página 503. 70 MARQUES, 1956, página 38.

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5 1

para representar o todo pode ser significativa para desvendar valores do

narrador.

Nem sempre a relação entre determinado significante e seu

significado convencionado basta ou satisfaz o narrador na sua

necessidade de expressão. Um exemplo precioso vem deste poema de

Manoel de Barros:

o rio que fazia uma volta atrás de nossa casa

era a imagem de um vidro mole que fazia uma

volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta

que o rio faz por trás de sua casa se chamo

enseada.

Não era mais o imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás de coso.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu o imagem.?'

Com intenções estéticas e/ou vontade de realçar (ou encobrir)

partes do conceito total que um nome sugere denotativamente, pode-se

recorrer ao uso da metáfora. No caso do poema citado, talvez a figura de

linguagem utilizada se assemelhe mais à sírm7e, já que explicita (mais do

que é comum na metáfora) a comparação entre os dois conceitos ("o rio

( . . . ) era a imagem de um vidro mole . . . ") . Na metáfora, observa-se a

substituição de um termo por outro: na símile, ambos os termos

comparados estão presentes no texto.

7 \ BARROS, O livro das ignorãças, página 27.

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52

Ao chamar a enseada de cobra de vidro (ou de vidro mo/e), exalta­

se um ponto de interseção (ou de similaridade) entre os dois conceitos: de

enseada e de uma cobra de vidro. Assim, busca-se ressaltar determinadas

características da enseada, como por exemplo, seu formato ou a bela

aparência da água em movimento. Com o uso desta figura de

linguagem, outros aspectos do conceito de enseada são ignorados (ou

ficam em segundo plano).

5.3.2 Metáfora e valores do narrador

Para esta pesquisa, interessa o uso das figuras de linguagem em

textos organizacionais e, portanto, não literários. Neste tipo de texto (em

que a intenção estética não é, em geral, a preocupação dominante), as

figuras de linguagem realçam os aspectos de determinado conceito que

servem aos interesses e valores do narrador naquele contexto (seja para

encobri-los ou enfatizá-los) .

Metáfora implica em escolha (pessoal, do narrador). A idéia básica,

importante para este trabalho, é que a escolha - consciente ou

inconsciente - denuncia valores. Novamente atenta-se para a ligação do

discurso com a perspectiva do narrador.

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53

5.3.3 Leituras da metáfora

Devido à multiplicidade de sentidos possíveis que a metáfora evoca,

seu uso amplia as possibilidades de leitura de um texto. Assim,

concomitantemente, a metáfora vela e revela valores do narrador,

norteadores do seu discurso. Defendo que, no caso de uma leitura

superficial de determinado texto, a metáfora (como as outras figuras de

linguagem) pode contribuir para camuflar os valores e interesses que

sustentam o discurso. Porém, esta pesquisa baseia-se na crença de que

uma leitura crítica é capaz de desvendar possíveis conjuntos de valores e

interesses subentendidos.

Para concluir, lembro Eni Orlandi quando afirma que "ler é saber

que o sentido pode ser outro"J2 E arrisco a emenda: ler é saber que o

sentido pode ser infinitos outros. Uma premissa: não há exatidão na leitura.

5.4 ESTILO

Retomo o conceito de fala, para uni-lo à idéia de estilo (do autor).

Segundo Saussure, a fala é

" . . . u m ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: l °,

as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no

propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2°, o mecanismo psico-físico

que lhe permite exteriorizar essas combinações")3

72 ORLANDI, 1988, página 12. 73 SAUSSURE, 1 99 1 , página 22.

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54

Roland Barthes reforça esta idéia, ao afirmar que a fala é um "ato

individual de seleção e atualização". Seleção e escolha pessoal

(consciente e inconsciente) no manejo com os elementos da língua:

aproxima-se a idéia de estilo. Torna-se esclarecedor o pensamento de

Teles, que resume as idéias trabalhadas:

..... a fala. na sua concreção de discurso (oral/escrito) . é compreendida

como ato individual de seleção e combinação dos elementos da língua,

constituindo o domínio da liberdade e da criação, uma vez que é nela que

se estabelece a relação entre a enunciação (fala psíqUica) e o enunciado

(fala física). A língua é o código comum; a fala, a maneira pessoal de usar

esse código. Língua e fala são portanto duas faces concomitantes e

indissociáveis da ' linguagem humana' , tal como, num plano menor,

significante e significado são realidades simultãneas do signo Iinguístico",74

Teles reforça aqui uma idéia fundamental: a fala (incluindo a

escrita) é um espaço de liberdade e criação individual - portanto, de

singularidade e subjetividade. O estilo é singular e subjetivo.

Para resumir, Domício Proença Filho define estilo de forma

extremamente útil a este estudo, como sendo:

. . . . . 0 aspecto particular que caracteriza a utilização individual da língua e

que se revela no conjunto de traços situados na escolha do vocabulário, na

ênfase nos termos concretos ou abstratos, na preferência por formas verbais

ou nominais, na propensão para determinadas figuras de linguagem, tudo

74 TELES, 1 989, página 26.

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isso estreitamente vinculado à organização do que se diz ou escreve e a um

intento de expressividade".75

55

O foco de atenção durante a análise de artigos da revista Ser

Humano (que será apresentada no próximo capítulo) estará voltado para

as figuras de linguagem.

75 PROENÇA F", 1 990, página 24.

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56

CAPíTULO 6

ANÁLISE DOS TEXTOS

"Amigo meu" certa vez, Nelson Nossif poeta oral dito e ouvIdo, saiu-se

com esta: Hoje minha boca não está idôneo poro o beijo. Tomei uma

surpresa poética. Aquele adjetivo idôneo saiu de seu hablYual

contexto de responsabilidade (cargo idôneo, firma idônea, etc.) e

veio se encostar em uma boca! Entrou em contexto de volúpia. "

Manoel de Barros

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6 . 1 INFORMAÇ ÕES IN IC IAIS

6 .1 .1 Sobre a revista

57

A revista Ser Humano, editada pela Associação Brasileira de

Recursos Humanos, veicula a seguinte definição em cada capa, acima do

título: "a revista dos gestores de Recursos Humanos". Cada edição tem

tiragem de dez mil exemplares, distribuídos em vários estados brasileiros. O

público-alvo é definido nas páginas da revista como gestores de Recursos

Humanos, formadores de opinião e administradores. Na edição de janeiro

de 1997 anuncia-se que, este ano, a revista passará a ser vendida em

banca de jornais (antes só era distribuída por mala-direta para assinantes).

O acesso à revista será facilitado, o que poderá ampliar e diversificar seu

público consumidor.

Nas páginas da revista, em cada edição, figura a definição: "Ser

Humano é a revista de quem lida com gente" . Toda vez que aparece na

revista (mesmo em artigos e reportagens), a expressão Ser Humano é

impressa com iniciais maiúsculas. Somando-se a isso o teor principal da

maioria dos artigos e reportagens, supõe-se a intenção consciente de se

construir uma revista que trate do Homem trabalhador em sua totalidade,

com razão e emoção consideradas na sua constituição.

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58

6. 1 .2 Sobre os artigos e os autores

Para esta pesquisa, foram utilizados os doze números da revista

mensal Ser Humano publicados em 1996 pela ABRH - Associação Brasileira

de Recursos Humanos. Optei pela análise dos artigos que compunham a

seção "Opinião", já que traziam algumas informações acerca do autor,

relevantes para este trabalho. Ao todo, foram analisados 35 artigos, além

de uma reportagem da edição de janeiro de 1996.

Antes de iniciar a análise dos textos, é interessante ressaltar que os

artigos foram criados por profissionais atuantes em organizações (ao

menos no momento da escrita) . Isto indica que os valores e interesses dos

narradores, revelados na linguagem escrita, estão sendo disseminados nas

empresas, embasando também a linguagem falada (e demais ações

executadas) por esses profissionais.

As informações disponíveis nos textos, referentes à formação e aos

cargos ocupados pelos autores (na época da publicação), serão listadas

a seguir. Cumpre notar que alguns artigos possuíam mais de um autor ou

mais de uma informação por autor.

1) Formação dos articulistas:

• doutor - 1 • mestres - 2 • mestrando - 1 • pós-graduados - 2 • especialistas - 2 • administrador de empresas - 1 • psicólogas - 2 • advogado trabalhista - 1 • economista - 1

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• historiadora - 1

2) Cargos ocupados pelos articulistas:

• sócios de empresa - 2 • presidentes - 2 • diretores - 1 2 • gerentes - 4 • coordenadores - 2 • assessor de desenvolvimento de Recursos Humanos - 1 • consultores - 1 6

59

• professores (em geral, de universidades ou cursos de pós-graduação) - 6 • pesquisador - 1 • autores de livros técnicos - 3 • instrutor de treinamento - 1

Os articulistas em questão residem em diversos estados brasileiros.

Um fato a ser ressaltado é que nenhum dos 35 artigos analisados foi escrito

por Homens operários, ou, ainda, fugiu aos padrões da norma culta da

linguagem.

6.2 ANÁLISE DOS TEXTOS A PARTIR DAS FIGURAS DE LINGUAGEM

É fundamental lembrar que será produzida apenas uma das leituras

possíveis do sentido das figuras de linguagem no contexto dos artigos.

Houve uma seleção pessoal das figuras a serem analisadas (nem

todas que aparecem nos textos farão parte deste trabalhO). Ainda assim,

o fato de estas estarem sendo utilizadas (mesmo que ao lado de outras

que as contradigam ou apontem para outras direções, como observado)

é significativo para desvendar possíveis valores subjacentes ao discurso.

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60

A seleção das figuras de linguagem incluiu metáforas "fósseis"76, ou

"lingüísticas"77, já que também veiculam (e propagam) valores. Conforme

Rocha Lima, nesta variação de metáfora, "tornada hábito da língua, já

não se sente nenhum vestígio de inovação criadora pessoal")8 São as

metáforas mortas, conhecidas. Estas figuras de linguagem contribuem de

forma decisiva para difundir e cristalizar seus valores implícitos, já que são

socialmente 'consagradas' ou aceitas como satisfatórias para expressar

determinado conceito. Um exemplo claro está na expressão 'recurso

humano ' , utilizada constantemente para denominar o Homem

trabalhador. Esta metáfora será analisada adiante.

Neste capítulo, os grifos feitos nas citações (em itálico - para

ressaltar - ou sublinhado - para indicar as figuras de linguagem) serão de

minha autoria . A quase totalidade dos trechos retirados dos artigos da

revista Ser Humano virão antecedidos por marcadores (círculo preto) .

6 .2. 1 Visões reducionistas do Homem

a} A coisificação do Homem

Ao abrir o primeiro exemplar da revista Ser Humano a ser analisado

nesta pesquisa (edição de janeiro de 1 996) , encontrei reportagem com o

seguinte título: "Empowerment. Mais energia na ' máquina' humana".

76 Termo utilizado por Amado Alonso. 77 Termo utilizado por Hedwig Konrad. 78 LIMA, 1 996, página 502.

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6 1

Estava definida a primeira l inha d e reflexão sobre os textos: a visão

reducionista sobre o Homem veiculada em alguns artigos.

Uma idéia constante, implícita nos textos observados é a

coisificação do Homem. Pela definição do dicionário, coisificação é

"reduzir (o Ser Humano, ou elemento(s) ligado(s) a ele) a valores

exclusivamente materiais; tratar como coisa".79

Para um exemplo em que o Homem é considerado por esse prisma

reducionista, onde emoções e sentimentos são ignoradas, encontrei a

sinédoque "cabeças treinadas" ( 1 :27 )80, referindo-se ao Homem

trabalhador. Na sinédoque, pode-se tomar, como no caso, a parte pelo

todo. Ressalto que a parte escolhida para representar o todo (Homem) foi

a cabeça. Pode-se concluir que a razão está sendo valorizada em

detrimento das emoções (excluídas desta sinédoque) .

U ma metáfora que remete claramente à visão reducionista de

' homem-máquina' está no seguinte texto:

• "as experiências traumáticas da infância ( . . . ) deixam suas marcas nos

circuitos emocionais" (8:36) .

o termo ' circuito ' é normalmente utilizado para descrever

fenômenos elétricos, não sendo freqüente a sua associação às emoções.

7 9 FERREIRA, 1975. 80 As figuras de linguagem citadas virão acompanhadas do número correspondente ao mês de publicação da revista Ser Humano, seguido da página em que aparecem (estes dados estarão sempre entre parênteses). Nesse caso, observa-se que a sinédoque "cabeças treinadas" aparece na edição do mês de janeiro ( I ), na página 27.

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62

A metáfora mais utilizada nos artigos para referir-se ao Homem na

organização é ' recurso humano' . Uma metáfora "fóssil ", convencionada

como satisfatória, mas que 'desumaniza' ou 'coisifica' o Homem,

colocando-o (numa visão reducionista) em função de sua utilidade para

as organizações. Na expressão ' recurso humano' , como observa Anna

Maria Campos, o substantivo é o termo 'recurso ' , e ' humano' é adjetivo,

ou seja, é apenas uma qualidade que se associa ao recurso (que pode ser

humano ou pertencer a outra categoria qualquer) . Numa organização

econômica formal, os recursos estão voltados para a produção de bens

ou serviços, dentro de uma lógica econômica/utilitarista de mercado. Por

esta lógica, toda ação deve ter uma utilidade, sendo executada tendo

em vista um ganho (neste caso, econômico). Segundo Guerreiro Ramos,

"a organização econômica formal [incluindo a empresa] é uma inovação

institucional recente, exigida pelo imperativo da acumulação de capital e

pela expansão das capacidades de processamento características do

sistema de mercado ".8J

Outras metáforas encontradas para falar do Homem trabalhador

foram ' piso-de-fábrica' (4:36) e ' piso da empresa ' (4:37) . Os contextos

eram:

8 1 RAMOS, 1 989, página 1 2 1 .

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63

• "esforços de mudanças e inovações esbarram de forma sistemática na

relação de ensino-aprendizado entre a alta-gerência e o piso-de­

fábrica";

• "o que se entende e se fala na alta-administração deve ser entendido

e falado também no piso da empresa" .

Para não fugir do campo semântico escolhido pelo autor, sabemos

que piso é onde se pisa. Pelo dicionário, piso é terreno em que se anda, é

chão, é pavimento.82 Ou seja, piso é coisa, é matéria inanimada. Se

levarmos em consideração o sentido denotativo de piso, quais seriam os

pontos de interseção (ou de similaridade) entre piso e Homens

trabalhadores, que levaram à criação desta metáfora?

O exemplo acima remete a uma divisão de classes sócio­

econômicas, com atribuição de valor, já que normalmente se pisa no que

está embaixo (plano inferior) . Portanto, os de cima (classe superior) pisam,

e os de baixo (classe inferior) são pisados.

Freqüentemente, Homens trabalhadores foram ainda representados

nos textos por duas letras ( ' RH ' ) , como no exemplo:

• .. RH precisa transformar-se em centro de resultados, ou seja, em lucros"

(7 :33) .

82 FERREIRA, 1 975.

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64

Neste contexto, 'RH ' talvez esteja se referindo ao setor da empresa

voltado exclusivamente para os Homens trabalhadores. A expressão vem

abreviada e se 'desumaniza ' . O sentido também.

Um outro aspecto interessante da construção dos artigos a ser

destacado (além das figuras de linguagem) é o critério adotado pelos

autores para iniciar determinadas palavras com letra maiúscula.

A expressão 'Ser Humano ' aparece sempre com iniciais maiúsculas,

o que, pela enorme coincidência, parece ser responsabilidade dos

editores.

Do artigo "O desafio dos novos papéis" (2:30,3 1 ) , escrito por uma

"gerente de Recursos Humanos", destaco os seguintes exemplos, para que

se repare na utilização de iniciais maiúsculas ou minúsculas:

• "em relação à Carreira dos indivíduos";

• "os indivíduos observam que a empresa prega uma nova forma de

Irabalho, mas continua a recompensar as Qessoas pela forma antiga";

• "as áreas de Remuneração";

• "incapacidade de demonstrar à Direção Geral da empresa a

necessidade";

• "para a gestão dos Cargos, �alários e �enefícios";

• "modelo de �alário Variável conservador, impedindo o alinhamento dos

interesses dos empregados";

• "pleno conhecimento da Cultura da Organização".

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65

Vale ressaltar que em várias outras partes do texto as palavras

' indivíduos' e ' pessoas ' aparecem iniciadas por letra minúscula.

Como se pode observar, a autora do artigo escolhe iniciar com letra

maiúscula os termos relacionados a aspectos materiais ou abstratos da

economia capitalista de mercado (carreira, remuneração, direção geral,

cargos, salários, benefícios etc .), em detrimento daqueles que se referem

diretamente ao Homem (indivíduo, pessoa, empregado etc.) . Cumpre

enfatizar que o termo 'organização' aparece no artigo com inicial

maiúscula.

É razoável supor, pelo que indicam as g ramáticas, que a finalidade

da inicial maiúscula é conceder, ao substantivo comum, status de

substantivo próprio, ou seja, acrescentar-lhe importância. Esta idéia está

presente na seguinte expressão popular: " ... homem com H maiúsculo".

Um outro exemplo possível é o artigo denominado "Eu, o produto"

(2:32,33), em que se encontram as expressões:

• "refletir sobre o que está acontecendo com o Mercado de Irabalho";

• "entender-se como um 'Eroduto"';

• "gerando, assim, Capital" ;

• "o indivíduo e a criação";

• "cabe ao Qrofissional".

Nesse artigo, somente quando visto como uma forma de capital

(coisa), pela ótica econõmica/utilitarista de mercado, o Homem

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trabalhador (ou a metáfora que o representa) ganha iniciais maiúsculas,

como ocorre no seguinte trecho:

• "instrumentos que auxiliam as empresas a identificar o necessário perfil

de seu Capital Humano".

O critério dos autores citados, para a utilização de iniciais maiúsculas,

indica a valorização de aspectos materiais (coisas) em relação ao

Homem.

b) Homem visto como recurso da organização

Evidenciando a ótica de mercado (mais do que nunca econômica),

verificamos na metáfora ' Capital Humano' (2:32) que o substantivo é o

termo 'Capita l ' , e ' Humano' é adjetivo. Segundo Mattoso Câmara Jr" o

adjetivo é uma palavra que se associa ao substantivo e fica em

concordância com ele. No exemplo citado, o Homem é associado ao (ou

colocado em função do) capital. Mais especificamente, é tido como um

tipo de capital. Assim, o Homem é novamente considerado como um

recurso da organização: metáfora que, como vimos, não abarca

sentimentos e emoções (ou seja, não considera o Homem em todas as

suas dimensões, obedecendo a uma visão reducionista) .

Sempre visto em relação à empresa, o Homem trabalhador é

também tratado como um dos fafores da organização: "empresários

descontentes com o governo, com a baixa produtividade do ' fator

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67

trabalho ' " (9:4 1 ) . É uma metáfora que, claramente, coloca em segundo

plano (se não exclui totalmente) a dimensão das emoções e sentimentos

do Homem trabalhador.

c) Negação da singularidade

Um outro aspecto observado nos textos é o que chamo de

'síndrome do agrupamento' , ou seja, uma maneira de enxergar e

expressar o Homem em que não se consideram sua singularidade e

subjetividade, e este passa a importar (possuir valor) apenas como grupo.

U m dos perigos da 'síndrome do agrupamento ' é cbntribuir para que o

Homem perca a crença na importância e no poder (criador e

transformador) de sua ação individual. No caso especifico da empresa,

contribui para inibir a ação do Homem trabalhador em prol dos seus

interesses.

A seguir, destaco alguns termos e expressões, presentes nos artigos,

que ilustram a falta de individualidade com que o Homem foi, muitas

vezes, tratado nos textos. A metáfora 'grande massa ' , utilizada para

designar Homens trabalhadores com baixo poder aquisitivo, figura no

seguinte contexto:

• "no caso de São Paulo, por suas dimensões, a grande massa utiliza mais

de um transporte entre sua residência e o local de trabalho" ( 1 1 :26) .

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Grande massa é matéria, é amorfa, não tem sentimentos. Numa

grande massa não se diferenciam seus componentes individualmente.

Em outros exemplos de 'síndrome do agrupamento ' encontrados, a

ação do Homem é transferida para o substantivo área (matéria

inanimada) . Destaco as seguintes personificações:

• "cada área de RH deve buscar os indicadores . . . " ( l l :34);

• "a área de RH tem grande dificuldade para atrair investimentos ou, até

mesmo, para justificar sua existência" ( 1 1 :34);

• "algumas áreas operacionais demonstram com facilidade um alto grau

de atratividade " ( 1 1 :34) .

Uma outra metáfora que revela negação da singularidade é o uso

do termo 'tropa ' referindo-se a Homens trabalhadores:

• "se a tropa estiver de moral baixa"(3:28) .

O exército, onde normalmente se aplica o termo ' tropa ' (para

designar 'conjunto de soldados ' ) , caracteriza-se pela não valorização da

singularidade, pelo desestímulo à reflexão crítica em relação à norma.

Lembro, como ilustração, os uniformes que os soldados são obrigados a

utilizar, que indiferenciam as pessoas e homogeneízam a tropa.

Ainda dentro da 'síndrome do agrupamento ' , foi encontrada a

seguinte metáfora:

• "os administradores têm demonstrado surpresa com a rapidez com que

seus quadros funcionais vêm respondendo aos mecanismos . . . " ( 1 :27 ) .

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69

Na expressão 'quadro funcional ' , que se refere aos Homens

trabalhadores de uma organização, o substantivo é 'quadro ' e, mais uma

vez, observa-se o paralelo com matéria inanimada. Em mais um exemplo

de personificação, a ação é deslocada do Homem para o quadro (os

quadros é que respondem) .

d) A lógica do mercado

Pela análise dos artigos, foi possível observar a lógica

econômica/utilitarista do mercado embasando o discurso escrito (e,

conseqüentemente, o discurso falado pelos autores nas organizações). É

importante lembrar que a lógica econômica de mercado favorece os

proprietários dos meios de produção, e não o Homem trabalhador

desprovido destes meios, já que esta lógica se baseia no lucro e na

acumulação de capital (que, por sua vez, estão relacionados à

produtiVidade) . Neste contexto, predomina uma visão reducionista sobre o

Homem trabalhador, sempre considerado em função do resultado que

pode proporcionar para a organização.

O resumo desta linha de pensamento está no título de um dos

artigos analisados: "Eu, o produto" (2:32), sendo que o termo 'eu' está

designando o Homem trabalhador. Neste mesmo artigo, pode-se destacar

trechos como:

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70

• " .. . entender os novos vínculos e acreditar que podem ser muito mais

próprios e justos porque, agora, você 'vale o quanto pesa ' e assim

pode ' se comercializar' . . . " (2:32);

• "você precisa criar condições para ( . . . ) entender-se como um ' Produto' :

saber se de fato ' vale o quanto pesa' . . . " (2:32) .

No contexto das citações acima, o termo 'você' se refere ao

Homem trabalhador. Recordo ainda que a expressão 'vale o quanto

pesa' remete à sua famosa utilização n um comercial de sabonete

(produto/matéria inanimada) .

Vejamos outros exemplos:

• "instrumentos que auxiliam as empresas a identificar o necessário perfil

de seu Capital Humano" (2:33 - metáfora já analisada);

• "organizações que perceberam a importância da valorização e

potencialização humana como vantagem competitiva" (5:28 -

personificação) ;

• "incoerência entre a crença no Ser Humano como vantagem

competitiva e o baixo nível de investimentos nessa fonte de diferencial"

( 1 1 :35 - metáfora);

• "gerenciar o potencial Humano nas instituições" (2:30);

• "o mais importante recurso de suas organizações eram as pessoas"

(3:26);

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7 1

• "RH precisa ( . . . ) transformar-se em centro de resultados, ou seja, em

lucros' (7:33) ;

• "o indivíduo e a criação desse novo 'produto' (2:33).

No contexto do último exemplo, o termo 'produto' é uma metáfora

utilizada para designar o próprio indivíduo.

Destaco uma citação onde até o Amor é 'aplicado ' (? ) com

finalidade de resultados:

• "sem amor, toques, carícias, como alcançar resultados com gente?"

( 1 1 :30) .

Verifica-se ainda um processo de reificação do mercado, que vai se

transformando em entidade independente, como nos seguintes exemplos

de personificação:

• "o mercado está à espera de uma grata surpresa" (4:3 1 ) ;

• "exigências de mercado" ( 1 2:35) .

Para resumir, até o conhecimento humano passa a ser visto pela

ótica do mercado, como nesta símile:

• "o conhecimento, em seu sentido mais amplo e generalista, era

mercadoria relativamente escassa" (8:32) .

6 .2.2 A reificação da organização

Uma figura de linguagem que contribui significativamente para a

reificação da organização é a personificação. Pela personificação, pode-

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72

se atribuir à organização ações, qualidades ou sentimentos próprios do

Homem.

Em alguns artigos observados, a organização ganha status de

entidade 'superior' , independente do Homem (seu criador). Nesse sentido,

a organização adquire vida própria e se 'humaniza ' : a criatura não

depende mais do criador. Perde-se de vista que a organização é uma

construção do Homem e, com isto, afasta-se a idéia de que o Homem

pode alterá-Ia ou modificá-Ia.

A reificação da organização (derivada das significações impostas

pelo discurso organizacional dominante) torna-se, portanto, um poderoso

mecanismo de controle, já que funciona como um inibidor da ação

transformadora (incluindo a fala) do Homem trabalhador. Ou seja,

contribui para a manutenção do status quo, o que favorece as classes

dominantes.

a) Organização viva ( ' humanizada' )

Segundo Campos, a crítica da fenomenologia existencial às teorias

da organização inclui o fato de que estas "pecam pela ' reificação' ou

seja, pela atribuição de uma realidade concreta - inclusive o poder de

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73

pensar, decidir e agir - a uma construção social. Um dos exemplos mais

claros de reificação é a afirmação de que a organização tem objetivos".83

Seguindo este pensamento, encontrei nos artigos uma série de

personificações envolvendo a organização, em que lhe atribuíram

qua/idades e senfimenfos próprios do Homem. Os seguintes exemplos são

ilustrativos dessa situação:

• "a grande maioria das organizações é absolutamenle 'órfã' da

dimensão feminina" ( 1 :3 1 ) ;

• "organizações mais amadurecidas" (2:27) ;

• "cada organização deve procurar o seu estilo de vida próprio, sua

personalidade, seu jeito de ser" (3:28);

• "empresa vitoriosa não é mais só aquela que produz resultados

econômicos satisfatórios" (4:32);

• "nenhuma empresa obterá lucros se os seus Recursos Humanos .. . " (5:32);

• "esforcos da empresa" (5:35);

• "empresas visionárias" (7:33);

• "há empresas felizes" ( 1 1 :30);

• "as pessoas estão conscientes, as empresas estão conscientes" ( 1 1 :3 1 ) .

Deslaco ainda os seguintes títulos de artigos:

• "Vinícius de Moraes e a empresa cidadã" (3:26);

• "A empresa intuitiva" (4:3 1 ) .

83 CAMPOS, 1981, p . 104-123. Sobre Fenomenologia e Existencialismo, ver página 107.

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74

Na seguinte símile (ou comparação), a própria sociedade adquire

status de Homem:

• "convivemos, hoje, numa sociedade plena de ambigüidades e

conflitos, como uma adolescente." (4:30) .

A organização ganha organismo, que pode estar saudável ou

contrair doenças, exatamente como o de seu criador. Nas metáforas

seguintes, a comparação com o Homem é acentuada por este prisma:

• "elevado índice de 'toxinas' com que os organismos das empresas

foram bombardeados" ( 1 :27);

• "fabricam todas as doenças organizacionais que os empresários se

cansaram de combater sem sucesso ... " ( 1 :27);

• "esquizofrenia organizacional" (2 :3 1 ) ;

• "a saúde dessas empresas" ( 1 2:28) .

A organização ganha a/ma, como nesta metáfora:

• " ... seus valores e sua filosofia. Estes são, de certa forma, a 'alma' da

organização" (4:33) .

E, para completar a transformação, a organização adquire caráter:

• "o caráter de uma organização tem raízes na sua orientação

ideológica " (4:34) .

O termo 'caráter', no seu sentido denotativo (conforme o dicionário

indica), significa um "aspecto psicológico da individualidade" (do Homem,

está claro).

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75

b) Organização ativa

O exemplo-emblemático:

• "maiores serão as chances de sucesso nesta organização que fala uma

coisa e faz outra." (2:3 1 ) .

Reificação: percepção de que a organização fala e faz

independente do Homem (seu criador).

Foram inúmeros exemplos encontrados de personificação

envolvendo a organização, em que lhe atribuíram ações próprias do

Homem. Nestes casos, há um deslocamento da autoria da ação do

Homem para a organização. Destaco alguns exemplos em que a

organização é tomada como entidade independente do Homem:

• "muitas organizações parecem esquecer, com muita frequência, que as

emoções também fazem parte do seu dia-a-dia" ( 1 :3 1 ) ;

• "as organizações acreditam ... " ( 1 :3 1 ) ;

• "grandes corporações vêm sendo obrigadas a mudar sua cultura

tradicional" ( 1 :3 1 ) ;

• "estas empresas conseguem o que muitas outras ainda estão tentando,

e mesmo o que algumas nem sequer perceberam ser necessário" (2:27) ;

• "a organização procura conquistar espaços e dominar o seu ambiente.

Está em permantente competição e revela preocupação na

manutenção e defesa de seus territórios" (4:34);

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• "em função de seu apego aos regulamentos, essas organizações têm

dificuldades em lidar com o ambiente externo" (4:34);

• "pouquíssirnas companhias fizerarn - com sucesso - a reengenharia ? "

(5:33);

• "empresas públicas ( ... ) começaram a mudar a rnaneira de agir" (7:33) ;

• "executar as ordens dos ajustes anunciadas pela matriz" ( 1 2:28);

• "para que as pequenas e médias empresas possam divulgar ( ... ) suas

oportunidades de trabalho" ( 1 2:3 1 ) ;

• "quando consultores respeitados aconselham empresas a obter

comprometimento ( ... ) , criar uma cultura de respeito ao indivíduo ... "

(2:27).

A respeito desta última citação, lembro que empresa não cria

cultura, cultura é criação do Homem, é um conceito que inclui

necessariamente o Homem como criador.

Observou-se ainda um processo de reificação em relação à

sociedade, como neste exemplo de personificação:

• "mas a sociedade exige que os seus direitos também sejam respeitados"

( 1 1 :27).

O Homem cidadão é que tem direitos, como se sabe, e deve

exercê-los.

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77

c) I nversão: organização criadora e Homem criatura

Algumas figuras de linguagem observadas apontam para uma

inversão na relação entre Homem e organização. Nestes casos, o Homem

fica definitivamente banido do seu papel de criador, e, indo mais longe, é

manipulado (e até gerado) pela organização, que age como entidade

independente. Um exemplo extremo dessa inversão é a seguinte

personificação:

• " ... as empresas são profundamente sedutoras, elas nos 'criam e

desenvolvem' para que, cada vez mais, consigamos realizar os seus

sonhos, desejos e prazeres ... " (2:32) .

Em alguns artigos, a empresa assumiu a ' paternidade' do seu

criador, num c/aro exemplo de inversão, como na metáfora:

• "todos são reconhecidos pelo sacrifício que fizeram para serem

'olhados' pelo Pai (chefe, organização)" ( 1 2:36) .

Pai é quem gera. Na relação Homem-organização, o Homem gera

a organização, que - não esqueçamos - é uma instituição socialmente

construída. Outra metáfora nesta linha seria:

• "com grande despojamento, a empresa prepara seu 'filho' para o

mundo " (3:28).

O termo 'filho ' , no contexto acima, está representando o Homem

trabalhador.

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Nesse caminho de inversão, a organização (percebida como

entidade independente ou até superior) pode assumir o poder e o

comando sobre a vida profissional do Homem trabalhador. Mas é bom

ressaltar que há sempre alguém (humano) assumindo por ela ou em seu

nome. O perigo da inversão é que, não só o Homem não enxerga mais a

empresa como construção sua, como se sente (e aceita ser) guiado por

ela. Entrega à organização seu destino e sua vida, que passa a ser guiada

(em vários aspectos) pela organização. Esta percepção estimula uma

postura passiva (e até um possível medo) do Homem trabalhador diante

da organização e das insatisfações que ela possa estar gerando. Destaco

alguns exemplos de inversão observados nas seguintes personificações:

• "afinal, as empresas existem e continuarão contratando" (2:33) ;

• "os indivíduos observam que a empresa prega uma nova forma de

Trabalho, mas continua a recompensar as pessoas pela forma antiga"

(2:3 1 ) ;

• "empresa deve organizar os meios para que os profissionais ( ... ) possam

ter bom desempenho" (5:36);

• "nenhuma organização continuará remunerando seus colaboradores

sem que conheça, especificamente, qual é a contribuição efetiva que

cada um deles está gerando ... " (7:32);

• "o elevado número de organizações que promovem redução ou

eliminação total da área de RH" ( 1 1 :34).

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Percebe-se que o Homem está ausente desta última citação

(eliminado da parte ativa e passiva da ação) : as organizações promovem

redução da área.

Sobre as emoções e sentimentos do Homem trabalhador, em geral

não consideradas (ou colocadas em segundo plano) no discurso,

encontrei a seguinte personificação:

• "existe uma limitação intrínsica das organizações em lidar com os

aspectos afetivos e emocionais de seus funcionários" ( l :3 1 ) .

Organizações não lidam: Homens lidam. Tirando os próprios

funcionários, quem sobra na organização para lidar com os aspectos

afetivos e emocionais destes?

Por último, destaco a seguinte figura de linguagem:

• "cabe à empresa que deseja ter em seu quadro esse tipo de profissional

( . . . ) enxergá-lo como um indivíduo inacabado" (5:28) .

Neste exemplo de personificação, a empresa deseja e enxerga o

Homem, e não vice-versa. Mas, metáforas à parte, é o Homem que não

pode deixar de enxergar (e desejar) a empresa como construção social.

6.2.3 Intenções conscientes X escolhas inconscientes

As intenções conscientes dos autores (percebidas na leitura dos

artigos) caminham na direção de uma mudança no olhar e no

tratamento dado ao Homem trabalhador (especialmente de classes

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80

menos favorecidas economicamente), buscando considerá-lo na sua

totalidade (razão e emoção). Mas, muitas vezes, a linguagem parece

estar 'em guerra ' com as intenções conscientes do escritor. Ou seja,

observa-se uma incoerência (ou mesmo opOSição) entre os valores

defendidos objetivamente em determinadas partes do texto e os valores

implícitos nas figuras de linguagem utilizadas. O discurso analisado não fica

imune à ideologia dominante (de mercado), ainda que os autores

desejem (intenção consciente) escapar dela. Percebe-se, nos artigos, a

predominância da lógica econômica/utilitarista do mercado, muitas vezes

incompatível com a desejada visão abrangente do Homem trabalhador.

A similaridade que guia a criação de uma metáfora é subjetiva e,

não raro, percebida de modo inconsciente pelo autor. Da dissonância

entre intenções conscientes e escolhas inconscientes, resulta a linguagem

'em guerra ' com intenções. As escolhas inconscientes que

freqüentemente guiam a construção das figuras de linguagem -

denunciam valores que influenciam o autor (por pertencerem a seu grupo

social e, portanto, por terem guiado sua socialização primária) . Isto vai

ocorrer ainda que o desejo consciente do autor seja discursar contra estes

valores.

É significativo o fato de que todos os textos analisados pertencem a

uma única variação linguística, correspondente à norma culta da l íngua.

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8 1

As variações linguísticas, como Vimos, estão vinculadas a determinados

grupos sociais e veiculam seus valores e interesses.

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CAPíTULO 7

CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES F INAIS

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83

7.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO

Esta pesquisa apresenta uma limitação devida à especificidade da

amostra utilizada, o que não garante a validade de generalização dos

resultados obtidos. Apesar disto, mantenho a crença de que os valores

pecebidos nos artigos estudados são dominantes no discurso

organizacional em geral.

Este trabalho harmoniza-se com o pensamento de Eliana Yunes,

quando afirma que só com a prática da leitura crítica torna-se possível

desnudar "versões, posturas e objetivos de quem narra (=produz) fatos,

descobertas, imaginário". Segundo a autora, "as linguagens não são

imunes a ideologias e doutrinas; a leitura perspicaz e aberta permite

desnudar estes compromissos e vislumbrar os interesses que determinam

sua produção enquanto discurso". 84 Foi o que procurei fazer.

Nesta pesquisa, tomou-se como premissa que os valores que

permeiam o discurso escrito embasam, também, o discurso falado e outras

ações do autor na organização.

7.2 O MONOPÓLIO DO DISCURSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

O Homem, como parte do mundo, também se lê e se define (ganha

sentido) pela l inguagem. Assim, o monopólio sobre a produção e

distribuição do discurso no ambiente organizacional é instrumento

.. YUNES, 1 992.

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poderoso para influenciar/ direcionar leituras dominantes do Homem

trabalhador sobre si mesmo e sobre a realidade. Especialmente se a

linguagem é considerada veículo para a ideologia dominante. Como

vimos, as ações do Homem em sociedade (incluindo a fala) decorrem da

sua leitura de mundo. Assim, quem influencia a leitura do outro, influencia

também qualquer ação (ou alienação) decorrente dela.

Foi detectado um interesse na manutenção do status quo

direcionando as perspectivas pessoais dos discursos estudados.

Recordemos que o status quo favorece determinado grupo social. que

não o dos Homens operários - excluídos da produção do discurso

organizacional.

É importante ressaltar que todos os artigos analisados obedecem à

norma culta da l íngua. É possível que Homens trabalhadores com nível

educacional inferior (operários, em sua maioria) não saibam escrever

dentro da norma culta da língua. Portanto, este mecanismo de

eleger/impor uma variação lingüística (não acessível a todos) como a

única certa e legítima para falar da organização funciona como

proteção da classe culta para manter o monopÓlio do discurso veiculado,

que deve ser 'correto ' e ' bem escrito' , obedecendo à norma culta da

língua.

Talvez como uma garantia a mais para a manutenção do

monopólio do discurso, verifica-se o que Yaguello chama de "terrorismo

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85

verbal da classe culta"85 (refiro-me, aqui. especificamente à cultura

erudita) , que leva intencionalmente o discurso a fronteiras do

incompreensível. Para recorrer novamente aos artigos, cito o exemplo da

metáfora: "um espírito de imaginação que leve a empresa além das

caixas funcionais burocráticas" (6:30), cujo sentido se esconde na

linguagem 'difícil ' .

Esta situação d e monopólio d o discurso parece dar ensejo à

ocorrência de um círculo vicioso: o discurso veiculado reforça a ideologia

dominante, contribuindo para a permanência do status quo e, portanto,

da classe dominante no poder - incluindo o poder sobre a produção do

discurso veiculado.

7.3 O CONTEÚ DO DO DISCU RSO: A IDEOLOGIA DOMI NANTE

A classe dominante, ao controlar a produção e distribuição do

discurso dominante, veicula e garante a hegemonia de sua ideologia

(com suas 'leis eternas ' ) , que termina por influenciar o pensamento de

todos os grupamentos sociais. É bom lembrar que a ideologia dominante

não explicita os interesses da classe dominante (apesar de legitimá-los),

para que possa ser internalizada por todos os outros grupos sociais,

85 YAGUELLO, "Introdução". In;Bakhtin, 1995.

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86

Como foi visto, todos os artigos da revista Ser Humano analisados

nesta pesquisa seguem a norma culta da língua, o que indica que os

autores pertencem a um mesmo grupamento social.

A partir da análise dos textos, constatou-se a predominância da

ideologia de mercado no discurso organizacional veiculado pela revista

Ser Humano. Pela infusão na ética de mercado, os artigos estudados

evidenciam uma concordância com o status quo (sistema capitalista de

mercado, com sociedade dividida em classes) e, portanto, reforçam os

valores que o sustentam. Com isso, os artigos harmonizam-se com a

ideologia de mercado, que legitima os interesses das classes dominantes

(beneficiadas com o sistema capitalista de mercado).

Os artigos estudados veiculam visões reducionistas a respeito do

Homem, apontando para a coisificação do Homem trabalhador, com

anulação das emoções, da sua singularidade e subjetividade. O Homem

não é considerado em todas as suas dimensões, o que pode acarretar a

diluição do sentido da vivência na organização, com possível perda de

motivação. Verificou-se também um processo de reificação da

organização, em que o Homem trabalhador perde de vista o seu papel

de criador e passa a enxergá-Ia como entidade independente, adotando

uma postura passiva diante da realidade organizacional. Dessa forma, a

Associação Brasileira de Recursos Humanos está, muitas vezes,

funcionando na direção da manutenção dos humanos como recursos

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87

(ainda que não seja esta a intenção consciente dos autores dos artigos e

dos editores da revista Ser Humano) .

Os valores percebidos nos artigos contribuem para a perda de

confiança do Homem trabalhador no poder de sua ação individual

(incluindo a fala), criadora e transformadora da realidade. Com isto, a

classe dominante constrói um mecanismo de controle social. inibidor de

redefinições da ordem estabelecida. Dessa forma, o poder sobre o

discurso torna-se instrumento de dominação e manutenção do status quo.

De acordo com Stewart Clegg, "se alguns pensadores como Foucault

( 1 977) estavam conscientes da importância que une o poder e o saber, as

relações de dominação e as relações simbólicas, é preciso confessar que

até o momento tal concepção jamais foi dominante na teoria das

organizações" .86

Quando afirmo que o discurso é influenciado pelos valores do grupo

social do autor e pela ideologia dominante (ainda que este deseje

conscientemente argumentar contra eles), isto é obviamente válido

também para a autora deste texto.

Seria possível considerar-se o Homem na sua integridade (razão e

emoção) e singularidade a cada vez que se fala dele no discurso

organizacional? Não tenho resposta precisa para esta questão. A minha

intenção se limita a desautomatizar a percepçâo do leitor em relação à

8. CLEGG, "Poder, linguagem e ação nas organizações", página 49.

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88

neutralidade ideológica de certas expressões que permeiam o discurso

organizacional dominante . Acredito ser este um ponto crucial para

embasar a análise das implicações sociais deste discurso.

7.4 SUGESTÕES PARA PESQU ISAS

Um desdobramento interessante deste trabalho seria uma pesquisa

envolvendo o discurso falado nas empresas pela classe dominante, e a

verificação de sua influência nas leituras e percepções (presentes no

discurso - oral e escrito) do Homem trabalhador sobre si, sobre a

organização e sobre o status quo.

Uma outra possibilidade de pesquisa complementar seria a análise

(a partir da construção textual) e a comparação dos valores veiculados

pelo discurso acadêmico clássico e pelo que se propõe inovador.

7 .5 UMA ÚLTIMA PALAVRA

Encerro partilhando a crença que embasou todo este trabalho. Nas

palavras do poeta: "Tudo, creio, já foi pensado e dito por tantos e tontos.

Ou quase tudo. Ou quase tontos. De modo que não há novidade debaixo

do sol - e isso também já foi dito. 'Os temas do mundo são pouco

numerosos e os arranjos são ihfinitos ' . - falou Barthes. Então, o que se pode

fazer de melhor é dizer de outra forma".8? Dizer com Amor.

87 BARROS, Gramática expositiva do chão, página 3 12.

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55.ZI LBERMAN, Regina; S ILVA, Ezequiel Theodoro da (org . ) . Leitura -

perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1 995.

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ANEXO 1

Versão integral do poema transcrito parcialmente no capítulo 1 .

3. 1

Passa um galho de pau movido a borboletas: com elas celebro meu órgão de ver. Inclino a fala para uma oração. Tem um cheiro de malva esta manhã. Hão de nascer tomilhos em meus sinos. (Existe um tom de mim no anteceder?) Não tenho mecanismos para santo. Palavra que eu uso me inclui nela. Este horizonte usa um tom de paz. Aqui a aranha não denigre o orvalho.

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ANEXO 2

Versão integral do poema transcrito parcialmente nos capítulos 3 e 4.

A drago

A gente não sabia se aquela drago tinha nascido ali, no Porto, como um pé de árvore ou uma duna.

- E que fosse uma casa de peixes? Meia dúzia de loucos e bêbados moravam dentro dela,

enraizados em suas ferrogens. Dos viventes da droga era um o meu amigo Mário­

pega-sapo. Ele de noite se arrastava pela beiro das casas como um

caranguejo trôpego À procura de velórios. Gostava de velórios. Os bolsos de seu casaco andavam estufados de jias. Ele esfregava no rosto as suas barriguinhas frias. Geléia de sapos! Só os crianças e os putas do jardim entendiam o suo

falo de furnas brenhentas. Quando Mário morreu, um literato oficial, em

necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Capturo-Sapo! Ai que dor!

Ao literato cujo fazia-lhe nojo a forma coloquial. Queria captura em vez de pega poro não macular (sic)

a língua nacional lá dele . . . O literato cujo, se não engano, é hoje senador pelo

Estado. Se não é, merecia . A vida tem suas descompensações. Do velho drogo Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram as ex­

pressões: estar na drago, viver na drago por estar sem dinheiro, viver na miséria

Que ora ofereço 00 filólogo Aurélio Buarque de Hol/anda

Paro que as registre em seus léxicos Pois que o povo já as registrou.

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