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Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
Moraes Salles, Mariana; Barros, Sonia
Saúde mental, cotidiano e religião
Saúde em Debate, vol. 33, núm. 82, mayo-agosto, 2009, pp. 308-315
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341771014
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308 ARTIGO ORIGINAL / ORlGINALARTICLE
Saúde mental, cotidiano e religiao*Mental health, daily life and religion
Mariana Moraes Salles 1
Sonia Barros 2
I Douroranda em Enfermagem
Psiquiárrica pela Escola de Enfermagem
da Universidade de Sao Paulo (USP).
2 Professor livre-docenre do
Deparramenro de Enfermagem
Marerno-Infanril e Psiquiárrica da
Escola de Enfermagem da USP.
RESUMO Este estudo buscou compreender a vida cotidiana do paciente egresso
de instituiráo psiquiátrica e conhecer as atividades realizadas por essa popularáo
que possibilitam a construráo de uma vida inserida na sociedade. Utilizou-se
a metodologia de pesquisa qualitativa, apoiada no conceito de Cotidiano da
autora Agnes Heller. Observou-se que a religiáo é uma atividade realizada
ftequentemente pelos pacientes e que organiza a vida. Trata-se de um guia em
vários aspectos, que estabelece valores e comportamentos e náo apenas oftrece
um esparo de sociabilidade, mas também uma explicaráo acerca do processo de
adoecimento mental
PALAVRAS-CHAVE: Saúde mental; Hospitais psiquiátricos; Religiáo.
ABSTRACT This paper brings an outline of the daily lije ofpatients who
have recently been discharged ftom psychiatric institutions and an attempt on
identifying which activities performed by this group ofpeople may contribute
to their inclusion in society. The qualitative methodology used in this study was
based onAgnes Hellers concept ofdaily lije. Religion, a constant activityfor these
patients, plays a key role in the organization oftheir lives. It also guides them in
every aspect, establishing values and models ofconduct and not only offirs them
aplacefor sociability, but also provides them with an explanation for the process
ofmental illness.
KEYWORDS: Mental health; Psychiatric hospitals; Religion.
*Exrraído da disserrac;áo de mesrrado lntemafáo em hospital psiquidtrico: o (des)caminho para vivéncia do cotidiano e da inserfáo social, apresenrada aEscola deEnfermagem da USP, 2005.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009
INTRODU<;ÁO
Este trabalho faz parte de urna investigat;:ao que pro
curou conhecer o cotidiano do paciente com transtorno
psiquiátrico após alta de urna internat;:ao em hospital
psiquiátrico, momento em que procura reconstruir sua
vida na comunidade.
A partir do movimento de Reforma Psiquiátrica
brasileira, foram construídos servit;:os com propostas de
oposit;:ao ao modelo manicomial, procurando superar
a crent;:a de que os hospitais psiquiátricos sao os únicos
locais para se tratarem os transtornos mentais e propon
do servit;:os substitutivos que operem em regime aberto,
respeitando e ampliando os direitos desses indivíduos e
buscando a reintegrat;:ao social e familiar.
As alternativas ao hospitalocentrismo deviam se
constituir enquanto política de saúde mental de forma
regionalizada, hierarquizada e integrada. Procurava-se
racionalizar a distribuit;:ao de recursos materiais e huma
nos, canalizar os aportes financeiros, controlar o fluxo
de pacientes e garantir a integrat;:ao interinstitucional
(PITTA-HOISEL, 1984).
No contexto brasileiro, a partir da década de 1980,
o termo 'psicossocial' passa a ser utilizado como:
Significante para designar novos dispositivos institucionais (Centros e Núcleos de Atenráo Psicossocial,CAPS e NAPs) que aspiram ti outra lógica, outrafundamentaráo teórico-técnica e outra ética, que náomais as do paradigma psiquiátrico. (COSTA-RoSA etal, 2003, p. 19).
Coloca-se em questao a transformat;:ao do lugar
social da loucura; os servit;:os substitutivos produzem
novas formas de conhecimento sobre a loucura e assu-
SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiáo 309
mem a tarefa de nao repetirem os antigos modelos sob
novas roupagens (KODA, 2003).
A Organizat;:ao Pan-americana da Saúde (OPAS)
definiu, a partir da Conferencia Regional para a Re
estruturat;:ao da Assistencia Psiquiátrica realizada em
Caracas (1991) que:
A reabilitaráopsicossocial consiste, essencialmente, noconjunto de esftrros eprogramas que utilizem opotencial máximo de crescimento pessoal de um indivíduo,afim de ajudá-lo a superar ou diminuir desvantagensou incapacidades nos principais aspectos de sua vidadiária. O mais importante objetivo da reabilitaráoreside na reaprendizagem das atividades da vida cotidiana, na obtenráo e conservaráo de um ambientede vida satisfttório, na participaráo em atividadesde trabalho significativas e no desenvolvimento deatividades sociais e culturais. (p. 57).
A saúde mental propas-se a criar novas práticas e
conceitos que nao sejam instrumentos de segregat;:ao,
opressao e controle, mas um tratamento que proporcio
ne a produt;:ao de vida inserida na comunidade.
Para entender como vem ocorrendo essas transfor-
mat;:óes no processo saúde-doent;:a dos indivíduos com
transtorno mental, interessa conhecer o dia-a-dia dessa
populat;:ao, suas formas de viver e de se relacionar e as
atividades que desenvolvem cotidianamente.
Assim, a forma como os pacientes se organizam
no dia-a-dia, onde estao, o que fazem e como gerem o
seu cotidiano sao questóes relevantes para o tratamen
to. Além disso, é um fator importante para propiciar a
insert;:ao social.
A Reabilitat;:ao Psicossocial pressupóe que a comu
nidade e o tratamento sejam dimensóes que possam
propiciar a insert;:ao social do paciente. Mas o grande
número de reinternat;:óes em hospitais psiquiátricos
vai de encontro aos pressupostos da Reabilitat;:ao Psi
cossocial e da Reforma Psiquiátrica. Por isso, emerge
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310 SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiao
a questao: o que acontece com o doente mental após
urna interna<;:ao?
Assim, desenvolvemos este estudo com os objetivos
de identificar o cotidiano do portador de transtornos
mentais no período entre interna<;:óes, analisar as pos
sibilidades de inser<;:ao social encontradas pelos sujeitos
da pesquisa e estabelecer diretrizes para a assistencia as
pessoas com transtornos mentais.
o PERCURSO METODOLÓGICO
A abordagem qualitativa foi utilizada no processo
metodológico desta pesquisa, buscando-se esclareci
mentos sobre as rela<;:óes sociais informadas sobre o
campo da saúde. Segundo Minayo, as metodologias
de pesquisa qualitativa abordam alguns pontos funda
mentais, como:
[ ..} a natureza do social; as relaráes entre indivíduo
e sociedade; entre aráo, estrutura e significados; entre
sujeito e objeto; entre¡ato e valor; entre realidade
e ideologia e a possibilidade do conhecimento, visto
sob o prisma de algumas correntes sociológicas.
(2004, p. 9).
Para a autora, o importante nao é quantificar, mas
explicar as rela<;:óes sociais que sao apreendidas através
do cotidiano e da experiencia vivida, tendo como cerne
do trabalho a atividade humana (MINAYO, 2004).
De acordo com essa orienta<;:ao sobre saúde e
metodologia qualitativa, optou-se por fundamentar a
presente investiga<;:ao no conceito de cotidiano de Agnes
Heller, que faz urna análise crítica do real, oferecendo
um alicerce para o conhecimento da atividade prática
social dos sujeitos históricos concretos.
Para Heller, é na vida cotidiana que se produzem
as rela<;:óes sociais entre os homens, é na cotidianidade
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que o indivíduo se insere na sociedade, reproduzindo
as atividades e cultura existentes. A cópia, a mimese, é
a primeira forma de se relacionar e aprender possível ao
homem. É por meio dessa reprodu<;:ao do indivíduo que
acontece a reprodu<;:ao social.
Todo hombre al nacer se encuentra en un mundo
ya existente, independiente de él Este mundo se le
presenta ya 'constituido' y aquí él debe conservarse y
dar prueba de capacidad vital Elparticular nace en
condiciones sociales concretas, en sistemas concretos de
expectativas, dentro de instituciones concretas. Ante
todo debe aprender a usar' las cosas, apropiarse de los
sistemas de usos y de los sistemas de expectativas, esto
es, debe conservarse exactamente en el modo necesarioy
posible en una época determinada en el ámbito de un
estrato social dado. Por consiguiente, la reproducción
del hombre particular es siempre reproducción de
un hombre histórico, de un particular en un mundoconcreto. (HELLER, 2002, p. 21).
Por outro lado, também é no cotidiano que a
sociedade se transforma: urna mudan<;:a que se inicia
com pequenas altera<;:óes na vida de cada indivíduo até
alcan<;:ar o ámbito da coletividade.
Pautado na vida cotidiana, o indivíduo se insere na
sociedade, assimilando e participando do cotidiano da
comunidade. As atividades do dia-a-dia de cada pessoa
estao relacionadas as atividades cotidianas de sua família,
amigos, colegas de trabalho, o que constitui urna trama
de rela<;:óes sociais vinculadas as diferentes atividades
do dia. Nessa trama, o indivíduo pode se apropriar da
realidade a seu modo, colocando a marca de sua perso
nalidade, mantendo sua particularidade e construindo
urna vida socialmente ativa.
Como categoria analítica, nesta investiga<;:ao
utilizou-se o conceito de Reabilita<;:ao Psicossocial, que
constitui um processo de reinstitui<;:ao, constru<;:ao e
reconstru<;:ao de direitos políticos e sociais para o cida
dao e, para isso, é preciso que ocorra urna mudan<;:a na
política de saúde mental.
A Reabilitaráo Psicossocial é representada pelos programas de serviros que se desenvolvem para ftcilitara vida de pessoas com problemas severos epersistentesde saúde mental dando enfase em [sic} devolver paraopaciente, a independencia, para uma boa qualidadede vida. (Sor, 1999, p. 18).
A Reabilita<;:ao Psicossocial é um processo contínuo,
sem prazo determinado de fim e que se dá na comu
nidade, nos hospitais-dia, nos CAP5 ou na interna<;:ao
em hospitais; ou seja, acontece onde quer que a pessoa
esteja (Sal, 1999).
O fundamento de cotidiano relaciona-se aos pres
supostos de Reabilita<;:ao Psicossocial quando se afirma
que o portador de transtorno mental pode construir urna
vida na sociedade, articulada com as diferentes esferas
sociais, sem perder sua particularidade.
A pesquisa foi realizada em um hospital especia
lizado em psiquiatria desde a sua funda<;:ao em 1958,
prestando atendimento a pacientes em regime de inter
na<;:ao. O referido hospital situa-se na capital no Estado
de Sao Paulo.
Foram sujeitos desta investiga<;:ao portadores de
transtornos mentais internados no hospital psiquiátrico
descrito, seus familiares, pacientes que obtiveram alta
hospitalar e enfrentaram o desafio de viver na comunida
de, tendo que construir um cotidiano fora da institui<;:ao
e continuar seu tratamento em outro modelo assistencial
que nao fosse o hospital.
No total, foram consideradas treze entrevistas com
os pacientes e nove com seus familiares.
A análise do discurso foi usada como forma de in
terpreta<;:ao e apreensao da realidade apoiada no material
coletado. Segundo Minayo (2004, p. 211), "ela visa
compreender o modo de funcionamento, os princípios de
organiza<;:ao e as formas de produ<;:ao social do sentido".
O discurso é produúdo no interior de institui<;:óes, de
grupos, de um determinado contexto social e a partir de
urna constru<;:ao histórica.
SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiáo 311
O texto é urna forma de linguagem que contém
urna totalidade, urna unidade significativa e pragmática,
além de ser portador de um contexto situacional expresso
pelo sentido (MINAYO, 2004).
O entendimento e a experiencia de identidade
social sao construídos discursivamente, e a partir da
análise do discurso podemos avaliar os modelos de vida
de forma discursiva (KODA, 2003).
Foram identificadas as seguintes categorias empíri
cas: cotidiano, situa<;:ao económica e produ<;:ao material,
processo de saúde-doen<;:a, violencia, rela<;:óes pessoais.
Neste artigo, será dado enfoque acategoria empírica
cotidiano, com enfase nas atividades religiosas.
Entre as esferas da vida cotidiana, notou-se que
as atividades religiosas foram referenciadas pelos
usuários como atividades significativas que possi
bilitam a compreensao do mundo e aumentam a
integra<;:ao social.
RELIGIÁü
A igreja esteve presente com frequencia na fala dos
pacientes, como um local que eles frequentam e onde
podem ser aceitoso É um dos componentes do cotidiano
dessa popula<;:ao que lhes possibilita estar no mundo
compartilhado.
Segundo Alcantara (2002), a religiao se tornou um
paradigma da diversidade cultural e de todos os tipos
de classifica<;:ao de valares tanto marais quanto éticos.
Apresenta urna tensao entre o universal e o particular,
o público e o privado, o passado e o presente.
De acordo com Machado (2001), o sujeito constrói
significados para o seu sofrimento psíquico de acordo
com as determina<;:óes de sentidos e símbolos propostos
por sua sociedade:
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312 SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiao
Ao participar de uma religiáo e incorporar seusdogmas eprincípios, ele vai elaborando significados
para suas angústias, para todo o processo de viverhumano. (p. 25).
A escolha da religiosidade aparece como urna
escolha plausível, como a possibilidade de estar num
ambiente amparado culturalmente, de ser particular
num espa~o público.
P 13: Aí que tá, né, eu tomo cafi, e vou pra igreja.P 12: 1íou ler um pouco a Bíblia, volto, depois vou tiigreja ti noite. Meu dia passa assim.P 10: Sou uma pessoa defi, sou uma pessoa religiosa,muito religiosa. 1íou ti ¡greja com uma ftequénciaboa.]
A religiao também é apresentada como diretriz para
a vida, como algo que estabelece normas de conduta, que
ajuda a constituir urna forma de estar no mundo como
algo compartilhado por muitos, no espa~o coletivo.
A religiao assume um papel de orienta~aodas a~óes
coletivas, que agrupa as diversidades. Os indivíduos se
vinculam aigreja e a congrega~ao de pessoas lhes fornece
um terreno e um referente comum no qual a identidade
do grupo pode se exprimir. "Toda religiao é, portanto,
lugar de memória e identidade" (ORTIZ, 2002, p. 81).
A igreja cria la~os sociais, vincula interesses e coorde
na urna concep~ao de mundo. "O caminho da 'salva~ao'
passaria assim pelo ajustamento do comportamento
individual as regras ditadas pela mentalidade religiosa'
(ORTlZ, 2002, p. 85).
Nesse contexto, os pacientes esperam o reconheci
mento da sua forma de viver e a aceita~ao desse modo
de vida por aqueles que estao asua volta.
P 10: É, porque o caminho que eu quero seguir é ocaminho da Bíblia, o caminho de Deus, mas eu náo
consigo. Em casa, minha máe fit.la que eu sou umfit.lso, que eu estou ficando louco. Quando eu come~o
a ler a Bíblia muito, minha máe fit.la que eu estouficando louco.P 2: Eu sou evangélico, né. Eu procuro assim, tra
balho, fit.mília, lazer, tudo pelas sagradas escrituras.O meu cotidiano da vida é com Deus, como dizem,crente, né.
A religiao ainda é encarada como salva~ao, como
solu~ao para todos os problemas. Para aquilo que o
sujeito nao encontra urna resposta, Deus encontraria
urna saída, um desfecho. Além disso, a religiao apresenta
urna moral a ser seguida, com um conjunto de leis que
orientam urna determinada forma de viver, e o nao
cumprimento dessa 'lei divina acarretaria malefícios avida das pessoas.
Se seguirmos essa linha de pensamento, os sinto
mas da doen~a podem ser compreendidos como o nao
seguimento das leis de Deus e o tratamento, como urna
represália divina. Assim, nao existe a compreensao da
doen~a em si, mas da concep~ao da rela~ao do homem
com as leis de Deus.
Os fatos da vida sao entendidos como desejo de
Deus, as possibilidades de escolha podem diminuir,
restringindo-se a seguir a moral da religiao, prevalecen
do o temor da retalia~ao caso as leis divinas nao sejam
cumpridas.
Segundo Guerriero (2002), a vida parece caótica se
vista como um conjunto de fatos isolados, mas tais fatos
adquirem ordem e significado quando relacionados a
urna verdade atemporal e incondicional, ou seja, quando
relacionados a urna verdade mítica ou religiosa.
Frente as incertezas do dia-a-dia, ao sentimento de
impotencia ou angústia, as cren~as procuram organizar
um sistema explicativo para dar conta dos acontecimen
tos (GUERRIERü, 2002).
1 A letra "P" significa paciente; "PI", portanro, refere-se ao paciente entrevistado número um. Numeraram-se os relatos dessa forma, até que se alcan<;asse o
paciente entrevistado número 13. A sigla "FP" significa familiat do paciente.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009
P 6: Eu falava por Deus, náo falava pelo dinheiro.
Depois comecei a viver disso, eu preciso do que comer,
de alguma coisa, do ftijáo, do gás, as crianras come
raram a dizer "Pai, quero comer': eu disse '/ti, meu
Deus, e agora?':
P 6: Ele (Deus) resolve os problemas com o louvor; o
louvor é muito bonito. Mas tem problema que ainda
dá para o homem resolver. Eu desobedeci a Deus,
irmá. Eu vim para o hospitalporque eu desobedeci a
Deus, náo era para eu ter tido 40 internaróes, pense
só voce... 40 internaróes que eu tive.
Os familiares também procuram na religiáo urna
explica<;:áo para a doen<;:a ou urna forma de lidar com o
paciente doente. A cren<;:a assume um lugar importante
para aceitar o convívio com o doente mental.
A fórmula que propóe a religiosidade como solu<;:áo
para as dificuldades vividas no dia-a-dia também é usada
pelos familiares. A moral religiosa é um guia para a for
ma de agir para algumas das máes dos pacientes: é essa
moralidade que estabelece urna norma de conduta.
FP 13: Eu náo entendia ele. Mas graras a Deus, depois
que eu aceiteiJesus Cristo, eu estou entendendo muito
bem. Porque antes, quando elefalava, eu retrucava né,
e agora náo. Agora, enquanto ele está me ofendendo, eu
oro por ele. Graras a Deus. Eu faro oraráo por ele.
FP 4: Eu náo chego a desistirporque sei que Deus está
comigo. Tudo vem por Deus, eu creio nisso. Deus está
comigo, é a minha fé.
A igreja também é considerada um porto seguro
para os familiares, o local ao qual podem confiar a segu
ran<;:a de seus filhos. Apostam na comunidade da igreja
como um local de suporte, onde as diferen<;:as podem
ser aceitas, e as pessoas dessa comunidade procuram o
contata e a comunica<;:áo com o paciente.
Para Machado (2001), a família é urna institui<;:áo
mediadora que oferece categorias explicativas e regula
doras para os sujeitas e direciona a a<;:áo para a busca
por ajuda.
SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiáo 313
fA religiosidade exerce uma funráo} integradora do
indivíduo na sociedade, acalmando os seus conflitos
internos, apaziguando sua exc!usáo social acalentando
seus temores, sendo continente com a expressáo psico
patológica. (p. 115)
Para os familiares, a igreja representa urna possibi
lidade de inser<;:áo 'saudável' na comunidade.
FP 13: Bom, na igreja ele vai de vez em quando, as
vezes os irmáos, as irmás querem se aproximar dele,
o pastor quer se aproximar dele, né. O pastor podia
estar conversando com quem ftsse, mas quando ele
chegava lá, opastor já ía ao encontro dele.
FP 11: Quando ele vai pra igreja, elefica bem.
FP 11: Quando ele está numa fase boa, ele vai pra
igreja de manhá, no culto da tarde e da noite. Ele ora
numa boa. Nessa fase, eu vou tefalar, eufico tranqui
la, porque eu sei que ele está na igreja.
FP 2: Ele querficar dentro de casa, ou entáo, ele saipra
igreja. Ou dentro de casa, ou entáo vai a igreja, sÓ.
As duas principais características expressas pelos
entrevistados em rela<;:áo a religiáo é a igreja como espa<;:o
de inc1usáo social, e a moral religiosa como norteadora
de conduta.
Agir de acordo com urna religiáo é participar de
urna maneira universal de viver, adequar o particular
ao coletivo.
DISCUSSÁü
Frente as dificuldades da vida, ao caos e a desordem,
a religiáo pode ser urna estratégia de compreensáo do
fluxo dos acontecimentos e orienta<;:áo de a<;:óes.
O mundo se apresenta ao ser humano como caótico
e sem sentido. Desprovido das significaróes e cons
truróes simbólicas atribuídas histórica e socialmente,
a vida é impraticável. Cada grupo social, a cada
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314 SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiao
época e lugar, procura construir sistemas de crenras
orientadoras das vicissitudes cotidianas, estabelecen
do e ftrmulando o cosmos. Nisso se insere o papel
fundamental do mito e das religióes daí advindas.
(GUERRIERO, 2002, p. 316).
Para o doente mental que vive urna desorganiza<;:ao
psíquica própria da doen<;:a e, muitas vezes, nao con
segue compreender os sintomas pela via científica ou
racional, a religiao surge como um suporte, urna forma
de compreender o mundo.
Heller (2002) relata que a religiao é urna comuni
dade que possui urna ordena<;:ao de valores e produz urna
consciencia de nós. A religiao propicia urna integra<;:ao
heterogenea, sobre bases materiais e sociais, unindo
classes ou na<;:óes.
A religiao exerce sua fun<;:ao comunitária mediante
um caráter ideológico que ordena a vida e o compor
tamento dos homens. A religiao é urna representa<;:ao
coletiva baseada na dependencia do homem, pela trans
cendencia (HELLER, 2002).
Para Heller (2002), a religiao é um fenomeno de
aliena<;:ao devido a essa dependencia do transcendente.
Por exemplo, o mundo é bom por vontade de Deus,
ou ruim por castigo de Deus. Tudo o que acontece é
vontade de Deus e, por isso, as nossas a<;:óes sao guia
das pelo transcendente. O princípio de valores vem do
transcendente, estabelecendo-se o que deve ser feito.
Deus castiga as nossas a<;:óes ou nos oferece a salva<;:ao
como premio.
Assim, as representa<;:óes religiosas coletivas impreg
nam o comportamento da vida cotidiana, condicionado
pelo coletivo. A religiao como identifica<;:ao da conscien
cia de 'nós' pode conduúr ao comportamento fanático,
como a passividade fatalista e a aceita<;:ao da sujei<;:ao da
particularidade (HELLER, 2002).
Ainda segundo Heller (2002), a religiao constitui
um dos principais organizadores e reguladores da vida
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009
cotidiana. Viver de acordo com urna determinada
religiao significa nao apenas crer, mas orientar seu
modo de vida segundo as exigencias e formas de tal
doutrina.
Machado (2001) relata que as explica<;:óes em rela
<;:ao adoen<;:a mental extrapolam a condi<;:ao individual
e o contexto familiar,
Gerando conexóes e relaróes sociais, representacionais.
Essa génese mescla a história individual, a história
social e toda uma gama de significados anteriormente
estabelecidos. (p. 118).
Os significados do processo saúde-doen<;:a mental
ancoram-se em representa<;:óes mais amplas do que
aquelas oferecidas pela psiquiatria, buscando-se ajuda
e solu<;:ao na esfera religiosa.
CONCLUSÁO
A igreja foi apresentada pelos pacientes e seus
familiares como espa<;:o de pertencimento a um grupo,
um ambiente que acolhe e, ao mesmo tempo, estabelece
limites e normas de conduta.
Os usuários, que em geral enfrentam dificuldades
em encontrar atividades significativas em sua vida e
lugares em que possam ser aceitos, encontraram na
participa<;:ao de atividades religiosas urna forma de
estar com os outros e compreender os acontecimentos
de sua vida.
Porém, apesar de os relatos dos entrevistados apre
sentarem pontos positivos em rela<;:ao a participa<;:ao
em atividades religiosas, é importante ressaltar alguns
aspectos apontados por Heller sobre a possibilidade de
a religiao produúr aliena<;:ao e passividade, já que a vida
é regida pelas leis de Deus.
Assim, é importante para os pacientes e usuários
nao abrirem mao de suas possibilidades de escolhas e
de sua particularidade para participarem desse ambiente
coletivo. É preciso utilizar o suporte oferecido pela Igreja
para aumentar a probabilidade de cria<;:ao de rela<;:óes
sociais e de circula<;:ao em diversos ambientes coletivos,
nao apenas espa<;:os da igreja.
A religiao, assim como outras esferas da vida co
tidiana, pode compor urna gama de possibilidades de
integra<;:ao social, ordena<;:ao dos acontecimentos da vida
e explica<;:ao para o processo de adoecimento mental sem
necessariamente imobilizar os pacientes em urna atitude
passiva, que impossibilita escolhas e o desenvolvimento
da particularidade de cada um.
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Recebido: Agosro12006
Aprovado: Maio12009
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009