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Saúde em Debate ISSN: 0103-1104 [email protected] Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Brasil Moraes Salles, Mariana; Barros, Sonia Saúde mental, cotidiano e religião Saúde em Debate, vol. 33, núm. 82, mayo-agosto, 2009, pp. 308-315 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341771014 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Saúde em Debate

ISSN: 0103-1104

[email protected]

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Brasil

Moraes Salles, Mariana; Barros, Sonia

Saúde mental, cotidiano e religião

Saúde em Debate, vol. 33, núm. 82, mayo-agosto, 2009, pp. 308-315

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341771014

Como citar este artigo

Número completo

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Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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308 ARTIGO ORIGINAL / ORlGINALARTICLE

Saúde mental, cotidiano e religiao*Mental health, daily life and religion

Mariana Moraes Salles 1

Sonia Barros 2

I Douroranda em Enfermagem

Psiquiárrica pela Escola de Enfermagem

da Universidade de Sao Paulo (USP).

[email protected]

2 Professor livre-docenre do

Deparramenro de Enfermagem

Marerno-Infanril e Psiquiárrica da

Escola de Enfermagem da USP.

[email protected]

RESUMO Este estudo buscou compreender a vida cotidiana do paciente egresso

de instituiráo psiquiátrica e conhecer as atividades realizadas por essa popularáo

que possibilitam a construráo de uma vida inserida na sociedade. Utilizou-se

a metodologia de pesquisa qualitativa, apoiada no conceito de Cotidiano da

autora Agnes Heller. Observou-se que a religiáo é uma atividade realizada

ftequentemente pelos pacientes e que organiza a vida. Trata-se de um guia em

vários aspectos, que estabelece valores e comportamentos e náo apenas oftrece

um esparo de sociabilidade, mas também uma explicaráo acerca do processo de

adoecimento mental

PALAVRAS-CHAVE: Saúde mental; Hospitais psiquiátricos; Religiáo.

ABSTRACT This paper brings an outline of the daily lije ofpatients who

have recently been discharged ftom psychiatric institutions and an attempt on

identifying which activities performed by this group ofpeople may contribute

to their inclusion in society. The qualitative methodology used in this study was

based onAgnes Hellers concept ofdaily lije. Religion, a constant activityfor these

patients, plays a key role in the organization oftheir lives. It also guides them in

every aspect, establishing values and models ofconduct and not only offirs them

aplacefor sociability, but also provides them with an explanation for the process

ofmental illness.

KEYWORDS: Mental health; Psychiatric hospitals; Religion.

*Exrraído da disserrac;áo de mesrrado lntemafáo em hospital psiquidtrico: o (des)caminho para vivéncia do cotidiano e da inserfáo social, apresenrada aEscola deEnfermagem da USP, 2005.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009

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INTRODU<;ÁO

Este trabalho faz parte de urna investigat;:ao que pro­

curou conhecer o cotidiano do paciente com transtorno

psiquiátrico após alta de urna internat;:ao em hospital

psiquiátrico, momento em que procura reconstruir sua

vida na comunidade.

A partir do movimento de Reforma Psiquiátrica

brasileira, foram construídos servit;:os com propostas de

oposit;:ao ao modelo manicomial, procurando superar

a crent;:a de que os hospitais psiquiátricos sao os únicos

locais para se tratarem os transtornos mentais e propon­

do servit;:os substitutivos que operem em regime aberto,

respeitando e ampliando os direitos desses indivíduos e

buscando a reintegrat;:ao social e familiar.

As alternativas ao hospitalocentrismo deviam se

constituir enquanto política de saúde mental de forma

regionalizada, hierarquizada e integrada. Procurava-se

racionalizar a distribuit;:ao de recursos materiais e huma­

nos, canalizar os aportes financeiros, controlar o fluxo

de pacientes e garantir a integrat;:ao interinstitucional

(PITTA-HOISEL, 1984).

No contexto brasileiro, a partir da década de 1980,

o termo 'psicossocial' passa a ser utilizado como:

Significante para designar novos dispositivos institu­cionais (Centros e Núcleos de Atenráo Psicossocial,CAPS e NAPs) que aspiram ti outra lógica, outrafundamentaráo teórico-técnica e outra ética, que náomais as do paradigma psiquiátrico. (COSTA-RoSA etal, 2003, p. 19).

Coloca-se em questao a transformat;:ao do lugar

social da loucura; os servit;:os substitutivos produzem

novas formas de conhecimento sobre a loucura e assu-

SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiáo 309

mem a tarefa de nao repetirem os antigos modelos sob

novas roupagens (KODA, 2003).

A Organizat;:ao Pan-americana da Saúde (OPAS)

definiu, a partir da Conferencia Regional para a Re­

estruturat;:ao da Assistencia Psiquiátrica realizada em

Caracas (1991) que:

A reabilitaráopsicossocial consiste, essencialmente, noconjunto de esftrros eprogramas que utilizem opoten­cial máximo de crescimento pessoal de um indivíduo,afim de ajudá-lo a superar ou diminuir desvantagensou incapacidades nos principais aspectos de sua vidadiária. O mais importante objetivo da reabilitaráoreside na reaprendizagem das atividades da vida co­tidiana, na obtenráo e conservaráo de um ambientede vida satisfttório, na participaráo em atividadesde trabalho significativas e no desenvolvimento deatividades sociais e culturais. (p. 57).

A saúde mental propas-se a criar novas práticas e

conceitos que nao sejam instrumentos de segregat;:ao,

opressao e controle, mas um tratamento que proporcio­

ne a produt;:ao de vida inserida na comunidade.

Para entender como vem ocorrendo essas transfor-

mat;:óes no processo saúde-doent;:a dos indivíduos com

transtorno mental, interessa conhecer o dia-a-dia dessa

populat;:ao, suas formas de viver e de se relacionar e as

atividades que desenvolvem cotidianamente.

Assim, a forma como os pacientes se organizam

no dia-a-dia, onde estao, o que fazem e como gerem o

seu cotidiano sao questóes relevantes para o tratamen­

to. Além disso, é um fator importante para propiciar a

insert;:ao social.

A Reabilitat;:ao Psicossocial pressupóe que a comu­

nidade e o tratamento sejam dimensóes que possam

propiciar a insert;:ao social do paciente. Mas o grande

número de reinternat;:óes em hospitais psiquiátricos

vai de encontro aos pressupostos da Reabilitat;:ao Psi­

cossocial e da Reforma Psiquiátrica. Por isso, emerge

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009

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310 SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiao

a questao: o que acontece com o doente mental após

urna interna<;:ao?

Assim, desenvolvemos este estudo com os objetivos

de identificar o cotidiano do portador de transtornos

mentais no período entre interna<;:óes, analisar as pos­

sibilidades de inser<;:ao social encontradas pelos sujeitos

da pesquisa e estabelecer diretrizes para a assistencia as

pessoas com transtornos mentais.

o PERCURSO METODOLÓGICO

A abordagem qualitativa foi utilizada no processo

metodológico desta pesquisa, buscando-se esclareci­

mentos sobre as rela<;:óes sociais informadas sobre o

campo da saúde. Segundo Minayo, as metodologias

de pesquisa qualitativa abordam alguns pontos funda­

mentais, como:

[ ..} a natureza do social; as relaráes entre indivíduo

e sociedade; entre aráo, estrutura e significados; entre

sujeito e objeto; entre¡ato e valor; entre realidade

e ideologia e a possibilidade do conhecimento, visto

sob o prisma de algumas correntes sociológicas.

(2004, p. 9).

Para a autora, o importante nao é quantificar, mas

explicar as rela<;:óes sociais que sao apreendidas através

do cotidiano e da experiencia vivida, tendo como cerne

do trabalho a atividade humana (MINAYO, 2004).

De acordo com essa orienta<;:ao sobre saúde e

metodologia qualitativa, optou-se por fundamentar a

presente investiga<;:ao no conceito de cotidiano de Agnes

Heller, que faz urna análise crítica do real, oferecendo

um alicerce para o conhecimento da atividade prática

social dos sujeitos históricos concretos.

Para Heller, é na vida cotidiana que se produzem

as rela<;:óes sociais entre os homens, é na cotidianidade

Saúde em Debate, Rio de Janeiro. v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009

que o indivíduo se insere na sociedade, reproduzindo

as atividades e cultura existentes. A cópia, a mimese, é

a primeira forma de se relacionar e aprender possível ao

homem. É por meio dessa reprodu<;:ao do indivíduo que

acontece a reprodu<;:ao social.

Todo hombre al nacer se encuentra en un mundo

ya existente, independiente de él Este mundo se le

presenta ya 'constituido' y aquí él debe conservarse y

dar prueba de capacidad vital Elparticular nace en

condiciones sociales concretas, en sistemas concretos de

expectativas, dentro de instituciones concretas. Ante

todo debe aprender a usar' las cosas, apropiarse de los

sistemas de usos y de los sistemas de expectativas, esto

es, debe conservarse exactamente en el modo necesarioy

posible en una época determinada en el ámbito de un

estrato social dado. Por consiguiente, la reproducción

del hombre particular es siempre reproducción de

un hombre histórico, de un particular en un mundoconcreto. (HELLER, 2002, p. 21).

Por outro lado, também é no cotidiano que a

sociedade se transforma: urna mudan<;:a que se inicia

com pequenas altera<;:óes na vida de cada indivíduo até

alcan<;:ar o ámbito da coletividade.

Pautado na vida cotidiana, o indivíduo se insere na

sociedade, assimilando e participando do cotidiano da

comunidade. As atividades do dia-a-dia de cada pessoa

estao relacionadas as atividades cotidianas de sua família,

amigos, colegas de trabalho, o que constitui urna trama

de rela<;:óes sociais vinculadas as diferentes atividades

do dia. Nessa trama, o indivíduo pode se apropriar da

realidade a seu modo, colocando a marca de sua perso­

nalidade, mantendo sua particularidade e construindo

urna vida socialmente ativa.

Como categoria analítica, nesta investiga<;:ao

utilizou-se o conceito de Reabilita<;:ao Psicossocial, que

constitui um processo de reinstitui<;:ao, constru<;:ao e

reconstru<;:ao de direitos políticos e sociais para o cida­

dao e, para isso, é preciso que ocorra urna mudan<;:a na

política de saúde mental.

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A Reabilitaráo Psicossocial é representada pelos pro­gramas de serviros que se desenvolvem para ftcilitara vida de pessoas com problemas severos epersistentesde saúde mental dando enfase em [sic} devolver paraopaciente, a independencia, para uma boa qualidadede vida. (Sor, 1999, p. 18).

A Reabilita<;:ao Psicossocial é um processo contínuo,

sem prazo determinado de fim e que se dá na comu­

nidade, nos hospitais-dia, nos CAP5 ou na interna<;:ao

em hospitais; ou seja, acontece onde quer que a pessoa

esteja (Sal, 1999).

O fundamento de cotidiano relaciona-se aos pres­

supostos de Reabilita<;:ao Psicossocial quando se afirma

que o portador de transtorno mental pode construir urna

vida na sociedade, articulada com as diferentes esferas

sociais, sem perder sua particularidade.

A pesquisa foi realizada em um hospital especia­

lizado em psiquiatria desde a sua funda<;:ao em 1958,

prestando atendimento a pacientes em regime de inter­

na<;:ao. O referido hospital situa-se na capital no Estado

de Sao Paulo.

Foram sujeitos desta investiga<;:ao portadores de

transtornos mentais internados no hospital psiquiátrico

descrito, seus familiares, pacientes que obtiveram alta

hospitalar e enfrentaram o desafio de viver na comunida­

de, tendo que construir um cotidiano fora da institui<;:ao

e continuar seu tratamento em outro modelo assistencial

que nao fosse o hospital.

No total, foram consideradas treze entrevistas com

os pacientes e nove com seus familiares.

A análise do discurso foi usada como forma de in­

terpreta<;:ao e apreensao da realidade apoiada no material

coletado. Segundo Minayo (2004, p. 211), "ela visa

compreender o modo de funcionamento, os princípios de

organiza<;:ao e as formas de produ<;:ao social do sentido".

O discurso é produúdo no interior de institui<;:óes, de

grupos, de um determinado contexto social e a partir de

urna constru<;:ao histórica.

SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiáo 311

O texto é urna forma de linguagem que contém

urna totalidade, urna unidade significativa e pragmática,

além de ser portador de um contexto situacional expresso

pelo sentido (MINAYO, 2004).

O entendimento e a experiencia de identidade

social sao construídos discursivamente, e a partir da

análise do discurso podemos avaliar os modelos de vida

de forma discursiva (KODA, 2003).

Foram identificadas as seguintes categorias empíri­

cas: cotidiano, situa<;:ao económica e produ<;:ao material,

processo de saúde-doen<;:a, violencia, rela<;:óes pessoais.

Neste artigo, será dado enfoque acategoria empírica

cotidiano, com enfase nas atividades religiosas.

Entre as esferas da vida cotidiana, notou-se que

as atividades religiosas foram referenciadas pelos

usuários como atividades significativas que possi­

bilitam a compreensao do mundo e aumentam a

integra<;:ao social.

RELIGIÁü

A igreja esteve presente com frequencia na fala dos

pacientes, como um local que eles frequentam e onde

podem ser aceitoso É um dos componentes do cotidiano

dessa popula<;:ao que lhes possibilita estar no mundo

compartilhado.

Segundo Alcantara (2002), a religiao se tornou um

paradigma da diversidade cultural e de todos os tipos

de classifica<;:ao de valares tanto marais quanto éticos.

Apresenta urna tensao entre o universal e o particular,

o público e o privado, o passado e o presente.

De acordo com Machado (2001), o sujeito constrói

significados para o seu sofrimento psíquico de acordo

com as determina<;:óes de sentidos e símbolos propostos

por sua sociedade:

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312 SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiao

Ao participar de uma religiáo e incorporar seusdogmas eprincípios, ele vai elaborando significados

para suas angústias, para todo o processo de viverhumano. (p. 25).

A escolha da religiosidade aparece como urna

escolha plausível, como a possibilidade de estar num

ambiente amparado culturalmente, de ser particular

num espa~o público.

P 13: Aí que tá, né, eu tomo cafi, e vou pra igreja.P 12: 1íou ler um pouco a Bíblia, volto, depois vou tiigreja ti noite. Meu dia passa assim.P 10: Sou uma pessoa defi, sou uma pessoa religiosa,muito religiosa. 1íou ti ¡greja com uma ftequénciaboa.]

A religiao também é apresentada como diretriz para

a vida, como algo que estabelece normas de conduta, que

ajuda a constituir urna forma de estar no mundo como

algo compartilhado por muitos, no espa~o coletivo.

A religiao assume um papel de orienta~aodas a~óes

coletivas, que agrupa as diversidades. Os indivíduos se

vinculam aigreja e a congrega~ao de pessoas lhes fornece

um terreno e um referente comum no qual a identidade

do grupo pode se exprimir. "Toda religiao é, portanto,

lugar de memória e identidade" (ORTIZ, 2002, p. 81).

A igreja cria la~os sociais, vincula interesses e coorde­

na urna concep~ao de mundo. "O caminho da 'salva~ao'

passaria assim pelo ajustamento do comportamento

individual as regras ditadas pela mentalidade religiosa'

(ORTlZ, 2002, p. 85).

Nesse contexto, os pacientes esperam o reconheci­

mento da sua forma de viver e a aceita~ao desse modo

de vida por aqueles que estao asua volta.

P 10: É, porque o caminho que eu quero seguir é ocaminho da Bíblia, o caminho de Deus, mas eu náo

consigo. Em casa, minha máe fit.la que eu sou umfit.lso, que eu estou ficando louco. Quando eu come~o

a ler a Bíblia muito, minha máe fit.la que eu estouficando louco.P 2: Eu sou evangélico, né. Eu procuro assim, tra­

balho, fit.mília, lazer, tudo pelas sagradas escrituras.O meu cotidiano da vida é com Deus, como dizem,crente, né.

A religiao ainda é encarada como salva~ao, como

solu~ao para todos os problemas. Para aquilo que o

sujeito nao encontra urna resposta, Deus encontraria

urna saída, um desfecho. Além disso, a religiao apresenta

urna moral a ser seguida, com um conjunto de leis que

orientam urna determinada forma de viver, e o nao­

cumprimento dessa 'lei divina acarretaria malefícios avida das pessoas.

Se seguirmos essa linha de pensamento, os sinto­

mas da doen~a podem ser compreendidos como o nao

seguimento das leis de Deus e o tratamento, como urna

represália divina. Assim, nao existe a compreensao da

doen~a em si, mas da concep~ao da rela~ao do homem

com as leis de Deus.

Os fatos da vida sao entendidos como desejo de

Deus, as possibilidades de escolha podem diminuir,

restringindo-se a seguir a moral da religiao, prevalecen­

do o temor da retalia~ao caso as leis divinas nao sejam

cumpridas.

Segundo Guerriero (2002), a vida parece caótica se

vista como um conjunto de fatos isolados, mas tais fatos

adquirem ordem e significado quando relacionados a

urna verdade atemporal e incondicional, ou seja, quando

relacionados a urna verdade mítica ou religiosa.

Frente as incertezas do dia-a-dia, ao sentimento de

impotencia ou angústia, as cren~as procuram organizar

um sistema explicativo para dar conta dos acontecimen­

tos (GUERRIERü, 2002).

1 A letra "P" significa paciente; "PI", portanro, refere-se ao paciente entrevistado número um. Numeraram-se os relatos dessa forma, até que se alcan<;asse o

paciente entrevistado número 13. A sigla "FP" significa familiat do paciente.

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P 6: Eu falava por Deus, náo falava pelo dinheiro.

Depois comecei a viver disso, eu preciso do que comer,

de alguma coisa, do ftijáo, do gás, as crianras come­

raram a dizer "Pai, quero comer': eu disse '/ti, meu

Deus, e agora?':

P 6: Ele (Deus) resolve os problemas com o louvor; o

louvor é muito bonito. Mas tem problema que ainda

dá para o homem resolver. Eu desobedeci a Deus,

irmá. Eu vim para o hospitalporque eu desobedeci a

Deus, náo era para eu ter tido 40 internaróes, pense

só voce... 40 internaróes que eu tive.

Os familiares também procuram na religiáo urna

explica<;:áo para a doen<;:a ou urna forma de lidar com o

paciente doente. A cren<;:a assume um lugar importante

para aceitar o convívio com o doente mental.

A fórmula que propóe a religiosidade como solu<;:áo

para as dificuldades vividas no dia-a-dia também é usada

pelos familiares. A moral religiosa é um guia para a for­

ma de agir para algumas das máes dos pacientes: é essa

moralidade que estabelece urna norma de conduta.

FP 13: Eu náo entendia ele. Mas graras a Deus, depois

que eu aceiteiJesus Cristo, eu estou entendendo muito

bem. Porque antes, quando elefalava, eu retrucava né,

e agora náo. Agora, enquanto ele está me ofendendo, eu

oro por ele. Graras a Deus. Eu faro oraráo por ele.

FP 4: Eu náo chego a desistirporque sei que Deus está

comigo. Tudo vem por Deus, eu creio nisso. Deus está

comigo, é a minha fé.

A igreja também é considerada um porto seguro

para os familiares, o local ao qual podem confiar a segu­

ran<;:a de seus filhos. Apostam na comunidade da igreja

como um local de suporte, onde as diferen<;:as podem

ser aceitas, e as pessoas dessa comunidade procuram o

contata e a comunica<;:áo com o paciente.

Para Machado (2001), a família é urna institui<;:áo

mediadora que oferece categorias explicativas e regula­

doras para os sujeitas e direciona a a<;:áo para a busca

por ajuda.

SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiáo 313

fA religiosidade exerce uma funráo} integradora do

indivíduo na sociedade, acalmando os seus conflitos

internos, apaziguando sua exc!usáo social acalentando

seus temores, sendo continente com a expressáo psico­

patológica. (p. 115)

Para os familiares, a igreja representa urna possibi­

lidade de inser<;:áo 'saudável' na comunidade.

FP 13: Bom, na igreja ele vai de vez em quando, as

vezes os irmáos, as irmás querem se aproximar dele,

o pastor quer se aproximar dele, né. O pastor podia

estar conversando com quem ftsse, mas quando ele

chegava lá, opastor já ía ao encontro dele.

FP 11: Quando ele vai pra igreja, elefica bem.

FP 11: Quando ele está numa fase boa, ele vai pra

igreja de manhá, no culto da tarde e da noite. Ele ora

numa boa. Nessa fase, eu vou tefalar, eufico tranqui­

la, porque eu sei que ele está na igreja.

FP 2: Ele querficar dentro de casa, ou entáo, ele saipra

igreja. Ou dentro de casa, ou entáo vai a igreja, sÓ.

As duas principais características expressas pelos

entrevistados em rela<;:áo a religiáo é a igreja como espa<;:o

de inc1usáo social, e a moral religiosa como norteadora

de conduta.

Agir de acordo com urna religiáo é participar de

urna maneira universal de viver, adequar o particular

ao coletivo.

DISCUSSÁü

Frente as dificuldades da vida, ao caos e a desordem,

a religiáo pode ser urna estratégia de compreensáo do

fluxo dos acontecimentos e orienta<;:áo de a<;:óes.

O mundo se apresenta ao ser humano como caótico

e sem sentido. Desprovido das significaróes e cons­

truróes simbólicas atribuídas histórica e socialmente,

a vida é impraticável. Cada grupo social, a cada

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009

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314 SALLES, M.M.; BARROS, S. • Saúde mental, cotidiano e religiao

época e lugar, procura construir sistemas de crenras

orientadoras das vicissitudes cotidianas, estabelecen­

do e ftrmulando o cosmos. Nisso se insere o papel

fundamental do mito e das religióes daí advindas.

(GUERRIERO, 2002, p. 316).

Para o doente mental que vive urna desorganiza<;:ao

psíquica própria da doen<;:a e, muitas vezes, nao con­

segue compreender os sintomas pela via científica ou

racional, a religiao surge como um suporte, urna forma

de compreender o mundo.

Heller (2002) relata que a religiao é urna comuni­

dade que possui urna ordena<;:ao de valores e produz urna

consciencia de nós. A religiao propicia urna integra<;:ao

heterogenea, sobre bases materiais e sociais, unindo

classes ou na<;:óes.

A religiao exerce sua fun<;:ao comunitária mediante

um caráter ideológico que ordena a vida e o compor­

tamento dos homens. A religiao é urna representa<;:ao

coletiva baseada na dependencia do homem, pela trans­

cendencia (HELLER, 2002).

Para Heller (2002), a religiao é um fenomeno de

aliena<;:ao devido a essa dependencia do transcendente.

Por exemplo, o mundo é bom por vontade de Deus,

ou ruim por castigo de Deus. Tudo o que acontece é

vontade de Deus e, por isso, as nossas a<;:óes sao guia­

das pelo transcendente. O princípio de valores vem do

transcendente, estabelecendo-se o que deve ser feito.

Deus castiga as nossas a<;:óes ou nos oferece a salva<;:ao

como premio.

Assim, as representa<;:óes religiosas coletivas impreg­

nam o comportamento da vida cotidiana, condicionado

pelo coletivo. A religiao como identifica<;:ao da conscien­

cia de 'nós' pode conduúr ao comportamento fanático,

como a passividade fatalista e a aceita<;:ao da sujei<;:ao da

particularidade (HELLER, 2002).

Ainda segundo Heller (2002), a religiao constitui

um dos principais organizadores e reguladores da vida

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009

cotidiana. Viver de acordo com urna determinada

religiao significa nao apenas crer, mas orientar seu

modo de vida segundo as exigencias e formas de tal

doutrina.

Machado (2001) relata que as explica<;:óes em rela­

<;:ao adoen<;:a mental extrapolam a condi<;:ao individual

e o contexto familiar,

Gerando conexóes e relaróes sociais, representacionais.

Essa génese mescla a história individual, a história

social e toda uma gama de significados anteriormente

estabelecidos. (p. 118).

Os significados do processo saúde-doen<;:a mental

ancoram-se em representa<;:óes mais amplas do que

aquelas oferecidas pela psiquiatria, buscando-se ajuda

e solu<;:ao na esfera religiosa.

CONCLUSÁO

A igreja foi apresentada pelos pacientes e seus

familiares como espa<;:o de pertencimento a um grupo,

um ambiente que acolhe e, ao mesmo tempo, estabelece

limites e normas de conduta.

Os usuários, que em geral enfrentam dificuldades

em encontrar atividades significativas em sua vida e

lugares em que possam ser aceitos, encontraram na

participa<;:ao de atividades religiosas urna forma de

estar com os outros e compreender os acontecimentos

de sua vida.

Porém, apesar de os relatos dos entrevistados apre­

sentarem pontos positivos em rela<;:ao a participa<;:ao

em atividades religiosas, é importante ressaltar alguns

aspectos apontados por Heller sobre a possibilidade de

a religiao produúr aliena<;:ao e passividade, já que a vida

é regida pelas leis de Deus.

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Assim, é importante para os pacientes e usuários

nao abrirem mao de suas possibilidades de escolhas e

de sua particularidade para participarem desse ambiente

coletivo. É preciso utilizar o suporte oferecido pela Igreja

para aumentar a probabilidade de cria<;:ao de rela<;:óes

sociais e de circula<;:ao em diversos ambientes coletivos,

nao apenas espa<;:os da igreja.

A religiao, assim como outras esferas da vida co­

tidiana, pode compor urna gama de possibilidades de

integra<;:ao social, ordena<;:ao dos acontecimentos da vida

e explica<;:ao para o processo de adoecimento mental sem

necessariamente imobilizar os pacientes em urna atitude

passiva, que impossibilita escolhas e o desenvolvimento

da particularidade de cada um.

REFERENCIAS

ALCÁNTARA, M.L.B. Um outro olhar sobre o estudo das

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Recebido: Agosro12006

Aprovado: Maio12009

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 82, p. 308-315, maio/ago. 2009