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3  

ÍNDICE

Agradecimentos 5

Palavras-Chave/Keywords 7

Resumo/Abstract 9

Resumo dos capítulos 11

Introdução: as nossas coisas preferidas 19

1. Contexto de origem, colecções e museus 35

1.1 Mármores do Parténon: a controvérsia cultural mais longa 35

1.2 Contexto museológico versus contexto de origem 42

2. História, memória, colecções e museus 75

2.1 O histórico e o panorâmico 75

2.2 Ruínas e fragmentos: John Soane e Hubert Robert 94

3. O privado e o público; o imaterial e o material 113

3.1 Genealogia das colecções 113

3.2 Casas-Museus e ocupação de um espaço: o Museu Gardner 129

4. Coleccionadores e outras pessoas 149

4.1 Intersubjectividade, partilha e participação: a Fundação Menil 149

4.2 Colecções, catálogos e museus imaginários 170

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4  

5. Intenção e valor 187

5.1 Pré-História das colecções e problemas da taxonomia 187

5.2 Oscilações de valor 206

6. Relações entre pessoas e coisas 225

6.1 Confusões e distinções 225

6.2 Contiguidades e consideração 241

Bibliografia citada 257

Lista de imagens em suporte digital 273

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5  

AGRADECIMENTOS

A redacção desta tese foi possível graças a uma bolsa de doutoramento

(SFRH/BD/68278/2010) da Fundação para a Ciência e Tecnologia pela qual

estou grata.

Aos meus orientadores, Prof. Miguel Tamen e Prof. João Figueiredo,

agradeço a disponibilidade, o rigor e a paciência com que acompanharam e

discutiram este projecto do início até ao fim.

O ambiente do Programa em Teoria da Literatura e as pessoas que

conheci durante o mestrado e o doutoramento neste contexto foram decisivos

para o meu interesse e para o meu empenhamento nestas actividades

académicas tão pouco valorizadas nos dias que correm.

Esta tese está associada ao projecto Intention, Action and the Philosophy

of Art: New Boundaries in a Theory of Action, financiado pela Fundação para a

Ciência e a Tecnologia (PTDC/FIL-FIL/116733/2010), e beneficiou

grandemente de todas as actividades e discussões realizadas neste âmbito.

Graças a este projecto tive a possibilidade de apresentar e discutir ideias com

Humberto Brito, Ana Almeida, Alberto Arruda, Sara Eckerson, Nuno Amado e

Pedro Serras. Ana Almeida e Humberto Brito são inspirações para mim.

Estou grata ao Prof. António Marques, director do IFILNOVA, pelo bom

acolhimento do instituto. Muito obrigada também ao Nuno Mora por toda a

disponibilidade e eficiência.

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6  

Agradeço a Victoria Harrison, Anna Berqvist e Gary Kemp,

organizadores da Royal Institute of Philosophy Annual Conference 2013:

Philosophy and Museums: Ethics, Aesthetics and Ontology, por me ajudarem a

acreditar na possibilidade de esta tese interessar a mais do que duas ou três

pessoas quando seleccionaram para apresentação nessa conferência e posterior

publicação um ensaio que corresponde à primeira versão do primeiro capítulo.

Estou também grata a Constantine Sandis, Ivan Gaskell, Eileen John, Graham

Oddie e Beth Lord pelo feedback relativo à minha apresentação.

Aos meus colegas de seminário de orientação, agradeço o

companheirismo, as perguntas que fizeram e o interesse que demonstraram

pelo tópico desta tese. Além dos já citados Alberto Arruda e Sara Eckerson,

foram eles: Carlo Arrigoni, Carlos Alves Pereira, Frederico Pedreira, Joana

Cordovil Cardoso, José Maria Veira Mendes, Miguel Almeida, Pawel

Augustyniak, Susana Janic e Telmo Rodrigues.

Às seguintes pessoas agradeço a amizade, as sugestões e a compreensão

pela minha falta de entusiasmo em relação ao convívo social durante este

doutoramento: Carla Quevedo, Maria Sequeira Mendes, Cristina Fernandes,

David Luz, Helena Ramos, Teresa Gonçalves, Jean Pierre de Roo, Maria Rita

Furtado e Madalena Alfaia.

Por último, ao meu marido, Alexandre Andrade, agradeço o apoio

constante e incondicional.

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7  

Palavras-Chave

Coleccionadores, colecções, museus, casas-museus, ruínas, memória,

intersubjectividade.

Keywords

Collectors, collections, museums, house museums, ruins, memory,

intersubjectivity.

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8  

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9  

Resumo

Nesta tese tenta-se rever alguns lugares-comuns associados aos tópicos dos

coleccionadores, das colecções e da actividade de coleccionar, nomeadamente as

ideias de que as colecções se situam numa dimensão desligada da vida e de que

os coleccionadores são criaturas bizarras e perigosas. A abordagem privilegiada

procura, pelo contrário, avaliar a integração das colecções na vida dos

coleccionadores e perceber em que medida o estudo da actividade de

coleccionar nos pode ajudar a descrever e compreender melhor outras

actividades humanas.

Abstract

This dissertation looks into some clichés commonly associated with the topics of

collectors, collections, and collecting, namely the ideas that collections are

located in a dimension disconnected from life, and that collectors are bizarre

and dangerous creatures. Instead, it aims both to assess the integration of

collections in collectors’ lives, and to understand the ways in which the study of

collecting activities helps us to describe and clarify other human activities.

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10  

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11  

Resumo dos capítulos

1. No primeiro capítulo, um ensaio de Quatremère de Quincy sobre os

problemas associados às colecções e aos museus, juntamente com uma reflexão

sobre os Mármores de Elgin ou Mármores do Parténon, uma das colecções mais

controversas de sempre, levam-nos à consideração da descrição de colecção

enquanto descontextualização. Segundo Quatremère de Quincy, as colecções e

os museus geram «ruínas artificiais». Chegamos, no entanto, à conclusão de que

a passagem do tempo, a mortalidade das pessoas e o desgaste das culturas e das

civilizações têm efeitos inevitáveis que produzem não só ruínas mas também a

desintegração e o desaparecimento tanto dos contextos originais dos objectos

como de objectos que não sejam afastados destes contextos e preservados em

museus e colecções. Ao mesmo tempo, notamos que a apropriação destes

objectos por coleccionadores ou responsáveis por museus acarreta

frequentemente uma mudança de função e/ou de estatuto ontológico. Esta

situação chama a atenção tanto para as actividades de apropriação dos

coleccionadores como para a existência dos objectos ao longo do tempo e para o

modo como o estatuto destes vai variando em articulação com estas actividades

de apropriação. Uma das constatações mais importantes deste capítulo

relaciona-se com a ideia de que a identidade tanto das pessoas como dos

objectos não é totalmente predeterminada mas depende, no caso das pessoas,

das acções que realizam, no caso dos objectos, das actividades e práticas em que

são integrados.

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12  

2. Os Mármores do Parténon da colecção de lorde Elgin, a associação que

Quatremère de Quincy propõe entre ruínas e objectos de colecção ou museu,

assim como a ideia de mudanças ontológicas do estatuto dos objectos ao longo

do tempo suscitam no segundo capítulo uma reflexão sobre a memória e a

História. Em contraposição à posição de Quatremère, que defende uma

perspectiva histórica que recusa qualquer desconexão dos objectos

relativamente ao seu contexto original, propomos uma abordagem mais

próxima da memória e das relações de sentido que esta constrói. A casa-museu

de John Soane relaciona-se com os Mármores do Parténon por via das ruínas,

dos fragmentos e das relações que encena entre memória e História, propondo

um ponto de vista panorâmico, capaz de estabelecer conexões entre objectos e

pessoas de tempos e espaços diferentes, em vez de insistir na reconstituição fiel

dos contextos originais. Esta casa-museu chama a atenção para a

inseparabilidade das vertentes privadas ou subjectivas das colecções, por um

lado, e das suas vertentes públicas, por outro. Traduz um ponto de vista anti-

histórico que se articula com o desejo dos coleccionadores de superação da

morte e de permanência na memória cultural. Ao mesmo tempo, concretiza a

ideia de que as pessoas se definem situando-se num lugar material com que

interagem conceptualmente. A casa-museu de John Soane é vista como

metacolecção na medida em que concentra as conexões – ruínas, fragmentos,

túmulos, peregrinações ou turismo – em jogo não só em relação aos Mármores

do Parténon – o nosso ponto de partida, o paradigma das colecções –, mas

também na tradição ensaística sobre colecções e museus inaugurada por

Quatremère de Quincy. O carácter público da colecção de John Soane,

sublinhado pelas semelhanças de família entre objectos de colecção e

arquitectura funerária, aponta para a vertente intersubjectiva das colecções –

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13  

uma dimensão frequentemente ignorada na literatura sobre o tópico, mas

abordada nos capítulos seguintes desta tese.

3. No terceiro capítulo procuramos aprofundar a associação entre uma

subjectividade (ou um ponto de vista pessoal) e a constituição, organização e

exposição de uma colecção num determinado espaço. Sugerimos primeiro que

um conjunto de objectos pode expressar, definir, expor e preservar um conjunto

de relações entre uma pessoa e o universo material que esta percorre.

Constatamos que a definição da subjectividade se processa em articulação com

dimensões intersubjectivas e objectivas. Cada pessoa tem uma dimensão

colectiva e pública sem a qual não é possível definir-se. Verificamos isto não só

em relação às colecções, mas também relativamente a práticas relacionadas com

túmulos e outros monumentos de homenagem a mortos, santuários, relíquias e

relicários, gabinetes de curiosidades, arte da memória e casas-museus. A

propósito deste conjunto de práticas baseadas na associação entre objectos e

pessoas e, portanto, susceptíveis de serem consideradas na genealogia das

colecções, chamamos a atenção para a interacção do privado e do público, do

individual e do colectivo, tanto na definição de um ponto de vista pessoal como

na sua preservação depois do desaparecimento de uma pessoa.

4. No quarto capítulo, a partir das actividades da Fundação Menil,

aprofundamos a relação entre o individual e o colectivo, tentando perceber em

que medida o individual é partilhável e inteligível colectivamente. Constatamos

que partilhamos um conjunto de práticas culturais que nos distinguem como

seres humanos. Verificamos que para sermos inteligíveis a nós mesmos temos

de nos interessar pela inteligibilidade dos outros. Nesta partilha de

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14  

inteligibilidades e no interesse que cultivamos pelos interesses dos outros reside

a possibilidade de nos autodefinirmos através de proximidades e distâncias em

relação às pessoas e coisas com que partilhamos um espaço físico e conceptual.

5. No quinto capítulo prestamos mais atenção à noção de colecção. Depois de

considerarmos várias abordagens ao tópico, concluímos que precisamos de uma

noção mais ampla e abrangente do que aquela proposta pela maior parte dos

autores que escreveram sobre o assunto. Neste ponto, em associação com alguns

passos do romance La Peau de chagrin de Honoré de Balzac, constatamos que o

método, os critérios e as regras da ciência podem não ser as estratégias mais

adequadas para descrever sensatamente alguns assuntos. Para abordar alguns

tópicos que implicam dimensões gerais da natureza humana, talvez seja mais

importante obter uma visão ampla e panorâmica, em vez de se tentar especificar

os termos sem tomar em consideração as suas conexões. Insistir em

especificações, distinções e oposições na delimitação da noção de colecção tem

produzido resultados artificiais, demasiado vulneráveis a excepções e

insuficientemente abrangentes. Por este motivo, descrevemos simplesmente

«colecção» como um conjunto de coisas (objectos ou experiências) e de ideias.

Destaca-se como ponto principal a noção de que não há colecção sem pessoas,

pois só os seres humanos têm preocupações de construção de sentido. Visto que

ninguém faz sentido sozinho, uma colecção é um empreendimento

necessariamente público, por mais secreta ou privada que o coleccionador a

considere. O romance Le Cousin Pons, de Balzac, ajuda-nos a apresentar este

ponto de vista.

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15  

6. No sexto capítulo, pensamos sobre a relação entre as pessoas e as coisas,

tentando clarificar algumas confusões habituais. Assinalamos os modos como a

integração da noção de colecção na noção de vida nos ajuda a perceber o que é

«estar vivo». A distinção entre coisas e pessoas é relacionada com uma distinção

entre «ser» e «fazer». Enquanto os objectos são incapazes de agir e de pensar,

as pessoas têm de fazer para poderem ser e são o que fazem com o que está sua

disposição. Neste processo, a liberdade de identificação, desenvolvimento e

partilha de interesses e de interpretações pessoais é essencial não só para a

autodefinição de cada pessoa mas também para a expansão da cultura. Ao

mesmo tempo, salienta-se a ideia de que é necessário um empenhamento activo

na preservação do património cultural.

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«Tornámo-nos coleccionadores sem culpa»

Dominique de Menil

«Não foi Goethe quem disse: ‘Os coleccionadores são criaturas felizes?’»

Stefan Zweig

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19  

Introdução: as nossas coisas preferidas

«Tentar articular alguns dos momentos no desenvolvimento de um gosto autorizado afinal não é senão fazermos um relato das nossas vidas e do nosso viver como uma aventura no e do gosto.»

Charles Wegener1

Os coleccionadores são pessoas felizes?

Dir-se-ia que os coleccionadores, na medida que estão em contacto com

os próprios interesses e com as suas coisas favoritas, partilham a vida com o que

os faz felizes. No entanto, de acordo com a maior parte da literatura sobre o

tópico, os coleccionadores são criaturas infelizes, alienadas, presas num

percurso autodestrutivo de permanente insatisfação.

Não sei se ser ou não feliz é a pergunta mais importante que podemos

fazer sobre a vida de alguém. É possível que para algumas pessoas haja coisas

mais importantes do que a felicidade. É possível também que algumas coisas ou

circunstâncias nos façam felizes ao mesmo tempo que outras nos deixam

infelizes. Em vez disso, talvez a pergunta mais importante que podemos fazer

aos outros e a nós mesmos nos peça para identificarmos o que traz sentido à

nossa vida – o que nos faz ter vontade de continuar a viver. Visto que somos

felizes quando as nossas vidas fazem sentido – isto é, quando os diversos

elementos da nossa vida se esclarecem uns aos outros ou se articulam uns com

os outros sem atritos destrutivos –, talvez «fazer sentido» seja uma condição de

«ser feliz» e «sentido» um sinónimo de «felicidade».

                                                            1  Wegener, Charles. 1992. The Discipline of Taste and Feeling. Chicago e Londres: The University  of  Chicago  Press,  174.  (Salvo  indicação  em  contrário,  todas  as  traduções para português integradas nesta tese são da minha responsabilidade.)  

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20  

De qualquer maneira, se perguntássemos a um coleccionador o que o faz

feliz, penso que este responderia sem qualquer dificuldade. Os coleccionadores

têm coisas a dizer sobre o que traz sentido à vida.

Ao longo desta tese, o tópico das colecções será sempre pensado na sua

relação com a vida das pessoas, em vez de, como habitualmente sucede na

bibliografia sobre o tema, ser tratado como isolado desta. Nesta tese

descrevemos não só coleccionadores e colecções, mas também o que os não-

coleccionadores podem perceber graças aos coleccionadores. Trata-se de uma

opção infinitamente discutível, que implica secundarizar particularidades,

excepções e casos problemáticos. Em contrapartida, por ser uma opção pouco

comum na literatura sobre o tópico, permite abordar questões mal exploradas.

Com esta opção pretende-se libertar a actividade de coleccionar dos

lugares-comuns recorrentes em quase todas as abordagens do tópico. Estes

lugares-comuns viciam à partida qualquer descrição de coleccionador

relacionando-a com tendências obsessivas e compulsivas quase inumanas.

Nesta tese, pelo contrário, partimos das noções de que – evidência

habitualmente esquecida – os coleccionadores são pessoas como nós e as

colecções são uma parte importante da vida deles – portanto, também da vida

de todos nós.

Retirando as colecções de uma espécie de universo alternativo em que o

tempo e a humanidade estão suspensos, a abordagem privilegiada nesta tese

relocaliza-as na existência quotidiana como elementos de construção de sentido

e de inteligibilidade. Visto que os nossos interesses trazem sentido e felicidade

às nossas vidas, queremos perceber, por um lado, de que modos os

coleccionadores são felizes e, por outro, como os não-coleccionadores

participam nessa felicidade. Prestando atenção aos modos como os

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21  

coleccionadores se relacionam com os próprios interesses participamos na

humanidade que partilhamos e no que dá significado às nossas vidas.

Em 2011 o Museu Cooper-Hewitt convidou a artista gráfica Maira

Kalman para organizar uma exposição a partir dos objectos da colecção do

museu de que mais gostasse. Em articulação com este projecto, Maira Kalman

criou também dois livros sobre a colecção: um para adultos2, outro mais

orientado para o público infantil3. Em entrevista4, Kalman revelou que esta

tarefa desencadeou uma reflexão sobre os seus objectos preferidos em geral –

não só na colecção do museu. Kalman constatou que o processo de selecção de

peças de uma colecção convocava outras dimensões da sua vida. O livro My

Favorite Things demonstra em acto os processos que procuro clarificar nesta

tese e reforça uma grande parte das ideias que aqui defendo em oposição a

certas perspectivas mais comuns sobre o tópico das colecções5.

My Favorite Things divide-se em três partes. A selecção de objectos do

museu («Part II: Not Far From the Waving Trees in Central Park: My Favorite

Things from the Cooper-Hewitt») situa-se entre «Part I: There was a simple and

grand life», secção em que Kalman ilustra episódios da história da sua família,                                                             2 Kalman,  Maira. 2014. My Favorite Things.  Nova Iorque: Harper Design.  3 Kalman, Maira. 2014. Ah‐Ha to Zig‐Zag: 31 Objects from Cooper‐Hewitt, Smithsonian Design Museum. Nova Iorque: Cooper‐Hewitt, Smithsonian Design Museum.  4  Disponível  no  site  do  podcast  da  Publisher’s  Weekly  Radio  (episódio  93): http://www.publishersweekly.com/pw/podcasts/index.html?channel=8&podcast=330  5  Nesta  tese,  tomo  em  consideração  colecções,  descrições  de  colecções,  ensaios  e depoimentos  sobre  colecções,  biografias  de  coleccionadores,  ficção  e  cinema relacionados  com o  tópico, assim  como ensaios de  filosofia  relevantes para o  tema. Talvez  o  livro  de  Maira  Kalman  concretize  a  abordagem  mais  livre  e  mais desinteressada  sobre  o  tópico  na  medida  em  que  a  autora  não  tem  qualquer preocupação de demonstrar um argumento, limitando‐se a reagir a um desafio que lhe foi proposto pelos responsáveis de um museu.   

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22  

incluindo fotografias não só da família mas também de objectos e obras de arte

associados a estas recordações e «Part III: Coda, Or Some Other Things the

Author Collects And/Or Likes», que clarifica alguns dos temas principais do

livro.

Associada à ideia de escolha de objectos e de constituição de uma

colecção pessoal a partir da colecção maior do museu encontramos a

necessidade de se explicar quem se é. Na última frase da introdução do livro,

Kalman anuncia: «Mas antes, um pouco sobre as raízes da pessoa resposnsável

por esta escolha.»6

A autodescrição de Kalman começa com a evocação de um passado em

família. A noção de identidade é inseparável da noção de memória. Memória

assume aqui o seu sentido mais amplo – não apenas como recordação do

passado, mas também enquanto mecanismo essencial à definição de uma

identidade individual e colectiva no espaço e no tempo. A memória permiteà

autora perceber de onde vem e projectar a sua existência no presente e no

futuro. A identidade individual de Kalman relaciona-se com as histórias da sua

família, constituindo portanto uma apropriação individual de uma identidade

colectiva.

Esta História individual e familiar é contada não só através dos objectos

específicos que dela restaram, mas também por recurso a referências que

incluem obras de arte e outros objectos não directamente relacionados com a

história particular que Kalman está a contar. Recorrendo a referências culturais

facilmente identificáveis, conhecidas e apreciadas por muita gente, esta artista

facilita a compreensão do que pretende transmitir, trabalhando um terreno

humano comum.

                                                            6 Kalman 2014b, 9.  

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23  

A primeira imagem desta secção, representando dois casais a fazer um

piquenique nas margens de um rio7, não tem como ponto de partida uma

fotografia de um álbum de família de Maira Kalman, mas sim uma fotografia de

Henri Cartier-Bresson habitualmente identificada como Domingo nas

Margens do Marne8 (1938), ela própria por sua vez inspirada na famosa tela

Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte (1884), de Georges-Pierre

Seurat9. O que Maira Kalman faz com a fotografia de Cartier-Bresson ilustra

bem o processo de apropriação pessoal em questão. Cartier-Bresson fotografou

quatro camponeses a fazer um piquenique junto a um rio. Kalman produziu

uma ilustração desta fotografia, usando-a neste livro como usaria uma

fotografia retirada do seu álbum de família. Na fotografia de Cartier-Bresson, os

camponeses naquele piquenique são vistos na particularidade do contexto

daquele dia. Ao mesmo tempo, nós e Maira Kalman somos sensíveis à sua

universalidade, isto é, à possibilidade de aqueles camponeses serem se não

como nós, pelo menos como algumas pessoas da nossa família sem as quais não

seríamos como somos. No livro de Kalman, estes camponeses representam e são

vistos como seus familiares. Também Cartier-Bresson é integrado na família de

Maira Kalman. A circunstância de, assim como Kalman recorreu a Cartier-

Bresson, o próprio Cartier-Bresson ter como referência uma tela de Seurat

chama a atenção para a partilha de um património cultural.

                                                            7 Esta  tese  inclui um CD  com  imagens que  ilustram os  termos do  texto antecedidos pelo símbolo .  8 Cartier‐Bresson não definia títulos descritivos para as suas fotografias.  9  No  canto  superior  direito  desta  ilustração,  Kalman  inclui  uma  lista  de  coisas associadas à vida familiar no exterior (comida de piquenique, roupa a secar). No canto inferior esquerdo vemos uma  lista de coisas associadas à vida  familiar no  interior de uma casa (mobília, cartas, roupa, documentos, etc.). 

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24  

Nas páginas seguintes desta secção Kalman identifica e ilustra episódios

do passado e do anedotário da sua família recorrendo não só a objectos ou

fotografias relacionados directamente com esta história, mas também

apresentando ilustrações e fotografias inspiradas na obra ou na vida de artistas

como Bonnard, Chagall, Yves Klein ou Joseph Beuys. (Por exemplo, inclui uma

fotografia do fato cinzento de Joseph Beuys para recordar o fato cinzento que o

pai veste numa ilustração, a qual, por sua vez, representa uma queda deste do

terceiro andar, mas recorda uma fotografia de Yves Klein.)

Kalman integra as suas coisas favoritas na própria família.

Descrevermos as nossas coisas favoritas é como descrevermos a nossa família?

Sim, na medida em que somos quem somos graças tanto aos nossos

progenitores e antepassados como às coisas importantes na nossa vida. Para

percebermos e descrevermos quem somos precisamos de compreender as

nossas relações com ambos.

Descrever a nossa família biológica ajuda-nos a descrever o que em nós é

herdado. Descrever as nossas coisas favoritas ajuda a descrever o que em nós é

individualizado – as nossas escolhas. As nossas coisas favoritas ajudam-nos a

descrever-nos individual e colectivamente. Através delas, conseguimos articular

o que valorizamos e quisemos preservar do que herdamos, mas também o que

preferimos rejeitar e o que quisemos acrescentar.

Fazer uma colecção é como escolher uma família? No terceiro capítulo

desta tese vemos como a coleccionadora Isabella Stewart Gardner, à semelhança

de outros coleccionadores americanos seus contemporâneos10, constrói uma

casa em que se pode rodear dos objectos que gostaria de ter herdado da família                                                             10 Alguns exemplos: Andrew Mellon  (1855‐1937), Henry Clay Frick  (1849‐1919),  J. P. Morgan (1837‐1913), William Randolph Hearst (1863‐1951).  

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25  

aristocrática europeia que nunca teve11. Não podemos escolher os nossos

antepassados, nem a nossa herança biológica e material, tal como não podemos

escolher o local e o período histórico em que nascemos, mas, como lembra Kant

no quarto capítulo desta tese, somos livres em certa medida para fazer algumas

opções que nos distinguem destas heranças.

Como concluiremos no sexto capítulo, a possibilidade de tomarmos estas

opções, a liberdade de mudarmos, a capacidade de escolhermos o que queremos

fazer, de tomarmos as nossas próprias decisões, a possibilidade de sermos

avaliados pelas nossas acções e pelas nossas escolhas, em vez de sermos

avaliados apenas por aquilo que herdámos e pela família biológica a que

pertencemos, a liberdade de assim definirmos quem somos e de escolhermos o

que nos faz felizes são alguns dos pontos mais importantes a estudar em

conexão com o tópico das colecções e são também os tópicos mais importantes

da nossa vida – individual e colectiva.

Interessante é também o facto de Kalman colocar lado a lado obras de

arte e objectos de todos os dias, à semelhança, aliás, do que se verifica na

própria colecção do Museu Cooper-Hewitt. Estes dois factores aliam-se à noção

                                                            11 No fim do séc. XIX, princípio do séc. XX, foram muitos os milionários americanos que usaram  fortunas  acumuladas  em  actividades  profissionais    para  construir  uma  casa capaz de mostrar aos outros o seu sucesso. Em alguns casos estes milionários também reuniram uma colecção através da qual pudessem  ser  recordados. O modelo parece ter  sido  fornecido  pelas  famílias  da  aristocracia  europeia,  em  cujas  casas  todos  os objectos  (quadros,  peças  de  família,  jóias,  louça,  talheres,  objectos  decorativos, mobília, etc.) eram conservados como marca de uma identidade que os descendentes herdavam.  Em  geral,  as  colecções  dos  milionários  americanos  revelam  uma diversidade  de  objectos  equivalente.  Um  dos  objectivos  destes  milionários  seria conferir  uma  aura  de  respeitabilidade  aristocrática  ao  dinheiro  adquirido profissionalmente  (isto é, não‐aristocraticamente). Aliados ao desejo  individual de se demonstrar  quem  se  é  através  do  que  se  consegue  fazer,  encontramos  também objectivos relacionados com questões de identidade colectiva e de filantropia, como o desejo de tornar acessíveis aos americanos tesouros artísticos da Europa e de outros continentes. 

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26  

de que as fronteiras entre a arte e a vida são menos importantes do que alguns

críticos e especialistas fazem crer, como defenderemos no quarto capítulo em

articulação com o filósofo John Dewey.

Dedicada à colecção do Museu Cooper-Hewitt, a segunda secção de My

Favorite Things, «Part II: Not Far From the Waving Trees in Central Park: My

Favorite Things from the Cooper-Hewitt», abre com o retrato das duas irmãs

– Nellie e Sally Hewitt – cuja colecção foi a base do espólio do museu. Antes de

os objectos serem descritos, são identificadas as pessoas que os coleccionaram.

Por ter sido inspirada pelas visitas destas irmãs ao Museu de Artes Decorativas

de Paris, a colecção deste museu inclui um grande número de objectos

admirados não só pelas suas qualidades estéticas mas também com possível

desempenho utilitário12. Os critérios da escolha de Maira Kalman relacionam-se

tanto com a beleza como com a utilidade destas peças. Esta situação torna claro

que não só alguns objectos da vida podem vir a fazer parte do universo da arte

como as obras de arte podem ou situar-se no contexto da existência quotidiana

ou organizar as percepções da vida de todos os dias. O que é valorizado na arte e

nas colecções também pode ser valorizado na vida13.

Apesar de nesta segunda parte Kalman ter o objectivo de seleccionar

objectos da colecção do museu, a sua abordagem continua tão pessoal como na

primeira secção deste volume. Entre ilustrações e referências a objectos do

                                                            12 Entre estes, Kalman destaca  tenazes,  tesouras, bules, chávenas, colheres de  sopa, chapéus, cadeiras,  sapatos, peças de  roupa,  relógios, candeeiros,  livros e até portas. Além de objectos, a colecção inclui ilustrações de alguns destes objectos (por exemplo, sapatos e ilustrações de sapatos).  13  A  última  frase  deste  livro  de Maira  Kalman  é,  aliás,  «Tudo  faz  parte  de  tudo.» (Kalman 2014b, 145.) Exploraremos adiante  tanto esta  frase  como a  secção  final do livro.  

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museu, Kalman insere ilustrações de objectos que ela própria colecciona (ver

por exemplo, uma ilustração da colecção de bilhetes e senhas nas páginas 78-

79), ou comentários referentes a evocações pessoais, suscitadas pelas peças da

colecção14.

Simultaneamente, Kalman demonstra e explora a complexidade da

memória através do carácter inesperado de certas associações, mostrando como

esta pode ser investida em certos objectos – artísticos ou não –

independentemente do significado definido no contexto (físico e conceptual) na

origem destes. Na primeira parte de My Favorite Things, alguns objectos

concentram recordações e significados que mais ninguém lhes associaria. Como

veremos no segundo capítulo desta tese, trata-se de um processo semelhante ao

descrito em relação a algumas personagens de Proust, que associam certos

objectos e obras de arte a acontecimentos ou a outras personagens, ainda que

esta associação possa ser considerada idiossincrática ou até enganadora e

perigosa15. Deste modo, Kalman mostra como alguém pode apropriar-se

idiossincraticamente de certos objectos, associando-lhes conteúdos e

recordações que treslêem a função original ou as intenções na origem destes,

perdendo ou acrescentando informação importante a respeito destes, ou

fixando-se em pormenores aparentemente insignificantes.

Em paralelo com as idiossincrasias da memória, temos as variações dos

usos das coisas. Uma das ideias de que mais gosto nesta tese é a de que

                                                            14 Uma ilustração que representa um embrulho com uma misteriosa caixa de pulseiras que nunca mais ninguém abrirá é convocada por um álbum de  ilustrações atado com fitas pertencente ao museu e ilustrado na página ao lado. A fotografia de uma porta na colecção  do museu  evoca  uma  citação  de Wittgenstein  e  a  imagem  do  quarto  da artista Charlotte Salomon. (Kalman 2014b, 87‐89.)  15 Kalman é, aliás, leitora de Proust e chega a citá‐lo em My Favorite Things. 

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interpretações (de objectos, de textos, de imagens, etc.) que resultam de mal-

entendidos ou de distorção ou desrespeito da intenção original – isto é,

interpretações que alguns descrevem como erradas ou descontextualizadas –

podem não só funcionar como também chamar a atenção para facetas

inesperadas do que é interpretado, dando por vezes origem a novas vidas dos

objectos. Muitas vezes os objectos ou as obras de arte sobrevivem no tempo

precisamente porque são mal entendidos, mal usados e reinventados. Nalguns

casos, a preservação de alguns objectos depende da possibilidade de se

autonomizarem relativamente ao seu contexto de origem e da possibilidade de

se integrarem em novos usos particulares. Se o objecto ou a obra permitem essa

apropriação – e por «permitir essa apropriação» quero dizer integrar-se nos

usos e nas práticas com que esta interpretação se relaciona –, é porque de algum

modo esta possibilidade existe no objecto ou na obra.

Bill Brown propôs uma distinção entre «coisas» e «objectos»16. Segundo

Brown, as «coisas» são objectos que deixaram de funcionar ou objectos que não

percebemos para o que servem – por exemplo, uma caneta que não escreve.

Esta distinção talvez não seja tão nítida. Para usar a terminologia de Bill Brown,

em certa medida todos os objectos são «coisas» quando a sua descrição não os

articula com acções humanas. Como defendemos no primeiro capítulo, o

estatuto ontológico dos objectos depende da sua integração nas acções das

pessoas. Não se trata apenas de os objectos estarem disponíveis para serem «o

que receamos fazer», como Frank O’Hara escreve no poema «Interior (with

                                                            16 Ver Brown, Bill. 2003. «The Secret Life of Things: Virginia Woolf and the Matter of 

Modernism»  in Matthews,  Pamela  R.  e  David McWhirter  (ed.).  Aesthetic  Subjects. 

Minnesota:  University  of  Minnesota  Press,  397‐430  e  Brown,  Bill.  2001b.  «Thing 

Theory» in Critical Inquiry, Vol. 28, No. 1, Things. (Outono), 1‐22. 

 

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29  

Jane)», que abordaremos no sexto capítulo. É mais do que isso: os objectos são

o que as pessoas fazem deles. Ao mesmo tempo, as pessoas são o que fazem com

as coisas à sua disposição.

Ao longo desta tese tento demonstrar que as pessoas se situam no espaço

e no tempo em relação a si mesmas, aos objectos e às outras pessoas deste modo

infiel à origem histórica. Os objectos artísticos e não-artísticos são encarados

como coordenadas subjectivas e intersubjectivas através das quais as pessoas se

definem individual e colectivamente, partilhando informações e valores ou

apropriando-se individualmente destes, entendendo-os mal.

Como John Soane celebra através da sua casa-museu, considerada no

segundo capítulo, e como Quatremère de Quincy afirma contra as colecções e os

museus num ensaio que comentamos no primeiro capítulo, os objectos de

colecção funcionam como fragmentos ou ruínas na medida em que são usados –

pelas pessoas em geral e pelos coleccionadores em particular – de modos que

ignoram ou secundarizam o seu contexto conceptual e físico de origem.

Considerados no primeiro capítulo, os Mármores do Parténon, com a sua

História atribulada, são o exemplo mais famoso dos mal-entendidos que

caracterizam as relações entre as pessoas e os objectos. As colecções chamam a

atenção não só para o carácter individual de qualquer interpretação ou

descrição, mas também para a possibilidade de estas variações interpretativas

assegurarem a preservação dos objectos coleccionados.

As últimas imagens da segunda parte de My Favorite Things relacionam-

se com os temas da ausência, da perda, do luto e da morte, tópicos que, como

constataremos ao longo desta tese, principalmente no segundo capítulo, são

recorrentes quando se pensa sobre colecções. Entre as peças referidas em

articulação com este tema destacam-se, pela quantidade e pela expressividade,

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os «mourning samplers»17 da colecção do museu. Estes são acompanhados de

fotografias dos «mourning samplers» bordados por Maira Kalman por altura da

morte da mãe.

A recorrência dos tópicos do luto e da morte quando se pensa sobre a

relação entre pessoas e objectos aponta para vários elementos importantes desta

relação. Numa situação de perda, parece necessário às pessoas não só

dedicarem-se a uma actividade prática, mas também socorrerem-se de um

objecto material capaz de preservar a memória de alguém. A dor privada

adquire deste modo uma dimensão concreta e pública que a torna inteligível e

partilhável. Esta possibilidade de partilha revela-se uma noção essencial tanto

para compreendermos uma colecção como para compreendermos as pessoas.

Os objectos e as colecções são usados como elo de ligação entre pessoas

vivas e mortas. São um elemento essencial das relações que estabelecemos não

só com os que viveram antes de nós e com os que virão depois, mas também

com aqueles com que vivemos. Os objectos coleccionados asseguram uma

ligação entre os seus utilizadores no presente e os seus utilizadores no passado.

Ao mesmo tempo, instalam os coleccionadores no seu presente na medida em

que a associação destes numa colecção concretiza para os outros a interpretação

pessoal ou o modo de ver do coleccionador. (Neste sentido, como constataremos

nos capítulos quatro e cinco, qualquer colecção articula uma vertente imaterial e

subjectiva que se desenvolve com ela.) À nossa mercê por serem inanimados, os

objectos lembram-nos também que, nós, em contraste, estamos vivos e

                                                            17  Bordados  realizados  depois  da  morte  de  alguém,  geralmente  emoldurados  e expostos numa sala comum, de modo a preservar e honrar a memória desta pessoa. Trata‐se de uma prática comum durante o século XIX nos Estados Unidos que adquiriu popularidade sobretudo depois da morte de George Washington (1799). 

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podemos agir e afectar o modo como os outros vêem esses objectos e nos vêem a

nós.

Indicarmos as nossas coisas favoritas ou identificarmos as coisas que nos

interessam18, como defenderemos no sexto capítulo, são actividades através das

quais participamos no espaço social e cultural. São actividades por meio das

quais nos descrevemos através das relações que conseguimos estabelecer com

outras pessoas e outras coisas. São actividades através das quais podemos, em

maior ou menor escala, afectar as percepções dos outros, apresentando e

defendendo o que nos incentiva a continuar a viver.

Ao mesmo tempo, mudarmos de interesses é um sinal de que estamos

vivos. Como observamos no quinto capítulo, a evolução das colecções

frequentemente ilustra esta susceptibilidade de mudança: alguns

coleccionadores vendem parte de uma colecção para a tornar mais refinada;

outros deixam de coleccionar uma coisa para passar a coleccionar outra; outros

ainda vendem objectos que continuam a valorizar para poderem comprar outros

que valorizam mais. Estas opções são semelhantes às que tomamos ao longo da

vida. Umas vezes deixamos de valorizar coisas que nos eram caras. Outras

sacrificamos umas em favor de outras que consideramos mais importantes.

Outras ainda, deixamos para trás coisas de modo a simplificar ou a melhorar a

nossa vida.

Como Wegener assinala em epígrafe, as nossas vidas são aventuras nos

domínios do gosto e do valor. Visto que as nossas oportunidades estéticas e

existenciais são sempre condicionadas pelo contexto historico-cultural em que

nascemos, percebermos quem somos, isto é, distinguirmo-nos individualmente,

                                                            18  Estas  duas  expressões  não  são  necessariamente  equivalentes.  Podemos  achar interessantes coisas de que não gostamos. 

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implica sempre uma apropriação individual das coisas e experiências ao nosso

dispor e esta apropriação articula-se com a definição de uma hierarquia da

importância das coisas. A história dos modos como vamos definindo esta

hierarquia e as opções que fazemos a partir desta é a história das nossas vidas.

Assim como My Favorite Things é um livro sobre os processos através dos quais

tentamos construir uma vida em que haja felicidade19, falar sobre colecções

implica discutir o que é mais importante na vida.

Na terceira parte de My Favorite Things, intitulada «Coda, Or Some

Other Things the Author Collects And/Or Likes», Kalman ilustra e comenta um

conjunto de coisas heterogéneas que aprecia e/ou colecciona, entre as quais

camas, escadotes, sestas debaixo de árvores, pensamentos nebulosos,

fotografias de bailarinos, fotografias de pessoas a fazer alguma coisa, banheiras,

botões, livros, listas, postais de um hotel tunisino. O retrato de uma condessa

cansada suscita algumas considerações (incluindo rasuras) sobre a felicidade e a

tristeza, terminando com a frase: «Estamos vivos e isso é glorioso tudo o que

temos.»20 A ideia de posse como relação entre pessoas e objectos é

secundarizada nestas páginas pela noção de que a única coisa realmente nossa é

a vida. Os objectos são importantes porque nos ajudam a organizar a percepção

da nossa vida. Só a nossa vida, no entanto, nos pertence.

Nas duas páginas seguintes, Kalman escreve sobre «os sapatos que

abrandam o tempo», uns sapatos encontrados numa loja de artigos usados,

                                                            19  Na  introdução,  sobre  as  escolhas  que  fez, Maira  Kalman  diz:  «A minha  escolha baseou‐se apenas numa coisa – um suspiro de prazer [a gasp of delight]. Não será essa a única maneira de organizar uma vida? Viver entre as coisas que nos fazem suspirar de prazer?» (Kalman 2014b, 9.)  20 Kalman 2014b, 141.  

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«perfeitos em tudo excepto no facto de serem dois tamanhos acima». Segundo

Kalman, estes sapatos ajudam-na a estar presente na própria vida, a possuir a

própria vida: «Quando os uso, tenho de andar devagar e com cuidado, atenta a

cada passo. Deste modo, sou incentivada a estar presente no momento. Ainda

assim, o tempo é efémero e fugaz.»21

Na segunda secção do livro, comentando uma ilustração de uns sapatos

amarelos da colecção do museu, Kalman tinha observado: «A capacidade de

andar de um ponto para o outro é meio caminho andado [half the battle

won].»22 Estar presente no momento, possuir a própria vida está implicado na

possibilidade de estabelecer activamente relações entre coisas e pessoas, coisas

e coisas, pessoas e pessoas23. A última frase gramaticalmente correcta desta

secção é: «Tudo faz parte de tudo.» Em todos estes momentos do livro, a noção

de relação desempenha um papel fundamental. As colecções são um recurso

fundamental para a reflexão sobre o estabelecimento das relações entre as

diversas dimensões da vida na medida que concretizam processos de outro

modo muito difíceis de analisar. As colecções mostram-nos como fazer sentido.

Ao longo desta tese, vou dizer que ser feliz depende da liberdade de

identificar, interpretar e partilhar as nossas coisas favoritas e que esta liberdade

tem impacto político na medida em que nos permite participar na definição do

que é mais importante na nossa cultura. Por outras palavras, falando sobre

coleccionadores e colecções, vou falar sobre coisas que dão sentido à vida.

                                                            21 Kalman 2014b, 143.  22 Kalman 2014b, 59.  23 O último objecto da colecção do museu que Kalman apresenta na segunda secção deste  livro é um «mourning  sampler» mexicano que,  como Kalman destaca,  inclui a frase «O amor une‐nos». (Kalman 2014b, 101.)  

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1. Contexto de origem, colecções e museus

1.1 Mármores do Parténon: a controvérsia cultural mais longa

Devido à intensidade e à longevidade da controvérsia, na discussão em

torno da colecção de Elgin, agora mais conhecida pela designação Mármores do

Parténon, são trocados argumentos e acusações que revelam tópicos com que a

cultura das colecções se tem confrontado e definido ao longo dos tempos. Entre

estes tópicos incluem-se a imagem negativa dos coleccionadores como

saqueadores e/ou vítimas descontroladas da própria cobiça, a imagem negativa

das colecções e dos museus como vazios contextuais e/ou mausoléus da arte e

do património, as relações mais ou menos difíceis entre colecções e museus, por

um lado, e as vertentes públicas e privadas, colectivas e individuais, estáveis e

vulneráveis, tanto das pessoas como das coisas.

Coleccionador mal-amado de uma das colecções mais discutidas de todos

os tempos, figura infeliz, lorde Elgin parece ilustrar nos seus actos também os

malefícios principais da cultura das colecções: ganância, ambições imperialistas,

vandalização do património, corrupção e actos ilegítimos, descontextualização

cultural e sobrevalorização de objectos em detrimento de valores imateriais

mais importantes. Lorde Elgin converteu-se no paradigma do coleccionador

como pessoa indesejável e geralmente mal-intencionada que se torna perigosa

pela sua incapacidade de resistir às paixões materiais.

Atacados por uns e por outros, pelo facto de afectarem tantos interesses

diferentes, lorde Elgin e a sua colecção, na medida em que lembram que a arte

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não está desligada da vida das pessoas, são os melhores pontos de partida para a

nossa investigação24.

Thomas Bruce (1766-1841), sétimo duque de Elgin, o coleccionador

responsável pela presença dos Mármores do Parténon no British Museum, tem

sido uma das figuras mais atacadas em toda a História deste museu. Tanto os

partidários da restituição dos Mármores de Elgin à Grécia como os defensores

da retenção destas peças no British Museum descrevem as acções de Elgin como

actos de legitimidade contestável. Além de ter ordenado a remoção de

elementos essenciais do Parténon, causando, para tal, danos graves na estrutura

do edifício, de ter sujeitado estas peças aos riscos do seu transporte para

Inglaterra (afundamento, roubo, danos, perda, destruição) e às vicissitudes da

sua instalação em diversos espaços antes da sua aquisição pelo British Museum,

lorde Elgin só por meios duvidosos (como suborno e tráfico de influências) terá

obtido uma autorização pouco clara para estes actos.

Na versão mais caridosa da história do coleccionador e da colecção, no

entanto, quando, em 1798, lorde Elgin foi nomeado embaixador britânico no

império otomano, o arquitecto Thomas Harrison (1744-1829)25 sugeriu-lhe que

aproveitasse a oportunidade para estudar e documentar a arquitectura e a

escultura grega através de desenhos e moldes de gesso, de modo a melhorar o

conhecimento desta em Inglaterra. Lorde Elgin encarou este projecto como

contributo filantrópico para o desenvolvimento do gosto e da arte na Grã-

                                                            24  Três  livros  essenciais  para  compreender  a  História  do  Parténon  são:  St.  Clair, William. 1967. Lord Elgin and  the Marbles. Londres: Oxford University Press  ; Beard, Mary. 2010. The Parthenon. Londres: Profile Books; e Hitchens, Christopher. 2008. The Parthenon Marbles: The Case for Reunification. Londres e Nova Iorque: Verso.  25  Muito  interessado  na  arquitectura  clássica,  é  considerado  um  dos  grandes responsáveis pela afirmação da Greek Revival na arquitectura inglesa. 

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Bretanha. Os impulsos filantrópicos de Elgin ampliaram-se quando a equipa

que trabalhava na Acrópole o informou de que o trabalho era perturbado por

turistas e habitantes locais que não hesitavam em retirar fragmentos dos

edifícios. Elgin concluiu que era importante não só documentar mas também

preservar partes importantes do edifício.

Neste ponto, no entanto, o coleccionador fez algumas opções

contestáveis. No seu entendimento, as peças só poderiam ser preservadas se

fossem protegidas dos gestos selvagens de remoção a que estavam expostas

naquele sítio. Visto que nem os Gregos nem as autoridades turcas mostravam

compreensão da gravidade do problema, Elgin pensou que uma civilização

supostamente mais avançada como a inglesa compreenderia mais facilmente a

necessidade de conservar aquelas peças. Assim, obteve uma autorização que,

não sendo totalmente clara, permitiu à sua equipa remover fragmentos do

Parténon sem ser incomodada.

À semelhança de outros exploradores e coleccionadores que vendiam aos

museus britânicos os objectos que reuniam nas suas viagens por vezes

realizadas em missão oficial ou política, Elgin planeava oferecer esta colecção ao

British Museum. Esperando ser reembolsado, não se preocupou com as

despesas que, devido aos diversos infortúnios (desde a prisão em França ao

divórcio, passando pela contestação da autenticidade e do valor das peças por

Richard Payne Knight e pelos ataques pessoais de Byron) que perturbaram a

transferência pacífica e rápida da colecção para o British Museum, acabariam

por o colocar numa situação económica próxima da ruína, sem perspectivas de

carreira, obrigado a transferir a colecção de um lugar para o outro, à mercê da

disponibilidade de espaços e da boa-vontade de conhecidos. O dinheiro que

acabou por receber no fim do prolongado processo de venda ao British Museum

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ficou muito aquém dos fundos investidos pelo próprio coleccionador neste

projecto.

Nas versões menos caridosas da história, os defensores da restituição das

peças ao seu contexto de partida tentam esmiuçar as intenções mais obscuras de

Elgin. Investigando a sua correspondência pessoal, alegam que, a dada altura,

em duas linhas de uma carta, Elgin teria admitido a hipótese de usar as peças

para decorar a sua residência privada26. De acordo com esta perspectiva, tendo

usado a sua posição oficial com objectivos egoístas e gratuitos, nem pelas suas

intenções supostamente altruístas poderia o coleccionador de algum modo ser

redimido.

Para os defensores da retenção dos Mármores no British Museum

tornou-se importante desvanecer o mais possível a ligação entre coleccionador e

colecção, como se actos e intenções de legitimidade discutível pudessem ficar

com o coleccionador, mantendo o museu só as peças da colecção, desligadas das

vertentes mais problemáticas da sua História. Visitando os Mármores do

Parténon no British Museum27, só a custo se encontra alguma referência a lorde

Elgin. O coleccionador é referido numa salinha pequena e escura, onde se conta

de modo breve o percurso das peças desde Atenas até Londres, mas que

facilmente passa despercebida a quem não estiver familiarizado com esta

controvérsia. É enorme o contraste entre esta sala e a galeria Duveen, onde a

luz e o espaço mostram em toda a sua glória as peças principais da colecção de

Elgin – como se não fosse preciso qualquer referência ao mundo exterior para

perceber a beleza e o valor destas obras de arte.

                                                            26 Ver Hitchens 2008, 31‐32.  27 Em Março de 2013. 

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Na galeria Duveen do British Museum, não são acidentais nem o

obscurecimento da história do coleccionador e da colecção, nem a sugestão de

auto-suficiência destas peças. Além de o British Museum não querer associar-se

aos episódios mais dúbios da história da remoção, do transporte e da aquisição

das peças do Parténon, visto que as autoridades gregas insistem na restituição

das peças à Grécia, tendo construído um museu com um lugar reservado para

estas numa sala com uma janela panorâmica com vista para o Parténon, é

importante para o museu britânico que as peças possam valer por si, desligadas

do seu contexto original, produzindo um impacto artístico supostamente

independente do seu percurso no espaço e no tempo. A instalação dos

Mármores na galeria Duveen possibilita que os visitantes os vejam antes de

mais como obras de arte cuja beleza sobrevive não só ao tempo mas também às

diferenças culturais. Que estas peças sejam parte do Parténon é quase

secundário nesta galeria, parecendo apenas uma informação adicional.

À sugestão de autonomia das peças alia-se a integração conceptual destas

na colecção maior do museu. Autodescrevendo-se como instituição que expõe e

dá a conhecer o melhor da cultura universal, o British Museum propõe, por um

lado, que nenhuma nação pode reclamar como seus objectos importantes para

todas as culturas, e, por outro, que o próprio Parténon e a cultura grega saem a

ganhar com a integração das suas peças num contexto tão enriquecedor.

Enquanto o British Museum e os partidários da retenção dos Mármores

procuram expandir o contexto dos Mármores até os converterem em algo quase

abstracto (arte, espécimes da cultura universal), no lado oposto da discussão, os

argumentos mais importantes dos partidários da restituição das peças do

Parténon restringem o contexto das peças. Para estes, não faz sentido que os

Mármores estejam em algum outro lado que não a Grécia, mais especificamente

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junto ao Parténon, porque este é o seu contexto de origem. Vendo o Parténon

como parte essencial da História da Grécia e da identidade cultural grega, os

defensores da restituição alegam que nem a identidade dos Gregos, nem o

Parténon, nem os Mármores poderão alguma vez estar «completos» se não

forem associados materialmente no espaço grego.

Em toda a controvérsia em torno do Parténon e das suas peças, portanto,

um dos elementos mais interessantes é a facilidade com que se produz

descrições diferentes dos elementos em questão. Estes são descritos, à vez,

como arte, como objectos pedagógicos capazes de educar o gosto e a

competência artística, como parte da História e da cultura universais, como

parte de uma cultura clássica que em muito transcende, ou não, as fronteiras

espaciotemporais da Grécia, como parte essencial de uma identidade nacional e

como fragmentos indevidamente removidos de um edifício antigo.

As descrições variam de acordo com os contextos materiais e imateriais a

partir dos quais estas peças são encaradas, mas embora nem todas estas

descrições pareçam imediatamente compatíveis, todas são afectadas umas pelas

outras. O valor tanto dos Mármores do Parténon como do próprio edifício passa

a ser definido pela interacção de todas as descrições. É por serem tão

universalmente valorizadas que as peças são importantes do ponto de vista

nacional e vice-versa. É por terem valor artístico e histórico que têm valor

pedagógico e vice-versa. Pelo facto de as suas peças serem tão valorizadas e

discutidas é que o Parténon continua a destacar-se como símbolo de uma

civilização, de uma nação e de toda uma cultura; por terem feito parte do

Parténon é que estas peças recebem tanta atenção.

Devido à incompatibilidade dos interesses envolvidos, a que não são

alheias dimensões turísticas, económicas e políticas, as instituições que

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acolhem e protegem quer as peças do Parténon, quer o próprio edifício,

acentuam artificialmente a incompatibilidade entre os diversos entendimentos

possíveis do edifício e das suas peças, em vez de tentarem integrar as várias

possibilidades descritivas em questão. Entre as duas principais instituições

envolvidas na discussão, nem o British Museum, insistindo na autonomia

artística e cultural das peças, nem o Museu da Acrópole, enfatizando a sua

identidade especificamente nacional, produzem descrições completas do que

está em questão.

Em Dezembro de 2014, a notícia do empréstimo ao Hermitage de

Sampetersbursgo de uma peça do Parténon incluída na colecção do British

Museum – a estátua do deus Ilissos – reacendeu a discussão em torno desta

colecção. O centro da controvérsia foi outra vez a propriedade das peças: a

quem pertencem os Mármores do Parténon?

Apesar de o problema da propriedade destas peças ser pertinente, tomar

em consideração apenas esta questão é simplificar uma questão muito mais

complexa, como, por si só, a própria História das peças indica. Quando vemos

os responsáveis gregos afirmarem que as peças lhes pertencem e não as querem

emprestar28, lembramo-nos de discussões entre crianças. As peças do Parténon

pertencem exclusivamente ao seu país de origem? As fronteiras geográficas

serão a questão decisiva nesta discussão? Ao longo desta tese defendemos que a

questão da preservação (no sentido heideggeriano do termo, aliado às noções de

consideração, partilha e respeito pelos objectos) é mais importante do que as

questões da propriedade e da posse.

                                                            28  Ver  http://www.theguardian.com/artanddesign/2014/dec/05/parthenon‐marbles‐greece‐furious‐british‐museum‐loan‐russia‐elgin.  (Consultado  em  9  de  Janeiro  de 2015.) 

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42  

Neste capítulo argumenta-se que tanto os contextos maiores como os

mais específicos são importantes para a descrição quer do Parténon, quer dos

Mármores do Parténon actualmente expostos no British Museum. Trata-se de

defender que a identidade das coisas – e, mais especificamente, dos Mármores

do Parténon – depende da sua integração na vida e nas actividades das pessoas,

e não só de conceitos abstractos ou institucionais a que possam ser associadas.

Assim como a identidade das pessoas se define a partir dos contextos que estas

percorrem, em interacção com outras pessoas, seres vivos e coisas, também a

identidade das coisas deve ser descrita tomando em consideração os contextos

que estas vão ocupando e afectando. Tal como não é possível descrever lorde

Elgin sem referir esta colecção, também não é possível descrever os Mármores

do Parténon e o próprio Parténon sem mencionar Elgin, a sua colecção e a

presença desta no British Museum.

A reflexão sobre a cultura das colecções desencadeada pela controvérsia

em torno dos Mármores do Parténon articular-se-á com uma reflexão sobre a

relação entre as pessoas e as coisas, com o objectivo de se tentar perceber até

que ponto o privado, o específico, o individual e o vulnerável se definem em

conexão com o público, o geral, o colectivo e o estável. Argumentar-se-á

paralelamente que tomar em consideração as diversas possibilidades de

contextualização e de integração das coisas na vida das pessoas é o melhor

modo de descrever quer as coisas, quer as pessoas

1.2 Contexto museológico versus contexto original

Desde o início, a cultura das colecções desenvolveu-se em articulação

com a guerra, a conquista e a expansão do poder político e económico. Entre os

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43  

antepassados das colecções modernas, os tesouros reais, os tesouros das igrejas

e os gabinetes de curiosidades reuniam objectos obtidos em viagens

relacionadas com confrontos bélicos ou evangelizadores, aliados ao objectivo de

confiscar riqueza. A oposição entre contexto da colecção ou contexto

museológico, por um lado, e contexto de origem dos objectos, por outro, tem,

assim, uma longa história. A fundação dos primeiros museus públicos, tantas

vezes relacionada com apropriação de objectos de proprietários privados ou de

culturas dominadas pela guerra, pode ser encarada como episódio desta

História.

Ainda que actualmente se reconheça o papel das colecções e dos museus

na preservação do património cultural e as colecções e os museus já não sejam

vistos simplesmente como usurpadores de objectos e manipuladores

ideológicos, nos séculos XIX e XX com facilidade encontramos ensaios baseados

no contraste entre colecções ou museus, por um lado, e o contexto original dos

objectos, por outro, em que os primeiros são descritos com estranheza e algum

ressentimento.

Por descreverem o estranhamento inicial dos visitantes em relação aos

museus, ensaios como Considerações Morais sobre o Destino das Obras de

Arte29 (1815), de Quatremère de Quincy e «O Problema dos Museus»30 (1923),

de Paul Valéry são importantes porque apontam para as especificidades mais

distintivas da organização destes espaços relativamente ao contexto inicial dos

objectos e obras de arte. Na medida em que também tocam em pontos comuns à

                                                            29 Quatremère de Quincy, A. C. 1815. Considérations Morales  sur  la Destination des Ouvrages d’Art. Paris: L’Imprimerie de Crapelet.  30 Valéry, Paul. 1923. «Le Problème des Musées», Valéry, Paul. 1960. OEuvres, vol.  II, Pièces sur l’art. Paris: Gallimard, Bibl. de la Pléiade, 1290‐1293.  

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44  

discussão em torno da colecção de Elgin, designadamente no que diz respeito à

valorização do contexto original em detrimento de outros e à associação da

noção de desenraizamento aos objectos expostos nos museus, estes ensaios

ajudam-nos a reflectir sobre esta discussão. Além disso, a circunstância de estes

textos terem sido escritos com pouco mais de um século de intervalo comprova

a persistência da importância dos problemas referidos inicialmente por

Quatremère de Quincy e retomados posteriormente por Paul Valéry.

Os pontos de vista expressos no ensaio de Valéry, na medida em que

sublinham de modo breve alguns dos pontos de vista defendidos mais

aprofundadamente por Quatremère de Quincy cerca de um século antes a

propósito do mesmo tema, são úteis como introdução às questões que nos

ocupam. Em «O Problema dos Museus», Paul Valéry salienta tanto os

constrangimentos impostos aos visitantes dos museus como o desconforto

causado pela organização característica destes espaços. Valéry fala da

incompatibilidade entre, por um lado, os princípios de classificação,

conservação e utilidade pública do museu e, por outro, as noções de liberdade e

de prazer que mais naturalmente prefiriria associar à apreciação das obras de

arte. Para ele, estes princípios museológicos, por serem rígidos e artificiais, não

impõem a ordem transparente e pedagógica que visam. Em vez disso, instalam

uma «estranha desordem organizada» que transmite a sensação de

superabundância, desorientação e descontextualização.

Para Valéry, enquanto no contexto original as obras de arte se distinguem

como objectos «raros» e «únicos», no museu anulam-se umas às outras pelo

facto de serem associadas em conjuntos organizados sob a égide de princípios

abstractos. Valéry descreve a arquitectura como mãe da pintura e da escultura,

sugerindo que o contexto original da arte exposta no museu é o das casas para

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45  

as quais estas obras de arte teriam sido encomendadas. Neste contexto original,

pintura e escultura teriam «o seu lugar, a sua função, os seus constrangimentos

[naturais]», «o seu espaço, a sua iluminação bem definida, os seus assuntos, as

suas alianças». Fora deste contexto estariam «mortas». Por esse motivo, Valéry

descreve o museu como mausoléu da arte, «entre o templo e o salão, o cemitério

e a escola».

Quatremère de Quincy pode ser descrito como um dos fundadores deste

tipo de reflexão sobre o espaço museológico. Vivendo nos tempos marcados pela

Revolução Francesa, pela recolha de despojos de guerra posteriormente

instalados em contexto museológico e pela definição de novas noções de direitos

individuais e democracia, Quatremère de Quincy (1755-1849) aborda estas

questões em textos como Considerações Morais sobre o Destino das Obras de

Arte (1815), Cartas a Miranda31 (1796) ou Cartas a Canova32 (1818),

documentos hoje considerados essenciais para a reflexão sobre património

artístico e cultural.

No ensaio Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte,

Quatremère não só aborda de modo mais extenso e aprofundado as questões

que um século depois continuariam a suscitar o estranhamento de Valéry e de

outros, como reflecte sobre a importância do contexto das obras de arte,

abordando noções de propriedade, pertença, apropriação e identidade que são

centrais tanto na fundação dos museus de acesso público como para a

compreensão da cultura das colecções. O facto de em Cartas a Canova

                                                            31 Quatremère de Quincy, A. C. [1796] 1989. Lettres à Miranda sur le déplacement des monuments de l'art de l'Italie. Introdução e notas de Edouard Pommier. Paris:  Macula.  32 Quatremère de Quincy, A. C. 1818. Lettres écrites de Londres à Rome, et adressées à M. Canova sur les Marbres d'Elgin, ou les sculptures du temple de Minerve à Athènes. Roma: S. I. 

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46  

Quatremère reformular alguns dos pontos de vista que defendera anteriormente

reforça e prolonga a amplitude desta reflexão.

Atento às questões mais importantes relacionadas com estes assuntos,

Quatremère não passou ao lado da discussão em torno dos Mármores de Elgin.

A sua atenção a esta colecção faz notar que a discussão em seu torno toca pontos

fundamentais no que diz respeito não só ao contexto museológico mas também

à cultura das colecções. Tanto no século XIX como no século XXI, reflectir sobre

a colecção de Elgin é importante para uma reflexão mais geral sobre as relações

entre colecção, museu e contexto, por um lado, e as relações entre as pessoas e

as coisas, por outro.

As contradições que alguns apontam entre as posições defendidas por

Quatremère nos textos referidos sinalizam a dificuldade destas questões.

Enquanto em Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte e

Cartas a Miranda Quatremère defende o valor do contexto original das obras

de arte por oposição ao espaço supostamente descontextualizado dos museus,

em Cartas a Canova, um conjunto de cartas que o ensaísta endereçou ao

escultor italiano Antonio Canova (1757-1822) a propósito das suas visitas aos

Mármores de Elgin no British Museum, Quatremère mostra-se sensível às

vantagens do espaço museológico para a apreciação das obras de arte,

reconhecendo que este cria possibilidades de observação e de compreensão

inexistentes no contexto original destas peças. Estas duas posições, no entanto,

não são necessariamente contraditórias.

Ainda que as observações de Valéry em «O Problema dos Museus»

relativamente à importância do contexto original das obras de arte pareçam

próximas das de Quatremère – que, em Considerações Morais sobre o Destino

das Obras de Arte, defende que, permanecendo em museus e colecções, as

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47  

peças se vêem desprovidas de qualquer função útil, pelo que, desligadas da vida

real, só podem suscitar apreciações críticas estéreis33 –, a reflexão mais

aprofundada de Quatremère sobre o papel do contexto na recepção das obras de

arte torna-o mais sensível às possibilidades do contexto museológico.

Noutros momentos, Quatremère demonstra reconhecer a importância

dos conceitos de «colecção» e «museu» no conhecimento, avaliação e criação da

arte. Em Cartas a Miranda, o volume de correspondência que dirigiu ao general

Francisco de Miranda, o ensaísta explora estes conceitos tanto através da

descrição de Roma como arquétipo dos museus e das colecções, como

descrevendo a importância das actividades em torno de uma colecção.

Um tanto ironicamente, a descrição que Quatremère faz de Roma

(«Roma em si própria já é, para o verdadeiro curioso, um mundo inteiro a

percorrer, uma espécie de mappa mundi em relevo em que é possível encontrar

representados de modo abreviado o Egipto e a Ásia, a Grécia, o Império

Romano e os mundos antigos e modernos; [...] ter visto Roma é ter feito várias

viagens numa só»34) poderia ser usada para publicitar museus como o Louvre

ou o British Museum, apesar de Quatremère estar a argumentar contra o

deslocamento de peças de Roma para este tipo de instituição. À semelhança de

Roma, estes museus integram objectos de todo o mundo, de períodos históricos

diferentes e de diversas culturas. Ver todos estes objectos no seu contexto de

                                                            33 «Obras que, deslocadas e retiradas das suas origens antigas, se convertem em meros assuntos  de  crítica,  em  simples  objectos  de  observação  para  o  espírito.  O  público perde de vista, no meio dessas colecções, as causas que  fizeram nascer as obras, as relações a que se submetiam, as afeições com que deveriam ser consideradas e essa multiplicidade  de  ideias  morais,  de  harmonias  intelectuais  que  lhes  davam  tantos meios diversos de agir sobre a nossa alma.» (Quatremère 1815, 50.)  34 Quatremère 1796, 86 (Cartas a Miranda, Carta VII.)  

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48  

origem implicaria realizar várias viagens – não só no espaço mas também no

tempo, visto que muitos destes contextos de origem poderão já nem sequer

existir. A comparação de Roma a um mappa mundi sugere, além disso, que

Quatremère valoriza um modo de visão panorâmico, característico do espaço

museológico, mas inacessível noutras circunstâncias.

Nestas cartas torna-se igualmente claro que, para Quatremère, o

conhecimento, a avaliação e a criação de arte são processos relacionais,

dependentes do estabelecimento de uma hierarquia de mérito baseada na

comparação informada de elementos de uma série. Neste sentido, para este

ensaísta, a correcta apreciação de uma obra de arte requer uma colecção35.

Os pontos de vista de Quatremère em Considerações Morais sobre o

Destino das Obras de Arte e Cartas a Canova, apesar de aparentemente

contraditórios, podem ser aproximados devido à abrangência da noção

quatremeriana de contexto. A defesa da importância do contexto (original) para

a identidade e apreciação das obras de arte que Quatremère realiza em

Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte é complementada, e

não contrariada, pela consciência das virtudes do contexto museológico para a

percepção de determinadas peças que Quatremère manifesta a propósito da

colecção de Elgin no British Museum.

Nos dois textos, o ensaísta reconhece ao contexto uma importância

decisiva na apreciação ou recepção das obras de arte. No ensaio Considerações

Morais sobre o Destino das Obras de Arte, defendendo que a apreciação das

                                                            35 Por que razões se dão as pessoas ao trabalho de completar estas grandes colecções [...]? Não  será  porque,  uma  vez  reunidos,  estes  objectos  se  esclarecem  e  explicam mutuamente? Não será porque o estudioso pode encontrar diversos  instrumentos de estudo e compreender os raios divergentes do tópico que estuda como se focados por uma lente, todos no mesmo lugar? (Quatremère, 1796, 26. Cartas a Miranda, Carta III.) 

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obras de arte depende do conjunto de causas, relações, emoções e impressões

que rodeiam o objecto, Quatremère vê a pertença ao contexto original como

essencial para a definição da identidade da obra. Contudo, o princípio de

atribuir mais importância a esta rede de conexões entre a obra de arte e o que a

rodeia do que a propriedades intrínsecas dos objectos36, se levado às suas

últimas consequências, torna necessário reconhecer que certos contextos podem

favorecer mais determinada peça do que outros, independentemente de serem o

seu contexto de origem ou não.

Em Cartas a Canova, Quatremère faz essa admissão. De acordo com o

ensaísta, as peças do Parténon da colecção de Elgin não seriam tão valorizadas

no seu contexto original. Nestas cartas, perante a instalação da colecção de Elgin

no British Museum37, Quatremère afirma que esta colecção, apesar de reunir

peças dispersas e de ser fragmentária quando considerada em relação ao edifício

de que fez parte, suscita uma admiração maior do que as suas peças poderiam

ter suscitado no próprio Parténon, visto que num edifício completo as peças

perdem um pouco da sua grandeza individual quando integradas no todo e isto

torna impossível apreciar devidamente os seus pormenores. Pelo contrário, no

                                                            36 «Frequentemente o  segredo destas  impressões é o mesmo que o do  seu destino, prendendo‐se o poder da obra de arte mais frequentemente do que se esperaria com o próprio lugar para o qual esta foi produzida.» (Quatremère 1815, 74.)  37  Quatremère  visitou  os Mármores  do  Parténon  em  1818,  quando  estes  estavam temporariamente  instalados  no  antigo  British Museum  na Montague  House.  Nesta altura  os  Mármores  partilhavam  o  espaço  com  outras  antiguidades  de  origem diferente,  como  a  cariátide  do  Erectéion.  Esta  apresentação  visava  criar  uma atmosfera pitoresca que inspirasse os artistas a desenhar. A apresentação actual data de 1962, ano em que  foi  inaugurada a galeria Duveen. Antes disto, os Mármores do Parténon foram expostos de várias maneiras, de acordo com os entendimentos da sua função no museu.  

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50  

museu e na colecção, salienta Quatremère, as suas dimensões reais podem ser

apreciadas pelos visitantes numa relação de maior proximidade38.

Na colecção de Elgin, o ensaísta destaca ainda a abrangência e, em

associação com esta, a importância da sua facilidade de acesso para o

pensamento europeu sobre arte. Por acreditar que a arte é indissociável da sua

visibilidade e da sua integração num conjunto de práticas públicas, e também

por considerar o contexto grego do século XIX de difícil acesso ao circuito

cultural e intelectual da época, Quatremère valoriza a presença da colecção de

Elgin no British Museum e é sensível ao impacto destes na reflexão e nas

práticas culturais europeias da época39.

Por ser constituída por um grande número de peças do mesmo período,

de autenticidade indiscutível, mas de diferentes géneros e de execução diversa,

esta colecção reúne, segundo Quatremère, um conjunto suficientemente

representativo para que neste se possam basear considerações críticas

susceptíveis de enriquecer de modo inédito a discussão europeia da arte através

da divulgação de conteúdos até então de difícil acesso devido à sua distância

geográfica. No British Museum, além de poderem ser observadas

individualmente mais de perto, as peças da colecção de Elgin passam a ser

incluídas num conjunto de práticas e reflexões culturais de que não fariam parte

                                                            38 «Assim, [...] desenrolam‐se perante nós cerca de 200 pés deste friso e podemos sem dúvida apreciá‐los melhor do que no Parténon, onde tinham má iluminação e estavam longe da vista.  [...]  [P]odemos abrangê‐los  inteiramente com o olhar, analisando um objecto de cada vez e avaliando melhor as suas especificidades.»   (Quatremère 1836, 32. Cartas a Canova, Carta I.)  39  «[A]  contemplação  destas  esculturas  suscita  ideias,  percepções  e  abordagens importantes tanto para a História como para a ciência e o ensino artístico. Não tenho dúvida de que depois de estas obras entrarem no circuito da produção crítica europeia se converterão numa fonte  inesgotável de teorias, discussões académicas e paralelos instrutivos. (Quatremère 1836, 75. Cartas a Canova, Carta IV.) 

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51  

se ainda estivessem integradas no Parténon. Para Quatremère, estas

circunstâncias são decisivas na medida em que, na sua perspectiva, a pertença à

esfera pública e social do objecto ou da obra de arte é essencial.

A abrangência da noção quatremeriana de contexto articula-se, assim,

com um conceito de património surpreendentemente amplo para a época. Na

perspectiva de Quatremère, o património não se reduz a um conjunto de

objectos ou de obras de arte, mas é constituído pela uma rede de relações,

afectos, crenças, acções, memórias e tradições em que estes se integram, como

nota Dominique Poulot40. Perante os Mármores do Parténon no British

Museum, Quatremère reconhece que nos museus, apesar de afastados do seu

contexto de origem, os objectos e as obras de arte não tardam a ser integrados

num conjunto de novas práticas, numa nova rede de associações afectivas ou

intelectuais e, mais cedo ou mais tarde, num novo conjunto de tradições e

memórias.

Apesar de escrever mais de um século antes de Valéry, Quatremère é

mais perspicaz relativamente às vantagens das práticas possibilitadas pelos

museus. Valéry reage aos princípios de organização dos museus, mas percebe

nestes apenas as desvantagens da superabundância, da classificação e da

ambição pedagógica. No espaço dos museus, Valéry encontra só

descontextualização e perda, devido à distância dos objectos em relação ao seu

contexto original. Em Cartas a Canova, pelo contrário, Quatremère de Quincy

revela a compreensão de que a descontextualização museológica é indissociável

                                                            40  Poulot,  Dominique.  «The  Cosmopolitanism  of  Masterpieces»,  Quatremère  de Quincy.  2012.  Letters  to Miranda  and  Canova  on  the Abduction  of Antiquities  from Rome  to  Athens.  Trad.  Chris Miller  e  David  Gilks.  Los  Angeles:  The  Getty  Research Institute.  

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do processo de recontextualização que as próprias peças desencadeiam no

espaço do museu.

Apesar de valorizar a importância do contexto e das práticas

desenvolvidas em torno deste, em Cartas a Canova Quatremère nota que as

peças do Parténon expostas no British Museum «abrem um espaço» (no sentido

heideggeriano do termo que adiante exploraremos) em relação ao qual o

observador se orienta e localiza, aí surgindo nas suas dimensões reais (ao

contrário do que se verificava no Parténon, em que se situavam num lugar

elevado e pouco iluminado no interior do edifício). No British Museum é

possível circular em torno delas41 e avaliar as suas relações e proporções42. A

circunstância de as peças do Parténon condicionarem deste modo o seu

contexto de recepção sugere que a sua identidade não depende só do contexto

em que se situam, seja este o Parténon ou o British Museum.

Interrogando-se, no ensaio «A Origem da Obra de Arte»43, sobre a

pertença das obras de arte («A que lugar pertence uma obra?»), Heidegger

                                                            41  «[C]reio  que  esta  colecção,  embora  truncada  e  incompleta,  suscita  um  assombro ainda  maior  do  que  aquele  suscitado  pela  visão  do  monumento  consumado  e completo. Num edifício terminado, cada escultura, vista no seu lugar, perde alguma da própria  grandeza;  considerada  em  conjunto  com  tudo  o  que  a  rodeia,  só  pode  ser examinada a partir de um lado e de um ponto de vista; quanto mais harmonioso e bem proporcionado é o conjunto, mais o olhar tem tendência para procurar uma visão geral e para integrar as partes no todo. A nossa consciência dos pormenores e, com esta, a nossa percepção da extensão e das dificuldades da obra, simplesmente desvanecem‐se nessas circunstâncias.» (Quatremère 1836, 49. Cartas a Canova, Carta III.)  42  «Aqui  [no  British Museum],  pelo  contrário,  [...]  podemos  aproximar  as mãos  dos objectos, estes surgem perante nós na sua dimensão real, podemos circular em torno deles, contar as peças e avaliar as interacções destas no que diz respeito às relações e medidas» (Quatremère 1836, 49‐50. Cartas a Canova, Carta III.)  43  Heidegger,  Martin.  2001.  «The  Origin  of  the  Work  of  Art»,  Poetry,  Language Thought.  Trad.  Albert  Hofstadter  Nova  Iorque:  Harper  Perennial.  (A  tradução  para 

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chega à conclusão de que as obras de arte pertencem apenas ao espaço que elas

próprias criam: «A obra pertence, como obra, unicamente ao âmbito que se abre

através dela própria. Pois o ser-obra da obra vigora e vigora somente em tal

abertura.»44

Neste ensaio Heidegger explora tópicos próximos dos de Quatremère

quer em Considerações Morais quer em Cartas a Canova. Em comum entre

Quatremère e Heidegger encontramos a preocupação com a possibilidade de

perda da identidade das obras de arte quando estas são tratadas como objectos

incapazes de afectar a percepção – do mercado, da crítica e da História da arte,

dos museus e das colecções, ou até de preservação. Os dois autores defendem

que ser uma obra de arte está intimamente relacionado com um conjunto de

causas, conexões, afectos, práticas e tradições.

Heidegger associa à obra de arte a capacidade de «abrir um mundo».

Esta noção é desenvolvida em dois passos importantes de «A Origem da Obra de

Arte». No primeiro, Heidegger reflecte sobre um templo grego. No segundo, a

reflexão centra-se num par de sapatos representado num quadro de Van

Gogh.

No ensaio «A Origem da Obra de Arte», Heidegger reflecte sobre os

«objectos mais próximos das pessoas». Heidegger refere três categorias – «obra

de arte», «equipamento» e «mera coisa» –, descrevendo-as, no entanto, através

das suas relações, em vez de destacar as suas distinções: «O equipamento, por

exemplo um par de sapatos, repousa, quando acabado, também em si como a

                                                                                                                                                                              

português dos passos deste ensaio citados baseou‐se nesta tradução inglesa, tomando em consideração as traduções brasileira e francesa  identificadas na bibliografia desta tese.)  44 Heidegger 2001, 40. 

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mera coisa, mas não tem, como o bloco de granito, uma origem própria. Por

outro lado, o equipamento mostra um parentesco com a obra de arte enquanto

produto do trabalho humano. Todavia, a obra de arte assemelha-se, devido à

sua presença auto-suficiente, à mera coisa em sua origem própria e auto-

suficiente. Ainda assim não incluímos as obras entre as meras coisas. No geral,

as coisas de uso à nossa volta são as mais próximas e propriamente coisas.

Assim, o equipamento é, em parte, coisa, porque determinado pela

coisibilidade, mas ao mesmo tempo mais do que isso; ao mesmo tempo é, em

parte, obra de arte e, contudo, menos do que isso, porque sem a auto-suficiência

da obra de arte. O equipamento tem uma posição intermediária peculiar entre a

coisa e a obra, supondo-se que uma tal ordenação enumerativa seja

permitida.»45

As conexões assinaladas no passo anterior entre as três categorias em

questão sugerem que Heidegger está mais interesssado na complexidade das

interacções dos objectos destas categorias do que em traçar entre estes

fronteiras potencialmente artificiais. O interesse dedicado à tela de Van Gogh,

uma obra de arte que representa um exemplo de equipamento (um par de

sapatos), parece apontar na mesma direcção que prefere as conexões às

distinções, dificultando o estabelecimento de diferenças nítidas entre estas três

categorias.

Parece suficientemente claro nos passos sobre a tela de Van Gogh que,

segundo Heidegger, a arte pode revelar a materialidade das coisas mais

próximas das pessoas na vida quotidiana, em vez de se distinguir desta

dimensão mais prática e material. Para Heidegger, as categorias «obra de arte»,

                                                            45 Heidegger 2001, 28.  

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55  

«equipamento e «mera coisa» estão interligadas não só porque é impossível

compreender e descrever uma sem referência às outras, mas também porque

partilham o mesmo espaço físico e conceptual, podendo uma das categorias

integrar e revelar as outras, como no caso das telas de Van Gogh que

representam sapatos de camponeses ou do próprio artista.

Tal reconhecimento chama a atenção para as suas conexões conceptuais e

físicas com a vida das pessoas. As zonas de sobreposição entre a arte e os outros

objectos (quer sejam «meras coisas» quer sejam «equipamento») são

suficientemente abrangentes para reconhecermos que talvez as conexões entre

estas categorias sejam mais significativas do que as suas distinções.

Descrevendo um templo grego, Heidegger nota que este edifício organiza

todo o espaço e todos os elementos em seu redor: a tempestade no céu, os

brilhos e as tonalidades da rocha, as plantas e os animais, assim contribuindo

para a forma distintiva destes46. Segundo Heidegger, o templo, através da sua

presença naquele espaço, transmite às coisas definição e aos homens uma

perspectiva sobre si mesmos: «O templo, no seu estar aí, dá às coisas a sua vista

e aos homens a visão de si mesmos.»47

Neste passo sobre o templo, notando que o ser-obra da arte se baseia

numa dimensão material expressa numa organização espacial e conceptual em

que a arte se define como centro da vida humana partilhada, Heidegger

                                                            46  «Estando  ali,  a  obra  arquitectónica  repousa  sobre  o  fundamento  rochoso.  [...] Estando  ali,  a  obra  arquitectónica  resiste  à  tempestade  que  se  abate  furiosamente sobre ela e mostra deste modo a própria  tempestade na  sua  força.  [...] O erguer‐se seguro do templo torna visível o invisível espaço do ar. [...] A árvore e a relva, a águia e o touro, a serpente e o grilo aparecem no realce da sua figura e apresentam‐se assim no que elas são.» (Heidegger 2001, 41‐42.)  47 Heidegger 2001, 42.  

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56  

aproxima-se de Quatremère. Tanto na perspectiva de Quatremère como na

perspectiva de Heidegger, o espaço organizado pelas obras de arte é não só

material mas também conceptual e cultural. No entender de Quatremère, aliás,

idealmente as pessoas e a cultura humana definir-se-iam em correlação com as

artes, como se verificava na Grécia Antiga48.

Ainda em «A Origem da Obra de Arte», o passo famoso em que

Heidegger descreve a representação de Van Gogh dos sapatos de uma

camponesa49 clarifica a noção de «abertura de um espaço»: «Da abertura escura

do interior gasto dos sapatos a fadiga dos passos da trabalhadora olha

firmemente. No peso denso e firme dos sapatos acumula-se a tenacidade do

caminhar lento através dos sulcos longos e sempre uniformes do campo, sobre o

                                                            48 «Quando consideramos as artes na prática habitual que delas se faz em cada nação, a palavra  ‘necessário’ expressa essa  ligação natural que estas por vezes  têm com as necessidades básicas das pessoas na sociedade»; «todas a instituições sociais, políticas e religiosas se fundavam em associação com as Artes de imitação, as quais integravam todas as grandes acções  imortalizadas, todas as belas afeições consagradas, todos os sentimentos personificados por sinais públicos» (Quatremère 1815, 1‐2.)  49 De assinalar que Heidegger não identificou com clareza a obra  de Van Gogh a que se refere. Adoptando o ponto de vista do historiador de arte, Meyer Schapiro, depois de tentar identificar a tela em questão através de correspondência com o próprio filósofo, observa  que,  ao  contrário  do  que  é  sugerido  no  ensaio,    a  tela  supostamente  em questão  não  representa  os  sapatos  de  uma  camponesa mas  os  sapatos  do  próprio artista.  De  acordo  com  Schapiro,  esta  rectificação  invalidaria  toda  a  reflexão  de Heidegger  nestes  passos  do  ensaio.  Contudo,  a  informação  fornecida  por  Schapiro sobre a génese da tela, ainda que possivelmente valiosa do ponto de vista da História da arte, não afecta a a validade do pensamento de Heidegger sobre estes assuntos. O objectivo principal de Heidegger é  reflectir sobre as conexões entre os objectos e as acções humanas conforme reveladas pela arte. Para abordar este tema, qualquer tela capaz  de  evocar  as  relações  entre  um  objecto  e  as  actividades  do  seu  proprietário funcionaria. Além  disso,  é  possível  argumentar  que  nesta  tela Van Gogh  explora  as afinidades  entre  o  trabalho  do  artista  no  estúdio  e  o  esforço  de  um  camponês  no campo, pelo que a associação heideggeriana às actividades do segundo não pode ser considerada despropositada, devendo antes ser vista como  intencionada pelo próprio artista.  (Schapiro,  Meyer.  1994.  «The  Still‐Life  as  a  Personal  Object:  A  Note  on Heidegger  and  Van Gogh»,  Theory  and  Philosophy  of  Art:  Style,  Artist,  and  Society. Nova Iorque: George Braziller.)  

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57  

qual sopra contínuo um vento áspero. No couro está a humidade e a fartura do

solo. Sob as solas insinua-se a solidão do caminho do campo à medida que a

noite vai caindo. [...] Através deste equipamento perpassa a aflição sem queixa

pela certeza do pão, a alegria sem palavras da superação renovada da

necessidade, o tremor diante do anúncio do nascimento e o calafrio perante a

ameaça da morte.»50

Neste passo, todos os elementos materiais se relacionam com actividades,

sendo inseparáveis do espaço em que se realizam. Sentimentos ou conteúdos

mentais relacionam-se com acontecimentos físicos e com características

concretas: tanto a «tenacidade» e a «solidão» como a «humidade do solo» estão

presentes no peso e nas marcas dos sapatos e na lentidão dos passos da

camponesa pelo campo. Não há uma fronteira clara entre elementos

conceptuais e materiais. Os conceitos estão implicados nos objectos e nos

acontecimentos do mundo. A identidade das pessoas e das coisas é indissociável

das actividades em que participam.

A atenção às vertentes materiais e conceptuais das dimensões espaciais

da existência humana, aliada à rejeição da oposição sujeito/objecto, sugere uma

aproximação51 entre Heidegger e Donald Davidson, um filósofo que reflectiu

sobre as conexões entre os conceitos e o espaço objectivo.

No ensaio «Três Tipos de Conhecimento»52, Davidson defende que a

subjectividade se forma no contexto da objectividade e da intersubjectividade:

                                                            50 Heidegger 2001, 33.   51 Esta  ligação é proposta e explorada em Malpas, Jeff. 2004. Place and Experience: A Philosophical Topography. Cambridge: Cambridge University Press, 138‐155.  52 Davidson, Donald. 1991. «Three Varieties of Knowledge» in A. Phillips Griffiths (ed.). A. J. Ayer Memorial Essays Cambridge: Cambridge University Press, 153‐166. 

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«só quando um observador correlaciona conscientemente as respostas de outra

criatura com objetos e eventos do mundo do observador há alguma base para

dizer que a criatura está a responder a esses objectos e acontecimentos, e não a

quaisquer objectos ou acontecimentos»53.

Segundo Davidson, a compreensão humana desenvolve-se através do

diálogo e do relacionamento das pessoas com as outras pessoas, seres e coisas

no mundo. O acesso ao mundo, às outras pessoas e a nós mesmos é constituído

através desta interacção, baseando-se, portanto, numa dimensão intersubjectiva

e pública, dependente da partilha de um espaço material e conceptual.

O pensamento humano, de acordo com este filósofo, depende de uma

triangulação entre as reacções de duas pessoas a determinado conjunto de

estímulos sensoriais. Esta relação triangular permite às pessoas relacionar de

modo fiável as suas reacções com os estímulos do mundo: «Uma comunidade de

mentes é a base do conhecimento; esta fornece a medida de todas as coisas.»54

Para que esta «comunidade de mentes» ou «comunidade de pensamento» seja

possível, é necessário que os envolvidos reconheçam que ocupam posições num

universo partilhado: «Os pensamentos que formamos e acolhemos localizam-se

conceptualmente no mundo em que habitamos, e sabemos que habitamos, com

os outros. Mesmo os nossos pensamentos sobre os nossos próprios estados

mentais ocupam o mesmo espaço conceptual e localizam-se no mesmo mapa

público.»55

                                                            53 Davidson 1991, 159.  54 Davidson 1991, 164.  55 Davidson 1991, 165.  

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59  

Davidson relaciona assim o autoconhecimento com o conhecimento dos

outros e do universo material. De acordo com esta perspectiva, a subjectividade

articula-se com uma presença activa e empenhada num determinado espaço e

inclui interacções com objectos e pessoas particulares. Só percebemos quem nós

somos e os outros são localizando-nos neste espaço intersubjectivo. Esta

localização combina-se com a percepção de que estamos em relação (física e

conceptual, uma vez que estas duas dimensões são inseparáveis – percebemos a

dimensão física conceptualmente e a dimensão conceptual implica a referência a

coordenadas físicas) com outras pessoas e outros objectos no espaço que

partilhamos com estes.56

Davidson aborda – com outra linguagem – as questões exploradas por

Heidegger nos passos em que este reflecte sobre o significado do templo do

ensaio «A Origem da Obra de Arte». Também Heidegger se refere ao «contexto

relacional» possibilitado pelo templo e ao modo como este funciona como

centro em torno do qual se articulam certos conceitos da existência humana: «O

templo-obra junta primeiro e ao mesmo tempo reúne, em torno de si, a unidade

daqueles caminhos e referências, nos quais nascimento e morte, maldição e

bênção, vitória e ignomínia, perseverança e queda, adquirem para o ser

humano a configuração do seu destino. A amplitude reinante deste contexto

relacional é o mundo deste povo histórico.»57

                                                            56 Estas noções serão aprofundadas ao longo da tese.   57 Heidegger 2001, 41.  

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60  

Para Davidson, todos os objectos, incluindo a arte58, se integram na

vertente material e conceptual da vida das pessoas. A descrição que este filósofo

propõe das relações entre as pessoas e as coisas complementa as reflexões de

Quatremère e de Heidegger sobre a relação entre as obras de arte e as pessoas. A

abrangência das noções de arte propostas por ambos implica a integração da

arte na relação mais geral entre pessoas e coisas, tal como descrita por

Davidson. Tanto para Quatremère como para Heidegger, na arte está sempre

em questão um espaço específico que inclui pessoas e outras entidades ou

coisas. Não há arte sem esta relação entre coisas e pessoas concretas num

espaço que reúne coisas e conceitos em determinação recíproca.

Conjugar os pontos de vista destes três autores sugere que as obras de

arte e as práticas que estas condicionam são um elemento importante de quem

as pessoas são.

Descrevendo a relação dinâmica entre subjectividade, intersubjectividade

e objectividade, Davidson destaca a importância da dimensão pública e

partilhada da vida das pessoas e sugere que a identidade das pessoas e das

coisas é interdependente. Se as pessoas vão definindo quem são ao mesmo

tempo que vão percebendo quem as outras pessoas e coisas são, não é possível

às pessoas definirem-se a não ser em relação com as pessoas e coisas com que

partilham o mesmo espaço material e conceptual. Neste sentido, as outras

pessoas e os outros objectos ou entidades são essenciais para a definição das

acções dos sujeitos, assim como as acções das pessoas vão afectando aquilo que

integram.

                                                            58  Davidson  descreve  as  obras  de  arte  como  objectos:  «Obras  de  arte,  escritos, artefactos de  todos os  tipos estão entre os objectos do mundo.»  (Davidson, Donald. 1995. «The Third Man», Critical Inquiry, 607‐615.)  

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61  

Segundo Quatremère e Heidegger, as coisas e as obras de arte não podem

ser tratadas como conceitos prévios à sua existência material. Estas incluem,

definem e são definidas dinamicamente pelas conexões e práticas que

condicionam no espaço que ocupam. Deste modo, a sua identidade deve ser

descrita a partir dos diversos acontecimentos, relações e acções particulares em

que participam ao longo da sua História e não pode ser captada

independentemente destas relações constitutivas concretas. Sem menção destas

relações e interacções, as obras de arte não são correctamente descritas.

De acordo com Quatremère, Heidegger e Davidson, as coisas têm

diferentes possibilidades de significação de acordo com a configuração do

espaço material e conceptual que ocupam, revelando tanto como são reveladas;

por conseguinte, não podem ser fixadas numa descrição definitiva e final.

Contextos diferentes, como museus e colecções, revelam e são revelados pelas

coisas de novos modos.

Visto que, tanto para Quatremère como para Heidegger, na arte está

sempre em questão um espaço específico que inclui pessoas e outras entidades

ou coisas, qualquer alteração do espaço implica uma transformação da própria

obra de arte, que passa a ter de ser descrita de acordo com as conexões e

práticas em que se integra no novo contexto. No exemplo dos Mármores do

Parténon não é suficiente descrever estas peças tomando em consideração

apenas o seu contexto original. Importa reflectir sobre o seu percurso e sobre a

sua instalação no British Museum, sobre o modo como este contexto as afecta e

é, por sua vez, afectado, assim como sobre as práticas que a sua presença neste

contexto possibilita.

Ainda em «A Origem da Obra de Arte», explorando o conceito de

preservação em conexão com esta noção de arte, Heidegger nota que a

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62  

preservação de uma obra de arte não depende necessariamente da permanência

desta no seu contexto original. Referindo o exemplo do templo de Pesto59,

Heidegger nota que, apesar de se manter no seu contexto original, este templo é

tratado como simples objecto de conservação e tradição60. Convertido numa

atracção turística, este templo não afecta de modo decisivo o espaço material e

conceptual que ocupa, por estar subordinado a imperativos alheios.

Sobre a conservação das obras de arte, Heidegger salienta que a maneira

adequada de preservar a obra é determinada apenas e exclusivamente por ela

própria; preservar é tomar em consideração e participar na verdade que ocorre

na própria obra de arte: «A realidade mais própria da obra só se chega a

produzir aí onde a obra é desvelada na verdade que acontece através dela

mesma.»61 Assim como não implica necessariamente a permanência da obra de

arte no contexto original, este conceito de preservação não é incompatível com a

presença de obras de arte em museus e colecções62, como Quatremère de

Quincy reconhece perante os Mármores do Parténon no British Museum.

                                                            59 Heidegger 2001, 39‐40.  60 «A perda e a destruição do mundo das obras são fenómenos irreversíveis. As obras deixam de ser aquelas que eram. Sem dúvida são elas próprias que aí vêm ao nosso encontro, mas elas próprias  já não são as que foram. Deste modo, situam‐se perante nós no âmbito da tradição e da conservação.» (Heidegger 2001, 40.)  61 Heidegger 2001, 66.  62  Apesar  de Heidegger,  num  passo  que  poderíamos  integrar  na  tradição  ensaística inaugurada  por Quatremère,  se  questionar  deste modo  a  propósito  de  colecções  e exposições: «Mas estão elas  [as obras nas  colecções e exposições] aqui em  si  como obras que elas próprias  são ou antes  como objectos do  comércio da arte? As obras tornam‐se  acessíveis  ao  prazer  artístico  individual  e  público.  Instituições  públicas assumem  a  guarda  e  a  conservação  das  obras.  Conhecedores  e  críticos  de  arte ocupam‐se delas. O comércio da arte cuida do mercado. A pesquisa da História da arte torna  as  obras  objecto  de  uma  ciência. Mas  as  próprias  obras  vêm  ainda  ao  nosso encontro  nestes  múltiplos  manejos?  [...]  As  esculturas  de  Egina  na  colecção  de 

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63  

«Abrir um espaço» é revelar as conexões possíveis entre elementos

objectivos e conceptuais de um determinado lugar e daqueles que intervêm

neste. A obra de arte pode funcionar como ponto central deste tipo de

«revelação» tanto no espaço museológico como numa colecção. O que distingue

o templo de Pesto que Heidegger descreve e os Mármores de Parténon, tal como

Quatremère os vê no British Museum, é que o primeiro, apesar de permanecer

no seu contexto original, já não é capaz de revelar novas relações entre as

pessoas e as coisas, enquanto os Mármores continuam a influenciar e inspirar

novas práticas artísticas e culturais, assim se afirmando como elementos

identitários dinâmicos tanto da Europa como do próprio museu que os expõe.

Restringir o significado e o valor de um objecto ao período histórico e às

condições materiais em que este foi criado ou posteriormente instalado pode

contribuir para a sua desvalorização, transmitindo a imagem de um objecto que

em tudo reproduz as características associadas aos seus tempos e espaços

específicos ou dos contextos em que foi colocado63. Isso é equivalente a reduzir

a obra de arte à informação histórica a que esta se associa64.

                                                                                                                                                                              

Munique, a Antígona de Sófocles na melhor edição crítica,  foram arrancadas do  seu próprio espaço essencial.» (Heidegger 2001, 39.)  63 «A obra de arte acaba por se tornar um mero instrumento de reprodução cultural.» (Maleuvre,  Didier.  1999.  Museum  Memories:  History,  Technology  Art  (Stanford: Stanford University  Press,  32.)  Segundo Maleuvre,  é  importante  repensar  a  cultura «sem o pathos das raízes, da pertença e da identidade» (Maleuvre 1999, 38).  64 Sobre este assunto ver também Wegener, Charles. 1992. The Discipline of Taste and Feeling. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 110‐114. Wegener observa que saber que os contemporâneos de determinada obra de arte lhe associavam certos significados não implica que nós ou que os observadores de outras épocas as vejam do mesmo modo:  «Percebemos,  talvez,  que  para  os  outros  há  aqui  certos  conteúdos, significados,  que,  para  eles,  estão  de  facto  integrados  na  percepção  e  no  que  é percepcionado,  mas  podemos  nós  efectuar  tal  integração?  [...]  Pode  ser  possível recuperar alguma sombra de vida, alguma réstia da noção de que alguém certa vez se comoveu e sentiu enorme emoção em  relação ao que agora está perante mim, mas 

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Contudo, as obras de arte não podem ser circunscritas nem ao seu

contexto espaciotemporal de origem nem a outros contextos que depois

ocupam, ainda que estes contextos possam ser considerados importantes e até

essenciais para os descrever. Um elemento importante da percepção das obras

de arte terá sempre de ser a sua presença material e as suas características

perceptíveis sensorialmente, como lembra Quatremère a propósito dos

Mámores do Parténon. A interacção com o objecto, aliada ou não a informação

histórica sobre este, terá sempre algum potencial de valor e significado.

Não estamos a defender que a informação histórica sobre os objectos é

irrelevante65. Na realidade, o objectivo principal de Quatremère em

Considerações Morais é a defesa da importância do contexto das obras de arte

e não exactamente a condenação dos museus e das colecções em si. Identificar o

contexto histórico da redacção de Considerações Morais ajuda-nos a perceber

que os verdadeiros adversários de Quatremère são aqueles que tentam elidir o

valor histórico da arte. Em Considerações Morais, Quatremére reagia à

complexidade política, ética e estética do seu tempo, relacionada não só com as

expropriações levadas a cabo no âmbito da Revolução Francesa, mas também

com a fundação do Louvre como instituição de acesso público. A dissolução do

contexto de origem das obras de arte, o esvaziamento dos objectos

relativamente à sua causalidade histórica nas colecções e nos museus, a

                                                                                                                                                                              

para  nós  há  outras  ocasiões,  outros  símbolos,  outras  associações  cuja  vitalidade partilhamos,  os  quais,  por  sua  vez,  para  outros  se  converterão  em  significados abstractos e sentimentos atenuados. [...] Deste ponto de vista, os nossos historiadores coscuvilheiros  não  são  só  irrelevantes  –  são  subversivos,  visto  que  prefeririam  que assumíssemos  o  empreendimento  implausível  e  contraproducente  de  nos transformarmos noutra pessoa.» (Wegener 1992, 112.)  65  Retomamos  este  tópico  tanto    no  segundo  capítulo  como  na  discussão  sobre  a relação entre souvenirs e objectos de colecção no terceiro capítulo. 

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65  

transformação das obras de arte em objectos de troca comercial – alvos

principais de Quatremère em Considerações Morais – relacionam-se

directamente com o que sucedeu depois da Revolução Francesa, com a

desintegração das propriedades do clero e da aristocracia, a sua apropriação

pelo Estado ou venda a coleccionadores muitas vezes estrangeiros.

Neste contexto, a apropriação e a exposição, alegadamente para benefício

da democracia, de obras de arte e de objectos fabricados sob protecção ou por

encomenda do clero e da aristocracia foi apresentada como tentativa para

«libertar» estes objectos do seu contexto original e da sua História. Como

lembra Jean-Louis Déotte66 citando passos de um discurso de François de

Neufchâteau, um dos responsáveis pela fundação do Louvre, a instalação destes

objectos e obras de arte no Louvre foi descrita como «libertação estética».

Apesar de estes objectos terem sido encomendados e concebidos para o

engrandecimento do clero e da aristocracia, a sua instalação num museu de

acesso público, de acordo com o espírito da Revolução Francesa, permitir-lhes-

ia assumir plenamente o seu valor estético, supostamente independente do

destino histórico que previamente tinham ocupado.

Inversamente, a defesa da origem histórica da obra de arte levada a cabo

por Quatremère afirma-se em oposição directa ao «branqueamento ideológico»

da História levado a cabo na época da fundação do Louvre, alegadamente

defendendo o seu valor artístico em detrimento do seu valor histórico. Por sua

vez, esta tese defende a articulação destas duas dimensões.

Em suma, as reflexões de Quatremère de Quincy, Heidegger e Davidson a

propósito das relações entre contexto material e conceptual e objectos ou obras

                                                            66 Déotte, Jean‐Louis. 1994. Oubliez! Les Ruines, l’Europe, le Musée. Paris: L’Harmattan.  

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66  

de arte têm implicações no que diz respeito tanto aos Mármores do Parténon

como relativamente ao papel das colecções e dos museus.

A possibilidade ou a circunstância de determinado objecto fazer parte de

uma colecção ou de um museu sugere que o valor deste não está relacionado

apenas com o seu contexto original. Por conseguinte, não parece correcto

circunscrever um objecto ao seu contexto material e temporal de origem quando

este transcende ou sobrevive a tal contexto ou, sendo deslocalizado deste, passa

a ser visitado por si próprio e gera outro tipo de conexões e práticas no novo

contexto.

Aliam-se a esta relativa autonomia do objecto diferentes possibilidades

de integração, apreciação e recontextualização deste. Além de organizarem o

espaço material e conceptual em seu redor, os objectos de colecção ou de museu

determinam o seu próprio tempo na medida em que sobrevivem à época em que

são criados, podendo ser apreciados e integrados na vida das pessoas em épocas

e espaços diferentes67.

Transferir esta reflexão para a discussão em torno dos Mármores do

Parténon expostos no British Museum parece prejudicar a posição dos

defensores da restituição das peças. Ainda que a ideia de que o British Museum

deve ser encarado como montra da cultura universal seja discutível de várias

perspectivas, parece pouco sensato defender que um museu nas cercanias do

Parténon é o único contexto adequado para estas peças, quando no British

Museum estas geram e são integradas em novas práticas, memórias e tradições.

A defesa da restituição das peças é, além disso, enfraquecida por duas

circunstâncias importantes: a deslocalização de peças do Parténon para o

                                                            67 «O anacronismo é a essência da historicidade do objecto histórico.» (Maleuvre 1999, 60.) 

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Museu da Acrópole no caso de estas serem devolvidas, por um lado, e, por

outro, todas as conversões e reconversões que o Parténon foi sofrendo desde

que foi construído.

Sucede que os próprios Gregos consideraram imprescindível remover

peças do Parténon para as preservar do desgaste causado pela poluição. Estas

peças estão expostas no Museu da Acrópole, uma instituição dedicada à

História da Grécia e da cultura grega, tendo sido substituídas por cópias no

edifício original. Se o British Museum devolvesse a colecção de Elgin, as peças

não seriam reinseridas no Parténon; seriam integradas no Museu da Acrópole.

É verdade que a construção deste museu tomou em consideração a sua relação

com o Parténon, tendo para as peças do Parténon sido reservada uma galeria

com a mesma orientação e dimensões do Parténon e contacto visual com o

edifício através de uma janela panorâmica. No entanto, é inegável que as

relações estabelecidas no contexto original foram perturbadas tanto pela

deslocalização das peças como pela própria História.

Tendo sido originalmente concebido como templo, o Parténon foi depois

usado como igreja, mesquita, depósito de armas, fonte de material de

construção e alvo de coleccionadores de todos os tipos. Entre 500-1450 d. C., o

Parténon funcionou como igreja cristã, com adaptações e acrescentos ao edifício

original. No século XV foi convertido em mesquita. Depois de uma explosão em

1687, passou a ser mais ruína do que edifício. Nesta fase, foi objecto de atenção

não só de atenienses em busca de materiais de construção, mas também de

turistas interessados em lembranças da sua visita à Acrópole ou em peças para

as suas colecções. Só em 1838, já depois de Elgin e da Guerra da Independência

na Grécia (entre 1821 e 1822), foram manifestadas preocupações relacionadas

com a conservação do templo. Sob supervisão alemã, o local foi objecto de

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limpeza e escavações com o objectivo de lhe devolver o estatuto original. Este

projecto, no entanto, destruiu muitos vestígios da História do edifício.

O carácter sólido da estrutura do Parténon contribuiu para a resistência

de uma estrutura reconhecível do edifício, mas nada pôde contra as peripécias

da História, nem foi capaz, por si só, de condicionar decisivamente os usos ou as

funções que diferentes culturas lhe atribuíram. Actualmente, o edifício funciona

como ponto de atracção turística e não como templo. Não é possível fixar a rede

de usos e crenças associadas à construção dos edifícios, como Heidegger nota a

propósito do templo de Pesto.

Tendo em conta o percurso dos Mármores e a História do Parténon,

apesar de a associação das peças do Parténon à cultura grega e ao conceito

original do edifício de que fizeram parte ser indiscutível, esta associação não é

suficiente para descrever e compreender o valor destas peças. Visto que os

Mármores do Parténon já foram integrados em contextos distintos do seu

contexto de origem, é incompleta qualquer descrição dos Mármores dos

Parténon que os caracterize apenas como peças de um templo grego.

Admitir que essa informação histórica é importante na biografia destas

peças não implica defender a sua restituição. Tal restituição pode, pelo

contrário, ser vista como sabotagem da História, se considerarmos que a

biografia destas peças há muito as afastou irreversivelmente da sua origem.

Como observa Walter Benjamin68, para um coleccionador são

importantes não só o contexto de origem do objecto (as suas funções, as razões

                                                            68 Nos  coleccionadores,  Benjamin  destaca  a  consciência  histórica  caracterizada  pelo interesse que estes dedicam ao «destino» dos objectos. Por «destino» dos objectos, Benjamin  entende  a  sua  «presença  no  espaço  e  no  tempo»,  à  qual  se  associam inseparavelmente  não  só  a  sua  condição  física  mas  também  os  proprietários  que conheceram e os usos que estes lhe deram: «Basta pensarmos na importância que um 

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69  

pelas quais foi concebido e criado), mas também outros contextos em que este

tenha sido incluído e outras funções que tenha desempenhado, designadamente

outras colecções e proprietários a que tenha pertencido. Aos coleccionadores

interessa toda a História – e também toda a história – do objecto, não só a sua

origem nem apenas as suas funções originais.

Porque toma em consideração não só a função original do objecto mas

também todas as suas possibilidades de contextualização, a perspectiva do

coleccionador emerge como modo de visão adequado para analisar os objectos e

as relações entre pessoas e objectos. Por sua vez, as relações entre pessoas e

objectos que as colecções ilustram ajudam a descrever o processo de interacção

entre as componentes materiais e imateriais, públicas e privadas, colectivas e

individuais da vida das pessoas.

A perspectiva de Walter Benjamin pode ser aproximada das de

Quatremère de Quincy, Heidegger e Davidson, segundo os quais a identidade

das coisas inclui e é definida dinamicamente pelas conexões e práticas que os

objectos condicionam no espaço material e conceptual que ocupam. Esta

identidade só pode ser descrita tomando em consideração os acontecimentos

particulares da sua História, não podendo ser articulada independentemente

das suas relações com os diferentes tempos, espaços e práticas de que as coisas

fizeram parte. Descrever correctamente uma coisa implica referir pessoas,

                                                                                                                                                                              

coleccionador em particular atribui não só ao objecto que possui mas também a todo o passado deste objecto, tanto à origem e às características objectivas da coisa, como aos pormenores da sua história externa ostensiva: proprietários anteriores, preço de compra,  valor  actual,  entre  outros.  Tudo  isto  –  os  dados  ‘objectivos’  e  os  outros  – confluem,  para  o  verdadeiro  coleccionador,  em  cada  um  dos  seus  pertences, constituindo toda uma enciclopédia mágica, uma ordem do mundo, cujo contorno é o destino  do  objecto.»  (Benjamin, Walter.  1999.  The  Arcades  Project.  Trad.  Howard Eiland e Kevin Mclaughlin. Cambridge, MA e  Londres, The Belknap Press of Harvard University Press.) 

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70  

acontecimentos, espaços e outras coisas com que o objecto se tenha relacionado

ao longo do tempo – e não só no seu contexto de origem.

Só quando se toma em consideração todas as interacções dos objectos

com pessoas concretas nos espaços e contextos que estes vão ocupando podem

os objectos ser correctamente descritos e valorizados. Pela sua integração na

vida das pessoas de tempos e espaços diferentes (desde a Grécia antiga à Grécia

contemporânea, desde britânicos, turistas, coleccionadores, historiadores e

artistas, até funcionários do museu), os Mármores do Parténon assumem uma

presença concreta e complexa que nenhuma das posições defendidas na

discussão em seu torno consegue, por si só, abranger. Para isso, é necessário

recorrer à consciência histórica do coleccionador, valorizando os objectos no

presente, mas com o seu passado e o seu futuro.

A propósito da dificuldade de definir claramente fronteiras entre

categorias de objectos, Philip Fisher69 reflecte sobre o percurso de um objecto

(uma espada) até adquirir o estatuto de obra de arte num museu. Neste

percurso torna-se clara a oscilação do estatuto ontológico das coisas.

Numa fase inicial da biografia da espada que Fisher descreve, este objecto

teria pertencido a um guerreiro que a usava na guerra como objecto utilitário.

Depois da morte do guerreiro, esta espada pode ter sido preservada como

objecto sagrado, usada em cerimónias religiosas, de iniciação, ou até para

supostamente curar doenças. Numa terceira fase, a espada seria integrada no

tesouro de uma família, à qual pode ter chegado entre outros despojos de

guerra. No momento seguinte, a espada terá chegado a um museu, onde foi

considerada um objecto digno de estudo e de observação, com potencial de                                                             69 Fisher, Philip. 1997. Making and Effacing Art: Modern American Art  in a Culture of Museums. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.   

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71  

informação sobre aspectos práticos e/ou conceptuais de mais de uma cultura.

Neste percurso, o estatuto ontológico da espada vai oscilando entre as categorias

de objecto utilitário, objecto sagrado, objecto valioso e objecto museológico70.

Segundo Fisher, a ontologia dos objectos depende não só das práticas em

que estes são apropriados mas também do conjunto maior de objectos em que

são integrados71: «Só graças a um grupo de pessoas, um conjunto de costumes

[...], e uma organização que o converte no membro de uma comunidade de

objectos associados porque cumprem funções semelhantes, só nestas

circunstâncias a espada se torna um objecto na sua cultura ou na cultura que

dela se apropriou […].»72

Fisher nota que em nenhuma das fases a identidade e os usos da espada

estão predeterminados. Estes dependem do modo como são apropriados por

aqueles que os usam: «Quando pensamos que um objecto detém um conjunto

de propriedades fixas, estamos a esquecer-nos de que só no contexto dos guiões

                                                            70 Fisher 1997, 3‐5.  71 Num passo do oitavo capítulo de Museums and the Shaping of Knowledge, Hooper Greenhill   defende um argumento semelhante: «Revela‐se um fluxo de objectos com significado: os manuscritos soltam‐se e são reencadernados, outra vez reunidos, mais uma vez traduzidos, tornando‐se novas formas de  inscrição; a escultura é transferida para  espaços  diferentes,  sendo‐lhe  acrescentados  ou  removidos  elementos;  as imagens  esculpidas  numa  coisa  são  reproduzidas  noutro  meio,  a  outra  escala, associadas a novos tópicos históricos e políticos; as jóias são derretidas, remodeladas, vendidas,  oferecidas,  de  acordo  com  as  necessidades  de  cada  tempo;  as  coisas  são postas de parte, deitadas ao lixo por serem consideradas irrelevantes, distribuídas por diferentes proprietários,  transportadas através de grandes distâncias por agentes de todos os tipos (missionários, marinheiros, viajantes, colonizadores, agentes culturais); as coisas são valorizadas, protegidas ou negligenciadas de acordo com a interacção dos factores  que  as  constituem  como  objectos.  A  identidade  dos  objectos  significativos permanece em aberto e em transformação constante à medida que os outros aspectos sociais se vão transformando em seu torno» (Hooper‐Greenhill, Eilean. 1992. Museums and the Shaping of Knowledge. Londres e Nova Iorque: Routledge, 196).  72 Fisher 1997, 4. 

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72  

sociais essas propriedades, e apenas essas, se tornam visíveis ou até reais. [...] O

reportório das práticas destaca certas características, neutralizando outras

características possíveis. O nosso uso constrói e descontrói o que o objecto é,

incluindo a questão de este ser, ou em que medida este é, uma obra de arte»73.

A reflexão de Fisher ajuda-nos a consolidar o que vimos sugerindo a

partir dos ensaios de Quatremère de Quincy, Heidegger e Davidson, chamando

a atenção para o modo como a oscilação ontológica das coisas faz parte da sua

existência no tempo. De acordo com Fisher, apesar de novas práticas não

eliminarem a memória das práticas anteriores de que o objecto fez parte, a

persistência material dos objectos e as suas potencialidades inesperadas

continuam a permitir novas práticas e diferentes reapropriações74.

Na mesma linha de pensamento, podemos concluir que as colecções e os

museus, reunindo objectos em contextos distintos da sua origem, evidenciam

uma das características mais interessantes da existência dos objectos no tempo:

a possibilidade de sobreviverem tanto fora do contexto de origem como

desligados das intenções do seu criador ou fabricante. Como Fisher sublinha,

isto é válido tanto em relação às obras de arte como para objectos produzidos

com fins mais utilitários.

A tradição que descreve os museus e as colecções como espaços de

estranhamento e de alienação em relação à «vida real» não toma em

consideração a implicação mútua entre as pessoas e as coisas nestes espaços.

Garantindo o acesso das pessoas às obras de arte e a outros objectos

                                                            73 Fisher 1997, 18‐19.   74 «A possibilidade de apropriações  imprevistas sugere que há sempre um excedente de factos por considerar mesmo nos objectos mais estreitamente   definidos.» (Fisher 1997, 95).  

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73  

considerados dignos de atenção, os museus colocam-nos na experiência

humana, num espaço em que as pessoas podem interagir conceptual e

materialmente com eles, assim fazendo sentido destes e de si próprios.

Os museus e as colecções, por conseguinte, podem ser descritos como

espaços de questionamento e de abertura de possibilidades de conexão entre as

pessoas e as coisas. No sentido em que exploram as possibilidades múltiplas do

ser das coisas e das pessoas, os museus e as colecções são instrumentos de

investigação ontológica que nos confrontam com duas perguntas importante. O

que é este objecto? Como pode este objecto ser o que é?

Vamos tentar responder a estas e outras perguntas ao longo desta tese,

procurando ao mesmo tempo perceber como as pessoas são e como podem as

pessoas ser como são.

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74  

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75  

2. História, memória, colecções e museus

«Consideremos o que a ruína tem significado ou pode significar hoje: uma lembrança da realidade universal da decadência e do apodrecimento; um aviso do passado sobre o destino da nossa ou de qualquer outra civilização; um ideal de beleza sedutor precisamente pelas suas imperfeições e pelos seus fracassos; o símbolo de um certo estado de espírito melancólico ou errático; uma imagem do equilíbrio entre Natureza e cultura; um monumento em memória das baixas de uma guerra antiga ou recente; a própria imagem de arrogância económica ou do declínio industrial; um recreio desolado em cujos recintos fendidos e infestados de ervas daninhas temos tempo e espaço para imaginar um futuro. Esperamos muito das ruínas e pressentimos muito sentido no silêncio delas.»

Brian Dillon75

2.1 O histórico e o panorâmico

Nas considerações desencadeadas pelo caso dos Mármores do Parténon

destaca-se a noção de que a identidade das coisas e das pessoas não é dada à

partida, estando antes permanentemente em questão e em revelação. Como

sugere Fisher, mesmo os objectos aparentemente mais limitados guardam em si

um potencial de usos, significados e pormenores imprevistos à partida pelos

seus fabricantes ou criadores. Na medida em que criam novos contextos e

possibilitam novas práticas em que coisas e pessoas são reveladas de modos

diferentes, as colecções e os museus tornam claros tanto a indeterminação como

a negociação ou adaptação constante da identidade das coisas e das pessoas.

Reflectindo sobre as discrepâncias entre as condições de visionamento

das obras de arte no seu contexto espaciotemporal de origem e as mesmas

                                                            75 Dillon,  Brian.  2014.  Ruin  Lust:  Artists’  Fascination with  Ruins,  from  Turner  to  the Present Day. Londres: Tate Publishing, 5.   

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76  

condições no presente num dos artigos reunidos em Histoires de peintures76,

Daniel Arasse nota que os historiadores de arte e o público em geral beneficiam

actualmente de condições mais favoráveis para o estudo e a apreciação das

obras de arte. Entre estas condições incluem-se melhor iluminação, maior

proximidade física entre observador e obra de arte no contexto museológico, e

maior facilidade de observação e apreciação de pormenores em fotografias e

reproduções. Segundo Arasse, no entanto, na medida em que criam

possibilidades de observação totalmente distintas daquelas do contexto de

origem, estas vantagens instalam inevitavelmente o anacronismo na observação

da arte, permitindo ver elementos ou pormenores que nem o artista nem a

pessoa que encomendou e/ou adquiriu a obra de arte tinham imaginado que

pudessem ser vistos, nem o público do contexto de origem alguma vez teve

oportunidade de apreciar.

Trata-se de uma preocupação esperada num historiador de arte,

interessado em toda a informação objectiva sobre as obras de arte que analisa,

principalmente no que respeita à origem destas. Como o próprio Arasse

reconhece, porém, a verdade é que só é possível ver o que está – e sempre esteve

– na obra de arte, independentemente das intenções do artista e do proprietário

inicial relativamente à sua visibilidade77. Não é possível ver o que não está lá.

A existência de pormenores artísticos de difícil acesso78 no contexto de

origem chama a atenção para a criação (intencional ou não) de pormenores

                                                            76 «On y voit de moins en moins», Arasse, Daniel. 2004. Histoires de peintures. Paris: Gallimard, 257‐266.  77 «Sim, mas cuidado, essa outra coisa está lá.» (Arasse 2004, 260.)  78 Alguns casos: «Por exemplo, um quadro de altar não tinha público mas sim fiéis que só ao longe podiam vê‐lo, mal iluminado pela luz tremeluzente das velas. O importante 

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77  

«excedentários», como lhes chama Fisher79. É como se o artista tivesse

trabalhado não só para o presente mas também para a posteridade, reservando

para esta a percepção de certos pormenores – ainda que, como Arasse

sensatamente observa, ser pouco credível que tais artistas pudessem imaginar

que um dia estas obras viriam a ser espostas num museu ou seriam vistas em

condições totalmente diferentes daquelas para as quais foram criadas.

Considerada nestes moldes, a visão do artista parece próxima da

concepção heideggeriana da História. Enquanto a História mais convencional

investiga o papel específico de determinado acontecimento ou período numa

cadeia sequencial, Heidegger vê o «passado» e o «futuro» como estruturas

existenciais80 co-presentes e não como períodos numa sequência. À História

heideggeriana interessa o que do passado se vai manifestando no presente e no

futuro. Heidegger vê a História como um «nexo produtivo»81 que se move

através do passado, do presente e do futuro, sem qualquer prioridade do

passado. Visto que, para Heidegger, só tem História o que faz História, esta

temporaliza-se a partir do futuro.

                                                                                                                                                                              

era a função da imagem, que ela estivesse lá. Quando colocamos este quadro de altar nas  paredes  de  um museu,  com  iluminação  ‘eficiente’,  vemos  o  objecto  de  perto.» (Arasse  2004,  259);  «[v]ejo  bem  as  duas  pombas  na  Anunciação  de  Antonello  de Messina que foi pintada para um altar de uma igrejinha na Sicília [e agora pertence à Galeria  regional  da  Sicília  do  Palácio  Abatellis  ].  [...]  O  mesmo  é  verdade  para  a abertura  nas  vestes  da  Virgem  na  Anunciação  de  Filippo  Lippi  [pertencente  à National Gallery de Londres]. Lá está ela, a abertura, por muito estranha que pareça e ainda que não tenha sido feita para ser vista.» (Arasse 2004, 260.)  79 «[U]m excedente […] de factos por esquematizar» (Fisher 1997, 95)   80 Guignon, Charles. 2005. ‘The History of Being’, H. L. Dreyfus e M. A. Wrathall (ed.).  A Companion to Heidegger. Oxford: Blackwell, 392‐406.  81 Heidegger, Martin.  [1927]  2010.  Being  and  Time.  Trad.  Joan  Stambaugh.  Albany: State University of New York Press, 361. 

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78  

Não é contraditória com esta perspectiva a noção de que a identidade e a

História das coisas e das pessoas não podem ser circunscritas à intenção que

presidiu à sua origem, mas têm de tomar em consideração todos os episódios da

existência das coisas e das pessoas ao longo do tempo. A História do Parténon e

dos seus Mármores, a biografia da espada proposta por Philip Fisher e as

considerações de Arasse sobre descobertas inesperadas de pormenores em

certas obras de arte mostram como os mesmos objectos podem desempenhar

diferentes papéis ao longo do tempo de acordo com os contextos que vão

ocupando.

De certo modo, as considerações de Quatremère de Quincy contra o

afastamento da arte do seu contexto de origem derivam do reconhecimento da

inevitabilidade deste afastamento. Quatremère escreve sobre o irreversível.

Neste sentido, talvez Quatremère esteja mais próximo dos pontos de vista de

Proust do que à primeira vista poderia parecer. Como nota Adorno82 quando

confronta os pontos de vista sobre arte de Valéry em «O Problema dos Museus»

e de Proust na Recherche, enquanto Valéry lamenta a desagregação do contexto

de origem das obras de arte, Proust toma esta desintegração como dado

adquirido. De modo semelhante, Quatremère comenta factos consumados.

Para Proust, o «destino» das obras de arte não é refém da intenção que

presidiu à sua criação. De acordo com o autor da Recherche, a verdadeira

morada das obras de arte é a consciência e a memória das pessoas que as

percepcionam. Na Recherche, algumas personagens partem da arte para

                                                            82  Adorno,  Theodor.  1983.  «Valéry  Proust Museum»,  Prisms,  Trad.  S.  e  S. Weber. Cambridge: MIT Press.  

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79  

percepcionar o que as rodeia83. No caso de Swann, as fisionomias de algumas

personagens são por vezes vistas à luz de fisionomias de figuras representadas

em pinturas, ocasionalmente confundindo-se com estas.

Para Proust, o «destino» da arte não é limitado pela História, visto que

não é fixado pelo momento e pelo espaço concreto que as obras de arte

ocuparam na cadeia de acontecimentos relacionados com a sua criação. Por se

situarem na memória e na consciência humana, as obras de arte assumem um

destino que vai evoluindo a partir das interacções das pessoas com o que as

rodeia. Deste modo, não se limitam a ser o que foram na origem; continuam a

ter impacto de novos modos na vida de todos os dias.

Reflectindo sobre a relação de Proust com o tempo na Recherche, Walter

Benjamin84 notou que a singularidade da visão proustiana da memória reside na

associação desta ao esquecimento: Proust trabalha a noção de que a memória

depende mais do esquecimento do que à primeira vista poderia parecer85.

Benjamin compara o trabalho da memória proustiana ao de Penélope: ambos

incluem actividades tanto de construção como de desintegração. A memória

funciona através de uma actividade de construção que implica destruição,                                                             83 Para  informação sobre este tópico, ver:   Karpeles, Eric. 2008. Paintings  in Proust: A Visual Companion to In Search of Lost Time. Londres: Thames & Hudson.  84  Benjamin,  Walter.  [1969]  1988.  «The  Image  of  Proust»,  Benjamin,  Walter. Illuminations. Trad. Harry Zohn. Nova Iorque: Schocken Books, 201‐215.  85  «Sabemos  que,  na  sua  obra,  Proust  não  descreveu  a  vida  tal  como  esta  era realmente, mas sim uma vida tal como recordada por aquele que a viveu. E, contudo, mesmo este enunciado é  impreciso e demasiado grosseiro.  Isto porque para o autor que  recorda  não  é  a  sua  experiência mas  a  tecelagem  da memória,  actividade  de reminiscência própria de Penélope, que desempenha o papel principal. Ou talvez fosse preferível  descrevê‐la  como  actividade  de  esquecimento  de  Penélope?  Não  está  a reminiscência  involuntária,  a  mémoire  involontaire  de  Proust,  mais  próxima  do esquecimento do que  aquilo  a que habitualmente  chamamos memória?»  (Benjamin 1988, 202.)  

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80  

desintegração e esquecimento parcial. De acordo com Benjamin, neste processo

o mais importante é o trabalho de construção – de tecelagem – da memória, não

a experiência original.

Neste sentido, a actividade da memória é comparável à dos museus e das

colecções86. Assim como a memória implica um trabalho que equilibra

desintegração e integração, perdas e acrescentos, destruição e criação, também

museus e colecções integram objectos do passado em conexões e novos espaços

não necessariamente determinados pelo seu contexto de origem, embora

habitualmente tomem estes contextos em consideração no tipo de exposição

que propõem ou na informação que de vários modos fornecem aos visitantes.

Nos três casos – memória, colecções e museus – está em questão uma

componente de desintegração. Recolhendo objectos que sobreviveram à

dispersão do próprio contexto de origem e, portanto, vêm do passado para o

presente, museus e colecções convivem com pressões temporais semelhantes às

da memória. Também os museus e as colecções têm de lidar com a História e o

passado de modo integrativo e desintegrativo. Neste contextos, recorda-se e

preserva-se o que sobreviveu à sua própria História e à sua própria geografia.

Recorda-se o que não se perdeu e preserva-se o que é possível preservar. De

modo a assegurar esta preservação, é inevitável a integração dos objectos

sobreviventes em novos contextos. Objectos não integrados em museus e

colecções podem ter-se perdido para sempre. Nem sempre é possível recordar

integralmente o papel desempenhado pelos objectos no contexto de origem.

                                                            86 Jean‐Louis Déotte sugere que os museus são lugares de memória por serem lugares de  esquecimento:  «Não  é  surpreendente  que  W.  Benjamin  considere  a  memória involuntária um equivalente do esquecimento activo. O parentesco com os museus, na medida que estes  são  lugares de esquecimento activo, e portanto de  rememoração, será confirmado.» (Déotte, Jean‐Louis. 1993. Le Musée, l’origine de l’esthétique. Paris: L’Harmattan, 277.) 

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81  

Também a memória, à semelhança dos museus, recorre aos elementos

que restam de determinada experiência ou situação para a recordar

(necessariamente de modo imperfeito), formando uma imagem que não

corresponde exactamente ao passado, mas ao resultado da integração do

passado no presente.

Em Art as Experience87, o filósofo John Dewey, ainda hoje uma

referência nos serviços educativos dos museus americanos, descreve como

«percepção» (em contraste com «reconhecimento») esta presença do passado

no presente que podemos associar tanto à actividade da memória como à

actividade dos museus. De acordo com Dewey, quando há «percepção», o

passado é transportado para o presente de modo a expandir e aprofundar o

conteúdo do segundo88. Esta interacção de presente e passado implica alguma

reconstrução do passado89, residindo nesta relação o significado das coisas, da

arte ou da experiência.

Podemos assim dizer que a experiência de alguns visitantes de colecções

e museus é semelhante à de certas personagens de Proust: trata-se de partilhar

um espaço conceptual e/ou físico com a arte ou com determinados objectos,

sendo estes – bem ou mal – usados nas tentativas de compreensão do presente,

                                                            87 Dewey, John. [1934] 2005. Art as Experience. Nova Iorque: The Berkeley Publishing Group.  88 «O mero reconhecimento só ocorre quando não dedicamos atenção total ao objecto ou à pessoa reconhecida. Ver, percepcionar, são mais do que reconhecer. Não se trata de  identificar algo presente em termos de um passado desligado deste. O passado é transportado  para  o  presente  de modo  a  expandir  e  a  aprofundar  o  conteúdo  do presente.» (Dewey 2005, 24.)   89  «[T]oda  a  percepção  consciente  [...],  assim  como  integra  o  presente  no  passado, também  implica  alguma  reconstrução  do  passado. Quando  o  passado  e  o  presente encaixam um no outro sem atrito, quando só há recorrência, uniformidade completa, a experiência resultante é rotineira e mecânica; não se torna consciente na percepção.» (Dewey 2005, 283‐284.) 

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de outros objectos, de outras experiências ou de outras pessoas. Os visitantes

fazem um trabalho semelhante ao das personagens de Proust que usam a

memória para interpretar, procurando semelhanças, ecos, correspondências e

conexões. Na medida em que instalam o passado no presente das pessoas,

descrever a actividade dos museus e dos coleccionadores ajuda a esclarecer os

processos da memória e da construção de sentido e de inteligibilidade.

Estamos a tentar aproximar o tempo das colecções e dos museus do

tempo da memória e a afastá-lo do tempo descrito por concepções mais

tradicionais de História. Nesta relação entre memória e História90, enquanto a

segunda investiga o passado e o definitivo, a primeira, à semelhança do que se

verifica em relação à identidade das coisas e das pessoas, distingue-se por estar

continuamente em questão e em construção e desconstrução. Enquanto a

História se desenvolve a partir de métodos e técnicas que exigem aprendizagem

e se regem por normas de veracidade assentes em verificações sucessivas, a

memória relaciona-se com o que sobrevive e resiste à História muitas vezes de

modo imperfeito.

Neste capítulo vamos explorar a relação entre História, memória,

consciência humana e colecção através da reflexão sobre as actividades de um

coleccionador de ruínas, por um lado, e de um pintor de ruínas, por outro.

Como veremos adiante, a relação entre ruínas e objectos de museu ou colecção é

sugerida não só por Quatremére de Quincy em Considerações Morais, mas

também pela associação clara destes elementos por John Soane e Hubert

Robert, o coleccionador e o artista em questão nesta secção. A reflexão sobre o

estatuto ontológico das ruínas, em conexão com a análise da actividade de

                                                            90 Para uma abordagem mais aprofundada desta questão, ver Le Goff, Jacques. 1988. Histoire et mémoire. Paris: Gallimard. 

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Soane e de Hubert Robert, será o ponto de partida para investigar tanto o

estatuto dos objectos de colecção ou de museu como o modo como este estatuto

é afectado pelas relações que as pessoas vão estabelecendo com estes objectos ao

longo do tempo. Defender-se-á que esta relação é mediada por processos

semelhantes aos da memória. O investimento subjectivo e interpretativo da

memória ajudará a descrever a relação entre coleccionador e colecção.

Pelo facto de as colecções e os museus estarem mais relacionados com a

memória do que com a História na medida em que representam

declaradamente interpretações subjectivas, as colecções e os museus associam-

se a uma tentativa de transcendência do tempo e da mortalidade através da

resistência à História, pela integração desta na memória. Pelo facto de

representar uma subjectividade num espaço intersubjectivo, uma colecção pode

evocar o coleccionador. Estamos a trabalhar com duas acepções de memória

distintas, ainda que complementares: 1. memória como perspectiva temporal

individual ou subjectiva; 2. memória enquanto recordação de alguém. Se uma

colecção objectiva uma perspectiva individual e subjectiva (acepção um de

memória), este conjunto de objectos poderá ajudar a recordar o coleccionador

(poderá preservar a sua memória, na acepção dois).

A relação entre ruínas e objectos de colecção ou de museu é sugerida pelo

próprio Quatremère de Quincy. Devido à desintegração do contexto de origem

que a presença dos objectos num museu ou colecção indicia, Quatremère de

Quincy chamou «ruínas artificiais»91 a estes objectos. Na perspectiva de

                                                            91 «É portanto destruir este género de instrução quer subtrair os elementos ao público, quer  desintegrar  as  suas  partes,  como  se  tem  verificado  nos  últimos  25  anos,  quer recolher  esses  despojos  nos  depósitos  a  que  chamamos  Conservatórios./  Por  que estranho contra‐senso devemos nomear assim esses receptáculos de ruínas artificiais que  extraímos  à  acção  do  tempo  assim  as  entregando  ao  esquecimento!  Cessai, 

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84  

Quatremère, os objectos integrados em museus ou colecções podem ser

descritos como fragmentos do contexto de origem visto que, à semelhança das

ruínas, estes objectos estão incompletos porque o contexto de que faziam parte

foi destruído.

Ainda que Quatremère faça questão de distinguir entre «ruínas do

tempo» e «ruínas da barbárie» – enquanto as primeiras seriam autênticas e

dignas de respeito, as segundas seriam fabricadas e motivo de condenação –,

parece-me que esta distinção não é tão nítida como o ensaísta a faz parecer.

Para Quatremère, as segundas mereceriam condenação não só pelo facto de

terem sido causadas por mão humana, mas também por serem preservadas

artificialmente nos museus e assim deslocalizadas da História. De acordo com

esta perspectiva, as primeiras existiriam num espaço exterior à acção humana,

livres de qualquer contaminação relacionada com a sua preservação, como se

fosse possível a um edifício em ruínas manter-se suspenso nesse estado anterior

à desintegração sem qualquer intervenção humana.

A Quatremère parecem escapar algumas complexidades do estatuto de

todas as ruínas. À semelhança do que se verifica com os objectos em colecções e

museus, o estatuto ontológico das ruínas é ambíguo. As ruínas de um edifício já

não são exactamente o edifício de que faziam parte na sua origem mas outra

coisa diferente. Por um lado, retêm elementos do passado, elementos históricos

ou úteis para uma investigação histórica; por outro, resistem à História na

medida em que sobrevivem parcialmente aos efeitos do tempo. De qualquer

                                                                                                                                                                              

sofistas  ignorantes,  de  sentir  prazer  perante  estas  ruínas;  sim,  as  ruínas  do  tempo merecem  respeito,  as  da  barbárie  suscitam  horror.  As  ruínas  do  tempo,  esses monumentos da fragilidade humana, são uma lição para a humanidade, as outras são uma vergonha para esta.»  (Quatremère 1815, 56.)  

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85  

modo, ser ruína é um estado que exige preservação e, portanto, intervenção

humana «artificial», para usarmos o léxico de Quatremère. É praticamente

impossível vedar um espaço à intervenção humana. Todas as coisas estão em

relação.

Nas considerações sobre um castelo em ruínas que desenvolve no ensaio

«O Culto Moderno dos Monumentos»92 (1903), Aloïs Riegl expõe este ponto de

vista. Logo no primeiro parágrafo deste ensaio, a noção de monumento,

definido por Riegl como «uma obra criada por mão humana e edificada com o

objectivo claro de manter sempre presente e viva na consciência das gerações

futuras a recordação de uma acção ou de uma vida (ou de combinações de uma e

de outra»93, expressa claramente as diversas tensões temporais – entre

História e memória, tradição e criação, arquitectura histórica e arquitectura viva

–, em torno das quais o resto do ensaio girará. Entre o passado, o presente e o

futuro, cabe aos monumentos, de acordo com Riegl, a difícil tarefa de tornar

presentes determinados factos históricos considerados valiosos para a vida das

pessoas.

Neste ensaio, a descrição de Riegl da relação entre ruínas e História é

importante para nós na medida em que transfere o foco da atenção para a

perspectiva individual dos sujeitos, destacando as liberdades desta perspectiva

relativamente à cronologia e à História.

Riegl considera que as ruínas são objectos particularmente adequados

para a percepção dos efeitos da passagem do tempo. Na sua perspectiva, o

impacto das ruínas não se relaciona primariamente com a História, mas antes

                                                            92 Riegl, Aloïs.  [1903] 2013. Le culte modern des monuments: son essence et sa génèse. Trad. Daniel Wieczorek. Paris: Seuil.  93 Riegl 2013, 43. 

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com a capacidade humana de estabelecer relações entre o particular e o geral,

com a identificação de repetições e com os sentimentos e reflexões

desencadeados por estas percepções. Segundo Riegl, através da observação das

ruínas adquirimos a consciência do carácter repetitivo e cíclico do tempo, cuja

passagem revela as relações entre o singular e o geral, na medida em que afecta

todos os objectos, por muito distintos que estes sejam na sua origem94.

Riegl usa as ruínas para explicar o valor de antiguidade dos monumentos.

No ensaio mencionado, o autor propõe algumas distinções entre valores

históricos, valores artísticos e valores de antiguidade. Neste trinómio, os valores

históricos são considerados os mais objectivos. O valor histórico pode ser

avaliado objectivamente na medida em que o objecto ou o acontecimento

ocupam um lugar concreto, individual e insubstituível numa cadeia de

acontecimentos. O valor artístico, no entanto, é considerado mais relativo e

flutuante; variando ao longo do tempo (por exemplo, certos artistas são

desvalorizados ou recuperados em épocas diferentes), não é determinado

directamente pelo papel histórico do objecto (podemos, por exemplo, valorizar

uma obra de arte do Renascimento acima de obras de movimentos de ruptura,

ainda que estes movimentos tenham tido um impacto decisivo na História da

arte). Por último, o valor de antiguidade privilegia as impressões dos indivíduos

perante os objectos, não implicando necessariamente cultura histórica.

Enquanto a valorização da História se associa à reconstituição específica da

singularidade dos objectos e do seu papel no contexto de origem, o valor de

                                                            94 «[E]sta impressão difusa, suscitada no homem moderno pela representação do ciclo necessário  de  transformação  e  morte,  de  emergência  do  singular  no  geral  e  de regresso  progressivo  e  inelutável  do  singular  ao  geral.  Essa  impressão  [...]  convoca simplesmente a sensibilidade e as emoções.» (Riegl 2013, 54.)  

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antiguidade relaciona-se com as reacções das pessoas perante os objectos,

agindo sobre a sensibilidade individual95.

Segundo Riegl, assim, tanto o valor artístico como o valor de antiguidade

se relacionam com perspectivas temporais não-lineares. No processo de

apreciação artística, o presente frequentemente reavalia o passado de acordo

com os valores privilegiados pela sua própria contemporaneidade, assim

chamando a atenção para nomes ou correntes anteriormente considerados

pouco importantes, enquanto, por outro lado, recusa a exploração de ligações

causais com obras, artistas ou movimentos mais próximos do ponto de vista

histórico. Por sua vez, o valor de antiguidade, privilegiando a integração do

particular no geral – a partir da constatação de que todos os objectos, apesar da

sua singularidade e especificidade, são afectados pelo tempo–, atribui menor

importância ao papel histórico específico do objecto, assinalando antes

semelhanças e proximidades.

Valor artístico e valor de antiguidade, deste modo, relacionam-se com

uma perspectiva temporal distinta daquela da História. Esta perspectiva

diferente privilegia as repetições, as lacunas, as sobreposições, as interrupções,

os disfarces, os anacronismos, os fragmentos e as ruínas, enquanto a perspectiva

histórica, pelo contrário, valoriza a continuidade, a causalidade e a disjunção

(na História, uma coisa nunca poderá ser o mesmo que outra) e procura

                                                            95 «Esta impressão não implica de modo algum uma abordagem científica e não parece tributária  da  cultura  histórica;  convoca  simplesmente  a  sensibilidade  e  os  afectos  e atinge não só as pessoas cultas [...], mas também as massas, todos os indivíduos, sem distinção de nível cultural.» (Riegl 2013, 54.)  

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circunscrever o particular, o único, o específico numa cronologia linear e

escandida96.

O texto de Aloïs Riegl ganha em ser lido com o ensaio «A Protecção e a

Conservação dos Monumentos no Século XIX», do historiador Georg Dehio97.

Num passo deste texto, Dehio propõe uma distinção entre História e colecção.

De acordo com Dehio, enquanto o objectivo dos historiadores é respeitar e

reconstituir objectivamente a História, os coleccionadores seguem critérios

puramente subjectivos, sendo regidos apenas pelos objectivos do prazer e da

satisfação do gosto pessoal98. Através desta distinção, Dehio chama a atenção

para a importância da dimensão subjectiva e interpretativa tanto no caso da

colecção como na apreciação do valor artístico e do valor de antiguidade dos

objectos99. Também no processo de valorização artística conforme descrito por

                                                            96 Vide Le Goff 1988.  97 Dehio, Georg.  [1905]  2013.  «La  protection  et  la  conservation  des monuments  au XIXe siècle», Riegl, Aloïs. Le culte moderne des monuments: son essence et sa génèse. Trad. Daniel Wieczorek. Paris: Seuil, 137‐169.  98  «Os  coleccionadores  dos  séculos  dezasseis,  dezassete  e  dezoito  eram  sensíveis  a motivos estéticos ou a um gosto particular relacionado com uma variedade de razões; [...] em todos os casos, os critérios de avaliação eram subjectivos. A conservação dos monumentos que surge no século dezanove ignora este género de distinção. O motivo último desta é o respeito pela existência histórica enquanto tal.» (Dehio 2013, 145.)  99  Dehio  intensifica  o  carácter  depreciativo  da  sua  descrição  dos  museus  e  das colecções quando nota que estes dependem da desintegração do contexto de origem dos  objectos  e  não  só  se  distinguem  dos  interesses  da História  e  dos  historiadores como também os prejudicam. De modo comparável, Riegl nota que os museus, a que chama «prisões da arte», não só destroem o valor histórico dos objectos mas também afectam  negativamente  o  seu  valor  de  antiguidade  pelo  facto    de  os  preservarem artificialmente (Riegl 2013, 100). Apesar deste comentário   (quase obrigatório de tão tradicional) de Riegl em  relação aos museus, é claro ao  longo de «O Culto Moderno dos Monumentos» que o seu autor não considera necessariamente  incompatíveis os valores históricos, os valores artísticos e os valores de antiguidade dos objectos. Ainda que  lembre  casos  de  conflito  entre  estes,  Riegl  reconhece  que  tais  valores  podem muitas vezes ser complementares. Em muitos casos, perceber o valor artístico de um 

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Riegl, a subjectividade interpretativa afecta a avaliação visto que esta avaliação

depende do estabelecimento de relações por vezes inéditas ou inesperadas entre

objectos originalmente de espaços muito diferentes. As relações identificáveis

por uma perspectiva histórica, pelo contrário, são predeterminadas pelo lugar

específico que os objectos ou os acontecimentos ocupam numa cadeia linear ou

sucessão cronológica.

Na História da noção de monumento descrita por Riegl, o Renascimento

marca um momento importante por ser um período em que as obras de arte

deixam de ser valorizadas apenas enquanto «monumentos intencionais»100 ,

com importância patriótica e histórica, para passarem a ser apreciadas também

pelo seu valor artístico. Adoptando uma perspectiva temporal singular, segundo

a qual as obras e os acontecimentos da Antiguidade clássica são vistos como

antecedentes directos da cultura do Renascimento e assumem assim um valor

de contemporaneidade, este período inaugura uma nova relação com o tempo.

Não é por acaso que as colecções assumem grande importância no

Renascimento. A perspectiva dos humanistas deste período parece libertar-se

parcialmente das coordenadas lineares da cronologia e da visão histórica para

procurar uma compreensão panorâmica do tempo. Visto que uma colecção pode

reunir objectos de espaços e tempos muito diferentes mas com certas

características em comum, a intensificação do interesse pelas colecções reflecte

o alargamento desta perspectiva. Na consideração do valor dos objectos no

Renascimento, o contexto histórico de origem dos objectos torna-se menos

importante do que as relações estabelecidas entre tempos e espaços diferentes, à

                                                                                                                                                                              

objecto  relaciona‐se  tanto  com o  conhecimento do  seu  valor histórico  como  com  a apreciação do seu valor de antiguidade.  100 Riegl 2013, 55. 

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semelhança do que se verifica no processo de constituição de muitas colecções.

Por depender mais da subjectividade interpretativa do coleccionador e dos

mecanismos reconstrutivos da consciência humana, interessando-se por

repetições, anacronismos, fragmentos, e ruínas ou incongruências, este processo

parece depender mais da memória do que relacionar-se com as preocupações da

História.

Na História da arte, a tradição de representação de ruínas, de que fazem

parte artistas como Giovanni Paolo Pannini (1691-1765) ou Giovanni

Battista Piranesi (1720-1778), distingue-se por algumas singularidades que

podem ser aproximadas dos processos da memória. O facto de estes artistas não

terem como objectivo principal representar a realidade, mas privilegiarem

antes, por um lado, as convenções da tradição pictórica em que se integram, por

outro, os conteúdos produzidos pela imaginação, o facto de reunirem no

mesmo espaço elementos com origens espaciotemporais muito diferentes,

integrando incongruências e anacronismos, o facto de muitas vezes

representarem elementos curiosos e estranhos, contribuem para aproximar esta

tradição, por um lado, dos gabinetes de curiosidades, das colecções e dos

museus, por outro, dos mecanismos da memória que se distinguem das

preocupações da História.

A propósito da aproximação entre representações de ruínas e colecções,

gabinetes de curiosidades e museus, é interessante notar que as representações

de colecções parecem seguir tendências semelhantes às da representação de

ruínas. Acerca da tela Charles Townley na Sua Biblioteca, de Johan Zoffany

(1782), Arthur MacGregor lembrou que as representações pictóricas de

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91  

colecções raramente correspondem à sua organização real no espaço101. As

esculturas representadas nesta tela não estariam todas concentradas no mesmo

espaço na casa do coleccionador Charles Townley102. Além disso, uma das peças

representadas (um discóbolo) como fazendo parte da colecção não estaria ainda

na posse do coleccionador quando a tela foi realizada. Nesta como noutras

representações tanto de colecções como de ruínas, a posição dos elementos

materiais também é influenciada pela arquitectura interna da tela.

Nesta linha de pensamento, Wolfgang Ernst nota que as representações

pictóricas de colecções estão mais próximas da imaginação e da memória do

coleccionador do que do estatuto de documento histórico103. Estão em questão

processos semelhantes àqueles descritos por Riegl e Proust: por um lado, a arte

torna-se indissociável da consciência das pessoas, permitindo o estabelecimento

de conexões inesperadas e a identificação de repetições; por outro, a consciência

desintegra fragmentos da realidade, perdendo parcialmente o contexto global de

origem, para os reintegrar numa nova representação. Traz-se para o presente os

elementos do passado (e do futuro) que sejam funcionais para o que se pretende

realizar.

                                                            101 Citado por Ernst, Wolfgang. 1993. «Frames at Work: Museological Imagination and Historical Discourse in Neoclassical Britain», The Art Bulletin, Vol. 75, No. 3 (Setembro), 488.  102  Charles  Townley  (1737‐1805),  coleccionador  inglês  mais  conhecido  por  ser proprietário  dos  Mármores  de  Townley,  agora  pertencentes  ao  British  Museum juntamente com a  sua  restante  colecção de escultura greco‐romana e outras peças. (Stourton, James e Charles Sebag‐Montefiore. 2012. The British as Art Collectors: From the Tudors to the Present. Londres: Scala, 138.)  103  «Estas  representações  pictóricas  […]  devem  ser  interpretadas  como  alusões  à imaginação primitivamente museológica do  coleccionador  e não  como documentos. Uma representação do ‘real’ é uma mistura […] de elementos reais e imaginários e das suas localizações» (Ernst 1993, 488‐489).  

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No centro quer das colecções, quer das representações de ruínas, estão

assim tanto uma perspectiva interpretativa (do coleccionador, de um curador,

de um conservador) que estabelece conexões e reorganiza contextos, como uma

perspectiva temporal que reconstrói as ligações entre passado, presente e

futuro. Melhor dizendo, trata-se de uma perspectiva temporal eminentemente

interpretativa e livre, ao contrário da perspectiva histórica, reconstitutiva,

centrada na origem. Como sugere a descrição de Quatremère dos objectos de

colecção ou de museu enquanto ruínas, associação cultivada igualmente por

John Soane na sua casa-museu, a liberdade desta perspectiva relativamente às

restrições da reconstituição histórica assenta, deste modo, numa vertente

criativa indissociável de uma componente destrutiva relacionada com a perda e

a desintegração do contexto da origem.

Em Considerações Extemporâneas104, Nietzsche reflecte sobre estas

tensões, tentando descrever uma relação entre História e vida em que a

primeira sirva a segunda. Na sua perspectiva, com um excesso de História as

pessoas deixam de viver por serem incapazes de se libertar do peso do passado.

Para agir, as pessoas têm de esquecer o passado em certa medida, rejeitando o

que as impede de prosseguir para o futuro105. Também de acordo com este

                                                            104  Nietzsche,  Friedrich.  [1873‐1876]  2007.  Untimely  Meditations.  Trad.  R.  J. Hollingdale. Cambridge: Cambridge University Press.  105  «Serenidade,  boa  consciência,  alegria  na  acção,  confiança  no  futuro  –  todas dependem – no que diz  respeito  tanto ao  indivíduo  como à nação, da existência de uma  linha  a  separar  o  claro  e  o  discernível  do  obscuro  e  do  que  não  pode  ser apreendido;  da  capacidade  de  sermos  capazes  de  esquecer  na  altura  certa  e  de lembrar na altura certa; num instinto poderoso para percebermos quando é necessário sentir  historicamente  e  quando  não‐historicamente.  Esta,  precisamente,  é  a proposição sobre a qual o leitor é convidado a reflectir: o ponto de vista não‐histórico e o ponto de vista histórico  são ambos  igualmente necessários para a  saúde de um indíviduo,  de  um  povo  e  de  uma  cultura.»  (Nietzsche  2007,  «Sobre  os  Usos  e Desvantagens da História para a Vida», 62‐ 63.) 

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93  

ponto de vista, portanto, vida e acção implicam não só memória mas também

esquecimento: «[S]ó através da capacidade de recorrer ao passado para os fins

da vida e de remeter para a História o que já foi feito e se desvaneceu – se

tornou humano o ser humano: com um excesso de História os seres humanos

deixam de existir e sem o ponto de vista não-histórico nunca teriam começado

ou ousado começar. Que acção poderia o ser humano realizar sem entrar na

região etérea do não-histórico?»106 Nietzsche opõe-se a uma concepção da

História tanto como simples acumulação de informação e de conhecimento

como enquanto espectáculo com que as pessoas se relacionam como meros

espectadores. Para Nietzsche, as pessoas devem ver o passado como fonte de

inspiração para a vida, participando neste através da sua integração no

presente.

A preservação dos monumentos e dos objectos gira igualmente em torno

destas questões. Qualquer esforço de preservação de um monumento

necessitará de ter em conta o seu valor histórico informativo, enquanto ao

mesmo tempo assegura a sua permanência e importância na vida das pessoas,

tentando inverter os efeitos do tempo sem incorrer em anacronismos

contraditórios do seu valor histórico. Ainda assim, a presença do passado no

presente assegurada pelos monumentos terá sempre de representar uma

adaptação do passado ao presente e ao futuro, de modo que o passado

permaneça compreensível e vivo.

                                                            106 Nietzsche 2007, 64.  

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2.2 Ruínas e fragmentos: John Soane e Hubert Robert

John Soane107 (1753-1837), arquitecto responsável pelo projecto do

Banco de Inglaterra e professor da Royal Academy, remodelou o edifício de

Lincoln’s Inn Fields (Londres) em que morou, com o objectivo de expor a

colecção de livros, pintura, modelos de arquitectura, desenhos, gravuras e

gessos que foi reunindo ao longo da vida.

No primeiro anúncio impresso da casa-museu (em 1812), esta foi descrita

como «uma Academia para o estudo arquitectura com princípios

simultaneamente científicos e filosóficos.»108 Através da justaposição de

objectos com origens espaciotemporais muito diferentes, entre os quais vamos

destacar os fragmentos, as representações de ruínas e os elementos de

arquitectura funerária, este coleccionador propõe aos visitantes uma perspectiva

não-linear que implica a percepção simultânea do passado, do presente e do

futuro. Tal perspectiva panorâmica e dialéctica associa-se ao objectivo de

preservar a sua memória através desta casa-museu.

A casa-museu de John Soane pode ser usada para desenvolver e sintetizar

o que vimos sugerindo tanto sobre a relação entre ruínas e colecção ou museu

como sobre as distinções entre tempo da memória e tempo da História. Visto

                                                            107    Para  uma  biografia  de  John  Soane,  ver  Darley,  Gillian.  1999.  John  Soane:  An Accidental  Romantic.  New  Haven  e  Londres:  Yale  University  Press.  Sophie  Psarra  e Donald Preziosi propõem descrições e  interpretações  interessantes da casa‐museu de John  Soane  em:  Psarra,  Sophie.  2009. Architecture  and Narrative:  The  Formation  of Space  and  Cultural Meaning.  Londres  e Nova  Iorque:  Routledge  e  Preziosi, Donald. 2006.  «Art  History  and  Museology:  Rendering  the  Visible  Legible»  in  Macdonald, Sharon (ed.). A Companion to Museum Studies. Oxford: Blackwell Publishing, 50‐63.  108 Este anúncio  foi publicado na European Magazine, vol. LXII, 1812, 382, citado em Soane,  John.  2000.  The  Royal  Academy  Lectures.  Ed.  David  Watkin.  Cambridge: Cambridge University Press, 19.  

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que representa uma reflexão sobre estas questões, vamos descrevê-la como

metacolecção. Ao mesmo tempo, salientamos que o modo de visão panorâmica

trabalhado nesta casa-museu através da insistência em ruínas, fragmentos e e

elementos de arquitectura funerária é um traço distintivo de todas as colecções.

Descrevendo esquematicamente esta casa-museu, podemos dizer que

integra áreas mais domésticas – como a sala de jantar, os quartos ou o

escritório, e áreas com mais afinidades com o espaço museológico tradicional –

como a biblioteca, a iconoteca ou a cripta –, embora em todas as paredes e em

todos os espaços estejam expostas em profusão impressionante as peças da

colecção, que, além dos fragmentos de edifícios, de elementos de arquitectura

funerária e das representações de ruínas que neste capítulo nos vão interessar,

inclui pintura, escultura, mobília, modelos de arquitectura, livros, entre outros

objectos.

Sophie Psarra109 sugere uma proximidade entre a atmosfera da casa de

Soane e a de certos quadros de Nicolas Poussin, não só devido ao papel

desempenhado em ambos os casos por objectos da Antiguidade clássica na

construção de um ambiente, mas também devido à própria luminosidade da

casa-museu110. Na obra de Poussin, Richard Wollheim111 assinala uma

reviravolta nos anos 50 do século XVII. Se até esta altura uma das principais

preocupações de Poussin tinha sido a fidelidade e a correcção histórica da sua

                                                            109 Psarra 2009, 111‐135.  110 «Por todo o lado no museu, Soane faz o visitante pensar na Itália clássica. [...] Soane queria   que o visitante visse os espaços e  lesse nas entrelinhas pensando sempre na Itália, desde o bilhete original dizendo que o museu encerrava em dias de chuva, às clarabóias e aos vitrais que banhavam o interior com luz mediterrânica.» (Psarra 2009, 117.)  111 Wollheim, Richard. 1987. Painting as an Art. Londres: Thames and Hudson.  

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obra, ao ponto de o artista dedicar grande parte do seu tempo à investigação

histórica e arqueológica, a partir desta data o artista teria deixado de se

preocupar tanto com a reconstituição histórica. Uma das obras em que esta

mudança pode ser estudada é Sagrada Família no Egipto (1655-1657). Nesta

tela Poussin representa um Egipto com características que o assemelham a

Roma, assim fundindo lugares e tempos diferentes, com o objectivo de

aproximar esta obra da vida e da experiência das pessoas que constituíam o seu

público, mais familiarizadas com Roma do que com o Egipto. Segundo

Wollheim, é como se o passado e o futuro fizessem parte do presente nesta tela.

Devido à justaposição de objectos e tempos diferentes, ao uso de espelhos

e à multiplicação de camadas, perspectivas e centros neste edifício, esta casa-

museu ilustra a coexistência do passado, presente e futuro como estruturas

existenciais em vez de momentos disjuntivos de uma sequência cronológica

linear. Tal perspectiva temporal aproxima a casa da memória112, distanciando-a

das preocupações da História e chamando a atenção para a vertente pessoal,

interpretativa e identitária deste edifício e desta colecção. A indistinção entre

edifício e conteúdo sugerida pelo quase desaparecimento das paredes sob os

objectos da colecção que as decoram é paralela à dissolução de fronteiras entre

coleccionador a colecção, processo através do qual o próprio Soane terá

conseguido sobreviver à História. Ao mesmo tempo, os espelhos, objectos

habitualmente presentes em gabinetes de curiosidades, levam-nos a associar

                                                            112  Donald  Preziosi  descreve  a  casa‐museu  de  John  Soane  como  «máquina  de memória» (Preziosi 2006, 50‐63).  

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esta casa-museu a preocupações de autoconhecimento, auto-representação e

autoconcretização semelhantes às dos gabinetes de curiosidades113.

Em articulação com a colecção de ruínas e fragmentos de Soane, é

necessário salientar, por um lado, a tendência deste arquitecto para imaginar (e

convocar à imaginação d)a própria obra em ruínas, conforme documentada

pelas aguarelas que Soane encomendou a Joseph Michael Gandy114: Vista

Aérea em Corte do Banco de Inglaterra a Partir de Sudoeste (apresentada na

Royal Academy em 1830) ou Edifícios Públicos e Privados Executados por Sir

John Soane entre 1780 e 1815 (apresentada na Royal Academy em 1818). Estas

aguarelas representam obras de Soane enquanto ruínas semelhantes às de

Roma, apesar de terem sido realizadas quando os edifícios ainda estavam

intactos.

Esta tendência é reforçada pelo texto (Crude Hints Towards the History

of My House/ Dicas Rudimentares Para a História da Minha Casa, 1812-1813)

que o próprio escreveu quando se preparava para iniciar as obras de

remodelação do espaço em Lincoln’s Inn Fields (Londres) que viria a ser

convertido no edifício doado à nação em 1833 como sua casa-museu. Neste

                                                            113 «O gabinete, ainda que pensado sob os auspícios do Universal, é singular, privado e precário. [...] A única ordem que pode fornecer a chave deste é o sujeito que nele se constitui.  [...]  A  imensa  variedade  do mundo  serve  a  consciência  individual  [...]  O gabinete  será  um  espelho  convertido  em  introspecção»  (Davenne,  Christine.  2004. Modernité du cabinet de curiosités. Paris: L'Harmattan, 104.)  114  Joseph Michael Gandy  (1771–1843),  artista  e  arquitecto,  é  considerado  um  dos ilustradores  da  arquitectura  ingleses  mais  importantes.  Interessado  por  ruínas, arquitectura  funerária  e  monumentos,  cultivando  uma  estética  próxima  das  de Piranesi  e  Turner,  colaborou  com  John  Soane  como  arquitecto  e  como  ilustrador. Desta colaboração resultaram as suas obras mais famosas, que representam edifícios concebidos por Soane. Para mais informações sobre Gandy, ver Lukacher, Brian. 2006. Joseph  Gandy:  An  Architectural  Visionary  in  Georgian  England.  Londres:  Thames  & Hudson.   

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texto o arquitecto descreve uma visita às ruínas da sua casa no futuro,

enunciando as suposições e perplexidades de um visitante em face da

diversidade temporal e geográfica dos objectos aí encontrados.

A perspectiva trabalhada por Soane nesta casa-museu é comparável à

deste texto tão sui generis. Tanto a organização dos objectos da colecção de

Soane como as aguarelas de Joseph Michael Gandy e o texto Crude Hints usam

um ponto de vista que coloca no mesmo plano as coordenadas temporais. Em

Crude Hints, a enunciação tem origem no futuro de uma casa que virá a ser

construída. Pelo facto de este texto presidir à remodelação do edifício e à

organização da colecção, o futuro como que se torna anterior ao presente e ao

passado. As três dimensões temporais coexistem nesta enunciação, como

Heidegger sugere a respeito da História.

A propósito da representação do Banco de Inglaterra em ruínas na tela de

Joseph Michael Gandy, uma imagem que o futuro se encarregaria de decalcar

para a realidade em 1925, quando foi demolida a maior parte do edifício em que

Soane trabalhou durante 45 anos115 (entre 1788 e 1833), Christopher

Woodward, antigo director da casa-museu de Soane, lembra que esta

perspectiva pode ser associada à técnica de corte axonométrico («cutaway

axonometric»), artifício de visualização que mostra um edifício descoberto,

permitindo observar simultaneamente o seu interior e exterior, a construção e a

decoração, a superestrustura e as estruturas menores, as partes e o todo116.

                                                            115 «O banco de Soane foi demolido em 1925 e as fotografias publicadas no The Times têm pontos em comum com as  imagens de Gandy que chegam a ser perturbadores, designadamente os operários a  trabalhar na demolição com picaretas.»  (Woodward, Christopher. 2002. In Ruins. Londres: Vintage, 162.)  116 Woodward 2002, 164.  

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Neste sentido, ver as coisas em ruínas pode ser descrito objectivamente como

um modo de visão mais abrangente não só no tempo mas também no espaço. As

representações de ruínas e a presença de fragmentos na casa-museu de Soane

sugerem um modo de ver panorâmico que, mostrando simultaneamente

passado, presente e futuro, se sobrepõe a uma compreensão do tempo mais

linear, como a da História.

Os fragmentos não só evocam o passado dos edifícios desaparecidos de

que foram recuperados, funcionando como catálogo de formas, mas também,

na medida em que em que eram usados como fonte de inspiração para a

construção de novos edifícios por Soane e pelos arquitectos em formação com

que ele trabalhava, anunciam o futuro.

Nesta casa-museu, a identidade de partida dos objectos no seu contexto

de origem revela-se assim menos importante do que, por um lado, as conexões

talvez fortuitas que é possível estabelecer entre eles e, por outro, a possibilidade

de a partir destes se poder imaginar a perspectiva do próprio John Soane,

transmitida aos visitantes da sua casa-museu no futuro quer através da

arquitectura do espaço, quer através da disposição dos objectos da sua colecção.

A compreensão da casa-museu de John Soane e do modo como esta, por

um lado, chama a atenção para os seus próprios mecanismos de organização,

por outro, associa esta organização à memória amplia-se quando reflectimos

sobre ela em associação com certas telas de Hubert Robert (1793-1808). Hubert

Robert, contemporâneo de Quatremère de Quincy (1755-1849), não só foi

responsável pela aquisição de quadros para a colecção real («garde de tableaux

du roi», nomeação em 1784) como depois da Revolução Francesa (entre 1795-

1802) também foi funcionário do departamento que supervisionava as

operações do Louvre, contexto em que desempenhou funções como a

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organização do espaço e dos seus conteúdos, a recuperação de objectos dos

depósitos criados na sequência das expropriações levadas a cabo no contexto da

Revolução, assim como a elaboração de propostas para melhorar o museu117.

Hubert Robert pintou várias telas que representavam o Louvre, algumas

documentando a transformação do antigo palácio num museu público, outras

ilustrando propostas de renovação do espaço, outras ainda correspondendo a

exercícios de imaginação desenvolvidos a partir deste espaço. Em comum entre

John Soane e Hubert Robert encontramos o interesse por ruínas em asssociação

com a instituição do museu. Podemos dizer que, em ambos, este interesse por

ruínas se traduz, por um lado, numa perspectiva temporal que se distingue da

linearidade cronológica, por outro, numa atenção singular aos processos de

construção e desconstrução implicados na constituição de uma colecção e na

edificação de um museu.

Em certas telas de Hubert Robert que representam ruínas encontramos

um modo de visão temporal semelhante ao de John Soane. É o caso de Vista

Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas (1796). Nesta tela, como

assinala Nina L. Dubin118, a associação entre museu e ruínas não assume as

conotações negativas da mesma conexão no ensaio de Quatremère de Quincy. A

representação do futuro do museu recorrendo às ruínas corresponde, pelo

contrário, a uma legitimação da instituição. Esta representação propõe uma

semelhança entre o futuro dos museus e o futuro dos monumentos da

                                                            117 Para uma biografia de Hubert Robert, ver Cayeux,  Jean de. 1989. Hubert Robert. Paris: Fayard.  118 Dubin, Nina  L.  2012.  Futures  and  Ruins:  Eighteenth‐Century  Paris  and  the Art  of Hubert Robert. Los Angeles: The Getty Research Institute.  

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Antiguidade clássica. Deste modo, o Louvre é representado como a Antiguidade

clássica do futuro.

O ponto de vista implícito nesta tela de Hubert Robert está muito

próximo daqueles que Riegl descreve a propósito da contemplação de ruínas e

da apreciação do valor artístico e do valor de antiguidade. Hubert Robert

explora as repetições, as relações e os ciclos da História, definindo uma

genealogia entre o Louvre e os monumentos da Antiguidade clássica através de

uma consciência temporal em que coexistem passado, presente e futuro.

Pela antevisão de um futuro do Louvre semelhante ao dos monumentos

clássicos, as ruínas sugerem, além disso, que a existência do museu público

assumirá uma importância que se prolongará no tempo. Trabalhando nos

primeiros tempos do Louvre como museu público (1795-1802), numa altura em

que uma instituição nestes moldes era uma novidade que suscitava alguma

estranheza, Hubert Robert sugeria assim que esta instituição persistiria no

tempo até se converter em ruínas, em vez de o seu edifício ser reconvertido

noutro tipo de espaço a curto prazo. Nas telas deste artista, as ruínas são

símbolos de sobrevivência à destruição do tempo.

A associação entre ruínas e museu contribui igualmente para a

representação do museu não só como espaço de fusão de tempos diferentes, mas

também como espaço de instabilidade ontológica, à semelhança do que se

verifica noutras telas do mesmo artista. Em telas de Hubert Robert como

Artista Desenhando Antiguidades na Pequena Galeria (1800) ou Galeria

de Arte Romana no Museu (1790s), nenhuma conexão ao contexto de origem

com peso quatremeriano parece decisiva. Em vez disso, temos transição,

mobilidade e negociação (no sentido de consideração de diversos aspectos de

uma questão antes de se tomar uma decisão), aliados a uma atenção singular

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aos processos de organização dos espaços que a arte pode ocupar. Para Hubert

Robert, é claro que não só o destino original destas obras de arte se perdeu

como o destino que ocupam no museu é transitório.

Em Galeria de Arte Romana no Museu representa-se uma sala em

processo de organização: além das paredes ocupadas com representações de

edifícios de Roma antiga, encontramos sobreposição de telas, escadotes,

esculturas e desenhos espalhados no chão, figuras humanas em movimento,

ocupadas em actividades de transporte, de restauro ou de discussão.

Hubert Robert explora conexões mesmo nos espaços de transição dentro

dos museus, ainda que estas sejam contingentes, passageiras ou insignificantes.

Em Artista Desenhando Antiguidades na Pequena Galeria, tela em que se

representa um espaço de armazenamento temporário de esculturas, é evidente

que aquelas peças não só não foram concebidas para aquele lugar como também

serão transportadas para outra localização. Apesar da acumulação, da

desordem, das posições estranhas das esculturas, é possível estabelecer algumas

relações de coincidência entre arte e figuras humanas. A inclinação do torso do

centauro repete-se no torso de uma figura feminina do lado esquerdo da tela,

junto ao cão. O braço estendido de Apolo tem ecos na posição do braço da

mesma figura feminina. A cabeça do centauro está na mesma posição da cabeça

de outras figuras femininas próximas.

Como propusemos no primeiro capítulo, a separação dos objectos

relativamente ao seu contexto espaciotemporal de origem tanto nos museus

como nas colecções revela que nem a identidade destes objectos nem a sua

relação com as pessoas podem ser predeterminadas. A identidade das coisas

está sempre em questão e em processo de revelação através das conexões entre

as pessoas e as coisas ao longo do tempo. A identidade das coisas e das pessoas

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não deve ser descrita como algo prévio e fechado, mas sim como um elemento

em negociação constante, dependente de conexões e de práticas através das

quais as pessoas integram os objectos nas suas vidas. Neste sentido, colecções e

museus constituem espaços privilegiados para a reflexão sobre a ontologia dos

objectos e das pessoas.

A propósito da tela Galeria de Arte Romana no Museu, Nina L. Dubin

sugere119 que estão evidentes as correntes opostas com que o museu tem de

trabalhar: por um lado, a estabilidade do museu, como instituição que protege a

arte dos efeitos da passagem do tempo; por outro, a mobilidade e o carácter

negociável das obras de arte.

Nestas telas de Hubert Robert, o museu é representado como lugar de

reavaliação dos valores históricos, estéticos e políticos. O museu torna-se o lugar

da «catástrofe da História»120 no sentido em que revela que não só o passado

está definitivamente perdido, dele restando apenas fragmentos, como também

os valores e percepções associados a determinados períodos históricos são

instáveis e vulneráveis à transformação.

Estas questões são tão importantes para John Soane como para Hubert

Robert. Em John Soane, o interesse pelos efeitos da passagem do tempo alia-se,

por um lado, a uma reflexão sobre a mortalidade, por outro, à tentativa de a

integrar para a vencer através de estratégias associadas à memória. Mais

especificamente, a consciência da mortalidade e da instabilidade da própria

identidade depois da morte aliam-se à constituição de uma colecção através da

                                                            119 Dubin 2012, 167.  120 Didier Maleuvre usa este termo a propósito da relação entre o Louvre e a  loja de antiguidades  na  secção  inicial  de  La  Peau  de  chagrin,  romance  de  Balzac  que abordaremos no quinto e no sexto capítulos desta tese. (Maleuvre 1999, 207.)  

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qual possa ser recordado. A consciência da oscilação ontológica tanto da

identidade das coisas, concretizada nos fragmentos e nas ruínas que colecciona,

como da identidade das pessoas no tempo, associada à mortalidade, leva Soane

a organizar uma casa-museu que integra diversas manifestações desta

instabilidade ontológica através da acumulação quer de fragmentos e ruínas,

quer de túmulos.

No ensaio que escreveu sobre o tópico das ruínas121, Georg Simmel sugere

que estas lembram que as obras das pessoas estão sujeitas às mesmas leis que as

obras da Natureza: «[O] que constitui a sedução da ruína é que nela uma obra

humana é afinal percebida como produto da Natureza. [...] [O] que foi elevado

pelo espírito torna-se objecto das mesmas forças que formaram o contorno da

montanha e a margem do rio.»

Em Soane, a aproximação entre arte e Natureza sugerida, segundo

Simmel, por ruínas e fragmentos alia-se a preocupações relacionadas com a

mortalidade, com a passagem do tempo e com os efeitos da Natureza na

actividade humana. John Soane interessou-se por monumentos funerários

durante toda a vida122. Este interesse é explícito em certos elementos da casa-

museu do arquitecto: na cripta do edifício são exploradas reminiscências de

cavernas, catacumbas ou câmaras funerárias egípcias, com lugar central para

                                                            121 Simmel, Georg. 1911. «The Ruin», Wolf, Kurt H.  (ed.). 1965. Essays on Sociology, Philosophy and Aesthetics. Nova Iorque: Harper and Row, 259‐266.  122 John Summerson distingue quatro fases neste interesse, tomando em consideração estudos de juventude, uma segunda fase em que a influência da arquitectura funerária é  visível  em  certos  elementos  de  projectos  de  Soane,  como  na  sala  do  pequeno‐almoço  da  casa‐museu,  uma  terceira  fase  relacionada  com  a  concepção  de monumentos  funerários  propriamente  ditos  e  uma  última  fase  de  interesse arqueológico  por  este  tipo  de  arquitectura,  reflectida  em  certas  peças  da  colecção, como  o  sarcófago  de  Belzoni.  (Summerson,  John.  1978.  «The  Furniture  of  Death»,  Architectural Review, Março, 147‐158.)  

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um sarcófago vazio; a ruína fictícia na zona do pátio do monge («monk’s

yard») aponta para uma reflexão no mesmo sentido. É possível inclusivamente

estabelecer uma rima interna entre a casa-museu de John Soane e a Dulwich

Picture Gallery. Este espaço é uma das obras mais importantes de Soane,

distinguindo-se pela particularidade de ter sido construído em torno das

sepulturas dos seus fundadores (Francis Bourgeois and Noël Desenfans),

concretizando à vista de todos os visitantes uma relação de contiguidade entre

coleccionadores e colecção123.

Esta conexão relaciona-se com a tendência de Soane para a subversão de

fronteiras entre as formas e o seu contexto. Tal tendência é evidente não só no

pensamento teórico deste arquitecto124 em torno das relações entre certas

formas naturais e algumas formas arquitectónicas (por exemplo a ideia de que a

arquitectura egípcia colhe inspiração nas cavernas, ou de que as catedrais

                                                            123 Para mais informação sobre a relação entre este tópico e a Dulwich Picture Gallery, ver Duncan, Carol. 1995. Civilizing Rituals: Inside Public Art Museums. Londres e Nova Iorque: Routledge, 72‐100.  124 Este  interesse por ruínas  integra‐se na estratégia que caracteriza habitualmente a actividade  profissional  de  Soane.  A  preocupação  com  uma  visão  espaciotemporal panorâmica não só da sua obra mas também da História e da Teoria da arquitectura é uma constante no pensamento  teórico deste arquitecto. Podemos ver esta visão em acção nas  conferências que  fez na Royal Academy entre 1810 e 1820  (Soane,  John. 2000.  The  Royal  Academy  Lectures.  Ed.  David  Watkin.  Cambridge:  Cambridge University Press), nas quais desenvolveu uma reflexão sobre os princípios universais da História da arquitectura. Nestas conferências, Soane procurou articular arquitectura e Natureza,  lembrando, por exemplo, que  as primeiras habitações  foram  as  cavernas, explorando semelhanças entre as cavernas e a arquitectura egípcia, ou associando as colunas das catedrais góticas aos troncos das árvores dos bosques em que os antigos realizavam cerimónias religiosas e aproximando a luz dos bosques filtrada pelas folhas à iluminação das catedrais. O desejo de encontrar as leis universais tanto da arte como da Natureza  levou Soane a descrever a Natureza como arquitectura e a arquitectura como Natureza.  

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góticas se assemelham aos bosques sagrados), mas também no seu interesse por

ruínas.

Assim como a Natureza invade as construções humanas em ruínas,

diluindo as fronteiras entre o natural e o arquitectónico, conforme Simmel

observa, a casa de Soane é invadida pela colecção, sendo por vezes reconstruída

para acomodar tal invasão. Torna-se necessário que as paredes passem a

desdobrar-se em páginas que mostram pintura ou sejam cobertas com

fragmentos. Talvez o piso com mais impacto nesta casa seja a cave, espaço onde

são expostos diversos objectos relacionados com arquitectura funerária,

nomeadamente o famoso sarcófago de Belzoni, cuja instalação ali exigiu a

reconstrução da divisão agora identificada como «câmara tumular». Também

aqui, como nas ruínas e como no próprio corpo humano que sucumbe às leis

naturais da morte que dele se apropriam, se verifica uma invasão e uma

anulação de fronteiras entre interior e exterior.

O interesse de Soane por arquitectura funerária é comparável ao seu

interesse por colecções e museus. Em ambos os casos se trata de construir

alguma coisa que sobreviva ao tempo, recordando alguém ou alguma coisa. Em

ambos os casos parece estar em questão uma abolição de fronteiras entre forma

e contexto ou pessoa e construção. Assim como as ruínas representam uma

fusão entre forma e aquilo que a rodeia ou uma invasão da forma por aquilo que

a rodeia, assim como um túmulo é identificado com o corpo que contém,

também a colecção representa e recorda o coleccionador.

Em Soane, a constituição de um prolongamento material através de uma

colecção e de uma casa-museu traduz o reconhecimento da dimensão material,

concreta – e perecível – de todos os seres humanos, juntamente com a noção de

pertença a um espaço concreto. Através da exploração complexa desta dimensão

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material da existência humana Soane encena a sua superação. Prolongando-se

materialmente na sua colecção e na casa-museu que a alberga, Soane procura

que a sua memória resista à História e ao tempo.

Na já referida Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas

(1796), tela em que Hubert Robert representa o Louvre como a Antiguidade

clássica do futuro, a figura do artista que desenha as ruínas pode ser descrita

como projecção do próprio Hubert Robert, que assim representa a sua

juventude em Roma, período em que muitas vezes desenhou ruínas. Deste

modo, a vertente privada e pessoal da vida do artista confunde-se com a

dimensão pública do museu. A memória do artista assume uma dimensão

pública associada não só ao museu mas também à arte. Como se verifica em

Proust, porque a memória integra elementos do mundo como a arte ou outros

objectos, estes passam a fazer parte da consciência humana, sendo usados como

instrumentos de interpretação.

A auto-representação de Hubert Robert na tela em questão é

indissociável não só de episódios e de recordações da sua vida privada, mas

também das relações que o artista estabelece entre espaços e tempos diferentes:

Roma, Louvre, juventude, idade adulta, um futuro em que o Louvre estará em

ruínas. Esta auto-representação implica tanto elementos subjectivos

(recordações, relações) como elementos objectivos e públicos (certos espaços e a

própria obra) que fazem parte da vida de outras pessoas. De modo semelhante,

como constatámos a propósito da casa-museu de John Soane, uma colecção

implica tanto elementos e interpretações subjectivas, como componentes

objectivas, públicas e partilháveis – ainda que nem todas as colecções sejam

expostas em casas-museus de acesso universal.

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Como Jeff Malpas125 observa, tradicionalmente o espaço é considerado

exterior à existência humana, enquanto o tempo e a memória são associados às

dimensões subjectivas, interiores e mentais do sujeito. Contudo, na medida em

que as representações mentais das pessoas se relacionam com o espaço e com o

que neste se situa, nem o espaço pode ser considerado puramente exterior, nem

a memória deve ser considerada puramente subjectiva, visto que, devido à sua

relação com o espaço, esta não é totalmente privada, podendo ser partilhada

publicamente.

No mesmo sentido, a colecção e a casa-museu de John Soane ajudam a

tornar mais clara a relação entre os elementos materiais do universo e as

pessoas. Os objectos de colecção ou museu funcionam como indícios materiais

do passado. A colecção e o museu encenam a sua permanência no presente,

projectando-os igualmente para o futuro. Através da organização conceptual e

das conexões destacadas pelo coleccionador ou pelo conservador, a colecção

articula tempo privado com tempo social e público, autobiografia com História.

Entre o privado e o público jogam-se não só sobreposições entre

interesses individuais e interesses colectivos, mas também o modo como as

pessoas se definem perante si e perante os outros ou, melhor dizendo, o modo

como definir-se perante si se relaciona estreitamente com o definir-se perante

os outros e com os outros.

Pelo facto de se situarem no circuito de interacção entre o privado e o

público, o conceptual e o material, por se basearem na organização de coisas

num espaço, as colecções fazem parte da definição da vida e da subjectividade

                                                            125 Malpas,  Jeff.  2012.  «Building Memory»,  Interstices:  Journal  of  Architecture  and Related Arts 13.  

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do coleccionador e, num contexto mais amplo, são importantes para descrever a

cultura em que o coleccionador se integra.

Na sua vida, as pessoas movem-se num espaço que partilham com outras

pessoas e outros seres e coisas. Visto que do modo como organizam esses

espaços, dos seus percursos nestes e das suas interacções com o que as rodeia se

constitui a definição de quem são e da sua vida, o privado é indissociável do

público e do que as pessoas partilham e organizam no exterior de si mesmas,

assim como o colectivo é indissociável do individual.

O facto de John Soane ter constituído uma colecção e construído uma

casa-museu que pudesse ser visitada demonstra a sua consciência tanto da

necessidade de interacção permanente entre o privado e o público na definição

de uma identidade, como da importância da memória não só na identidade

individual mas também na concretização pública desta subjectividade de modo

estável e, portanto, memorável.

Em conclusão, a relação das colecções e dos museus com a memória tem

de ser considerada mais importante do que a sua relação com a História.

Em primeiro lugar, nas colecções e nos museus, os objectos são produto

de uma dupla selecção, operada quer por circunstâncias incontroláveis (o

desgaste da passagem do tempo, a perecibilidade do contexto original), quer

pelas figuras dos coleccionadores ou dos conservadores dos museus. Uma

colecção pode ser descrita como organização de contingências – contingências

de descoberta e selecção, contingências de preservação, contigências de

conexões e coincidências, contingências de descrição126. Pela mesma

                                                            126 Veja‐se, por  exemplo,  esta observação da  coleccionadora Dominique de Menil  a propósito do carácter algo fortuito da aquisição das peças da sua colecção: «Uma série de circunstâncias complexas trouxe estes tesouros à família: um encontro inesperado, uma visita a um artista ou a um negociante de arte, uma descoberta num catálogo de 

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vulnerabilidade dos contextos de origem relativamente às circunstâncias e à

mudança, não é possível preservá-los integralmente.

Em segundo lugar, a preocupação de reconstituição histórica parece

afastar-se para segundo plano quando colecções e museus colocam lado a lado

objectos de tempos e espaços diferentes. Esta intersecção de tempos diferentes

traz o passado para o presente, desencadeando não só novas possibilidades de

integração dos objectos na vida das pessoas mas também novas conexões entre

objectos e momentos temporais. Em primeiro plano nas colecções e museus está

esta simultaneidade temporal ou visão panorâmica que podemos descrever

como heideggeriana na medida em que passado, presente e futuro parecem

funcionar como «estruturas temporais» e não como períodos disjuntivos

situados numa sequência cronológica linear. Neste sentido, colecções e museus

parecem mais próximos da memória, tal como a vimos descrevendo, do que das

preocupações tradicionais da História.

Por sua vez, as novas conexões entre objectos, períodos históricos e

pessoas podem dar origem a novos entendimentos e práticas. Deste ponto de

vista, colecções e museus relacionam-se não só com o futuro, mas também com

o acaso e com a imprevisibilidade do mundo – com as variações e não só com as

regularidades e os padrões –, ao contrário do que sugerem algumas descrições

mais convencionais da actividade de coleccionar, segundo as quais as colecções

                                                                                                                                                                              

uma  leiloeira, uma oferta  feliz num  leilão, e, claro, uma ocasião propícia para gastar dinheiro.  [...]  Nada  estava  excluído  à  partida,  embora  tivéssemos  inclinações profundas.  Constrangimentos  também:  o  preço  e  a  disponibilidade  de  mercado.» (Menil,  Dominique  de.  1987.  Prefácio  a  The Menil  Collection:  A  Selection  from  the Paleolithic to the Modern Era. Nova Iorque: Harry N. Abrams, 7.)  

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111  

e os museus tomam sempre como ponto de partida as taxonomias vigentes127.

Por um lado, como aprofundaremos no sexto capítulo, as colecções resultam de

contingências várias, relacionadas com peripécias e idiossincrasias na existência

do coleccionador no contexto cultural em que este se integra. Por outro lado,

como observaremos nos capítulos quarto e quinto, as colecções, pelo facto de

representarem um espaço de liberdade que deriva de opções subjectivas

concretizadas num espaço intersubjectivo, podem muitas vezes chamar a

atenção para elementos até então pouco valorizados ou pouco notados, assim

funcionando como importantes elementos dinamizadores da cultura128.

Como Quatremère de Quincy e Aloïs Riegl permitem sugerir, a

singularidade da relação entre museus, memória e História pode ser clarificada

a partir da consideração da proximidade entre colecções, museus e ruínas. Tal

como as ruínas, as colecções e os museus são produto do tempo e da História,

mas estão simultaneamente fora destes na medida em que lhes sobrevivem.

Além disso, o estatuto ontológico ambíguo das ruínas parece próximo do

                                                            127 Um exemplo deste ponto de vista pode ser encontrado na introdução do livro The Cultures  of  Collecting,  assinada  por  John  Elsner  e  Roger  Cardinal:  «A  História  das colecções é a narrativa do modo como os seres humanos adaptaram, apropriaram e alargaram as taxonomias e sistemas de conhecimentos que herdaram». (Elsner, John e Roger Cardinal (ed.). [1994] 1997. The Cultures of Collecting: From Elvis to Antiques — Why do We Collect Things? Londres: Reaktion Books, 1‐6.)  128 «[O]  lixo é a zona de transformação em que as colecções são criadas e os detritos desprezados dos bens se convertem em cultura e sentido. Na extremidade oposta, a zona do museu  é o  lugar do  transformado, o  lugar de  apoteose  em que os  valores culturais  e  os  valores  de mercado  se  tornam  indistintos.  A  dinâmica  no  sistema  é criada  pelo  processo  de  coleccionar. As  colecções  ocupam  a  zona  intermédia  entre uma avaliação e outra; são a zona de transição da saída e da transformação a partir da qual a mudança emerge.»  (Pearce, Susan. 1995. On Collecting: An  Investigation  into Collecting in the European Tradition. Londres e Nova Iorque: Routledge, 396.)  

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112  

estatuto dos objectos de colecção ou de museu129, os quais permitem novas

descrições quando adquirem diferentes usos, estabelecem conexões e são

integrados em práticas anteriormente inexploradas se passam a fazer parte do

contexto de uma colecção ou de um museu. Neste sentido, as peças de museu e

de colecção podem ser descritas não só como objecto de contemplação estética,

mas também como catalisadores da imaginação.

Por último, a proximidade entre colecções e memória aponta igualmente

para a vertente mais pessoal da constituição de uma colecção. Pela sua

associação à memória e pela sua presença concreta num determinado espaço, as

colecções podem ser descritas como corporizações da memória quer de um

coleccionador, quer de uma cultura (no caso dos museus). Pelo facto de muitas

vezes sobreviver ao próprio coleccionador, como uma ruína sobrevive ao edifício

de que fez parte, uma colecção pode ser descrita como modo de resistência quer

à morte, quer à História.

                                                            129 De assinalar, no entanto, como  lembra Maleuvre  (1999), que apesar de as  ruínas concretizarem ou  ilustrarem materialmente a destruição a que as coisas do passado estão sujeitas, em geral as ruínas não são deslocadas do seu contexto de origem – ao contrário do que se verifica com os fragmentos e as peças de museu ou de colecção.  

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3. O privado e o público; o conceptual e o material

«Dizer que os mortais são é dizer que habitando eles persistem através dos espaços em virtude da sua permanência entre as coisas e os lugares.»

Martin Heidegger130

3.1 Genealogia das colecções

No capítulo anterior tentámos descrever algumas distinções entre

História e memória com o objectivo de reflectir tanto sobre a relação das

pessoas com o tempo como sobre o papel desempenhado pelos objectos nesta

relação. Para descrevermos de forma simples esta questão, podemos dizer que

através da memória as pessoas tentam colocar-se fora do tempo, em busca de

uma perspectiva que não procura necessariamente uma reconstituição objectiva

dos acontecimentos do passado, mas depende essencialmente do

estabelecimento de relações de diversos tipos.

Depois de explorarmos algumas questões associadas à existência no

tempo de objectos de colecção e museus, queremos aprofundar a questão da

ligação entre o privado e o público, o material e o conceptual nos objectos de

colecção, com o objectivo de consolidarmos a sugestão de que uma colecção

pode ser descrita como extensão de uma pessoa.

Neste capítulo vamos identificar relações mais específicas entre

subjectividade, materialidade e intersubjectividade. Começaremos por explorar

elementos materiais como túmulos, em que se encena objectivamente uma

partilha do privado e do individual na esfera pública e colectiva. A seguir,                                                             130 Heidegger, Martin.  [1951] 2001. «Building, Dwelling, Thinking», Poetry,  Language Thought, Trad. Albert Hofstadter. Nova Iorque: HarperPerennial, 155. 

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114  

pensando sobre o culto dos santos, as relíquias e as peregrinações, vamos tentar

perceber como o espiritual ou o conceptual se podem manifestar materialmente,

assim consolidando a sugestão do primeiro capítulo desta tese de que o

conceptual e o material nunca podem ser entendidos separadamente. Neste

contexto, as práticas da «arte da memória» ajudar-nos-ão a explicar a ligação

entre conceitos e objectos.

A exploração de pontos em comum entre túmulos, monumentos a heróis

ou santos e gabinetes de curiosidades conduzir-nos-á à consideração de algumas

distinções entre estes e colecções, designadamente colecções de casas-museus.

Se é verdade que os pontos em comum entre estes elementos nos ajudam a

esclarecer a interacção das vertentes conceptuais e materiais, privadas e

públicas das colecções, assinalar a orientação temporal das colecções e o seu

papel no presente e no futuro dos coleccionadores torna necessário salientar a

vertente pública das colecções, ainda que sem ignorarmos as suas vertentes

mais privadas. À semelhança do que se verifica nos gabinetes de curiosidades a

tensão público/privado revela-se decisiva para descrever uma colecção.

Túmulos, santuários, gabinetes de curiosidades, relicários, monumentos,

práticas da «arte da memória», souvenirs, têm semelhanças de família com as

colecções e as casas-museus na medida em que representam uma ligação entre,

por um lado, o material e o imaterial e, por outro, o privado e o público. Tomar

estes elementos em consideração é indispensável para compreendermos a

cultura das colecções visto que a identificação de proximidades e distâncias

entre estes elementos não só nos ajuda a traçar a genealogia desta cultura, como

também contribui para destacar certos aspectos deste tópico que de outro modo

poderiam passar despercebidos.

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115  

No capítulo anterior referimos o interesse de John Soane por

arquitectura funerária. Giles Waterfield131 observa que este interesse se

relacionava com a atenção de Soane não só às origens da arquitectura, mas

também à importância que estes elementos desempenhavam na vida pública do

passado. A articulação das dimensões privadas e públicas dos projectos

arquitectónicos sempre foi um tópico de interesse para Soane. Os dois projectos

em que este interesse está mais explícito são a Dulwich Picture Gallery e a sua

própria casa-museu.

Na Dulwich Picture Gallery132, como constatámos, os túmulos privados

dos fundadores são integrados na instituição pública do museu. Assim se

estabelece uma relação de contiguidade não só entre coleccionadores e colecção,

mas também entre vertentes individuais e colectivas, privadas e públicas. Neste

museu, os túmulos e a colecção tornam-se públicos e são expostos em pé de

igualdade. Visitar a colecção implica visitar os túmulos. Do mesmo modo, ainda

que o túmulo de John Soane não esteja integrado na sua casa-museu,

encontramos neste edifício diversas figurações deste, com destaque para o

sarcófago vazio na cripta.

A conversão da casa de John Soane num espaço público valida os

interesses do arquitecto através do reconhecimento da sua relevância colectiva,

redefinindo a identidade individual de Soane através da sua expansão no

colectivo. Deste modo, a dimensão subjectiva do coleccionador completa-se e

prolonga-se através da sua conexão com a vida das outras pessoas.

                                                            131 Waterfield, Giles (ed.). 1996. Soane and Death. Londres: Dulwich Picture Gallery.   132 Um  espaço  que  já  foi  descrito  como  «um mausoléu  expandido  numa  galeria  de arte» (Duncan 1995, 85).  

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116  

À semelhança do que se verifica com esta casa-museu, túmulos de santos

ou heróis, ou monumentos em sua homenagem, foram durante muito tempo

entendidos não só como celebração da vida individual específica que

recordavam, mas também como paradigma colectivo de virtude cívica. Erigidos

com o objectivo de educar para o bem colectivo, desempenhavam um papel

central na vida pública, recordando um passado partilhado por todos. Deste

modo se possibilitava uma relação de continuidade entre civilização do passado

e a civilização do presente. Presentes na memória colectiva através destes

monumentos, as acções dos heróis do passado constituíam exemplo de acções e

feitos a emular, produzindo também a noção de pertença a uma comunidade e a

um património cultural.

O papel histórico dos túmulos na vida colectiva ajuda a descrever a

dialéctica entre dimensões privadas e públicas. Como nota Panofsky133, a

arquitectura funerária expressa muitas vezes um desejo de imortalidade

simultaneamente material e imaterial, traduzindo a dupla ambição de

permanecer materialmente na memória dos vivos e alcançar a salvação

espiritual depois da morte134. Ainda que a morte e o luto tenham uma dimensão

individual e privada, os funerais, os túmulos ou monumentos a mortos e os

epitáfios são modos de expressar e partilhar o privado, visto que materializam o

imaterial e o conceptual através de objectos partilháveis, cerimónias e

                                                            133 Panofsky, Erwin. 1992. Tomb Sculpture: Four Lectures on Its Changing Aspects From Ancient Egypt to Bernini. Ed. H. W. Janson. Londres: Phaidon.  134  Os  túmulos  podem  incluir  representações  retrospectivas  (de  episódios  ou elementos da vida do homenageado) ou prospectivas (da existência do homenageado depois  da  morte).  Mesmo  as  representações  prospectivas,  curiosamente,  ilustram muitas vezes cenas de vida material.  

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enunciados públicos, permitindo que os mortos continuem presentes na

memória e na vida das pessoas.

Ainda nos túmulos, é curioso notar como, nos epitáfios em que o morto

se dirige aos vivos, esta voz parece residir num tempo que não coincide com o

da cronologia e da mortalidade humana, como assinala Barbara Johnson135,

situando-se numa dimensão supratemporal, próxima da memória, em que

mortos e vivos coexistem. A voz que fala nestes epitáfios concretiza o que

supostamente já não deveria poder ser articulado: as palavras de um morto, o

paradoxo da manifestação material do que já não tem existência física.

A arquitectura funerária encena uma superação da mortalidade através

da possibilidade paradoxal de permanência material na memória das pessoas,

apesar do desaparecimento do recordado. Ao mesmo tempo, ajuda a descrever a

relação de cada indivíduo com o colectivo. O colectivo pode integrar

culturalmente os exemplos individuais. Túmulos ou monumentos a heróis dão

conta desta integração. Quando são construídos por iniciativa individual, estes

acabam por funcionar como extensão do indivíduo, preservando materialmente

algo tão imaterial como a sua memória – isto é, a recordação de quem este

indivíduo foi e daquilo que fez.

De modo semelhante ao que se verifica na arquitectura funerária, no

caso de coleccionadores que vêem a colecção integrada e valorizada na esfera

pública através da preservação da sua casa-museu ou da aquisição desta

colecção por um museu, o individual torna-se exemplo para o colectivo. Nos

museus públicos com origem na esfera privada, a colectividade integra e

valoriza exemplos individuais com as suas visitas e, frequentemente, o dinheiro                                                             135  Johnson, Barbara.  2008. Persons and  Things. Cambridge, MA e  Londres: Harvard University Press, 11‐13.  

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dos seus impostos. A vertente colectiva define-se assim em interacção com a

esfera individual. O exemplo individual e privado é valorizado pela comunidade,

adquirindo ressonância colectiva como paradigma de virtude ou como lugar de

interesse geral. Deste modo, o privado e o individual expandem-se no colectivo e

os elementos materiais contribuem para preservar valores imateriais.

A circunstância de certas casas-museus poderem ser descritas e visitadas

não só como retrato de um coleccionador mas também como documento de um

período histórico demonstra que os factores históricos, sociais e culturais são

inseparáveis da esfera individual136.

Os túmulos e os monumentos a heróis ou santos podem ser descritos

como espaço de interacção do imaterial e do material. Durante a Idade Média e

o Renascimento, os túmulos dos santos ou os relicários com restos mortais

destas figuras, além de desempenharem a mesma função pedagógica dos

túmulos dos heróis ou das famílias, representavam a união do espiritual e do

material, funcionando como intermediário entre as pessoas e os princípios

transcendentes da religião137. Estes elementos facilitavam a compreensão do

sagrado, instaurando um lugar concreto e visível através do qual a vontade de

                                                            136 Vamos desenvolver esta ideia nos capítulos quatro e seis. Não estamos a defender uma  noção  de  «memória  colectiva»  próxima  da  de  Maurice  Halbwachs  porque preferimos um conceito de  intersubjectividade mais abrangente. Halbwachs associa o conceito  de  «memória  colectiva»  a  grupos  sociais  específicos.  Nós  falamos  de processos humanos em geral. (Halbwachs, Maurice. On Collective Memory. Trad. Lewis A. Coser. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, [1926] 1992.)    137  «As  distinções  entre  vivos  e mortos,  corpo  e  coisa,  presença  e mimese,  parte  e todo, animado e inanimado, tendiam a desvanecer‐se: toda a criação podia transmitir e  revelar Deus.»  (Bynum,  Caroline Walker.  2011.  Christian Materiality:  An  Essay  on Religion in Late Medieval Europe. Nova Iorque: Zone Books, 267.)  

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Deus se traduziria em milagres138. Ao mesmo tempo, consolidavam a coesão

social, reunindo no mesmo espaço partilhado diferentes estratos da

sociedade139.

É evidente nas relíquias a tendência para dissolver fronteiras (entre vida

e morte, pessoa e objecto, parte e todo, presença e representação)140 e, portanto,

para reunir e agregar. Esta tendência traduz-se igualmente no impulso para a

colecção e reunião de relíquias em altares, tesouros das igrejas ou outras formas

de agregação e exposição que reforçam a noção de comunidade, como desfiles,

procissões e peregrinações. No centro de lugares de culto religioso, estes

túmulos e relicários, identificados como meta de peregrinações, assinavalam um

espaço material concreto, valorizado por motivos imateriais.

As próprias peregrinações podem ser descritas como percursos

simultaneamente materiais, realizados fisicamente, e espirituais ou mentais,

realizados em busca de espiritualidade e de bens imateriais. Como sugere

Rebecca Solnit141, a peregrinação é o exemplo mais claro de indistinção entre

                                                            138  Como  observaremos  no  sexto  capítulo,  neste  aspecto  reside  uma  distinção importante entre  túmulos de  santos,  relicários e  relíquias, por um  lado, e  colecções seculares, por outro.  139 Para mais informação sobre estes assuntos, ver também:  Freeman, Charles. 2011. Holy Bones, Holy Dust: How Relics Shaped the History of Medieval Europe. New Haven e Londres: Yale University Press e Brown, Peter. [1981] 1982. The Cult of the Saints: Its Rise and Function  in  Latin Christianity. Chicago e  Londres: The University of Chicago Press.  140 Bynum 2011.  141 «A peregrinação percorre um caminho delicado entre o espiritual e o material e a sua  ênfase  na  história  e  no  seu  contexto:  ainda  que  se  trate  de  uma  demanda espiritual,  esta  é  praticada  nos  seus  pormenores  mais  materiais  [...]  Ou  talvez reconcilie o espiritual e o material, porque partir em peregrinação é obrigar o corpo e as suas acções a exprimir os desejos e as crenças da alma. A peregrinação une crença e acção, pensar e fazer, e faz sentido que esta harmonia se complete quando o sagrado 

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pensamento e acção, dimensão imaterial e dimensão material. Numa

peregrinação, crenças e pensamentos manifestam-se em acções executadas

fisicamente.

Túmulos de santos, relíquias, relicários, lugares santos são espaços ou

objectos concretos que, à semelhança do que se verifica com a arquitectura

funerária ou de monumentos em relação à vida e às acções de alguém,

presentificam e concretizam princípios e actividades espirituais. Túmulos,

monumentos aos mortos, epitáfios, santuários e peregrinações são exemplo da

articulação do material e do imaterial, do público e do privado. Estes exemplos

reforçam a ideia de que a vida humana se processa necessariamente a partir da

interacção destes pólos.

Como lembra Susan Stewart142, é impossível ao sujeito visualizar-se

integralmente sem prolongamentos com dimensão física e material como

imagens, reflexos ou projecções. Assim como a autoconsciência do corpo não

fica completa sem imagens adicionais do que o sujeito, por si só, não consegue

ver, também os elementos imateriais humanos ficam incompletos sem as

referências materiais a partir das quais se definem. Túmulos, gabinetes de

curiosidades, relicários e casas-museus podem ser vistos como prolongamentos

materiais de um corpo que inclui uma consciência ou subjectividade. Estas

extensões facilitam a compreensão de vertentes imateriais sobre as quais de

outro modo seria mais difícil falar ou pensar. Como observa Mary Douglas, os

conceitos abstactos ganham substância e são mais facilmente compreendidos

                                                                                                                                                                              

assume  uma  presença  e  uma  localização  material.»  (Solnit,  Rebecca.  2002. Wanderlust: A History of Walking. Londres e Nova Iorque: Verso, 50.)  142 Stewart, Susan. [1993] 2007. On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Durham: Duke University Press, 131. 

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121  

quando assumem uma vertente material143. Pode-se dizer uma coisa

semelhante sobre as vertentes imateriais, conceptuais ou mentais das pessoas: é

difícil compreendê-las e descrevê-las sem referências materiais que assinalem a

sua interacção com o que está no exterior do sujeito.

Por dependerem da fragmentação do corpo, por se reunirem em

relicários, as relíquias sugerem uma descrição do corpo como colecção,

tornando evidente a tensão entre partes e todo presente no corpo humano. A

impossibilidade de produzir uma descrição completa de pessoa sem referir

elementos exteriores e materiais relacionados física e conceptualmente com

esta, juntamente com a possibilidade de o corpo se fragmentar e desintegrar,

apontam igualmente uma noção de pessoa como colecção, isto é, enquanto todo

constituído por partes não só capazes de sustentarem uma descrição unificada

mas também esssenciais para essa descrição.

As conexões entre pessoa e extensões materiais são exploradas quer nos

relicários, quer nos gabinetes de curiosidades. Já foram notadas as semelhanças

físicas tanto entre determinados relicários e móveis de gabinetes de

curiosidades, como entre relicários e formas ou figuras humanas (braços,

cabeças ou corpos)144. Os casos de relicários com formas humanas prolongam a

dissolução de fronteiras entre pessoa e coisa implícita no conceito de relíquia.

(Os ex-votos de cera com formas humanas ou as velas com a altura da pessoa

que beneficiou ou beneficiará de uma promessa são outro exemplo.)

                                                            143 «É sempre difícil recordar conceitos abstractos, a não ser que estes assumam uma aparência física. [...] Os bens reunidos na propriedade apresentam  informação visível sobre a hierarquia de valores com que aquele que os escolheu se identifica.» (Douglas, Mary e Baron Isherwood. [1979] 2006. The World of Goods: Towards an Anthropology of Consumption. Londres e Nova Iorque: Routledge, viii‐ix.)  144 Bynum 2011.  

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Como constatámos a partir da casa-museu de John Soane, túmulos e

casas-museus podem igualmente ser descritos como extensões materiais de uma

subjectividade cuja dimensão material seria de outro modo difícil de descrever e

fixar. Podemos descrever as casas-museus como prolongamento dos santuários

que se organizavam em torno de relíquias de santos. No século XIX, os

admiradores de determinada personalidade visitavam a sua casa com o mesmo

respeito com que os peregrinos visitam os santuários. À semelhança da vida dos

santos homenageados nos santuários, a vida e a obra do proprietário da casa

eram vistas como exemplos e objecto de veneração. Pela sua contiguidade com

a vida do proprietário, os objectos da casa visitada assumiam um estatuto

equivalente ao das relíquias. Na mesma perspectiva, as produções artísticas ou

outras obras dos proprietários das casas, geralmente artistas, escritores ou

personalidades históricas seriam como milagres seculares. Visitar uma casa-

museu era considerado tão enriquecedor e pedagógico como conhecer a vida e a

obra dos santos145. O itinerário de ambas as peregrinações podia ser visto como

modo de educação espiritual. Aliás, esta aproximação entre o secular e o

sagrado é anterior à própria existência de relíquias cristãs. Os rituais cristãos

adaptaram práticas pagãs relacionadas com peregrinações a túmulos de heróis,

oráculos ou santuários, com recolha de recordações relacionadas com o lugar146.

Os gabinetes de curiosidades, em voga sobretudo entre meados do século

XVI até ao início do século XVIII, podem ser descritos como uma casa-museu

                                                            145 Compilações de milagres  e de vidas de Santos, como A Lenda Dourada, de Jacobus de  Voragine  (1260),  tinham  sido  êxitos  de  público  no  fim  da  Idade  Média.  Estas compilações eram reunidas e divulgadas com o objectivo pedagógico de dar o exemplo através da acção.  146 Freeman 2011, 9‐10.  

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123  

em miniatura dentro de uma casa. Em comum entre casas-museus e gabinetes

de curiosidades encontramos, por um lado, a diversidade dos objectos reunidos,

por outro, a organização destes através de associações subjectivas.

Quando surgiram, os gabinetes de curiosidades associavam-se à

aristocracia. Contudo, posteriormente também a burguesia em ascensão se

interessou por eles. A associação da burguesia às colecções relacionou-se com

uma tomada de posse do próprio destino por esta classe, que não se limitou a

aceitar o seu lugar num sistema preexistente. Para muitos burgueses, criar e

manter uma colecção funcionou como prolongamento deste empenhamento

activo na construção da própria vida, sendo entendido como afirmação das suas

capacidades pessoais perante os outros e para si mesmo.

Na tensão público/privado encenada dos gabinetes de curiosidades, estes

pólos estabelecem uma relação de complementaridade, não de oposição. Assim

como o gabinete de curiosidades se define em interacção com os espaços

distantes e exteriores na origem dos objectos da sua colecção, o eu do

coleccionador define-se em articulação com o outro, o interior define-se em

articulação com o exterior, o privado define-se em articulação com o público.

A relação entre estes pólos é clarificada pela própria composição destes

gabinetes. Os proprietários deste tipo de colecção caracterizam-se pela

preferência por objectos raros, únicos, singulares e exóticos, frequentemente

originários de regiões recém-descobertas ou mal conhecidas. Devido a esta

proveniência, tais objectos distinguem-se pelo seu carácter surpreendente. Nos

nichos, gavetas, prateleiras, caixas, molduras e cofres dos gabinetes de

curiosidades, os proprietários preservam e arrumam, ao mesmo tempo que

asseguram uma exposição ordenada. Integrando estes objectos nos seus

gabinetes de curiosidades, os coleccionadores relacionam-se com eles sem

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124  

perderem as suas qualidades extraordinárias. A tensão público/privado é

expressa por uma organização que arruma e fecha para poder mostrar e expor.

Paradoxalmente, o mais secreto, cifrado e hermético adquire valor através de

uma organização pública, ainda que o seu significado secreto possa não ser

decifrado por todos do mesmo modo.

A dimensão sociológica e performativa dos gabinetes de curiosidades

enquanto demonstração e concretização de um eu combina-se com a sua

dimensão mais filosófica. No gabinete de curiosidades, o coleccionador

relaciona o mundo consigo próprio, definindo a sua participação neste através

do carácter pessoal da organização, que traduz o modo como vê o universo e se

situa neste. (Isso é claro, por exemplo, nas telas que retratam o coleccionador no

seu gabinete de curiosidades, um género comum na altura.)

Hooper-Greenhill descreve os gabinetes de curiosidades como uma das

primeiras e mais abrangentes tentativas de concretização de uma interpretação

do mundo através da organização de objectos147. Visto que o significado dos

objectos se associa ao lugar que estes ocupam tanto material como

conceptualmente na rede de relações, analogias e hierarquias representada

nesta organização, descrever e perceber o estatuto de cada objecto e do próprio

universo material torna-se uma questão de interpretação.

Situando-se no centro do gabinete enquanto criador e proprietário deste,

o coleccionador participa da natureza divina através da integração,

contemplação, interpretação e eventual compreensão dos mecanismos de

criação do universo. Deste modo, afirma-se como agente e como criador (de

uma colecção, de si próprio, do seu próprio destino, da sua vida). Quando se fala

                                                            147 Hooper‐Greenhill 1992, 82.  

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125  

de «ruptura epistemológica»148 ou «escândalo epistemológico»149 dos gabinetes

de curiosidades está em causa este novo estatuto. Como observa David Martin,

estas colecções funcionam como «metáforas da criação»150.

A noção de complementaridade entre coleccionador e colecção está

presente tanto nos gabinetes de curiosidades como nas casas-museus. O

assombro dos visitantes dirige-se tanto aos objectos expostos como ao

coleccionador – ao seu investimento afectivo e monetário, à organização mental

e física da colecção e dos objectos pessoais.

As virtudes supostamente terapêuticas e milagrosas tanto das relíquias

como de alguns objectos dos gabinetes de curiosidades, assim como a presença

de múmias ou animais empalhados ou preservados nos segundos, permitem-

nos descrever ambos como solução para a preocupação com a perecibilidade da

matéria e a mortalidade. A preservação de cadáveres seria uma forma de vencer

ou contornar a morte. O recurso às supostas virtudes terapêuticas de alguns

objectos também.

Em suma, relíquias, relicários, gabinetes de curiosidades, casas-museus e

colecções sobrevivem à morte física do coleccionador ou do homenageado,

preservando, no entanto, a sua memória pela complementaridade e

entrosamento que neles se concretiza entre partes e todo, pessoas e coisas,

                                                            148 «Ocorre uma  ruptura epistemológica  importante no entendimento da posição do ser humano no mundo. Enquanto no período anterior o ser humano estava subsumido numa  cosmologia  hierarquizada,  e  o mundo,  o  existente,  era  compreendido  como expressão do Deus‐Criador, no período posterior o sujeito tenta encontrar um modo de  representar  o mundo  como  sua  própria  criação,  constituindo  parte  desta  luta  a emergência do sujeito como tal.» (Hooper‐Greenhill 1992, 84.)  149 Martin, David L. 2011. Curious Visions of Modernity: Enchantment, Magic, and the Sacred. Cambridge, MA: MIT Press, 50.  150 Martin 2011, 37‐38. 

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126  

coleccionador e colecção. Como nota Patrick Mauriès151, a predilecção por

objectos desprovidos de vida assegurou a persistência da memória de alguns

proprietários de gabinetes de curiosidades. Paradoxalmente, estas coisas sem

vida tornam a memória destes coleccionadores mais intensa e mais viva.

Segundo Mauriès, uma das características dos coleccionadores é a capacidade

de questionar as fronteiras entre a morte e a vida152.

Também a «arte da memória»153, uma prática desenvolvida pelos Gregos

que chegou à tradição europeia por intermédio da cultura romana, depende da

interacção do conceptual e do material. Muito sumariamente, de acordo com os

princípios gerais desta arte, alguém que queira recordar determinados tópicos

deve imaginar um espaço físico, como uma paisagem ou um edifício, e organizar

neste espaço objectos (imaginários) associados ao que pretende recordar. Para

recordar estes tópicos, deverá visitar mentalmente este edifício cumprindo um

trajecto predeterminado154.

                                                            151  «Não  é  controversa  a  sugestão  de  que  a  maioria  destes  coleccionadores esclarecidos preferia a natureza  imutável e  impassível dos objectos às  ilusões de um mundo num estado constante de fluxo e à turbulência das paixões humanas. E é esta predilecção por coisas deprovidas de vida – paradoxalmente – que agora as recupera para  a  nossa  vida,  e  de modo muito mais  nítido  que  qualquer  retrato,  por muito convincente  que  este  seja.»  (Mauriès,  Patrick.  [2002]  2011.  Cabinets  of  Curiosities. Londres: Thames & Hudson, 7.)  152 Mauriès 2011, 183.  153 Para mais  informação sobre este tópico, ver:   Yates, Frances. [1966] 2010. The Art of Memory. Londres: Pimlico e Carruthers, Mary J. 1990. The Book of Memory: A Study in Memory in Medieval Culture. Cambridge: Cambridge University Press.  154 Na transição entre a cultura clássica e a cultura europeia, a escolástica usou o texto De  Memoria  et  Reminiscentia,  de  Aristóteles,  como  justificação  filosófica  para  o recurso  à  técnica  da  «arte  da memória».  Ainda  que  as  referências  de  Aristóteles  à «arte da memória» não se desenvolvam com o objectivo de  justificar filosoficamente as suas práticas, mas sim para  ilustrar e consolidar as  linhas de força da descrição da memória do ensaio, os praticantes medievais da «arte da memória» e os que se  lhes 

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127  

Parece haver alguns elementos em comum entre coleccionadores e

praticantes da «arte da memória»155. Estas práticas baseavam-se numa noção de

memória relacionada com a ideia de que esta depende de uma organização (e,

portanto, requer um esforço deliberado, em vez de ser simplesmente passiva ou

espontânea) e é comparável a um espaço em que são armazenados conjuntos de

objectos através de associações racionais, emotivas ou imaginativas. Assim

como o praticante da «arte da memória» organiza num determinado espaço

físico e mental (real ou imaginário) imagens associadas por alguma ligação de

semelhança, contraste, diferença ou contiguidade ao que pretende recordar, um

coleccionador organiza objectos. Quando uma colecção está exposta num

determinado espaço, é possível visitá-la fisicamente para a observar, como o

adepto da «arte da memória» visita – mentalmente – o seu espaço para se

recordar.

                                                                                                                                                                              

seguiram apropriaram‐se da ideia aristotélica de que é impossível pensar sem imagens mentais,  tendo usado  esta noção para explicar e defender o  recurso  a  imagens e  à imaginação  na  «arte  da  memória».  A  teoria  da  memória  e  da  reminiscência  de Aristóteles  baseia‐se na teoria do conhecimento que este filósofo expõe no ensaio De Anima,  segundo  a  qual  a  imaginação  é  o  intermediário  entre  a  percepção  e  o pensamento: as percepções provenientes dos sentidos são recebidas pela imaginação, sendo o material do pensamento constituído pelas imagens formadas neste processo. De acordo com Aristóteles, o pensamento trabalha com estas  imagens mentais e não directamente  com  as  percepções  dos  sentidos.  Como  observa  Frances  Yates,  estas teorias  aristotélicas  agradaram  à  escolástica  pela  importância  que  atribuíam  às imagens  e  à  imaginação,  assim  sancionando  o  recurso  a  elementos  materiais  e artísticos  por  vezes  estranhos,  grotescos  ou  violentos  como  intermediários  dos conceitos  espirituais  pelo  seu  impacto  na  consciência  e  na memória  das  pessoas. (Yates 2010, 49)  155  Entre  estes,  Frances  Yates  destaca  Simónides, Giordano  Bruno, Giulio  Camillo  e Robert Fludd. Pensa‐se que a «arte da memória» seria uma técnica usada por oradores públicos  sem desejo de  recorrerem  a notas  ou  à  leitura  e por  outras pessoas  cujas funções exigissem  facilidade de recordar informação. Pode também ter sido adoptada com  fins  mais  espirituais  e  menos  práticos.  Para  um  referência  mais  popular  e contemporânea, Patrick Jane, o protagonista da série americana O Mentalista, recorre a esta técnica em alguns episódios com o objectivo de recordar certos pormenores. 

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128  

Como nas práticas da «arte da memória», fazer uma colecção implica

imaginar uma organização num determinado espaço mental e físico. Ao

contrário, porém, do que se verifica nas «artes da memória», mas à semelhança

dos gabinetes de curiosidades e dos santuários ou catedrais, os elementos

materiais de uma colecção constituem um ponto de ligação entre o intangível e o

tangível, o espiritual e o material, o interior e o exterior, o privado e o público.

Visto que as escolhas de imagens ou objectos imaginários de um

praticante da «arte da memória» não evocam necessariamente as mesmas

memórias noutras pessoas, podendo igualmente não exercer sobre estas

qualquer impacto afectivo que as torne memoráveis, a «arte da memória» teria

a vantagem de proteger a vertente mais privada do indivíduo e a desvantagem

de ser incapaz de garantir a inteligibilidade do sujeito na sua ausência. Como

nota William West156, os objectos imaginários da «arte da memória» não

constituem uma subjectividade nem a tornam compreensível.

Ainda que os gabinetes de curiosidades tenham sido associados à «arte

da memória» sobretudo devido ao carácter visualmente marcante dos seus

objectos e à vertente secreta do significado destes, os objectos destes gabinetes

reuniam características simultaneamente secretas e acessíveis, exóticas e

domésticas, privadas e públicas, decorativas e funcionais, elevadas e vulgares

que, como já vimos, facilitavam a apreensão pública do seu significado em

correlação com a subjectividade do seu proprietário.

A sobreposição entre memória e subjectividade parece falhar quando a

memória é associada a vertentes exclusivamente privadas, como nas práticas da

«arte da memória». Além disso, o modelo da memória como espaço em que é                                                             156 West, William. «‘No Endlesse Moniment’: Artificial Memory and Memorial Artifact in early Modern England», Radstone, Susanah e Katharine Hodgkin (eds.). Regimes of Memory. Londres: Routledge, 2003, 61‐75. 

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129  

armazenada informação inteligível apenas ao próprio sujeito é estático,

enquanto a memória é um mecanismo dinâmico assente na interacção do

subjectivo e do material e social.

Se recordarmos que as coisas materiais não são simplesmente exteriores

às pessoas, mas afectam e fazem parte da sua subjectividade e do próprio espaço

mental e físico que as pessoas ocupam, teremos de concluir que não é possível

descrever uma subjectividade sem referência a interacções materiais e sociais.

Deste modo, alguns objectos podem ser vistos como parte de uma

subjectividade e como elemento de uma pessoa que sobrevive depois da morte

desta.

3.2 Casas-Museus e ocupação de um espaço: o Museu Gardner

Em «A Origem da Obra de Arte», Heidegger sugere que, perante a obra

de arte, em vez de se perguntar «o que é?» se deve perguntar «onde está?»

Enquanto em resposta à primeira pergunta obtemos apenas uma lista de

propriedades, para respondermos à segunda precisamos de uma descrição

relacional157. Para Heidegger, um lugar não corresponde a uma mera localização

material, mas sim a um conjunto de acções de «negociação» de identidade – a

um «acontecimento» – num espaço material e conceptual partilhado colectiva e

publicamente. O conceito de «negociação de identidade» corresponde ao de

ocupação de uma posição no contexto físico e cultural em que se nasce através

da escolha de possibilidades de acção disponíveis nesse contexto158. Esta noção

                                                            157 Sobre este assunto, ver também Casey, Edward. S. [1997] 1998. The Fate of Place: A Philosophical History. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press.  158 Vamos explorar esta noção de modo mais aprofundado no sexto capítulo. 

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130  

associa-se assim às noções de pertença a um lugar e de concretização de uma

identidade geográfica, conceptual, cultural e social, em interacção com o que

nos rodeia.

De acordo com Heidegger, as pessoas e as coisas abrem um espaço; estão

num lugar, agem num lugar, isto é, estabelecem relações com o que está em

torno delas – um processo de autodefinição que ao mesmo tempo contribui para

definir o estatuto dos outros intervenientes nestas relações. Ser quem ou o que

se é depende da expressão permanente de uma posição num contexto material,

cultural e social.

Na mesma linha de pensamento, uma colecção corresponde à criação e

definição de uma posição conceptual e material através das relações que a partir

da colecção o coleccionador estabelece com o passado e o presente. Trata-se de

construir um território habitável: «o homem é na medida em que habita»159. De

acordo com esta perspectiva, podemos descrever uma casa-museu como um

espaço «aberto» ou construído por alguém com o objectivo de preservar as suas

(ou de outra pessoa) relações com as coisas. Esta preservação expressa uma

identidade ou uma presença no mundo.

Verificámos em relação à casa-museu de John Soane que o edifício e a

colecção não só cumpriam este objectivo como também manifestavam e

incentivam uma reflexão sobre ele. Vamos agora recorrer a mais um exemplo

de casa-museu de modo a clarificarmos estas noções.

Em 1898, Isabella Stewart Gardner (1840-1924) decidiu dedicar-se à

formalização de uma colecção160 e à construção de uma casa onde pudesse viver

                                                            159 Heidegger 2001, 145 («Construir, Habitar, Pensar», itálico no original).  160  Para mais  informação  sobre  esta  colecção  e  esta  coleccionadora,  ver  Goldfarb, Hilliard  T.  1995.  The  Isabella  Stewart  Gardner  Museum:  A  Companion  Guide  and 

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131  

com ela161 e expô-la. Esta coleccionadora viveu na sua casa-museu durante os

últimos 21 anos da sua vida162, período em que a colecção continuou a crescer.

Mesmo durante estes 21 anos a casa podia ser visitada como museu, visto que

abria ao público cerca de vinte dias por ano. Enquanto ali viveu, Stewart

Gardner usou as divisões do museu para actividades do dia-a-dia: escrever,

rezar, dar festas, acolher convidados durante temporadas (hábito que ainda hoje

é continuado através de residências artísticas).

Do ponto de vista arquitectónico, o próprio edifício é revelador do

espírito individual da coleccionadora. Visto do exterior, parece uma caixa de

tijolos amarelos, com uma dimensão modesta que contrasta com os edifícios

típicos dos museus da altura, mais semelhantes a templos ou tribunais. Por sua

vez, o interior do edifício concretiza a forte ligação afectiva da coleccionadora a

uma visão onírica de Veneza muito influenciada não só pela leitura de John

Ruskin, mas também pelas visitas da coleccionadora à cidade. As paredes

avistadas a partir do pátio interior têm um desenho semelhante ao das fachadas

                                                                                                                                                                              

History  (New  Haven  e  Londres:  Yale  University  Press.  Para  biografias  de  Isabella Stewart Gardner:   Carter, Morris. 1925.  Isabella Stewart Gardner and Fenway Court. Nova Iorque: Houghton Mifflin Co.; Tharp, Louise Hall. 1965. Mrs. Jack: A Biography of Isabella  Stewart  Gardner.  Boston:  Little,  Brown  and  Co.;  e  Shand‐Tucci,  Douglass.  1998.  The Art  of  Scandal:  Life  and  Times  of  Isabella  Stewart Gardner. Nova  Iorque: HarperCollins.  161  Sabemos  através  da  correspondência  de  Isabella  Stewart  Gardner  que  esta possibilidade de viver com a colecção era muito  importante para ela. Por exemplo, a coleccionadora  diz  numa  carta  a  Bernard  Berenson  que  a  circunstância  de  poder observar certos quadros sempre que lhe apetecesse, a qualquer hora do dia, lhe trazia uma grande  felicidade  (Shand‐Tucci 1998, 177‐178). O mesmo é verdadeiro para um coleccionador  como Henry Clay Frick, que  também  construiu uma  casa‐museu. Frick chegava mesmo  a  levar  com  ele  quadros  da  colecção  para  decorar  a  casa  em  que passava  férias.  (Sanger, Martha Frick Symington. 1998. Henry Clay Frick: An  Intimate Portrait. Nova Iorque: Abbeville Press.)  162 Mudou‐se para lá em 1903.   

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132  

dos palácios venezianos virados para canais. A casa, aliás, costuma ser descrita

como um edifício virado do avesso: é como se o exterior estivesse no interior.

O espólio do museu é constituído pelos objectos que Isabella Stewart

Gardner foi usando e reunindo ao longo da vida. A primeira peça comprada com

o objectivo de criar uma colecção para o público terá sido um auto-retrato de

Rembrandt, em 1896, ainda antes de o projecto da construção da casa-museu se

formalizar. Antes disso, no entanto, já a coleccionadora tinha adquirido

objectos que conservava. Não só fazia compras nas suas numerosas viagens,

como por vezes preenchia álbuns em que registava as suas impressões ao lado

de fotografias, desenhos ou outras recordações (bilhetes de viagem, folhas ou

flores secas, etc.). Na sua casa, estas recordações aparecem expostas ao mesmo

nível das peças reunidas depois do início oficial da colecção.

O espaço do edifício divide-se em salas, identificadas através de

designações relacionadas ou com cores (sala azul, sala amarela), ou com nomes

de artistas (sala Macknight, sala Veronese), ou com períodos artísticos (sala

gótica), com países (sala holandesa) ou objectos (sala das tapeçarias). Estas

designações, no entanto, não são totalmente descritivas. O lugar das peças foi

definido livremente pela coleccionadora, que se baseou em associações pessoais

ou em ligações temáticas, formais ou até anedóticas entre os objectos: repetição

de cor, repetição de figuras ou padrões, ou mesmo ligações por vezes subtis

entre pintores e obras.

Uma das divisões em que este sistema subjectivo de sugerir ou criar

ligações se identifica com clareza é a sala holandesa, um dos espaços mais

conhecidos do museu, não só pelo valor dos seus quadros, mas também pelo

facto de ter sofrido o maior número de baixas quando, em 1990, o museu foi

assaltado. Visto que a organização do museu não pode ser alterada,

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133  

permanecem na parede molduras vazias no lugar das obras roubadas. Esta era a

sala de O Concerto de Vermeer ou de Tempestade no Mar da Galileia, de

Rembrandt. Ainda é uma sala com quadros entre os quais é possível estabelecer

algumas ligações mais ou menos subterrâneas. As conexões estabelecem-se a

partir de coincidências, geralmente coincidência de interesses (por colecções,

por arte, por determinados mestres da pintura – Ticiano, Rubens). Para

exemplificar: o retrato de Thomas Howard (duque de Arundel), conhecido

coleccionador, foi pintado por Rubens, também ele coleccionador163. Neste

quadro, Thomas Howard enverga uma armadura que parece ter origem num

outro retrato, da autoria de Ticiano, artista que Rubens admirava ao ponto de

ter realizado uma cópia do Rapto de Europa, obra também presente no museu.

Nesta mesma sala encontramos Senhora com Rosa, um retrato da autoria de

Van Dyck, discípulo de Rubens.

Por sua vez, a sala Ticiano, além de incluir talvez o quadro mais

importante e apreciado de toda a colecção (o já referido Rapto de Europa, de

Ticiano), talvez seja não só a divisão mais relacionada com a atmosfera de

Veneza que Stewart Gardner quis captar em memória do Palazzo Barbaro, a

casa que tantas vezes alugou quando passou temporadas na cidade, mas

também a sala com uma organização que mais claramente nos ajuda a descrever

os critérios de exposição do museu. A partir de elementos pictóricos do quadro

de Ticiano – como o tom róseo tanto da pele de Europa como do crepúsculo,

um anjinho a um canto da tela sobre um peixe ou a água que parece prestes a

salpicar o observador – na sala temos paredes vermelhas, um tapete persa do

século XVI que repete os tons do quadro e, numa mesa por baixo do quadro,

                                                            163  Para  mais  informação  sobre  o  duque  de  Arundel,  ver  o  terceiro  capítulo    de Stourton 2012, 49‐55. 

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134  

uma escultura com um anjo reproduzindo a pose do anjo no quadro, uma salva

decorada com um padrão que parece repetir os salpicos de água da tela, e uma

aguarela atribuída a Van Dyck, que supostamente a terá realizado a partir da

cópia do mesmo quadro de Ticiano levada a cabo por Rubens. Por cima das

mesas, logo por baixo do quadro, um fragmento de um vestido de seda de

Isabella Stewart Gardner.

Neste museu não encontramos qualquer tentativa de ilustrar períodos da

História da arte. Deparamos com uma combinação idiossincrática de objectos,

alguns dos quais (por exemplo, o pedaço de vestido da coleccionadora) não

podem sequer ser considerados obras de arte, devendo antes ser descritos como

souvenirs e recordações164.

Aos visitantes, Stewart Gardner queria possibilitar não propriamente

educação, mas o mesmo prazer imediato que a arte e os objectos da sua colecção

lhe suscitavam. Por cima de uma das portas de entrada do museu podemos

encontrar a inscrição «C’est mon plaisir». Como sugere esta inscrição, a casa

expressa uma sensibilidade, devendo os objectos ser vistos como parte de uma

experiência subjectiva, como partilha de uma subjectividade e como convite a

uma experiência sensorial e pessoal dos próprios visitantes.

Ao contrário do que se verifica em museus mais próximos das

taxonomias do século XIX, no museu de Isabella Stewart Gardner não há

                                                            164 O termo «souvenir» diz respeito a objectos mais convencionais ou estereotipados, geralmente à venda em lojas para turistas. O termo «recordação» refere‐se a objectos menos estereotipados, preservados em associação a   experiências  individuais. Ainda assim, há alguns pontos em comum entre estes termos. Em inglês, o termo «souvenir» abrange estes dois  sentidos. Mesmo em português, em  certos  casos estas acepções sobrepõem‐se: um objecto para turistas pode adquirir um significado mais pessoal. 

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135  

fronteiras claras nem entre as artes165, nem entre a arte e a vida. Os objectos de

uso quotidiano166, os souvenirs e as recordações são colocados ao mesmo nível

da arte. Também o facto de esta casa se desdobrar em museu sugere o desejo

de anular a distinção entre, por um lado, o espaço tradicional do museu

(hierárquico, taxonómico, educativo) e, por outro, o espaço da vida e da

colecção pessoal.

Casas-museus como a de Isabella Stewart Gardner ajudam-nos a

produzir uma descrição de colecção não apenas como conjunto de objectos

desligados do seu uso, mas como conjunto de objectos integrados numa vida.

Este museu também nos ajuda a descrever a vida das pessoas de modo

unificado, sem fronteiras desnecessárias entre dimensões complementares,

ainda que habitualmente consideradas autónomas.

A tensão privado/público é evidente na casa-museu de Isabella Stewart

Gardner. Como nos gabinetes de curiosidades, há elementos privados ou

secretos e públicos. Por um lado, encontramos elementos conhecidos e

valorizados colectivamente como arte; por outro, objectos privados cujo

significado e valor se tornam acessíveis apenas a partir de suposições, de

mecanismos de projecção empática e de uma descrição unificada, capaz de

articular partes e todo, objectos e vida.

                                                            165 A arte pictórica e a arquitectura combinavam‐se com a música, por exemplo, devido aos  inúmeros  concertos  que  a  coleccionadora  organizava  e  os  continuadores continuam a organizar.  166 Mobília, mesas postas, jarras com flores.  

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Reflectindo sobre souvenirs167, Susan Stewart168 assinala algumas

características que clarificam a associação entre objectos, memória e

subjectividade. O princípio em questão nos souvenirs tem algumas semelhanças

com os princípios da «arte da memória». Também no caso dos souvenirs, as

pessoas associam elementos materiais a experiências difíceis de fixar material e

conceptualmente quando adquirem objectos relacionados com uma

experiência geralmente realizada fora do contexto mais familiar, por exemplo

uma viagem.

Os souvenirs, assim, estão ligados à noção de percurso (material e

conceptual) num determinado espaço físico. Ao mesmo tempo, na medida em

que podem ser descritos como uma recordação fora do corpo (e da consciência)

das pessoas169, parecem concretizar uma exteriorização da memória. Por se

aliarem à recordação de um percurso no espaço físico, por um lado, e pelo facto

de se situarem no exterior do corpo do sujeito, por outro, ajudam-nos a

demonstrar que a memória das pessoas não é unicamente subjectiva e privada,

mas implica uma dimensão pública tanto por depender de experiências

realizadas num espaço físico comum a várias pesssoas, como por poder ser

identificada e parcialmente partilhada através de um objecto material que fez

parte da experiência recordada, tornando-a assim material e visível.

                                                            167  Em  Stewart,  o  termo  «souvenir»  tem  sempre  o  duplo  significado  que  já identificámos (objecto para turistas ou objecto mais pessoal).   168 Stewart 2007, 132‐151.  169 «[Uma] memória no exterior do sujeito e assim apresentando um excedente e uma falta de  significado. A experiência do objecto  situa‐se no exterior da experiência do corpo» (Stewart 2007, 133).  

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137  

Depois de descrever deste modo os souvenirs, Stewart procura distingui-

los de, por um lado, ferramentas, por outro, objectos de colecção170. A distinção

entre souvenirs e objectos de colecção proposta por Stewart é, contudo, definida

a partir de uma antinomia discutível. Stewart associa os souvenirs à memória e

as colecções ao esquecimento171. Na oposição proposta por Stewart, enquanto o

souvenir desvia a atenção para o passado, «envolvendo o presente no

passado»172, a colecção é um espaço de sincronia, desprendido das coordenadas

da História; enquanto o souvenir é um objecto de nostalgia, indissociável do

passado, a colecção é um espaço de antecipação, orientado para o futuro.

De acordo com Stewart, o arquétipo de todas as colecções é a Arca de

Noé. À semelhança dos animais da Arca de Noé, os objectos de colecção foram

desligados da sua origem com o objectivo de proporcionar um novo começo.

Para Stewart, todas as colecções podem ser relacionadas com esta possibilidade

de começar de novo, sem olhar para trás.

Contra Stewart, visto que não só grande parte do valor dos objectos de

colecção se relaciona com o seu passado e a sua História, mas também porque

poucos coleccionadores serão indiferentes ao percurso dos objectos da sua

colecção no tempo, é errado defender que a colecção ignora totalmente o

passado. Se é verdade que a colecção é importante no presente e pode

desencadear novas práticas, não é certo que estas novas práticas sejam

                                                            170 Segundo esta ensaísta, souvenirs,  ferramentas e objectos de colecção partilham o mesmo estatuto de concretização material ou de exteriorização de conteúdos mentais das pessoas no espaço físico.  171 «Enquanto o objectivo associado ao souvenir pode ser recordar, ou pelo menos a invenção da memória, o objectivo da colecção é o esquecimento – começar outra vez de  modo  que  um  número  finito  de  elementos  possa  criar,  em  virtude  da  sua combinação, um devaneio infinito.» (Stewart 2007, 152.)  172 Stewart 2007, 150. 

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138  

totalmente independentes das práticas anteriores. Pelo contrário, muitas destas

práticas são possíveis pelo facto de o objecto ter previamente adquirido

importância histórica e por esse motivo ter sido preservado.

Como constatámos a propósito da casa-museu de John Soane, uma

colecção parece associar-se a uma perspectiva panorâmica em que passado,

presente e futuro são simultaneamente tomados em consideração. Neste

sentido, a conexão entre colecção e esquecimento do passado revela-se

inadequada.

Na verdade, o erro principal do raciocínio de Susan Stewart parece residir

na descrição da colecção como «mundo autónomo», independente das

«narrativas individuais» dos seus elementos173 . Temos visto que um dos traços

distintivos das colecções e até dos museus é a sua abertura tanto ao presente e

ao futuro como ao passado.

Segundo Stewart, os coleccionadores seriam simplesmente motivados

pelo desejo de encenar a sua identidade, sendo a colecção um adereço

conceptual da dimensão individual e da consciência interior do coleccionador.

Na perspectiva desta ensaísta, assim como as pessoas usam as ferramentas para

transformar o mundo material numa extensão física das necessidades e dos fins

do corpo174, os coleccionadores usam os objectos de colecção para «internalizar»

o espaço físico175.

                                                            173 Stewart 2007, 152‐153.  174 Stewart 2007, 102.  175  «Quando  os  objectos  são  definidos  nos  termos  do  seu  valor  de  uso,  funcionam como extensões do  corpo no meio, quando os objectos  são definidos pela  colecção essa extensão  inverte‐se, contribuindo para  integrar o meio num guião do pessoal. O último  termo  na  série  que  marca  a  colecção  é  o  ‘eu’,  a  articulação  da  própria ‘identidade’ do coleccionador.» (Stewart 2007, 162‐163.) 

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139  

A perspectiva exposta nas distinções entre, por um lado, souvenirs e

objectos de colecção ou, por outro, ferramentas e objectos de colecção recorda a

tradição que atribui às colecções e aos museus o ónus da descontextualização e

expressa uma descrição da actividade de coleccionar perigosamente próxima

daquela de colecção como prática solipsista que Baudrillard176 ajudou a definir,

na qual parece não haver possibilidade de escapar ao espaço conceptual e

privado do sujeito177.

A descrição da actividade de coleccionar como simples processo de

aquisição ou apropriação toma em consideração apenas os aspectos mais

subjectivos e privados desta actividade, ficando por explicar a sua vertente

exterior, pública e social, relacionada com a organização e exibição dos objectos

coleccionados. Além disso, a descrição de colecção como mera apropriação

baseia-se numa noção de «eu» que não toma em consideração os aspectos

colectivos, sociais, culturais ou familiares que ajudam a definir cada pessoa,

preferindo antes associar esta categoria a uma dimensão conceptual178

supostamente desligada do espaço social.

Do mesmo modo, pressupõe a possibilidade de uma noção de objecto

redutível a uma descrição exclusivamente de teor conceptual que já contestámos

no primeiro capítulo desta tese. Nessa secção defendemos que visto que os

                                                            176 Baudrillard, Jean. [1968] 2014. Le système des objets. Paris: Gallimard.  177 Baudrillard afirma claramente: «qualquer que seja a abertura de uma colecção, há nela  um  elemento  irredutível  de  não‐relacionamento  com  o  mundo»  e  «o coleccionador procura reconstituir um discurso trasparente a si próprio, de que detém os significantes e cujo referente é ele próprio». (Baudrillard 2014, 149.)  178  «Os  objectos  […]  deixam  de  ser  apenas  um  corpo material  que  resiste,  para  se tornarem  um  recinto  mental  em  que  reino,  as  coisas  cujo  significado  sou  eu.» (Baudrillard 2014, 120.)  

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140  

elementos conceptuais se relacionam com componentes materiais, a

compreensão humana não implica apenas elementos conceptuais. Na relação

entre objectos e pessoas, os primeiros abrem um espaço em relação aos quais as

segundas se situam conceptual e materialmente, manifestando diferentes

possibilidades ontológicas ao longo do tempo, conforme certas características

são ou não valorizadas nas práticas em que as pessoas os integram. O estatuto

ontológico dos objectos depende da interacção de pessoas e objectos, não

podendo ser reduzido simplesmente nem a conceitos prévios nem a

propriedades materiais.

A distinção entre objectos de colecção e souvenirs não tem a ver com a

associação ao esquecimento dos primeiros e a associação dos segundos à

memória, ao contrário do que propõe Susan Stewart, mas antes com a

orientação pública e colectiva das colecções. Como a própria Susan Stewart

reconhece179, a actividade de coleccionar desenvolve-se através de uma

dialéctica entre interior e exterior, público e privado, valor afectivo e valor

comercial, memória e História. Como se verifica em relação a certos elementos

da casa-museu de Isabella Stewart Gardner, enquanto, na maior parte dos

casos, um souvenir tem um significado relacionado com associações privadas,

assumindo um valor insignificante para quem não conheça estas associações180,

                                                            179  «Não  é  suficiente  dizer  que  a  colecção  se  organiza  de  acordo  com  o  tempo,  o espaço  ou  as  propriedades  intrínsecas  dos  objectos  em  si,  porque  cada  um  destes parâmetros  se  divide  numa  dialéctica  entre  interior  e  exterior,  público  e  privado, significado e valor de troca. Organizar os objectos de acordo com o tempo é  justapor tempo pessoal e  tempo  social,  autobiografia e História, e  assim  criar uma  ficção da vida individual, um tempo do sujeito individual tanto transcendente como paralelo ao tempo histórico.» (Stewart 2007, 154.)  180 Mary Berenson, mulher de Bernard Berenson, o especialista em arte renascentista e  negociante  de  arte  que,  entre  outros,  ajudou  Stewart  Gardner  a  reunir  a  sua colecção de arte, disse que esta casa lembrava mais uma loja de velharias do que um 

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141  

os objectos de colecção implicam ou suscitam reconhecimento ou desejo de

validação públicos e colectivos. Um coleccionador que não deseja partilhar a sua

colecção é comparável a alguém que paradoxalmente opta por falar numa

linguagem privada, comunicando apenas consigo mesmo, sem qualquer

possibilidade de ser entendido. É um coleccionador ininteligível.

O caso de Isabella Stewart Gardner é particularmente interessante pelo

facto de a coleccionadora colocar ao mesmo nível souvenirs e obras de arte da

sua colecção formal, assim reforçando a noção de indistinção entre vertentes

subjectivas e privadas, e vertentes objectivas e públicas, na medida em que

considera equivalentes objectos associados a experiências privadas e obras de

arte que suscitam reconhecimento público generalizado. Esta equivalência entre

souvenirs e peças de uma colecção formal impossibilita qualquer distinção

destes objectos.

Mesmo numa casa-museu tão encenada e tão pensada até ao último

pormenor como a de John Soane, já tínhamos chamado a atenção para a

indistinção entre espaço da colecção e espaço da vida quotidiana. Neste exemplo

de Londres, não só a casa-museu continua a incluir áreas que tiveram usos

domésticos, como a própria colecção ocupa estas zonas. Outro exemplo de

sobreposição entre colecção e vida quotidiana relaciona-se com a circunstância

de os fragmentos de edifícios ou de esculturas – peças verdadeiramente

distintivas da colecção – serem usados como fonte de inspiração na actividade

                                                                                                                                                                              

museu.  Mais  recentemente,  em  2010,  Holland  Cotter (http://www.nytimes.com/2010/01/15/arts/design/15museums.html?pagewanted=all&_r=0) disse que o museu  lhe  lembrava um sótão, o espaço onde habitualmente são arrumados  os  objectos  que  deixaram  de  ser  úteis.  É  a  opinião  de muitos  visitantes pouco familiarizados quer com a vida da coleccionadora quer com os seus objectivos ao construir o museu. Estes visitantes  ficam confusos com a  indistinção entre arte e vida, vida e casa, objectos e vida, souvenirs e colecção.  

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142  

profissional de Soane e dos seus colaboradores. De modo semelhante, a casa-

museu de Isabella Stewart Gardner inclui souvenirs e objectos da vida

quotidiana da coleccionadora. Estas sobreposições permitem sugerir que os

objectos da colecção não só não podem ser desligados das restantes dimensões

da vida dos coleccionadores, como também são essenciais para a sua definição.

Se uma colecção pode ser descrita como extensão da identidade e da

existência do coleccionador, a noção de «colecção» tem de incluir tudo o que

está em seu torno – tudo o que a contextualiza e lhe dá significado.

Alasdair MacIntyre salientou181 que a inteligibilidade da identidade

humana implica a capacidade de se produzir uma descrição coerente dos

episódios e das diversas dimensões da existência individual ao longo do tempo.

Sem memória, isto é, sem a capacidade de relacionarmos o passado com o

presente em direcção ao futuro, integrando os diferentes momentos, objectos,

pessoas e espaços da nossa vida, nenhuma identidade unitária será inteligível.

No mesmo sentido, só obteremos uma compreensão do papel das colecções se

as relacionarmos com as outras dimensões da vida dos coleccionadores182.

Ao contrário de Susan Stewart, Baudrillard não afirma que uma colecção

implica necessariamente esquecimento. Em vez disso, propõe que os

coleccionadores adoptam uma perspectiva que se sobrepõe à linearidade

cronológica.

                                                            181 MacIntyre, Alasdair. [1981] 2011. After Virtue. Londres: Bristol Classical Press, 204‐225.  182  «[P]ara  identificarmos  e  compreendermos  correctamente  o  que  alguém  está  a fazer,  temos  sempre  de  situar  o  episódio  particular  no  contexto  de  uma  série  de histórias narrativas, histórias tanto dos  indivíduos em questão como dos cenários em que estes agem e são afectados.» (MacIntyre 2011, 211.)  

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143  

Baudrillard sugere que os coleccionadores usam os objectos para se

extraírem da irreversibilidade do tempo e das singularidades da História através

das descontinuidades temporais estabelecidas pelos anacronismos da

organização destes objectos no espaço físico e mental da colecção: «Não

podemos viver na singularidade absoluta, na irreversibilidade assinalada pelo

momento do nascimento, e é precisamente este movimento irreversível do

nascimento para a morte que os objectos ajudam as pessoas a enfrentar.» 183 De

acordo com esta perspectiva, as colecções podem ser descritas como interrupção

da irreversibilidade, pela atenção que podem chamar para as descontinuidades,

as interrupções e as diferenças, mas também as semelhanças, as sobreposições,

as coincidências e as repetições, entre o passado e o presente, através da

colocação lado a lado de objectos de proveniências diferentes nas colecções.

Neste ponto concordamos com Baudrillard. Tal como Soane constrói uma

casa-museu que sobrevive através da integração dos seus efeitos da passagem

do tempo e das suas intimações da mortalidade, os coleccionadores usam o

passado para subverterem a linearidade cronológica. Esta resistência à

irreversibilidade e à linearidade não se processa através do esquecimento do

passado, mas antes através da integração deste no presente e da sua projecção

para o futuro.

O significado dos objectos é recordado e actualizado através de novas

interacções determinadas pelas aspirações e necessidades do presente. O

passado assume assim uma presença activa no presente, contribuindo para a

construção do significado do presente enquanto é por este usado e

reactualizado. Deste modo, as colecções não podem ser desligadas da memória.

                                                            183 Baudrillard 2014, 135. 

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144  

Pelo contrário, as colecções podem ser um sustentáculo da memória,

assegurando a presença viva e significativa do passado no presente.

Por último, a integração de recordações e souvenirs pessoais no espaço

público da colecção que se verifica na casa-museu de Isabella Stewart Gardner

consolida a noção heideggeriana de vida como processo de construção de um

território habitável através do estabelecimento de relações físicas e conceptuais

com outras pessoas e coisas.

A noção de «construção de um espaço» chama a atenção para a

necessidade de investimento pessoal activo em cada existência individual. A

identidade individual corresponde a um lugar em construção, não a uma

essência preexistente às suas acções. Para construir um espaço, cada pessoa usa

elementos materiais associados a conceitos, valores, relações sociais, definindo

a sua identidade entre as identidades das outras pessoas e das outras coisas.

Como sugere Heidegger, perceber quem alguém é ou o que alguma coisa

é implica perceber onde essa pessoa ou essa coisa estão. Por implicar a

construção de um lugar, uma colecção faz parte da procura de inteligibilidade

das pessoas em face das coisas e das outras pessoas. A ideia heideggeriana de

espaço como «acontecimento» associa-se à ideia de a identidade ser um lugar

em construção. Um lugar é um acontecimento porque resulta da interacção das

pessoas e das coisas.

Em conclusão, a articulação material de dimensões imateriais ou

conceptuais que temos vindo a assinalar a propósito de túmulos, monumentos a

santos ou heróis, gabinetes de curiosidades e práticas da «arte da memória»

permite-nos sugerir que os elementos materiais ajudam a descrever, a

concretizar e a presentificar elementos imateriais. Se isto se verifica, é porque as

pessoas tendem a compreender elementos situando-os num espaço relacional

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145  

que é não só físico mas também conceptual, visto que inclui também as relações

entre os elementos que nele se localizam. Esta localização facilita as actividades

de pensar e verbalizar pensamentos sobre assuntos imateriais.

A propósito dos coleccionadores dos romances The Spoils of Poynton e

The Golden Bowl de Henry James, Bill Brown184 nota como coleccionar pode

servir tanto para organizar afectos como para esclarecer os próprios

pensamentos do coleccionador. Em The Spoils of Poynton, à actividade de

coleccionar é atribuída a capacidade de canalizar anseios abstractos para

objectos particulares185. Em The Golden Bowl, Bill Brown associa a actividade

de coleccionar de Adam Verver ao desejo de tornar físicos ou concretizar

pensamentos e emoções, de modo a mais facilmente lidar com estes: «James

intensifica e expande qualquer compreensão do instinto para a acumulação [...]

representando o pensamento como modo de acumulação e assim tratando a

actividade de Adam Verver de reunir raridades europeias como a versão

meramente física de um processo mental que é em grande medida o processo de

tornar os pensamentos físicos.»186; «[é] como se a intensidade da paixão por

coleccionar dos Ververs [...] precipitasse uma capacidade para objectivar

pensamentos e emoções e para se imaginar que se lida com eles fisicamente»187.

                                                            184 Brown, Bill. 2003a. A  Sense of Things: The Object Matter of American  Literature. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 162.  185 Na visita que Fleda Vetch faz à casa do pai em West Kensington, este aconselha‐a a fazer uma colecção: «Não importava de quê. Ela ia sentir que isso tornava a vida mais interessante.»  (citado  em  Brown  2003a,  163).  De  acordo  com  esta  personagem,  a actividade  de  coleccionar  estabilizaria  impulsos  e  desejos  vagos,  permitindo‐lhes adquirir expressão material.  186 Brown 2003a, 163‐164.  187 Brown 2003a, 165.  

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146  

Reflectindo sobre a importância que objectos como jarros, urnas ou

outros recipientes assumiram tanto na vida das pessoas desde o início da

História como em alguma filosofia, Barbara Johnson nota que estes objectos

talvez se destaquem pela circunstância de, por conterem vazio no seu interior,

poderem dar forma ao que antes era informe188. No ensaio «A Coisa»,

Heidegger afirma a, a propósito de um vaso, que: «[a] coisidade [...] não reside

no material que o constitui mas no vazio que este abrange.»189 Nesta linha de

pensamento, os objectos podem sucessivamente conter e ir dando forma a

diferentes conceitos.

Por outras palavras, os objectos adquirem significado a partir das

conexões conceptuais e físicas que as pessoas estabelecem com eles. Para se

perceber o que é um objecto, são importantes não só as suas características

físicas e a intenção original da sua produção, mas também as práticas de que vai

fazendo parte ao longo do tempo. Appadurai190 chama a atenção para a

importância de estudar as «vidas sociais» dos objectos, em vez de se tomar em

consideração apenas a relação destes com o contexto de origem. Por implicar a

trajectória histórica dos objectos e a interacção pessoal e social das pessoas com

estes objectos, a abordagem defendida por Appadurai amplia a descrição tanto

dos objectos como das pessoas.

                                                            188 Johnson 2008, 70.  189  Heidegger, Martin.  [1949]  2001.  «The  Thing»,  Poetry,  Language  Thought,  Trad. Albert Hofstadter. Nova Iorque: HarperPerennial, 167.  190  Appadurai,  Arjun.  [1986]  2006.  «Introduction:  Commodities  and  the  Politics  of Value»,  The  Social  Life  of  Things:  Commodities  in  Cultural  Perspective,  Cambridge: Cambridge University Press, 3‐63.  

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147  

Assim se explica como alguns objectos são valorizados por terem

pertencido a determinadas pessoas. Por vezes a identidade do coleccionador que

a colecção manifesta é definida através da ligação com um proprietário de um

objecto no passado. No caso de Isabella Stewart Gardner, como vimos, certas

telas foram adquiridas pela sua ligação a outros coleccionadores, como Rubens

ou Thomas Howard (duque de Arundel).

Como sugerimos na introdução desta tese, por meio de cada objecto de

colecção, o coleccionador integra-se numa «família artificial» constituída pelos

proprietários dos objectos ao longo do tempo. Assim como o património

genético de cada pessoa partilha elementos do património genético de

antepassados e familiares, não podendo ser descrito sem esta referência,

também o património de um coleccionador integra elementos dos que o

precederam enquanto proprietários dos objectos da sua colecção. Tal ligação ao

passado evidencia a dimensão colectiva e pública tanto de cada pessoa como de

cada colecção. A dimensão pública da colecção está igualmente evidente na

organização e na própria necessidade de exposição da colecção.

Como vimos constatando, na cultura ocidental há uma associação antiga

entre memória, subjectividade e materialidade. Esta associação consiste em

representar a memória e a subjectividade através de metáforas ou objectos que

lhes dão substância e as tornam comunicáveis. Objectos e metáforas materiais

não só podem representar a memória e a subjectividade como lhes dão forma

inteligível.

Como verificámos a propósito tanto da casa-museu de John Soane como

da casa-museu de Isabella Stewart Gardner, na tensão privado/público muito do

que é privado é partilhável publicamente a partir de um suporte material – um

objecto, uma casa, uma colecção. Convém, no entanto, reflectir um pouco mais

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148  

sobre os modos mais ou menos imperfeitos como esta partilha se processa. Esse

será o nosso objectivo nos próximos capítulos.

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149  

4. Coleccionadores e outras pessoas

«[A]s actividades no friso do Parténon, andar a cavalo, estar sentado, parecem dolorosamente reais no contexto deste reino transcendente [o British Museum]. Que eles tenham corpos não surpreende, mas que eles os usem como nós, sim.»

Robert Harbison191

4.1 Intersubjectividade, partilha e participação: a Fundação Menil

Este capítulo toma como ponto de partida algumas frases que a

coleccionadora Dominique de Menil192 escreveu no prefácio do catálogo da

sua colecção. Dominique de Menil (1908-1997) era filha de Louise Delpech

Schlumberger e Conrad Schlumberger, físico que inventou um mecanismo

electromagnético capaz de detectar depósitos subterrâneos de petróleo e fundou

com o irmão uma empresa de extracção de petróleo que gerou uma grande

fortuna. Em 1931 Dominique casou com o banqueiro Jean de Menil (1904-

1973), que viria a assumir a presidência da empresa da família e a partilhar o

entusiasmo de Dominique pela arte e pelas colecções193.

                                                            191 Harbison, Robert. [1997] 2000. Eccentric Spaces. Cambridge, MA e Londres: The MIT Press, 148.  192 Para mais informação biográfica, ver  Gere, Charlotte e Marina Vaizey. 1999. Great Women Collectors. Londres: Philip Wilson Publishers, 185‐190. Sobre as actividades da Fundação Menil,  ver  o  interessante  Smart,  Pamela  G.  2010.  Sacred Modern:  Faith, Activism, and Aesthetics in the Menil Collection. Austin: University of Texas Press.  193  De  assinalar  que  são  conhecidos  muitos  outros  casais  de  coleccionadores importantes  nos  Estados   Unidos  durante  os  século  XX: Robert  (1917‐1986)  e  Ethel Scull (1921‐2001); Burton (1901‐1991) e Emily Tremaine (1908‐1987); Paul (1907‐1999) e  Rachel  «Bunny»  Mellon  (1910‐2014);  Charles  (1895‐1986)  e  Jayne  Wrightsman (1919); Donald (1909‐1966) e Mary Hyde (1912‐2003); Victor (1913‐1987) e Sally Ganz (1912‐1997);  e  Dorothy  (1935)  e  Herb  Vogel  (1922‐2012),  entre  outros.  (Para mais informações sobre estas colecções, ver Stourton, James. 2002. Great Collectors of Our 

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150  

Dominique de Menil foi educada como protestante mas converteu-se ao

catolicismo em 1932. O ethos humanista das suas actividades como

coleccionadora relaciona-se não só com o interesse do casal pela defesa do

ecumenismo inspirador da obra e das actividades do padre Yves-Marie-Joseph

Congar (1904-1995), mas também com a orientação e o incentivo do padre

dominicano Marie-Alain Couturier (1897-1954), grande defensor da presença de

arte em espaços religiosos194.

Os Menil emigraram para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra

Mundial, na sequência da ocupação nazi de Paris. Depois de passarem por Nova

Iorque, fixaram-se em Houston, Texas, onde hoje se situa a Fundação Menil,

com sede num espaço que inclui, entre outros elementos, o Museu Menil, o

Pavilhão Cy Twombly (concebido por Renzo Piano e terminado em 1992), a

instalação de Dan Flavin em Richmond Hall, a Capela de frescos bizantinos, e a

Capela Rothko (terminada em 1971 como espaço ecuménico, aberto a todas as

religiões). Segundo Dominique de Menil, o início oficial da Colecção Menil terá

sido em 1945, com a compra de Jean de Menil de uma aguarela de Cézanne

(Montanha, 1895). Antes de 1945, no entanto, já o casal tinha adquirido obras

de arte.

                                                                                                                                                                              

Time:  Art  Collecting  Since  1945.  Londres:  Scala.)  A  existência  de  casais  de coleccionadores aponta para a vertente social da actividade de coleccionar.  194  Entre  outras  actividades,  Marie‐Alain  Couturier  encarregou  Henri  Matisse  da decoração da Capela de St Paul de Vence, encomendou a Le Corbusier o projecto da Notre Dame‐du‐Haut em Ronchamp, e convidou artistas como Fernand Léger e Henri Rouault a produzir obras para a decoração de diversas igrejas francesas.  

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151  

Escrito por Dominique de Menil, o prefácio do catálogo da Colecção

Menil195 expressa todo um programa em que a colecção, as actividades e os

espaços da Fundação Menil se relacionam com «as maiores aspirações da

humanidade». O prefácio termina com esta frase: «Os princípios estéticos e

morais que [John de Menil] defendia corporizam-se no museu e na Capela

Rothko, dois edifícios em que as aspirações mais elevadas da humanidade se

podem expressar.» A partir destas palavras, torna-se claro não só que a

actividade destes coleccionadores se rege por princípios éticos, mas também que

o interesse destes pela arte se integra nesta ética.

Este prefácio é precedido por uma reprodução do painel S. João no

Deserto, de Domenico Veneziano (circa 1445). Originalmente o painel S. João

no Deserto fazia parte da predela196 de um altar da Igreja de Santa Lucia de'

Magnoli em Florença. Esta peça chegou à National Gallery of Art de

Washington integrada na Colecção Kress, que foi doada a esta instituição. Antes

disso pertenceu a Bernard Berenson. S. João no Deserto, portanto, não pertence

e só muito dificilmente poderá algum dia vir a pertencer à Colecção Menil197.

No site da National Gallery de Washington, a imagem é acompanhada

por um comentário em que se observa que habitualmente S. João Baptista

aparece representado como homem de barba já com alguma idade e vestido de

peles de animais; nesta pintura, no entanto, S. João é representado como jovem

gracioso, modelado como uma estátua da Antiguidade clássica, no momento em

                                                            195 Menil, Dominique de. 1987. Prefácio a The Menil Collection: A Selection  from  the Paleolithic to the Modern Era. Nova Iorque: Harry N. Abrams, 7‐8.  196  Conjunto  de  pinturas  que  complementam  o  assunto  de  um  quadro  ou  painel principal e se situam na secção inferior deste.  197 A não ser, obviamente, que um dia desistamos da ideia de museus públicos e/ou as obras de arte destas instituições sejam vendidas a particulares. 

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152  

que rejeita as roupas mundanas para optar por uma existência mais espiritual.

Esta descrição pode ser relacionada com as preocupações éticas da Fundação

Menil. Dominique de Menil admitiu que passou a ver a actividade de

coleccionar como «dever moral» por influência do padre Couturier198.

No prefácio do catálogo, sobre a peça em questão, Dominique de Menil

afirma: «Um adolescente solitário a despir-se na solidão das montanhas; uma

paisagem cinzenta com arbustos verdes-acastanhados e um relance de

vermelho-rubi escuro – a capa dele. Gosto tanto desta pinturazinha estranha e

milagrosa que a vejo como se me pertencesse inteiramente sempre que estou

diante dela. E penso que nos anos vindouros haverá aqueles, desconhecidos

para mim, que se apropriarão e ‘possuirão’ obras que adquiri.»199

No segundo passo deste prefácio que vamos comentar, Dominique de

Menil refere uma das motivações para o projecto do museu da Fundação Menil,

construído para expor a colecção: «À medida que a ideia de um museu ia

tomando forma, sonhei preservar alguma da intimidade na minha relação com

as obras de arte.»200

Nestas frases, Dominique de Menil fala, em primeiro lugar, de uma

relação específica com um objecto que não lhe pertence materialmente, e, em

segundo lugar, de um desejo de partilha do mesmo tipo de relação com outras

                                                            198  «Durante  muitos  anos  senti  que  comprar  arte  era  uma  acção  ligeiramente condenável,  que  envolvia  demasiado  prazer,  era  demasiado  hedonista.  O  padre Couturier  fez‐nos perceber que comprar arte sempre que pudéssemos era quase um dever.»  (Citado em Smart 2010, 72.) «Bem, nem só de pão vive o homem e a arte tem um  valor  redentor.  Veja‐se  os  grandes  artistas.  Podem  ser  difíceis,  dissolutos, mas nunca são  ignóbeis e, na sua busca pela perfeição, aproximam‐se mais das verdades eternas do que pessoas pretensamente mais piedosas. Por isso somos coleccionadores sem culpa.» (Citado em Smart 2010, 73.)  199 Menil 1987, 7.  200 Menil 1987, 7. 

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pessoas. Estas frases contrariam a maior parte das descrições de coleccionador

na literatura sobre o tópico, que apontam a ganância material (o desejo

descontrolado de acumular coisas) como um dos traços principais da actividade

de coleccionar. É importante pensar na noção de colecção em questão nestas

frases201. A relação de que a coleccionadora fala é um pouco inesperada na

medida em que desvaloriza a ideia de posse material e se apoia numa noção de

humanidade.

Seria de esperar que para explicar o papel das colecções na vida das

pessoas fosse necessário descrever a importância das relações entre pessoas e

coisas, mas, quando consideramos as vertentes mais públicas e sociais das

colecções, torna-se claro que também é necessário descrever o que liga as

pessoas entre si. Além de falarmos de subjectividade e de objectos, precisamos

de falar sobre intersubjectividade.

As colecções são modos de fazer sentido e, assim como não podemos ser

humanos sozinhos, não podemos fazer sentido sozinhos. Sentido e humanidade

são processos que implicam construção, partilha e reciprocidade.

As representações tradicionais dos coleccionadores associam-nos à

ganância material e à obsessão pela aquisição. As frases de Dominique de Menil

sugerem uma noção de posse e uma noção de colecção mais amplas do que as

habituais. A identificação de Dominique de Menil com o painel de Domenico

Veneziano dispensa a posse material. A circunstância de a coleccionadora

referir, além disso, que imagina a possibilidade de alguns dos visitantes da sua

colecção sentirem o mesmo em relação a algumas peças da Colecção Menil

                                                            201 O meu objectivo não é interpretar estas frases à luz da biografia da coleccionadora, mas sim explorar questões mais gerais, relacionadas com o tópico desta tese.  

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demonstra que neste prefácio e nesta colecção o desejo de posse material de

objectos ou de obras de arte não é o mais importante.

Enquanto coleccionadora, Dominique de Menil é um caso distinto do do

coleccionador de Callot202 referido pelo moralista francês Jean de La Bruyère

(1645-1696) em Les Caractères/Os Caracteres203. Em ambos os casos está em

questão a ausência de um elemento numa colecção, mas enquanto o

coleccionador descrito por La Bruyère confessa que não poderá descansar

enquanto não adquirir a única gravura de Callot que lhe falta, ainda que não lhe

atribua grande valor artístico, Dominique de Menil descreve esta lacuna como

ampliação da sua colecção pessoal. Para esta coleccionadora, a posse material

do painel S. João no Deserto parece menos importante do que a relação que

com ele mantém.

La Bruyère integra-se na tradição que considera condenável o interesse

por colecções. Na secção 47 de Les Caractères, intitulada «Da moda», La

Bruyère enumera depreciativamente vários tipos de coleccionadores,

associando-os à curiosidade, à ganância material, ao desregramento dos desejos

e à moda: «A curiosidade não é um gosto pelo que é bom ou belo, mas pelo que

é raro, único, pelo que se tem quando os outros não o têm. Não se trata de um

apego ao que é perfeito, mas ao que é actual, ao que está na moda. Não é um

divertimento, mas uma paixão, e às vezes tão violenta que não cede nem ao

amor nem à ambição a não ser pela pequenez do seu objecto. Não é a paixão que

                                                            202 Desenhista e gravador a buril e água‐forte  francês,  Jacques Callot  (1592‐1635), à semelhança  de  La  Bruyère,  interessou‐se  muito  por  certos  tipos  pitorescos  da sociedade de então, como soldados, mendigos, ciganos, artistas e cortesãos.  203  La  Bruyère,  Jean  de.  1688.  Les  Caractères  ou  les Moeurs  de  ce  siècle.  Paris:  Éd. Estienne  Michallet.  Disponível  em:  http://www.gutenberg.org/files/17980/17980‐h/17980‐h.htm. 

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se sente pelas coisas raras e actuais, mas aquela que se sente apenas por uma

determinada coisa rara e que portanto está na moda.»

Nesta secção, La Bruyère aponta dois problemas principais à actividade

de coleccionar. Em primeiro lugar, a superficialidade do impulso para a

acumulação. Na sua perspectiva, a acumulação sucessiva que caracteriza a

actividade dos coleccionadores impede o aprofundamento e a reflexão. Na

colecção de coleccionadores de La Bruyère, a figura daqueles que se

caracterizam pela «intemperança do saber», adquirindo sucessivamente

conhecimentos de diversas áreas, mas preferindo «saber muito» a «saber bem»,

ajuda a descrever esta superficialidade: «Alguns por intemperança do saber, e

por não conseguirem renunciar a qualquer tipo de conhecimento, procuram

todos sem possuir nenhum: preferem conhecer muito a conhecer bem e serem

fracos e superficiais em diversas ciências a serem seguros e profundos numa só.

[...] [S]ão vítimas da própria curiosidade e não são capazes de se extrair de uma

ignorância crassa a não ser através de esforços longos e penosos. [...] Essa gente

lê todas as histórias e ignora a História; folheia todos os livros sem conhecer

nenhum […].»

Em segundo lugar, La Bruyère insurge-se contra a falta de valor

intrínseco dos objectos de interesse dos coleccionadores. Na sua perspectiva, os

coleccionadores interessam-se por objectos menores («la petitesse de son

objet») que se distinguem apenas pela raridade ou invulgaridade. Parece estar

em questão uma distinção entre objectos supostamente com valor intrínseco,

associados ao bom e ao belo, e objectos sem qualquer valor a não ser aquele que

lhes é atribuído pela moda e pela curiosidade dos coleccionadores. Para La

Bruyère, o valor verdadeiro não é condicionado pela interacção de pessoas e

objectos. Ao mesmo tempo, sobressai a ideia de que os coleccionadores

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adquirem certas coisas para que outras pessoas não possam usufruir delas («um

gosto [...] que se tem quando os outros não o têm»).

Entre os exemplos referidos em Les Caractères, o caso do coleccionador

de gravuras de Callot é interessante para nós na medida em que parece de

algum modo próximo da situação descrita por Dominique de Menil no prefácio.

Contudo, enquanto para Dominique de Menil a ausência de um objecto não se

traduz no desejo obsessivo da aquisição da peça em questão, o coleccionador de

Callot confessa que a obsessão com a lacuna na sua colecção é tão intensa que

lhe afecta a saúde: «Sofro – continua ele – de uma aflição da sensibilidade que

me obrigará a renunciar às estampas até ao fim dos meus dias: tenho tudo do

Callot, excepto uma obra, que, para dizer a verdade, não é uma das suas

melhores; pelo contrário, é uma das obras menores, mas que completaria a

minha colecção: tento há vinte anos conseguir esta estampa e desespero por não

conseguir: é tão duro!»

O caso do coleccionador de Callot ajuda La Bruyère a ilustrar o seu

retrato da actividade de coleccionar como patologia relacionada com um

interesse incompreensível por objectos desprovidos de valor autónomo. O

próprio coleccionador em questão admite que a gravura não faz parte das obras

maiores do artista. O único valor desta peça parece derivar de ser a única que

lhe falta para completar a sua colecção de Callot – trata-se de um valor

meramente relacional, subjectivo e contingente, portanto.

Em contraste, Dominique de Menil não expressa contrariedade em

relação à impossibilidade de integrar S. João no Deserto na sua colecção. O

exemplo desta coleccionadora serve para demonstrar uma questão importante

sobre a actividade de coleccionar. Descrever a actividade de coleccionar, como

faz La Bruyère, como mero impulso para a aquisição sucessiva e egoísta, sem

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referir a vontade de partilha da colecção, é produzir uma descrição incompleta

desta actividade.

A propósito do coleccionador de Callot descrito por La Bruyère, Jean

Baudrillard204 tece alguns comentários interessantes sobre o papel das lacunas

nas colecções. Segundo este ensaísta, as lacunas desempenham um papel

positivo nas colecções na medida em que constituem um elo de ligação entre

coleccionador e universo exterior à colecção, através do qual o coleccionador

recorda a sua própria objectividade e a ligação entre o mundo exterior e a sua

consciência205.

Baudrillard, no entanto, nunca abdica de uma descrição de colecção

como linguagem privada, como mecanismo através do qual o coleccionador

constrói um sistema de sentido desligando os objectos do seu uso e das suas

funções habituais, para os submeter à lógica semântica do conjunto de que

passam a fazer parte. Segundo Baudrillard, esta semântica estaria subordinada

meramente ao sujeito e às relações estabelecidas por cada objecto com os outros

dentro do mesmo conjunto.

O coleccionador de Callot ilustra esta descrição de coleccionador de

Baudrillard. O valor da gravura em falta é determinado pelo lugar que esta

ocuparia na série de que faz parte, não por «propriedades intrínsecas».

Podemos discutir, no entanto, se só este coleccionador atribui tal valor à gravura

em falta. É sabido que uma série completa tem habitualmente mais valor de

mercado, se não maior valor de estudo, como o próprio Quatremère de Quincy

                                                            204 Baudrillard 2014, 130.  205 «É preciso perceber se as colecções são para serem terminadas e se a  lacuna não desempenha um papel essencial, também positivo, enquanto meio através do qual o sujeito reapreende a própria subjectividade.» (Baudrillard 2014, 130.)  

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reconhece206. Enquanto o coleccionador partilhar o mesmo universo de

inteligibilidade e o mesmo espaço com outros seres humanos, não lhe será

possível construir um sistema semântico totalmente alheio ao universo

supostamente exterior à colecção. Mesmo que o significado e o valor dos

objectos seja afectado pelo conjunto de que fazem parte, o valor e o significado

dos objectos nunca se desligam totalmente do universo exterior à colecção.

Reforçamos, portanto, a nossa discordância relativamente a afirmações

como «qualquer que seja a abertura de uma colecção, há nesta um elemento

irredutível de não-relacionamento com o mundo» e «o coleccionador procura

reconstituir um discurso transparente a si próprio, de que detém os

significantes e cujo referente é ele próprio.»207 Mesmo se o referente fosse o

próprio coleccionador, este faz parte do universo material que habita e do

universo de sentido que partilha com as outras pessoas no mesmo espaço.

A propósito das Investigações Filosóficas de Wittgenstein, Stanley Cavell

observa: «Penso que uma das lições das Investigações como um todo pode ser

esta: o facto, e o estado, da nossa vida (interior) não pode retirar a própria

importância de qualquer coisa especial nela. Por muito que se pense nisso,

descobrimos que o que é comum está lá antes de nós.»208

                                                            206  Em  Cartas  a  Miranda,  Quatremère  nota  que  a  obra  de  Rafael  só  poderia  ser correctamente avaliada e estudada no contexto da colecção completa das produções deste  artista.  Só  deste  modo  seria  possível  perceber  a  evolução  do  artista.  Para Quatremère, o conhecimento e a apreciação da arte baseiam‐se na análise informada e na comparação de obras de uma série ou de um conjunto, nunca  individualmente: «avaliamos sempre por relação e comparação» (Quatremère 1796, 42, Carta IV).  207 Baudrillard 2014, 149.  208 Cavell, Stanley. 1979. The Claim of Reason: Wittgenstein, Skepticism, Morality, and Tragedy. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 361.  

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De acordo com Cavell, enquanto seres humanos racionais, partilhamos

um ponto de vista racional. Com os outros seres humanos estabelecemos

relações de reciprocidade em que reconhecemos a humanidade dos outros a

partir da nossa própria humanidade e vice-versa: a nossa identificação de

alguém, incluindo nós mesmos, como ser humano é uma identificação com

alguém. Aprendemos a ser quem somos definindo-nos em relação aos outros –

por proximidades ou distâncias209. Cavell chama a atenção para o terreno em

comum entre as pessoas, salientando que o colectivo e o partilhado são

anteriores ao distintivo e ao individual. De acordo com esta perspectiva, o

individual é constituído a partir deste terreno comum.

No que diz respeito à importância da intersubjectividade na constituição

da subjectividade, portanto, Cavell está próximo de Davidson, visto que, como

notámos no primeiro capítulo, também Davidson defende que o

desenvolvimento do autoconhecimento depende da interacção com outras

pessoas e da compreensão dos seus processos subjectivos210.

                                                            209 MacIntyre  aborda  a mesma  questão,  colocando  a  ênfase  na  inteligibilidade:  «A minha capacidade de perceber o que o outro está a fazer e a minha capacidade para agir inteligivelmente (tanto perante mim como perante os outros) são uma e a mesma capacidade.»  (MacIntyre, Alasdair. 2006. «Epistemological  crises, dramatic narrative, and  the  philosophy  of  science»,  The  Tasks  of  Philosophy:  Selected  Essays,  Vol.  1. Cambridge: Cambridge University Press, 4.)  210 «[A  concepção  filosófica de  subjectividade que  cria um hiato  lógico entre o meu mundo e o mundo tal como surge aos outros] propõe que o subjectivo é anterior ao objectivo,  que  há  um  mundo  subjectivo  anterior  ao  conhecimento  da  realidade externa. É evidente que a  imagem do pensamento e do significado que aqui esbocei não  deixa  espaço  para  tal  prioridade  visto  que  implica  o  autoconhecimento  no conhecimento  de  outras mentes  e  do mundo.  O  objectivo  e  o  intersubjectivo  são portanto essenciais para aquilo a que possamos chamar subjectividade e constituem o contexto em que esta toma forma.»  (Davidson 1991, 165.)  

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O ponto de partida de Stanley Cavell é a filosofia de Kant. Em

Fundamentos da Metafísica da Moral211 (1785) Kant descreve as pessoas como

membros de dois mundos: o mundo da Natureza e o mundo da razão. Na

primeira dimensão, as pessoas submetem-se às leis da Natureza (à biologia, à

física, à química, etc.). Graças à segunda dimensão, no entanto, podem usar a

razão para impor uma ordem no mundo da Natureza e desenvolverem a própria

liberdade de escolha. A razão permite aos seres humanos tomar opções de modo

relativamente livre após reflexão – opções não determinadas pelas leis da

Natureza. (Como diz Jorge de Sena, «nós somos o que nega a Natureza»212.)

Segundo Kant, esta segunda dimensão distingue-nos enquanto seres humanos.

De acordo com esta perspectiva, as escolhas das pessoas são realizadas

neste universo de inteligibilidade governado pela razão. Todas as escolhas são

realizadas, por conseguinte, de acordo com razões partilháveis. Não há senão

razões partilháveis.

A capacidade de optar livremente pode ser descrita como aptidão para

gerar diversidade e para criar novas possibilidades – por oposição à linearidade

determinista da Natureza. E se, como nota Christine Korsgaard213, a

humanidade se distingue precisamente por esta capacidade de gerar

diversidade e novas possibilidades – isto é, de fazer coisas que outros seres vivos

não conseguem fazer ou de fazer as mesmas coisas de outros modos – , valorizar

                                                            211 Kant,  Immanuel.  [1785] 2006. Groundworks of the Metaphysics of Morals. Trad. e ed. Mary Gregor. Cambridge: Cambridge University Press.   212 Sena,  Jorge de. «A Morte, O Espaço, A Eternidade», Sena,  Jorge de.  [1999] 2001. Antologia Poética. Porto: Edições Asa, 115‐119.  213  Korsgaard,  Christine  M.  2005.  «The  Dependence  of  Value  on  Humanity»,  Raz, Joseph.  [2003]  2005.  The  Practice  of  Value:  With  Commentaries  by  Christine  M. Korsgaard, Robert Pippin, Bernard Williams. Oxford: Clarendon Press, 63‐85. 

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161  

interesses e escolhas individuais consolida a razão e a cultura. Se reconhecemos

e construímos a nossa própria humanidade a partir da humanidade dos outros,

ser humano implica conhecer, respeitar e partilhar as escolhas racionais dos

outros seres humanos, vistos como fins em si mesmos.

Deste ponto de vista, ao contrário do que La Bruyère sugere em Les

Caractères, os interesses individuais dos coleccionadores, por muito privados

ou incompreensíveis que à primeira vista pareçam, podem ser descritos não só

como manifestações de humanidade, mas também como expressões da

capacidade cultural humana de descobrir novas possibilidades de interesse e de

valor.

De acordo com a perspectiva de Korsgaard, La Bruyère deveria ser

descrito como «realista objectivo»: «Uma interpretação de um Realista

Objectivo do valor de escalar montanhas, ou de coleccionar selos ou moedas ou

arame farpado, ou de ser um excelente jogador de bowling ou de bilhar, não é

muito atraente. Nem o será, penso, uma interpretação do valor de um bom livro

sobre a ética de Kant. Não estamos a falar de valores intrínsecos, já existentes

no universo, que descobrimos, mas sim de expressões da nossa capacidade

distintivamente humana de nos interessarmos ou de encontrarmos alguma

coisa interessante no que nos rodeia. Partilhar os objectivos uns dos outros, ou

pelo menos admitir que estes podem ser partilhados, é vê-los como expressões

dessa capacidade, e portanto como expressões da nossa humanidade

partilhada.»214 Em contraste com La Bruyère, Korsgaard defende uma

perspectiva intersubjectivista segundo a qual o valor das coisas não é descoberto

mas sim construído com base na partilha de valores subjectivos.

                                                            214  Korsgaard,  Christine M.  [1996]  2000.  Creating  the  Kingdom  of  Ends.  Cambridge: Cambridge University Press, 290. 

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A perspectiva de Korsgaard não implica que somos obrigados a promover

os interesses individuais de todas as pessoas, mas sim que temos de encarar os

fins e os interesses dos outros como susceptíveis de merecer o nosso interesse e

a nossa participação215. Temos de admitir a possibilidade de, a partir do

encontro com os interesses dos outros, descobrirmos em nós o desejo de os

partilhar. Nesta relação de reciprocidade a partir da qual a humanidade se

constitui, é através da partilha de valores, interesses, razões e objectos que as

pessoas se vão definindo individualmente.

Quase no fim do ensaio «Três Tipos de Conhecimento», também

Davidson propõe um ponto de vista semelhante: «não quero sugerir que não

possamos entender aqueles com que discordamos relativamente a vastas

questões físicas e morais. É também o caso que a compreensão é uma questão

de grau: outros podem conhecer coisas que não conhecemos, ou até talvez coisas

que não possamos conhecer. O que é certo é que a clareza e a eficácia dos nossos

conceitos crescem com o crescimento da nossa compreensão dos outros. Não

existem limites definitivos a quão longe o diálogo pode ou poderá levar-nos.»216

Nas frases citadas do prefácio de Dominique de Menil parece estar em

questão esta mesma relação de reciprocidade entre seres humanos. Dominique

de Menil admite que as pessoas no exterior da colecção podem estabelecer com

os elementos da colecção uma relação de intimidade tão próxima como a do

próprio coleccionador se os integrarem na sua própria consciência e

                                                            215  Como  diz  Stanley  Cavell:  «Uma  sociedade  saudável  não  pode  depender  da aprovação mútua dos desejos uns dos outros, mas depende realmente de uma certa capacidade  e  disponibilidade  para  nos  tornarmos  compreensíveis  uns  aos  outros. Neste  ponto  a  ideia  de  colecção  pode  desempenhar  um  papel  essencial.»  (Cavell, Stanley. 2005. «The World as Things», Cavell, Stanley. 2005. Cavell on Film. Ed. William Rothman. Albany: SUNY, 262.)  216 Davidson 1991, 165. 

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163  

subjectividade – como aconteceu com a própria Dominique de Menil em relação

a um objecto que não fazia parte da sua colecção concreta.

O elemento mais importante da relação entre pessoa e objecto da

colecção não é a posse, mas uma dimensão de sentido ou inteligibilidade,

partilhada por coleccionador e visitantes da colecção, em que há possibilidade

de participação nos mesmos objectos de interesse. Partilhar objectos de

interesse consolida as relações humanas – mais do que isso, é indissociável da

forma de vida humana. Não há humanidade sem esta partilha de interesses. Ser

humano é estar em relação. Aprende-se a ser humano graças a esta relação de

reciprocidade.

Para Dominique de Menil, os objectos da colecção são importantes

porque permitem o estabelecimento de relações – tanto entre pessoas, como

entre pessoas e universo material. É por permitirem o estabelecimento de

relações – relações com outros objectos, com o coleccionador, com os visitantes

da colecção, entre coleccionadores, entre pessoas e universo material – que os

objectos se tornam valiosos. Trata-se de uma concepção de colecção diferente

daquelas propostas por Baudrillard e por La Bruyère e próxima da perspectiva

intersubjectivista de Christine Korsgaard.

Como constatámos no terceiro capítulo, Baudrillard descreve uma

colecção como circuito semântico fechado do coleccionador para si próprio.

Entre as perspectivas de La Bruyère e de Dominique de Menil há ainda mais

pontos de discórdia. De acordo com Dominique de Menil, coleccionar não se

relaciona directamente com o interesse por coisas raras ou únicas que se tornam

valiosas pela circunstância de poucas pessoas terem acesso a elas, ao contrário

do que defende La Bruyère, mas antes com o interesse por objectos partilháveis

que podem assumir igual importância na vida de outras pessoas.

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164  

Não se pode então dizer, como La Bruyère, que a ganância material é um

dos traços mais distintivos dos coleccionadores. Do mesmo modo, acusar, como

La Bruyère, os coleccionadores de superficialidade por acumularem

sucessivamente objectos ignora a complexidade da relação estabelecida entre

coleccionador e objectos de colecção – uma relação que implica investimento

subjectivo e intersubjectivo.

Pode-se dizer que tanto La Bruyère como Dominique de Menil

reconhecem a importância do estabelecimento de relações na determinação do

valor dos objectos de uma colecção, mas enquanto o primeiro o faz de modo

depreciativo, apontando a ausência de propriedades intrínsecas nos objectos de

colecção, para Dominique de Menil é por permitirem o estabelecimento de

relações que os objectos se tornam valiosos. Como defende Davidson e como

adiante aprofundaremos com Dewey, o valor deste estabelecimento de relações

reside na possibilidade de expansão da consciência individual.

Para Dominique de Menil, a obra de Domenico Veneziano é tão

importante que a coleccionadora inclui uma reprodução desta num lugar de

destaque no catálogo da sua colecção. Apesar de esta obra não pertencer

materialmente à coleccionadora, este gesto parece indicar que nenhuma

descrição da Colecção Menil estaria completa sem incluir esta peça.

A coleccionadora afirma: haverá aqueles, desconhecidos para mim, que

se apropriarão das obras que adquiri, como me aconteceu em relação a S. João

no Deserto. Estas pessoas poderão relacionar-se com estes objectos de modo

equivalente ao da coleccionadora porque partilham com ela um terreno comum

de humanidade e de sentido em que o que são é indissociável da sua relação

com determinado(s) objecto(s).

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165  

Quando admite a possibilidade de outras pessoas desenvolverem relações

semelhantes com peças da sua colecção, Dominique de Menil partilha com

Stanley Cavell a noção de que há um terreno comum entre todas as pessoas que

lhes permite relacionarem-se de modo comparável com objectos valorizados por

cada pessoa individualmente. Não está em questão neste prefácio a ideia de

repetição da relação particular da coleccionadora com o painel de Veneziano ou

com outra peça da colecção, mas sim a possibilidade de novas relações

particulares com os objectos da Colecção Menil, a partir da ideia de que todos os

indivíduos se relacionam de modo semelhante com as coisas porque aprendem

com as outras pessoas a viver e a ser quem são. As características particulares

das relações de cada indivíduo com o que o rodeia desenvolvem-se a partir deste

terreno comum. Depois de determinado objecto ser integrado numa percepção

individual, o significado deste torna-se particular.

Em Art as Experience217, John Dewey propõe uma noção de humanidade

assente na importância do estabelecimento de relações e semelhante àquela que

vimos explorando, por um lado, a partir dos textos de Kant, Christine Korsgaard

e Stanley Cavell, por outro a partir das actividades da Colecção Menil. Dewey

ajuda a esclarecer a noção de terreno comum entre as pessoas. A importância

que o estabelecimento de relações assume na filosofia de Dewey ajuda-nos a

clarificar a relação tanto entre coleccionador e outras pessoas, como entre

coleccionador e universo material.

Art as Experience é um livro ainda hoje importante no contexto

museológico americano. Este ensaio pode ser considerado essencial para a

compreensão da actividade dos coleccionadores, circunstância a que não será

                                                            217 Dewey 2005.  

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166  

alheio o facto de ter sido desenvolvido em associação com a actividade e a obra

escrita de um coleccionador: Albert Barnes. John Dewey não só manteve uma

longa relação de amizade com Albert Barnes, como também reconhece no

prefácio deste livro a importância das conversas que teve com este

coleccionador para a construção dos seus argumentos218.

Para Dewey, a arte e a cultura constituem dimensões inalienáveis da vida

das pessoas. Logo no início de Art as Experience, Dewey salienta que um dos

seus objectivos é demonstrar que existe continuidade entre a arte e a vida

quotidiana219. Para Dewey, é possível ter experiências estéticas sem arte220. A

experiência estética requer uma atenção por vezes ausente na vida quotidiana,

mas que Dewey considera tão elementar que a compara à dos animais: «O

animal em acção está completamente presente, inteiramente ali, em cada uma

das suas acções [...]»; «[a] arte é a prova viva e concreta de que as pessoas são

capazes de recuperar conscientemente, e portanto no plano do significado, a

                                                            218 «A minha maior dívida é para com o Dr. A. C. Barnes. Ele viu todos estes capítulos um a um e ainda assim o que devo aos comentários e às sugestões que fez é apenas uma pequena parte desta dívida. Beneficiei de conversas com ele ao  longo de vários anos,  muitas  das  quais  ocorreram  perante  a  inigualável  colecção  de  pintura  que reuniu. A  influência destas  conversas, assim  como a dos  livros que escreveu,  foi um factor fundamental no desenvolvimento do meu próprio pensamento sobre estética.» (Dewey 2005, viii.)  219 «A arte é remetida para um reino separado, onde é desligada da associação com os materiais  e  os  objectivos  de  qualquer  outra  forma  de  esforço,  empreendimento  e concretização  humana.  Impõe‐se  assim  uma  tarefa  prioritária  àquele  que  decide escrever sobre a filosofia das belas artes. Esta tarefa é reforçar a continuidade entre as formas  de  experiência  refinada  e  intensificada  que  são  as  obras  de  arte  e  os acontecimentos, feitos e sofrimentos da vida de todos os dias que universalmente se reconhece constituírem a experiência.» (Dewey 2005, 3.)  220 «Tentei mostrar neste capítulos que o estético não é um intruso na experiência [...] mas sim o desenvolvimento mais claro e  intenso das características que pertencem a todas as experiências normalmente completas» (Dewey 2005, 48.) 

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167  

união do sentido, da necessidade, do impulso e da acção característicos das

criaturas vivas»221.

O que distingue uma experiência estética, segundo Dewey, é a unidade

entre os seus diversos componentes222. Na unidade que caracteriza este tipo de

experiência, a ideia de relação é fundamental223. O sentido é construído através

do estabelecimento de relações, sendo estas relações descritas por Dewey como

«acções e reacções em que algumas coisas são transformadas»224. Por via das

relações estabelecidas no processo de percepção estética, também as pessoas

expandem a sua consciência através da imaginação.

A importância que Dewey atribui ao estabelecimento de relações tanto na

criação artística como na percepção chama a atenção para a vertente

transformativa da experiência estética. De acordo com esta perspectiva, a

consciência individual do sujeito é transformada através tanto do processo de

estabelecimento de relações como através destas experiências.

Perceber as outras pessoas é uma questão de comunicação e participação

em valores da vida por meio da imaginação e da empatia. Este processo

estabelece uma relação previamente inexistente que pode ser descrita como

«expansão do ser humano», à semelhança do que se verifica na amizade (em

                                                            221 Dewey 2005, 18, 26.  222  «Uma  experiência  [estética]  tem  uma  unidade  que  a  identifica,  aquela  refeição, aquela  tempestade,  aquela  ruptura  de  amizade.  A  existência  desta  unidade  é constituída  por  uma  única  qualidade  que  permeia  toda  a  experiência  apesar  da variação das suas partes constituintes.» (Dewey 2005, 38.)  223 «Uma experiência [estética] tem um padrão e uma estrutura, porque não se trata apenas de fazer ou ser afectado em alternância, ambos estão em relação [...] A relação é o que dá significado; captá‐la é o objectivo» (Dewey 2005, 45‐46.)  224 Dewey 2005, 140.   

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168  

que «os interesses e os modos de resposta do outro se convertem numa

expansão do nosso próprio ser»)225. Para Dewey, assim, a percepção estética é

um elemento essencial da humanidade. Através do processo de interacção em

questão na percepção estética, mas não exclusivo à arte, os seres humanos

constituem-se enquanto tal, construindo e ampliando a própria humanidade a

partir da humanidade dos outros.

De acordo com Dewey, a experiência estética não se limita a permitir a

partilha de humanidade e a constituição de um universo de sentido, mas

contribui igualmente para a sensação de pertença ao mundo material: «Uma

obra de arte suscita e acentua esta qualidade de se ser um todo e de pertencer a

um todo maior, inteiramente abrangente, que é o universo em que vivemos.

Este facto, penso, é a explicação daquela sensação de inteligibilidade e

clarividência veementes que temos na presença de um objecto experienciado

com intensidade estética.» Trata-se de um movimento simultaneamente de

exteriorização e de expansão na medida em que as pessoas se definem e se

transformam em articulação com o que está fora delas: «Somos transportados

além de nós mesmos para nos encontrarmos a nós mesmos.»226

A ideia de reconhecimento da humanidade dos outros é uma das linhas

de força da actividade da Fundação Menil. A própria Colecção Menil, incluindo

antiguidades, ícones do período bizantino, arte de África e da Oceania, arte

                                                            225 Dewey 2005, 350.  226 Dewey 2005, 202.   

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169  

ameríndia e arte europeia moderna, revela um âmbito universal, assente na

noção de humanidade partilhada227.

Um bom exemplo das actividades dos Menil é o projecto intitulado The

Image of the Black in Western Art228, financiado pela Fundação Menil entre

1960 e 2000 e a que a Universidade de Harvard deu posteriormente

continuidade. Trata-se de um projecto de recolha e publicação de

representações artísticas de africanos iniciado com o objectivo de combater o

racismo, mas relacionado com a ideia maior de defender a capacidade de

reconhecer a humanidade dos outros. De acordo com Dominique, o racismo não

seria mais do que o fracasso de reconhecer a humanidade dos outros229.

Tudo nas actividades da Fundação Menil se relaciona com as noções de

partilha e de participação. A referência a S. João no Deserto, de Domenico

Veneziano, no prefácio do catálogo da colecção tem a ver com estas noções. A

relação que Dominique estabelece com esse quadro ausente da sua colecção

depende da sua participação numa colecção que não lhe pertence.

No estudo das colecções tem havido atenção à dimensão mais individual

da actividade. Uma colecção tem sido vista como elemento importante da

identidade do coleccionador. As vertentes intersubjectivas da actividade são

igualmente importantes. No caso da Colecção Menil, a abertura aos outros, o

desejo de afectar outras subjectividades, o incentivo à acção e ao envolvimento

                                                            227  Estas  ideias  podem  ser  associadas  ao  conceito  de  «humanismo  universal» defendido pelo padre Couturier (Smart 2010, 84).   228  Para mais  informação  sobre  este  projecto,  consultar  o  site  que  lhe  é  dedicado: http://www.imageoftheblack.com/  229 Menil,  Dominique de. 1976. «Acknowledgements and Perspectives», The Image of the Black  in Western Art, vol. 1: From the Pharaohs to the Fall of the Roman Empire. Ed. Ladis Bugner. Cambridge, MA: Harvard University Press, xi. 

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170  

dos outros a partir da contemplação estética chamam a atenção para estas

vertentes.

Uma grande parte da bibliografia sobre colecções acentua os aspectos

relacionados com a aquisição. Na Colecção Menil é evidente a igual importância

tanto da preservação como da exposição. O investimento na recolha de

informação sobre os objectos da colecção relaciona-se com a consolidação da

relação entre objectos, coleccionadores e visitantes da exposição. A colecção,

além disso, foi cedida para exposições e fins pedagógicos antes da construção do

museu.

4.2 Colecções, catálogos e museus imaginários

Em contraste com os autores da tradição que descreve os museus como

espaço de alienação entre as pessoas e a arte, no prefácio ao catálogo da

Colecção Menil, Dominique refere-se à possibilidade de uma relação de

intimidade entre pessoas e arte no espaço museológico da Fundação Menil: «À

medida que a ideia de museu ia lentamente tomando forma, sonhei preservar

alguma da intimidade da minha própria relação com as obras de arte.»230

Dominique de Menil desejaria replicar no museu da Fundação Menil a

experiência de alguém que, como ela mesma, convive diariamente com arte na

sua própria casa. Em vez de passarem pelo espaço do museu como simples

visitantes, vendo a arte como algo que lhes é totalmente exterior, as pessoas

poderiam «habitar» o espaço do museu, integrando a arte na sua

autoconsciência e na sua percepção do mundo.

                                                            230 Menil Collection 1987, 7.  

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171  

De acordo com esta perspectiva, as pessoas definem a sua identidade

pessoal e colectiva através da sua relação com os objectos, com os espaços e com

as outras pessoas no museu. Os objectos, os espaços e as outras pessoas

funcionam como coordenadas físicas e culturais que lhes permitem situar-se

quer individualmente, quer colectivamente, tanto no universo físico como no

universo cultural e social.

A frase de Dominique de Menil que refere a intimidade na relação entre

pessoas e obras de arte convoca a noção de casa-museu, um conceito muito

importante para a definição de qualquer colecção privada desde o século XIX.

Como constatámos no segundo e no terceiro capítulos, através da integração de

objectos e obras de arte em divisões como salas de jantar, salas de estar,

quartos, bibliotecas, que não são espaços museológicos tradicionais, as casas-

museus representam e solicitam uma experiência em que tudo está em relação:

arte, objectos de uso quotidiano, o espaço, o ponto de vista do coleccionador e

os visitantes. É desta partilha de intimidade na relação com os objectos de que

Dominique de Menil fala no prefácio.

À semelhança de casas-museus como a de Isabella Stewart Gardner, o

Museu Menil recusou desde o início algumas características mais «pedagógicas»

dos museus públicos, principalmente aquelas que criaram uma polarização

artificial das relações público/privado, colectivo/individual.

O Museu Menil dirige-se a indivíduos entendidos como agentes. Desde o

início, o museu da Fundação Menil foi idealizado como «conceptualização

espacial de uma série de actividades e interacções»231, isto é, como espaço

dinâmico de incentivo a uma relação activa dos visitantes com os objectos da

                                                            231 Smart 2010, 110.  

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172  

colecção. Algumas das características que distinguem este espaço relativamente

a um espaço museológico mais linear, associado à História da arte, são as

galerias que não se desdobram sequencialmente, em sintonia com a recusa de

continuidade histórica e da subordinação dos objectos individuais a uma ideia

geral. Entre as distinções relativamente aos museus públicos cultivadas pela

Fundação Menil destacam-se também a recusa clara da acumulação de um

grande número de objectos no mesmo espaço e a rejeição de transmitir

informação histórica232.

O Museu Menil, no entanto, foi planeado numa época em que os museus

tudo faziam para se distinguir da subjectividade de visão predominante nas

casas-museus. Neste período233 privilegiava-se uma atmosfera neutra que

permitisse a contemplação descontextualizada da arte, em contraste com os

espaços sobrepovoados e sobredecorados das casas-museus, onde a arte fazia

parte de um ambiente doméstico, de acordo com a visão pessoal do

coleccionador. Os responsáveis por estes novos museus desejavam manter a

intimidade da relação entre arte e pessoas destes espaços, mas preservando-a de

acusações subjectivistas que os restringissem demasiado à esfera privada e

simultaneamente desassociassem do interesse colectivo e público a que estas

colecções aspiravam.

                                                            232 No prefácio do  catálogo da  colecção, Dominique de Menil observa: «Os maiores museus  estão  sobrecarregados  de  obras‐primas,  todas  competindo  por  atenção; somos  bombardeados  com  informação  que  distrai  da  contemplação  e  permanece estranha  à magia  de  uma  grande  pintura;  «[num museu  ideal][o]s  visitantes  nunca sofreriam de fadiga do museu» (Menil Collection 1987, 8, 7.)  233 O arquitecto Louis Kahn (1901‐1974) foi contactado para começar a trabalhar num projecto de características museológicas. Depois da morte de Kahn e do próprio Jean de Menil, deu‐se a contratação de Renzo Piano em 1980, para a tarefa mais clara de conceber um museu para albergar a Colecção Menil.  

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Neste período que se prolongou aproximadamente entre o fim da

Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 90 do século XX, os próprios

coleccionadores privados procuraram adoptar uma abordagem formalista em

relação aos objectos. O privilégio de características formais independentemente

do assunto ou da origem cultural ou histórica dos objectos articulou-se com a

constituição de colecções como as de Jean e Dominique de Menil ou a de Robert

Woods Bliss (1875-1962), que reuniam objectos aparentemente muito

diferentes, mas entre os quais era possível descrever proximidades formais,

como arte abstracta ou arte surrealista, por um lado, e esculturas anteriormente

descritas como curiosidades e artefactos coloniais, mais habitualmente expostos

em museus de História Natural, por outro. Desligados do contexto cultural e dos

usos religiosos na sua origem, estes objectos passaram a ser descritos e expostos

como arte.

Aliás, certas coincidências entre as colecções dos Menil e de Robert Bliss

ajudam a descrever algumas das tendências principais desta época. Bliss

coleccionou principalmente arte bizantina, arte pré-colombiana e arte e mobília

europeias. A relação de Bliss com a sua colecção de arte pré-colombiana deriva

de uma abordagem que privilegia as características formais dos objectos, em

detrimento do seu contexto de origem.

Em comum entre as colecções dos Menil e dos Bliss temos a diversidade

dos objectos reunidos, aliada à preocupação de construir espaços de exposição

neutros que favoreçam a contemplação das características formais das obras de

arte. Outra característica em comum é a separação explícita entre por um lado,

espaços museológicos construídos de raiz e, por outro, uma habitação com um

interior tradicional em que os coleccionadores começaram por viver com as

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174  

obras de arte que iam adquirindo. Em ambos os casos, o museu e a casa dos

coleccionadores são dois edifícios autónomos, ainda que próximos no espaço.

O pavilhão em que a colecção de arte pré-colombiana de Bliss está

exposta foi construído para o efeito e é um espaço neutro e sóbrio, da autoria do

arquitecto Philip Johnson, que permite uma instalação dos objectos de acordo

com a perspectiva estética ocidental que os vê como arte. Este pavilhão integra-

se num conjunto habitacional conhecido como Dumbarton Oaks, partilhando

o espaço com a casa dos Bliss e os jardins. No espaço mais doméstico da casa

estão expostos outros objectos da colecção dos proprietários.

Também o museu da Fundação Menil, concebido por Renzo Piano com

colaboração próxima de Dominique de Menil, partilha o terreno com a casa dos

Menil, concebida em 1948 por Philip Johnson. Do exterior, a casa dos Menil

parece um edifício austero e com formas geométricas depuradas que facilmente

passa despercebido. O interior da habitação, no entanto, é muito diferente. Os

Menil contrataram o designer de têxteis Charles James como decorador e o

resultado não fica atrás da decoração de muitas casas-museus, incluindo tapetes

de pele, paredes em tons pastel e mobília rococó234.

Tanto no espaço da Fundação Menil como em Dumbarton Oaks, as casas

dos coleccionadores, incapazes de se autodesvanecerem, partilham mais ou

menos discretamente o terreno com espaços museológicos mais formais e

supostamente mais neutros, como que chamando a atenção tanto para a

                                                            234 De  notar  que  a  Fundação Menil manifestou  a  intenção  de  abrir  este  espaço  ao público pelo menos em certas ocasiões especiais, o que indicia alguma qualificação da ideia de que os espaços onde a arte é exposta e visitada devem    ser neutros e com uma  organização  totalmente  desligada  de  um  ponto  de  vista  subjectivo.  Ver: http://www.chron.com/entertainment/article/Restoration‐of‐de‐Menil‐house‐brings‐it‐back‐to‐1512389.php (Consultado em 13 de Novembro de 2014.)  

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175  

importância da relação entre pessoas e objectos, como para a noção de que uma

colecção representa sempre relações entre pessoas e objectos num determinado

espaço, mesmo quando estes espaços foram concebidos intencionalmente para

facilitarem uma contemplação descontextualizada da arte.

A ligação entre a casa e o museu das colecções dos Menil e de Robert

Bliss parece reforçar a ideia de que nenhuma colecção pode existir de modo

totalmente neutro235. No prefácio do catálogo da Colecção Menil, a

coleccionadora não só sublinha a importância desta relação de intimidade entre

pessoas e obras de arte mas também incentiva relações semelhantes entre não-

coleccionadores e os objectos da Colecção Menil.

Entre Dominique de Menil e Robert Bliss encontramos mais um

elemento em comum muito importante. Podemos dizer que para os dois

coleccionadores o interesse pelas características formais dos objectos se

traduziu na elaboração de catálogos. À semelhança de Dominique de Menil,

Robert Bliss teve a preocupação de preparar catálogos das suas colecções.

O catálogo da colecção de arte pré-colombiana236 de Bliss revela

elementos importantes para o estudo da relação do coleccionador com os

objectos desta colecção. Não só este catálogo foi elaborado ainda antes da

construção do pavilhão em que a colecção viria a ser exposta, mas também a

instalação da colecção no museu acabou por adoptar a abordagem seguida neste

                                                            235 Certos movimentos como as Guerilla Girls, um grupo que luta contra o sexismo e o racismo no mundo da arte,  têm chamado a atenção para os efeitos discriminatórios das  concepções  de  arte  concretizadas  no  espaço  supostamente  neutro  dos museus públicos. Num dos cartazes mais  famosos deste movimento pergunta‐se, a propósito da  presença  escassa  no  Metropolitan  de  peças  de  artistas  do  sexo  feminino,  em contraste com o elevado número de figuras femininas representadas nas obras deste museu: «Será que as mulheres têm de estar nuas para entrar no Met?»  236  Lothrop,  S.  K.  1957.  Pre‐Columbian  Art:  Robert Woods  Bliss  Collection.  Londres: Phaidon Press. 

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catálogo, que se limita a apresentar os objectos sobre um fundo neutro de

estúdio, sem qualquer encenação. A propósito desta situação, Anne Higonnet

observa que o catálogo acabou por ser o melhor instrumento para concretizar a

visão do coleccionador em relação à própria colecção237 visto que só depois da

elaboração deste volume o coleccionador decidiu expô-la.

Num texto deste catálogo, Bliss revelou algumas da suas motivações para

a elaboração deste álbum: «Mas não encontrei um único [objecto] no país de

origem! Portanto, publicando estas reproduções poder-se-ia dizer que, de certo

modo, estou a devolvê-los aos países em que foram criados.»238 Este passo

sugere que, para Bliss, publicar reproduções dos objectos da sua colecção de

arte pré-colombiana equivale a tornar estes objectos acessíveis – às suas

culturas de origem e ao público em geral. O catálogo universaliza estes objectos,

correspondendo esta universalização, segundo Bliss, a uma restituição que, no

entanto, não tem dimensão material.

Para Dominique de Menil, o álbum foi o instrumento adequado para

descrever a relação entre pessoas e arte que considerava importante promover:

uma relação de integração da arte na própria vida e na própria identidade. O

catálogo permitiu à coleccionadora integrar na colecção um objecto que não lhe

pertencia materialmente. Deste modo a coleccionadora pôde expressar a

importância deste objecto na sua vida, uma importância equivalente ou superior

                                                            237  «Talvez,  acima  de  tudo,  um  certo  tipo  de  fotografia  expressasse  a  sua  visão  da colecção.» (Higonnet, Anne. 2009. A Museum of One’s Own: Private Collecting, Public Gift.  Pittsburgh:  Periscope  Publishing,  75.)  Higonnet  descreve  tal  abordagem fotográfica deste modo: «objectos individuais bem iluminados e isolados num cenário de estúdio», «[n]ada interferia com esta encenação de um encontro puramente visual com  cada  objecto.  Era  como  se  cada  objecto  fosse  uma  pintura,  suficiente  em  si mesma, posicionada num espaço de contemplação» (Higonnet 2009, 75).  238  Bliss,  Robert  Woods.  1957.  «Preface»,  Pre‐Columbian  Art:  Robert  Woods  Bliss Collection. Londres: Phaidon Press, 7, citado em Higonnet 2009, 75. 

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a objectos que integravam materialmente a sua colecção. S. João no Deserto

tem lugar de destaque no prefácio do catálogo, a seguir ao retrato da

coleccionadora, da autoria de Max Ernst, mas antes dos outros objectos da

Colecção Menil.

A fotografia e a facilidade de reprodução das obras de arte tornam mais

fácil a concretização e a partilha de um pensamento sobre arte e objectos. Certas

representações pictóricas de colecções, à semelhança do que se verifica em

algumas representações de ruínas, derivam de uma abordagem das relações

entre pessoas e objectos indissociável da imaginação e dos próprios desejos ou

preocupações tanto dos coleccionadores como dos artistas. No segundo capítulo

desta tese, a propósito da tela Charles Townley in His Library, de Johan

Zoffany (1782), observámos que algumas representações de colecções devem

ser vistas não como documento realista mas sim como projecções da imaginação

e dos desejos do coleccionador. Conforme sugerido por Dominique de Menil

através do catálogo, a Colecção Menil integra-se nesta noção de colecção como

reunião não só de objectos mas também de desejos e de relações conceptuais,

não só de elementos materiais mas também de elementos conceptuais. A

inclusão da tela de Domenico Veneziano no catálogo da Colecção Menil sugere

que a representação desta colecção não estaria completa sem esta obra

impossível de obter. Uma colecção não pode ser reduzida à soma dos objectos

por que é constituída. A colecção é sempre maior do que a sua concretização

material. Uma colecção é a concretização possível de relações, algumas das

quais são imateriais239.

                                                            239 Para um ensaio  sobre a vertente mais  imaterial da actividade de coleccionar, ver Tamen, Miguel. 2010. «Collecting Experiences: The Very Idea» in Collections. A Journal for Museums and Archives Professionals, Vol. 6, Número 3, Verão de 2010, 205‐214.  

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No prefácio do catálogo da Colecção Menil, uma das ideias mais

interessantes é a da possibilidade de coisas que não nos pertencem serem mais

importantes para nós do que coisas que nos pertencem. Pode ser que

experiências com conexão com o universo material sejam mais valiosas do que

experiências meramente interiores, subjectivas ou imaginárias240, mas, como

nota Dominique de Menil, certas coisas que nunca serão nossas assumem na

nossa vida uma importância mais decisiva do que muitas coisas que nos

pertencem materialmente. A noção de colecção de Dominique de Menil,

implícita também nas representações pictóricas de colecções que explorámos

principalmente no segundo capítulo, abre espaço para a inclusão no contexto de

uma colecção de experiências subjectivas relativamente a objectos

materialmente ausentes ou distantes.

Deste modo, o álbum de reproduções amplia a noção de colecção na

medida em que a liberta de condicionalismos materiais. Por este motivo, pode

ser comparado às representações pictóricas de colecções (e de ruínas) que

combinam elementos reais e conceptuais ou imaginários. Um álbum de

reproduções pode ser um instrumento para a constituição de uma colecção

ideal ou até de um museu ideal de objectos de outro modo impossíveis de obter.

Antes de iniciar formalmente a sua colecção, Isabella Stewart Gardner, por

                                                            240 «Uma experiência é valiosa, estamos a sugerir, não só em virtude do seu carácter qualitativo, mas em virtude da sua relação com o mundo, se estiver em algum tipo de relação verdadeira com este. Por exemplo, o prazer de subir ao Evereste e acreditar que isso aconteceu talvez tenha algum valor, sugerimos, mas uma experiência verídica é muito mais  valiosa,  isto  é,  fazer  realmente  alguma  coisa  é mais  valioso  do  que imaginar que se fez alguma coisa.» (Levinson, Jerrold. 2006. Contemplating Art: Essays in Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 402‐403.) 

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179  

exemplo, elaborou vários álbuns de recordações241 durante as suas viagens, os

quais foram posteriormente expostos no seu museu lado a lado com os objectos

da sua colecção. Para Stewart Gardner, o álbum funcionou como exercício de

antecipação da actividade de coleccionar objectos materiais242.

No caso de Robert Bliss, o catálogo ajudou-o a articular uma visão formal

da colecção e a definir uma abordagem posteriormente concretizada

materialmente num pavilhão construído para o efeito. O catálogo permitiu-lhe

fazer alguma coisa com a colecção243. A liberdade do álbum de reproduções

relativamente a limitações materiais ajudou o coleccionador a pensar sobre a

colecção e sobre o modo preferível de exposição destes objectos.

Descrevendo o seu catálogo de arte pré-colombiana como restituição

destes objectos à sua origem, Robert Bliss refere-se às vertentes imateriais ou

conceptuais das relações das pessoas com os objectos. Por motivos óbvios, Bliss

não devolve realmente os objectos à sua proveniência histórica através deste

catálogo, mas considera que reproduzi-los num catálogo é uma forma de os

tornar acessíveis e de os partilhar.

                                                            241  O  site  da  casa‐museu  disponibliza  algumas  imagens  deste  álbum: http://www.gardnermuseum.org/microsites/travelalbums/  (Consultado  em  24  de Outubro de 2014.)   242 «O ensaio [da  instalação museológica] de Gardner começou num meio ainda mais feminino que o  interior doméstico: o álbum, que  inúmeras mulheres daquele  tempo usaram como forma de auto‐expressão. Foi num álbum [...] que Gardner registou pela primeira vez a  resolução de procurar sentido através da arte. Ao  lado de  fotografias turísticas  convencionais  de  escultura  [...],  copiou  um  passo  de  um  conto  de  Hans Christian  Andersen.  A  arte,  assegurava‐lhe  Andersen,  conseguia  transformar  os despojos em beleza radiante; o acto criativo era eterno. [...] Gardner compunha álbuns parecidos  com  livros da História da  arte, preenchidos  com  fotografias de obras dos Antigos Mestres. Depois passou a comprar originais em vez de fotografias e reuniu‐as num edifício em vez de o fazer num álbum.» (Higonnet 2009, 194.)  243 «[Os catálogos] realizam o desejo de se fazer alguma coisa com a colecção em vez de se permanecer inactivamente perante esta.» (Harbison 2000, 156.) 

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180  

Uma colecção não é simplesmente a expressão material de relações

particulares que o coleccionador estabelece com certos objectos. Por um lado,

estas relações particulares são extensões ou especificações das relações

habituais entre pessoas e objectos. Por outro lado, a colecção estabelece ou

propõe possibilidades de mais relações interpessoais e entre pessoas e objectos

através da partilha de interesses de que resulta e que oferece. A partilha de

interesses assenta na vertente pública e colectiva que a colecção assume quando

exposta. Deste modo, o mais importante numa colecção não é a partilha de

relações particulares nem de experiências interiores244, mas a aposta num

terreno comum que permite às outras pessoas desesenvolverem elas próprias

relações particulares com os objectos apresentados. Não há particular sem

colectivo. Não há subjectividade sem intersubjectividade.

Tanto a Colecção Menil como a Colecção Bliss reúnem objectos de

origens e com usos originais muito diferentes, encontrando nestes semelhanças

e proximidades suficientes para que sejam descritos como arte. Esta abordagem

recorda os álbuns que André Malraux (1901-1976) elaborou e publicou a partir

da noção de «museu imaginário»245. Malraux explorou a noção de «museu

imaginário» em articulação com as potencialidades da criação de álbuns de

reproduções246. Derek Allan247 observa que não se pode dizer que a noção de

                                                            244 Um processo problemático, como constatámos no  terceiro capítulo em  relação à arte da memória.   245 Esta noção é explorada mais aprofundadamente em  Malraux, André. [1947] 2010. Le Musée Imaginaire. Paris: Gallimard.  246 Nos  livros Le Musée  imaginaire de  la sculpture mondiale  (três volumes, 1952–54) Les Voix du Silence (1951); La Métamorphose des dieux (vol 1. Le Surnaturel, 1957; vol 2. L'Irréel, 1974; vol 3. L'Intemporel, 1976).  

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«museu imaginário» seja uma criação de André Malraux: «Para Malraux, o

museu imaginário é simplesmente um facto da civilização moderna [...]

simplesmente o contexto – o ambiente mental [...] em que agora vemos as obras

de arte»248. Malraux limita-se a explorar as possibilidades deste recurso.

O álbum de reproduções parece levar ao extremo a ideia de colecção. No

ensaio Considerações Morais, Quatremère de Quincy insurgia-se contra a

deslocalização e a descontextualização das obras de arte relativamente à sua

origem nos museus e nas colecções. Por um lado, o «museu imaginário»

tornado possível pela elaboração de um álbum de reproduções, por se ancorar

em reproduções, não depende de qualquer tipo de expropriação e não implica o

deslocamento físico das obras de arte. Por outro lado, este tipo de museu parece

radicalizar o efeito de descontextualização que tanto preocupava Quatremère.

No mesmo álbum podem ser relacionados objectos com origens geográficas e

históricas muito diferentes. A possibilidade de, através da fotografia, criar um

novo enquadramento ou destacar um pormenor nestes objectos parece criar

uma segunda descontextualização dentro da descontextualização

espaciotemporal: não só os objectos perdem a ligação à sua origem, como,

dentro do objecto, se torna possível desligar certas secções do todo de que fazem

parte.

Além de apresentar diversas objecções249 aos álbuns de Malraux, Didi-

Huberman, convidado em 2013 pelo Louvre a revisitar em cinco conferências as

                                                                                                                                                                              247 Allan, Derek. 2009. Art and the Human Adventure: André Malraux’s Theory of Art. Amesterdão e Nova Iorque: Rodopi.  248 Allan 2009, 264.  249  Perda  de  «aura»,  anacronismos,  secundarização  indevida  da  História  da  arte, redução  da  História  da  arte  ao  fotografável,  dissociação  artificial  entre  estética  e 

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182  

propostas de Malraux250, reconhece as semelhanças entre estas técnicas e as do

cinema, destacando o uso do enquadramento, os grandes planos e o uso do

campo/contracampo. Descrever, como Didi-Huberman, os álbuns de Malraux

como «aparelho [appareillage] fotográfico e textual de um olhar»251 chama a

atenção para o modo como estes concretizam um pensamento visual. Didi-

Huberman nota também que a possibilidade de fixar fotograficamente e ampliar

pormenores assegura condições de visibilidade e percepção que no espaço físico

poderiam ser imperfeitas, representando além disso uma solução para os limites

e para as falhas da memória.

Para Malraux, ainda mais importante do que isto é a concepção de arte

que o novo tipo de organização possibilitado pelas reproduções torna possível.

Permitindo o confronto de objectos anteriormente considerados incomparáveis,

um álbum deixa ver as proximidades entre estes, contribuindo para uma visão

mais ampla e universal da arte, não confinada a limites europeus nem

complicada por problemas de propriedade e de proveniência. Nos álbuns de

Malraux, encontramos lado a lado reproduções de pinturas canónicas,

esculturas de catedrais, artefactos de culturas ditas primitivas, originalmente

com uso exclusivamente religioso. Malraux vê todos como arte.

Ficamos com uma noção universalista de arte, que, ainda que vulnerável

a objecções semelhantes àquelas que Didi-Huberman aponta, abrange

                                                                                                                                                                              

política, adopção de um ponto de vista omnisciente, sem qualquer contemplação por particularidades antropológicas, visão da arte como absoluto eterno, entre outras.  250  O  resultado  deste  trabalhado  foi  publicado  em  Didi‐Huberman,  Georges.  2013. L’Album de l’art à l’époque du «Musée Imaginaire». Paris: Éditions Hazan.  251 Didi‐Huberman 2013, 68. 

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diferentes tipos de objectos, uma grande parte dos quais foram criados ao longo

do tempo sem quaisquer intenções artísticas.

Malraux engloba os objectos de culto religioso na arte porque vê tanto a

arte como a religião enquanto estratégias humanas de construção de sentido em

face da irracionalidade da Natureza. À semelhança de Kant, Malraux percebe o

universo como arbitrário e contingente. Também para Malraux, a humanidade

constrói possibilidades de sentido. Assim como Kant fala da construção da

liberdade humana relativamente às leis da Natureza através do uso da razão

num universo de inteligibilidade partilhado, Malraux descreve a arte como

«antidestino». Para Malraux, o «museu imaginário», pela sua dissolução de

limites materiais, seria o meio privilegiado para a afirmação e para a partilha de

sentido através da noção de pertença à humanidade traduzida na participação

num património imaterial e, portanto, imune às contingências do destino e da

Natureza.

De acordo com a perspectiva de Malraux, os museus e as colecções são

espaços de afirmação de sentido, de autoafirmação da humanidade num

universo arbitrário e contingente – espaços em que as pessoas reconhecem a

sua pertença à humanidade através de um património partilhado. O diálogo

entre objectos possibilitado pelo «museu imaginário» converte o museu num

espaço em tudo oposto ao mausoléu ou cemitério de obras de arte de que fala

Adorno252. No prefácio do catálogo da sua colecção, Dominique de Menil fala

deste tipo de partilha de sentido e desenvolve uma noção de humanidade

igualmente presente nos ensaios de Cavell, Kant, Korsgaard e Dewey. Esta

coleccionadora e estes autores ajudam-nos a chegar a uma descrição mais

completa de colecção.

                                                            252 Adorno 1983. 

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No capítulo anterior interrogámo-nos sobre os modos como se processa a

partilha do privado no público. Neste capítulo respondemos que não só muito

do privado e individual é colectivo porque as pessoas partilham o mesmo

universo de sentido e inteligibilidade – sendo esta partilha o que distingue e

define a forma de vida humana –, mas também que o particular e o individual

são desenvolvidos a partir de um terreno comum, colectivo ou universal.

Um dos principais problemas apontados por Didi-Huberman à noção de

arte de Malraux é a perda das distinções históricas e políticas na origem dos

objectos. Para Didi-Huberman, o filme Les statues meurent aussi/As Estátuas

Também Morrem253, de Alain Resnais e Chris Marker, seria uma das

alternativas à contrapor a esta noção de arte, na medida em que explora as

diferenças antropológicas da arte africana254. Contudo, no fim de Les statues

meurent aussi ouvimos: «Os rostos da arte africana derivam do mesmo rosto

humano [...] [R]econhecemos essa promessa, comum a todas as grandes

culturas, de um ser humano vitorioso sobre o mundo»255. Também neste filme

encontramos noções de arte e de humanidade próximas não só das de Malraux

mas também do passo em epígrafe neste capítulo. Les statues meurent aussi

termina com a ideia de que apesar das distinções entre os objectos descritos

como arte, não há uma diferença decisiva nem entre aqueles que os produzem,

                                                            253 Les statues meurent aussi. 1953. Real. Alain Resnais.  254 «[A]lém dessas aparências belas, além desse álbum de família reconciliada da arte, Resnais e Marker encarregaram‐se de um verdadeiro trabalho de desmistificação e de ‘des‐museificação’  da  arte.  Operaram  uma  verdadeira  politização  da  arte  africana enquanto  encenação  das  divisões  históricas  e  políticas  tanto  do  passado  como  do presente» (Didi‐Huberman 2013, 166.)  255 O guião deste filme pode ser consultado em Marker, Chris. 1961. Commentaires 1. Paris: Éditions du Seuil, 7‐25.  

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nem sequer no impulso para esta produção: «C’est toujours contre la mort qu’on

se bat.» É sempre contra a morte que nos batemos.

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5. Intenção e valor

«[I]deias sobre separar, purificar, demarcar e punir a transgressão têm como função principal impor sistema a uma experiência intrinsecamente desorganizada. Só exagerando a diferença entre interior e exterior, em torno e abaixo, masculino e feminino, com e contra, pode um simulacro de ordem ser criado.»

Mary Douglas256

5.1 Pré-História das colecções e problemas da taxonomia

Até aqui, nesta tese, tenho explorado exemplos de colecções sem

qualquer interesse em chegar a descrições completas e definitivas de «colecção»

e «coleccionador». Mais do que definir o que é ou não uma colecção, tenho

discutido casos concretos que convidam a uma reflexão mais geral sobre a

relação entre pessoas e coisas. Não há colecção sem estas relações e é impossível

percebermos o que é uma colecção sem percebermos estas relações.

A opção de não propor inicialmente uma definição de colecção relaciona-

se também com o facto de esse trabalho já ter sido feito257 pela grande maioria

dos que escreveram sobre colecções, frequentemente com resultados inglórios,

como também já foi assinalado na literatura sobre o tópico. Num ensaio em que

reflecte sobre definições de colecção, Susan Pearce, uma das autoras que mais

                                                            256 Douglas, Mary. [1966] 2002. Purity and Danger. Londres e Nova Iorque: Routledge & Kegan Paul, 5.  257 Para uma antologia de ensaios que lidam com a questão da definição de colecção, ver Pearce, Susan M. (ed.). [1994] 2006. Interpreting Objects and Collections. Londres e Nova  Iorque:  Routledge.  Propostas  de  outros  autores  serão  comentadas  ao  longo deste  capítulo. Num  texto  incluído  nesse  volume,  a mesma  Susan  Pearce  aborda  a questão  de  modo  aprofundado,  não  só  traçando  um  panorama  dos  ensaios  que trabalharam  esta  questão,  mas  também  desenvolvendo  uma  reflexão  alargada  e original sobre o tópico. 

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escreveram sobre o assunto, salienta que coleccionar é uma actividade

demasiado complexa para ser subsumida em definições258. Ainda assim, Pearce

reconhece que pensar sobre estas tentativas de descrição nos ajuda a destacar

algumas características importantes da actividade, desde que tenhamos sempre

presentes os problemas que a própria actividade de definir acarreta259.

Perante a facilidade com que se encontra excepções para qualquer

tentativa de definição, podemos dizer que definir «colecção» é um pouco como

definir «arte». Não podemos recorrer exclusivamente às propriedades dos

objectos, temos de prestar atenção às práticas em torno destes objectos e haverá

sempre espaço para discordâncias. Tanto em relação à arte como ao que é uma

colecção parece haver uma noção universal, registada nos dicionários, em que

nos baseamos para discutir casos mais ou menos problemáticos.

É verdade que tudo seria mais fácil na vida se os comportamentos

humanos pudessem ser associados a listas de propriedades distintivas que não

deixassem espaço para dúvidas de identificação. Não sendo isso possível, temos

de aceitar que em certos casos haverá dúvidas e ambiguidades.

Podemos, no entanto, tentar clarificar a noção de colecção que temos

vindo a trabalhar, não como forma de tentar apresentar uma lista capaz não só

de calar para sempre qualquer excepção como também de anular qualquer

                                                            258  A  última  frase  deste  ensaio  é:  «Mas  coleccionar  é  uma  actividade  demasiado complexa  e  demasiado  humana  para  ser  abordada  sumariamente  por  meio  de definições.» (Pearce 2006, 157‐159.)  259 «Foram  tentadas várias definições do que distingue uma colecção, e ainda que a redacção  de  definições  seja  no mínimo  uma  actividade  árida,  com  cada  definição inevitalmente  vulnerável  a  uma  diversidade  de  objecções  miudinhas  baseadas  em exemplos  específicos,  as  definições  são  um modo  útil  de  adquirir  uma  perspectiva tanto  sobre o  tópico em  si  como  sobre o modo  como  tem  sido abordado.»  (Pearce 2006, 157.)  

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dúvida sobre o que é ou não uma colecção, mas com o objectivo de sublinhar as

conclusões mais importantes a que vamos chegando sobre o tópico.

Reflectindo sobre as descrições de objectos em La Peau de chagrin260 e

Le Cousin Pons261, de Balzac, Janell Watson262 observa que não existe

propriamente uma relação de oposição entre acumulação e colecção nestes

romances263. De acordo com Watson, uma colecção é simplesmente uma

acumulação de objectos descrita de modo positivo. Visto como acumulação, um

conjunto de objectos é encarado como um grupo de coisas reunidas por acaso,

sem fim específico. Chamar «colecção» ao mesmo conjunto de objectos

corresponde a uma legitimação e a uma atribuição de valor e de inteligibilidade:

«A acumulação é irracional, sensual e libidinal. A colecção é ordenada,

intelectual e intencional. O conceito de colecção não só justifica e legitima a

aquisição de coisas materiais que de outro seriam supérfluas, mas também lhes

fornece significado, valor e princípios de organização.»264

                                                            260 Balzac, Honoré de.  [1831] 1974. La Peau de chagrin. Paris: Folio. Texto disponível em: http://fr.wikisource.org/wiki/La_Peau_de_chagrin.  261 Balzac, Honoré de.  [1847] 2007. Le Cousin Pons. Paris: Folio. Texto disponível em: http://fr.wikisource.org/wiki/Le_Cousin_Pons.  262 Watson,  Janell. 2004.  Literature and Material Culture From Balzac  to Proust: The Collection and Consumption of Curiosities. Cambridge: Cambridge University Press.   263  Vou  explorar  o  «knowlege  by  description»  («conhecimento  por  descrição»)  de alguns  exemplos  literários  de  colecção  por  acreditar  que  o  «knowledge  by acquaintance»  («conhecimento  directo»,  «conhecimento  por  familiaridade»)    dos casos  reais  é  indissociável  do  seu  conhecimento  por  descrição.  Recorremos  aos mesmos  conceitos  e  às mesmas  estratégias  para  descrevermos  e  pensarmos  tanto sobre  colecções  e  coleccionadores  reais  como  sobre  colecções  e  personagens ficcionais.   264 Watson 2004, 40. 

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Duas das grandes vantagens da permissividade da noção de colecção de

Janell Watson são, primeiro, não fazer depender a descrição «colecção» das

propriedades de um conjunto de objectos e, segundo, chamar a atenção para os

problemas de definições que, pretendendo destacar apenas os traços distintivos

das colecções relativamente a outros conjuntos de objectos, acabam não só por

perder características importantes que as colecções partilham com não-

colecções, mas também por destacar traços mais invulgares de certas colecções

ou de alguns coleccionadores, em vez de tomarem em consideração a grande

maioria das colecções pertencentes a proprietários menos excêntricos.

A proposta de Watson, contudo, revela-se vulnerável à acusação de que a

descrição «colecção» pode ser arbitrária. Por isso, vamos acrescentar-lhe uma

qualificação importante, relacionada com as noções de inteligibilidade e valor.

Estas noções chamam a atenção para a vertente intersubjectiva e pública da

colecção e contrariam a ideia de colecção como descrição arbitrária na medida

em que se articulam com a necessidade de corroboração pública desta noção.

Para clarificar a concepção de colecção que propõe, Watson refere o

exemplo da loja de antiguidades descrita no primeiro capítulo de La Peau de

chagrin. Segundo Watson, os objectos da loja convertem-se em colecção através

do olhar do narrador. Sem esta perspectiva não haveria inteligibilidade – e,

portanto, não haveria colecção – nesta acumulação de objectos.

No início da sua visita à loja de antiguidades, Raphaël Valentin vê apenas

imagens confusas e desordenadas: «Ao primeiro olhar, o estabelecimento

ofereceu-lhe uma paisagem confusa em que todas as obras humanas e divinas

colidiam. [...] O princípio do mundo e os acontecimentos do dia anterior

combinavam-se com uma bonomia grotesca. [...] Todos os países da Terra

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pareciam ter deixado ali algum despojo das suas ciências, uma amostra das suas

artes. Tratava-se de uma espécie de estrume filosófico a que nada faltava [...]».

A inteligibilidade desta acumulação só se torna clara perto do fim do

percurso, quando o protagonista descreve os objectos na loja como uma

colecção ideal a partir da qual é possível reconstituir a História do universo265. O

conceito «História do universo» une todos os fragmentos e nesta unidade reside

a ideia de colecção. Contudo, visto que a linguagem da desordem vai alternando

com vislumbres de ordem ao longo de toda esta sequência, é claro para os

leitores que continua a haver acumulação na colecção.

Um dos momentos mais importantes deste passo é aquele em que o

naturalista Georges Cuvier (1769-1832) é invocado enquanto poeta: «Não será

Cuvier o maior poeta do nosso século? [...] [O] nosso naturalista imortal

reconstruiu mundos com ossos embranquecidos, como Cadmo reedificou

cidades com dentes, repovoou mil florestas com todos os mistérios da zoologia a

partir de alguns fragmentos de hulha, descobriu populações de gigantes na pata

de um mamute.» Neste passo sugere-se que o olhar de Cuvier é capaz de ver

através das camadas de tempo e de reconstituir o passado a partir de simples

fragmentos e de fósseis incompletos.

Apesar de Cuvier ser mais conhecido pelo seu trabalho na taxonomia,

para Balzac este naturalista destaca-se pela capacidade de reconstituir e

suscitar a imaginação do passado de modo panorâmico («Descobrindo de de

corte em corte, de camada em camada, sob as pedreiras de Montmartre ou nos

xistos dos Urais, esses animais cujos despojos fossilizados pertencem às

                                                            265 Nicole Mozet compara esta loja de antiguidades com a Arca de Noé, na medida em que  seria possível  reconstituir o universo a partir dos  seus objectos.  (Mozet, Nicole. 2001. «Le passé au présent: Balzac ou l’esprit de la collection» in Romantisme. n.º 112, vol. 31, 86.) 

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civilizações antediluvianas, a alma assusta-se quando entrevê milhares de

milhões de anos, milhões de pessoas»), não por organizar animais e plantas em

classes.

O percurso nesta loja de antiguidades torna-se inteligível quando o

protagonista passa a encarar estes objectos como Cuvier viu fósseis e

fragmentos: imaginando o contexto e as relações em que estes se integravam.

Sem esta actividade não haveria inteligibilidade completa: «Este oceano de

móveis, de invenções, de modas, de obras, de ruínas, compunha para ele um

poema sem fim. Formas, cores, pensamentos, tudo renascia ali; mas nada de

completo se oferecia à alma. O poeta tinha de terminar os esboços do grande

pintor que fizera esta imensa paleta onde os inúmeros acidentes da vida

humana eram lançados em profusão, com desdém.» Só por reconstituição

poética se completa a compreensão do fragmentário.

Se neste passo de La Peau de chagrin encontramos uma acumulação de

objectos que se converte em colecção graças ao olhar e à interpretação do

protagonista (e do narrador)266, não se pode então dizer que uma colecção é

simplesmente uma acumulação. Uma colecção não nasce nem existe

espontaneamente; tem de ser identificada ou criada por uma perspectiva

humana. Precisamos da noção de humanidade e da noção de intenção para

descrevermos a noção de colecção. Uma acumulação de objectos só poderá ser

descrita como colecção através de uma perspectiva humana que lhe atribui

inteligibilidade e valor.

                                                            266 Alguns exemplos de acumulações de objectos que não se convertem em colecções são: a descrição da loja de Krook no quinto capítulo de Bleak House; a descrição da loja de Mr. Venus no sétimo capítulo de Our Mutual Friend.  

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193  

Por si só, qualificar «colecção» como descrição relacionada com a

atribuição de valor267 identifica a actividade de coleccionar como actividade

distintamente humana. Como lembra Joseph Alsop268, enquanto certos animais,

como alguns pássaros, produzem acumulações de objectos porque estão

programados geneticamente para reagirem desse modo perante determinados

objectos ou certas combinações de cores e padrões, os seres humanos não

coleccionam por instinto ou por programação genética, mas sim porque tomam

essa opção livremente.

O que distingue um conjunto de objectos reunidos por um animal, por

um lado, e um conjunto de objectos reunidos por uma pessoa, por outro, é a

possibilidade de atribuição de intenção complexa à pessoa. Enquanto um

animal reúne objectos por estar geneticamente programado para tal, uma

pessoa reúne objectos estabelecendo um maior número de relações complexas

entre coisas e assumindo motivações diversas. Além disso, como vimos no

quarto capítulo, podemos explorar e descrever o comportamento humano

através de mecanismos de analogia e de projecção empática. O mesmo não se

aplica ao comportamento dos animais269.

                                                            267 Como nota Susan Pearce: «A escolha é central ao processo de coleccionar; é uma palavra  que  expressa  a  sua  natureza  dual  específica  de  selecção  e  de  atribuição  de valor.»   (Pearce 2006, 27.)  268 Alsop,  Joseph. 1982. The Rare Art Traditions: The History of Art Collecting and  Its Linked  Phenomena  Wherever  These  Have  Appeared.  Nova  Iorque:  Harper  &  Row Publishers, 79.  269 «Se um  leão  fosse capaz de  falar, nós não seríamos capazes de o compreender.» (Wittgenstein,  Ludwig.  [1953]  1995.  Investigações  Filosóficas.  Trad. M.  S.  Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 596.)   

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194  

A caracterização da actividade de coleccionar como eminentemente

humana vai ao encontro da reflexão sobre o tópico não só de Christine

Korsgaard a partir da filosofia de Kant, mas também de coleccionadores como

Dominique de Menil. Conforme assinalámos no quarto capítulo, na filosofia

kantiana, nomeadamente em Fundamentos da Metafísica da Moral, é muito

importante a distinção entre seres humanos e Natureza através do uso da razão

traduzida na liberdade de escolha e de pensamento.

Não estamos a defender que só podemos descrever um conjunto de

objectos como «colecção» se estes tiverem sido reunidos com essa intenção por

uma (ou mais) pessoa(s), mas sim que a descrição «colecção» requer uma

perspectiva humana.

Podemos ter uma colecção sem termos um coleccionador, se houver

alguém que identifique relações de sentido inteligíveis num conjunto de

objectos. É o que se verifica em relação aos objectos das casas-museus em que o

homenageado não se autodescreveu como coleccionador. Podemos atribuir o

estatuto de colecção a um conjunto de objectos reunidos por alguém que não se

descreveu como coleccionador ou até a um conjunto de objectos não reunidos

por seres humanos, assim como às vezes podemos descrever o comportamento

de uma pessoa de um modo distinto da autodescrição do mesmo

comportamento pela própria pessoa que o praticou.

A descrição «colecção» não se distingue exclusivamente pela associação à

intenção de coleccionar por dois motivos principais. Primeiro, devido às

dificuldades de fixação cronológica do início da colecção que esta associação

traria (é frequente começar-se a coleccionar de modo não-intencional).

Segundo, porque não basta um coleccionador descrever o seu comportamento

como «coleccionar» e um conjunto de objectos como «colecção» para que tais

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195  

descrições sejam verdadeiras, nem alguém recusar a descrição «colecção» para

o conjunto de objectos que reuniu para que tal descrição seja falsa: «A intenção

de uma pessoa ao agir não é uma coisa tão privada e interior que ela tenha

autoridade absoluta para dizer aquilo que é.»270

Quanto às dificuldades de fixação cronológica do início de uma colecção,

é preciso salientar que a intenção de coleccionar, à semelhança do que se

verifica com outras intenções humanas, precisa de tempo para se desenvolver e

revelar. Como observa Russell W. Belk, ao contrário do que muitos julgam, é

frequente o início de uma colecção ser acidental271. Em vez de alguém decidir

espontaneamente começar uma colecção dedicada a algum tema, é mais comum

esta decisão ser tomada depois de o futuro coleccionador já ter na sua posse um

ou mais objectos oferecidos ou adquiridos sem intenção prévia e inequívoca de

constituição de uma colecção.

Por este motivo, teóricos como Mieke Bal insistem nas ideias de que o

início de uma colecção é «pré-histórico» e de que uma colecção começa quase

sempre in media res272, visto que antes de uma colecção começar oficialmente já

                                                            270 Anscombe,  Elizabeth.  [1957] 2000.  Intention. Cambridge, MA e  Londres: Harvard University Press, 36.  271 «Em contraste com a sabedoria tradicional, as nossas descobertas e as de Johnston Beddow  (1986)  indicam  que  as  colecções  de  um  tipo  particular  de  objecto frequentemente  têm um  início acidental ou  informal.  [...] Para muitos, um presente [...]  ou  uma  descoberta  aparentemente  feliz  de  um  objecto  […]  é  o  início  de  uma colecção. [...]/ De certo modo, muitas colecções são ‘descobertas’ pelos seus criadores muito depois de os seus elementos terem sido reunidos. Entre os nossos informantes, um  tinha  acumulado  vários  pinturas,  tapeçarias  e  outros  artefactos  representando animais  [...].  Esta  ‘colecção’  não  se  registou  [imediatamente]  como  tal  na  sua consciência,  tendo‐se  revelado  depois  de  reflexão.»  (Belk,  Russell.  «Collectors  and Collecting», Pearce, Susan M. (ed.). 2006. Interpreting Objects and Collections. Londres e Nova Iorque: Routledge, 318.)  272  «Em  relação  ao  enredo  das  colecções,  o  acontecimento  inicial  é  arbitrário, contingente,  acidental.  [...]  Só  retrospectivamente,  através  de  uma  manipulação 

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196  

muitas coisas aconteceram273. Segundo Mieke Bal, a descrição «colecção»

implica uma manipulação retrospectiva de acontecimentos: o que inicialmente

foi circunstancial é convertido a posteriori num momento motivado de uma

cadeia de acontecimentos relacionados com a colecção.

No segundo capítulo desta tese, a propósito tanto dos mecanismos da

memória como da colecção de John Soane, referimos a manipulação temporal

que caracteriza a actividade de coleccionar. Nas colecções propriamente ditas,

esta manipulação traduz-se em anacronismos relacionados com a presença de

objectos provenientes de tempos e espaços diferentes. Podemos dizer que não só

a actividade de coleccionar consiste em manipular, prolongando, o tempo dos

objectos, como também a própria noção de colecção exige um olhar através do

tempo que reinterpreta o passado a partir do presente, redescrevendo como

«coleccionar» actos inicialmente não motivados por essa intenção.

Visto que a intenção de coleccionar não é necessariamente anterior à

reunião destes objectos, revelando-se, pelo contrário mais frequentemente a

posteriori, as colecções têm uma pré-história enquanto acumulação. A descrição

«colecção» corresponde à identificação e ao desenvolvimento de uma intenção.

O que é válido para intenções e para o comportamento humano em geral

mantém validade no que diz respeito às colecções. Como por vezes se verifica

                                                                                                                                                                              

narrativa  da  sequência  de  acontecimentos,  pode  a  aquisição  acidental  do  primeiro objecto converter‐se no início de uma colecção. No enredo, é pré‐histórica, na história intervém  in  media  res.  O  início,  em  contraste,  é  um  significado,  não  um  acto. Coleccionar torna‐se coleccionar quando uma série de presentes ou compras fortuitas se  convertem  subitamente  numa  sequência  com  significado.»  (Bal,  Mieke.  [1994] 1997.  «Telling  Objects:  A  Narrative  Perspective  on  Collecting,  Elsner,  John  e  Roger Cardinal (ed.), The Cultures of Collecting. Londres: Reaktion Books, 99‐100.)  273  A  propósito  da  sua  colecção,  Dominique  de  Menil  afirmou:  «Só  muito  tarde admitimos  que  éramos  coleccionadores.»  (citado  em  Stourton,  James.  2002.  Great Collectors of Our Time: Art Collecting Since 1945. Londres: Scala, 160.) 

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197  

com outros comportamentos humanos, as intenções vão-se revelando e

clarificando à medida que as acções vão sendo desenvolvidas, sucedendo por

vezes que a intenção se torna clara ou é revelada mais tarde por outra pessoa.

Assim como a intenção é um processo que se define em acto, traduzindo-se

numa acção observável, também a intenção de constituir uma colecção se vai

concretizando gradualmente.

A ideia de colecção como processo articula-se com a circunstância de as

colecções se prolongarem no tempo com aquisições sucessivas de elementos,

sucedendo por vezes que o conceito inicial se vai refinando, ao ponto de o

coleccionador optar por vender objectos que considera ou menos valiosos ou

menos adequados ao conceito revisto274, usando ou não o dinheiro desta venda

para adquirir outros objectos.

A intenção de coleccionar, além de não estar necessariamente presente

no início não-oficial da colecção, quando é assumida associa-se a um conceito

de colecção susceptível de mais transformações porque dependente da

interacção dos desejos e das concepções do coleccionador com o espaço em que

se move e as pessoas que o rodeiam.

Em todos os casos que até aqui explorámos, a vertente intersubjectiva e

pública das colecções tem-se revelado essencial. Esta circunstância articula-se

com a noção de que a descrição «colecção» não pode depender simplesmente

                                                            274  Foi  o  caso  de  Louis‐Antoine  Prat:  «Quando  comecei  a  coleccionar  comprava desenhos holandeses,  italianos,  franceses  e  alguns do  século  vinte. Mas  encontrava mais facilmente desenhos franceses importantes e interessantes. Na altura, a colecção era muito grande – tinha mais de mil desenhos. Mais tarde pensei que devia começar por me  livrar dos desenhos estrangeiros e passar a coleccionar na área que conheço bem – entre Poussin e Cézanne. Escrevi muito sobre Poussin, Watteau, David e vários artistas do século dezanove, como Delacroix. Por isso passei a coleccionar entre 1600 e 1990.»  (http://www.panachemag.com/Archive/9_05/TheBuzz/TheCollector/Prats.asp, consultado em 20 de Outubro de 2014.)  

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198  

nem de uma declaração particular da intenção de coleccionar por um pretenso

coleccionador, nem da proposta dessa descrição por terceiros. Tem de haver

consenso e corroboração desta descrição, ambos baseados nas práticas e nas

interacções em torno do conjunto de objectos em questão.

Em Intention, Elizabeth Anscombe refere directamente o tópico dos

coleccionadores uma única vez275, de passagem, associando coleccionar à ideia

de valorização (ou seja, à ideia de que se colecciona o que se considera bom),

mas há outros passos nesta obra que são relevantes para o nosso tópico.

Em algumas secções deste ensaio, Anscombe aproxima as noções de

querer e de saber. Segundo Anscombe, assim como se percebe que alguém

domina determinado assunto (por exemplo, sabe distinguir cores) a partir das

acções e dos comportamentos desta pessoa, também se percebe o que alguém

valoriza a partir do que esta pessoa faz276. Por outras palavras, os nossos

desejos e as nossas intenções revelam-se e concretizam-se no que fazemos: «Ora

bem, se quisermos dizer pelo menos algumas coisas verdadeiras acerca das

intenções de uma pessoa, teremos fortes hipóteses de sucesso se mencionarmos

o que ela realmente fez ou está a fazer. Quaisquer que sejam as suas intenções

                                                            275 «Bonum est multiplex: o bom é multiforme e tudo o que é requerido para o nosso conceito de ‘querer’ é que a pessoa veja aquilo que quer sob o aspecto de algum bem. Uma colecção de bocados de osso com 7,62 centímetros, se é um objecto pertencente a alguém, é algo acerca do qual queremos ouvir algum elogio antes de o entendermos enquanto objecto; seria afectação dizer ‘uma pessoa pode querer seja aquilo que for e é o caso que eu quero isto’, e de facto um coleccionador não fala assim; ninguém fala assim  a  não  ser  por  irritação  ou  para  pôr  fim  a  perguntas maçadoras.»  (Anscombe 2000, 75.)  276 «[S]e alguém sem razão aparente nos diz  ‘quero um alfinete’ e nega que o queira para alguma coisa e, vamos supor, lhe damos um alfinete e tentamos perceber o que faz com este. Ele pega no alfinete, sorri e diz ‘obrigado, o meu querer foi gratificado’ – mas o que é que ele  faz com o alfinete? Se ele o colocar nalgum  lado e se esquecer dele, em que sentido ainda é verdade que queria um alfinete?» (Anscombe 2000, 71.)  

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199  

de fazer outras coisas, ou quaisquer que sejam as suas intenções ao fazer o que

está a fazer, a maior parte das coisas que diríamos de caras que essa pessoa fez

ou estava a fazer serão coisas intencionais.»277

Se uma descrição possível de colecção é um conjunto de objectos

relacionados inteligivelmente e valorizados por alguém, de acordo com

Elizabeth Anscombe a melhor descrição de colecção exigiria a descrição das

práticas e das actividades desenvolvidas pelo coleccionador, ou pelo responsável

pela colecção, antes e depois da sua obtenção. O que fazemos com alguma coisa

é indissociável do modo como a valorizamos. De forma semelhante, quem o

coleccionador é articula-se com o que o coleccionador faz; o que uma colecção é

articula-se com o que é feito em torno desta. Colecções, coleccionadores e a

actividade de coleccionar são mais bem descritos a partir de processos ou

interacções, não como elementos fechados.

Na mesma linha de pensamento, Michael Thompson278 nota, aliás, que

uma das grandes virtudes de Intention é usar a interacção como cena

fundamental e assim mostrar que os conteúdos mentais se definem e clarificam

por interacção: «Os exemplos típicos de Anscombe são não só progressivos e

imperfectivos e in media res, mas também tipicamente com a primeira pessoa

como personagem, ou antes, como poderíamos dizer, com a primeira e a

segunda pessoa. [...] Do ponto de vista formal, esta interacção é de certo modo a

cena fundamental que Anscombe trabalha ao longo do livro.»

                                                            277 Anscombe 2000, 8.  278  Thompson, Michael.  2011.  «Anscombe’s  Intention  and  Practical  Knowledge»  in Ford, Antony et alii. Essays on Anscombe’s Intention. 2011. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press, 198‐210. 

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O facto de Anscombe descrever o desenvolvimento das acções («quando

as coisas precisamente NÃO estão feitas, NÃO fazem parte do passado; ainda há

mais para vir, falta alguma coisa [...] quando não há acção, mas só alguma coisa

que estou a fazer») permite uma descrição mais completa e correcta das

situações279 e das intenções.

Em La Peau de chagrin, a valorização de Cuvier como poeta e figura de

interpretação coloca em segundo plano o seu trabalho taxonómico280,

secundarizando o papel da classificação, numa curiosa inversão das práticas do

Iluminismo. Antes do Iluminismo, a forma mais cultivada de colecção foi a dos

gabinetes de curiosidades. Os gabinetes de curiosidades estabeleciam um

contexto a partir do qual era possível interpretar as relações dos objectos por

que eram constituídos. Como nota David L. Martin281 a partir da leitura de

Michel Foucault282, ao contrário das colecções posteriores ao Iluminismo,

organizadas hierarquicamente e por categorias, as colecções dos gabinetes de

curiosidades, colocando todos os objectos ao mesmo nível, propunham um

                                                            279  Por  contraste  com Davidson:  «Falta  assim  alguma  coisa  à  doutrina  de Davidson sobre os eventos ou  as  coisas que  aconteceram, nomeadamente, para  ir directo  ao assunto, as coisas que não aconteceram. Ou seja, ele esquece‐se das coisas que não aconteceram  mas  estavam  a  acontecer.  [...]  Por  esta  razão,  sugiro,  Davidson  não consegue  captar  correctamente a natureza do que  realmente aconteceu,  isto é, dos acontecimentos,  especialmente  nos  casos  em  que  estes  são  acções  intencionais completas.» (Thompson 2011, 205.)  280 Cuvier expandiu a taxonomia de Lineu integrando nesta fósseis e seres vivos.  281  «Longe  de  ser  uma  falta  (de  ordem),  esta  ausência  de  hierarquia  estrita  de materiais a  separar e a ordenar os  vários objectos dentro de uma  colecção não era senão atenção ao acto cognitivo decisivo que acompanhava o ‘uso’ de um gabinete: a interpretação. Através de organizações  sucessivas  [...] esse esclarecimento podia  ser achado.» (Martin 2011, 42‐43.)  282 Foucault, Michel. 1966. Les mots et les choses. Paris: Gallimard. 

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201  

convite às práticas da interpretação283. No Iluminismo, associar um espécime a

uma categoria tornou-se mais importante do que explorar quer o contexto

cultural, quer as semelhanças e as relações de objectos que partilhavam o

mesmo contexto.

Para descrever o nosso tópico, as práticas interpretativas associadas aos

gabinetes de curiosidades parecem mais adequadas do que aquelas da

taxonomia. Precisamos mais das actividades do poeta Cuvier do que das

práticas do naturalista. É mais importante explorar as implicações e relações

contextuais das colecções e dos seus objectos do que atribuir-lhes uma etiqueta

classificatória enquanto colecção ou não-colecção que os desliga do contexto e

das práticas através dos quais foram reunidos e/ou integrados na vida das

pessoas.

O privilégio da interpretação em detrimento da classificação associa-se à

ideia de que não podemos distinguir colecção e não-colecção a não ser tomando

em consideração casos concretos e, em articulação com estes, um conjunto de

práticas entre as quais se destaca um discurso capaz de tornar inteligível as

relações que os objectos coleccionados podem estabelecer entre si.

No primeiro capítulo desta tese desenvolvemos um argumento

semelhante a propósito dos Mármores do Parténon. Como Philip Fisher observa

acerca das variações do estatuto ontológico de uma espada, a identidade de um

objecto é afectada pelas práticas e interacções em torno deste. De acordo com

esta perspectiva, sem descrevermos estas práticas não obteremos descrições

completas do que pretendemos estudar.

                                                            283 Ver também Hooper‐Greenhill 1992.  

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Visto que uma grande parte da literatura sobre colecções assume uma

vertente psicologista, convém notar que, entre as objecções que é possível

contrapor a descrições exclusivamente psicológicas ou psicanalíticas dos

coleccionadores e da actividade de coleccionar, é importante a ideia de que

coleccionar é uma actividade que se traduz em comportamentos públicos de

interacção, não devendo ser exclusivamente descrita por referência a impulsos e

conteúdos mentais e privados.

Constatar que um dos elementos mais importantes da actividade de

coleccionar é a interacção interior/exterior e o modo como coleccionar

representa uma expansão e concretização do interior no exterior obriga-nos a

problematizar as abordagens psicologistas que tendem a associar

exclusivamente a actividade de coleccionar ao desejo neurótico de protecção em

relação ao mundo exterior, descrevendo-a como forma de resistência ou de

autoprotecção relativamente a forças exteriores que o coleccionador receia não

conseguir controlar. Esta é uma descrição tão abrangente que, como nota

Pearce284, se poderá aplicar a um grande número de actividades humanas. Um

exemplo de alguém que propõe este tipo de descrição é Muensterberger285.

Outro exemplo, já referido, é Baudrillard, que defende que coleccionar expressa

o desejo de escapar à mudança. Como observa Kevin Melchionne286, estas

propostas traçam um retrato estático e neurótico do coleccionador, enquanto

coleccionar é um processo dinâmico que implica interacção, crescimento e

                                                            284 Pearce 1995, 10.  285  Muensterberger,  Werner.  1994.  Collecting:  An  Unruly  Passion.  Psychological Perspectives. San Diego, Nova Iorque e Londres: Princeton University Press.  286 Melchionne, Kevin. 1999. «Collecting as an Art» in Philosophy and Literature 23 (1), 148‐156.  

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203  

transformação287. Convém também notar que as abordagens psicologistas se

centram principalmente nas causas do comportamento dos coleccionadores288,

descritas como iguais para todos289, não considerando com a devida atenção

nem a possibilidade de diferenças nas motivações nem o que vem depois das

supostas causas.

Estas abordagens revelam-se artificiais e acabam por destacar as

características mais invulgares, bizarras e negativas da actividade, excluindo

paradoxalmente os seus traços mais comuns, que caracterizam a maioria dos

coleccionadores. Um exemplo deste tipo de abordagem pode ser encontrado no

prefácio do livro The Great Collectors, de Pierre Cabanne290.

Neste prefácio, Cabanne descreve os coleccionadores como inválidos

possessivos, tão degenerados como os toxicodependentes, os alcoólicos e os

jogadores, vítimas de uma paixão neurótica de tipo obsessivo que por vezes

destrói toda a consciência moral, convertendo-os em ladrões e vigaristas.

Cabanne propõe uma justificação psicológica para este tipo de comportamento:

«Na realidade, os objectos cobiçados pelo coleccionador representam a sua                                                             287  «O  dinamismo  do  processo  de  coleccionar  aponta  para  outra  insuficiência  do paradigma‐fetiche  das  colecções,  nomeadamente  a  concepção  estática  do coleccionador. [...] Para Baudrillard, o  impulso recorrente de coleccionar baseia‐se no desejo  de  evitar  a  mudança  e  de  assim  recuperar  uma  sensação  de  segurança. Coleccionar  é  uma  tentativa  de  evitar  o  crescimento  em  vez  de  uma maneira  de crescer.» (Melchionne 1999, 152.)  288 «A minha abordagem é psicológica. Com isto quero dizer que pretendo explorar as condições  generativas  da  causa  da  enfatuação  obsessiva  do  coleccionador  pelos objectos.» (Muensterberger 1994, 7.)  289  «Independentemente  das  idiossincrasias  individuais  dos  coleccionadores,  e independentemente  do  que  ou  de  como  estes  coleccionam,  há  uma  questão fundamental:  os  objectos  na  posse  destes  acabam  sempre  por  ser  redutos frequentemente  inconscientes  contra  o  desespero  e  a  solidão.»  (Muensterberger 1994, 48.)  290  Cabanne, Pierre. [1961] 1963. The Great Collectors. Londres: Cassell. 

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busca eterna de si próprio. Supremamente anti-social por natureza, o

coleccionador não sente autoconfiança a não ser através das suas conquistas,

que lhe recordam os momentos em que ele de algum modo dominou o seu

destino. (viii-ix); «Coleccionar é sem dúvida uma forma de defesa contra as

pessoas, a sociedade, o tempo e a História.» (xi). Este prefácio

involuntariamente caricatural sintetiza na perfeição os lugares-comuns mais

frequentes quer das descrições mais académicas, quer das obras mais

generalistas ou mais populares sobre o tema.

Além de sublinharem artificialmente as características mais invulgares

para distinguirem colecção e coleccionador, estas definições tendem a isolá-los

do contexto em que se situam, assim rejeitando o que de mais importante

ajudaria a descrevê-los: as práticas em que se integram.

Encontramos o mesmo tipo de erro em abordagens que defendem a ideia

de que os objectos de colecção não têm valor de uso e que vêem as colecções

como universos estanques, imunes ao tempo e às variações das actividades

humanas. Destacar a suspensão do uso dos objectos de colecção redunda no

erro grave do isolamento da colecção relativamente à vida dos coleccionadores e

dos que os rodeiam e conduz a certos erros lógicos sobre o tópico. Entre os

autores que cometem este erro salientam-se Alsop e Pomian. Segundo Alsop,

ninguém colecciona tomando em consideração qualquer preocupação

relativamente ao uso dos objectos291. Se notarmos que muitas colecções se

                                                            291 «[A]rte‐para‐uso‐mais‐beleza cedera o  lugar à arte‐como‐fim‐em‐si‐mesmo. Este é o  tema  comum  a  todas  as  colecções  de  arte.  [...]  Quando  e  onde  quer  que  uma colecção de arte comece, as obras de arte  [...]  tornam‐se  fins em  si mesmos,  sendo portanto coleccionadas sem qualquer consideração da sua utilidade ou da falta desta.» (Alsop 1982, 36‐37.)  

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organizam precisamente em torno da função prática original dos objectos que

integram, concluiremos que Alsop não tem razão.

A abordagem de Pomian ajuda a explicar o erro conceptual da proposta

de Alsop. Pomian chega a cunhar um novo termo – semióforo – para descrever

uma estranha categoria de objectos que só tem significado e nenhuma

utilidade292. Fica por explicar o que determina o significado ou a identidade do

semióforo se este não é usado e nenhum dos seus usos anteriores é considerado

importante. Não se percebe como um objecto pode ser descrito

independentemente das práticas em que é integrado.

Dir-se-ia que, para autores como Pomian e Alsop, as colecções existem

num universo alternativo, totalmente impermeável às actividades humanas:

«este estranho mundo em que a palavra ‘utilidade’ parece ser desconhecida,

visto que dizer que os objectos que agora estão totalmente dependentes do

olhar do curioso ainda têm alguma utilidade seria uma distorção linguística

grosseira: as chaves e os cadeados já não prendem qualquer porta, as máquinas

nada produzem e ninguém espera que os relógios dêem horas. Ainda que

tenham desempenhado uma função específica na sua existência anterior, as

peças de museu e de colecção deixaram de ter qualquer função».293 Sucede, no

                                                            292  «[Sobre  a  relação  entre  a  utilidade  e  o  significado] Há  três  diferentes  situações possíveis:  uma  coisa  tem  utilidade  mas  é  desprovida  de  qualquer  significado;  um semióforo tem só significado, de que é ele próprio o vector, e absolutamente nenhuma utilidade;  ou  um  objecto  tem  aparentemente  tanto  utilidade  como  significado.  [...] [N]enhum  objecto  pode  ser  simultaneamente  coisa  e  semióforo  para  o  mesmo observador, visto que só é uma coisa quando está a ser usado, e nessa situação o seu significado é irrelevante. Se o seu significado tem prioridade, a sua utilidade reduz‐se a mera  potencialidade.  [...]  [U]tilidade  e  significado  são mutuamente  exclusivos,  visto que quanto mais um objecto está carregado de significado, menos útil é e vice‐versa.» (Pomian,  Krzysztof.  [1987]  1990.  Collectors  and  Curiosities:  Paris  and  Venice  1500‐1800. Trad. Elizabeth Wiles‐Porter, Cambridge: Polity Press, 30.)  293 Pomian 1990, 7‐8. 

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206  

entanto, que ou alguns objectos de colecção continuam a ser usados, apreciados

e usados de acordo com a sua função original, ou, quando isto não se verifica,

continuam integrados na vida dos coleccionadores, da sua família e dos

visitantes da colecção, que os usam para os diferentes fins que bem entendem.

5.2 Oscilações de valor

As colecções não existem na Natureza. Ser colecção requer uma

perspectiva humana que descreva como tal um conjunto de coisas. Na Filosofia

do Dinheiro, Georg Simmel nota que o valor das coisas não está inscrito na sua

existência na Natureza: entregue a si própria, a Natureza destrói objectos que as

pessoas consideram valiosos e preserva coisas pouco importantes na

perspectiva humana294. No quarto capítulo desta tese, a partir de Kant e de

Christine Korsgaard, salientámos que os seres humanos se distinguem na

Natureza pela racionalidade. Nesta dimensão reside a possibilidade de sermos

livres de valorizar e preservar o que consideramos importante para nós.

Na ideia de «colecção» e na actividade de coleccionar está implícita a

atribuição individual de valor295 e de inteligibilidade através de acções. Como

                                                            294 «O valor dos objectos, pensamentos e acontecimentos nunca pode ser  inferido da sua mera existência na Natureza e do  seu mero  conteúdo, e  a  sua  classificação em termos  de  valor  difere  em  grande medida  da  sua  ordem  natural.  A  Natureza,  em muitos  casos,  destrói  objectos  que,  no  que  diz  respeito  ao  valor,  deveriam  ser preservados, e preserva objectos  sem valor que ocupam o  lugar dos mais valiosos.» (Simmel,  Georg.  [1978]  2011.  The  Philosophy  of Money.  Trad.  e  ed.  David  Frisby. Londres e Nova Iorque: Routledge, 61.)  295  «Há, podemos dizer,  três  grandes  correntes de pensamentos que  convergem no termo presente. São elas: 1.  ‘valores’ no sentido sociológico: concepções do que, em última instância, é bom, adequado ou desejável na vida humana; 2. ‘valor’ no sentido económico: o grau em que os objectos são desejados, em particular em termos do que os  outros  estão  preparados  para  dar  em  troca  para  os  obter;  3.  ‘valor’  no  sentido 

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207  

Anscombe observou, colecciona-se o que se considera bom. Esta noção de bom é

relativa aos fins, aos usos e às práticas em que estes objectos se podem integrar,

como observámos no quarto capítulo, quando comentámos a secção de Les

Caractères que La Bruyère dedica aos coleccionadores. Em termos simples, os

coleccionadores reúnem objectos em que reconhecem alguma importância,

integrando-os num conjunto inteligível a partir tanto das relações estabelecidas

entre si como da relação entre o conjunto da colecção e o que a rodeia.

Ser bom, ter valor, é poder ser integrado numa série de acções e relações,

ou seja, é poder ser usado. Um coleccionador valoriza um objecto quando pensa

que este poderá estabelecer relações significativas com outros objectos no

conjunto da colecção, assim contribuindo também para a relevância da colecção

em relação ao que está fora dela.

Deste modo, uma das características mais importantes das colecções é

uma perspectiva humana de reconhecimento ou de construção de valor

conceptual, afectivo, cultural e/ou financeiro – pelo coleccionador e/ou pelos

responsáveis pela atribuição do estatuto de colecção aos objectos em questão. O

que é lixo para alguns pode tornar-se uma colecção valiosa graças a uma

descrição inteligível que se traduz em determinadas práticas como aquisição,

organização conceptual implícita ou explícita, preservação e/ou uso. Esta

atribuição de valor não pode ser reduzida a um conteúdo mental privado porque

se manifesta na vida social e em acções.

                                                                                                                                                                              

linguístico,  que  remonta  à  linguística  estrutural  de  Ferdinand  de  Saussure  (1966),  e pode  ser  parafraseado  simplesmente  como  ‘diferença  significativa’./Quando  os antropólogos de agora falam de ‘valor’ – em particular quando usam o termo ‘valor’ no singular quando um antropólogo de há vinte anos usava o termo ‘valores’ no plural – estão  no  mínimo  a  sugerir  que  não  é  coincidência  que  todas  estas  coisas  sejam identificadas através da mesma palavra. Em última  instância, todas são refracções da mesma coisa.» (Graeber, David. 2001. Toward an Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams. Nova Iorque: Palgrave, 1‐2) 

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208  

Abordar a questão do valor é essencial para explicar a interacção do

individual, do subjectivo e do interior, por um lado, com o colectivo, o social, o

objectivo e o exterior, por outro. Por implicarem a aquisição e a integração de

elementos, as colecções confrontam valores individuais com valores colectivos e

valores de mercado.

O valor financeiro despendido nas aquisições objectiva e traduz o valor

individual que o coleccionador associa às peças da colecção. Em certos casos,

como o do protagonista do romance Le Cousin Pons, de Balzac, o valor que o

coleccionador atribui aos objectos não é simplesmente afectivo. Poderá

acontecer o coleccionador deter conhecimentos que outros não têm e, por isso,

ser capaz de reconhecer a inadequação do valor de mercado de alguns objectos.

Certas colecções ainda mais idiossincráticas chamam a atenção para objectos

até aí ignorados, pelos quais mais ninguém até então se tinha interessado. A

colecção começa por ser apreciada pelo seu valor historico-cultural, sendo

posteriormente atribuído valor financeiro tanto aos objectos desta colecção

como a objectos semelhantes296. Nestes dois casos, os valores individuais

modificam os valores de mercado297.

A partir do romance Le Cousin Pons podemos, aliás, explorar algumas

destas questões: a relação entre o valor de mercado e o valor atribuído pelo

coleccionador aos objectos de colecção; a capacidade do coleccionador para

                                                            296  «As  colecções  de  sucesso  começam  por  ser  divertidas,  tornando‐se  depois interessantes  e,  por  último,  importantes.  Movimentam‐se  a  partir  do  modo  de colecção que  se  situa nas margens do  sistema em direcção às categorias artísticas e intelectuais no topo deste.» (Pearce 1995, 394.)  297 Segundo Melchionne, os coleccionadores também afectam os valores estéticos: «A actividade  de  coleccionar  torna‐se  original  do  ponto  de  vista  criativo  quando  o coleccionador  está  empenhado  em  definir  o  que  conta  como  coleccionável.  Neste caso, o  coleccionador está  a participar na  construção  social da percepção estética.» (Melchionne 1999, 152.) 

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209  

reconhecer e recuperar objectos de valor esquecidos; o percurso acidentado dos

objectos até à colecção; a relação entre a colecção e a vida familiar e social do

coleccionador; e até a impossibilidade de possuir inteiramente os objectos e de

fixar para sempre a sua importância298.

Sylvain Pons é um coleccionador com fundos limitados mas dotado de

qualidades («tinha os três ingredientes do sucesso: as patas do cervo, o tempo

livre dos flâneurs e a paciência do israelita»), graças às quais reúne uma

colecção de objectos preciosos adquiridos a baixo preço299. A circunstância de

esta colecção vir a ser posteriormente cobiçada tanto por outros coleccionadores

como por familiares indiferentes ao valor cultural dos objectos mas interessados

no seu valor financeiro representa a legitimação social do seu discernimento

enquanto coleccionador.

Na capacidade de descobrir e identificar obras de arte entre o lixo dos

ferros-velhos e das lojas de velharias, assim fazendo aquisições valiosas com

quantias de dinheiro irrisórias, residem o talento e a felicidade de Pons como

coleccionador: «O velho músico punha em prática o axioma de Chenavard, o

sábio coleccionador de gravuras preciosas, que defendia que só se pode ter

prazer a observar um Ruysdael, um Hobbema, um Holbein, um Rafael, um

Murillo, um Greuze, um Sebastiano del Piombo, um Giorgione, um Albrecht

Dürer, se o quadro não tiver custado mais de cinquenta francos. Pons não fazia

aquisições superiores a cem francos e para pagar cinquenta francos por um

                                                            298 O nosso objectivo não é propor uma análise literária dos romances de Balzac, mas antes  usar  estes  textos  sempre  que  nos  permitam  clarificar  algumas  das  questões associadas ao tópicos desta tese.  299 No  início do século XIX ainda era possível   a descoberta de objectos especiais ou raridades  (pintura,  miniaturas  e  porcelana,  entre  outros  objectos)  confiscados  na Revolução  Francesa  mas  posteriormente  esquecidos  entre  outros  objectos insignificantes das lojas de bricabraque ou ferro‐velho. 

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210  

objecto, esse objecto tinha de valer três mil. Se custasse mais de trezentos

francos, a coisa mais bela do mundo deixava de existir para ele.»

Pons identifica objectos que considera valiosos entre trastes esquecidos

em lojas obscuras, objectos que anteriores proprietários consideraram

insignificantes ou cuja importância outras pessoas se revelam incapazes de

apreciar, como se verifica no caso do leque pintado por Watteau que Pons

oferece à prima ignorante. A capacidade de adquirir a preços insignificantes

obras de arte valiosas representa a marca do conhecimento secreto que desde os

gabinetes de curiosidades parece distinguir os coleccionadores300. Tais

aquisições requerem o exercício de um conhecimento singular que permite a

certos coleccionadores trilhar um percurso alternativo à cultura dominante.

Apesar de durante algum tempo Pons desenvolver este percurso

particular, contíguo ao mercado e à sociedade, aliado a uma perspectiva

individual em que o valor dos objectos é determinado não pelo seu valor social e

de mercado mas sim pela importância que o coleccionador lhes atribui ou

reconhece e pelo papel que podem desempenhar na colecção, eventualmente

não só o valor de mercado é afectado pela sua visão e selecção singular, como

também a colecção se revela vulnerável às incursões da família, da sociedade, do

mercado e dos outros coleccionadores. Neste sentido, o percurso de Pons ilustra

                                                            300 «Com efeito,  se há um princípio primordial nas colecções privadas, é o de que o coleccionador, estabelecendo uma ordem diferente das  coisas,  aprecia o  facto ou  a fantasia  de  sonegar  autoridade  das  instituições  e  até  daquilo  a  que  chamamos ‘cultura’,  estabelecendo  um  sistema  diferente  de  valor  e  de  significado.  A  colecção torna‐se fonte de conhecimento especializado – sobre vidro veneziano, ou cromos de basebol, ou espadas, ou Barbies, ou  selos. Os  coleccionadores  coleccionam mais do que objectos; coleccionam o conhecimento (por muito pedestre ou profundo que este seja) que lhes dá o poder de retirar prazer desses objectos e de lucrar com a ignorância do outro. Mais do que um simples consumidor, o coleccionador vive para as emoções fortes  da  discussão  de  preços  porque  esta  constitui  a  marca  teatral  de  um conhecimento  simultaneamente  superior  e  secreto.»  (Brown,  Bill,  2001a.  «The Collecting Mania», The University of Chicago Magazine, Vol. 94, No. 1.) 

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211  

a interacção entre valores individuais e privados e valores económicos e

universais.

Na história de Pons, o coleccionador consegue manter durante algum

tempo a colecção isolada dos olhares dos outros, designadamente da família,

dos outros coleccionadores, do mercado e das trocas comerciais em geral. A

partir do momento em que Pons é afectado pela doença, a colecção fica

vulnerável ao exterior, tornando-se objecto de visitas clandestinas e de

transacções ilegítimas e furtos.

O próprio título do romance, identificando Pons a partir da suas relações

familiares, sugere desde logo a impossibilidade do protagonista de se isolar da

rede de relações socioeconómicas em que nasceu. Como observa Janell Watson,

a grande lição de Le Cousin Pons é a de que não é possível isolar uma colecção

de tudo o que a rodeia: «Esta é, de certo modo, a ‘moral’ de Le Cousin Pons: é

fútil tentar evitar que uma colecção reunida no mercado regresse ao mercado.

[...] Escondê-la, mesmo que nunca seja encontrada, não a torna menos

social.»301

O que Watson conclui sobre a colecção de Pons aplica-se igualmente a

casos de colecções secretas e de coleccionadores que recusam qualquer visita ou

divulgação das suas colecções. Coleccionar nunca pode ser uma actividade

puramente privada, particular, associada a valores e conteúdos mentais

exclusivos. Mesmo que o coleccionador se esforce por isolar a colecção de tudo o

resto, a verdade é que esta ficará inevitavelmente exposta depois do

desaparecimento ou enfraquecimento do seu proprietário.

                                                            301 Watson 2004, 133.  

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212  

Para mais, a necessidade de efectuar transacções e de fazer aquisições

situa inevitavelmente o coleccionador numa rede de conhecimentos e

contactos302. Em Le Cousin Pons, outros coleccionadores já tinham ouvido falar

da colecção mítica de Pons através de comerciantes ainda antes de Pons

adoecer. Como certa vez salientou o coleccionador Otto Schäfer (1912-2000), é

muito difícil ser coleccionador quando se cultiva o isolamento: «A não ser que

os negociantes e os outros coleccionadores nos conheçam e simpatizem

connosco, perdemos as melhores oportunidades para outros.» 303

Deve acrescentar-se ainda que os coleccionadores que proíbem a

divulgação da sua colecção não serão os mais comuns, ainda que alguns deles

possam adquirir alguma notoriedade devido a esta opção. No livro que escreveu

sobre coleccionadores importantes do século XX304, James Stourton salienta

que cerca de dois terços dos coleccionadores referidos manifestaram interesse e

empenharam-se activamente na divulgação das suas colecções305.

                                                            302  Ver,  por  exemplo,  este  relato  sobre  a  importância  da  rede  de  contactos  na aquisição  de  peças  para  a  Colecção  Menil:  «[O]s  especialistas  com  que  John  e Dominique  cultivavam  relações  de  amizade  próxima  eram,  entre  outras  coisas, instrumentais para garantir o acesso às obras  logo que estas chegavam ao mercado; contribuíam  para  enriquecer  a  colecção  e  melhorar  as  escolhas  dos  coleccionares agindo como mentores, conselheiros, intermediários e espiões.» (Smart 2010, 79.)  303  Stourton,  James.  2002.  Great  Collectors  of  Our  Time:  Art  Collecting  Since  1945. Londres: Scala, 16.  304 Stourton 2002.  305  «A maioria,  talvez  dois  terços  dos  coleccionadores  referidos  neste  livro,  de  uma forma  ou  de  outra  emprestaram,  expuseram  ou  catalogaram  as  suas  colecções.» (Stourton 2002, 10.)  

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213  

Proposta pelo coleccionador Louis-Antoine Prat (1944), a ideia de que

«possuímos apenas aquilo que partilhamos»306 parece descrever a atitude da

maioria dos coleccionadores, não sendo portanto exclusiva a coleccionadores

com preocupações éticas e filantrópicas como os Menil. Charles Saatchi

afirmou: «Compro arte principalmente para a mostrar.»307 A corroboração

social não implica sempre filantropia; pode ser simplesmente uma forma de

auto-afirmação ou de exibicionismo. Na maior parte dos casos, contudo, está

também em causa a vontade de comunicar um conjunto de percepções

consideradas pertinentes e válidas sobre determinados objectos, aliada ao

desejo de participar na discussão colectiva e permanente sobre o que tem valor

ou é importante.

A ideia de se possuir apenas o que se partilha vai igualmente ao encontro

da noção anscombiana de intenção como comportamento observável. A vida

individual das pessoas articula-se com a percepção que as outras pessoas têm

desta. Sem corroboração, a imagem que as pessoas têm de si próprias e das

relações que estabelecem com o que as rodeia parece decorrer num plano pouco

fiável, mais próximo da fantasia.

A propósito da autoconsciência humana, Robert Pippin afirma: «Uma

auto-imagem nunca realizada socialmente, nunca expressa em acção pública,

tem de contar mais como fantasia do que como elemento de autoconhecimento.

[...] A nossa auto-imagem torna-se um facto social através da acção e o seu

significado deixa de poder estar associado exclusivamente à intenção ou à

                                                            306 «Possuímos apenas aquilo que partilhamos, seja conhecimento, seja um objecto.» (citado em Stourton 2002, 52.)  307 Stourton 2002, 336.  

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214  

vontade do agente.»308 Neste sentido, uma colecção é semelhante à imagem que

as pessoas têm de si próprias: a partilha torna ambas socialmente objectivas.

Balzac parece consciente do impulso humano para a objectivação de

conteúdos mentais. Em La Peau de chagrin, perto do fim do passo em que se

descreve a loja de antiguidades, nota-se uma certa indistinção entre o

protagonista e os objectos que observa: «Perseguido pelas formas mais

estranhas, por criações maravilhosas instaladas nos confins da morte e da vida,

ele avançava através dos encantamentos de um sonho. Por fim, duvidando da

sua existência, era como esses objectos curiosos, nem totalmente morto, nem

totalmente vivo.» O protagonista deste romance adquire nesta loja uma pele de

onagro mágica que lhe permite a realização de todos os desejos com a

contrapartida de cada desejo satisfeito encurtar a duração da sua vida e

diminuir o objecto mágico. Podemos dizer que esta pele objectiva a vida do

protagonista. Há elementos em comum entre esta situação e a do protagonista

do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, em que as más acções

do protagonista se reflectem fisicamente num retrato em vez de afectarem o seu

corpo. Nos dois casos, a vida moral e física das personagens é representada e

tornada clara através de um objecto.

No romance Le Cousin Pons, como se Pons tivesse ele próprio adquirido

características de objecto, o coleccionador é descrito como uma peça de

colecção: «Sob esse chapéu, que parecia prestes a tombar, prolongava-se uma

dessas figuras grotescas e pitorescas como só os chineses imaginam para os seus

magos de porcelana. Esse rosto largo, crivado como uma escumadeira em que os

buracos produzissem sombras e esculpido como uma máscara romana,                                                             308  Pippin,  Robert.  2005.  «On  ‘Becoming  Who  One  Is’  (and  Failing):  Proust’s Problematic Selves»  in Pippin, Robert B. 2005. The Persistence of Subjectivity: On the Kantian Aftermath. Cambridge: Cambridge University Press, 318‐319. 

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desmentia todas as leis da anatomia.» Depois de falar do «valor arqueológico»

de Sylvain Pons, o narrador do romance sugere ainda que a actividade de

coleccionar afecta de tal maneira o protagonista que Pons acaba por partilhar da

complexidade temporal anacrónica dos objectos de colecção, reunindo em si

características típicas de épocas muito diferentes: «Conservando em alguns

pormenores da sua roupagem alguma fidelidade às modas do ano de 1806, esse

transeunte lembrava o Império sem o fazer de modo demasiado caricatural. [...]

Um homem envergando um spencer, em 1844, é, já estão a ver, como se

Napoleão se tivesse dado ao trabalho de ressuscitar por duas horas.»

Como tentaremos aprofundar no sexto capítulo, não estamos a defender,

como Bill Brown309, que a indistinção entre pessoas e coisas suscitada pelas

colecções faz com que as pessoas possam ser confundidas com coisas e as coisas

sejam tratadas como pessoas. Estamos mais próximos de Simmel neste ponto.

Podemos articular a noção de que os conjuntos de objectos a que chamamos

colecções concretizam conteúdos mentais, conceitos, intenções e valores

disponibilizando-os para corroboração social com a ideia de inspiração

hegeliana de Georg Simmel310 de que a consciência de se ser um sujeito que

deseja objectos representa uma objectivação.

Segundo Simmel, o início da vida mental caracteriza-se pela

indiferenciação entre sujeito e objecto: «A vida mental começa num estado

                                                            309 «Se o sucesso da colecção depende, em primeiro lugar, de um acto de objectivação [...] então coleccionar com sucesso pode subitamente levar‐nos a pensar nas pessoas e nas  coisas  do mesmo modo.»  (Brown  2001.)  Vamos  retomar  este  passo  no  sexto capítulo.  310 Simmel 2011.  

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indiferenciado em que o ego e os seus objectos ainda não se distinguiram»311.

Sujeito e objectos constituem-se reciprocamente quando o sujeito adquire

consciência da distância que os separa e a consciência desta distância se associa

à atribuição de valor aos objectos que passa a desejar: «O objecto assim

formado, caracterizado pela separação relativamente ao sujeito que ao mesmo

tempo o estabelece e procura ultrapassá-lo pelo seu desejo, é para nós um valor.

[...] O valor só se restabelece como contraste, como objecto separado do

sujeito»312. A valorização de um objecto depende da consciência da sua distância

relativamente ao sujeito.

De acordo com Simmel, o autoconhecimento humano relaciona-se com a

capacidade de nos objectivarmos perante nós mesmos, isto é, na capacidade de

nos vermos e analisarmos como veríamos um objecto (ou outra pessoa) a que

prestássemos atenção313. Esta ideia parece ter uma demonstração concreta tanto

em La Peau de chagrin e The Picture of Dorian Gray, como na integração de

retratos dos coleccionadores na suas colecções, como acontece quer na Colecção

Menil, quer nas casas-museus de John Soane e de Isabella Stewart Gardner.

Assim como o retrato de Dorian Gray e a pele de onagro de Raphaël

Valentin revelam a vida destas personagens, ao ponto de Dorian Gray esconder

esta imagem para que os outros não percebam quem é, também os objectos das

colecções são extensões dos coleccionadores, como se torna evidente nos casos

                                                            311 Simmel 2011, 66.  312 Simmel 2011, 69.   313 «A actividade  fundamental da nossa mente que determina a sua  forma como um todo é a de podermos observar‐nos, conhecer‐nos e avaliar‐nos a nós próprios como a qualquer outro objecto; dissecamos o ego, experienciado como unidade, num sujeito que percepciona e num objecto que é percepcionado, sem  perdermos a sua unidade; pelo  contrário,  este  torna‐se  consciente  da  sua  unidade  através  desse  antagonismo interior.» (Simmel 2011, 67.) 

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frequentes em que as colecções integram retratos dos coleccionadores. O facto

de estes retratos assumirem o mesmo estatuto que as restantes peças da

colecção sugere que todas as peças da colecção podem ser vistas como

objectivações do coleccionador. Deste modo, sujeito e objectos constituem-se

reciprocamente: o coleccionador pode ser conhecido através das peças da

colecção e as peças da colecção são conhecidas, percepcionadas e valorizadas

por intermédio do coleccionador.

Não se trata de confundir pessoas com coisas e de tratar coisas como

pessoas, como sugere Bill Brown. O sujeito não é simplesmente convertido num

objecto porque não só preserva a consciência da distância entre sujeito que

percepciona e objecto percepcionado, como também mantém agencialidade,

actividade e responsabilidade.

O«escândalo epistemológico»314 em que as pessoas se afirmam como

sujeitos e agentes através dos objectos que reúnem é, aliás, evidente desde os

tempos dos gabinetes de curiosidades. Como notámos no terceiro capítulo, os

coleccionadores situam-se ao mesmo tempo entre os objectos que coleccionam e

interpretam – e fora deste conjunto. Tendo em conta que os gabinetes de

curiosidades representam uma espécie de universo em miniatura que procura

homenagear e reproduzir a criação divina, os proprietários dos gabinetes de

curiosidades, enquanto seres criados por Deus, integram-se na sua colecção

como qualquer outro dos objectos. Apesar desta integração, os proprietários do

gabinetes assumem ao mesmo tempo o ponto de vista do criador da colecção,

situando-se, portanto, exteriormente a esta e assim preservando a sua

agencialidade.

                                                            314 Martin 2011, 50.  

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De acordo com Simmel, o valor económico objectiva e exterioriza valores

subjectivos. A aquisição através de um valor comercial ajuda a objectivar valores

subjectivos: o coleccionador paga a importância que atribui aos objectos.

(Importância aqui, aliás, assume o duplo sentido de relevância e de quantia

monetária.) Nesta troca, o valor subjectivo, objectivando-se numa quantia,

torna-se supra-subjectivo e supra-individual315 na medida em que pode ser

conhecido pelos outros. Pelo facto de implicar uma quantia monetária ou uma

troca por outro objecto, uma aquisição torna objectivo e partilhável o valor que

o coleccionador atribui a um objecto. O valor de transacção do objecto traduz o

valor particular e subjectivo que o coleccionador lhe atribui em termos

compreensíveis pelas outras pessoas. O facto de haver mais do que uma pessoa

envolvida na transacção coloca o valor atribuído numa relação objectiva. Deste

modo, qualquer aquisição implica uma interacção entre o privado e subjectivo,

por um lado, e o público e colectivo, por outro.

Assim, qualquer colecção, por muito secreta que o coleccionador a

considere, depende das relações entre o indivíduo e o que o rodeia. Através das

acções e das aquisições que realiza, o coleccionador vai concretizando relações

de sentido entre si e os objectos adquiridos, por um lado, e, por outro, entre

estes objectos e os outros já integrados na colecção.

Em suma, os maiores problemas das definições de colecção têm a ver

com a referência de traços distintivos que conduzem a noções demasiado

                                                            315 «A  troca pressupõe uma avaliação objectiva de valorizações subjectivas»  (Simmel 2011, 85). «O valor de um objecto adquire esta visibilidade e tangibilidade [...] através do  facto  de  um  objecto  ser  oferecido  em  troca  de  outro.  Este  equilíbrio  recíproco retira os dois objectos da esfera da avaliação meramente subjectiva. A relatividade da avaliação significa a sua objectivação.» (Simmel 2011, 83.)  

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219  

restritas do tópico e que, paradoxalmente, o desligam do que de mais

importante há na actividade.

As abordagens psicologistas da actividade de coleccionar habitualmente

retratam os coleccionadores como figuras excêntricas que raiam a patologia e

recorrem às colecções como reduto de estabilidade, em oposição às

instabilidades e mudanças do universo exterior à colecção. De acordo com esta

perspectiva, as colecções constituem universos isolados e inacessíveis a

qualquer interacção com o que as rodeia. Estas abordagens tendem igualmente

a associar a actividade de coleccionar e o próprio valor e significado das

colecções a intenções e conteúdos mentais privados dos coleccionadores,

necessariamente desligados e independentes do universo de inteligibilidade das

outras pessoas.

Pelo contrário, temos constatado a importância da interacção entre

coleccionadores e colecções e o que os rodeia, tanto a nível individual e privado

como socialmente. Para os coleccionadores como indivíduos, as colecções

correspondem a um processo de autodefinição perante si e perante os outros,

pelo modo como ajudam a objectivar e a partilhar intenções, conceitos e valores

na esfera social.

Percebemos também como a sociedade pode ser afectada e influenciada

pelas percepções individuais dos coleccionadores quando estas são

concretizadas através das colecções. A corroboração pública da inteligibilidade e

do valor da colecção enquanto tal pode conduzir a transformação de percepções

de valor, como se verifica no romance Le Cousin Pons. Pela liberdade de os

coleccionadores escolherem livremente o que tem valor – o que é coleccionável

–, as colecções podem funcionar como mecanismos alternativos de produção de

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220  

sentido e de valor316. Estamos a falar não só do valor de mercado mas também

da própria ontologia dos objectos.

Abordagens do tópico que associam as colecções e os museus à suspensão

do uso dos objectos ignoram que as práticas possibilitadas por estes contextos

dão origem a diferentes estatutos ontológicos destes objectos. Não é por serem

usados de modos que não correspondem à sua função original que estes

objectos deixam de ser usados e integrados na vida e nas práticas das pessoas.

Todas as colecções referidas nesta tese incluem objectos que sofreram

oscilações de valor ao longo dos tempos. Peças do Parténon foram usadas como

entulho; se John Soane não tivesse guardado alguns fragmentos de edifícios

demolidos, estes teriam desaparecido; Mary Berenson disse que a casa-museu

de Isabella Stewart Gardner lhe lembrava mais uma «junkshop» (loja de

velharias) do que um museu pelo facto de incluir objectos de uso diário que

faziam parte da vida da coleccionadora, lado a lado com obras de arte canónicas

e outras consideradas menos valiosas; a Colecção Menil inclui várias peças que

nem sempre foram valorizadas como arte, por exemplo, artefactos pré-

colombianos que durante muito tempo foram vistos como curiosidades

etnográficas ou retratos funerários egípcios que os saqueadores de túmulos

durante muito tempo deixaram para trás como lixo317. A própria colecção

                                                            316«A  actividade de  coleccionar pode  ser uma das  formas de  resistência  à  repetição vazia  da  aquisição  e  às  promessas  ilusórias  da  mercadoria.  Ser  um  coleccionador significa  ultrapassar  a  chamada  fantasmagoria  do  objecto  e  percepcionar,  procurar obter,  adquirir  e  apreciar  objectos  tomando  em  consideração  diversos  valores potenciais.» (Melchionne 1999, 151.)  317 «A formação da designação ‘retrato de Fayum’ está intimamente relacionada com a prática de sretirar as imagens funerárias das múmias a que pertencem, prática comum entre os saqueadores de túmulos, negociantes e coleccionadores do século dezanove [...]. Devido ao carácter sui generis do seu estilo particular, nessa altura estes retratos eram considerados lixo e simplesmente deitados fora.»  (Menil Collection, 60.) 

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221  

ficcional de Sylvain Pons, posteriormente tão cobiçada pelo valor das suas

peças, foi constituída a partir de visitas a lojas de velharias e ferros-velhos em

que supostamente haveria apenas objectos para ali enviados como lixo. Em

todos estes casos, o coleccionador afectou o valor das peças através da sua

intervenção.

Assim, importa também salientar a característica das colecções que torna

possível esta dinâmica ontológica: a complexidade da relação das colecções com

o tempo. As colecções não só prolongam a vitalidade dos objectos no tempo,

instalando no presente objectos oriundos de um passado mais ou menos

remoto, como também dependem de uma visão retrospectiva que

constantemente reconstrói o passado das aquisições do coleccionador para ir

reformulando o conceito ou conceitos na base da organização da colecção.

A relação das colecções com o tempo reflecte-se igualmente naquilo que

Didier Maleuvre descreve como «a incerteza do valor histórico»318, isto é, na

possibilidade de a informação que a História reconstitui sobre a importância e o

significado dos objectos no seu contexto de origem se desactualizar ou

desvalorizar ou ser reformulada e até esquecida319. A tela Galeria de Arte

Romana no Museu, de Hubert Robert, que descrevemos no segundo capítulo,

pode ilustrar a ideia de que as colecções e os museus são espaços de reavaliação

estética, política e económica que revelam a fragilidade e os limites do valor da

                                                            318 Maleuvre 1999, 206.  319  Comentando  a  secção  inicial  de  La  Peau  de  chagrin,  Maleuvre  observa  que  a descrição dos objectos na loja de antiguidades, relacionada no texto com o reflexo do Louvre nas águas do Sena no seu exterior, «sublinha a fragilidade da tradição histórica, a  vulnerabilidade  do  valor  histórico  ao  esquecimento,  ao  menosprezo  e  à reinterpretação.  [...]  [E]nquanto  valor,  a  História  perde  terreno  e  sucumbe  às vicissitudes do devir histórico.» (Maleuvre 1999, 206‐207.) 

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222  

informação histórica, mesmo quando estes museus ou colecções assumem o

objectivo pedagógico de preservar e divulgar a História320.

Por todos estes motivos, estamos próximos da descrição de colecção que

Russell Belk propõe: «Entendemos a actividade de coleccionar como aquisição

selectiva, activa e longitudinal, posse e disposição de um conjunto inter-

relacionado de objectos diferenciados (coisas materiais, ideias, seres ou

experiências) que contribuem com e extraem significado extraordinário da

entidade (a colecção) que a percepção deste conjunto constitui»321.

A proposta de Belk tem vários méritos322, não sendo o menor destes o

modo como alarga o âmbito do conceito de colecção. Em primeiro lugar, toma

em consideração a importância da noção de série como conjunto dinamizador

do sentido de cada peça individual em interacção com as restantes peças do

grupo. Como nota Belk, numa colecção a ideia do todo vai sendo afectada pelas

aquisições de peças para a colecção, assim como o valor destas peças é

individualmente afectado pela sua integração neste conjunto323. Neste sentido,

                                                            320  «Consagrando,  mas  também  reavaliando  a  História,  o  museu  paradoxalmente instala a incerteza na História.» (Maleuvre 1999, 207.)  321 Citado em Pearce 2006, 158.  322  Como  assinala  Susan  Pearce:  «Esta  definição  inclui  a  ideia  de  conjunto  inter‐relacionado, a classe ou série de Durost, e acrescenta‐lhe a noção de que a colecção como entidade é maior do que a soma das suas partes, um contributo importante para a  discussão.  Convoca  um  coleccionador  que  selecciona  activamente,  com  uma perspectiva pessoal ou subjectiva desta actividade, e reconhece que coleccionar é uma actividade que se prolonga no tempo.» (Pearce 2006, 158.)  323  Esta descrição pressupõe  a  ideia de  conjunto, pelo que deixa de  fora  a  ideia da existência de  colecções de uma  só peça. Como de  costume, no entanto,  se assim o desejarmos, é possível imaginar e discutir excepções. Por exemplo, uma colecção que inclui  a  única  peça  que  resta  de  um  conjunto  prévio  de múltiplos  elementos  que desapareceram  ou  foram  destruídos.  A  ideia  de  conjunto  persiste. Muensterberger (1994, 34)  imagina outro exemplo de uma colecção com uma só peça: «Alguém que 

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223  

coleccionar já é usar os objectos e este uso ou esta interacção, traduzido na

integração num conjunto, afecta o significado e o valor dos objectos dentro e

fora da colecção. Não há significado sem uso, ao contrário do que defendem

Alsop e Pomian. Em segundo lugar, a descrição de Belk inclui uma referência

ao tempo necessário para as colecções, o que se articula com a ideia de que o

significado e o valor da colecção se vão transformando, ampliando e

enriquecendo através de novas aquisições. A terceira grande vantagem da

proposta de Belk é a ideia de que uma colecção não é constituída meramente

por objectos ou coisas materiais: Belk fala de coisas, ideias, seres ou

experiências em relação.

Em conclusão, é importante rejeitar mais uma vez a ideia de que há

fronteiras nítidas e claras entre o que é ou não uma colecção. Não se pode dizer

que haja um conjunto de propriedades identificáveis que convertem

inequivocamente um conjunto de objectos em colecção. Temos de reter a noção

de colecção como actividade humana de construção de inteligibilidade e de

valor. Por esse motivo, para compreendermos esta actividade, interpretar acções

(dos coleccionadores e das pessoas em torno da colecção) parece mais

importante do que classificar ou produzir uma lista de características. Um

conjunto de objectos ser ou não uma colecção é parcialmente determinado pela

actividade interpretativa e pelas acções de quem se relaciona com este conjunto.

                                                                                                                                                                              

procura  um  único  exemplo  de  raridade  ou  perfeição  inultrapassável,  e  se  sente satisfeito com ele, não é um coleccionador, a meu ver. [...] Contudo, se ele continuar à procura de um exemplo melhor, e depois de outro melhor, e ainda assim a busca não terminar,  trata‐se  de  um  coleccionador  na minha  opinião.  O  impulso  e motivação obsessivas são o mais decisivo  [...].» A propósito do traço distintivo de colecção aqui apontado por Muensterberger, convém, no entanto, notar que a obsessão não é uma característica exclusiva aos coleccionadores. 

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224  

Como desenvolveremos no sexto capítulo, uma colecção é mais um modo de ver

– uma relação entre pessoas e coisas – do que um conjunto de objectos.

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225  

6. Relações entre pessoas e coisas

«E a definição de pessoa seria então: a experiência repetida do fracasso de se tornar uma coisa.»

Barbara Johnson324

6.1 Confusões e distinções

Depois de termos explorado as interacções de pessoas e coisas, sublinhar

algumas distinções entre ambas permitir-nos-á chamar a atenção para a noção

de vida associada ao tópico das colecções – uma noção de vida enquanto acção,

participação e autodefinição no espaço intersubjectivo.

Colocando lado a lado pessoas e coisas, as colecções tornam claro que as

pessoas, quando estão vivas, só se confundem com as coisas se abdicarem (ou

forem impedidas) de agir. Nem os mortos, nem as coisas, nem as pessoas

totalmente enredadas na própria subjectividade podem coleccionar. Coleccionar

implica uma vertente activa relacionada com o interesse para interagir com o

que está fisicamente fora de nós.

Discordamos da observação de Bill Brown segundo a qual a actividade de

coleccionar pode facilmente produzir uma confusão entre pessoas e coisas: «Se

o sucesso da colecção depende, em primeiro lugar, de um acto de objectivação

[...] então coleccionar com sucesso pode subitamente levar-nos a pensar nas

pessoas e nas coisas do mesmo modo. Por muito escandalizados que nos

sintamos perante este excesso, a distinção entre pessoas e coisas

                                                            324 Johnson 2008, 59.  

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226  

inevitavelmente desvanece-se um pouco quando coleccionamos coisas para

conjurarmos as pessoas que as possuíram.»325

A afirmação de Brown parece demasiado inofensiva para que nos

importemos com ela. Será, porém, tomada como ponto de partida para

sublinharmos algumas distinções que não queremos deixar escapar. Neste

passo, Bill Brown descreve uma situação habitual – «pensar nas pessoas e nas

coisas do mesmo modo» – sem, contudo, a explorar até às últimas

consequências. Sublinhar, como Bill Brown, as confusões entre pessoas e

objectos sem chamar a atenção para certas distinções quase triviais de tão

evidentes é tratar estas distinções como dado adquirido quando na realidade

elas precisam de atenção. Queremos reflectir um pouco mais sobre os

problemas possíveis da atribuição de características humanas a coisas. Isto

permitir-nos-á simultaneamente salientar alguns dos pontos principais desta

tese.

Em primeiro lugar, a circunstância de serem coleccionadas coisas

relacionadas com pessoas não implica necessariamente que as pessoas são

confundidas com coisas, mas antes que para evocarmos uma pessoa podemos

convocar as coisas de que esta se rodeava visto que estas faziam parte sua vida.

Os objectos e os lugares em que as pessoas vivem fazem parte da identidade

destas porque se integraram ou integram nas suas acções e nos seus

pensamentos. Como Alexander Nehamas observa a partir da filosofia de

Nietzsche, cada pessoa pode ser vista como conjunto não só de pensamentos,

intenções e acções, mas também de conteúdos ou referências concretas destes

                                                            325 Brown 2001a.  

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227  

pensamentos, intenções e acções326. Por este motivo, quando as pessoas

desaparecem, estes objectos podem ser associados a elas e à sua memória. No

entanto, nunca as substituem adequadamente327.

Contra Brown, se olharmos para um conjunto de objectos, a noção de

colecção não é imediatamente visível: os objectos não têm ideias, não têm

desejos nem são capazes de realizar acções328. Numa colecção, as intenções, as

ideias, os conceitos e as relações são tão importantes como os objectos – e esta

dimensão conceptual ou imaterial deriva das pessoas, não das coisas. Não há

colecção sem pessoas, como observámos no quinto capítulo. Um conjunto de

objectos não pode ser considerado uma colecção antes de uma perspectiva

humana o descrever enquanto tal e de esta descrição ter corroboração329.

                                                            326  «O  que  temos  portanto  de  atribuir  ao  eu  é  a  soma  dos  seus  próprios  actos juntamente com os conteúdos destes: cada sujeito é constituído não apenas pelo facto de pensar, querer e agir, mas também precisamente por aquilo que pensa, quer e faz.» (Nehamas, Alexander. 1985. Nietzsche:  Life as  Literature. Cambridge, MA e  Londres: Harvard University Press, 180.)  327 Neste sentido, há uma diferença decisiva entre as noções de relíquia e de objecto de colecção ou de museu, visto que, para um crente, a  relíquia mantém as mesmas capacidades da pessoa ou do objecto de que fazia parte, sendo capaz de produzir os mesmos efeitos milagrosos, enquanto uma peça de colecção ou de museu é incapaz de agir:  «Os  objectos  de  culto  religioso  medievais  tinham  agência  num  sentido  mais literal.  Não  eram  como  a  vida;  viviam  (pelo menos  às  vezes).  [...]  Fragmentos  de madeira  ou  de  osso,  pão,  vinho,  lascas  de  parede  ou  de  tinta  eram  animados [sangravam,  choravam,  mexiam‐se,  iluminavam‐se].  Dir‐se‐ia  que  a  vida  ou agencialidade destes residiam não no seu naturalismo ou na sua similitude mas na sua materialidade.» (Bynum 2011, 282.)  328 A distinção entre pessoas e coisas,  já de si suficientemente clara,    torna‐se ainda mais evidente se   compararmos colecções de pessoas com colecções de objectos. Os coleccionadores  de  pessoas,  sejam  eles  serial  killers,  Don  Juans,  a  protagonista  do filme A Coleccionadora, de Éric Rohmer, ou o protagonista do romance The Collector de  John  Fowles,  arriscam‐se  a  enfrentar  a  possível  oposição  ou  resistência  dos  que tentam coleccionar. Os coleccionadores de objectos só recebem indiferença.    329 Um  caso  extremo, mas que  reforça  a  ideia de que  a  colecção não  depende dos «desejos dos objectos», é o do conto «A Colecção  Invisível», de Stefan Zweig. Neste 

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228  

No segundo capítulo propusemos que os coleccionadores encaram as

colecções como uma extensão de si mesmos, capaz de preservar a memória e as

intenções destes antes e depois da sua morte. Neste sentido, poderíamos dizer

que os coleccionadores aspiram ao estatuto material e idealmente imperecível

das coisas e dos objectos. Contudo, a impossibilidade de garantir este desejo de

confusão ou indistinção entre coleccionador e colecção, assim como a

dificuldade de impor e fixar uma interpretação da colecção determinada pelo

coleccionador, como é possível observar a propósito de certas reacções à casa-

museu de Isabella Stewart Gardner ou em relação à dispersão de tantas

colecções importantes ou irrelevantes, fazem sobressair os problemas das

confusões entre pessoas e objectos e a dificuldade de recuperar as pessoas a

partir dos objectos que possuíram.

Nenhuma colecção substitui ou traduz o coleccionador garantidamente,

antes ou depois da sua morte. Os objectos não se explicam a si mesmos quando

fora de uma relação com acções e enunciados humanos. Colecções que não são

acompanhadas por um aparato legal e financeiro que assegure a sua preservação

ficam vulneráveis à incompreensão e aos interesses laterais dos herdeiros

(ganhar dinheiro, propor uma organização diferente, etc.) depois da morte dos

coleccionadores.

                                                                                                                                                                              

texto conta‐se a história de um coleccionador que perdeu a visão e cuja família, devido a dificuldades económicas, vendeu a colecção de gravuras, substituindo‐as por folhas de  papel  em  branco.  Sem  saber  isto,  o  coleccionador  revisita  a  suposta  colecção diariamente,  sendo  capaz  de  descrever  pormenorizadamente  as  imagens  e  os episódios associados, como se nada tivesse mudado. Os objectos já não fazem parte da colecção.  Esta,  no  entanto,  continua  a  existir  para  o  coleccionador  cego.  Também neste  caso  a  propriedade  não  parece  decisiva.  A  colecção  reside  na  relação  do coleccionador com aqueles objectos e por isso é invisível; o mais importante não está nos objectos, mas no coleccionador. 

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229  

Em segundo lugar, na perspectiva de Bill Brown, numa colecção os

próprios objectos parecem adquirir agencialidade: «[Q]uando dizemos que uma

colecção realmente exige esta ou aquela aquisição, estamos a dar voz não ao

desejo por objectos, mas ao desejo dos objectos. Começamos a valorizar o que os

objectos querem: querem que sejamos os intermediários da relação deles com

outros objectos. Começamos a atribuir aos objectos algo como o estatuto de

sujeito, com disposições próprias, se não estranhos acessos de paixão.

Começamos a ultrapassar a distinção ontológica, demasiado sensata, entre seres

humanos e o mundo físico em que estes habitam.»330

A atribuição aos objectos de características humanas como desejos (a

ideia de que os objectos de uma colecção se escolhem uns aos outros, por

exemplo) – uma versão pretensamente mais subtil do lugar-comum segundo a

qual a actividade de coleccionar é uma compulsão – articula-se com a

desresponsabilização dos coleccionadores, o primeiro problema da confusão

entre pessoas e coisas quando se está a reflectir sobre o tópico das colecções

com o objectivo de o clarificar.

Para esta tese é fundamental a ideia de que os coleccionadores, tal como

as outras pessoas, são agentes conscientes e responsáveis pelas próprias acções.

A longo prazo, coleccionar é uma actividade intencional, relacionada com a

autodefinição das pessoas perante si mesmas e perante os outros331. Sugerir,

ainda que pseudometaforicamente, que os objectos têm «disposições próprias»

                                                            330 Brown 2001a.  331 Não  estamos  a  negar  a  possibilidade  de  as  pessoas,  de  vez  em  quando  ou  por doença,  agirem  impulsiva  ou  irracionalmente.  Visto,  no  entanto,  que,  como defendemos  no  quinto  capítulo,  a  actividade  de  coleccionar  não  só  se  prolonga  no tempo como se articula com acções que exigem planeamento, parece difícil defender que  todas  as  aquisições  relacionadas  com  a  actividade  resultam  de  impulsos incontroláveis ou são realizadas por compulsão. 

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230  

implica a ideia de que os coleccionadores não são realmente responsáveis pela

própria colecção. Ideias como esta parecem inócuas mas estão espalhadas em

quase tudo o que se escreve sobre o tópico, quer em contexto académico, quer

fora deste. Esta desresponsabilização traduz-se na menorização da actividade de

coleccionar como capricho ou mania, sem qualquer consideração do seu valor e

do seu possível impacto positivo. Propor que «os objectos se escolhem uns aos

outros» associa-se facilmente à ideia de que coleccionar não é uma actividade

que implica tempo, investigação, reflexão, conhecimentos e interacção com as

outras pessoas.

A atribuição destas características humanas aos objectos contribui

também para os lugares-comuns sobre coleccionadores que fomos identificando

ao longo desta tese, os quais, ainda que pareçam apelativos pela bizarria,

acabam por assumir consequências políticas negativas para todos nós. Muita

gente aceitar como certa, sem parar um pouco para pensar sobre estas questões,

a ideia de que os objectos têm certas características humanas mais ou menos

metaforicamente, é um dos motivos pelos quais se enraiza a crença de que

algumas coisas podem proteger-se sozinhas. Por exemplo, quase ninguém

protestará se o trabalho de preservação (incluindo investigação, conservação,

exposição e divulgação) de obras de arte não receber o financiamento

necessário. Se falássemos mais vezes da vulnerabilidade de certas coisas como

obras de arte, textos filosóficos ou literários e algumas práticas em torno destes

que são necessárias à sua preservação, talvez mais pessoas fossem sensíveis à

gravidade dos cortes de financiamento de algumas instituições e actividades.

A imprecisão de Bill Brown e de outros que adoptam uma perspectiva

semelhante para falar da relação entre pessoas e coisas em questão nas

colecções assume, portanto, consequências éticas e consequências políticas. A

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231  

dimensão ética deste problema relaciona-se com uma má avaliação do impacto

das actividades humanas tanto a nível individual como a nível colectivo.

Individualmente, as pessoas devem ser avaliadas pelo que fazem. Desligar as

pessoas daquilo que fazem não só as desresponsabiliza das próprias acções

como também pode escamotear o valor das suas actividades. Convém

percebermos que, por um lado, as nossas acções têm consequências na nossa

própria vida e na dos outros e que, por outro, o não-empenhamento em certas

actividades tem igualmente repercussões.

Uma descrição da relação entre pessoas e coisas que atribui às segundas

capacidades que só caracterizam as primeiras impossibilita uma boa

compreensão tanto do que é ser uma pessoa, como da necessidade de uma ética

que assegure a preservação das coisas que consideramos importantes. Sem esta

ética relativamente às coisas, sem a compreensão correcta de que ser uma

pessoa implica a liberdade de agir como tal, preservando o que se considera

importante, não teremos decisões políticas que respeitem as pessoas e as coisas.

Sem dúvida, a confusão ou aproximação entre características de coisas e

de pessoas assume muitas vezes aspectos que facilitam a interacção de

conceitos abstractos e elementos materiais e, com esta, a própria inteligibilidade

das pessoas e dos percursos destas no universo material. Ainda assim, é ingénuo

acreditar que todas as confusões entre pessoas e coisas são inofensivas. Não

estamos sequer a pensar nos casos mais graves em que as pessoas são tratadas

como coisas (escravatura, etc.). Queremos apenas chamar a atenção para

algumas consequências do erro conceptual de atribuir às coisas capacidades

humanas.

Estamos a dizer que coleccionar objectos se articula com a percepção de

uma distinção fundamental entre objectos e pessoas, de acordo com a qual os

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232  

objectos, ao contrário das pessoas, não se protegem nem se explicam a si

mesmos. O primeiro e o segundo capítulo desta tese chamam a atenção para a

vulnerabilidade não só das coisas materiais, mas também das próprias obras de

arte mais importantes da nossa cultura. Entregue a si mesmo, sem protecção

humana, o Parténon aproximou-se do estatuto de ruína. Os museus, as

colecções e os coleccionadores, apesar de serem muitas vezes associados à

desintegração do contexto original das obras de arte, contribuem, pelo

contrário, para preservar certos objectos (e com estes, certas práticas, certos

valores, alguma informação) que de outro modo poderiam perder-se para

sempre.

O segundo problema da confusão entre pessoas e coisas relaciona-se com

o risco de reduzir as pessoas a uma descrição meramente material. Devido a

uma certa saturação relativamente aos problemas e abusos das descrições

psicológicas (generalizações, lugares-comuns, desresponsabilização das pessoas

relativamente às suas acções, explicações demasiado elaboradas), uma das

motivações desta tese foi explorar as possibilidades de descrever

coleccionadores e pessoas a partir do que é intersubjectivo, observável e

partilhado. Esta ideia, no entanto, não é incompatível com a noção de que as

pessoas têm uma vida mental que não é totalmente observável e pode não ser

partilhada, ainda que uma das conclusões desta tese seja a de que o que de

subjectivo partilhamos com os outros é mais importante do que aquilo que não

partilhamos – no sentido em que o partilhado tem mais consequências na vida

dos outros e na nossa.

Estes dois tipos de problemas das confusões entre pessoas e coisas

(desresponsabilização das pessoas, descrições puramente materiais) são

facilmente evitáveis se prestarmos atenção à vertente ética da distinção entre

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233  

pessoas e objectos – vertente aliás sublinhada por Kant quando fala das pessoas

como «fins em si mesmos». Nesse caso sobressai não só a noção de

responsabilidade das pessoas pelas suas acções, associada à ideia de que é

preciso assumir esta capacidade de acção, mas também a importância de uma

relação ética das pessoas tanto umas com as outras como com os próprios

objectos.

Falar dos objectos de uma pessoa ou de uma cultura para descrevermos

essa pessoa ou essa cultura não implica reduzir a descrição desta pessoa ou

desta cultura aos objectos que lhes pertencem. Implica que, para o melhor e

para o pior, as pessoas também são o que fazem com as coisas à sua disposição.

Aprendemos a ser humanos não só com as pessoas que conhecemos, mas

também com os objectos que herdamos, reunimos, usamos ou preservamos.

Precisamos de uma relação ética com os objectos em nosso redor que

implica quer a consciência da sua possível polivalência ontológica (a ideia de

que estes poderão ser usados de modos diferentes ao longo do tempo), quer a

ideia de que preservar um objecto que valorizamos pode corresponder a

preservar uma faceta cultural ou identitária que não queremos perder. Cabe às

pessoas a preservação das coisas que consideram importantes visto que estas

não se preservam a si próprias.

Depois de salientarmos os problemas da atribuição de características

humanas às coisas, vamos pensar sobre alguns problemas de descrever pessoas

como coisas. No romance À Rebours, de Joris-Karl Huysmans332, estamos

interessados nas implicações que, parecendo óbvias, nem sempre são assumidas

e compreendidas integralmente, da evidência de que as pessoas se distinguem

                                                            332 Huysmans, Joris‐Karl. [1884] 1977. À Rebours. Paris: Folio.  

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234  

das coisas pela capacidade de pensar e pela capacidade de agir. Huysmans

propõe-nos um protagonista confuso sobre as distinções entre pessoas e

objectos. Ao longo do romance, des Esseintes vai gradualmente perdendo

características humanas e aproximando-se do estatuto de objecto. Este

romance servirá de ponto de partida para explicarmos melhor os problemas

desta confusão.

O livro de Huysmans tem um enredo fácil de descrever. Com o objectivo

de se isolar do resto da sociedade, o protagonista vende o património da

família para adquirir uma casa decorada por ele próprio e preenchida com as

suas colecções. Este projecto de isolamento, contudo, fracassa. A saúde mental e

física de des Esseintes mostra-se comprometida – esgotamento físico e

intelectual, inércia, memórias intensas, alucinações – , ao ponto de o médico

lhe recomendar que regresse à vida em sociedade se quer sobreviver.

Do ponto de vista narrativo, o romance À Rebours caracteriza-se pela

escassez de acontecimentos. Essencialmente, podemos distinguir três

momentos cronológicos importantes na narrativa: a decisão do protagonista de

se afastar da vida social; o período em que o protagonista vive em isolamento; o

desfecho, em que se vê obrigado pelo médico a regressar à convivência social.

São mencionados diversos episódios da existência do protagonista anterior ao

presente da narração, mas estas referências são apresentadas num contexto

pouco fiável que mistura recordações e alucinações.

O segundo momento, em que são descritos os processos de escolha,

organização e reflexão de des Esseintes sobre os objectos das suas colecções,

ocupa o maior número de páginas. Os capítulos associados a este período não

privilegiam a descrição de acções. Tanto a atenção do protagonista como a

atenção do narrador se centram nos objectos que rodeiam o primeiro. A

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235  

ausência de interacção do protagonista com outras pessoas e outros espaços

parece anular qualquer possibilidade de progressão da acção. A nossa percepção

de des Esseintes depende essencialmente da descrição dos objectos de que este

se rodeia.

Verifica-se uma indistinção progressiva entre o protagonista e os objectos

de À Rebours. Ao longo do romance, o declínio da saúde física e mental do

protagonista vai-se associando ao enfraquecimento da sua vontade de agir, ao

ponto de des Esseintes ser comparável a um objecto devido à inércia e à

passividade. Mais do que isso, a subjectividade do protagonista torna-se

indistinta dos objectos de que se rodeia333. A sua humanidade vai-se perdendo à

medida que se vão dissolvendo as fronteiras entre, por um lado, a sua

consciência ou subjectividade e, por outro, os objectos da suas colecções. A

tartaruga com diamantes incrustados na carapaça (no quarto capítulo) pode ser

descrita como duplo do protagonista. Assim como a tartaruga morre porque a

trataram e confundiram com um objecto, também des Esseintes pereceria se

insistisse em continuar a existir do mesmo modo. À Rebours mostra os

problemas dos retratos do coleccionador como alienado que se confunde com a

própria colecção. Nenhum coleccionador sobreviveria durante muito tempo se

fosse realmente como os coleccionadores costumam ser descritos: avatares de

des Esseintes. Nenhuma descrição de colecção como abdicação da interacção

social e material está correcta. Nenhuma descrição do coleccionador que o

reduza à própria colecção pode estar completa.

                                                            333 «A subjectividade de des Esseintes está completamente enredada na objectividade concretizada textualmente nos produtos da cultura material, móveis,  livros, obras de arte, bibelôs e outros coleccionáveis incluídos na casa.» (Watson 2004, 140.)  

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236  

Não parece descabida uma comparação entre o espaço de À Rebours e o

das naturezas-mortas. Nas naturezas-mortas não só a figura humana está

ausente como também os objectos são representados com uma atenção a

pormenores materiais e sensoriais que habitualmente passam despercebidos ao

olhar humano334. Também em À Rebours o protagonista é circunscrito à sua

materialidade, vendo-se preso numa abundância de dados sensoriais. Des

Esseintes queixa-se de percepções sensoriais confusas: «Depois dos pesadelos,

das alucinações olfactivas, dos problemas de visão, da tosse áspera, com a

regularidade de um relógio, dos ruídos das artérias e do coração e dos suores

frios, surgiram as alucinações auditivas, essas alterações que só se manifestam

na fase final de uma maleita».

Na medida em que parece suspenso num presente contínuo, des

Esseintes vive no tempo como um objecto. Por não se implicarem em acções,

tanto os objectos de des Esseintes como o próprio des Esseintes parecem

matéria deslocada – um «lugar mal situado», como diria Daniel Faria335 –, no

sentido em que estão isolados, sem integração em relações dinâmicas, sem

afectarem nem serem afectados.

Jeff Malpas336 sugere que a actividade de pensar – uma das

características que nos distinguem como seres humanos – é indissociável da

capacidade de ocuparmos o nosso lugar no mundo: «O ‘onde’ do pensamento, o

                                                            334  Sobre  este  assunto,  ver  Bryson, Norman.  1990.  Looking  at  the Overlooked:  Four Essays on Still Life Painting. Londres: Reaktion Books.   335  Faria,  Daniel.  2003.  «Homens  que  são  como  lugares mal  situados»,  Poesia.  Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições.   336 Malpas,  Jeff.  2014.  «’Where Are We When We  Think?’: Hannah Arendt  and  the Place of Thinking» (no prelo).  

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237  

verdadeiro lugar do pensamento, é o lugar original em que o próprio mundo se

revela a nós. [...] Pensar é regressar ao lugar em que o próprio pensamento

começa, que é também o lugar em que encontramos o nosso próprio começo – o

lugar onde, poderíamos dizer, nós próprios nascemos para o mundo.» 337

O «lugar onde se começa a pensar» tem a ver com a posição que

ocupamos no contexto cultural em que nascemos. Situarmo-nos neste lugar

implica tomar consciência das possibilidades de acção permitidas em tal

contexto. Quem somos e o que fazemos é condicionado pelas possibilidades de

acção admitidas na nossa cultura338.

A existência humana assume uma dimensão passiva, condicionada pela

colectividade e pela cultura que caracteriza o espaço e tempo em que se

desenvolve. Ao mesmo tempo, implica uma dimensão individual, livre e activa, a

partir da apropriação individual das oportunidades culturais ao seu dispor339.

Para descrevermos uma pessoa, portanto, precisamos de descrever o «lugar»

em que esta se situa e onde «começa a pensar». Em contraste com des

                                                            337 Malpas 2014.  338  «[N]ão  somos  mais  (e  às  vezes  menos)  que  co‐autores  das  nossas  próprias narrativas.  [...]  Pisamos  um  palco  que  não  escolhemos  e  descobrimos  que  fazemos parte de uma acção que não  teve origem em nós.»  (MacIntyre 2011, 213.) Segundo MacIntyre, as pessoas começam sempre a vida in media res: «com o início da própria história já decidido por aquilo e por quem as precedeu.» (MacIntyre 2011, 215). Deste modo,  são  sempre herdeiras do passado: «O que eu  sou, portanto, é, num  aspecto fundamental,  o  que  herdo,  um  passado  específico  que  está  presente  em  alguma medida no meu presente. Descubro que faço parte de uma história [...], quer queira, quer  não,  quer  o  aceite,  quer  não,  que  sou  um  dos  guardiães  de  uma  tradição.» (MacIntyre 2011, 221.)  339 «Lançados no mundo, encontramo‐nos sempre «já» circunstritos a um contexto de possibilidades de compreensão cultural e historicamente constituídas que determinam as escolhas e os modos de compreender as coisas possíveis. Ao mesmo tempo, como projecção  para  essas  possibilidades,  estamos  sempre  a  articular  o  contexto  de inteligibilidade numa configuração de significado que é nossa.» (Guignon 2002, 269.)  

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238  

Esseintes, que tudo faz para se libertar de qualquer herança familiar e para se

isolar de todo o contacto social, os seres humanos relacionam-se

necessariamente com o que recebem do contexto biológico, cultural e social em

que se situam. Embora esta dimensão pública e colectiva seja decisiva em

qualquer existência, para descrevermos uma pessoa é necessário tomar em

consideração as acções de individualização e autodefinição dela própria neste

contexto.

Lambert Strether, o protagonista do romance The Ambassadors, de

Henry James, afirma que é possível distinguir os coleccionadores dos simples

herdeiros: «Chad e Miss Gostrey tinham vasculhado e comprado e recolhido e

trocado, examinando minuciosamente, seleccionando, comparando; enquanto a

senhora daquele lugar, maravilhosamente passiva e sob o encanto da

transmissão [...], tinha apenas recebido, aceitado e estado sossegada.»340

Contudo, nenhum de nós consegue sobreviver sem ser parcialmente herdeiro e

parcialmente coleccionador.

Uma vida individual pode ser descrita como apropriação do «lugar» em

que se nasce. Porque permitem estudar com clareza o modo como as pessoas

inscrevem a sua presença neste lugar, as colecções e a actividade de coleccionar

são a expressão por excelência desta apropriação.

Herdamos parcialmente os nossos interesses a partir do que é preservado

e valorizado na cultura em que nascemos. No entanto, tal como o protagonista

do romance Le Cousin Pons, de Balzac, realizamos uma apropriação pessoal

destes valores partilhados. Uma colecção expressa uma percepção individual,

um conjunto de valores individuais, e resulta de um esforço de articulação,

                                                            340 Citado em Douglas 2006, ix‐xi.  

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239  

clarificação e estabilização destas percepções e destas valorizações para si

mesmo e para os outros.

Dar uma expressão concreta aos nossos interesses – através de uma

colecção, através da identificação das nossas coisas preferidas – é uma maneira

de fazermos sentido tanto de nós próprios como daquilo que nos rodeia, de

percebermos e partilharmos o que está próximo ou distante de nós, de

compreendermos o que podemos usar ou rejeitar do que temos à nossa

disposição.

Muitas vezes o que torna um objecto ou um conteúdo significativo para

nós não é a intenção na sua origem, mas o significado que somos capazes de lhe

atribuir341. As colecções que estudámos nesta tese são a demonstração da

dimensão activa e individual da apropriação de referências culturais. Por vezes,

como notámos no caso dos Mármores do Parténon, a apropriação individual

processa-se através de descontextualizações e desentendimentos das intenções

na sua origem e estes mal-entendidos afectam a cultura de modo decisivo. Não

só lorde Elgin parece ter desrespeitado a função original dos Mármores do

Parténon, como o próprio British Museum propõe uma apresentação dos

Mármores que representa mal as intenções de lorde Elgin na origem da

constituição desta colecção.

De vez em quando, a cultura define-se a partir de mal-entendidos e

descontextualizações. Como constatámos nos primeiros três capítulos desta

tese, por vezes «descontextualização» é uma descrição de «apropriação

individual» e de «colecção». Esta descontextualização, porém, não é

                                                            341  Neste  sentido,  vivemos  uma  existência  em  que  as  preocupações  de  disciplinas como a História da Arte não são inicialmente o mais decisivo, ainda que estas possam assumir grande relevância em contextos mais específicos. 

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240  

necessariamente negativa, sobretudo se for a única forma de preservar um

objecto ou uma obra.

Também as casas-museus de John Soane e de Isabella Stewart Gardner

são exemplo deste tipo de apropriação. Os objectos reunidos e expostos nestes

espaços não seguem qualquer critério de organização cronológica ou

genealógica, dependendo antes das opções idiossincráticas dos coleccionadores.

A propósito da Colecção Menil e do «museu imaginário» de Malraux,

constatámos igualmente que um objecto integrado numa colecção de arte pode

ter desempenhado outra função no passado. Estas colecções demonstram que é

possível que as coisas sejam usadas independentemente das intenções na sua

origem ou das funções que desempenham nos contextos que ocuparam. Nestes

mal-entendidos residem novas possibilidades de sentido342.

Como defende Donald Preziosi, em certos momentos é necessário

libertar a arte das disciplinas da estética, da História da arte e da museologia343.

De acordo com Preziosi, estas disciplinas tratam as obras de arte como

repositórios de informação histórica e como meios de expressão das intenções

de um artista. Tal abordagem não toma em consideração a complexidade da                                                             342 «De acordo  com um  lugar‐comum, o que ouvimos e o que é dito ou o que  tem significado  para  mim  e  o  que  tem  significado  para  a  outra  pessoa  raramente coincidem, mas talvez seja menos frequente a  ideia de que [...]  isto abre espaço para várias  oportunidades  de  reorganização  e  de  reconstrução  de  ‘significados’  para  os nossos próprios fins.» (Wegener 1992, 87‐88.)  343 «[E]m última análise, praticar História da arte ou museologia como aconteceu no século vinte pode não ser necessariamente a melhor maneira de compreender a arte ou a História da arte» (Preziosi, Donald. 2003. Brain of the Earth’s Body: Art, Museums, and the Phantasms of Modernity. Minneapolis e Londres: University of Minnesota, 4). Um pouco mais adiante, Preziosi cita Agamben: «Talvez nada seja mais urgente – se queremos  realmente  lidar  com  o  problema  da  arte  no  nosso  tempo  –  do  que  uma destruição da estética que, clarificando o que habitualmente não é questionado, nos permita colocar em questão o próprio significado da estética como ciência da obra de arte.» (Preziosi 2003, 42.)  

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241  

interacção entre os objectos artísticos e as pessoas, como John Dewey salienta

em Art as Experience. Para isso, precisamos de uma perspectiva mais ampla,

capaz de captar as interacções das pessoas e de todas as coisas (artísticas ou

não) na vida quotidiana. Estudar a actividade de coleccionar pode contribuir

para a expansão das perspectivas da História da arte e da estética.

6.2 Contiguidades e consideração

Por se articularem com um investimento no que nos rodeia e em nós

mesmos – um compromisso, um empenhamento, uma presença forte –, as

coisas de que gostamos são indissociáveis da pessoa que somos e daquilo que

fazemos. Ao mesmo tempo, o lugar que aquilo de que gostamos ocupa nas

nossas vidas assume uma dimensão ética, relacionada com o tipo de pessoa que

somos ou queremos ser.

Ter interesse pelo que nos rodeia, interagir com o que nos rodeia,

considerando inevitavelmente certas coisas mais importantes do que outras, é

uma característica da vida humana344. Criar uma colecção é dar uma forma

                                                            344 A existência humana desenvolve‐se em articulação com as coisas e as pessoas em torno de  si. Ter  interesse pelo que nos  rodeia é  como  ter  saúde:  sem  saúde e  sem interesse  pelo  que  nos  rodeia  torna‐se  mais  difícil  não  só  viver  mas  também sobreviver. Christine Korsgaard explica muito bem esta questão: «A  ideia de que os valores culturais são o que dá valor à vida parece‐me errada do mesmo modo que a ideia de que a saúde dá valor à vida estaria errada. Ou melhor, está errada a não ser que  a  compreendamos  como  uma  espécie  de  tautologia,  como  aquela  implícita  no pensamento  de  que  só  queremos  sobreviver  se  tivermos  boa  saúde.  Assim  como penso que valorizamos necessariamente a saúde porque temos uma vida física, penso que  valorizamos  necessariamente  os  valores  culturais  porque  faz  parte  da  nossa natureza, enquanto seres humanos, ter uma vida cultural. [...] Temos de nos preocupar com a saúde porque temos uma vida física. E temos de nos preocupar com a cultura porque a forma específica da vida humana, da nossa vida, é cultural.» (Korsgaard 2005, 82‐83.)  

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concreta e relativamente estável aos nossos interesses, um modo de

percebermos, indicarmos, partilharmos e chamarmos a atenção para as coisas

importantes na nossa vida. Em suma, concordamos com a lista de motivos para

valorizar a actividade de coleccionar que Stanley Cavell propõe: «temos

interesse em aprender a proximidade, na estabilidade da materialidade, em

sermos compreensíveis aos outros, assim como temos interesse na persistência

do próprio interesse»345. A persistência do interesse pelo que nos rodeia, pela

inteligibilidade dos outros e pela nossa própria inteligibiliddade preserva a

liberdade de sermos humanos.

Contra grande parte da bibliografia sobre o tópico, chegamos assim a

uma descrição aberta da actividade, segundo a qual coleccionar não

corresponde a uma estratégia de autoprotecção do sujeito relativamente a tudo

o que se situa no seu exterior, mas antes não só resulta da interacção do sujeito

com o exterior, como talvez seja o melhor ponto de partida para percebermos

outras interacções das pessoas com o que as rodeia (por exemplo, conversar,

escrever ou criar arte).

O filme Museum Hours346 mostra-nos como este ponto de vista pessoal

se articula com o modo de visão panorâmica que descrevemos mais

pormenorizadamente no segundo capítulo mas exploramos ao longo de toda a

tese.

Este filme passa-se em Viena e tem dois protagonistas: Anne, que está na

cidade para acompanhar os últimos dias de vida de uma prima em coma no

hospital; e Johann, um vigilante do Kunsthistorisches Museum que a primeira

                                                            345 Cavell 2005, 266.  346 Museum Hours. 2013. Real. Jem Cohen.  

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243  

conhece numa das visitas que faz a este espaço. Ao longo do filme, seguimos as

actividades com que Anne ocupa o tempo livre na cidade, entre conversas com

Johann e visitas ao hospital e ao museu. Neste percurso, o interior e o exterior

do museu assumem um estatuto equivalente. No museu, o filme mostra objectos

e figuras que poderiam ser encontrados nas ruas. A cidade é filmada e

observada pela protagonista como um museu, devido à acumulação de camadas

de tempo, aos seus rituais, às suas regularidades e lendas ou mitos347 e outros

elementos da paisagem, como torres, sinalizações estranhas, parques, etc.

A dissolução das fronteiras entre o interior e o exterior do museu, assim

como a anulação da distinção entre arte e objectos menores implícitas no

percurso e no olhar da protagonista em Viena, articulam-se com a possibilidade

de pensar sobre o tempo de modo não-linear.

A expressão «comércio activo e atento com o mundo» de Dewey348 é

particularmente adequada para descrever a presença da protagonista de

Museum Hours na cidade que visita. No seu percurso, tudo está em relação: os

objectos representados no museu relacionam-se com o que vê na rua, na feira da

ladra, no bar, ou no hospital, na medida em que a ajudam a fazer sentido da sua

presença na cidade. A materialidade de todos os objectos que encontra e a

consciência do seu carácter perecível articulam-se com a consciência da

                                                            347 Sante, Luc. Livrete do filme.  348 Conforme observámos no quarto capítulo, em Art as Experience Dewey sugere que existe  continuidade  entre  a  arte  e  a  vida  quotidiana.  Para  Dewey,  a  experiência estética  está  presente  na  vida  quotidiana  (Dewey  [1934]  2005,  48,  50).  Na  sua perspectiva, isto verifica‐se nos casos em que há interacção atenta das pessoas com o que  as  rodeia:  «A  experiência,  na  medida  em  que  é  experiência,  é  vitalidade intensificada.  Em  vez  de  significar  estar  isolado  com  os  próprios  sentimentos  e sensações  privados,  significa  um  comércio  activo  e  atento  com  o  mundo;  na  sua máxima expressão, significa interpenetração completa do eu e do mundo dos objectos e dos acontecimentos» (Dewey 2005, 18‐19).  

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efemeridade da presença humana no mundo, relacionada com a proximidade da

morte da prima. As fronteiras espaciotemporais perdem importância no

percurso da protagonista. Objectos de tempos e espaços diferentes estão

relacionados, situando-se ao mesmo nível de importância. Para mostrar e

descrever aquele momento na vida da protagonista, o filme recorre a todos, a

todos dedicando o mesmo tipo de atenção.

A descrição das telas de Bruegel349 proposta por uma guia na sequência

da visita orientada ajuda a caracterizar a relação humana com o tempo. Por um

lado, tal como Bruegel, não podemos escapar ao contexto cultural em que

nascemos na medida em que este condiciona todas as nossas opções. Por outro

lado, como os coleccionadores, podemos assumir uma perspectiva panorâmica,

em que exploramos proximidades e distâncias com objectos e interesses de

todas as épocas.

Salvaguardadas as devidas distâncias, este filme articula-se com uma

perspectiva comparável àquela que Maira Kalman trabalha em My Favorite

Things, o livro que descrevemos na introdução desta tese. Tanto num caso como

noutro, as pessoas são apresentadas através do que suscita o seu interesse e das

relações que estabelecem entre si e o que as rodeia. Em ambos os casos as coisas

preferidas convocam todos os aspectos de uma vida.

                                                            349 Na sequência da visita guiada à sala de Bruegel, a guia aborda a questão da relação do  tempo  com  as  obras  de  arte,  interrogando‐se  sobre  a  (im)possibilidade  de  um quadro  ser  intemporal. Por um  lado, Bruegel  representa  a  violência e  a brutalidade (guerra, conflitos religiosos, revoltas, massacres) da sua época. Por outro, as suas telas associam‐se  a  um  universo  que  ainda  hoje  reconhecemos,  de  cenas  da  vida  rural, casamentos, banquetes,  conjugando uma dimensão  realista  e outra mais  fantástica, relacionada com rituais, mascaradas, alegorias e mais manifestações de humanidade, a que é impossível associar a uma época específica. Algumas das telas de Bruegel podem ser vistas como inventários de pessoas, de provérbios, de aparências, de atitudes e de comportamentos, ocorrendo nelas elementos (rostos, gestos, objectos, pássaros, lixo) que reencontramos nos outros espaços, mais contemporâneos, do filme.  

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245  

À semelhança do que se verifica no filme Museum Hours e no livro My

Favorite Things, nesta tese salienta-se a noção de uma ética em relação às

coisas com que vivemos350 em que as segundas não são encaradas nem como

objecto de posse nem como objecto de conhecimento, mas sim enquanto objecto

de consideração. Neste contexto, o termo «consideração» significa tanto

«atenção» como «apreço» ou «respeito». É uma noção próxima da

«preservação» heideggeriana. De acordo com Heidegger, as pessoas existem

enquanto tal quando habitam o espaço tratando com consideração o que as

rodeia: «O modo como tu estás e eu estou, o modo como nós, seres humanos,

estamos na Terra é Buan, habitando. Ser humano significa estar na Terra como

mortal. Significa habitar. A palavra antiga bauen, que diz que o homem é na

medida em que habita, esta palavra bauen, contudo, significa ao mesmo tempo

valorizar e proteger, preservar e tomar conta de, mais especificamente lavrar o

solo, cultivar a vinha.»351

Encontrámos explicitamente o mesmo tipo de «consideração» nas

actividades da Fundação Menil. A propósito do empenhamento dos Menil no

estudo das peças da colecção, Pamela Smart observou: «o desvelo [dos

coleccionadores] em relação à colecção manifestava-se não só na aquisição de

objectos mas também no tratamento adequado que estes recebiam depois de

                                                            350  «E  se  as  obras  de  arte  […]  estão  entre  as  coisas mais  importantes  para  nós  no mundo [...], então deve certamente haver um  impulso ético em questão aqui (isto é, na  nossa  preservação  das  obras  de  arte)  a  que  poderíamos  dar  uso  edificante  em outros  domínios  mais mundanos  e  noutros  aspectos  da  nossa  vida  quotidiana  no «mundo  das  coisas».  A  capacidade  ou  disponibilidade  para  nos  interessarmos  pelo mundo  das  coisas  [...]  deve  ser  redireccionada  para  a  nossa  partilha  do mundo.» (Roelstraete,  Dieter.  2014.  «Art  as  Object  Attachments:  Thoughts  on  Thingness», Hudek 2014, 65.)  351 Heidegger 2001, 145 («Construir, Habitar, Pensar», itálico no original).  

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integrados na colecção. Conhecer um objecto, empenhar-se em compreendê-lo

nos seus diversos aspectos, é dar-lhe vida e cuidar dele, intensificando a

densidade da relação [...] entre o coleccionador e o que é coleccionado.»352

Preservar um objecto não é só descrever a sua origem histórica, mas implica

considerá-lo em todos os seus aspectos e potencialidades. Respeitar um objecto

não implica necessariamente confiná-lo à sua função de origem, mas sim tentar

perceber em que descrições e acções este pode ser integrado, de modo que

continue a assumir uma presença significativa na vida das pessoas.

Tal ética em relação aos objectos articula-se com uma ética

relativamente aos seres humanos em que, como assinalam Kant e Korsgaard, a

liberdade é um valor fundamental.

A actividade de coleccionar é a expressão por excelência desta liberdade.

Quando definem o que é coleccionável, os coleccionadores participam no

processo social de definição do que é mais importante na vida. Como observa

David Graeber, «a liberdade suprema não é a liberdade de criar ou acumular

valor, mas a liberdade de decidir (colectiva ou individualmente) o que faz a vida

valer a pena [«what it is that makes life worth living»]. Em última instância,

portanto, a política tem a ver com o sentido da vida.»353

A liberdade de apresentar, partilhar e preservar o que é mais importante

ou interessante para nós tem um impacto político e ético que deve ser estudado

e não secundarizado. Desvalorizar estas formas de autodefinição intersubjectiva

equivale a silenciar talvez a forma mais democrática de influenciar uma cultura

e de a manter viva. Coleccionar e/ou expressar interesses e preferências não são

actividades ociosas, insignificantes e inofensivas, mas sim processos através dos                                                             352 Smart 2011, 78‐79.   353 Graeber 2001, 88. 

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247  

quais as tendências culturais se definem, desenvolvem e ampliam. Secundarizar

estas opções individuais contribui para defender outras já instaladas, pelo que

não é inócuo. Pelo contrário, tem consequências políticas e económicas com um

impacto cultural decisivo na nossa vida colectiva e individual. Ser humano, ser

feliz, ter uma vida com alguma felicidade dependem da possibilidade de se

desenvolver e partilhar os próprios interesses.

Estudar a actividade de coleccionar ajuda-nos a compreender os

processos de individualização e de autodefinição das pessoas. Clarifica o papel e

a importância do estabelecimento de relações entre pessoas, entre coisas e entre

pessoas e coisas. Permite-nos reflectir sobre os modos como uma cultura se

amplia ou, pelo contrário, se vai reduzindo, simplificando e esclerosando. Deste

modo, ajuda-nos a chegar a uma compreensão melhor do que significa estar

vivo e ser uma pessoa.

Em epígrafe no início deste capítulo, Barbara Johnson sugere que ser

uma pessoa corresponde à experiência do fracasso de ser uma coisa354. Um

pouco antes desta frase, Johnson observa no livro Persons and Things: «A

identificação com uma forma bela é uma identificação da vida em si como

                                                            354 Vamos tentar explorar sem referências directamente psicanalíticas a oposição entre pessoa e  coisa em questão nesta epígrafe, mas  sabemos que a  frase de  Johnson  se articula  com  a  noção  freudiana  de  «pulsão  de morte»,  descrita  como  instinto  para regressar ao estado inanimado no ensaio «Além do Princípio do Prazer»: «[a vida] tem de aspirar a um estado antigo, um estado primordial de que partiu e para o qual [...] procura  regressar.  Se  é  razoável  supor  [...]  que  todos  os  seres  vivos  morrem  – revertendo ao estado inorgânico – por razões intrínsecas, então vemo‐nos obrigados a dizer  que  a meta  da  vida  é  a morte  [...]:  o  inanimado  existia  antes  do  animado.» (Freud, Sigmund. 2003. Beyond  the Pleasure Principle and Other Writings. Trad.  John Reddick. Londres: Penguin Classics, 78.)  

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248  

imperfeição. Só o inanimado tem a fixidez, a ausência de emoções, a falta de

necessidades que corresponde a um ideal imutável.» 355

Como já vimos, a aspiração das pessoas à imutabilidade perfeita das

coisas relaciona-se com o desejo de fixarem para sempre uma descrição

autocontrolada de si mesmas, ou seja, com o desejo de tornarem clara e estável

a sua própria inteligibilidade perante si mesmas e os outros, inclusivamente

depois da própria morte. Através da colecção, o coleccionador expõe uma

perspectiva que representa a sua interacção com os objectos que fazem parte do

seu lugar no universo, tentando torná-la impermeável à passagem do tempo e às

incompreensões das pessoas. Reunir uma colecção pode ser entendido como a

criação de um prolongamento material, menos vulnerável à morte e à mudança.

Uma colecção pode ser vista como concretização material da perspectiva pessoal

do seu proprietário, da sua subjectividade, ou da sua identidade, capaz de durar

mais do que a seu corpo material, e, portanto, podendo potencialmente

assegurar que o coleccionador seja recordado como ele próprio decidiu. Estas

descrições de coleccionador e de colecção, no entanto, ainda estão incompletas.

Escrevendo sobre Proust, Richard Rorty, numa perspectiva um pouco

diferente da de Barbara Johnson, sugere que a narração da Recherche é

desencadeada pela resistência a ser transformado numa coisa pelo olhar dos

outros356. De acordo com Rorty, Proust teria tentado resolver este problema

redescrevendo-se a si próprio e redescrevendo as coisas e as pessoas

                                                            355 Johnson 2008, 58‐59.  356 «[Proust] queria não ser só a pessoa que estas pessoas pensavam que ele era, não queria ficar imobilizado na moldura de uma fotografia captada a partir da perspectiva de outra pessoa. Receava ser, no vocabulário de Sartre, transformado numa coisa pelo olhar do outro  [...].»  (Rorty, Richard.  [1989] 1993. Contingency,  Irony and Solidarity. Cambridge, Nova Iorque e Melbourne: Cambridge University Press, 102.)  

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249  

importantes para ele. À semelhança do narrador da Recherche, os

coleccionadores redescrevem-se a si próprios, redescrevendo coisas importantes

para eles através da integração destas na colecção. Enquanto estão vivas, as

pessoas podem agir e afectar a sua descrição. As actividades de escrever a

Recherche ou de reunir uma colecção, neste sentido, podem ser descritas como

manifestação de vida através da acção. Este passo de Rorty lembra-nos que a

«experiência de não ser uma coisa» assume uma vertente activa.

Na primeira secção de La Peau de chagrin há um momento importante

em que a presença de um esqueleto permite aproximar a descrição dos objectos

da loja de uma natureza-morta357. Este esqueleto parece transmitir uma

mensagem ao protagonista: «Um luar vindo do céu fez reluzir um último reflexo

rubro em luta contra a noite, ele ergueu a cabeça, viu um esqueleto quase na

penumbra inclinar dubitativamente o crânio da direita para a esquerda, como

que dizendo: os mortos ainda não te querem!»

Destaca-se neste passo a ideia de uma distinção decisiva entre objectos e

pessoas vivas – uma das características mais importantes das naturezas-

mortas. Balzac chama a atenção para esta distinção sublinhando uma oposição

entre vida e morte, seres animados e seres inanimados: o esqueleto, como

porta-voz dos mortos, parece informar o protagonista de que estes o rejeitam

devido a estas distinções.

De acordo com Norman Bryson, as naturezas-mortas encenam uma

rejeição da presença humana no seu universo: «A natureza-morta nega todo o

processo de construir e afirmar os seres humanos como foco primário da

representação. Em oposição ao antropocentrismo dos géneros ‘mais elevados’,

                                                            357 Maleuvre 1999, 264.   

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ataca a centralidade, o valor e o prestígio do sujeito humano. [...] Não se trata

apenas de expulsar fisicamente a presença humana: a natureza-morta também

expulsa os valores que a presença humana impõe no mundo.»358 Vamos tentar

a seguir qualificar estas afirmações.

Em La Peau de chagrin, a rejeição da integração do protagonista no

espaço da natureza-morta supostamente verbalizada pelo esqueleto recorda o

protagonista de que está vivo, o que o faz decidir-se a desistir do suicídio que

planeava. No resto do romance, no entanto, o protagonista aceita confundir a

própria vida com uma coisa (a pele de onagro) e, como poderia ter acontecido

com o protagonista de À Rebours, acaba por perecer.

Como observámos no quinto capítulo a partir de Georg Simmel, a

distinção entre sujeito e objecto359 – e de um interior e de um exterior – parece

importante para a aquisição da consciência de se ser sujeito e de se ter

subjectividade. A percepção da diferença do objecto constitui o sujeito na

medida em que se articula com a percepção e com a definição da

autoconsciência humana através da noção de contraste entre esta e o que não é

humano. Segundo Simmel, sujeito e objecto nascem ao mesmo tempo, quando o

sujeito toma consciência da distância que os separa : «O sujeito e o objecto

nascem no mesmo acto»360.

                                                            358 Bryson 1990, 60.  359 Para uma abordagem da  relação entre as pessoas e os objectos mais próxima da psicanálise e da fenomenologia de Husserl e de Merleau‐Ponty, ver Schwenger, Peter. 2006. The Tears of Things: Melancholy and Physical Objects. Minneapolis e  Londres: University of Minnesota Press.  360 Simmel 2011, 67.  

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251  

Neste sexto capítulo salientei também que uma das diferenças mais

importantes entre pessoas e coisas reside na capacidade de acção que distingue

os seres humanos. Num universo sem acções o elemento humano perde

definição, como se verifica em À Rebours. Deste modo, a distinção entre pessoas

e objectos depende de uma relação/distinção entre ser e fazer.

O poema«Interior (with Jane)»361, de Frank O'Hara pode ser associado a

estas duas ideias362:

The eagerness of objects to be what we are afraid to do cannot help but move us Is this willingness to be a motive in us what we reject? The really stupid things, I mean a can of coffee, a 35 ¢ ear ring, a handful of hair, what do these things do to us? We come into the room, the windows are empty, the sun is weak and slippery on the ice And a sob comes, simply because it is coldest of the things we know

Citando a artista Jane Freilicher363, o título convoca um conjunto de

referências relacionadas com o género da natureza-morta, usado

                                                            361 O’Hara, Frank. [1991] 2005. Selected Poems. Manchester: Carcanet.  362 Não me  interessa aqui propor uma  interpretação do poema, mas sim usar alguns versos como ponto de partida para reflectir sobre pontos  importantes do  tópico das colecções.  363  Jane  Freilicher  (1924‐2014),  representada  no  Museum  of  Modern  Art,  no Metropolitan  e  no Whitney,  e  descrita  pelo  poeta  e  amigo  James  Schuyler  como «artista para poetas», começou por  fazer pintura abstracta  (fazia parte do grupo da 

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252  

frequentemente como referência na obra desta artista364. O género da

natureza-morta está em questão em todo o poema. A alusão mais explícita é o

conjunto de objectos aparentemente insignificantes no sétimo e no oitavo verso

– uma lata de café, um brinco de 35 cêntimos, um punhado de cabelos.

Nos últimos versos do poema («And a// sob comes, simply because it is/

coldest of the things we know»), o soluço (traduzo assim «sob» visto que

«soluçar» também pode significar «chorar»), apesar de descrito como «a coisa

mais fria que conhecemos», funciona como um sinal de vida equivalente à

suposta mensagem do esqueleto na loja de La Peau de chagrin. Por não ser

voluntário e controlado («a//sob comes»), é comparável a certos gestos quase

automáticos relacionados com o instinto humano de autopreservação, como

protegermo-nos de um golpe ou lutarmos pela vida numa situação de risco.

Visto que só as pessoas podem soluçar ou chorar, este soluço é um sinal de que

as pessoas vivas não se confundem com coisas, apesar de por vezes elas próprias

assim o desejarem. À semelhança do esqueleto em La Peau de chagrin, este

soluço expulsa a vida do espaço da natureza-morta. A alguém que chora assim, o

corpo parece dizer: «As coisas ainda não te querem!» Lemos este poema com a

obra de Jane Freilicher. Como nas telas de Jane Freilicher que representam um

interior com uma natureza-morta com vista para um exterior, em «Interior

(with Jane)» há janelas e vida além da natureza-morta.

                                                                                                                                                                              

New York School). Em 1948, no entanto, depois de ver uma retrospectiva de Bonnard no Museum of Modern Art, mudou  completamente,  tendo passado a  ser  conhecida por pintar interiores com vista para o exterior.  364 Ver, por exemplo, as telas Bread and Bricks/Pão e Tijolos ou Twelfth Street and Beyond/Décima Segunda Rua e Mais Além. 

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Os três primeiros versos do poema («The eagerness of objects to/be what

we are afraid to do//cannot help but move us») ajudam-nos a perceber que se

os objectos se limitam a ser; as pessoas, no entanto, têm de fazer para ser.

No terceiro verso, o verbo «to move» associa-se às noções de emoção e

de motivação, podendo ser entendido tanto enquanto «comover» como

enquanto «mover». A ideia de que os objectos podem ser motivos («this

willingness to be a motive//in us») recorda alguns passos de Intention, de

Elizabeth Anscombe. Na secção 12 deste livro, Anscombe reflecte sobre a noção

de «motivo», observando que falar de motivos não é o mesmo que falar de

causas365. Os motivos não determinam as acções; ajudam a explicá-las e a

interpretá-las: «Os motivos podem explicar-nos as razões; isto, contudo, não

quer dizer que ‘determinam’, no sentido de causarem, as acções. É verdade que

dizemos ‘O amor dele pela verdade levou-o a...’ e coisas parecidas, e estas

expressões sem dúvida nos ajudam a pensar que um motivo deve ser o que

produz ou desencadeia uma escolha. Contudo, isto significa antes que ‘ele fez

isto com amor à verdade’; isto interpreta a acção.»366

A afirmação anterior é válida tanto sobre motivos como sobre objectos.

Como sugerimos quando comentámos algumas frases de Bill Brown, os

objectos, na medida em que são desprovidos de agencialidade, não são as causas

das acções das pessoas; só podem ser motivos com que as pessoas agem.

Na secção 13 de Intention, Anscombe especifica que indicar um motivo é

parecido com dizer: «vê a acção desta maneira». Portanto, segundo Anscombe,

                                                            365 Anscombe 2000, 18‐20. De notar, no entanto, que não me interessa aqui explorar a noção  de  causalidade, mas  sim  propor  uma  descrição  da  relação  entre  pessoas  e objectos.  366 Anscombe 2000, 19.  

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indicar um motivo é dar a ver as acções a uma certa luz367. Numa linha de

pensamento semelhante, de acordo com Mark Doty, o verdadeiro assunto das

naturezas-mortas não é a representação de objectos, mas sim a representação de

um modo de ver – portanto, de uma relação entre sujeito e objecto368, entre

pessoas e coisas.

Enquanto as pessoas podem ver, as coisas só podem ser vistas. Para

qualificarmos as afirmações supracitadas de Norman Bryson sobre as

naturezas-mortas, convém acrescentar que apesar de haver de facto uma

encenação da rejeição da presença humana neste género, não há nele qualquer

impossível eliminação da perspectiva humana. As coisas são sempre

representadas e percepcionadas a partir de um olhar humano que com elas se

relaciona. Frequentemente os objectos das naturezas-mortas destacam-se sobre

um fundo escuro e a luz que nos permite vê-los com tanta nitidez é a do olhar

humano – o olhar do artista e o nosso olhar.

Doty sugere ainda que a atenção ao que nos rodeia nos situa e nos implica

no mundo. Neste sentido, olhar para fora de nós – para o que nos interessa,

para as nossas colecções, para as nossas famílias – é a melhor forma de nos

conhecermos. Quando prestamos atenção ao que está fora de nós, encontramo-

nos na relação que estabelecemos: «Achamos que para nos encontrarmos a nós

mesmos temos de olhar para dentro e analisar as complexidades da origem, as

                                                            367  «Indicar  um motivo  (do  tipo  a  que  chamei  ‘motivos‐em‐geral’,  por  oposição  a motivos  e  intenções  retrospectivos)  é  dizer  qualquer  coisa  como  ‘vê  a  acção  deste modo’ [see the action in this light]. Explicar as nossas acções através de uma afirmação que indica um motivo é descrevê‐las de certo modo [is to put them in a certain light].» (Anscombe 2000, 21.)  368 «O que é documentado, em   última  instância, não é a coisa em si mas o modo de ver – o objecto com o sujeito.»  (Doty, Mark. 2001. Still Life with Oysters and Lemon. Boston: Beacon Press, 56.) 

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255  

forças definidoras da personalidade. Mas o eu pode igualmente ser encontrado

no mundo; olhando para fora, experienciamos aquele que vê.»369

Neste modo de ver está em questão uma relação – ser com e não ser

como –, não uma identificação, não uma confusão, não uma indistinção, entre

pessoas e coisas. A própria noção de relação, aliás, implica a noção de diferença.

Sem diferença não há relação, mas sim indistinção e identidade monádica.

À semelhança do que se verifica em muitas naturezas-mortas e também

no passo de La Peau de chagrin que citámos neste capítulo, no poema «Interior

(with Jane)» e no romance À Rebours, as colecções podem ser associadas à

noção de memento mori, mas são uma preparação para a morte apenas na

medida em que preparam para a vida. Como o esqueleto em La Peau de

chagrin, as colecções associam-se à lembrança de que os coleccionadores estão

vivos – e não imobilizados na moldura de uma fotografia captada por outra

pessoa – através da relação dupla de, por um lado, distinção e, por outro,

implicação que os coleccionadores com elas estabelecem.

Os objectos das colecções distinguem-se dos coleccionadores na medida

em que, ao contrário dos segundos, não podem agir nem explicar-se nem

preservar-se a si mesmos. Por este motivo, dependem da realização de acções

que implicam os coleccionadores no espaço físico, social e cultural em que estes

se situam e, portanto, os tornam presentes na própria vida e os obrigam a viver

no tempo e no espaço social, integrando as transformações resultantes de

interacções370.

                                                            369 Doty 2001, 67.  370 Como Nehamas observa a propósito de uma das  ideias principais de Nietzsche, a  identidade  de  cada  um  é  um  processo  contínuo  de  integração  de  traços  de personalidade,  hábitos  e  padrões  de  acção:  «Tornarmo‐nos  quem  somos  […]  não  é 

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256  

Ao mesmo tempo, devido à relação de implicação entre colecção e

coleccionador, o coleccionador deve sempre ser visto com a colecção. A colecção

dá a ver as acções do coleccionador sob um certo aspecto, de certa maneira, a

uma certa luz. Temos de ver a colecção com o coleccionador e o coleccionador

com a colecção, assim como devemos ver as pessoas com as suas acções e com

os conteúdos destas.

Dominique de Menil afirmou uma vez: «Tentamos não parar de

coleccionar. Parar é pertencer à História.»371 A vontade de coleccionar pode ser

descrita como vontade de fazer História em vez de pertencer à História, e

também como vontade de se sentir vivo, através da demonstração constante de

que não se é uma coisa, mas sim alguém que insiste em tentar fazer sentido das

coisas. Deste modo, a famigerada «compulsão» dos coleccionadores para

adquirir objectos, em vez de responder a uma pulsão de morte, talvez não seja

mais do que uma manifestação de vida.

                                                                                                                                                                              

atingirmos um novo estado específico e pararmos de nos transformar – não é sequer atingir‐se um estado. É  identificarmo‐nos com  todas as nossas acções, perceber que tudo o que fazemos (o que nos tornamos) é o que somos.» (Nehamas 1985, 191.)  371 Smart 2010, 73. 

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273  

Lista de imagens em suporte digital

Esta tese inclui um CD com imagens que ilustram os termos do texto

antecedidos pelo símbolo .

As imagens podem ser visualizadas individualmente ou na opção

«apresentação de diapositivos» a partir da pasta «Ilustrações».

Para visualizar as imagens juntamente com a sua identificação, usar o

ficheiro de Powerpoint.

1. Piquenique (Kalman 2014b, 10-11).

2. Domingo nas Margens do Marne, Henri Cartier-Bresson, 1938 (The

Metropolitan Museum of Art).

3. Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte, Georges-Pierre Seurat,

1884 (Art Institute of Chicago).

4. Retrato das irmãs Nellie e Sally Hewitt (Kalman 2014b, 32).

5. Retrato de lorde Elgin: Thomas Bruce, Sétimo Duque de Elgin, Anton

Graft, c. 1788 (Broomhall House, Escócia).

6. Galeria Duveen do British Museum.

7. Possível referência do ensaio de Heidegger: Par de Sapatos, Van Gogh,

1886 (Museu Van Gogh).

8. Peças do Parténon no Museu da Acrópole (Atenas).

9. Anunciação, Filippo Lippi, c. 1449-1459 (National Gallery de Londres).

10. Pormenor de Anunciação, Filippo Lippi.

11. Ruínas de Pannini: Capricho Arquitectónico com Figuras entre Ruínas

Romanas, Giovanni Paolo Pannini, 1730.

12. Ruínas de Piranesi: Giovanni Battista Piranesi, Antigo Cruzamento entre

Via Ápia e Via Ardetina, segundo frontispício de A Antiguidade

Romana, vol. II, 1756.

13. Charles Townley na Sua Biblioteca, de Johan Zoffany, 1782.

14. Retrato de John Soane: Sir John Soane, John Jackson, 1828 (National

Portrait Gallery de Londres).

15. Casa-Museu de John Soane: Secção Longitudinal através do Museu e da

Cripta, pormenor de uma gravura de John Soane publicada em Soane,

Page 274: U UMA T TEORI IA DA A COLE ECÇÃ ÃO

274  

John. 1835. Description of the Residence of John Soane, Architect (Knox

2008, 14).

16. Sagrada Família no Egipto, Nicolas Poussin, 1655-1657 (Museu

Hermitage de Sampetersburgo).

17. Vista Aérea em Corte do Banco de Inglaterra a Partir de Sudoeste,

Joseph-Michael Gandy, 1830 (Casa-Museu de John Soane).

18. Edifícios Públicos e Privados Executados por Sir John Soane entre 1780

e 1815, Joseph-Michael Gandy, 1818 (Casa-Museu de John Soane).

19. Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas, Hubert

Robert, 1796 (Museu do Louvre).

20. Artista Desenhando Antiguidades na Pequena Galeria, Hubert Robert,

c. 1800 (Museu do Louvre).

21. Galeria de Arte Romana no Museu, Hubert Robert, c. 1790-1799 (Museu

do Louvre).

22. Cripta: Câmara Sepulcral com o Sarcófago de Seti I, Charles James

Richardson, 1825 (Knox 2008, 105).

23. Pátio do monge (Knox 2008, 99).

24. Dulwich Picture Gallery (exterior).

25. Sepulturas dos fundadores da Dulwich Picture Gallery.

26. Paredes que se desdobram em páginas na iconoteca da Casa-Museu de

John Soane (Knox 2008, 94).

27. Paredes invadidas por fragmentos na Casa-Museu de John Soane (Knox

2008, 115).

28. Retrato de Isabella Stewart Gardner: Isabella Stewart Gardner em

Veneza, Anders Zorn, 1894 (Museu Isabella Stewart Gardner).

29. Museu Isabella Stewart Gardner (exterior).

30. Página de um álbum de Isabella Stewart Gardner.

31. Sala holandesa do Museu Isabella Stewart Gardner.

32. Sala Ticiano do Museu Isabella Stewart Gardner.

33. O Rapto de Europa, Ticiano, 1560-1562 (Museu Isabella Stewart

Gardner).

34. Casa que se desdobra em museu: salão pequeno do do Museu Isabella

Stewart Gardner.

35. Retrato de Dominique de Menil, Max Ernst, 1934 (Fundação Menil).

Page 275: U UMA T TEORI IA DA A COLE ECÇÃ ÃO

275  

36. Mapa da Fundação Menil (brochura da Fundação Menil).

37. S. João no Deserto, Domenico Veneziano, c. 1445-1450 (National Gallery

de Washington).

38. Pedinte, Jacques Callot, 1622.

39. Imagem do Museu Menil: espaços de exposição neutros.

40. Imagem do pavilhão de arte pré-colombiana de Dumbarton Oaks.

41. Entrada principal de Dumbarton Oaks.

42. Casa da família Menil (exterior).

43. Interior da casa da família Menil.

44. Duas páginas do livro Le Musée Imaginaire de André Malraux.

45. Fotograma do filme Museum Hours, de Jem Cohen.

46. Jane Freilicher no Estúdio, fotografia de Nancy Crampton, 1984.

47. Exemplo de natureza-morta: Natureza-Morta com Terrina Chinesa e

Taça com Náutilo, Willem Kalf, 1662 (Museu Thyssen-Bornemisza).

48. Pão e Tijolos, Jane Freilicher, 1984 (Museu Metropolitan)

49. Décima Segunda Rua e Mais Além, Jane Freilicher, 1976 (Galeria Tibor

de Nagy).