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3
ÍNDICE
Agradecimentos 5
Palavras-Chave/Keywords 7
Resumo/Abstract 9
Resumo dos capítulos 11
Introdução: as nossas coisas preferidas 19
1. Contexto de origem, colecções e museus 35
1.1 Mármores do Parténon: a controvérsia cultural mais longa 35
1.2 Contexto museológico versus contexto de origem 42
2. História, memória, colecções e museus 75
2.1 O histórico e o panorâmico 75
2.2 Ruínas e fragmentos: John Soane e Hubert Robert 94
3. O privado e o público; o imaterial e o material 113
3.1 Genealogia das colecções 113
3.2 Casas-Museus e ocupação de um espaço: o Museu Gardner 129
4. Coleccionadores e outras pessoas 149
4.1 Intersubjectividade, partilha e participação: a Fundação Menil 149
4.2 Colecções, catálogos e museus imaginários 170
4
5. Intenção e valor 187
5.1 Pré-História das colecções e problemas da taxonomia 187
5.2 Oscilações de valor 206
6. Relações entre pessoas e coisas 225
6.1 Confusões e distinções 225
6.2 Contiguidades e consideração 241
Bibliografia citada 257
Lista de imagens em suporte digital 273
5
AGRADECIMENTOS
A redacção desta tese foi possível graças a uma bolsa de doutoramento
(SFRH/BD/68278/2010) da Fundação para a Ciência e Tecnologia pela qual
estou grata.
Aos meus orientadores, Prof. Miguel Tamen e Prof. João Figueiredo,
agradeço a disponibilidade, o rigor e a paciência com que acompanharam e
discutiram este projecto do início até ao fim.
O ambiente do Programa em Teoria da Literatura e as pessoas que
conheci durante o mestrado e o doutoramento neste contexto foram decisivos
para o meu interesse e para o meu empenhamento nestas actividades
académicas tão pouco valorizadas nos dias que correm.
Esta tese está associada ao projecto Intention, Action and the Philosophy
of Art: New Boundaries in a Theory of Action, financiado pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (PTDC/FIL-FIL/116733/2010), e beneficiou
grandemente de todas as actividades e discussões realizadas neste âmbito.
Graças a este projecto tive a possibilidade de apresentar e discutir ideias com
Humberto Brito, Ana Almeida, Alberto Arruda, Sara Eckerson, Nuno Amado e
Pedro Serras. Ana Almeida e Humberto Brito são inspirações para mim.
Estou grata ao Prof. António Marques, director do IFILNOVA, pelo bom
acolhimento do instituto. Muito obrigada também ao Nuno Mora por toda a
disponibilidade e eficiência.
6
Agradeço a Victoria Harrison, Anna Berqvist e Gary Kemp,
organizadores da Royal Institute of Philosophy Annual Conference 2013:
Philosophy and Museums: Ethics, Aesthetics and Ontology, por me ajudarem a
acreditar na possibilidade de esta tese interessar a mais do que duas ou três
pessoas quando seleccionaram para apresentação nessa conferência e posterior
publicação um ensaio que corresponde à primeira versão do primeiro capítulo.
Estou também grata a Constantine Sandis, Ivan Gaskell, Eileen John, Graham
Oddie e Beth Lord pelo feedback relativo à minha apresentação.
Aos meus colegas de seminário de orientação, agradeço o
companheirismo, as perguntas que fizeram e o interesse que demonstraram
pelo tópico desta tese. Além dos já citados Alberto Arruda e Sara Eckerson,
foram eles: Carlo Arrigoni, Carlos Alves Pereira, Frederico Pedreira, Joana
Cordovil Cardoso, José Maria Veira Mendes, Miguel Almeida, Pawel
Augustyniak, Susana Janic e Telmo Rodrigues.
Às seguintes pessoas agradeço a amizade, as sugestões e a compreensão
pela minha falta de entusiasmo em relação ao convívo social durante este
doutoramento: Carla Quevedo, Maria Sequeira Mendes, Cristina Fernandes,
David Luz, Helena Ramos, Teresa Gonçalves, Jean Pierre de Roo, Maria Rita
Furtado e Madalena Alfaia.
Por último, ao meu marido, Alexandre Andrade, agradeço o apoio
constante e incondicional.
7
Palavras-Chave
Coleccionadores, colecções, museus, casas-museus, ruínas, memória,
intersubjectividade.
Keywords
Collectors, collections, museums, house museums, ruins, memory,
intersubjectivity.
8
9
Resumo
Nesta tese tenta-se rever alguns lugares-comuns associados aos tópicos dos
coleccionadores, das colecções e da actividade de coleccionar, nomeadamente as
ideias de que as colecções se situam numa dimensão desligada da vida e de que
os coleccionadores são criaturas bizarras e perigosas. A abordagem privilegiada
procura, pelo contrário, avaliar a integração das colecções na vida dos
coleccionadores e perceber em que medida o estudo da actividade de
coleccionar nos pode ajudar a descrever e compreender melhor outras
actividades humanas.
Abstract
This dissertation looks into some clichés commonly associated with the topics of
collectors, collections, and collecting, namely the ideas that collections are
located in a dimension disconnected from life, and that collectors are bizarre
and dangerous creatures. Instead, it aims both to assess the integration of
collections in collectors’ lives, and to understand the ways in which the study of
collecting activities helps us to describe and clarify other human activities.
10
11
Resumo dos capítulos
1. No primeiro capítulo, um ensaio de Quatremère de Quincy sobre os
problemas associados às colecções e aos museus, juntamente com uma reflexão
sobre os Mármores de Elgin ou Mármores do Parténon, uma das colecções mais
controversas de sempre, levam-nos à consideração da descrição de colecção
enquanto descontextualização. Segundo Quatremère de Quincy, as colecções e
os museus geram «ruínas artificiais». Chegamos, no entanto, à conclusão de que
a passagem do tempo, a mortalidade das pessoas e o desgaste das culturas e das
civilizações têm efeitos inevitáveis que produzem não só ruínas mas também a
desintegração e o desaparecimento tanto dos contextos originais dos objectos
como de objectos que não sejam afastados destes contextos e preservados em
museus e colecções. Ao mesmo tempo, notamos que a apropriação destes
objectos por coleccionadores ou responsáveis por museus acarreta
frequentemente uma mudança de função e/ou de estatuto ontológico. Esta
situação chama a atenção tanto para as actividades de apropriação dos
coleccionadores como para a existência dos objectos ao longo do tempo e para o
modo como o estatuto destes vai variando em articulação com estas actividades
de apropriação. Uma das constatações mais importantes deste capítulo
relaciona-se com a ideia de que a identidade tanto das pessoas como dos
objectos não é totalmente predeterminada mas depende, no caso das pessoas,
das acções que realizam, no caso dos objectos, das actividades e práticas em que
são integrados.
12
2. Os Mármores do Parténon da colecção de lorde Elgin, a associação que
Quatremère de Quincy propõe entre ruínas e objectos de colecção ou museu,
assim como a ideia de mudanças ontológicas do estatuto dos objectos ao longo
do tempo suscitam no segundo capítulo uma reflexão sobre a memória e a
História. Em contraposição à posição de Quatremère, que defende uma
perspectiva histórica que recusa qualquer desconexão dos objectos
relativamente ao seu contexto original, propomos uma abordagem mais
próxima da memória e das relações de sentido que esta constrói. A casa-museu
de John Soane relaciona-se com os Mármores do Parténon por via das ruínas,
dos fragmentos e das relações que encena entre memória e História, propondo
um ponto de vista panorâmico, capaz de estabelecer conexões entre objectos e
pessoas de tempos e espaços diferentes, em vez de insistir na reconstituição fiel
dos contextos originais. Esta casa-museu chama a atenção para a
inseparabilidade das vertentes privadas ou subjectivas das colecções, por um
lado, e das suas vertentes públicas, por outro. Traduz um ponto de vista anti-
histórico que se articula com o desejo dos coleccionadores de superação da
morte e de permanência na memória cultural. Ao mesmo tempo, concretiza a
ideia de que as pessoas se definem situando-se num lugar material com que
interagem conceptualmente. A casa-museu de John Soane é vista como
metacolecção na medida em que concentra as conexões – ruínas, fragmentos,
túmulos, peregrinações ou turismo – em jogo não só em relação aos Mármores
do Parténon – o nosso ponto de partida, o paradigma das colecções –, mas
também na tradição ensaística sobre colecções e museus inaugurada por
Quatremère de Quincy. O carácter público da colecção de John Soane,
sublinhado pelas semelhanças de família entre objectos de colecção e
arquitectura funerária, aponta para a vertente intersubjectiva das colecções –
13
uma dimensão frequentemente ignorada na literatura sobre o tópico, mas
abordada nos capítulos seguintes desta tese.
3. No terceiro capítulo procuramos aprofundar a associação entre uma
subjectividade (ou um ponto de vista pessoal) e a constituição, organização e
exposição de uma colecção num determinado espaço. Sugerimos primeiro que
um conjunto de objectos pode expressar, definir, expor e preservar um conjunto
de relações entre uma pessoa e o universo material que esta percorre.
Constatamos que a definição da subjectividade se processa em articulação com
dimensões intersubjectivas e objectivas. Cada pessoa tem uma dimensão
colectiva e pública sem a qual não é possível definir-se. Verificamos isto não só
em relação às colecções, mas também relativamente a práticas relacionadas com
túmulos e outros monumentos de homenagem a mortos, santuários, relíquias e
relicários, gabinetes de curiosidades, arte da memória e casas-museus. A
propósito deste conjunto de práticas baseadas na associação entre objectos e
pessoas e, portanto, susceptíveis de serem consideradas na genealogia das
colecções, chamamos a atenção para a interacção do privado e do público, do
individual e do colectivo, tanto na definição de um ponto de vista pessoal como
na sua preservação depois do desaparecimento de uma pessoa.
4. No quarto capítulo, a partir das actividades da Fundação Menil,
aprofundamos a relação entre o individual e o colectivo, tentando perceber em
que medida o individual é partilhável e inteligível colectivamente. Constatamos
que partilhamos um conjunto de práticas culturais que nos distinguem como
seres humanos. Verificamos que para sermos inteligíveis a nós mesmos temos
de nos interessar pela inteligibilidade dos outros. Nesta partilha de
14
inteligibilidades e no interesse que cultivamos pelos interesses dos outros reside
a possibilidade de nos autodefinirmos através de proximidades e distâncias em
relação às pessoas e coisas com que partilhamos um espaço físico e conceptual.
5. No quinto capítulo prestamos mais atenção à noção de colecção. Depois de
considerarmos várias abordagens ao tópico, concluímos que precisamos de uma
noção mais ampla e abrangente do que aquela proposta pela maior parte dos
autores que escreveram sobre o assunto. Neste ponto, em associação com alguns
passos do romance La Peau de chagrin de Honoré de Balzac, constatamos que o
método, os critérios e as regras da ciência podem não ser as estratégias mais
adequadas para descrever sensatamente alguns assuntos. Para abordar alguns
tópicos que implicam dimensões gerais da natureza humana, talvez seja mais
importante obter uma visão ampla e panorâmica, em vez de se tentar especificar
os termos sem tomar em consideração as suas conexões. Insistir em
especificações, distinções e oposições na delimitação da noção de colecção tem
produzido resultados artificiais, demasiado vulneráveis a excepções e
insuficientemente abrangentes. Por este motivo, descrevemos simplesmente
«colecção» como um conjunto de coisas (objectos ou experiências) e de ideias.
Destaca-se como ponto principal a noção de que não há colecção sem pessoas,
pois só os seres humanos têm preocupações de construção de sentido. Visto que
ninguém faz sentido sozinho, uma colecção é um empreendimento
necessariamente público, por mais secreta ou privada que o coleccionador a
considere. O romance Le Cousin Pons, de Balzac, ajuda-nos a apresentar este
ponto de vista.
15
6. No sexto capítulo, pensamos sobre a relação entre as pessoas e as coisas,
tentando clarificar algumas confusões habituais. Assinalamos os modos como a
integração da noção de colecção na noção de vida nos ajuda a perceber o que é
«estar vivo». A distinção entre coisas e pessoas é relacionada com uma distinção
entre «ser» e «fazer». Enquanto os objectos são incapazes de agir e de pensar,
as pessoas têm de fazer para poderem ser e são o que fazem com o que está sua
disposição. Neste processo, a liberdade de identificação, desenvolvimento e
partilha de interesses e de interpretações pessoais é essencial não só para a
autodefinição de cada pessoa mas também para a expansão da cultura. Ao
mesmo tempo, salienta-se a ideia de que é necessário um empenhamento activo
na preservação do património cultural.
16
17
«Tornámo-nos coleccionadores sem culpa»
Dominique de Menil
«Não foi Goethe quem disse: ‘Os coleccionadores são criaturas felizes?’»
Stefan Zweig
18
19
Introdução: as nossas coisas preferidas
«Tentar articular alguns dos momentos no desenvolvimento de um gosto autorizado afinal não é senão fazermos um relato das nossas vidas e do nosso viver como uma aventura no e do gosto.»
Charles Wegener1
Os coleccionadores são pessoas felizes?
Dir-se-ia que os coleccionadores, na medida que estão em contacto com
os próprios interesses e com as suas coisas favoritas, partilham a vida com o que
os faz felizes. No entanto, de acordo com a maior parte da literatura sobre o
tópico, os coleccionadores são criaturas infelizes, alienadas, presas num
percurso autodestrutivo de permanente insatisfação.
Não sei se ser ou não feliz é a pergunta mais importante que podemos
fazer sobre a vida de alguém. É possível que para algumas pessoas haja coisas
mais importantes do que a felicidade. É possível também que algumas coisas ou
circunstâncias nos façam felizes ao mesmo tempo que outras nos deixam
infelizes. Em vez disso, talvez a pergunta mais importante que podemos fazer
aos outros e a nós mesmos nos peça para identificarmos o que traz sentido à
nossa vida – o que nos faz ter vontade de continuar a viver. Visto que somos
felizes quando as nossas vidas fazem sentido – isto é, quando os diversos
elementos da nossa vida se esclarecem uns aos outros ou se articulam uns com
os outros sem atritos destrutivos –, talvez «fazer sentido» seja uma condição de
«ser feliz» e «sentido» um sinónimo de «felicidade».
1 Wegener, Charles. 1992. The Discipline of Taste and Feeling. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 174. (Salvo indicação em contrário, todas as traduções para português integradas nesta tese são da minha responsabilidade.)
20
De qualquer maneira, se perguntássemos a um coleccionador o que o faz
feliz, penso que este responderia sem qualquer dificuldade. Os coleccionadores
têm coisas a dizer sobre o que traz sentido à vida.
Ao longo desta tese, o tópico das colecções será sempre pensado na sua
relação com a vida das pessoas, em vez de, como habitualmente sucede na
bibliografia sobre o tema, ser tratado como isolado desta. Nesta tese
descrevemos não só coleccionadores e colecções, mas também o que os não-
coleccionadores podem perceber graças aos coleccionadores. Trata-se de uma
opção infinitamente discutível, que implica secundarizar particularidades,
excepções e casos problemáticos. Em contrapartida, por ser uma opção pouco
comum na literatura sobre o tópico, permite abordar questões mal exploradas.
Com esta opção pretende-se libertar a actividade de coleccionar dos
lugares-comuns recorrentes em quase todas as abordagens do tópico. Estes
lugares-comuns viciam à partida qualquer descrição de coleccionador
relacionando-a com tendências obsessivas e compulsivas quase inumanas.
Nesta tese, pelo contrário, partimos das noções de que – evidência
habitualmente esquecida – os coleccionadores são pessoas como nós e as
colecções são uma parte importante da vida deles – portanto, também da vida
de todos nós.
Retirando as colecções de uma espécie de universo alternativo em que o
tempo e a humanidade estão suspensos, a abordagem privilegiada nesta tese
relocaliza-as na existência quotidiana como elementos de construção de sentido
e de inteligibilidade. Visto que os nossos interesses trazem sentido e felicidade
às nossas vidas, queremos perceber, por um lado, de que modos os
coleccionadores são felizes e, por outro, como os não-coleccionadores
participam nessa felicidade. Prestando atenção aos modos como os
21
coleccionadores se relacionam com os próprios interesses participamos na
humanidade que partilhamos e no que dá significado às nossas vidas.
Em 2011 o Museu Cooper-Hewitt convidou a artista gráfica Maira
Kalman para organizar uma exposição a partir dos objectos da colecção do
museu de que mais gostasse. Em articulação com este projecto, Maira Kalman
criou também dois livros sobre a colecção: um para adultos2, outro mais
orientado para o público infantil3. Em entrevista4, Kalman revelou que esta
tarefa desencadeou uma reflexão sobre os seus objectos preferidos em geral –
não só na colecção do museu. Kalman constatou que o processo de selecção de
peças de uma colecção convocava outras dimensões da sua vida. O livro My
Favorite Things demonstra em acto os processos que procuro clarificar nesta
tese e reforça uma grande parte das ideias que aqui defendo em oposição a
certas perspectivas mais comuns sobre o tópico das colecções5.
My Favorite Things divide-se em três partes. A selecção de objectos do
museu («Part II: Not Far From the Waving Trees in Central Park: My Favorite
Things from the Cooper-Hewitt») situa-se entre «Part I: There was a simple and
grand life», secção em que Kalman ilustra episódios da história da sua família, 2 Kalman, Maira. 2014. My Favorite Things. Nova Iorque: Harper Design. 3 Kalman, Maira. 2014. Ah‐Ha to Zig‐Zag: 31 Objects from Cooper‐Hewitt, Smithsonian Design Museum. Nova Iorque: Cooper‐Hewitt, Smithsonian Design Museum. 4 Disponível no site do podcast da Publisher’s Weekly Radio (episódio 93): http://www.publishersweekly.com/pw/podcasts/index.html?channel=8&podcast=330 5 Nesta tese, tomo em consideração colecções, descrições de colecções, ensaios e depoimentos sobre colecções, biografias de coleccionadores, ficção e cinema relacionados com o tópico, assim como ensaios de filosofia relevantes para o tema. Talvez o livro de Maira Kalman concretize a abordagem mais livre e mais desinteressada sobre o tópico na medida em que a autora não tem qualquer preocupação de demonstrar um argumento, limitando‐se a reagir a um desafio que lhe foi proposto pelos responsáveis de um museu.
22
incluindo fotografias não só da família mas também de objectos e obras de arte
associados a estas recordações e «Part III: Coda, Or Some Other Things the
Author Collects And/Or Likes», que clarifica alguns dos temas principais do
livro.
Associada à ideia de escolha de objectos e de constituição de uma
colecção pessoal a partir da colecção maior do museu encontramos a
necessidade de se explicar quem se é. Na última frase da introdução do livro,
Kalman anuncia: «Mas antes, um pouco sobre as raízes da pessoa resposnsável
por esta escolha.»6
A autodescrição de Kalman começa com a evocação de um passado em
família. A noção de identidade é inseparável da noção de memória. Memória
assume aqui o seu sentido mais amplo – não apenas como recordação do
passado, mas também enquanto mecanismo essencial à definição de uma
identidade individual e colectiva no espaço e no tempo. A memória permiteà
autora perceber de onde vem e projectar a sua existência no presente e no
futuro. A identidade individual de Kalman relaciona-se com as histórias da sua
família, constituindo portanto uma apropriação individual de uma identidade
colectiva.
Esta História individual e familiar é contada não só através dos objectos
específicos que dela restaram, mas também por recurso a referências que
incluem obras de arte e outros objectos não directamente relacionados com a
história particular que Kalman está a contar. Recorrendo a referências culturais
facilmente identificáveis, conhecidas e apreciadas por muita gente, esta artista
facilita a compreensão do que pretende transmitir, trabalhando um terreno
humano comum.
6 Kalman 2014b, 9.
23
A primeira imagem desta secção, representando dois casais a fazer um
piquenique nas margens de um rio7, não tem como ponto de partida uma
fotografia de um álbum de família de Maira Kalman, mas sim uma fotografia de
Henri Cartier-Bresson habitualmente identificada como Domingo nas
Margens do Marne8 (1938), ela própria por sua vez inspirada na famosa tela
Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte (1884), de Georges-Pierre
Seurat9. O que Maira Kalman faz com a fotografia de Cartier-Bresson ilustra
bem o processo de apropriação pessoal em questão. Cartier-Bresson fotografou
quatro camponeses a fazer um piquenique junto a um rio. Kalman produziu
uma ilustração desta fotografia, usando-a neste livro como usaria uma
fotografia retirada do seu álbum de família. Na fotografia de Cartier-Bresson, os
camponeses naquele piquenique são vistos na particularidade do contexto
daquele dia. Ao mesmo tempo, nós e Maira Kalman somos sensíveis à sua
universalidade, isto é, à possibilidade de aqueles camponeses serem se não
como nós, pelo menos como algumas pessoas da nossa família sem as quais não
seríamos como somos. No livro de Kalman, estes camponeses representam e são
vistos como seus familiares. Também Cartier-Bresson é integrado na família de
Maira Kalman. A circunstância de, assim como Kalman recorreu a Cartier-
Bresson, o próprio Cartier-Bresson ter como referência uma tela de Seurat
chama a atenção para a partilha de um património cultural.
7 Esta tese inclui um CD com imagens que ilustram os termos do texto antecedidos pelo símbolo . 8 Cartier‐Bresson não definia títulos descritivos para as suas fotografias. 9 No canto superior direito desta ilustração, Kalman inclui uma lista de coisas associadas à vida familiar no exterior (comida de piquenique, roupa a secar). No canto inferior esquerdo vemos uma lista de coisas associadas à vida familiar no interior de uma casa (mobília, cartas, roupa, documentos, etc.).
24
Nas páginas seguintes desta secção Kalman identifica e ilustra episódios
do passado e do anedotário da sua família recorrendo não só a objectos ou
fotografias relacionados directamente com esta história, mas também
apresentando ilustrações e fotografias inspiradas na obra ou na vida de artistas
como Bonnard, Chagall, Yves Klein ou Joseph Beuys. (Por exemplo, inclui uma
fotografia do fato cinzento de Joseph Beuys para recordar o fato cinzento que o
pai veste numa ilustração, a qual, por sua vez, representa uma queda deste do
terceiro andar, mas recorda uma fotografia de Yves Klein.)
Kalman integra as suas coisas favoritas na própria família.
Descrevermos as nossas coisas favoritas é como descrevermos a nossa família?
Sim, na medida em que somos quem somos graças tanto aos nossos
progenitores e antepassados como às coisas importantes na nossa vida. Para
percebermos e descrevermos quem somos precisamos de compreender as
nossas relações com ambos.
Descrever a nossa família biológica ajuda-nos a descrever o que em nós é
herdado. Descrever as nossas coisas favoritas ajuda a descrever o que em nós é
individualizado – as nossas escolhas. As nossas coisas favoritas ajudam-nos a
descrever-nos individual e colectivamente. Através delas, conseguimos articular
o que valorizamos e quisemos preservar do que herdamos, mas também o que
preferimos rejeitar e o que quisemos acrescentar.
Fazer uma colecção é como escolher uma família? No terceiro capítulo
desta tese vemos como a coleccionadora Isabella Stewart Gardner, à semelhança
de outros coleccionadores americanos seus contemporâneos10, constrói uma
casa em que se pode rodear dos objectos que gostaria de ter herdado da família 10 Alguns exemplos: Andrew Mellon (1855‐1937), Henry Clay Frick (1849‐1919), J. P. Morgan (1837‐1913), William Randolph Hearst (1863‐1951).
25
aristocrática europeia que nunca teve11. Não podemos escolher os nossos
antepassados, nem a nossa herança biológica e material, tal como não podemos
escolher o local e o período histórico em que nascemos, mas, como lembra Kant
no quarto capítulo desta tese, somos livres em certa medida para fazer algumas
opções que nos distinguem destas heranças.
Como concluiremos no sexto capítulo, a possibilidade de tomarmos estas
opções, a liberdade de mudarmos, a capacidade de escolhermos o que queremos
fazer, de tomarmos as nossas próprias decisões, a possibilidade de sermos
avaliados pelas nossas acções e pelas nossas escolhas, em vez de sermos
avaliados apenas por aquilo que herdámos e pela família biológica a que
pertencemos, a liberdade de assim definirmos quem somos e de escolhermos o
que nos faz felizes são alguns dos pontos mais importantes a estudar em
conexão com o tópico das colecções e são também os tópicos mais importantes
da nossa vida – individual e colectiva.
Interessante é também o facto de Kalman colocar lado a lado obras de
arte e objectos de todos os dias, à semelhança, aliás, do que se verifica na
própria colecção do Museu Cooper-Hewitt. Estes dois factores aliam-se à noção
11 No fim do séc. XIX, princípio do séc. XX, foram muitos os milionários americanos que usaram fortunas acumuladas em actividades profissionais para construir uma casa capaz de mostrar aos outros o seu sucesso. Em alguns casos estes milionários também reuniram uma colecção através da qual pudessem ser recordados. O modelo parece ter sido fornecido pelas famílias da aristocracia europeia, em cujas casas todos os objectos (quadros, peças de família, jóias, louça, talheres, objectos decorativos, mobília, etc.) eram conservados como marca de uma identidade que os descendentes herdavam. Em geral, as colecções dos milionários americanos revelam uma diversidade de objectos equivalente. Um dos objectivos destes milionários seria conferir uma aura de respeitabilidade aristocrática ao dinheiro adquirido profissionalmente (isto é, não‐aristocraticamente). Aliados ao desejo individual de se demonstrar quem se é através do que se consegue fazer, encontramos também objectivos relacionados com questões de identidade colectiva e de filantropia, como o desejo de tornar acessíveis aos americanos tesouros artísticos da Europa e de outros continentes.
26
de que as fronteiras entre a arte e a vida são menos importantes do que alguns
críticos e especialistas fazem crer, como defenderemos no quarto capítulo em
articulação com o filósofo John Dewey.
Dedicada à colecção do Museu Cooper-Hewitt, a segunda secção de My
Favorite Things, «Part II: Not Far From the Waving Trees in Central Park: My
Favorite Things from the Cooper-Hewitt», abre com o retrato das duas irmãs
– Nellie e Sally Hewitt – cuja colecção foi a base do espólio do museu. Antes de
os objectos serem descritos, são identificadas as pessoas que os coleccionaram.
Por ter sido inspirada pelas visitas destas irmãs ao Museu de Artes Decorativas
de Paris, a colecção deste museu inclui um grande número de objectos
admirados não só pelas suas qualidades estéticas mas também com possível
desempenho utilitário12. Os critérios da escolha de Maira Kalman relacionam-se
tanto com a beleza como com a utilidade destas peças. Esta situação torna claro
que não só alguns objectos da vida podem vir a fazer parte do universo da arte
como as obras de arte podem ou situar-se no contexto da existência quotidiana
ou organizar as percepções da vida de todos os dias. O que é valorizado na arte e
nas colecções também pode ser valorizado na vida13.
Apesar de nesta segunda parte Kalman ter o objectivo de seleccionar
objectos da colecção do museu, a sua abordagem continua tão pessoal como na
primeira secção deste volume. Entre ilustrações e referências a objectos do
12 Entre estes, Kalman destaca tenazes, tesouras, bules, chávenas, colheres de sopa, chapéus, cadeiras, sapatos, peças de roupa, relógios, candeeiros, livros e até portas. Além de objectos, a colecção inclui ilustrações de alguns destes objectos (por exemplo, sapatos e ilustrações de sapatos). 13 A última frase deste livro de Maira Kalman é, aliás, «Tudo faz parte de tudo.» (Kalman 2014b, 145.) Exploraremos adiante tanto esta frase como a secção final do livro.
27
museu, Kalman insere ilustrações de objectos que ela própria colecciona (ver
por exemplo, uma ilustração da colecção de bilhetes e senhas nas páginas 78-
79), ou comentários referentes a evocações pessoais, suscitadas pelas peças da
colecção14.
Simultaneamente, Kalman demonstra e explora a complexidade da
memória através do carácter inesperado de certas associações, mostrando como
esta pode ser investida em certos objectos – artísticos ou não –
independentemente do significado definido no contexto (físico e conceptual) na
origem destes. Na primeira parte de My Favorite Things, alguns objectos
concentram recordações e significados que mais ninguém lhes associaria. Como
veremos no segundo capítulo desta tese, trata-se de um processo semelhante ao
descrito em relação a algumas personagens de Proust, que associam certos
objectos e obras de arte a acontecimentos ou a outras personagens, ainda que
esta associação possa ser considerada idiossincrática ou até enganadora e
perigosa15. Deste modo, Kalman mostra como alguém pode apropriar-se
idiossincraticamente de certos objectos, associando-lhes conteúdos e
recordações que treslêem a função original ou as intenções na origem destes,
perdendo ou acrescentando informação importante a respeito destes, ou
fixando-se em pormenores aparentemente insignificantes.
Em paralelo com as idiossincrasias da memória, temos as variações dos
usos das coisas. Uma das ideias de que mais gosto nesta tese é a de que
14 Uma ilustração que representa um embrulho com uma misteriosa caixa de pulseiras que nunca mais ninguém abrirá é convocada por um álbum de ilustrações atado com fitas pertencente ao museu e ilustrado na página ao lado. A fotografia de uma porta na colecção do museu evoca uma citação de Wittgenstein e a imagem do quarto da artista Charlotte Salomon. (Kalman 2014b, 87‐89.) 15 Kalman é, aliás, leitora de Proust e chega a citá‐lo em My Favorite Things.
28
interpretações (de objectos, de textos, de imagens, etc.) que resultam de mal-
entendidos ou de distorção ou desrespeito da intenção original – isto é,
interpretações que alguns descrevem como erradas ou descontextualizadas –
podem não só funcionar como também chamar a atenção para facetas
inesperadas do que é interpretado, dando por vezes origem a novas vidas dos
objectos. Muitas vezes os objectos ou as obras de arte sobrevivem no tempo
precisamente porque são mal entendidos, mal usados e reinventados. Nalguns
casos, a preservação de alguns objectos depende da possibilidade de se
autonomizarem relativamente ao seu contexto de origem e da possibilidade de
se integrarem em novos usos particulares. Se o objecto ou a obra permitem essa
apropriação – e por «permitir essa apropriação» quero dizer integrar-se nos
usos e nas práticas com que esta interpretação se relaciona –, é porque de algum
modo esta possibilidade existe no objecto ou na obra.
Bill Brown propôs uma distinção entre «coisas» e «objectos»16. Segundo
Brown, as «coisas» são objectos que deixaram de funcionar ou objectos que não
percebemos para o que servem – por exemplo, uma caneta que não escreve.
Esta distinção talvez não seja tão nítida. Para usar a terminologia de Bill Brown,
em certa medida todos os objectos são «coisas» quando a sua descrição não os
articula com acções humanas. Como defendemos no primeiro capítulo, o
estatuto ontológico dos objectos depende da sua integração nas acções das
pessoas. Não se trata apenas de os objectos estarem disponíveis para serem «o
que receamos fazer», como Frank O’Hara escreve no poema «Interior (with
16 Ver Brown, Bill. 2003. «The Secret Life of Things: Virginia Woolf and the Matter of
Modernism» in Matthews, Pamela R. e David McWhirter (ed.). Aesthetic Subjects.
Minnesota: University of Minnesota Press, 397‐430 e Brown, Bill. 2001b. «Thing
Theory» in Critical Inquiry, Vol. 28, No. 1, Things. (Outono), 1‐22.
29
Jane)», que abordaremos no sexto capítulo. É mais do que isso: os objectos são
o que as pessoas fazem deles. Ao mesmo tempo, as pessoas são o que fazem com
as coisas à sua disposição.
Ao longo desta tese tento demonstrar que as pessoas se situam no espaço
e no tempo em relação a si mesmas, aos objectos e às outras pessoas deste modo
infiel à origem histórica. Os objectos artísticos e não-artísticos são encarados
como coordenadas subjectivas e intersubjectivas através das quais as pessoas se
definem individual e colectivamente, partilhando informações e valores ou
apropriando-se individualmente destes, entendendo-os mal.
Como John Soane celebra através da sua casa-museu, considerada no
segundo capítulo, e como Quatremère de Quincy afirma contra as colecções e os
museus num ensaio que comentamos no primeiro capítulo, os objectos de
colecção funcionam como fragmentos ou ruínas na medida em que são usados –
pelas pessoas em geral e pelos coleccionadores em particular – de modos que
ignoram ou secundarizam o seu contexto conceptual e físico de origem.
Considerados no primeiro capítulo, os Mármores do Parténon, com a sua
História atribulada, são o exemplo mais famoso dos mal-entendidos que
caracterizam as relações entre as pessoas e os objectos. As colecções chamam a
atenção não só para o carácter individual de qualquer interpretação ou
descrição, mas também para a possibilidade de estas variações interpretativas
assegurarem a preservação dos objectos coleccionados.
As últimas imagens da segunda parte de My Favorite Things relacionam-
se com os temas da ausência, da perda, do luto e da morte, tópicos que, como
constataremos ao longo desta tese, principalmente no segundo capítulo, são
recorrentes quando se pensa sobre colecções. Entre as peças referidas em
articulação com este tema destacam-se, pela quantidade e pela expressividade,
30
os «mourning samplers»17 da colecção do museu. Estes são acompanhados de
fotografias dos «mourning samplers» bordados por Maira Kalman por altura da
morte da mãe.
A recorrência dos tópicos do luto e da morte quando se pensa sobre a
relação entre pessoas e objectos aponta para vários elementos importantes desta
relação. Numa situação de perda, parece necessário às pessoas não só
dedicarem-se a uma actividade prática, mas também socorrerem-se de um
objecto material capaz de preservar a memória de alguém. A dor privada
adquire deste modo uma dimensão concreta e pública que a torna inteligível e
partilhável. Esta possibilidade de partilha revela-se uma noção essencial tanto
para compreendermos uma colecção como para compreendermos as pessoas.
Os objectos e as colecções são usados como elo de ligação entre pessoas
vivas e mortas. São um elemento essencial das relações que estabelecemos não
só com os que viveram antes de nós e com os que virão depois, mas também
com aqueles com que vivemos. Os objectos coleccionados asseguram uma
ligação entre os seus utilizadores no presente e os seus utilizadores no passado.
Ao mesmo tempo, instalam os coleccionadores no seu presente na medida em
que a associação destes numa colecção concretiza para os outros a interpretação
pessoal ou o modo de ver do coleccionador. (Neste sentido, como constataremos
nos capítulos quatro e cinco, qualquer colecção articula uma vertente imaterial e
subjectiva que se desenvolve com ela.) À nossa mercê por serem inanimados, os
objectos lembram-nos também que, nós, em contraste, estamos vivos e
17 Bordados realizados depois da morte de alguém, geralmente emoldurados e expostos numa sala comum, de modo a preservar e honrar a memória desta pessoa. Trata‐se de uma prática comum durante o século XIX nos Estados Unidos que adquiriu popularidade sobretudo depois da morte de George Washington (1799).
31
podemos agir e afectar o modo como os outros vêem esses objectos e nos vêem a
nós.
Indicarmos as nossas coisas favoritas ou identificarmos as coisas que nos
interessam18, como defenderemos no sexto capítulo, são actividades através das
quais participamos no espaço social e cultural. São actividades por meio das
quais nos descrevemos através das relações que conseguimos estabelecer com
outras pessoas e outras coisas. São actividades através das quais podemos, em
maior ou menor escala, afectar as percepções dos outros, apresentando e
defendendo o que nos incentiva a continuar a viver.
Ao mesmo tempo, mudarmos de interesses é um sinal de que estamos
vivos. Como observamos no quinto capítulo, a evolução das colecções
frequentemente ilustra esta susceptibilidade de mudança: alguns
coleccionadores vendem parte de uma colecção para a tornar mais refinada;
outros deixam de coleccionar uma coisa para passar a coleccionar outra; outros
ainda vendem objectos que continuam a valorizar para poderem comprar outros
que valorizam mais. Estas opções são semelhantes às que tomamos ao longo da
vida. Umas vezes deixamos de valorizar coisas que nos eram caras. Outras
sacrificamos umas em favor de outras que consideramos mais importantes.
Outras ainda, deixamos para trás coisas de modo a simplificar ou a melhorar a
nossa vida.
Como Wegener assinala em epígrafe, as nossas vidas são aventuras nos
domínios do gosto e do valor. Visto que as nossas oportunidades estéticas e
existenciais são sempre condicionadas pelo contexto historico-cultural em que
nascemos, percebermos quem somos, isto é, distinguirmo-nos individualmente,
18 Estas duas expressões não são necessariamente equivalentes. Podemos achar interessantes coisas de que não gostamos.
32
implica sempre uma apropriação individual das coisas e experiências ao nosso
dispor e esta apropriação articula-se com a definição de uma hierarquia da
importância das coisas. A história dos modos como vamos definindo esta
hierarquia e as opções que fazemos a partir desta é a história das nossas vidas.
Assim como My Favorite Things é um livro sobre os processos através dos quais
tentamos construir uma vida em que haja felicidade19, falar sobre colecções
implica discutir o que é mais importante na vida.
Na terceira parte de My Favorite Things, intitulada «Coda, Or Some
Other Things the Author Collects And/Or Likes», Kalman ilustra e comenta um
conjunto de coisas heterogéneas que aprecia e/ou colecciona, entre as quais
camas, escadotes, sestas debaixo de árvores, pensamentos nebulosos,
fotografias de bailarinos, fotografias de pessoas a fazer alguma coisa, banheiras,
botões, livros, listas, postais de um hotel tunisino. O retrato de uma condessa
cansada suscita algumas considerações (incluindo rasuras) sobre a felicidade e a
tristeza, terminando com a frase: «Estamos vivos e isso é glorioso tudo o que
temos.»20 A ideia de posse como relação entre pessoas e objectos é
secundarizada nestas páginas pela noção de que a única coisa realmente nossa é
a vida. Os objectos são importantes porque nos ajudam a organizar a percepção
da nossa vida. Só a nossa vida, no entanto, nos pertence.
Nas duas páginas seguintes, Kalman escreve sobre «os sapatos que
abrandam o tempo», uns sapatos encontrados numa loja de artigos usados,
19 Na introdução, sobre as escolhas que fez, Maira Kalman diz: «A minha escolha baseou‐se apenas numa coisa – um suspiro de prazer [a gasp of delight]. Não será essa a única maneira de organizar uma vida? Viver entre as coisas que nos fazem suspirar de prazer?» (Kalman 2014b, 9.) 20 Kalman 2014b, 141.
33
«perfeitos em tudo excepto no facto de serem dois tamanhos acima». Segundo
Kalman, estes sapatos ajudam-na a estar presente na própria vida, a possuir a
própria vida: «Quando os uso, tenho de andar devagar e com cuidado, atenta a
cada passo. Deste modo, sou incentivada a estar presente no momento. Ainda
assim, o tempo é efémero e fugaz.»21
Na segunda secção do livro, comentando uma ilustração de uns sapatos
amarelos da colecção do museu, Kalman tinha observado: «A capacidade de
andar de um ponto para o outro é meio caminho andado [half the battle
won].»22 Estar presente no momento, possuir a própria vida está implicado na
possibilidade de estabelecer activamente relações entre coisas e pessoas, coisas
e coisas, pessoas e pessoas23. A última frase gramaticalmente correcta desta
secção é: «Tudo faz parte de tudo.» Em todos estes momentos do livro, a noção
de relação desempenha um papel fundamental. As colecções são um recurso
fundamental para a reflexão sobre o estabelecimento das relações entre as
diversas dimensões da vida na medida que concretizam processos de outro
modo muito difíceis de analisar. As colecções mostram-nos como fazer sentido.
Ao longo desta tese, vou dizer que ser feliz depende da liberdade de
identificar, interpretar e partilhar as nossas coisas favoritas e que esta liberdade
tem impacto político na medida em que nos permite participar na definição do
que é mais importante na nossa cultura. Por outras palavras, falando sobre
coleccionadores e colecções, vou falar sobre coisas que dão sentido à vida.
21 Kalman 2014b, 143. 22 Kalman 2014b, 59. 23 O último objecto da colecção do museu que Kalman apresenta na segunda secção deste livro é um «mourning sampler» mexicano que, como Kalman destaca, inclui a frase «O amor une‐nos». (Kalman 2014b, 101.)
34
35
1. Contexto de origem, colecções e museus
1.1 Mármores do Parténon: a controvérsia cultural mais longa
Devido à intensidade e à longevidade da controvérsia, na discussão em
torno da colecção de Elgin, agora mais conhecida pela designação Mármores do
Parténon, são trocados argumentos e acusações que revelam tópicos com que a
cultura das colecções se tem confrontado e definido ao longo dos tempos. Entre
estes tópicos incluem-se a imagem negativa dos coleccionadores como
saqueadores e/ou vítimas descontroladas da própria cobiça, a imagem negativa
das colecções e dos museus como vazios contextuais e/ou mausoléus da arte e
do património, as relações mais ou menos difíceis entre colecções e museus, por
um lado, e as vertentes públicas e privadas, colectivas e individuais, estáveis e
vulneráveis, tanto das pessoas como das coisas.
Coleccionador mal-amado de uma das colecções mais discutidas de todos
os tempos, figura infeliz, lorde Elgin parece ilustrar nos seus actos também os
malefícios principais da cultura das colecções: ganância, ambições imperialistas,
vandalização do património, corrupção e actos ilegítimos, descontextualização
cultural e sobrevalorização de objectos em detrimento de valores imateriais
mais importantes. Lorde Elgin converteu-se no paradigma do coleccionador
como pessoa indesejável e geralmente mal-intencionada que se torna perigosa
pela sua incapacidade de resistir às paixões materiais.
Atacados por uns e por outros, pelo facto de afectarem tantos interesses
diferentes, lorde Elgin e a sua colecção, na medida em que lembram que a arte
36
não está desligada da vida das pessoas, são os melhores pontos de partida para a
nossa investigação24.
Thomas Bruce (1766-1841), sétimo duque de Elgin, o coleccionador
responsável pela presença dos Mármores do Parténon no British Museum, tem
sido uma das figuras mais atacadas em toda a História deste museu. Tanto os
partidários da restituição dos Mármores de Elgin à Grécia como os defensores
da retenção destas peças no British Museum descrevem as acções de Elgin como
actos de legitimidade contestável. Além de ter ordenado a remoção de
elementos essenciais do Parténon, causando, para tal, danos graves na estrutura
do edifício, de ter sujeitado estas peças aos riscos do seu transporte para
Inglaterra (afundamento, roubo, danos, perda, destruição) e às vicissitudes da
sua instalação em diversos espaços antes da sua aquisição pelo British Museum,
lorde Elgin só por meios duvidosos (como suborno e tráfico de influências) terá
obtido uma autorização pouco clara para estes actos.
Na versão mais caridosa da história do coleccionador e da colecção, no
entanto, quando, em 1798, lorde Elgin foi nomeado embaixador britânico no
império otomano, o arquitecto Thomas Harrison (1744-1829)25 sugeriu-lhe que
aproveitasse a oportunidade para estudar e documentar a arquitectura e a
escultura grega através de desenhos e moldes de gesso, de modo a melhorar o
conhecimento desta em Inglaterra. Lorde Elgin encarou este projecto como
contributo filantrópico para o desenvolvimento do gosto e da arte na Grã-
24 Três livros essenciais para compreender a História do Parténon são: St. Clair, William. 1967. Lord Elgin and the Marbles. Londres: Oxford University Press ; Beard, Mary. 2010. The Parthenon. Londres: Profile Books; e Hitchens, Christopher. 2008. The Parthenon Marbles: The Case for Reunification. Londres e Nova Iorque: Verso. 25 Muito interessado na arquitectura clássica, é considerado um dos grandes responsáveis pela afirmação da Greek Revival na arquitectura inglesa.
37
Bretanha. Os impulsos filantrópicos de Elgin ampliaram-se quando a equipa
que trabalhava na Acrópole o informou de que o trabalho era perturbado por
turistas e habitantes locais que não hesitavam em retirar fragmentos dos
edifícios. Elgin concluiu que era importante não só documentar mas também
preservar partes importantes do edifício.
Neste ponto, no entanto, o coleccionador fez algumas opções
contestáveis. No seu entendimento, as peças só poderiam ser preservadas se
fossem protegidas dos gestos selvagens de remoção a que estavam expostas
naquele sítio. Visto que nem os Gregos nem as autoridades turcas mostravam
compreensão da gravidade do problema, Elgin pensou que uma civilização
supostamente mais avançada como a inglesa compreenderia mais facilmente a
necessidade de conservar aquelas peças. Assim, obteve uma autorização que,
não sendo totalmente clara, permitiu à sua equipa remover fragmentos do
Parténon sem ser incomodada.
À semelhança de outros exploradores e coleccionadores que vendiam aos
museus britânicos os objectos que reuniam nas suas viagens por vezes
realizadas em missão oficial ou política, Elgin planeava oferecer esta colecção ao
British Museum. Esperando ser reembolsado, não se preocupou com as
despesas que, devido aos diversos infortúnios (desde a prisão em França ao
divórcio, passando pela contestação da autenticidade e do valor das peças por
Richard Payne Knight e pelos ataques pessoais de Byron) que perturbaram a
transferência pacífica e rápida da colecção para o British Museum, acabariam
por o colocar numa situação económica próxima da ruína, sem perspectivas de
carreira, obrigado a transferir a colecção de um lugar para o outro, à mercê da
disponibilidade de espaços e da boa-vontade de conhecidos. O dinheiro que
acabou por receber no fim do prolongado processo de venda ao British Museum
38
ficou muito aquém dos fundos investidos pelo próprio coleccionador neste
projecto.
Nas versões menos caridosas da história, os defensores da restituição das
peças ao seu contexto de partida tentam esmiuçar as intenções mais obscuras de
Elgin. Investigando a sua correspondência pessoal, alegam que, a dada altura,
em duas linhas de uma carta, Elgin teria admitido a hipótese de usar as peças
para decorar a sua residência privada26. De acordo com esta perspectiva, tendo
usado a sua posição oficial com objectivos egoístas e gratuitos, nem pelas suas
intenções supostamente altruístas poderia o coleccionador de algum modo ser
redimido.
Para os defensores da retenção dos Mármores no British Museum
tornou-se importante desvanecer o mais possível a ligação entre coleccionador e
colecção, como se actos e intenções de legitimidade discutível pudessem ficar
com o coleccionador, mantendo o museu só as peças da colecção, desligadas das
vertentes mais problemáticas da sua História. Visitando os Mármores do
Parténon no British Museum27, só a custo se encontra alguma referência a lorde
Elgin. O coleccionador é referido numa salinha pequena e escura, onde se conta
de modo breve o percurso das peças desde Atenas até Londres, mas que
facilmente passa despercebida a quem não estiver familiarizado com esta
controvérsia. É enorme o contraste entre esta sala e a galeria Duveen, onde a
luz e o espaço mostram em toda a sua glória as peças principais da colecção de
Elgin – como se não fosse preciso qualquer referência ao mundo exterior para
perceber a beleza e o valor destas obras de arte.
26 Ver Hitchens 2008, 31‐32. 27 Em Março de 2013.
39
Na galeria Duveen do British Museum, não são acidentais nem o
obscurecimento da história do coleccionador e da colecção, nem a sugestão de
auto-suficiência destas peças. Além de o British Museum não querer associar-se
aos episódios mais dúbios da história da remoção, do transporte e da aquisição
das peças do Parténon, visto que as autoridades gregas insistem na restituição
das peças à Grécia, tendo construído um museu com um lugar reservado para
estas numa sala com uma janela panorâmica com vista para o Parténon, é
importante para o museu britânico que as peças possam valer por si, desligadas
do seu contexto original, produzindo um impacto artístico supostamente
independente do seu percurso no espaço e no tempo. A instalação dos
Mármores na galeria Duveen possibilita que os visitantes os vejam antes de
mais como obras de arte cuja beleza sobrevive não só ao tempo mas também às
diferenças culturais. Que estas peças sejam parte do Parténon é quase
secundário nesta galeria, parecendo apenas uma informação adicional.
À sugestão de autonomia das peças alia-se a integração conceptual destas
na colecção maior do museu. Autodescrevendo-se como instituição que expõe e
dá a conhecer o melhor da cultura universal, o British Museum propõe, por um
lado, que nenhuma nação pode reclamar como seus objectos importantes para
todas as culturas, e, por outro, que o próprio Parténon e a cultura grega saem a
ganhar com a integração das suas peças num contexto tão enriquecedor.
Enquanto o British Museum e os partidários da retenção dos Mármores
procuram expandir o contexto dos Mármores até os converterem em algo quase
abstracto (arte, espécimes da cultura universal), no lado oposto da discussão, os
argumentos mais importantes dos partidários da restituição das peças do
Parténon restringem o contexto das peças. Para estes, não faz sentido que os
Mármores estejam em algum outro lado que não a Grécia, mais especificamente
40
junto ao Parténon, porque este é o seu contexto de origem. Vendo o Parténon
como parte essencial da História da Grécia e da identidade cultural grega, os
defensores da restituição alegam que nem a identidade dos Gregos, nem o
Parténon, nem os Mármores poderão alguma vez estar «completos» se não
forem associados materialmente no espaço grego.
Em toda a controvérsia em torno do Parténon e das suas peças, portanto,
um dos elementos mais interessantes é a facilidade com que se produz
descrições diferentes dos elementos em questão. Estes são descritos, à vez,
como arte, como objectos pedagógicos capazes de educar o gosto e a
competência artística, como parte da História e da cultura universais, como
parte de uma cultura clássica que em muito transcende, ou não, as fronteiras
espaciotemporais da Grécia, como parte essencial de uma identidade nacional e
como fragmentos indevidamente removidos de um edifício antigo.
As descrições variam de acordo com os contextos materiais e imateriais a
partir dos quais estas peças são encaradas, mas embora nem todas estas
descrições pareçam imediatamente compatíveis, todas são afectadas umas pelas
outras. O valor tanto dos Mármores do Parténon como do próprio edifício passa
a ser definido pela interacção de todas as descrições. É por serem tão
universalmente valorizadas que as peças são importantes do ponto de vista
nacional e vice-versa. É por terem valor artístico e histórico que têm valor
pedagógico e vice-versa. Pelo facto de as suas peças serem tão valorizadas e
discutidas é que o Parténon continua a destacar-se como símbolo de uma
civilização, de uma nação e de toda uma cultura; por terem feito parte do
Parténon é que estas peças recebem tanta atenção.
Devido à incompatibilidade dos interesses envolvidos, a que não são
alheias dimensões turísticas, económicas e políticas, as instituições que
41
acolhem e protegem quer as peças do Parténon, quer o próprio edifício,
acentuam artificialmente a incompatibilidade entre os diversos entendimentos
possíveis do edifício e das suas peças, em vez de tentarem integrar as várias
possibilidades descritivas em questão. Entre as duas principais instituições
envolvidas na discussão, nem o British Museum, insistindo na autonomia
artística e cultural das peças, nem o Museu da Acrópole, enfatizando a sua
identidade especificamente nacional, produzem descrições completas do que
está em questão.
Em Dezembro de 2014, a notícia do empréstimo ao Hermitage de
Sampetersbursgo de uma peça do Parténon incluída na colecção do British
Museum – a estátua do deus Ilissos – reacendeu a discussão em torno desta
colecção. O centro da controvérsia foi outra vez a propriedade das peças: a
quem pertencem os Mármores do Parténon?
Apesar de o problema da propriedade destas peças ser pertinente, tomar
em consideração apenas esta questão é simplificar uma questão muito mais
complexa, como, por si só, a própria História das peças indica. Quando vemos
os responsáveis gregos afirmarem que as peças lhes pertencem e não as querem
emprestar28, lembramo-nos de discussões entre crianças. As peças do Parténon
pertencem exclusivamente ao seu país de origem? As fronteiras geográficas
serão a questão decisiva nesta discussão? Ao longo desta tese defendemos que a
questão da preservação (no sentido heideggeriano do termo, aliado às noções de
consideração, partilha e respeito pelos objectos) é mais importante do que as
questões da propriedade e da posse.
28 Ver http://www.theguardian.com/artanddesign/2014/dec/05/parthenon‐marbles‐greece‐furious‐british‐museum‐loan‐russia‐elgin. (Consultado em 9 de Janeiro de 2015.)
42
Neste capítulo argumenta-se que tanto os contextos maiores como os
mais específicos são importantes para a descrição quer do Parténon, quer dos
Mármores do Parténon actualmente expostos no British Museum. Trata-se de
defender que a identidade das coisas – e, mais especificamente, dos Mármores
do Parténon – depende da sua integração na vida e nas actividades das pessoas,
e não só de conceitos abstractos ou institucionais a que possam ser associadas.
Assim como a identidade das pessoas se define a partir dos contextos que estas
percorrem, em interacção com outras pessoas, seres vivos e coisas, também a
identidade das coisas deve ser descrita tomando em consideração os contextos
que estas vão ocupando e afectando. Tal como não é possível descrever lorde
Elgin sem referir esta colecção, também não é possível descrever os Mármores
do Parténon e o próprio Parténon sem mencionar Elgin, a sua colecção e a
presença desta no British Museum.
A reflexão sobre a cultura das colecções desencadeada pela controvérsia
em torno dos Mármores do Parténon articular-se-á com uma reflexão sobre a
relação entre as pessoas e as coisas, com o objectivo de se tentar perceber até
que ponto o privado, o específico, o individual e o vulnerável se definem em
conexão com o público, o geral, o colectivo e o estável. Argumentar-se-á
paralelamente que tomar em consideração as diversas possibilidades de
contextualização e de integração das coisas na vida das pessoas é o melhor
modo de descrever quer as coisas, quer as pessoas
1.2 Contexto museológico versus contexto original
Desde o início, a cultura das colecções desenvolveu-se em articulação
com a guerra, a conquista e a expansão do poder político e económico. Entre os
43
antepassados das colecções modernas, os tesouros reais, os tesouros das igrejas
e os gabinetes de curiosidades reuniam objectos obtidos em viagens
relacionadas com confrontos bélicos ou evangelizadores, aliados ao objectivo de
confiscar riqueza. A oposição entre contexto da colecção ou contexto
museológico, por um lado, e contexto de origem dos objectos, por outro, tem,
assim, uma longa história. A fundação dos primeiros museus públicos, tantas
vezes relacionada com apropriação de objectos de proprietários privados ou de
culturas dominadas pela guerra, pode ser encarada como episódio desta
História.
Ainda que actualmente se reconheça o papel das colecções e dos museus
na preservação do património cultural e as colecções e os museus já não sejam
vistos simplesmente como usurpadores de objectos e manipuladores
ideológicos, nos séculos XIX e XX com facilidade encontramos ensaios baseados
no contraste entre colecções ou museus, por um lado, e o contexto original dos
objectos, por outro, em que os primeiros são descritos com estranheza e algum
ressentimento.
Por descreverem o estranhamento inicial dos visitantes em relação aos
museus, ensaios como Considerações Morais sobre o Destino das Obras de
Arte29 (1815), de Quatremère de Quincy e «O Problema dos Museus»30 (1923),
de Paul Valéry são importantes porque apontam para as especificidades mais
distintivas da organização destes espaços relativamente ao contexto inicial dos
objectos e obras de arte. Na medida em que também tocam em pontos comuns à
29 Quatremère de Quincy, A. C. 1815. Considérations Morales sur la Destination des Ouvrages d’Art. Paris: L’Imprimerie de Crapelet. 30 Valéry, Paul. 1923. «Le Problème des Musées», Valéry, Paul. 1960. OEuvres, vol. II, Pièces sur l’art. Paris: Gallimard, Bibl. de la Pléiade, 1290‐1293.
44
discussão em torno da colecção de Elgin, designadamente no que diz respeito à
valorização do contexto original em detrimento de outros e à associação da
noção de desenraizamento aos objectos expostos nos museus, estes ensaios
ajudam-nos a reflectir sobre esta discussão. Além disso, a circunstância de estes
textos terem sido escritos com pouco mais de um século de intervalo comprova
a persistência da importância dos problemas referidos inicialmente por
Quatremère de Quincy e retomados posteriormente por Paul Valéry.
Os pontos de vista expressos no ensaio de Valéry, na medida em que
sublinham de modo breve alguns dos pontos de vista defendidos mais
aprofundadamente por Quatremère de Quincy cerca de um século antes a
propósito do mesmo tema, são úteis como introdução às questões que nos
ocupam. Em «O Problema dos Museus», Paul Valéry salienta tanto os
constrangimentos impostos aos visitantes dos museus como o desconforto
causado pela organização característica destes espaços. Valéry fala da
incompatibilidade entre, por um lado, os princípios de classificação,
conservação e utilidade pública do museu e, por outro, as noções de liberdade e
de prazer que mais naturalmente prefiriria associar à apreciação das obras de
arte. Para ele, estes princípios museológicos, por serem rígidos e artificiais, não
impõem a ordem transparente e pedagógica que visam. Em vez disso, instalam
uma «estranha desordem organizada» que transmite a sensação de
superabundância, desorientação e descontextualização.
Para Valéry, enquanto no contexto original as obras de arte se distinguem
como objectos «raros» e «únicos», no museu anulam-se umas às outras pelo
facto de serem associadas em conjuntos organizados sob a égide de princípios
abstractos. Valéry descreve a arquitectura como mãe da pintura e da escultura,
sugerindo que o contexto original da arte exposta no museu é o das casas para
45
as quais estas obras de arte teriam sido encomendadas. Neste contexto original,
pintura e escultura teriam «o seu lugar, a sua função, os seus constrangimentos
[naturais]», «o seu espaço, a sua iluminação bem definida, os seus assuntos, as
suas alianças». Fora deste contexto estariam «mortas». Por esse motivo, Valéry
descreve o museu como mausoléu da arte, «entre o templo e o salão, o cemitério
e a escola».
Quatremère de Quincy pode ser descrito como um dos fundadores deste
tipo de reflexão sobre o espaço museológico. Vivendo nos tempos marcados pela
Revolução Francesa, pela recolha de despojos de guerra posteriormente
instalados em contexto museológico e pela definição de novas noções de direitos
individuais e democracia, Quatremère de Quincy (1755-1849) aborda estas
questões em textos como Considerações Morais sobre o Destino das Obras de
Arte (1815), Cartas a Miranda31 (1796) ou Cartas a Canova32 (1818),
documentos hoje considerados essenciais para a reflexão sobre património
artístico e cultural.
No ensaio Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte,
Quatremère não só aborda de modo mais extenso e aprofundado as questões
que um século depois continuariam a suscitar o estranhamento de Valéry e de
outros, como reflecte sobre a importância do contexto das obras de arte,
abordando noções de propriedade, pertença, apropriação e identidade que são
centrais tanto na fundação dos museus de acesso público como para a
compreensão da cultura das colecções. O facto de em Cartas a Canova
31 Quatremère de Quincy, A. C. [1796] 1989. Lettres à Miranda sur le déplacement des monuments de l'art de l'Italie. Introdução e notas de Edouard Pommier. Paris: Macula. 32 Quatremère de Quincy, A. C. 1818. Lettres écrites de Londres à Rome, et adressées à M. Canova sur les Marbres d'Elgin, ou les sculptures du temple de Minerve à Athènes. Roma: S. I.
46
Quatremère reformular alguns dos pontos de vista que defendera anteriormente
reforça e prolonga a amplitude desta reflexão.
Atento às questões mais importantes relacionadas com estes assuntos,
Quatremère não passou ao lado da discussão em torno dos Mármores de Elgin.
A sua atenção a esta colecção faz notar que a discussão em seu torno toca pontos
fundamentais no que diz respeito não só ao contexto museológico mas também
à cultura das colecções. Tanto no século XIX como no século XXI, reflectir sobre
a colecção de Elgin é importante para uma reflexão mais geral sobre as relações
entre colecção, museu e contexto, por um lado, e as relações entre as pessoas e
as coisas, por outro.
As contradições que alguns apontam entre as posições defendidas por
Quatremère nos textos referidos sinalizam a dificuldade destas questões.
Enquanto em Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte e
Cartas a Miranda Quatremère defende o valor do contexto original das obras
de arte por oposição ao espaço supostamente descontextualizado dos museus,
em Cartas a Canova, um conjunto de cartas que o ensaísta endereçou ao
escultor italiano Antonio Canova (1757-1822) a propósito das suas visitas aos
Mármores de Elgin no British Museum, Quatremère mostra-se sensível às
vantagens do espaço museológico para a apreciação das obras de arte,
reconhecendo que este cria possibilidades de observação e de compreensão
inexistentes no contexto original destas peças. Estas duas posições, no entanto,
não são necessariamente contraditórias.
Ainda que as observações de Valéry em «O Problema dos Museus»
relativamente à importância do contexto original das obras de arte pareçam
próximas das de Quatremère – que, em Considerações Morais sobre o Destino
das Obras de Arte, defende que, permanecendo em museus e colecções, as
47
peças se vêem desprovidas de qualquer função útil, pelo que, desligadas da vida
real, só podem suscitar apreciações críticas estéreis33 –, a reflexão mais
aprofundada de Quatremère sobre o papel do contexto na recepção das obras de
arte torna-o mais sensível às possibilidades do contexto museológico.
Noutros momentos, Quatremère demonstra reconhecer a importância
dos conceitos de «colecção» e «museu» no conhecimento, avaliação e criação da
arte. Em Cartas a Miranda, o volume de correspondência que dirigiu ao general
Francisco de Miranda, o ensaísta explora estes conceitos tanto através da
descrição de Roma como arquétipo dos museus e das colecções, como
descrevendo a importância das actividades em torno de uma colecção.
Um tanto ironicamente, a descrição que Quatremère faz de Roma
(«Roma em si própria já é, para o verdadeiro curioso, um mundo inteiro a
percorrer, uma espécie de mappa mundi em relevo em que é possível encontrar
representados de modo abreviado o Egipto e a Ásia, a Grécia, o Império
Romano e os mundos antigos e modernos; [...] ter visto Roma é ter feito várias
viagens numa só»34) poderia ser usada para publicitar museus como o Louvre
ou o British Museum, apesar de Quatremère estar a argumentar contra o
deslocamento de peças de Roma para este tipo de instituição. À semelhança de
Roma, estes museus integram objectos de todo o mundo, de períodos históricos
diferentes e de diversas culturas. Ver todos estes objectos no seu contexto de
33 «Obras que, deslocadas e retiradas das suas origens antigas, se convertem em meros assuntos de crítica, em simples objectos de observação para o espírito. O público perde de vista, no meio dessas colecções, as causas que fizeram nascer as obras, as relações a que se submetiam, as afeições com que deveriam ser consideradas e essa multiplicidade de ideias morais, de harmonias intelectuais que lhes davam tantos meios diversos de agir sobre a nossa alma.» (Quatremère 1815, 50.) 34 Quatremère 1796, 86 (Cartas a Miranda, Carta VII.)
48
origem implicaria realizar várias viagens – não só no espaço mas também no
tempo, visto que muitos destes contextos de origem poderão já nem sequer
existir. A comparação de Roma a um mappa mundi sugere, além disso, que
Quatremère valoriza um modo de visão panorâmico, característico do espaço
museológico, mas inacessível noutras circunstâncias.
Nestas cartas torna-se igualmente claro que, para Quatremère, o
conhecimento, a avaliação e a criação de arte são processos relacionais,
dependentes do estabelecimento de uma hierarquia de mérito baseada na
comparação informada de elementos de uma série. Neste sentido, para este
ensaísta, a correcta apreciação de uma obra de arte requer uma colecção35.
Os pontos de vista de Quatremère em Considerações Morais sobre o
Destino das Obras de Arte e Cartas a Canova, apesar de aparentemente
contraditórios, podem ser aproximados devido à abrangência da noção
quatremeriana de contexto. A defesa da importância do contexto (original) para
a identidade e apreciação das obras de arte que Quatremère realiza em
Considerações Morais sobre o Destino das Obras de Arte é complementada, e
não contrariada, pela consciência das virtudes do contexto museológico para a
percepção de determinadas peças que Quatremère manifesta a propósito da
colecção de Elgin no British Museum.
Nos dois textos, o ensaísta reconhece ao contexto uma importância
decisiva na apreciação ou recepção das obras de arte. No ensaio Considerações
Morais sobre o Destino das Obras de Arte, defendendo que a apreciação das
35 Por que razões se dão as pessoas ao trabalho de completar estas grandes colecções [...]? Não será porque, uma vez reunidos, estes objectos se esclarecem e explicam mutuamente? Não será porque o estudioso pode encontrar diversos instrumentos de estudo e compreender os raios divergentes do tópico que estuda como se focados por uma lente, todos no mesmo lugar? (Quatremère, 1796, 26. Cartas a Miranda, Carta III.)
49
obras de arte depende do conjunto de causas, relações, emoções e impressões
que rodeiam o objecto, Quatremère vê a pertença ao contexto original como
essencial para a definição da identidade da obra. Contudo, o princípio de
atribuir mais importância a esta rede de conexões entre a obra de arte e o que a
rodeia do que a propriedades intrínsecas dos objectos36, se levado às suas
últimas consequências, torna necessário reconhecer que certos contextos podem
favorecer mais determinada peça do que outros, independentemente de serem o
seu contexto de origem ou não.
Em Cartas a Canova, Quatremère faz essa admissão. De acordo com o
ensaísta, as peças do Parténon da colecção de Elgin não seriam tão valorizadas
no seu contexto original. Nestas cartas, perante a instalação da colecção de Elgin
no British Museum37, Quatremère afirma que esta colecção, apesar de reunir
peças dispersas e de ser fragmentária quando considerada em relação ao edifício
de que fez parte, suscita uma admiração maior do que as suas peças poderiam
ter suscitado no próprio Parténon, visto que num edifício completo as peças
perdem um pouco da sua grandeza individual quando integradas no todo e isto
torna impossível apreciar devidamente os seus pormenores. Pelo contrário, no
36 «Frequentemente o segredo destas impressões é o mesmo que o do seu destino, prendendo‐se o poder da obra de arte mais frequentemente do que se esperaria com o próprio lugar para o qual esta foi produzida.» (Quatremère 1815, 74.) 37 Quatremère visitou os Mármores do Parténon em 1818, quando estes estavam temporariamente instalados no antigo British Museum na Montague House. Nesta altura os Mármores partilhavam o espaço com outras antiguidades de origem diferente, como a cariátide do Erectéion. Esta apresentação visava criar uma atmosfera pitoresca que inspirasse os artistas a desenhar. A apresentação actual data de 1962, ano em que foi inaugurada a galeria Duveen. Antes disto, os Mármores do Parténon foram expostos de várias maneiras, de acordo com os entendimentos da sua função no museu.
50
museu e na colecção, salienta Quatremère, as suas dimensões reais podem ser
apreciadas pelos visitantes numa relação de maior proximidade38.
Na colecção de Elgin, o ensaísta destaca ainda a abrangência e, em
associação com esta, a importância da sua facilidade de acesso para o
pensamento europeu sobre arte. Por acreditar que a arte é indissociável da sua
visibilidade e da sua integração num conjunto de práticas públicas, e também
por considerar o contexto grego do século XIX de difícil acesso ao circuito
cultural e intelectual da época, Quatremère valoriza a presença da colecção de
Elgin no British Museum e é sensível ao impacto destes na reflexão e nas
práticas culturais europeias da época39.
Por ser constituída por um grande número de peças do mesmo período,
de autenticidade indiscutível, mas de diferentes géneros e de execução diversa,
esta colecção reúne, segundo Quatremère, um conjunto suficientemente
representativo para que neste se possam basear considerações críticas
susceptíveis de enriquecer de modo inédito a discussão europeia da arte através
da divulgação de conteúdos até então de difícil acesso devido à sua distância
geográfica. No British Museum, além de poderem ser observadas
individualmente mais de perto, as peças da colecção de Elgin passam a ser
incluídas num conjunto de práticas e reflexões culturais de que não fariam parte
38 «Assim, [...] desenrolam‐se perante nós cerca de 200 pés deste friso e podemos sem dúvida apreciá‐los melhor do que no Parténon, onde tinham má iluminação e estavam longe da vista. [...] [P]odemos abrangê‐los inteiramente com o olhar, analisando um objecto de cada vez e avaliando melhor as suas especificidades.» (Quatremère 1836, 32. Cartas a Canova, Carta I.) 39 «[A] contemplação destas esculturas suscita ideias, percepções e abordagens importantes tanto para a História como para a ciência e o ensino artístico. Não tenho dúvida de que depois de estas obras entrarem no circuito da produção crítica europeia se converterão numa fonte inesgotável de teorias, discussões académicas e paralelos instrutivos. (Quatremère 1836, 75. Cartas a Canova, Carta IV.)
51
se ainda estivessem integradas no Parténon. Para Quatremère, estas
circunstâncias são decisivas na medida em que, na sua perspectiva, a pertença à
esfera pública e social do objecto ou da obra de arte é essencial.
A abrangência da noção quatremeriana de contexto articula-se, assim,
com um conceito de património surpreendentemente amplo para a época. Na
perspectiva de Quatremère, o património não se reduz a um conjunto de
objectos ou de obras de arte, mas é constituído pela uma rede de relações,
afectos, crenças, acções, memórias e tradições em que estes se integram, como
nota Dominique Poulot40. Perante os Mármores do Parténon no British
Museum, Quatremère reconhece que nos museus, apesar de afastados do seu
contexto de origem, os objectos e as obras de arte não tardam a ser integrados
num conjunto de novas práticas, numa nova rede de associações afectivas ou
intelectuais e, mais cedo ou mais tarde, num novo conjunto de tradições e
memórias.
Apesar de escrever mais de um século antes de Valéry, Quatremère é
mais perspicaz relativamente às vantagens das práticas possibilitadas pelos
museus. Valéry reage aos princípios de organização dos museus, mas percebe
nestes apenas as desvantagens da superabundância, da classificação e da
ambição pedagógica. No espaço dos museus, Valéry encontra só
descontextualização e perda, devido à distância dos objectos em relação ao seu
contexto original. Em Cartas a Canova, pelo contrário, Quatremère de Quincy
revela a compreensão de que a descontextualização museológica é indissociável
40 Poulot, Dominique. «The Cosmopolitanism of Masterpieces», Quatremère de Quincy. 2012. Letters to Miranda and Canova on the Abduction of Antiquities from Rome to Athens. Trad. Chris Miller e David Gilks. Los Angeles: The Getty Research Institute.
52
do processo de recontextualização que as próprias peças desencadeiam no
espaço do museu.
Apesar de valorizar a importância do contexto e das práticas
desenvolvidas em torno deste, em Cartas a Canova Quatremère nota que as
peças do Parténon expostas no British Museum «abrem um espaço» (no sentido
heideggeriano do termo que adiante exploraremos) em relação ao qual o
observador se orienta e localiza, aí surgindo nas suas dimensões reais (ao
contrário do que se verificava no Parténon, em que se situavam num lugar
elevado e pouco iluminado no interior do edifício). No British Museum é
possível circular em torno delas41 e avaliar as suas relações e proporções42. A
circunstância de as peças do Parténon condicionarem deste modo o seu
contexto de recepção sugere que a sua identidade não depende só do contexto
em que se situam, seja este o Parténon ou o British Museum.
Interrogando-se, no ensaio «A Origem da Obra de Arte»43, sobre a
pertença das obras de arte («A que lugar pertence uma obra?»), Heidegger
41 «[C]reio que esta colecção, embora truncada e incompleta, suscita um assombro ainda maior do que aquele suscitado pela visão do monumento consumado e completo. Num edifício terminado, cada escultura, vista no seu lugar, perde alguma da própria grandeza; considerada em conjunto com tudo o que a rodeia, só pode ser examinada a partir de um lado e de um ponto de vista; quanto mais harmonioso e bem proporcionado é o conjunto, mais o olhar tem tendência para procurar uma visão geral e para integrar as partes no todo. A nossa consciência dos pormenores e, com esta, a nossa percepção da extensão e das dificuldades da obra, simplesmente desvanecem‐se nessas circunstâncias.» (Quatremère 1836, 49. Cartas a Canova, Carta III.) 42 «Aqui [no British Museum], pelo contrário, [...] podemos aproximar as mãos dos objectos, estes surgem perante nós na sua dimensão real, podemos circular em torno deles, contar as peças e avaliar as interacções destas no que diz respeito às relações e medidas» (Quatremère 1836, 49‐50. Cartas a Canova, Carta III.) 43 Heidegger, Martin. 2001. «The Origin of the Work of Art», Poetry, Language Thought. Trad. Albert Hofstadter Nova Iorque: Harper Perennial. (A tradução para
53
chega à conclusão de que as obras de arte pertencem apenas ao espaço que elas
próprias criam: «A obra pertence, como obra, unicamente ao âmbito que se abre
através dela própria. Pois o ser-obra da obra vigora e vigora somente em tal
abertura.»44
Neste ensaio Heidegger explora tópicos próximos dos de Quatremère
quer em Considerações Morais quer em Cartas a Canova. Em comum entre
Quatremère e Heidegger encontramos a preocupação com a possibilidade de
perda da identidade das obras de arte quando estas são tratadas como objectos
incapazes de afectar a percepção – do mercado, da crítica e da História da arte,
dos museus e das colecções, ou até de preservação. Os dois autores defendem
que ser uma obra de arte está intimamente relacionado com um conjunto de
causas, conexões, afectos, práticas e tradições.
Heidegger associa à obra de arte a capacidade de «abrir um mundo».
Esta noção é desenvolvida em dois passos importantes de «A Origem da Obra de
Arte». No primeiro, Heidegger reflecte sobre um templo grego. No segundo, a
reflexão centra-se num par de sapatos representado num quadro de Van
Gogh.
No ensaio «A Origem da Obra de Arte», Heidegger reflecte sobre os
«objectos mais próximos das pessoas». Heidegger refere três categorias – «obra
de arte», «equipamento» e «mera coisa» –, descrevendo-as, no entanto, através
das suas relações, em vez de destacar as suas distinções: «O equipamento, por
exemplo um par de sapatos, repousa, quando acabado, também em si como a
português dos passos deste ensaio citados baseou‐se nesta tradução inglesa, tomando em consideração as traduções brasileira e francesa identificadas na bibliografia desta tese.) 44 Heidegger 2001, 40.
54
mera coisa, mas não tem, como o bloco de granito, uma origem própria. Por
outro lado, o equipamento mostra um parentesco com a obra de arte enquanto
produto do trabalho humano. Todavia, a obra de arte assemelha-se, devido à
sua presença auto-suficiente, à mera coisa em sua origem própria e auto-
suficiente. Ainda assim não incluímos as obras entre as meras coisas. No geral,
as coisas de uso à nossa volta são as mais próximas e propriamente coisas.
Assim, o equipamento é, em parte, coisa, porque determinado pela
coisibilidade, mas ao mesmo tempo mais do que isso; ao mesmo tempo é, em
parte, obra de arte e, contudo, menos do que isso, porque sem a auto-suficiência
da obra de arte. O equipamento tem uma posição intermediária peculiar entre a
coisa e a obra, supondo-se que uma tal ordenação enumerativa seja
permitida.»45
As conexões assinaladas no passo anterior entre as três categorias em
questão sugerem que Heidegger está mais interesssado na complexidade das
interacções dos objectos destas categorias do que em traçar entre estes
fronteiras potencialmente artificiais. O interesse dedicado à tela de Van Gogh,
uma obra de arte que representa um exemplo de equipamento (um par de
sapatos), parece apontar na mesma direcção que prefere as conexões às
distinções, dificultando o estabelecimento de diferenças nítidas entre estas três
categorias.
Parece suficientemente claro nos passos sobre a tela de Van Gogh que,
segundo Heidegger, a arte pode revelar a materialidade das coisas mais
próximas das pessoas na vida quotidiana, em vez de se distinguir desta
dimensão mais prática e material. Para Heidegger, as categorias «obra de arte»,
45 Heidegger 2001, 28.
55
«equipamento e «mera coisa» estão interligadas não só porque é impossível
compreender e descrever uma sem referência às outras, mas também porque
partilham o mesmo espaço físico e conceptual, podendo uma das categorias
integrar e revelar as outras, como no caso das telas de Van Gogh que
representam sapatos de camponeses ou do próprio artista.
Tal reconhecimento chama a atenção para as suas conexões conceptuais e
físicas com a vida das pessoas. As zonas de sobreposição entre a arte e os outros
objectos (quer sejam «meras coisas» quer sejam «equipamento») são
suficientemente abrangentes para reconhecermos que talvez as conexões entre
estas categorias sejam mais significativas do que as suas distinções.
Descrevendo um templo grego, Heidegger nota que este edifício organiza
todo o espaço e todos os elementos em seu redor: a tempestade no céu, os
brilhos e as tonalidades da rocha, as plantas e os animais, assim contribuindo
para a forma distintiva destes46. Segundo Heidegger, o templo, através da sua
presença naquele espaço, transmite às coisas definição e aos homens uma
perspectiva sobre si mesmos: «O templo, no seu estar aí, dá às coisas a sua vista
e aos homens a visão de si mesmos.»47
Neste passo sobre o templo, notando que o ser-obra da arte se baseia
numa dimensão material expressa numa organização espacial e conceptual em
que a arte se define como centro da vida humana partilhada, Heidegger
46 «Estando ali, a obra arquitectónica repousa sobre o fundamento rochoso. [...] Estando ali, a obra arquitectónica resiste à tempestade que se abate furiosamente sobre ela e mostra deste modo a própria tempestade na sua força. [...] O erguer‐se seguro do templo torna visível o invisível espaço do ar. [...] A árvore e a relva, a águia e o touro, a serpente e o grilo aparecem no realce da sua figura e apresentam‐se assim no que elas são.» (Heidegger 2001, 41‐42.) 47 Heidegger 2001, 42.
56
aproxima-se de Quatremère. Tanto na perspectiva de Quatremère como na
perspectiva de Heidegger, o espaço organizado pelas obras de arte é não só
material mas também conceptual e cultural. No entender de Quatremère, aliás,
idealmente as pessoas e a cultura humana definir-se-iam em correlação com as
artes, como se verificava na Grécia Antiga48.
Ainda em «A Origem da Obra de Arte», o passo famoso em que
Heidegger descreve a representação de Van Gogh dos sapatos de uma
camponesa49 clarifica a noção de «abertura de um espaço»: «Da abertura escura
do interior gasto dos sapatos a fadiga dos passos da trabalhadora olha
firmemente. No peso denso e firme dos sapatos acumula-se a tenacidade do
caminhar lento através dos sulcos longos e sempre uniformes do campo, sobre o
48 «Quando consideramos as artes na prática habitual que delas se faz em cada nação, a palavra ‘necessário’ expressa essa ligação natural que estas por vezes têm com as necessidades básicas das pessoas na sociedade»; «todas a instituições sociais, políticas e religiosas se fundavam em associação com as Artes de imitação, as quais integravam todas as grandes acções imortalizadas, todas as belas afeições consagradas, todos os sentimentos personificados por sinais públicos» (Quatremère 1815, 1‐2.) 49 De assinalar que Heidegger não identificou com clareza a obra de Van Gogh a que se refere. Adoptando o ponto de vista do historiador de arte, Meyer Schapiro, depois de tentar identificar a tela em questão através de correspondência com o próprio filósofo, observa que, ao contrário do que é sugerido no ensaio, a tela supostamente em questão não representa os sapatos de uma camponesa mas os sapatos do próprio artista. De acordo com Schapiro, esta rectificação invalidaria toda a reflexão de Heidegger nestes passos do ensaio. Contudo, a informação fornecida por Schapiro sobre a génese da tela, ainda que possivelmente valiosa do ponto de vista da História da arte, não afecta a a validade do pensamento de Heidegger sobre estes assuntos. O objectivo principal de Heidegger é reflectir sobre as conexões entre os objectos e as acções humanas conforme reveladas pela arte. Para abordar este tema, qualquer tela capaz de evocar as relações entre um objecto e as actividades do seu proprietário funcionaria. Além disso, é possível argumentar que nesta tela Van Gogh explora as afinidades entre o trabalho do artista no estúdio e o esforço de um camponês no campo, pelo que a associação heideggeriana às actividades do segundo não pode ser considerada despropositada, devendo antes ser vista como intencionada pelo próprio artista. (Schapiro, Meyer. 1994. «The Still‐Life as a Personal Object: A Note on Heidegger and Van Gogh», Theory and Philosophy of Art: Style, Artist, and Society. Nova Iorque: George Braziller.)
57
qual sopra contínuo um vento áspero. No couro está a humidade e a fartura do
solo. Sob as solas insinua-se a solidão do caminho do campo à medida que a
noite vai caindo. [...] Através deste equipamento perpassa a aflição sem queixa
pela certeza do pão, a alegria sem palavras da superação renovada da
necessidade, o tremor diante do anúncio do nascimento e o calafrio perante a
ameaça da morte.»50
Neste passo, todos os elementos materiais se relacionam com actividades,
sendo inseparáveis do espaço em que se realizam. Sentimentos ou conteúdos
mentais relacionam-se com acontecimentos físicos e com características
concretas: tanto a «tenacidade» e a «solidão» como a «humidade do solo» estão
presentes no peso e nas marcas dos sapatos e na lentidão dos passos da
camponesa pelo campo. Não há uma fronteira clara entre elementos
conceptuais e materiais. Os conceitos estão implicados nos objectos e nos
acontecimentos do mundo. A identidade das pessoas e das coisas é indissociável
das actividades em que participam.
A atenção às vertentes materiais e conceptuais das dimensões espaciais
da existência humana, aliada à rejeição da oposição sujeito/objecto, sugere uma
aproximação51 entre Heidegger e Donald Davidson, um filósofo que reflectiu
sobre as conexões entre os conceitos e o espaço objectivo.
No ensaio «Três Tipos de Conhecimento»52, Davidson defende que a
subjectividade se forma no contexto da objectividade e da intersubjectividade:
50 Heidegger 2001, 33. 51 Esta ligação é proposta e explorada em Malpas, Jeff. 2004. Place and Experience: A Philosophical Topography. Cambridge: Cambridge University Press, 138‐155. 52 Davidson, Donald. 1991. «Three Varieties of Knowledge» in A. Phillips Griffiths (ed.). A. J. Ayer Memorial Essays Cambridge: Cambridge University Press, 153‐166.
58
«só quando um observador correlaciona conscientemente as respostas de outra
criatura com objetos e eventos do mundo do observador há alguma base para
dizer que a criatura está a responder a esses objectos e acontecimentos, e não a
quaisquer objectos ou acontecimentos»53.
Segundo Davidson, a compreensão humana desenvolve-se através do
diálogo e do relacionamento das pessoas com as outras pessoas, seres e coisas
no mundo. O acesso ao mundo, às outras pessoas e a nós mesmos é constituído
através desta interacção, baseando-se, portanto, numa dimensão intersubjectiva
e pública, dependente da partilha de um espaço material e conceptual.
O pensamento humano, de acordo com este filósofo, depende de uma
triangulação entre as reacções de duas pessoas a determinado conjunto de
estímulos sensoriais. Esta relação triangular permite às pessoas relacionar de
modo fiável as suas reacções com os estímulos do mundo: «Uma comunidade de
mentes é a base do conhecimento; esta fornece a medida de todas as coisas.»54
Para que esta «comunidade de mentes» ou «comunidade de pensamento» seja
possível, é necessário que os envolvidos reconheçam que ocupam posições num
universo partilhado: «Os pensamentos que formamos e acolhemos localizam-se
conceptualmente no mundo em que habitamos, e sabemos que habitamos, com
os outros. Mesmo os nossos pensamentos sobre os nossos próprios estados
mentais ocupam o mesmo espaço conceptual e localizam-se no mesmo mapa
público.»55
53 Davidson 1991, 159. 54 Davidson 1991, 164. 55 Davidson 1991, 165.
59
Davidson relaciona assim o autoconhecimento com o conhecimento dos
outros e do universo material. De acordo com esta perspectiva, a subjectividade
articula-se com uma presença activa e empenhada num determinado espaço e
inclui interacções com objectos e pessoas particulares. Só percebemos quem nós
somos e os outros são localizando-nos neste espaço intersubjectivo. Esta
localização combina-se com a percepção de que estamos em relação (física e
conceptual, uma vez que estas duas dimensões são inseparáveis – percebemos a
dimensão física conceptualmente e a dimensão conceptual implica a referência a
coordenadas físicas) com outras pessoas e outros objectos no espaço que
partilhamos com estes.56
Davidson aborda – com outra linguagem – as questões exploradas por
Heidegger nos passos em que este reflecte sobre o significado do templo do
ensaio «A Origem da Obra de Arte». Também Heidegger se refere ao «contexto
relacional» possibilitado pelo templo e ao modo como este funciona como
centro em torno do qual se articulam certos conceitos da existência humana: «O
templo-obra junta primeiro e ao mesmo tempo reúne, em torno de si, a unidade
daqueles caminhos e referências, nos quais nascimento e morte, maldição e
bênção, vitória e ignomínia, perseverança e queda, adquirem para o ser
humano a configuração do seu destino. A amplitude reinante deste contexto
relacional é o mundo deste povo histórico.»57
56 Estas noções serão aprofundadas ao longo da tese. 57 Heidegger 2001, 41.
60
Para Davidson, todos os objectos, incluindo a arte58, se integram na
vertente material e conceptual da vida das pessoas. A descrição que este filósofo
propõe das relações entre as pessoas e as coisas complementa as reflexões de
Quatremère e de Heidegger sobre a relação entre as obras de arte e as pessoas. A
abrangência das noções de arte propostas por ambos implica a integração da
arte na relação mais geral entre pessoas e coisas, tal como descrita por
Davidson. Tanto para Quatremère como para Heidegger, na arte está sempre
em questão um espaço específico que inclui pessoas e outras entidades ou
coisas. Não há arte sem esta relação entre coisas e pessoas concretas num
espaço que reúne coisas e conceitos em determinação recíproca.
Conjugar os pontos de vista destes três autores sugere que as obras de
arte e as práticas que estas condicionam são um elemento importante de quem
as pessoas são.
Descrevendo a relação dinâmica entre subjectividade, intersubjectividade
e objectividade, Davidson destaca a importância da dimensão pública e
partilhada da vida das pessoas e sugere que a identidade das pessoas e das
coisas é interdependente. Se as pessoas vão definindo quem são ao mesmo
tempo que vão percebendo quem as outras pessoas e coisas são, não é possível
às pessoas definirem-se a não ser em relação com as pessoas e coisas com que
partilham o mesmo espaço material e conceptual. Neste sentido, as outras
pessoas e os outros objectos ou entidades são essenciais para a definição das
acções dos sujeitos, assim como as acções das pessoas vão afectando aquilo que
integram.
58 Davidson descreve as obras de arte como objectos: «Obras de arte, escritos, artefactos de todos os tipos estão entre os objectos do mundo.» (Davidson, Donald. 1995. «The Third Man», Critical Inquiry, 607‐615.)
61
Segundo Quatremère e Heidegger, as coisas e as obras de arte não podem
ser tratadas como conceitos prévios à sua existência material. Estas incluem,
definem e são definidas dinamicamente pelas conexões e práticas que
condicionam no espaço que ocupam. Deste modo, a sua identidade deve ser
descrita a partir dos diversos acontecimentos, relações e acções particulares em
que participam ao longo da sua História e não pode ser captada
independentemente destas relações constitutivas concretas. Sem menção destas
relações e interacções, as obras de arte não são correctamente descritas.
De acordo com Quatremère, Heidegger e Davidson, as coisas têm
diferentes possibilidades de significação de acordo com a configuração do
espaço material e conceptual que ocupam, revelando tanto como são reveladas;
por conseguinte, não podem ser fixadas numa descrição definitiva e final.
Contextos diferentes, como museus e colecções, revelam e são revelados pelas
coisas de novos modos.
Visto que, tanto para Quatremère como para Heidegger, na arte está
sempre em questão um espaço específico que inclui pessoas e outras entidades
ou coisas, qualquer alteração do espaço implica uma transformação da própria
obra de arte, que passa a ter de ser descrita de acordo com as conexões e
práticas em que se integra no novo contexto. No exemplo dos Mármores do
Parténon não é suficiente descrever estas peças tomando em consideração
apenas o seu contexto original. Importa reflectir sobre o seu percurso e sobre a
sua instalação no British Museum, sobre o modo como este contexto as afecta e
é, por sua vez, afectado, assim como sobre as práticas que a sua presença neste
contexto possibilita.
Ainda em «A Origem da Obra de Arte», explorando o conceito de
preservação em conexão com esta noção de arte, Heidegger nota que a
62
preservação de uma obra de arte não depende necessariamente da permanência
desta no seu contexto original. Referindo o exemplo do templo de Pesto59,
Heidegger nota que, apesar de se manter no seu contexto original, este templo é
tratado como simples objecto de conservação e tradição60. Convertido numa
atracção turística, este templo não afecta de modo decisivo o espaço material e
conceptual que ocupa, por estar subordinado a imperativos alheios.
Sobre a conservação das obras de arte, Heidegger salienta que a maneira
adequada de preservar a obra é determinada apenas e exclusivamente por ela
própria; preservar é tomar em consideração e participar na verdade que ocorre
na própria obra de arte: «A realidade mais própria da obra só se chega a
produzir aí onde a obra é desvelada na verdade que acontece através dela
mesma.»61 Assim como não implica necessariamente a permanência da obra de
arte no contexto original, este conceito de preservação não é incompatível com a
presença de obras de arte em museus e colecções62, como Quatremère de
Quincy reconhece perante os Mármores do Parténon no British Museum.
59 Heidegger 2001, 39‐40. 60 «A perda e a destruição do mundo das obras são fenómenos irreversíveis. As obras deixam de ser aquelas que eram. Sem dúvida são elas próprias que aí vêm ao nosso encontro, mas elas próprias já não são as que foram. Deste modo, situam‐se perante nós no âmbito da tradição e da conservação.» (Heidegger 2001, 40.) 61 Heidegger 2001, 66. 62 Apesar de Heidegger, num passo que poderíamos integrar na tradição ensaística inaugurada por Quatremère, se questionar deste modo a propósito de colecções e exposições: «Mas estão elas [as obras nas colecções e exposições] aqui em si como obras que elas próprias são ou antes como objectos do comércio da arte? As obras tornam‐se acessíveis ao prazer artístico individual e público. Instituições públicas assumem a guarda e a conservação das obras. Conhecedores e críticos de arte ocupam‐se delas. O comércio da arte cuida do mercado. A pesquisa da História da arte torna as obras objecto de uma ciência. Mas as próprias obras vêm ainda ao nosso encontro nestes múltiplos manejos? [...] As esculturas de Egina na colecção de
63
«Abrir um espaço» é revelar as conexões possíveis entre elementos
objectivos e conceptuais de um determinado lugar e daqueles que intervêm
neste. A obra de arte pode funcionar como ponto central deste tipo de
«revelação» tanto no espaço museológico como numa colecção. O que distingue
o templo de Pesto que Heidegger descreve e os Mármores de Parténon, tal como
Quatremère os vê no British Museum, é que o primeiro, apesar de permanecer
no seu contexto original, já não é capaz de revelar novas relações entre as
pessoas e as coisas, enquanto os Mármores continuam a influenciar e inspirar
novas práticas artísticas e culturais, assim se afirmando como elementos
identitários dinâmicos tanto da Europa como do próprio museu que os expõe.
Restringir o significado e o valor de um objecto ao período histórico e às
condições materiais em que este foi criado ou posteriormente instalado pode
contribuir para a sua desvalorização, transmitindo a imagem de um objecto que
em tudo reproduz as características associadas aos seus tempos e espaços
específicos ou dos contextos em que foi colocado63. Isso é equivalente a reduzir
a obra de arte à informação histórica a que esta se associa64.
Munique, a Antígona de Sófocles na melhor edição crítica, foram arrancadas do seu próprio espaço essencial.» (Heidegger 2001, 39.) 63 «A obra de arte acaba por se tornar um mero instrumento de reprodução cultural.» (Maleuvre, Didier. 1999. Museum Memories: History, Technology Art (Stanford: Stanford University Press, 32.) Segundo Maleuvre, é importante repensar a cultura «sem o pathos das raízes, da pertença e da identidade» (Maleuvre 1999, 38). 64 Sobre este assunto ver também Wegener, Charles. 1992. The Discipline of Taste and Feeling. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 110‐114. Wegener observa que saber que os contemporâneos de determinada obra de arte lhe associavam certos significados não implica que nós ou que os observadores de outras épocas as vejam do mesmo modo: «Percebemos, talvez, que para os outros há aqui certos conteúdos, significados, que, para eles, estão de facto integrados na percepção e no que é percepcionado, mas podemos nós efectuar tal integração? [...] Pode ser possível recuperar alguma sombra de vida, alguma réstia da noção de que alguém certa vez se comoveu e sentiu enorme emoção em relação ao que agora está perante mim, mas
64
Contudo, as obras de arte não podem ser circunscritas nem ao seu
contexto espaciotemporal de origem nem a outros contextos que depois
ocupam, ainda que estes contextos possam ser considerados importantes e até
essenciais para os descrever. Um elemento importante da percepção das obras
de arte terá sempre de ser a sua presença material e as suas características
perceptíveis sensorialmente, como lembra Quatremère a propósito dos
Mámores do Parténon. A interacção com o objecto, aliada ou não a informação
histórica sobre este, terá sempre algum potencial de valor e significado.
Não estamos a defender que a informação histórica sobre os objectos é
irrelevante65. Na realidade, o objectivo principal de Quatremère em
Considerações Morais é a defesa da importância do contexto das obras de arte
e não exactamente a condenação dos museus e das colecções em si. Identificar o
contexto histórico da redacção de Considerações Morais ajuda-nos a perceber
que os verdadeiros adversários de Quatremère são aqueles que tentam elidir o
valor histórico da arte. Em Considerações Morais, Quatremére reagia à
complexidade política, ética e estética do seu tempo, relacionada não só com as
expropriações levadas a cabo no âmbito da Revolução Francesa, mas também
com a fundação do Louvre como instituição de acesso público. A dissolução do
contexto de origem das obras de arte, o esvaziamento dos objectos
relativamente à sua causalidade histórica nas colecções e nos museus, a
para nós há outras ocasiões, outros símbolos, outras associações cuja vitalidade partilhamos, os quais, por sua vez, para outros se converterão em significados abstractos e sentimentos atenuados. [...] Deste ponto de vista, os nossos historiadores coscuvilheiros não são só irrelevantes – são subversivos, visto que prefeririam que assumíssemos o empreendimento implausível e contraproducente de nos transformarmos noutra pessoa.» (Wegener 1992, 112.) 65 Retomamos este tópico tanto no segundo capítulo como na discussão sobre a relação entre souvenirs e objectos de colecção no terceiro capítulo.
65
transformação das obras de arte em objectos de troca comercial – alvos
principais de Quatremère em Considerações Morais – relacionam-se
directamente com o que sucedeu depois da Revolução Francesa, com a
desintegração das propriedades do clero e da aristocracia, a sua apropriação
pelo Estado ou venda a coleccionadores muitas vezes estrangeiros.
Neste contexto, a apropriação e a exposição, alegadamente para benefício
da democracia, de obras de arte e de objectos fabricados sob protecção ou por
encomenda do clero e da aristocracia foi apresentada como tentativa para
«libertar» estes objectos do seu contexto original e da sua História. Como
lembra Jean-Louis Déotte66 citando passos de um discurso de François de
Neufchâteau, um dos responsáveis pela fundação do Louvre, a instalação destes
objectos e obras de arte no Louvre foi descrita como «libertação estética».
Apesar de estes objectos terem sido encomendados e concebidos para o
engrandecimento do clero e da aristocracia, a sua instalação num museu de
acesso público, de acordo com o espírito da Revolução Francesa, permitir-lhes-
ia assumir plenamente o seu valor estético, supostamente independente do
destino histórico que previamente tinham ocupado.
Inversamente, a defesa da origem histórica da obra de arte levada a cabo
por Quatremère afirma-se em oposição directa ao «branqueamento ideológico»
da História levado a cabo na época da fundação do Louvre, alegadamente
defendendo o seu valor artístico em detrimento do seu valor histórico. Por sua
vez, esta tese defende a articulação destas duas dimensões.
Em suma, as reflexões de Quatremère de Quincy, Heidegger e Davidson a
propósito das relações entre contexto material e conceptual e objectos ou obras
66 Déotte, Jean‐Louis. 1994. Oubliez! Les Ruines, l’Europe, le Musée. Paris: L’Harmattan.
66
de arte têm implicações no que diz respeito tanto aos Mármores do Parténon
como relativamente ao papel das colecções e dos museus.
A possibilidade ou a circunstância de determinado objecto fazer parte de
uma colecção ou de um museu sugere que o valor deste não está relacionado
apenas com o seu contexto original. Por conseguinte, não parece correcto
circunscrever um objecto ao seu contexto material e temporal de origem quando
este transcende ou sobrevive a tal contexto ou, sendo deslocalizado deste, passa
a ser visitado por si próprio e gera outro tipo de conexões e práticas no novo
contexto.
Aliam-se a esta relativa autonomia do objecto diferentes possibilidades
de integração, apreciação e recontextualização deste. Além de organizarem o
espaço material e conceptual em seu redor, os objectos de colecção ou de museu
determinam o seu próprio tempo na medida em que sobrevivem à época em que
são criados, podendo ser apreciados e integrados na vida das pessoas em épocas
e espaços diferentes67.
Transferir esta reflexão para a discussão em torno dos Mármores do
Parténon expostos no British Museum parece prejudicar a posição dos
defensores da restituição das peças. Ainda que a ideia de que o British Museum
deve ser encarado como montra da cultura universal seja discutível de várias
perspectivas, parece pouco sensato defender que um museu nas cercanias do
Parténon é o único contexto adequado para estas peças, quando no British
Museum estas geram e são integradas em novas práticas, memórias e tradições.
A defesa da restituição das peças é, além disso, enfraquecida por duas
circunstâncias importantes: a deslocalização de peças do Parténon para o
67 «O anacronismo é a essência da historicidade do objecto histórico.» (Maleuvre 1999, 60.)
67
Museu da Acrópole no caso de estas serem devolvidas, por um lado, e, por
outro, todas as conversões e reconversões que o Parténon foi sofrendo desde
que foi construído.
Sucede que os próprios Gregos consideraram imprescindível remover
peças do Parténon para as preservar do desgaste causado pela poluição. Estas
peças estão expostas no Museu da Acrópole, uma instituição dedicada à
História da Grécia e da cultura grega, tendo sido substituídas por cópias no
edifício original. Se o British Museum devolvesse a colecção de Elgin, as peças
não seriam reinseridas no Parténon; seriam integradas no Museu da Acrópole.
É verdade que a construção deste museu tomou em consideração a sua relação
com o Parténon, tendo para as peças do Parténon sido reservada uma galeria
com a mesma orientação e dimensões do Parténon e contacto visual com o
edifício através de uma janela panorâmica. No entanto, é inegável que as
relações estabelecidas no contexto original foram perturbadas tanto pela
deslocalização das peças como pela própria História.
Tendo sido originalmente concebido como templo, o Parténon foi depois
usado como igreja, mesquita, depósito de armas, fonte de material de
construção e alvo de coleccionadores de todos os tipos. Entre 500-1450 d. C., o
Parténon funcionou como igreja cristã, com adaptações e acrescentos ao edifício
original. No século XV foi convertido em mesquita. Depois de uma explosão em
1687, passou a ser mais ruína do que edifício. Nesta fase, foi objecto de atenção
não só de atenienses em busca de materiais de construção, mas também de
turistas interessados em lembranças da sua visita à Acrópole ou em peças para
as suas colecções. Só em 1838, já depois de Elgin e da Guerra da Independência
na Grécia (entre 1821 e 1822), foram manifestadas preocupações relacionadas
com a conservação do templo. Sob supervisão alemã, o local foi objecto de
68
limpeza e escavações com o objectivo de lhe devolver o estatuto original. Este
projecto, no entanto, destruiu muitos vestígios da História do edifício.
O carácter sólido da estrutura do Parténon contribuiu para a resistência
de uma estrutura reconhecível do edifício, mas nada pôde contra as peripécias
da História, nem foi capaz, por si só, de condicionar decisivamente os usos ou as
funções que diferentes culturas lhe atribuíram. Actualmente, o edifício funciona
como ponto de atracção turística e não como templo. Não é possível fixar a rede
de usos e crenças associadas à construção dos edifícios, como Heidegger nota a
propósito do templo de Pesto.
Tendo em conta o percurso dos Mármores e a História do Parténon,
apesar de a associação das peças do Parténon à cultura grega e ao conceito
original do edifício de que fizeram parte ser indiscutível, esta associação não é
suficiente para descrever e compreender o valor destas peças. Visto que os
Mármores do Parténon já foram integrados em contextos distintos do seu
contexto de origem, é incompleta qualquer descrição dos Mármores dos
Parténon que os caracterize apenas como peças de um templo grego.
Admitir que essa informação histórica é importante na biografia destas
peças não implica defender a sua restituição. Tal restituição pode, pelo
contrário, ser vista como sabotagem da História, se considerarmos que a
biografia destas peças há muito as afastou irreversivelmente da sua origem.
Como observa Walter Benjamin68, para um coleccionador são
importantes não só o contexto de origem do objecto (as suas funções, as razões
68 Nos coleccionadores, Benjamin destaca a consciência histórica caracterizada pelo interesse que estes dedicam ao «destino» dos objectos. Por «destino» dos objectos, Benjamin entende a sua «presença no espaço e no tempo», à qual se associam inseparavelmente não só a sua condição física mas também os proprietários que conheceram e os usos que estes lhe deram: «Basta pensarmos na importância que um
69
pelas quais foi concebido e criado), mas também outros contextos em que este
tenha sido incluído e outras funções que tenha desempenhado, designadamente
outras colecções e proprietários a que tenha pertencido. Aos coleccionadores
interessa toda a História – e também toda a história – do objecto, não só a sua
origem nem apenas as suas funções originais.
Porque toma em consideração não só a função original do objecto mas
também todas as suas possibilidades de contextualização, a perspectiva do
coleccionador emerge como modo de visão adequado para analisar os objectos e
as relações entre pessoas e objectos. Por sua vez, as relações entre pessoas e
objectos que as colecções ilustram ajudam a descrever o processo de interacção
entre as componentes materiais e imateriais, públicas e privadas, colectivas e
individuais da vida das pessoas.
A perspectiva de Walter Benjamin pode ser aproximada das de
Quatremère de Quincy, Heidegger e Davidson, segundo os quais a identidade
das coisas inclui e é definida dinamicamente pelas conexões e práticas que os
objectos condicionam no espaço material e conceptual que ocupam. Esta
identidade só pode ser descrita tomando em consideração os acontecimentos
particulares da sua História, não podendo ser articulada independentemente
das suas relações com os diferentes tempos, espaços e práticas de que as coisas
fizeram parte. Descrever correctamente uma coisa implica referir pessoas,
coleccionador em particular atribui não só ao objecto que possui mas também a todo o passado deste objecto, tanto à origem e às características objectivas da coisa, como aos pormenores da sua história externa ostensiva: proprietários anteriores, preço de compra, valor actual, entre outros. Tudo isto – os dados ‘objectivos’ e os outros – confluem, para o verdadeiro coleccionador, em cada um dos seus pertences, constituindo toda uma enciclopédia mágica, uma ordem do mundo, cujo contorno é o destino do objecto.» (Benjamin, Walter. 1999. The Arcades Project. Trad. Howard Eiland e Kevin Mclaughlin. Cambridge, MA e Londres, The Belknap Press of Harvard University Press.)
70
acontecimentos, espaços e outras coisas com que o objecto se tenha relacionado
ao longo do tempo – e não só no seu contexto de origem.
Só quando se toma em consideração todas as interacções dos objectos
com pessoas concretas nos espaços e contextos que estes vão ocupando podem
os objectos ser correctamente descritos e valorizados. Pela sua integração na
vida das pessoas de tempos e espaços diferentes (desde a Grécia antiga à Grécia
contemporânea, desde britânicos, turistas, coleccionadores, historiadores e
artistas, até funcionários do museu), os Mármores do Parténon assumem uma
presença concreta e complexa que nenhuma das posições defendidas na
discussão em seu torno consegue, por si só, abranger. Para isso, é necessário
recorrer à consciência histórica do coleccionador, valorizando os objectos no
presente, mas com o seu passado e o seu futuro.
A propósito da dificuldade de definir claramente fronteiras entre
categorias de objectos, Philip Fisher69 reflecte sobre o percurso de um objecto
(uma espada) até adquirir o estatuto de obra de arte num museu. Neste
percurso torna-se clara a oscilação do estatuto ontológico das coisas.
Numa fase inicial da biografia da espada que Fisher descreve, este objecto
teria pertencido a um guerreiro que a usava na guerra como objecto utilitário.
Depois da morte do guerreiro, esta espada pode ter sido preservada como
objecto sagrado, usada em cerimónias religiosas, de iniciação, ou até para
supostamente curar doenças. Numa terceira fase, a espada seria integrada no
tesouro de uma família, à qual pode ter chegado entre outros despojos de
guerra. No momento seguinte, a espada terá chegado a um museu, onde foi
considerada um objecto digno de estudo e de observação, com potencial de 69 Fisher, Philip. 1997. Making and Effacing Art: Modern American Art in a Culture of Museums. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
71
informação sobre aspectos práticos e/ou conceptuais de mais de uma cultura.
Neste percurso, o estatuto ontológico da espada vai oscilando entre as categorias
de objecto utilitário, objecto sagrado, objecto valioso e objecto museológico70.
Segundo Fisher, a ontologia dos objectos depende não só das práticas em
que estes são apropriados mas também do conjunto maior de objectos em que
são integrados71: «Só graças a um grupo de pessoas, um conjunto de costumes
[...], e uma organização que o converte no membro de uma comunidade de
objectos associados porque cumprem funções semelhantes, só nestas
circunstâncias a espada se torna um objecto na sua cultura ou na cultura que
dela se apropriou […].»72
Fisher nota que em nenhuma das fases a identidade e os usos da espada
estão predeterminados. Estes dependem do modo como são apropriados por
aqueles que os usam: «Quando pensamos que um objecto detém um conjunto
de propriedades fixas, estamos a esquecer-nos de que só no contexto dos guiões
70 Fisher 1997, 3‐5. 71 Num passo do oitavo capítulo de Museums and the Shaping of Knowledge, Hooper Greenhill defende um argumento semelhante: «Revela‐se um fluxo de objectos com significado: os manuscritos soltam‐se e são reencadernados, outra vez reunidos, mais uma vez traduzidos, tornando‐se novas formas de inscrição; a escultura é transferida para espaços diferentes, sendo‐lhe acrescentados ou removidos elementos; as imagens esculpidas numa coisa são reproduzidas noutro meio, a outra escala, associadas a novos tópicos históricos e políticos; as jóias são derretidas, remodeladas, vendidas, oferecidas, de acordo com as necessidades de cada tempo; as coisas são postas de parte, deitadas ao lixo por serem consideradas irrelevantes, distribuídas por diferentes proprietários, transportadas através de grandes distâncias por agentes de todos os tipos (missionários, marinheiros, viajantes, colonizadores, agentes culturais); as coisas são valorizadas, protegidas ou negligenciadas de acordo com a interacção dos factores que as constituem como objectos. A identidade dos objectos significativos permanece em aberto e em transformação constante à medida que os outros aspectos sociais se vão transformando em seu torno» (Hooper‐Greenhill, Eilean. 1992. Museums and the Shaping of Knowledge. Londres e Nova Iorque: Routledge, 196). 72 Fisher 1997, 4.
72
sociais essas propriedades, e apenas essas, se tornam visíveis ou até reais. [...] O
reportório das práticas destaca certas características, neutralizando outras
características possíveis. O nosso uso constrói e descontrói o que o objecto é,
incluindo a questão de este ser, ou em que medida este é, uma obra de arte»73.
A reflexão de Fisher ajuda-nos a consolidar o que vimos sugerindo a
partir dos ensaios de Quatremère de Quincy, Heidegger e Davidson, chamando
a atenção para o modo como a oscilação ontológica das coisas faz parte da sua
existência no tempo. De acordo com Fisher, apesar de novas práticas não
eliminarem a memória das práticas anteriores de que o objecto fez parte, a
persistência material dos objectos e as suas potencialidades inesperadas
continuam a permitir novas práticas e diferentes reapropriações74.
Na mesma linha de pensamento, podemos concluir que as colecções e os
museus, reunindo objectos em contextos distintos da sua origem, evidenciam
uma das características mais interessantes da existência dos objectos no tempo:
a possibilidade de sobreviverem tanto fora do contexto de origem como
desligados das intenções do seu criador ou fabricante. Como Fisher sublinha,
isto é válido tanto em relação às obras de arte como para objectos produzidos
com fins mais utilitários.
A tradição que descreve os museus e as colecções como espaços de
estranhamento e de alienação em relação à «vida real» não toma em
consideração a implicação mútua entre as pessoas e as coisas nestes espaços.
Garantindo o acesso das pessoas às obras de arte e a outros objectos
73 Fisher 1997, 18‐19. 74 «A possibilidade de apropriações imprevistas sugere que há sempre um excedente de factos por considerar mesmo nos objectos mais estreitamente definidos.» (Fisher 1997, 95).
73
considerados dignos de atenção, os museus colocam-nos na experiência
humana, num espaço em que as pessoas podem interagir conceptual e
materialmente com eles, assim fazendo sentido destes e de si próprios.
Os museus e as colecções, por conseguinte, podem ser descritos como
espaços de questionamento e de abertura de possibilidades de conexão entre as
pessoas e as coisas. No sentido em que exploram as possibilidades múltiplas do
ser das coisas e das pessoas, os museus e as colecções são instrumentos de
investigação ontológica que nos confrontam com duas perguntas importante. O
que é este objecto? Como pode este objecto ser o que é?
Vamos tentar responder a estas e outras perguntas ao longo desta tese,
procurando ao mesmo tempo perceber como as pessoas são e como podem as
pessoas ser como são.
74
75
2. História, memória, colecções e museus
«Consideremos o que a ruína tem significado ou pode significar hoje: uma lembrança da realidade universal da decadência e do apodrecimento; um aviso do passado sobre o destino da nossa ou de qualquer outra civilização; um ideal de beleza sedutor precisamente pelas suas imperfeições e pelos seus fracassos; o símbolo de um certo estado de espírito melancólico ou errático; uma imagem do equilíbrio entre Natureza e cultura; um monumento em memória das baixas de uma guerra antiga ou recente; a própria imagem de arrogância económica ou do declínio industrial; um recreio desolado em cujos recintos fendidos e infestados de ervas daninhas temos tempo e espaço para imaginar um futuro. Esperamos muito das ruínas e pressentimos muito sentido no silêncio delas.»
Brian Dillon75
2.1 O histórico e o panorâmico
Nas considerações desencadeadas pelo caso dos Mármores do Parténon
destaca-se a noção de que a identidade das coisas e das pessoas não é dada à
partida, estando antes permanentemente em questão e em revelação. Como
sugere Fisher, mesmo os objectos aparentemente mais limitados guardam em si
um potencial de usos, significados e pormenores imprevistos à partida pelos
seus fabricantes ou criadores. Na medida em que criam novos contextos e
possibilitam novas práticas em que coisas e pessoas são reveladas de modos
diferentes, as colecções e os museus tornam claros tanto a indeterminação como
a negociação ou adaptação constante da identidade das coisas e das pessoas.
Reflectindo sobre as discrepâncias entre as condições de visionamento
das obras de arte no seu contexto espaciotemporal de origem e as mesmas
75 Dillon, Brian. 2014. Ruin Lust: Artists’ Fascination with Ruins, from Turner to the Present Day. Londres: Tate Publishing, 5.
76
condições no presente num dos artigos reunidos em Histoires de peintures76,
Daniel Arasse nota que os historiadores de arte e o público em geral beneficiam
actualmente de condições mais favoráveis para o estudo e a apreciação das
obras de arte. Entre estas condições incluem-se melhor iluminação, maior
proximidade física entre observador e obra de arte no contexto museológico, e
maior facilidade de observação e apreciação de pormenores em fotografias e
reproduções. Segundo Arasse, no entanto, na medida em que criam
possibilidades de observação totalmente distintas daquelas do contexto de
origem, estas vantagens instalam inevitavelmente o anacronismo na observação
da arte, permitindo ver elementos ou pormenores que nem o artista nem a
pessoa que encomendou e/ou adquiriu a obra de arte tinham imaginado que
pudessem ser vistos, nem o público do contexto de origem alguma vez teve
oportunidade de apreciar.
Trata-se de uma preocupação esperada num historiador de arte,
interessado em toda a informação objectiva sobre as obras de arte que analisa,
principalmente no que respeita à origem destas. Como o próprio Arasse
reconhece, porém, a verdade é que só é possível ver o que está – e sempre esteve
– na obra de arte, independentemente das intenções do artista e do proprietário
inicial relativamente à sua visibilidade77. Não é possível ver o que não está lá.
A existência de pormenores artísticos de difícil acesso78 no contexto de
origem chama a atenção para a criação (intencional ou não) de pormenores
76 «On y voit de moins en moins», Arasse, Daniel. 2004. Histoires de peintures. Paris: Gallimard, 257‐266. 77 «Sim, mas cuidado, essa outra coisa está lá.» (Arasse 2004, 260.) 78 Alguns casos: «Por exemplo, um quadro de altar não tinha público mas sim fiéis que só ao longe podiam vê‐lo, mal iluminado pela luz tremeluzente das velas. O importante
77
«excedentários», como lhes chama Fisher79. É como se o artista tivesse
trabalhado não só para o presente mas também para a posteridade, reservando
para esta a percepção de certos pormenores – ainda que, como Arasse
sensatamente observa, ser pouco credível que tais artistas pudessem imaginar
que um dia estas obras viriam a ser espostas num museu ou seriam vistas em
condições totalmente diferentes daquelas para as quais foram criadas.
Considerada nestes moldes, a visão do artista parece próxima da
concepção heideggeriana da História. Enquanto a História mais convencional
investiga o papel específico de determinado acontecimento ou período numa
cadeia sequencial, Heidegger vê o «passado» e o «futuro» como estruturas
existenciais80 co-presentes e não como períodos numa sequência. À História
heideggeriana interessa o que do passado se vai manifestando no presente e no
futuro. Heidegger vê a História como um «nexo produtivo»81 que se move
através do passado, do presente e do futuro, sem qualquer prioridade do
passado. Visto que, para Heidegger, só tem História o que faz História, esta
temporaliza-se a partir do futuro.
era a função da imagem, que ela estivesse lá. Quando colocamos este quadro de altar nas paredes de um museu, com iluminação ‘eficiente’, vemos o objecto de perto.» (Arasse 2004, 259); «[v]ejo bem as duas pombas na Anunciação de Antonello de Messina que foi pintada para um altar de uma igrejinha na Sicília [e agora pertence à Galeria regional da Sicília do Palácio Abatellis ]. [...] O mesmo é verdade para a abertura nas vestes da Virgem na Anunciação de Filippo Lippi [pertencente à National Gallery de Londres]. Lá está ela, a abertura, por muito estranha que pareça e ainda que não tenha sido feita para ser vista.» (Arasse 2004, 260.) 79 «[U]m excedente […] de factos por esquematizar» (Fisher 1997, 95) 80 Guignon, Charles. 2005. ‘The History of Being’, H. L. Dreyfus e M. A. Wrathall (ed.). A Companion to Heidegger. Oxford: Blackwell, 392‐406. 81 Heidegger, Martin. [1927] 2010. Being and Time. Trad. Joan Stambaugh. Albany: State University of New York Press, 361.
78
Não é contraditória com esta perspectiva a noção de que a identidade e a
História das coisas e das pessoas não podem ser circunscritas à intenção que
presidiu à sua origem, mas têm de tomar em consideração todos os episódios da
existência das coisas e das pessoas ao longo do tempo. A História do Parténon e
dos seus Mármores, a biografia da espada proposta por Philip Fisher e as
considerações de Arasse sobre descobertas inesperadas de pormenores em
certas obras de arte mostram como os mesmos objectos podem desempenhar
diferentes papéis ao longo do tempo de acordo com os contextos que vão
ocupando.
De certo modo, as considerações de Quatremère de Quincy contra o
afastamento da arte do seu contexto de origem derivam do reconhecimento da
inevitabilidade deste afastamento. Quatremère escreve sobre o irreversível.
Neste sentido, talvez Quatremère esteja mais próximo dos pontos de vista de
Proust do que à primeira vista poderia parecer. Como nota Adorno82 quando
confronta os pontos de vista sobre arte de Valéry em «O Problema dos Museus»
e de Proust na Recherche, enquanto Valéry lamenta a desagregação do contexto
de origem das obras de arte, Proust toma esta desintegração como dado
adquirido. De modo semelhante, Quatremère comenta factos consumados.
Para Proust, o «destino» das obras de arte não é refém da intenção que
presidiu à sua criação. De acordo com o autor da Recherche, a verdadeira
morada das obras de arte é a consciência e a memória das pessoas que as
percepcionam. Na Recherche, algumas personagens partem da arte para
82 Adorno, Theodor. 1983. «Valéry Proust Museum», Prisms, Trad. S. e S. Weber. Cambridge: MIT Press.
79
percepcionar o que as rodeia83. No caso de Swann, as fisionomias de algumas
personagens são por vezes vistas à luz de fisionomias de figuras representadas
em pinturas, ocasionalmente confundindo-se com estas.
Para Proust, o «destino» da arte não é limitado pela História, visto que
não é fixado pelo momento e pelo espaço concreto que as obras de arte
ocuparam na cadeia de acontecimentos relacionados com a sua criação. Por se
situarem na memória e na consciência humana, as obras de arte assumem um
destino que vai evoluindo a partir das interacções das pessoas com o que as
rodeia. Deste modo, não se limitam a ser o que foram na origem; continuam a
ter impacto de novos modos na vida de todos os dias.
Reflectindo sobre a relação de Proust com o tempo na Recherche, Walter
Benjamin84 notou que a singularidade da visão proustiana da memória reside na
associação desta ao esquecimento: Proust trabalha a noção de que a memória
depende mais do esquecimento do que à primeira vista poderia parecer85.
Benjamin compara o trabalho da memória proustiana ao de Penélope: ambos
incluem actividades tanto de construção como de desintegração. A memória
funciona através de uma actividade de construção que implica destruição, 83 Para informação sobre este tópico, ver: Karpeles, Eric. 2008. Paintings in Proust: A Visual Companion to In Search of Lost Time. Londres: Thames & Hudson. 84 Benjamin, Walter. [1969] 1988. «The Image of Proust», Benjamin, Walter. Illuminations. Trad. Harry Zohn. Nova Iorque: Schocken Books, 201‐215. 85 «Sabemos que, na sua obra, Proust não descreveu a vida tal como esta era realmente, mas sim uma vida tal como recordada por aquele que a viveu. E, contudo, mesmo este enunciado é impreciso e demasiado grosseiro. Isto porque para o autor que recorda não é a sua experiência mas a tecelagem da memória, actividade de reminiscência própria de Penélope, que desempenha o papel principal. Ou talvez fosse preferível descrevê‐la como actividade de esquecimento de Penélope? Não está a reminiscência involuntária, a mémoire involontaire de Proust, mais próxima do esquecimento do que aquilo a que habitualmente chamamos memória?» (Benjamin 1988, 202.)
80
desintegração e esquecimento parcial. De acordo com Benjamin, neste processo
o mais importante é o trabalho de construção – de tecelagem – da memória, não
a experiência original.
Neste sentido, a actividade da memória é comparável à dos museus e das
colecções86. Assim como a memória implica um trabalho que equilibra
desintegração e integração, perdas e acrescentos, destruição e criação, também
museus e colecções integram objectos do passado em conexões e novos espaços
não necessariamente determinados pelo seu contexto de origem, embora
habitualmente tomem estes contextos em consideração no tipo de exposição
que propõem ou na informação que de vários modos fornecem aos visitantes.
Nos três casos – memória, colecções e museus – está em questão uma
componente de desintegração. Recolhendo objectos que sobreviveram à
dispersão do próprio contexto de origem e, portanto, vêm do passado para o
presente, museus e colecções convivem com pressões temporais semelhantes às
da memória. Também os museus e as colecções têm de lidar com a História e o
passado de modo integrativo e desintegrativo. Neste contextos, recorda-se e
preserva-se o que sobreviveu à sua própria História e à sua própria geografia.
Recorda-se o que não se perdeu e preserva-se o que é possível preservar. De
modo a assegurar esta preservação, é inevitável a integração dos objectos
sobreviventes em novos contextos. Objectos não integrados em museus e
colecções podem ter-se perdido para sempre. Nem sempre é possível recordar
integralmente o papel desempenhado pelos objectos no contexto de origem.
86 Jean‐Louis Déotte sugere que os museus são lugares de memória por serem lugares de esquecimento: «Não é surpreendente que W. Benjamin considere a memória involuntária um equivalente do esquecimento activo. O parentesco com os museus, na medida que estes são lugares de esquecimento activo, e portanto de rememoração, será confirmado.» (Déotte, Jean‐Louis. 1993. Le Musée, l’origine de l’esthétique. Paris: L’Harmattan, 277.)
81
Também a memória, à semelhança dos museus, recorre aos elementos
que restam de determinada experiência ou situação para a recordar
(necessariamente de modo imperfeito), formando uma imagem que não
corresponde exactamente ao passado, mas ao resultado da integração do
passado no presente.
Em Art as Experience87, o filósofo John Dewey, ainda hoje uma
referência nos serviços educativos dos museus americanos, descreve como
«percepção» (em contraste com «reconhecimento») esta presença do passado
no presente que podemos associar tanto à actividade da memória como à
actividade dos museus. De acordo com Dewey, quando há «percepção», o
passado é transportado para o presente de modo a expandir e aprofundar o
conteúdo do segundo88. Esta interacção de presente e passado implica alguma
reconstrução do passado89, residindo nesta relação o significado das coisas, da
arte ou da experiência.
Podemos assim dizer que a experiência de alguns visitantes de colecções
e museus é semelhante à de certas personagens de Proust: trata-se de partilhar
um espaço conceptual e/ou físico com a arte ou com determinados objectos,
sendo estes – bem ou mal – usados nas tentativas de compreensão do presente,
87 Dewey, John. [1934] 2005. Art as Experience. Nova Iorque: The Berkeley Publishing Group. 88 «O mero reconhecimento só ocorre quando não dedicamos atenção total ao objecto ou à pessoa reconhecida. Ver, percepcionar, são mais do que reconhecer. Não se trata de identificar algo presente em termos de um passado desligado deste. O passado é transportado para o presente de modo a expandir e a aprofundar o conteúdo do presente.» (Dewey 2005, 24.) 89 «[T]oda a percepção consciente [...], assim como integra o presente no passado, também implica alguma reconstrução do passado. Quando o passado e o presente encaixam um no outro sem atrito, quando só há recorrência, uniformidade completa, a experiência resultante é rotineira e mecânica; não se torna consciente na percepção.» (Dewey 2005, 283‐284.)
82
de outros objectos, de outras experiências ou de outras pessoas. Os visitantes
fazem um trabalho semelhante ao das personagens de Proust que usam a
memória para interpretar, procurando semelhanças, ecos, correspondências e
conexões. Na medida em que instalam o passado no presente das pessoas,
descrever a actividade dos museus e dos coleccionadores ajuda a esclarecer os
processos da memória e da construção de sentido e de inteligibilidade.
Estamos a tentar aproximar o tempo das colecções e dos museus do
tempo da memória e a afastá-lo do tempo descrito por concepções mais
tradicionais de História. Nesta relação entre memória e História90, enquanto a
segunda investiga o passado e o definitivo, a primeira, à semelhança do que se
verifica em relação à identidade das coisas e das pessoas, distingue-se por estar
continuamente em questão e em construção e desconstrução. Enquanto a
História se desenvolve a partir de métodos e técnicas que exigem aprendizagem
e se regem por normas de veracidade assentes em verificações sucessivas, a
memória relaciona-se com o que sobrevive e resiste à História muitas vezes de
modo imperfeito.
Neste capítulo vamos explorar a relação entre História, memória,
consciência humana e colecção através da reflexão sobre as actividades de um
coleccionador de ruínas, por um lado, e de um pintor de ruínas, por outro.
Como veremos adiante, a relação entre ruínas e objectos de museu ou colecção é
sugerida não só por Quatremére de Quincy em Considerações Morais, mas
também pela associação clara destes elementos por John Soane e Hubert
Robert, o coleccionador e o artista em questão nesta secção. A reflexão sobre o
estatuto ontológico das ruínas, em conexão com a análise da actividade de
90 Para uma abordagem mais aprofundada desta questão, ver Le Goff, Jacques. 1988. Histoire et mémoire. Paris: Gallimard.
83
Soane e de Hubert Robert, será o ponto de partida para investigar tanto o
estatuto dos objectos de colecção ou de museu como o modo como este estatuto
é afectado pelas relações que as pessoas vão estabelecendo com estes objectos ao
longo do tempo. Defender-se-á que esta relação é mediada por processos
semelhantes aos da memória. O investimento subjectivo e interpretativo da
memória ajudará a descrever a relação entre coleccionador e colecção.
Pelo facto de as colecções e os museus estarem mais relacionados com a
memória do que com a História na medida em que representam
declaradamente interpretações subjectivas, as colecções e os museus associam-
se a uma tentativa de transcendência do tempo e da mortalidade através da
resistência à História, pela integração desta na memória. Pelo facto de
representar uma subjectividade num espaço intersubjectivo, uma colecção pode
evocar o coleccionador. Estamos a trabalhar com duas acepções de memória
distintas, ainda que complementares: 1. memória como perspectiva temporal
individual ou subjectiva; 2. memória enquanto recordação de alguém. Se uma
colecção objectiva uma perspectiva individual e subjectiva (acepção um de
memória), este conjunto de objectos poderá ajudar a recordar o coleccionador
(poderá preservar a sua memória, na acepção dois).
A relação entre ruínas e objectos de colecção ou de museu é sugerida pelo
próprio Quatremère de Quincy. Devido à desintegração do contexto de origem
que a presença dos objectos num museu ou colecção indicia, Quatremère de
Quincy chamou «ruínas artificiais»91 a estes objectos. Na perspectiva de
91 «É portanto destruir este género de instrução quer subtrair os elementos ao público, quer desintegrar as suas partes, como se tem verificado nos últimos 25 anos, quer recolher esses despojos nos depósitos a que chamamos Conservatórios./ Por que estranho contra‐senso devemos nomear assim esses receptáculos de ruínas artificiais que extraímos à acção do tempo assim as entregando ao esquecimento! Cessai,
84
Quatremère, os objectos integrados em museus ou colecções podem ser
descritos como fragmentos do contexto de origem visto que, à semelhança das
ruínas, estes objectos estão incompletos porque o contexto de que faziam parte
foi destruído.
Ainda que Quatremère faça questão de distinguir entre «ruínas do
tempo» e «ruínas da barbárie» – enquanto as primeiras seriam autênticas e
dignas de respeito, as segundas seriam fabricadas e motivo de condenação –,
parece-me que esta distinção não é tão nítida como o ensaísta a faz parecer.
Para Quatremère, as segundas mereceriam condenação não só pelo facto de
terem sido causadas por mão humana, mas também por serem preservadas
artificialmente nos museus e assim deslocalizadas da História. De acordo com
esta perspectiva, as primeiras existiriam num espaço exterior à acção humana,
livres de qualquer contaminação relacionada com a sua preservação, como se
fosse possível a um edifício em ruínas manter-se suspenso nesse estado anterior
à desintegração sem qualquer intervenção humana.
A Quatremère parecem escapar algumas complexidades do estatuto de
todas as ruínas. À semelhança do que se verifica com os objectos em colecções e
museus, o estatuto ontológico das ruínas é ambíguo. As ruínas de um edifício já
não são exactamente o edifício de que faziam parte na sua origem mas outra
coisa diferente. Por um lado, retêm elementos do passado, elementos históricos
ou úteis para uma investigação histórica; por outro, resistem à História na
medida em que sobrevivem parcialmente aos efeitos do tempo. De qualquer
sofistas ignorantes, de sentir prazer perante estas ruínas; sim, as ruínas do tempo merecem respeito, as da barbárie suscitam horror. As ruínas do tempo, esses monumentos da fragilidade humana, são uma lição para a humanidade, as outras são uma vergonha para esta.» (Quatremère 1815, 56.)
85
modo, ser ruína é um estado que exige preservação e, portanto, intervenção
humana «artificial», para usarmos o léxico de Quatremère. É praticamente
impossível vedar um espaço à intervenção humana. Todas as coisas estão em
relação.
Nas considerações sobre um castelo em ruínas que desenvolve no ensaio
«O Culto Moderno dos Monumentos»92 (1903), Aloïs Riegl expõe este ponto de
vista. Logo no primeiro parágrafo deste ensaio, a noção de monumento,
definido por Riegl como «uma obra criada por mão humana e edificada com o
objectivo claro de manter sempre presente e viva na consciência das gerações
futuras a recordação de uma acção ou de uma vida (ou de combinações de uma e
de outra»93, expressa claramente as diversas tensões temporais – entre
História e memória, tradição e criação, arquitectura histórica e arquitectura viva
–, em torno das quais o resto do ensaio girará. Entre o passado, o presente e o
futuro, cabe aos monumentos, de acordo com Riegl, a difícil tarefa de tornar
presentes determinados factos históricos considerados valiosos para a vida das
pessoas.
Neste ensaio, a descrição de Riegl da relação entre ruínas e História é
importante para nós na medida em que transfere o foco da atenção para a
perspectiva individual dos sujeitos, destacando as liberdades desta perspectiva
relativamente à cronologia e à História.
Riegl considera que as ruínas são objectos particularmente adequados
para a percepção dos efeitos da passagem do tempo. Na sua perspectiva, o
impacto das ruínas não se relaciona primariamente com a História, mas antes
92 Riegl, Aloïs. [1903] 2013. Le culte modern des monuments: son essence et sa génèse. Trad. Daniel Wieczorek. Paris: Seuil. 93 Riegl 2013, 43.
86
com a capacidade humana de estabelecer relações entre o particular e o geral,
com a identificação de repetições e com os sentimentos e reflexões
desencadeados por estas percepções. Segundo Riegl, através da observação das
ruínas adquirimos a consciência do carácter repetitivo e cíclico do tempo, cuja
passagem revela as relações entre o singular e o geral, na medida em que afecta
todos os objectos, por muito distintos que estes sejam na sua origem94.
Riegl usa as ruínas para explicar o valor de antiguidade dos monumentos.
No ensaio mencionado, o autor propõe algumas distinções entre valores
históricos, valores artísticos e valores de antiguidade. Neste trinómio, os valores
históricos são considerados os mais objectivos. O valor histórico pode ser
avaliado objectivamente na medida em que o objecto ou o acontecimento
ocupam um lugar concreto, individual e insubstituível numa cadeia de
acontecimentos. O valor artístico, no entanto, é considerado mais relativo e
flutuante; variando ao longo do tempo (por exemplo, certos artistas são
desvalorizados ou recuperados em épocas diferentes), não é determinado
directamente pelo papel histórico do objecto (podemos, por exemplo, valorizar
uma obra de arte do Renascimento acima de obras de movimentos de ruptura,
ainda que estes movimentos tenham tido um impacto decisivo na História da
arte). Por último, o valor de antiguidade privilegia as impressões dos indivíduos
perante os objectos, não implicando necessariamente cultura histórica.
Enquanto a valorização da História se associa à reconstituição específica da
singularidade dos objectos e do seu papel no contexto de origem, o valor de
94 «[E]sta impressão difusa, suscitada no homem moderno pela representação do ciclo necessário de transformação e morte, de emergência do singular no geral e de regresso progressivo e inelutável do singular ao geral. Essa impressão [...] convoca simplesmente a sensibilidade e as emoções.» (Riegl 2013, 54.)
87
antiguidade relaciona-se com as reacções das pessoas perante os objectos,
agindo sobre a sensibilidade individual95.
Segundo Riegl, assim, tanto o valor artístico como o valor de antiguidade
se relacionam com perspectivas temporais não-lineares. No processo de
apreciação artística, o presente frequentemente reavalia o passado de acordo
com os valores privilegiados pela sua própria contemporaneidade, assim
chamando a atenção para nomes ou correntes anteriormente considerados
pouco importantes, enquanto, por outro lado, recusa a exploração de ligações
causais com obras, artistas ou movimentos mais próximos do ponto de vista
histórico. Por sua vez, o valor de antiguidade, privilegiando a integração do
particular no geral – a partir da constatação de que todos os objectos, apesar da
sua singularidade e especificidade, são afectados pelo tempo–, atribui menor
importância ao papel histórico específico do objecto, assinalando antes
semelhanças e proximidades.
Valor artístico e valor de antiguidade, deste modo, relacionam-se com
uma perspectiva temporal distinta daquela da História. Esta perspectiva
diferente privilegia as repetições, as lacunas, as sobreposições, as interrupções,
os disfarces, os anacronismos, os fragmentos e as ruínas, enquanto a perspectiva
histórica, pelo contrário, valoriza a continuidade, a causalidade e a disjunção
(na História, uma coisa nunca poderá ser o mesmo que outra) e procura
95 «Esta impressão não implica de modo algum uma abordagem científica e não parece tributária da cultura histórica; convoca simplesmente a sensibilidade e os afectos e atinge não só as pessoas cultas [...], mas também as massas, todos os indivíduos, sem distinção de nível cultural.» (Riegl 2013, 54.)
88
circunscrever o particular, o único, o específico numa cronologia linear e
escandida96.
O texto de Aloïs Riegl ganha em ser lido com o ensaio «A Protecção e a
Conservação dos Monumentos no Século XIX», do historiador Georg Dehio97.
Num passo deste texto, Dehio propõe uma distinção entre História e colecção.
De acordo com Dehio, enquanto o objectivo dos historiadores é respeitar e
reconstituir objectivamente a História, os coleccionadores seguem critérios
puramente subjectivos, sendo regidos apenas pelos objectivos do prazer e da
satisfação do gosto pessoal98. Através desta distinção, Dehio chama a atenção
para a importância da dimensão subjectiva e interpretativa tanto no caso da
colecção como na apreciação do valor artístico e do valor de antiguidade dos
objectos99. Também no processo de valorização artística conforme descrito por
96 Vide Le Goff 1988. 97 Dehio, Georg. [1905] 2013. «La protection et la conservation des monuments au XIXe siècle», Riegl, Aloïs. Le culte moderne des monuments: son essence et sa génèse. Trad. Daniel Wieczorek. Paris: Seuil, 137‐169. 98 «Os coleccionadores dos séculos dezasseis, dezassete e dezoito eram sensíveis a motivos estéticos ou a um gosto particular relacionado com uma variedade de razões; [...] em todos os casos, os critérios de avaliação eram subjectivos. A conservação dos monumentos que surge no século dezanove ignora este género de distinção. O motivo último desta é o respeito pela existência histórica enquanto tal.» (Dehio 2013, 145.) 99 Dehio intensifica o carácter depreciativo da sua descrição dos museus e das colecções quando nota que estes dependem da desintegração do contexto de origem dos objectos e não só se distinguem dos interesses da História e dos historiadores como também os prejudicam. De modo comparável, Riegl nota que os museus, a que chama «prisões da arte», não só destroem o valor histórico dos objectos mas também afectam negativamente o seu valor de antiguidade pelo facto de os preservarem artificialmente (Riegl 2013, 100). Apesar deste comentário (quase obrigatório de tão tradicional) de Riegl em relação aos museus, é claro ao longo de «O Culto Moderno dos Monumentos» que o seu autor não considera necessariamente incompatíveis os valores históricos, os valores artísticos e os valores de antiguidade dos objectos. Ainda que lembre casos de conflito entre estes, Riegl reconhece que tais valores podem muitas vezes ser complementares. Em muitos casos, perceber o valor artístico de um
89
Riegl, a subjectividade interpretativa afecta a avaliação visto que esta avaliação
depende do estabelecimento de relações por vezes inéditas ou inesperadas entre
objectos originalmente de espaços muito diferentes. As relações identificáveis
por uma perspectiva histórica, pelo contrário, são predeterminadas pelo lugar
específico que os objectos ou os acontecimentos ocupam numa cadeia linear ou
sucessão cronológica.
Na História da noção de monumento descrita por Riegl, o Renascimento
marca um momento importante por ser um período em que as obras de arte
deixam de ser valorizadas apenas enquanto «monumentos intencionais»100 ,
com importância patriótica e histórica, para passarem a ser apreciadas também
pelo seu valor artístico. Adoptando uma perspectiva temporal singular, segundo
a qual as obras e os acontecimentos da Antiguidade clássica são vistos como
antecedentes directos da cultura do Renascimento e assumem assim um valor
de contemporaneidade, este período inaugura uma nova relação com o tempo.
Não é por acaso que as colecções assumem grande importância no
Renascimento. A perspectiva dos humanistas deste período parece libertar-se
parcialmente das coordenadas lineares da cronologia e da visão histórica para
procurar uma compreensão panorâmica do tempo. Visto que uma colecção pode
reunir objectos de espaços e tempos muito diferentes mas com certas
características em comum, a intensificação do interesse pelas colecções reflecte
o alargamento desta perspectiva. Na consideração do valor dos objectos no
Renascimento, o contexto histórico de origem dos objectos torna-se menos
importante do que as relações estabelecidas entre tempos e espaços diferentes, à
objecto relaciona‐se tanto com o conhecimento do seu valor histórico como com a apreciação do seu valor de antiguidade. 100 Riegl 2013, 55.
90
semelhança do que se verifica no processo de constituição de muitas colecções.
Por depender mais da subjectividade interpretativa do coleccionador e dos
mecanismos reconstrutivos da consciência humana, interessando-se por
repetições, anacronismos, fragmentos, e ruínas ou incongruências, este processo
parece depender mais da memória do que relacionar-se com as preocupações da
História.
Na História da arte, a tradição de representação de ruínas, de que fazem
parte artistas como Giovanni Paolo Pannini (1691-1765) ou Giovanni
Battista Piranesi (1720-1778), distingue-se por algumas singularidades que
podem ser aproximadas dos processos da memória. O facto de estes artistas não
terem como objectivo principal representar a realidade, mas privilegiarem
antes, por um lado, as convenções da tradição pictórica em que se integram, por
outro, os conteúdos produzidos pela imaginação, o facto de reunirem no
mesmo espaço elementos com origens espaciotemporais muito diferentes,
integrando incongruências e anacronismos, o facto de muitas vezes
representarem elementos curiosos e estranhos, contribuem para aproximar esta
tradição, por um lado, dos gabinetes de curiosidades, das colecções e dos
museus, por outro, dos mecanismos da memória que se distinguem das
preocupações da História.
A propósito da aproximação entre representações de ruínas e colecções,
gabinetes de curiosidades e museus, é interessante notar que as representações
de colecções parecem seguir tendências semelhantes às da representação de
ruínas. Acerca da tela Charles Townley na Sua Biblioteca, de Johan Zoffany
(1782), Arthur MacGregor lembrou que as representações pictóricas de
91
colecções raramente correspondem à sua organização real no espaço101. As
esculturas representadas nesta tela não estariam todas concentradas no mesmo
espaço na casa do coleccionador Charles Townley102. Além disso, uma das peças
representadas (um discóbolo) como fazendo parte da colecção não estaria ainda
na posse do coleccionador quando a tela foi realizada. Nesta como noutras
representações tanto de colecções como de ruínas, a posição dos elementos
materiais também é influenciada pela arquitectura interna da tela.
Nesta linha de pensamento, Wolfgang Ernst nota que as representações
pictóricas de colecções estão mais próximas da imaginação e da memória do
coleccionador do que do estatuto de documento histórico103. Estão em questão
processos semelhantes àqueles descritos por Riegl e Proust: por um lado, a arte
torna-se indissociável da consciência das pessoas, permitindo o estabelecimento
de conexões inesperadas e a identificação de repetições; por outro, a consciência
desintegra fragmentos da realidade, perdendo parcialmente o contexto global de
origem, para os reintegrar numa nova representação. Traz-se para o presente os
elementos do passado (e do futuro) que sejam funcionais para o que se pretende
realizar.
101 Citado por Ernst, Wolfgang. 1993. «Frames at Work: Museological Imagination and Historical Discourse in Neoclassical Britain», The Art Bulletin, Vol. 75, No. 3 (Setembro), 488. 102 Charles Townley (1737‐1805), coleccionador inglês mais conhecido por ser proprietário dos Mármores de Townley, agora pertencentes ao British Museum juntamente com a sua restante colecção de escultura greco‐romana e outras peças. (Stourton, James e Charles Sebag‐Montefiore. 2012. The British as Art Collectors: From the Tudors to the Present. Londres: Scala, 138.) 103 «Estas representações pictóricas […] devem ser interpretadas como alusões à imaginação primitivamente museológica do coleccionador e não como documentos. Uma representação do ‘real’ é uma mistura […] de elementos reais e imaginários e das suas localizações» (Ernst 1993, 488‐489).
92
No centro quer das colecções, quer das representações de ruínas, estão
assim tanto uma perspectiva interpretativa (do coleccionador, de um curador,
de um conservador) que estabelece conexões e reorganiza contextos, como uma
perspectiva temporal que reconstrói as ligações entre passado, presente e
futuro. Melhor dizendo, trata-se de uma perspectiva temporal eminentemente
interpretativa e livre, ao contrário da perspectiva histórica, reconstitutiva,
centrada na origem. Como sugere a descrição de Quatremère dos objectos de
colecção ou de museu enquanto ruínas, associação cultivada igualmente por
John Soane na sua casa-museu, a liberdade desta perspectiva relativamente às
restrições da reconstituição histórica assenta, deste modo, numa vertente
criativa indissociável de uma componente destrutiva relacionada com a perda e
a desintegração do contexto da origem.
Em Considerações Extemporâneas104, Nietzsche reflecte sobre estas
tensões, tentando descrever uma relação entre História e vida em que a
primeira sirva a segunda. Na sua perspectiva, com um excesso de História as
pessoas deixam de viver por serem incapazes de se libertar do peso do passado.
Para agir, as pessoas têm de esquecer o passado em certa medida, rejeitando o
que as impede de prosseguir para o futuro105. Também de acordo com este
104 Nietzsche, Friedrich. [1873‐1876] 2007. Untimely Meditations. Trad. R. J. Hollingdale. Cambridge: Cambridge University Press. 105 «Serenidade, boa consciência, alegria na acção, confiança no futuro – todas dependem – no que diz respeito tanto ao indivíduo como à nação, da existência de uma linha a separar o claro e o discernível do obscuro e do que não pode ser apreendido; da capacidade de sermos capazes de esquecer na altura certa e de lembrar na altura certa; num instinto poderoso para percebermos quando é necessário sentir historicamente e quando não‐historicamente. Esta, precisamente, é a proposição sobre a qual o leitor é convidado a reflectir: o ponto de vista não‐histórico e o ponto de vista histórico são ambos igualmente necessários para a saúde de um indíviduo, de um povo e de uma cultura.» (Nietzsche 2007, «Sobre os Usos e Desvantagens da História para a Vida», 62‐ 63.)
93
ponto de vista, portanto, vida e acção implicam não só memória mas também
esquecimento: «[S]ó através da capacidade de recorrer ao passado para os fins
da vida e de remeter para a História o que já foi feito e se desvaneceu – se
tornou humano o ser humano: com um excesso de História os seres humanos
deixam de existir e sem o ponto de vista não-histórico nunca teriam começado
ou ousado começar. Que acção poderia o ser humano realizar sem entrar na
região etérea do não-histórico?»106 Nietzsche opõe-se a uma concepção da
História tanto como simples acumulação de informação e de conhecimento
como enquanto espectáculo com que as pessoas se relacionam como meros
espectadores. Para Nietzsche, as pessoas devem ver o passado como fonte de
inspiração para a vida, participando neste através da sua integração no
presente.
A preservação dos monumentos e dos objectos gira igualmente em torno
destas questões. Qualquer esforço de preservação de um monumento
necessitará de ter em conta o seu valor histórico informativo, enquanto ao
mesmo tempo assegura a sua permanência e importância na vida das pessoas,
tentando inverter os efeitos do tempo sem incorrer em anacronismos
contraditórios do seu valor histórico. Ainda assim, a presença do passado no
presente assegurada pelos monumentos terá sempre de representar uma
adaptação do passado ao presente e ao futuro, de modo que o passado
permaneça compreensível e vivo.
106 Nietzsche 2007, 64.
94
2.2 Ruínas e fragmentos: John Soane e Hubert Robert
John Soane107 (1753-1837), arquitecto responsável pelo projecto do
Banco de Inglaterra e professor da Royal Academy, remodelou o edifício de
Lincoln’s Inn Fields (Londres) em que morou, com o objectivo de expor a
colecção de livros, pintura, modelos de arquitectura, desenhos, gravuras e
gessos que foi reunindo ao longo da vida.
No primeiro anúncio impresso da casa-museu (em 1812), esta foi descrita
como «uma Academia para o estudo arquitectura com princípios
simultaneamente científicos e filosóficos.»108 Através da justaposição de
objectos com origens espaciotemporais muito diferentes, entre os quais vamos
destacar os fragmentos, as representações de ruínas e os elementos de
arquitectura funerária, este coleccionador propõe aos visitantes uma perspectiva
não-linear que implica a percepção simultânea do passado, do presente e do
futuro. Tal perspectiva panorâmica e dialéctica associa-se ao objectivo de
preservar a sua memória através desta casa-museu.
A casa-museu de John Soane pode ser usada para desenvolver e sintetizar
o que vimos sugerindo tanto sobre a relação entre ruínas e colecção ou museu
como sobre as distinções entre tempo da memória e tempo da História. Visto
107 Para uma biografia de John Soane, ver Darley, Gillian. 1999. John Soane: An Accidental Romantic. New Haven e Londres: Yale University Press. Sophie Psarra e Donald Preziosi propõem descrições e interpretações interessantes da casa‐museu de John Soane em: Psarra, Sophie. 2009. Architecture and Narrative: The Formation of Space and Cultural Meaning. Londres e Nova Iorque: Routledge e Preziosi, Donald. 2006. «Art History and Museology: Rendering the Visible Legible» in Macdonald, Sharon (ed.). A Companion to Museum Studies. Oxford: Blackwell Publishing, 50‐63. 108 Este anúncio foi publicado na European Magazine, vol. LXII, 1812, 382, citado em Soane, John. 2000. The Royal Academy Lectures. Ed. David Watkin. Cambridge: Cambridge University Press, 19.
95
que representa uma reflexão sobre estas questões, vamos descrevê-la como
metacolecção. Ao mesmo tempo, salientamos que o modo de visão panorâmica
trabalhado nesta casa-museu através da insistência em ruínas, fragmentos e e
elementos de arquitectura funerária é um traço distintivo de todas as colecções.
Descrevendo esquematicamente esta casa-museu, podemos dizer que
integra áreas mais domésticas – como a sala de jantar, os quartos ou o
escritório, e áreas com mais afinidades com o espaço museológico tradicional –
como a biblioteca, a iconoteca ou a cripta –, embora em todas as paredes e em
todos os espaços estejam expostas em profusão impressionante as peças da
colecção, que, além dos fragmentos de edifícios, de elementos de arquitectura
funerária e das representações de ruínas que neste capítulo nos vão interessar,
inclui pintura, escultura, mobília, modelos de arquitectura, livros, entre outros
objectos.
Sophie Psarra109 sugere uma proximidade entre a atmosfera da casa de
Soane e a de certos quadros de Nicolas Poussin, não só devido ao papel
desempenhado em ambos os casos por objectos da Antiguidade clássica na
construção de um ambiente, mas também devido à própria luminosidade da
casa-museu110. Na obra de Poussin, Richard Wollheim111 assinala uma
reviravolta nos anos 50 do século XVII. Se até esta altura uma das principais
preocupações de Poussin tinha sido a fidelidade e a correcção histórica da sua
109 Psarra 2009, 111‐135. 110 «Por todo o lado no museu, Soane faz o visitante pensar na Itália clássica. [...] Soane queria que o visitante visse os espaços e lesse nas entrelinhas pensando sempre na Itália, desde o bilhete original dizendo que o museu encerrava em dias de chuva, às clarabóias e aos vitrais que banhavam o interior com luz mediterrânica.» (Psarra 2009, 117.) 111 Wollheim, Richard. 1987. Painting as an Art. Londres: Thames and Hudson.
96
obra, ao ponto de o artista dedicar grande parte do seu tempo à investigação
histórica e arqueológica, a partir desta data o artista teria deixado de se
preocupar tanto com a reconstituição histórica. Uma das obras em que esta
mudança pode ser estudada é Sagrada Família no Egipto (1655-1657). Nesta
tela Poussin representa um Egipto com características que o assemelham a
Roma, assim fundindo lugares e tempos diferentes, com o objectivo de
aproximar esta obra da vida e da experiência das pessoas que constituíam o seu
público, mais familiarizadas com Roma do que com o Egipto. Segundo
Wollheim, é como se o passado e o futuro fizessem parte do presente nesta tela.
Devido à justaposição de objectos e tempos diferentes, ao uso de espelhos
e à multiplicação de camadas, perspectivas e centros neste edifício, esta casa-
museu ilustra a coexistência do passado, presente e futuro como estruturas
existenciais em vez de momentos disjuntivos de uma sequência cronológica
linear. Tal perspectiva temporal aproxima a casa da memória112, distanciando-a
das preocupações da História e chamando a atenção para a vertente pessoal,
interpretativa e identitária deste edifício e desta colecção. A indistinção entre
edifício e conteúdo sugerida pelo quase desaparecimento das paredes sob os
objectos da colecção que as decoram é paralela à dissolução de fronteiras entre
coleccionador a colecção, processo através do qual o próprio Soane terá
conseguido sobreviver à História. Ao mesmo tempo, os espelhos, objectos
habitualmente presentes em gabinetes de curiosidades, levam-nos a associar
112 Donald Preziosi descreve a casa‐museu de John Soane como «máquina de memória» (Preziosi 2006, 50‐63).
97
esta casa-museu a preocupações de autoconhecimento, auto-representação e
autoconcretização semelhantes às dos gabinetes de curiosidades113.
Em articulação com a colecção de ruínas e fragmentos de Soane, é
necessário salientar, por um lado, a tendência deste arquitecto para imaginar (e
convocar à imaginação d)a própria obra em ruínas, conforme documentada
pelas aguarelas que Soane encomendou a Joseph Michael Gandy114: Vista
Aérea em Corte do Banco de Inglaterra a Partir de Sudoeste (apresentada na
Royal Academy em 1830) ou Edifícios Públicos e Privados Executados por Sir
John Soane entre 1780 e 1815 (apresentada na Royal Academy em 1818). Estas
aguarelas representam obras de Soane enquanto ruínas semelhantes às de
Roma, apesar de terem sido realizadas quando os edifícios ainda estavam
intactos.
Esta tendência é reforçada pelo texto (Crude Hints Towards the History
of My House/ Dicas Rudimentares Para a História da Minha Casa, 1812-1813)
que o próprio escreveu quando se preparava para iniciar as obras de
remodelação do espaço em Lincoln’s Inn Fields (Londres) que viria a ser
convertido no edifício doado à nação em 1833 como sua casa-museu. Neste
113 «O gabinete, ainda que pensado sob os auspícios do Universal, é singular, privado e precário. [...] A única ordem que pode fornecer a chave deste é o sujeito que nele se constitui. [...] A imensa variedade do mundo serve a consciência individual [...] O gabinete será um espelho convertido em introspecção» (Davenne, Christine. 2004. Modernité du cabinet de curiosités. Paris: L'Harmattan, 104.) 114 Joseph Michael Gandy (1771–1843), artista e arquitecto, é considerado um dos ilustradores da arquitectura ingleses mais importantes. Interessado por ruínas, arquitectura funerária e monumentos, cultivando uma estética próxima das de Piranesi e Turner, colaborou com John Soane como arquitecto e como ilustrador. Desta colaboração resultaram as suas obras mais famosas, que representam edifícios concebidos por Soane. Para mais informações sobre Gandy, ver Lukacher, Brian. 2006. Joseph Gandy: An Architectural Visionary in Georgian England. Londres: Thames & Hudson.
98
texto o arquitecto descreve uma visita às ruínas da sua casa no futuro,
enunciando as suposições e perplexidades de um visitante em face da
diversidade temporal e geográfica dos objectos aí encontrados.
A perspectiva trabalhada por Soane nesta casa-museu é comparável à
deste texto tão sui generis. Tanto a organização dos objectos da colecção de
Soane como as aguarelas de Joseph Michael Gandy e o texto Crude Hints usam
um ponto de vista que coloca no mesmo plano as coordenadas temporais. Em
Crude Hints, a enunciação tem origem no futuro de uma casa que virá a ser
construída. Pelo facto de este texto presidir à remodelação do edifício e à
organização da colecção, o futuro como que se torna anterior ao presente e ao
passado. As três dimensões temporais coexistem nesta enunciação, como
Heidegger sugere a respeito da História.
A propósito da representação do Banco de Inglaterra em ruínas na tela de
Joseph Michael Gandy, uma imagem que o futuro se encarregaria de decalcar
para a realidade em 1925, quando foi demolida a maior parte do edifício em que
Soane trabalhou durante 45 anos115 (entre 1788 e 1833), Christopher
Woodward, antigo director da casa-museu de Soane, lembra que esta
perspectiva pode ser associada à técnica de corte axonométrico («cutaway
axonometric»), artifício de visualização que mostra um edifício descoberto,
permitindo observar simultaneamente o seu interior e exterior, a construção e a
decoração, a superestrustura e as estruturas menores, as partes e o todo116.
115 «O banco de Soane foi demolido em 1925 e as fotografias publicadas no The Times têm pontos em comum com as imagens de Gandy que chegam a ser perturbadores, designadamente os operários a trabalhar na demolição com picaretas.» (Woodward, Christopher. 2002. In Ruins. Londres: Vintage, 162.) 116 Woodward 2002, 164.
99
Neste sentido, ver as coisas em ruínas pode ser descrito objectivamente como
um modo de visão mais abrangente não só no tempo mas também no espaço. As
representações de ruínas e a presença de fragmentos na casa-museu de Soane
sugerem um modo de ver panorâmico que, mostrando simultaneamente
passado, presente e futuro, se sobrepõe a uma compreensão do tempo mais
linear, como a da História.
Os fragmentos não só evocam o passado dos edifícios desaparecidos de
que foram recuperados, funcionando como catálogo de formas, mas também,
na medida em que em que eram usados como fonte de inspiração para a
construção de novos edifícios por Soane e pelos arquitectos em formação com
que ele trabalhava, anunciam o futuro.
Nesta casa-museu, a identidade de partida dos objectos no seu contexto
de origem revela-se assim menos importante do que, por um lado, as conexões
talvez fortuitas que é possível estabelecer entre eles e, por outro, a possibilidade
de a partir destes se poder imaginar a perspectiva do próprio John Soane,
transmitida aos visitantes da sua casa-museu no futuro quer através da
arquitectura do espaço, quer através da disposição dos objectos da sua colecção.
A compreensão da casa-museu de John Soane e do modo como esta, por
um lado, chama a atenção para os seus próprios mecanismos de organização,
por outro, associa esta organização à memória amplia-se quando reflectimos
sobre ela em associação com certas telas de Hubert Robert (1793-1808). Hubert
Robert, contemporâneo de Quatremère de Quincy (1755-1849), não só foi
responsável pela aquisição de quadros para a colecção real («garde de tableaux
du roi», nomeação em 1784) como depois da Revolução Francesa (entre 1795-
1802) também foi funcionário do departamento que supervisionava as
operações do Louvre, contexto em que desempenhou funções como a
100
organização do espaço e dos seus conteúdos, a recuperação de objectos dos
depósitos criados na sequência das expropriações levadas a cabo no contexto da
Revolução, assim como a elaboração de propostas para melhorar o museu117.
Hubert Robert pintou várias telas que representavam o Louvre, algumas
documentando a transformação do antigo palácio num museu público, outras
ilustrando propostas de renovação do espaço, outras ainda correspondendo a
exercícios de imaginação desenvolvidos a partir deste espaço. Em comum entre
John Soane e Hubert Robert encontramos o interesse por ruínas em asssociação
com a instituição do museu. Podemos dizer que, em ambos, este interesse por
ruínas se traduz, por um lado, numa perspectiva temporal que se distingue da
linearidade cronológica, por outro, numa atenção singular aos processos de
construção e desconstrução implicados na constituição de uma colecção e na
edificação de um museu.
Em certas telas de Hubert Robert que representam ruínas encontramos
um modo de visão temporal semelhante ao de John Soane. É o caso de Vista
Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas (1796). Nesta tela, como
assinala Nina L. Dubin118, a associação entre museu e ruínas não assume as
conotações negativas da mesma conexão no ensaio de Quatremère de Quincy. A
representação do futuro do museu recorrendo às ruínas corresponde, pelo
contrário, a uma legitimação da instituição. Esta representação propõe uma
semelhança entre o futuro dos museus e o futuro dos monumentos da
117 Para uma biografia de Hubert Robert, ver Cayeux, Jean de. 1989. Hubert Robert. Paris: Fayard. 118 Dubin, Nina L. 2012. Futures and Ruins: Eighteenth‐Century Paris and the Art of Hubert Robert. Los Angeles: The Getty Research Institute.
101
Antiguidade clássica. Deste modo, o Louvre é representado como a Antiguidade
clássica do futuro.
O ponto de vista implícito nesta tela de Hubert Robert está muito
próximo daqueles que Riegl descreve a propósito da contemplação de ruínas e
da apreciação do valor artístico e do valor de antiguidade. Hubert Robert
explora as repetições, as relações e os ciclos da História, definindo uma
genealogia entre o Louvre e os monumentos da Antiguidade clássica através de
uma consciência temporal em que coexistem passado, presente e futuro.
Pela antevisão de um futuro do Louvre semelhante ao dos monumentos
clássicos, as ruínas sugerem, além disso, que a existência do museu público
assumirá uma importância que se prolongará no tempo. Trabalhando nos
primeiros tempos do Louvre como museu público (1795-1802), numa altura em
que uma instituição nestes moldes era uma novidade que suscitava alguma
estranheza, Hubert Robert sugeria assim que esta instituição persistiria no
tempo até se converter em ruínas, em vez de o seu edifício ser reconvertido
noutro tipo de espaço a curto prazo. Nas telas deste artista, as ruínas são
símbolos de sobrevivência à destruição do tempo.
A associação entre ruínas e museu contribui igualmente para a
representação do museu não só como espaço de fusão de tempos diferentes, mas
também como espaço de instabilidade ontológica, à semelhança do que se
verifica noutras telas do mesmo artista. Em telas de Hubert Robert como
Artista Desenhando Antiguidades na Pequena Galeria (1800) ou Galeria
de Arte Romana no Museu (1790s), nenhuma conexão ao contexto de origem
com peso quatremeriano parece decisiva. Em vez disso, temos transição,
mobilidade e negociação (no sentido de consideração de diversos aspectos de
uma questão antes de se tomar uma decisão), aliados a uma atenção singular
102
aos processos de organização dos espaços que a arte pode ocupar. Para Hubert
Robert, é claro que não só o destino original destas obras de arte se perdeu
como o destino que ocupam no museu é transitório.
Em Galeria de Arte Romana no Museu representa-se uma sala em
processo de organização: além das paredes ocupadas com representações de
edifícios de Roma antiga, encontramos sobreposição de telas, escadotes,
esculturas e desenhos espalhados no chão, figuras humanas em movimento,
ocupadas em actividades de transporte, de restauro ou de discussão.
Hubert Robert explora conexões mesmo nos espaços de transição dentro
dos museus, ainda que estas sejam contingentes, passageiras ou insignificantes.
Em Artista Desenhando Antiguidades na Pequena Galeria, tela em que se
representa um espaço de armazenamento temporário de esculturas, é evidente
que aquelas peças não só não foram concebidas para aquele lugar como também
serão transportadas para outra localização. Apesar da acumulação, da
desordem, das posições estranhas das esculturas, é possível estabelecer algumas
relações de coincidência entre arte e figuras humanas. A inclinação do torso do
centauro repete-se no torso de uma figura feminina do lado esquerdo da tela,
junto ao cão. O braço estendido de Apolo tem ecos na posição do braço da
mesma figura feminina. A cabeça do centauro está na mesma posição da cabeça
de outras figuras femininas próximas.
Como propusemos no primeiro capítulo, a separação dos objectos
relativamente ao seu contexto espaciotemporal de origem tanto nos museus
como nas colecções revela que nem a identidade destes objectos nem a sua
relação com as pessoas podem ser predeterminadas. A identidade das coisas
está sempre em questão e em processo de revelação através das conexões entre
as pessoas e as coisas ao longo do tempo. A identidade das coisas e das pessoas
103
não deve ser descrita como algo prévio e fechado, mas sim como um elemento
em negociação constante, dependente de conexões e de práticas através das
quais as pessoas integram os objectos nas suas vidas. Neste sentido, colecções e
museus constituem espaços privilegiados para a reflexão sobre a ontologia dos
objectos e das pessoas.
A propósito da tela Galeria de Arte Romana no Museu, Nina L. Dubin
sugere119 que estão evidentes as correntes opostas com que o museu tem de
trabalhar: por um lado, a estabilidade do museu, como instituição que protege a
arte dos efeitos da passagem do tempo; por outro, a mobilidade e o carácter
negociável das obras de arte.
Nestas telas de Hubert Robert, o museu é representado como lugar de
reavaliação dos valores históricos, estéticos e políticos. O museu torna-se o lugar
da «catástrofe da História»120 no sentido em que revela que não só o passado
está definitivamente perdido, dele restando apenas fragmentos, como também
os valores e percepções associados a determinados períodos históricos são
instáveis e vulneráveis à transformação.
Estas questões são tão importantes para John Soane como para Hubert
Robert. Em John Soane, o interesse pelos efeitos da passagem do tempo alia-se,
por um lado, a uma reflexão sobre a mortalidade, por outro, à tentativa de a
integrar para a vencer através de estratégias associadas à memória. Mais
especificamente, a consciência da mortalidade e da instabilidade da própria
identidade depois da morte aliam-se à constituição de uma colecção através da
119 Dubin 2012, 167. 120 Didier Maleuvre usa este termo a propósito da relação entre o Louvre e a loja de antiguidades na secção inicial de La Peau de chagrin, romance de Balzac que abordaremos no quinto e no sexto capítulos desta tese. (Maleuvre 1999, 207.)
104
qual possa ser recordado. A consciência da oscilação ontológica tanto da
identidade das coisas, concretizada nos fragmentos e nas ruínas que colecciona,
como da identidade das pessoas no tempo, associada à mortalidade, leva Soane
a organizar uma casa-museu que integra diversas manifestações desta
instabilidade ontológica através da acumulação quer de fragmentos e ruínas,
quer de túmulos.
No ensaio que escreveu sobre o tópico das ruínas121, Georg Simmel sugere
que estas lembram que as obras das pessoas estão sujeitas às mesmas leis que as
obras da Natureza: «[O] que constitui a sedução da ruína é que nela uma obra
humana é afinal percebida como produto da Natureza. [...] [O] que foi elevado
pelo espírito torna-se objecto das mesmas forças que formaram o contorno da
montanha e a margem do rio.»
Em Soane, a aproximação entre arte e Natureza sugerida, segundo
Simmel, por ruínas e fragmentos alia-se a preocupações relacionadas com a
mortalidade, com a passagem do tempo e com os efeitos da Natureza na
actividade humana. John Soane interessou-se por monumentos funerários
durante toda a vida122. Este interesse é explícito em certos elementos da casa-
museu do arquitecto: na cripta do edifício são exploradas reminiscências de
cavernas, catacumbas ou câmaras funerárias egípcias, com lugar central para
121 Simmel, Georg. 1911. «The Ruin», Wolf, Kurt H. (ed.). 1965. Essays on Sociology, Philosophy and Aesthetics. Nova Iorque: Harper and Row, 259‐266. 122 John Summerson distingue quatro fases neste interesse, tomando em consideração estudos de juventude, uma segunda fase em que a influência da arquitectura funerária é visível em certos elementos de projectos de Soane, como na sala do pequeno‐almoço da casa‐museu, uma terceira fase relacionada com a concepção de monumentos funerários propriamente ditos e uma última fase de interesse arqueológico por este tipo de arquitectura, reflectida em certas peças da colecção, como o sarcófago de Belzoni. (Summerson, John. 1978. «The Furniture of Death», Architectural Review, Março, 147‐158.)
105
um sarcófago vazio; a ruína fictícia na zona do pátio do monge («monk’s
yard») aponta para uma reflexão no mesmo sentido. É possível inclusivamente
estabelecer uma rima interna entre a casa-museu de John Soane e a Dulwich
Picture Gallery. Este espaço é uma das obras mais importantes de Soane,
distinguindo-se pela particularidade de ter sido construído em torno das
sepulturas dos seus fundadores (Francis Bourgeois and Noël Desenfans),
concretizando à vista de todos os visitantes uma relação de contiguidade entre
coleccionadores e colecção123.
Esta conexão relaciona-se com a tendência de Soane para a subversão de
fronteiras entre as formas e o seu contexto. Tal tendência é evidente não só no
pensamento teórico deste arquitecto124 em torno das relações entre certas
formas naturais e algumas formas arquitectónicas (por exemplo a ideia de que a
arquitectura egípcia colhe inspiração nas cavernas, ou de que as catedrais
123 Para mais informação sobre a relação entre este tópico e a Dulwich Picture Gallery, ver Duncan, Carol. 1995. Civilizing Rituals: Inside Public Art Museums. Londres e Nova Iorque: Routledge, 72‐100. 124 Este interesse por ruínas integra‐se na estratégia que caracteriza habitualmente a actividade profissional de Soane. A preocupação com uma visão espaciotemporal panorâmica não só da sua obra mas também da História e da Teoria da arquitectura é uma constante no pensamento teórico deste arquitecto. Podemos ver esta visão em acção nas conferências que fez na Royal Academy entre 1810 e 1820 (Soane, John. 2000. The Royal Academy Lectures. Ed. David Watkin. Cambridge: Cambridge University Press), nas quais desenvolveu uma reflexão sobre os princípios universais da História da arquitectura. Nestas conferências, Soane procurou articular arquitectura e Natureza, lembrando, por exemplo, que as primeiras habitações foram as cavernas, explorando semelhanças entre as cavernas e a arquitectura egípcia, ou associando as colunas das catedrais góticas aos troncos das árvores dos bosques em que os antigos realizavam cerimónias religiosas e aproximando a luz dos bosques filtrada pelas folhas à iluminação das catedrais. O desejo de encontrar as leis universais tanto da arte como da Natureza levou Soane a descrever a Natureza como arquitectura e a arquitectura como Natureza.
106
góticas se assemelham aos bosques sagrados), mas também no seu interesse por
ruínas.
Assim como a Natureza invade as construções humanas em ruínas,
diluindo as fronteiras entre o natural e o arquitectónico, conforme Simmel
observa, a casa de Soane é invadida pela colecção, sendo por vezes reconstruída
para acomodar tal invasão. Torna-se necessário que as paredes passem a
desdobrar-se em páginas que mostram pintura ou sejam cobertas com
fragmentos. Talvez o piso com mais impacto nesta casa seja a cave, espaço onde
são expostos diversos objectos relacionados com arquitectura funerária,
nomeadamente o famoso sarcófago de Belzoni, cuja instalação ali exigiu a
reconstrução da divisão agora identificada como «câmara tumular». Também
aqui, como nas ruínas e como no próprio corpo humano que sucumbe às leis
naturais da morte que dele se apropriam, se verifica uma invasão e uma
anulação de fronteiras entre interior e exterior.
O interesse de Soane por arquitectura funerária é comparável ao seu
interesse por colecções e museus. Em ambos os casos se trata de construir
alguma coisa que sobreviva ao tempo, recordando alguém ou alguma coisa. Em
ambos os casos parece estar em questão uma abolição de fronteiras entre forma
e contexto ou pessoa e construção. Assim como as ruínas representam uma
fusão entre forma e aquilo que a rodeia ou uma invasão da forma por aquilo que
a rodeia, assim como um túmulo é identificado com o corpo que contém,
também a colecção representa e recorda o coleccionador.
Em Soane, a constituição de um prolongamento material através de uma
colecção e de uma casa-museu traduz o reconhecimento da dimensão material,
concreta – e perecível – de todos os seres humanos, juntamente com a noção de
pertença a um espaço concreto. Através da exploração complexa desta dimensão
107
material da existência humana Soane encena a sua superação. Prolongando-se
materialmente na sua colecção e na casa-museu que a alberga, Soane procura
que a sua memória resista à História e ao tempo.
Na já referida Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas
(1796), tela em que Hubert Robert representa o Louvre como a Antiguidade
clássica do futuro, a figura do artista que desenha as ruínas pode ser descrita
como projecção do próprio Hubert Robert, que assim representa a sua
juventude em Roma, período em que muitas vezes desenhou ruínas. Deste
modo, a vertente privada e pessoal da vida do artista confunde-se com a
dimensão pública do museu. A memória do artista assume uma dimensão
pública associada não só ao museu mas também à arte. Como se verifica em
Proust, porque a memória integra elementos do mundo como a arte ou outros
objectos, estes passam a fazer parte da consciência humana, sendo usados como
instrumentos de interpretação.
A auto-representação de Hubert Robert na tela em questão é
indissociável não só de episódios e de recordações da sua vida privada, mas
também das relações que o artista estabelece entre espaços e tempos diferentes:
Roma, Louvre, juventude, idade adulta, um futuro em que o Louvre estará em
ruínas. Esta auto-representação implica tanto elementos subjectivos
(recordações, relações) como elementos objectivos e públicos (certos espaços e a
própria obra) que fazem parte da vida de outras pessoas. De modo semelhante,
como constatámos a propósito da casa-museu de John Soane, uma colecção
implica tanto elementos e interpretações subjectivas, como componentes
objectivas, públicas e partilháveis – ainda que nem todas as colecções sejam
expostas em casas-museus de acesso universal.
108
Como Jeff Malpas125 observa, tradicionalmente o espaço é considerado
exterior à existência humana, enquanto o tempo e a memória são associados às
dimensões subjectivas, interiores e mentais do sujeito. Contudo, na medida em
que as representações mentais das pessoas se relacionam com o espaço e com o
que neste se situa, nem o espaço pode ser considerado puramente exterior, nem
a memória deve ser considerada puramente subjectiva, visto que, devido à sua
relação com o espaço, esta não é totalmente privada, podendo ser partilhada
publicamente.
No mesmo sentido, a colecção e a casa-museu de John Soane ajudam a
tornar mais clara a relação entre os elementos materiais do universo e as
pessoas. Os objectos de colecção ou museu funcionam como indícios materiais
do passado. A colecção e o museu encenam a sua permanência no presente,
projectando-os igualmente para o futuro. Através da organização conceptual e
das conexões destacadas pelo coleccionador ou pelo conservador, a colecção
articula tempo privado com tempo social e público, autobiografia com História.
Entre o privado e o público jogam-se não só sobreposições entre
interesses individuais e interesses colectivos, mas também o modo como as
pessoas se definem perante si e perante os outros ou, melhor dizendo, o modo
como definir-se perante si se relaciona estreitamente com o definir-se perante
os outros e com os outros.
Pelo facto de se situarem no circuito de interacção entre o privado e o
público, o conceptual e o material, por se basearem na organização de coisas
num espaço, as colecções fazem parte da definição da vida e da subjectividade
125 Malpas, Jeff. 2012. «Building Memory», Interstices: Journal of Architecture and Related Arts 13.
109
do coleccionador e, num contexto mais amplo, são importantes para descrever a
cultura em que o coleccionador se integra.
Na sua vida, as pessoas movem-se num espaço que partilham com outras
pessoas e outros seres e coisas. Visto que do modo como organizam esses
espaços, dos seus percursos nestes e das suas interacções com o que as rodeia se
constitui a definição de quem são e da sua vida, o privado é indissociável do
público e do que as pessoas partilham e organizam no exterior de si mesmas,
assim como o colectivo é indissociável do individual.
O facto de John Soane ter constituído uma colecção e construído uma
casa-museu que pudesse ser visitada demonstra a sua consciência tanto da
necessidade de interacção permanente entre o privado e o público na definição
de uma identidade, como da importância da memória não só na identidade
individual mas também na concretização pública desta subjectividade de modo
estável e, portanto, memorável.
Em conclusão, a relação das colecções e dos museus com a memória tem
de ser considerada mais importante do que a sua relação com a História.
Em primeiro lugar, nas colecções e nos museus, os objectos são produto
de uma dupla selecção, operada quer por circunstâncias incontroláveis (o
desgaste da passagem do tempo, a perecibilidade do contexto original), quer
pelas figuras dos coleccionadores ou dos conservadores dos museus. Uma
colecção pode ser descrita como organização de contingências – contingências
de descoberta e selecção, contingências de preservação, contigências de
conexões e coincidências, contingências de descrição126. Pela mesma
126 Veja‐se, por exemplo, esta observação da coleccionadora Dominique de Menil a propósito do carácter algo fortuito da aquisição das peças da sua colecção: «Uma série de circunstâncias complexas trouxe estes tesouros à família: um encontro inesperado, uma visita a um artista ou a um negociante de arte, uma descoberta num catálogo de
110
vulnerabilidade dos contextos de origem relativamente às circunstâncias e à
mudança, não é possível preservá-los integralmente.
Em segundo lugar, a preocupação de reconstituição histórica parece
afastar-se para segundo plano quando colecções e museus colocam lado a lado
objectos de tempos e espaços diferentes. Esta intersecção de tempos diferentes
traz o passado para o presente, desencadeando não só novas possibilidades de
integração dos objectos na vida das pessoas mas também novas conexões entre
objectos e momentos temporais. Em primeiro plano nas colecções e museus está
esta simultaneidade temporal ou visão panorâmica que podemos descrever
como heideggeriana na medida em que passado, presente e futuro parecem
funcionar como «estruturas temporais» e não como períodos disjuntivos
situados numa sequência cronológica linear. Neste sentido, colecções e museus
parecem mais próximos da memória, tal como a vimos descrevendo, do que das
preocupações tradicionais da História.
Por sua vez, as novas conexões entre objectos, períodos históricos e
pessoas podem dar origem a novos entendimentos e práticas. Deste ponto de
vista, colecções e museus relacionam-se não só com o futuro, mas também com
o acaso e com a imprevisibilidade do mundo – com as variações e não só com as
regularidades e os padrões –, ao contrário do que sugerem algumas descrições
mais convencionais da actividade de coleccionar, segundo as quais as colecções
uma leiloeira, uma oferta feliz num leilão, e, claro, uma ocasião propícia para gastar dinheiro. [...] Nada estava excluído à partida, embora tivéssemos inclinações profundas. Constrangimentos também: o preço e a disponibilidade de mercado.» (Menil, Dominique de. 1987. Prefácio a The Menil Collection: A Selection from the Paleolithic to the Modern Era. Nova Iorque: Harry N. Abrams, 7.)
111
e os museus tomam sempre como ponto de partida as taxonomias vigentes127.
Por um lado, como aprofundaremos no sexto capítulo, as colecções resultam de
contingências várias, relacionadas com peripécias e idiossincrasias na existência
do coleccionador no contexto cultural em que este se integra. Por outro lado,
como observaremos nos capítulos quarto e quinto, as colecções, pelo facto de
representarem um espaço de liberdade que deriva de opções subjectivas
concretizadas num espaço intersubjectivo, podem muitas vezes chamar a
atenção para elementos até então pouco valorizados ou pouco notados, assim
funcionando como importantes elementos dinamizadores da cultura128.
Como Quatremère de Quincy e Aloïs Riegl permitem sugerir, a
singularidade da relação entre museus, memória e História pode ser clarificada
a partir da consideração da proximidade entre colecções, museus e ruínas. Tal
como as ruínas, as colecções e os museus são produto do tempo e da História,
mas estão simultaneamente fora destes na medida em que lhes sobrevivem.
Além disso, o estatuto ontológico ambíguo das ruínas parece próximo do
127 Um exemplo deste ponto de vista pode ser encontrado na introdução do livro The Cultures of Collecting, assinada por John Elsner e Roger Cardinal: «A História das colecções é a narrativa do modo como os seres humanos adaptaram, apropriaram e alargaram as taxonomias e sistemas de conhecimentos que herdaram». (Elsner, John e Roger Cardinal (ed.). [1994] 1997. The Cultures of Collecting: From Elvis to Antiques — Why do We Collect Things? Londres: Reaktion Books, 1‐6.) 128 «[O] lixo é a zona de transformação em que as colecções são criadas e os detritos desprezados dos bens se convertem em cultura e sentido. Na extremidade oposta, a zona do museu é o lugar do transformado, o lugar de apoteose em que os valores culturais e os valores de mercado se tornam indistintos. A dinâmica no sistema é criada pelo processo de coleccionar. As colecções ocupam a zona intermédia entre uma avaliação e outra; são a zona de transição da saída e da transformação a partir da qual a mudança emerge.» (Pearce, Susan. 1995. On Collecting: An Investigation into Collecting in the European Tradition. Londres e Nova Iorque: Routledge, 396.)
112
estatuto dos objectos de colecção ou de museu129, os quais permitem novas
descrições quando adquirem diferentes usos, estabelecem conexões e são
integrados em práticas anteriormente inexploradas se passam a fazer parte do
contexto de uma colecção ou de um museu. Neste sentido, as peças de museu e
de colecção podem ser descritas não só como objecto de contemplação estética,
mas também como catalisadores da imaginação.
Por último, a proximidade entre colecções e memória aponta igualmente
para a vertente mais pessoal da constituição de uma colecção. Pela sua
associação à memória e pela sua presença concreta num determinado espaço, as
colecções podem ser descritas como corporizações da memória quer de um
coleccionador, quer de uma cultura (no caso dos museus). Pelo facto de muitas
vezes sobreviver ao próprio coleccionador, como uma ruína sobrevive ao edifício
de que fez parte, uma colecção pode ser descrita como modo de resistência quer
à morte, quer à História.
129 De assinalar, no entanto, como lembra Maleuvre (1999), que apesar de as ruínas concretizarem ou ilustrarem materialmente a destruição a que as coisas do passado estão sujeitas, em geral as ruínas não são deslocadas do seu contexto de origem – ao contrário do que se verifica com os fragmentos e as peças de museu ou de colecção.
113
3. O privado e o público; o conceptual e o material
«Dizer que os mortais são é dizer que habitando eles persistem através dos espaços em virtude da sua permanência entre as coisas e os lugares.»
Martin Heidegger130
3.1 Genealogia das colecções
No capítulo anterior tentámos descrever algumas distinções entre
História e memória com o objectivo de reflectir tanto sobre a relação das
pessoas com o tempo como sobre o papel desempenhado pelos objectos nesta
relação. Para descrevermos de forma simples esta questão, podemos dizer que
através da memória as pessoas tentam colocar-se fora do tempo, em busca de
uma perspectiva que não procura necessariamente uma reconstituição objectiva
dos acontecimentos do passado, mas depende essencialmente do
estabelecimento de relações de diversos tipos.
Depois de explorarmos algumas questões associadas à existência no
tempo de objectos de colecção e museus, queremos aprofundar a questão da
ligação entre o privado e o público, o material e o conceptual nos objectos de
colecção, com o objectivo de consolidarmos a sugestão de que uma colecção
pode ser descrita como extensão de uma pessoa.
Neste capítulo vamos identificar relações mais específicas entre
subjectividade, materialidade e intersubjectividade. Começaremos por explorar
elementos materiais como túmulos, em que se encena objectivamente uma
partilha do privado e do individual na esfera pública e colectiva. A seguir, 130 Heidegger, Martin. [1951] 2001. «Building, Dwelling, Thinking», Poetry, Language Thought, Trad. Albert Hofstadter. Nova Iorque: HarperPerennial, 155.
114
pensando sobre o culto dos santos, as relíquias e as peregrinações, vamos tentar
perceber como o espiritual ou o conceptual se podem manifestar materialmente,
assim consolidando a sugestão do primeiro capítulo desta tese de que o
conceptual e o material nunca podem ser entendidos separadamente. Neste
contexto, as práticas da «arte da memória» ajudar-nos-ão a explicar a ligação
entre conceitos e objectos.
A exploração de pontos em comum entre túmulos, monumentos a heróis
ou santos e gabinetes de curiosidades conduzir-nos-á à consideração de algumas
distinções entre estes e colecções, designadamente colecções de casas-museus.
Se é verdade que os pontos em comum entre estes elementos nos ajudam a
esclarecer a interacção das vertentes conceptuais e materiais, privadas e
públicas das colecções, assinalar a orientação temporal das colecções e o seu
papel no presente e no futuro dos coleccionadores torna necessário salientar a
vertente pública das colecções, ainda que sem ignorarmos as suas vertentes
mais privadas. À semelhança do que se verifica nos gabinetes de curiosidades a
tensão público/privado revela-se decisiva para descrever uma colecção.
Túmulos, santuários, gabinetes de curiosidades, relicários, monumentos,
práticas da «arte da memória», souvenirs, têm semelhanças de família com as
colecções e as casas-museus na medida em que representam uma ligação entre,
por um lado, o material e o imaterial e, por outro, o privado e o público. Tomar
estes elementos em consideração é indispensável para compreendermos a
cultura das colecções visto que a identificação de proximidades e distâncias
entre estes elementos não só nos ajuda a traçar a genealogia desta cultura, como
também contribui para destacar certos aspectos deste tópico que de outro modo
poderiam passar despercebidos.
115
No capítulo anterior referimos o interesse de John Soane por
arquitectura funerária. Giles Waterfield131 observa que este interesse se
relacionava com a atenção de Soane não só às origens da arquitectura, mas
também à importância que estes elementos desempenhavam na vida pública do
passado. A articulação das dimensões privadas e públicas dos projectos
arquitectónicos sempre foi um tópico de interesse para Soane. Os dois projectos
em que este interesse está mais explícito são a Dulwich Picture Gallery e a sua
própria casa-museu.
Na Dulwich Picture Gallery132, como constatámos, os túmulos privados
dos fundadores são integrados na instituição pública do museu. Assim se
estabelece uma relação de contiguidade não só entre coleccionadores e colecção,
mas também entre vertentes individuais e colectivas, privadas e públicas. Neste
museu, os túmulos e a colecção tornam-se públicos e são expostos em pé de
igualdade. Visitar a colecção implica visitar os túmulos. Do mesmo modo, ainda
que o túmulo de John Soane não esteja integrado na sua casa-museu,
encontramos neste edifício diversas figurações deste, com destaque para o
sarcófago vazio na cripta.
A conversão da casa de John Soane num espaço público valida os
interesses do arquitecto através do reconhecimento da sua relevância colectiva,
redefinindo a identidade individual de Soane através da sua expansão no
colectivo. Deste modo, a dimensão subjectiva do coleccionador completa-se e
prolonga-se através da sua conexão com a vida das outras pessoas.
131 Waterfield, Giles (ed.). 1996. Soane and Death. Londres: Dulwich Picture Gallery. 132 Um espaço que já foi descrito como «um mausoléu expandido numa galeria de arte» (Duncan 1995, 85).
116
À semelhança do que se verifica com esta casa-museu, túmulos de santos
ou heróis, ou monumentos em sua homenagem, foram durante muito tempo
entendidos não só como celebração da vida individual específica que
recordavam, mas também como paradigma colectivo de virtude cívica. Erigidos
com o objectivo de educar para o bem colectivo, desempenhavam um papel
central na vida pública, recordando um passado partilhado por todos. Deste
modo se possibilitava uma relação de continuidade entre civilização do passado
e a civilização do presente. Presentes na memória colectiva através destes
monumentos, as acções dos heróis do passado constituíam exemplo de acções e
feitos a emular, produzindo também a noção de pertença a uma comunidade e a
um património cultural.
O papel histórico dos túmulos na vida colectiva ajuda a descrever a
dialéctica entre dimensões privadas e públicas. Como nota Panofsky133, a
arquitectura funerária expressa muitas vezes um desejo de imortalidade
simultaneamente material e imaterial, traduzindo a dupla ambição de
permanecer materialmente na memória dos vivos e alcançar a salvação
espiritual depois da morte134. Ainda que a morte e o luto tenham uma dimensão
individual e privada, os funerais, os túmulos ou monumentos a mortos e os
epitáfios são modos de expressar e partilhar o privado, visto que materializam o
imaterial e o conceptual através de objectos partilháveis, cerimónias e
133 Panofsky, Erwin. 1992. Tomb Sculpture: Four Lectures on Its Changing Aspects From Ancient Egypt to Bernini. Ed. H. W. Janson. Londres: Phaidon. 134 Os túmulos podem incluir representações retrospectivas (de episódios ou elementos da vida do homenageado) ou prospectivas (da existência do homenageado depois da morte). Mesmo as representações prospectivas, curiosamente, ilustram muitas vezes cenas de vida material.
117
enunciados públicos, permitindo que os mortos continuem presentes na
memória e na vida das pessoas.
Ainda nos túmulos, é curioso notar como, nos epitáfios em que o morto
se dirige aos vivos, esta voz parece residir num tempo que não coincide com o
da cronologia e da mortalidade humana, como assinala Barbara Johnson135,
situando-se numa dimensão supratemporal, próxima da memória, em que
mortos e vivos coexistem. A voz que fala nestes epitáfios concretiza o que
supostamente já não deveria poder ser articulado: as palavras de um morto, o
paradoxo da manifestação material do que já não tem existência física.
A arquitectura funerária encena uma superação da mortalidade através
da possibilidade paradoxal de permanência material na memória das pessoas,
apesar do desaparecimento do recordado. Ao mesmo tempo, ajuda a descrever a
relação de cada indivíduo com o colectivo. O colectivo pode integrar
culturalmente os exemplos individuais. Túmulos ou monumentos a heróis dão
conta desta integração. Quando são construídos por iniciativa individual, estes
acabam por funcionar como extensão do indivíduo, preservando materialmente
algo tão imaterial como a sua memória – isto é, a recordação de quem este
indivíduo foi e daquilo que fez.
De modo semelhante ao que se verifica na arquitectura funerária, no
caso de coleccionadores que vêem a colecção integrada e valorizada na esfera
pública através da preservação da sua casa-museu ou da aquisição desta
colecção por um museu, o individual torna-se exemplo para o colectivo. Nos
museus públicos com origem na esfera privada, a colectividade integra e
valoriza exemplos individuais com as suas visitas e, frequentemente, o dinheiro 135 Johnson, Barbara. 2008. Persons and Things. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press, 11‐13.
118
dos seus impostos. A vertente colectiva define-se assim em interacção com a
esfera individual. O exemplo individual e privado é valorizado pela comunidade,
adquirindo ressonância colectiva como paradigma de virtude ou como lugar de
interesse geral. Deste modo, o privado e o individual expandem-se no colectivo e
os elementos materiais contribuem para preservar valores imateriais.
A circunstância de certas casas-museus poderem ser descritas e visitadas
não só como retrato de um coleccionador mas também como documento de um
período histórico demonstra que os factores históricos, sociais e culturais são
inseparáveis da esfera individual136.
Os túmulos e os monumentos a heróis ou santos podem ser descritos
como espaço de interacção do imaterial e do material. Durante a Idade Média e
o Renascimento, os túmulos dos santos ou os relicários com restos mortais
destas figuras, além de desempenharem a mesma função pedagógica dos
túmulos dos heróis ou das famílias, representavam a união do espiritual e do
material, funcionando como intermediário entre as pessoas e os princípios
transcendentes da religião137. Estes elementos facilitavam a compreensão do
sagrado, instaurando um lugar concreto e visível através do qual a vontade de
136 Vamos desenvolver esta ideia nos capítulos quatro e seis. Não estamos a defender uma noção de «memória colectiva» próxima da de Maurice Halbwachs porque preferimos um conceito de intersubjectividade mais abrangente. Halbwachs associa o conceito de «memória colectiva» a grupos sociais específicos. Nós falamos de processos humanos em geral. (Halbwachs, Maurice. On Collective Memory. Trad. Lewis A. Coser. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, [1926] 1992.) 137 «As distinções entre vivos e mortos, corpo e coisa, presença e mimese, parte e todo, animado e inanimado, tendiam a desvanecer‐se: toda a criação podia transmitir e revelar Deus.» (Bynum, Caroline Walker. 2011. Christian Materiality: An Essay on Religion in Late Medieval Europe. Nova Iorque: Zone Books, 267.)
119
Deus se traduziria em milagres138. Ao mesmo tempo, consolidavam a coesão
social, reunindo no mesmo espaço partilhado diferentes estratos da
sociedade139.
É evidente nas relíquias a tendência para dissolver fronteiras (entre vida
e morte, pessoa e objecto, parte e todo, presença e representação)140 e, portanto,
para reunir e agregar. Esta tendência traduz-se igualmente no impulso para a
colecção e reunião de relíquias em altares, tesouros das igrejas ou outras formas
de agregação e exposição que reforçam a noção de comunidade, como desfiles,
procissões e peregrinações. No centro de lugares de culto religioso, estes
túmulos e relicários, identificados como meta de peregrinações, assinavalam um
espaço material concreto, valorizado por motivos imateriais.
As próprias peregrinações podem ser descritas como percursos
simultaneamente materiais, realizados fisicamente, e espirituais ou mentais,
realizados em busca de espiritualidade e de bens imateriais. Como sugere
Rebecca Solnit141, a peregrinação é o exemplo mais claro de indistinção entre
138 Como observaremos no sexto capítulo, neste aspecto reside uma distinção importante entre túmulos de santos, relicários e relíquias, por um lado, e colecções seculares, por outro. 139 Para mais informação sobre estes assuntos, ver também: Freeman, Charles. 2011. Holy Bones, Holy Dust: How Relics Shaped the History of Medieval Europe. New Haven e Londres: Yale University Press e Brown, Peter. [1981] 1982. The Cult of the Saints: Its Rise and Function in Latin Christianity. Chicago e Londres: The University of Chicago Press. 140 Bynum 2011. 141 «A peregrinação percorre um caminho delicado entre o espiritual e o material e a sua ênfase na história e no seu contexto: ainda que se trate de uma demanda espiritual, esta é praticada nos seus pormenores mais materiais [...] Ou talvez reconcilie o espiritual e o material, porque partir em peregrinação é obrigar o corpo e as suas acções a exprimir os desejos e as crenças da alma. A peregrinação une crença e acção, pensar e fazer, e faz sentido que esta harmonia se complete quando o sagrado
120
pensamento e acção, dimensão imaterial e dimensão material. Numa
peregrinação, crenças e pensamentos manifestam-se em acções executadas
fisicamente.
Túmulos de santos, relíquias, relicários, lugares santos são espaços ou
objectos concretos que, à semelhança do que se verifica com a arquitectura
funerária ou de monumentos em relação à vida e às acções de alguém,
presentificam e concretizam princípios e actividades espirituais. Túmulos,
monumentos aos mortos, epitáfios, santuários e peregrinações são exemplo da
articulação do material e do imaterial, do público e do privado. Estes exemplos
reforçam a ideia de que a vida humana se processa necessariamente a partir da
interacção destes pólos.
Como lembra Susan Stewart142, é impossível ao sujeito visualizar-se
integralmente sem prolongamentos com dimensão física e material como
imagens, reflexos ou projecções. Assim como a autoconsciência do corpo não
fica completa sem imagens adicionais do que o sujeito, por si só, não consegue
ver, também os elementos imateriais humanos ficam incompletos sem as
referências materiais a partir das quais se definem. Túmulos, gabinetes de
curiosidades, relicários e casas-museus podem ser vistos como prolongamentos
materiais de um corpo que inclui uma consciência ou subjectividade. Estas
extensões facilitam a compreensão de vertentes imateriais sobre as quais de
outro modo seria mais difícil falar ou pensar. Como observa Mary Douglas, os
conceitos abstactos ganham substância e são mais facilmente compreendidos
assume uma presença e uma localização material.» (Solnit, Rebecca. 2002. Wanderlust: A History of Walking. Londres e Nova Iorque: Verso, 50.) 142 Stewart, Susan. [1993] 2007. On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Durham: Duke University Press, 131.
121
quando assumem uma vertente material143. Pode-se dizer uma coisa
semelhante sobre as vertentes imateriais, conceptuais ou mentais das pessoas: é
difícil compreendê-las e descrevê-las sem referências materiais que assinalem a
sua interacção com o que está no exterior do sujeito.
Por dependerem da fragmentação do corpo, por se reunirem em
relicários, as relíquias sugerem uma descrição do corpo como colecção,
tornando evidente a tensão entre partes e todo presente no corpo humano. A
impossibilidade de produzir uma descrição completa de pessoa sem referir
elementos exteriores e materiais relacionados física e conceptualmente com
esta, juntamente com a possibilidade de o corpo se fragmentar e desintegrar,
apontam igualmente uma noção de pessoa como colecção, isto é, enquanto todo
constituído por partes não só capazes de sustentarem uma descrição unificada
mas também esssenciais para essa descrição.
As conexões entre pessoa e extensões materiais são exploradas quer nos
relicários, quer nos gabinetes de curiosidades. Já foram notadas as semelhanças
físicas tanto entre determinados relicários e móveis de gabinetes de
curiosidades, como entre relicários e formas ou figuras humanas (braços,
cabeças ou corpos)144. Os casos de relicários com formas humanas prolongam a
dissolução de fronteiras entre pessoa e coisa implícita no conceito de relíquia.
(Os ex-votos de cera com formas humanas ou as velas com a altura da pessoa
que beneficiou ou beneficiará de uma promessa são outro exemplo.)
143 «É sempre difícil recordar conceitos abstractos, a não ser que estes assumam uma aparência física. [...] Os bens reunidos na propriedade apresentam informação visível sobre a hierarquia de valores com que aquele que os escolheu se identifica.» (Douglas, Mary e Baron Isherwood. [1979] 2006. The World of Goods: Towards an Anthropology of Consumption. Londres e Nova Iorque: Routledge, viii‐ix.) 144 Bynum 2011.
122
Como constatámos a partir da casa-museu de John Soane, túmulos e
casas-museus podem igualmente ser descritos como extensões materiais de uma
subjectividade cuja dimensão material seria de outro modo difícil de descrever e
fixar. Podemos descrever as casas-museus como prolongamento dos santuários
que se organizavam em torno de relíquias de santos. No século XIX, os
admiradores de determinada personalidade visitavam a sua casa com o mesmo
respeito com que os peregrinos visitam os santuários. À semelhança da vida dos
santos homenageados nos santuários, a vida e a obra do proprietário da casa
eram vistas como exemplos e objecto de veneração. Pela sua contiguidade com
a vida do proprietário, os objectos da casa visitada assumiam um estatuto
equivalente ao das relíquias. Na mesma perspectiva, as produções artísticas ou
outras obras dos proprietários das casas, geralmente artistas, escritores ou
personalidades históricas seriam como milagres seculares. Visitar uma casa-
museu era considerado tão enriquecedor e pedagógico como conhecer a vida e a
obra dos santos145. O itinerário de ambas as peregrinações podia ser visto como
modo de educação espiritual. Aliás, esta aproximação entre o secular e o
sagrado é anterior à própria existência de relíquias cristãs. Os rituais cristãos
adaptaram práticas pagãs relacionadas com peregrinações a túmulos de heróis,
oráculos ou santuários, com recolha de recordações relacionadas com o lugar146.
Os gabinetes de curiosidades, em voga sobretudo entre meados do século
XVI até ao início do século XVIII, podem ser descritos como uma casa-museu
145 Compilações de milagres e de vidas de Santos, como A Lenda Dourada, de Jacobus de Voragine (1260), tinham sido êxitos de público no fim da Idade Média. Estas compilações eram reunidas e divulgadas com o objectivo pedagógico de dar o exemplo através da acção. 146 Freeman 2011, 9‐10.
123
em miniatura dentro de uma casa. Em comum entre casas-museus e gabinetes
de curiosidades encontramos, por um lado, a diversidade dos objectos reunidos,
por outro, a organização destes através de associações subjectivas.
Quando surgiram, os gabinetes de curiosidades associavam-se à
aristocracia. Contudo, posteriormente também a burguesia em ascensão se
interessou por eles. A associação da burguesia às colecções relacionou-se com
uma tomada de posse do próprio destino por esta classe, que não se limitou a
aceitar o seu lugar num sistema preexistente. Para muitos burgueses, criar e
manter uma colecção funcionou como prolongamento deste empenhamento
activo na construção da própria vida, sendo entendido como afirmação das suas
capacidades pessoais perante os outros e para si mesmo.
Na tensão público/privado encenada dos gabinetes de curiosidades, estes
pólos estabelecem uma relação de complementaridade, não de oposição. Assim
como o gabinete de curiosidades se define em interacção com os espaços
distantes e exteriores na origem dos objectos da sua colecção, o eu do
coleccionador define-se em articulação com o outro, o interior define-se em
articulação com o exterior, o privado define-se em articulação com o público.
A relação entre estes pólos é clarificada pela própria composição destes
gabinetes. Os proprietários deste tipo de colecção caracterizam-se pela
preferência por objectos raros, únicos, singulares e exóticos, frequentemente
originários de regiões recém-descobertas ou mal conhecidas. Devido a esta
proveniência, tais objectos distinguem-se pelo seu carácter surpreendente. Nos
nichos, gavetas, prateleiras, caixas, molduras e cofres dos gabinetes de
curiosidades, os proprietários preservam e arrumam, ao mesmo tempo que
asseguram uma exposição ordenada. Integrando estes objectos nos seus
gabinetes de curiosidades, os coleccionadores relacionam-se com eles sem
124
perderem as suas qualidades extraordinárias. A tensão público/privado é
expressa por uma organização que arruma e fecha para poder mostrar e expor.
Paradoxalmente, o mais secreto, cifrado e hermético adquire valor através de
uma organização pública, ainda que o seu significado secreto possa não ser
decifrado por todos do mesmo modo.
A dimensão sociológica e performativa dos gabinetes de curiosidades
enquanto demonstração e concretização de um eu combina-se com a sua
dimensão mais filosófica. No gabinete de curiosidades, o coleccionador
relaciona o mundo consigo próprio, definindo a sua participação neste através
do carácter pessoal da organização, que traduz o modo como vê o universo e se
situa neste. (Isso é claro, por exemplo, nas telas que retratam o coleccionador no
seu gabinete de curiosidades, um género comum na altura.)
Hooper-Greenhill descreve os gabinetes de curiosidades como uma das
primeiras e mais abrangentes tentativas de concretização de uma interpretação
do mundo através da organização de objectos147. Visto que o significado dos
objectos se associa ao lugar que estes ocupam tanto material como
conceptualmente na rede de relações, analogias e hierarquias representada
nesta organização, descrever e perceber o estatuto de cada objecto e do próprio
universo material torna-se uma questão de interpretação.
Situando-se no centro do gabinete enquanto criador e proprietário deste,
o coleccionador participa da natureza divina através da integração,
contemplação, interpretação e eventual compreensão dos mecanismos de
criação do universo. Deste modo, afirma-se como agente e como criador (de
uma colecção, de si próprio, do seu próprio destino, da sua vida). Quando se fala
147 Hooper‐Greenhill 1992, 82.
125
de «ruptura epistemológica»148 ou «escândalo epistemológico»149 dos gabinetes
de curiosidades está em causa este novo estatuto. Como observa David Martin,
estas colecções funcionam como «metáforas da criação»150.
A noção de complementaridade entre coleccionador e colecção está
presente tanto nos gabinetes de curiosidades como nas casas-museus. O
assombro dos visitantes dirige-se tanto aos objectos expostos como ao
coleccionador – ao seu investimento afectivo e monetário, à organização mental
e física da colecção e dos objectos pessoais.
As virtudes supostamente terapêuticas e milagrosas tanto das relíquias
como de alguns objectos dos gabinetes de curiosidades, assim como a presença
de múmias ou animais empalhados ou preservados nos segundos, permitem-
nos descrever ambos como solução para a preocupação com a perecibilidade da
matéria e a mortalidade. A preservação de cadáveres seria uma forma de vencer
ou contornar a morte. O recurso às supostas virtudes terapêuticas de alguns
objectos também.
Em suma, relíquias, relicários, gabinetes de curiosidades, casas-museus e
colecções sobrevivem à morte física do coleccionador ou do homenageado,
preservando, no entanto, a sua memória pela complementaridade e
entrosamento que neles se concretiza entre partes e todo, pessoas e coisas,
148 «Ocorre uma ruptura epistemológica importante no entendimento da posição do ser humano no mundo. Enquanto no período anterior o ser humano estava subsumido numa cosmologia hierarquizada, e o mundo, o existente, era compreendido como expressão do Deus‐Criador, no período posterior o sujeito tenta encontrar um modo de representar o mundo como sua própria criação, constituindo parte desta luta a emergência do sujeito como tal.» (Hooper‐Greenhill 1992, 84.) 149 Martin, David L. 2011. Curious Visions of Modernity: Enchantment, Magic, and the Sacred. Cambridge, MA: MIT Press, 50. 150 Martin 2011, 37‐38.
126
coleccionador e colecção. Como nota Patrick Mauriès151, a predilecção por
objectos desprovidos de vida assegurou a persistência da memória de alguns
proprietários de gabinetes de curiosidades. Paradoxalmente, estas coisas sem
vida tornam a memória destes coleccionadores mais intensa e mais viva.
Segundo Mauriès, uma das características dos coleccionadores é a capacidade
de questionar as fronteiras entre a morte e a vida152.
Também a «arte da memória»153, uma prática desenvolvida pelos Gregos
que chegou à tradição europeia por intermédio da cultura romana, depende da
interacção do conceptual e do material. Muito sumariamente, de acordo com os
princípios gerais desta arte, alguém que queira recordar determinados tópicos
deve imaginar um espaço físico, como uma paisagem ou um edifício, e organizar
neste espaço objectos (imaginários) associados ao que pretende recordar. Para
recordar estes tópicos, deverá visitar mentalmente este edifício cumprindo um
trajecto predeterminado154.
151 «Não é controversa a sugestão de que a maioria destes coleccionadores esclarecidos preferia a natureza imutável e impassível dos objectos às ilusões de um mundo num estado constante de fluxo e à turbulência das paixões humanas. E é esta predilecção por coisas deprovidas de vida – paradoxalmente – que agora as recupera para a nossa vida, e de modo muito mais nítido que qualquer retrato, por muito convincente que este seja.» (Mauriès, Patrick. [2002] 2011. Cabinets of Curiosities. Londres: Thames & Hudson, 7.) 152 Mauriès 2011, 183. 153 Para mais informação sobre este tópico, ver: Yates, Frances. [1966] 2010. The Art of Memory. Londres: Pimlico e Carruthers, Mary J. 1990. The Book of Memory: A Study in Memory in Medieval Culture. Cambridge: Cambridge University Press. 154 Na transição entre a cultura clássica e a cultura europeia, a escolástica usou o texto De Memoria et Reminiscentia, de Aristóteles, como justificação filosófica para o recurso à técnica da «arte da memória». Ainda que as referências de Aristóteles à «arte da memória» não se desenvolvam com o objectivo de justificar filosoficamente as suas práticas, mas sim para ilustrar e consolidar as linhas de força da descrição da memória do ensaio, os praticantes medievais da «arte da memória» e os que se lhes
127
Parece haver alguns elementos em comum entre coleccionadores e
praticantes da «arte da memória»155. Estas práticas baseavam-se numa noção de
memória relacionada com a ideia de que esta depende de uma organização (e,
portanto, requer um esforço deliberado, em vez de ser simplesmente passiva ou
espontânea) e é comparável a um espaço em que são armazenados conjuntos de
objectos através de associações racionais, emotivas ou imaginativas. Assim
como o praticante da «arte da memória» organiza num determinado espaço
físico e mental (real ou imaginário) imagens associadas por alguma ligação de
semelhança, contraste, diferença ou contiguidade ao que pretende recordar, um
coleccionador organiza objectos. Quando uma colecção está exposta num
determinado espaço, é possível visitá-la fisicamente para a observar, como o
adepto da «arte da memória» visita – mentalmente – o seu espaço para se
recordar.
seguiram apropriaram‐se da ideia aristotélica de que é impossível pensar sem imagens mentais, tendo usado esta noção para explicar e defender o recurso a imagens e à imaginação na «arte da memória». A teoria da memória e da reminiscência de Aristóteles baseia‐se na teoria do conhecimento que este filósofo expõe no ensaio De Anima, segundo a qual a imaginação é o intermediário entre a percepção e o pensamento: as percepções provenientes dos sentidos são recebidas pela imaginação, sendo o material do pensamento constituído pelas imagens formadas neste processo. De acordo com Aristóteles, o pensamento trabalha com estas imagens mentais e não directamente com as percepções dos sentidos. Como observa Frances Yates, estas teorias aristotélicas agradaram à escolástica pela importância que atribuíam às imagens e à imaginação, assim sancionando o recurso a elementos materiais e artísticos por vezes estranhos, grotescos ou violentos como intermediários dos conceitos espirituais pelo seu impacto na consciência e na memória das pessoas. (Yates 2010, 49) 155 Entre estes, Frances Yates destaca Simónides, Giordano Bruno, Giulio Camillo e Robert Fludd. Pensa‐se que a «arte da memória» seria uma técnica usada por oradores públicos sem desejo de recorrerem a notas ou à leitura e por outras pessoas cujas funções exigissem facilidade de recordar informação. Pode também ter sido adoptada com fins mais espirituais e menos práticos. Para um referência mais popular e contemporânea, Patrick Jane, o protagonista da série americana O Mentalista, recorre a esta técnica em alguns episódios com o objectivo de recordar certos pormenores.
128
Como nas práticas da «arte da memória», fazer uma colecção implica
imaginar uma organização num determinado espaço mental e físico. Ao
contrário, porém, do que se verifica nas «artes da memória», mas à semelhança
dos gabinetes de curiosidades e dos santuários ou catedrais, os elementos
materiais de uma colecção constituem um ponto de ligação entre o intangível e o
tangível, o espiritual e o material, o interior e o exterior, o privado e o público.
Visto que as escolhas de imagens ou objectos imaginários de um
praticante da «arte da memória» não evocam necessariamente as mesmas
memórias noutras pessoas, podendo igualmente não exercer sobre estas
qualquer impacto afectivo que as torne memoráveis, a «arte da memória» teria
a vantagem de proteger a vertente mais privada do indivíduo e a desvantagem
de ser incapaz de garantir a inteligibilidade do sujeito na sua ausência. Como
nota William West156, os objectos imaginários da «arte da memória» não
constituem uma subjectividade nem a tornam compreensível.
Ainda que os gabinetes de curiosidades tenham sido associados à «arte
da memória» sobretudo devido ao carácter visualmente marcante dos seus
objectos e à vertente secreta do significado destes, os objectos destes gabinetes
reuniam características simultaneamente secretas e acessíveis, exóticas e
domésticas, privadas e públicas, decorativas e funcionais, elevadas e vulgares
que, como já vimos, facilitavam a apreensão pública do seu significado em
correlação com a subjectividade do seu proprietário.
A sobreposição entre memória e subjectividade parece falhar quando a
memória é associada a vertentes exclusivamente privadas, como nas práticas da
«arte da memória». Além disso, o modelo da memória como espaço em que é 156 West, William. «‘No Endlesse Moniment’: Artificial Memory and Memorial Artifact in early Modern England», Radstone, Susanah e Katharine Hodgkin (eds.). Regimes of Memory. Londres: Routledge, 2003, 61‐75.
129
armazenada informação inteligível apenas ao próprio sujeito é estático,
enquanto a memória é um mecanismo dinâmico assente na interacção do
subjectivo e do material e social.
Se recordarmos que as coisas materiais não são simplesmente exteriores
às pessoas, mas afectam e fazem parte da sua subjectividade e do próprio espaço
mental e físico que as pessoas ocupam, teremos de concluir que não é possível
descrever uma subjectividade sem referência a interacções materiais e sociais.
Deste modo, alguns objectos podem ser vistos como parte de uma
subjectividade e como elemento de uma pessoa que sobrevive depois da morte
desta.
3.2 Casas-Museus e ocupação de um espaço: o Museu Gardner
Em «A Origem da Obra de Arte», Heidegger sugere que, perante a obra
de arte, em vez de se perguntar «o que é?» se deve perguntar «onde está?»
Enquanto em resposta à primeira pergunta obtemos apenas uma lista de
propriedades, para respondermos à segunda precisamos de uma descrição
relacional157. Para Heidegger, um lugar não corresponde a uma mera localização
material, mas sim a um conjunto de acções de «negociação» de identidade – a
um «acontecimento» – num espaço material e conceptual partilhado colectiva e
publicamente. O conceito de «negociação de identidade» corresponde ao de
ocupação de uma posição no contexto físico e cultural em que se nasce através
da escolha de possibilidades de acção disponíveis nesse contexto158. Esta noção
157 Sobre este assunto, ver também Casey, Edward. S. [1997] 1998. The Fate of Place: A Philosophical History. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press. 158 Vamos explorar esta noção de modo mais aprofundado no sexto capítulo.
130
associa-se assim às noções de pertença a um lugar e de concretização de uma
identidade geográfica, conceptual, cultural e social, em interacção com o que
nos rodeia.
De acordo com Heidegger, as pessoas e as coisas abrem um espaço; estão
num lugar, agem num lugar, isto é, estabelecem relações com o que está em
torno delas – um processo de autodefinição que ao mesmo tempo contribui para
definir o estatuto dos outros intervenientes nestas relações. Ser quem ou o que
se é depende da expressão permanente de uma posição num contexto material,
cultural e social.
Na mesma linha de pensamento, uma colecção corresponde à criação e
definição de uma posição conceptual e material através das relações que a partir
da colecção o coleccionador estabelece com o passado e o presente. Trata-se de
construir um território habitável: «o homem é na medida em que habita»159. De
acordo com esta perspectiva, podemos descrever uma casa-museu como um
espaço «aberto» ou construído por alguém com o objectivo de preservar as suas
(ou de outra pessoa) relações com as coisas. Esta preservação expressa uma
identidade ou uma presença no mundo.
Verificámos em relação à casa-museu de John Soane que o edifício e a
colecção não só cumpriam este objectivo como também manifestavam e
incentivam uma reflexão sobre ele. Vamos agora recorrer a mais um exemplo
de casa-museu de modo a clarificarmos estas noções.
Em 1898, Isabella Stewart Gardner (1840-1924) decidiu dedicar-se à
formalização de uma colecção160 e à construção de uma casa onde pudesse viver
159 Heidegger 2001, 145 («Construir, Habitar, Pensar», itálico no original). 160 Para mais informação sobre esta colecção e esta coleccionadora, ver Goldfarb, Hilliard T. 1995. The Isabella Stewart Gardner Museum: A Companion Guide and
131
com ela161 e expô-la. Esta coleccionadora viveu na sua casa-museu durante os
últimos 21 anos da sua vida162, período em que a colecção continuou a crescer.
Mesmo durante estes 21 anos a casa podia ser visitada como museu, visto que
abria ao público cerca de vinte dias por ano. Enquanto ali viveu, Stewart
Gardner usou as divisões do museu para actividades do dia-a-dia: escrever,
rezar, dar festas, acolher convidados durante temporadas (hábito que ainda hoje
é continuado através de residências artísticas).
Do ponto de vista arquitectónico, o próprio edifício é revelador do
espírito individual da coleccionadora. Visto do exterior, parece uma caixa de
tijolos amarelos, com uma dimensão modesta que contrasta com os edifícios
típicos dos museus da altura, mais semelhantes a templos ou tribunais. Por sua
vez, o interior do edifício concretiza a forte ligação afectiva da coleccionadora a
uma visão onírica de Veneza muito influenciada não só pela leitura de John
Ruskin, mas também pelas visitas da coleccionadora à cidade. As paredes
avistadas a partir do pátio interior têm um desenho semelhante ao das fachadas
History (New Haven e Londres: Yale University Press. Para biografias de Isabella Stewart Gardner: Carter, Morris. 1925. Isabella Stewart Gardner and Fenway Court. Nova Iorque: Houghton Mifflin Co.; Tharp, Louise Hall. 1965. Mrs. Jack: A Biography of Isabella Stewart Gardner. Boston: Little, Brown and Co.; e Shand‐Tucci, Douglass. 1998. The Art of Scandal: Life and Times of Isabella Stewart Gardner. Nova Iorque: HarperCollins. 161 Sabemos através da correspondência de Isabella Stewart Gardner que esta possibilidade de viver com a colecção era muito importante para ela. Por exemplo, a coleccionadora diz numa carta a Bernard Berenson que a circunstância de poder observar certos quadros sempre que lhe apetecesse, a qualquer hora do dia, lhe trazia uma grande felicidade (Shand‐Tucci 1998, 177‐178). O mesmo é verdadeiro para um coleccionador como Henry Clay Frick, que também construiu uma casa‐museu. Frick chegava mesmo a levar com ele quadros da colecção para decorar a casa em que passava férias. (Sanger, Martha Frick Symington. 1998. Henry Clay Frick: An Intimate Portrait. Nova Iorque: Abbeville Press.) 162 Mudou‐se para lá em 1903.
132
dos palácios venezianos virados para canais. A casa, aliás, costuma ser descrita
como um edifício virado do avesso: é como se o exterior estivesse no interior.
O espólio do museu é constituído pelos objectos que Isabella Stewart
Gardner foi usando e reunindo ao longo da vida. A primeira peça comprada com
o objectivo de criar uma colecção para o público terá sido um auto-retrato de
Rembrandt, em 1896, ainda antes de o projecto da construção da casa-museu se
formalizar. Antes disso, no entanto, já a coleccionadora tinha adquirido
objectos que conservava. Não só fazia compras nas suas numerosas viagens,
como por vezes preenchia álbuns em que registava as suas impressões ao lado
de fotografias, desenhos ou outras recordações (bilhetes de viagem, folhas ou
flores secas, etc.). Na sua casa, estas recordações aparecem expostas ao mesmo
nível das peças reunidas depois do início oficial da colecção.
O espaço do edifício divide-se em salas, identificadas através de
designações relacionadas ou com cores (sala azul, sala amarela), ou com nomes
de artistas (sala Macknight, sala Veronese), ou com períodos artísticos (sala
gótica), com países (sala holandesa) ou objectos (sala das tapeçarias). Estas
designações, no entanto, não são totalmente descritivas. O lugar das peças foi
definido livremente pela coleccionadora, que se baseou em associações pessoais
ou em ligações temáticas, formais ou até anedóticas entre os objectos: repetição
de cor, repetição de figuras ou padrões, ou mesmo ligações por vezes subtis
entre pintores e obras.
Uma das divisões em que este sistema subjectivo de sugerir ou criar
ligações se identifica com clareza é a sala holandesa, um dos espaços mais
conhecidos do museu, não só pelo valor dos seus quadros, mas também pelo
facto de ter sofrido o maior número de baixas quando, em 1990, o museu foi
assaltado. Visto que a organização do museu não pode ser alterada,
133
permanecem na parede molduras vazias no lugar das obras roubadas. Esta era a
sala de O Concerto de Vermeer ou de Tempestade no Mar da Galileia, de
Rembrandt. Ainda é uma sala com quadros entre os quais é possível estabelecer
algumas ligações mais ou menos subterrâneas. As conexões estabelecem-se a
partir de coincidências, geralmente coincidência de interesses (por colecções,
por arte, por determinados mestres da pintura – Ticiano, Rubens). Para
exemplificar: o retrato de Thomas Howard (duque de Arundel), conhecido
coleccionador, foi pintado por Rubens, também ele coleccionador163. Neste
quadro, Thomas Howard enverga uma armadura que parece ter origem num
outro retrato, da autoria de Ticiano, artista que Rubens admirava ao ponto de
ter realizado uma cópia do Rapto de Europa, obra também presente no museu.
Nesta mesma sala encontramos Senhora com Rosa, um retrato da autoria de
Van Dyck, discípulo de Rubens.
Por sua vez, a sala Ticiano, além de incluir talvez o quadro mais
importante e apreciado de toda a colecção (o já referido Rapto de Europa, de
Ticiano), talvez seja não só a divisão mais relacionada com a atmosfera de
Veneza que Stewart Gardner quis captar em memória do Palazzo Barbaro, a
casa que tantas vezes alugou quando passou temporadas na cidade, mas
também a sala com uma organização que mais claramente nos ajuda a descrever
os critérios de exposição do museu. A partir de elementos pictóricos do quadro
de Ticiano – como o tom róseo tanto da pele de Europa como do crepúsculo,
um anjinho a um canto da tela sobre um peixe ou a água que parece prestes a
salpicar o observador – na sala temos paredes vermelhas, um tapete persa do
século XVI que repete os tons do quadro e, numa mesa por baixo do quadro,
163 Para mais informação sobre o duque de Arundel, ver o terceiro capítulo de Stourton 2012, 49‐55.
134
uma escultura com um anjo reproduzindo a pose do anjo no quadro, uma salva
decorada com um padrão que parece repetir os salpicos de água da tela, e uma
aguarela atribuída a Van Dyck, que supostamente a terá realizado a partir da
cópia do mesmo quadro de Ticiano levada a cabo por Rubens. Por cima das
mesas, logo por baixo do quadro, um fragmento de um vestido de seda de
Isabella Stewart Gardner.
Neste museu não encontramos qualquer tentativa de ilustrar períodos da
História da arte. Deparamos com uma combinação idiossincrática de objectos,
alguns dos quais (por exemplo, o pedaço de vestido da coleccionadora) não
podem sequer ser considerados obras de arte, devendo antes ser descritos como
souvenirs e recordações164.
Aos visitantes, Stewart Gardner queria possibilitar não propriamente
educação, mas o mesmo prazer imediato que a arte e os objectos da sua colecção
lhe suscitavam. Por cima de uma das portas de entrada do museu podemos
encontrar a inscrição «C’est mon plaisir». Como sugere esta inscrição, a casa
expressa uma sensibilidade, devendo os objectos ser vistos como parte de uma
experiência subjectiva, como partilha de uma subjectividade e como convite a
uma experiência sensorial e pessoal dos próprios visitantes.
Ao contrário do que se verifica em museus mais próximos das
taxonomias do século XIX, no museu de Isabella Stewart Gardner não há
164 O termo «souvenir» diz respeito a objectos mais convencionais ou estereotipados, geralmente à venda em lojas para turistas. O termo «recordação» refere‐se a objectos menos estereotipados, preservados em associação a experiências individuais. Ainda assim, há alguns pontos em comum entre estes termos. Em inglês, o termo «souvenir» abrange estes dois sentidos. Mesmo em português, em certos casos estas acepções sobrepõem‐se: um objecto para turistas pode adquirir um significado mais pessoal.
135
fronteiras claras nem entre as artes165, nem entre a arte e a vida. Os objectos de
uso quotidiano166, os souvenirs e as recordações são colocados ao mesmo nível
da arte. Também o facto de esta casa se desdobrar em museu sugere o desejo
de anular a distinção entre, por um lado, o espaço tradicional do museu
(hierárquico, taxonómico, educativo) e, por outro, o espaço da vida e da
colecção pessoal.
Casas-museus como a de Isabella Stewart Gardner ajudam-nos a
produzir uma descrição de colecção não apenas como conjunto de objectos
desligados do seu uso, mas como conjunto de objectos integrados numa vida.
Este museu também nos ajuda a descrever a vida das pessoas de modo
unificado, sem fronteiras desnecessárias entre dimensões complementares,
ainda que habitualmente consideradas autónomas.
A tensão privado/público é evidente na casa-museu de Isabella Stewart
Gardner. Como nos gabinetes de curiosidades, há elementos privados ou
secretos e públicos. Por um lado, encontramos elementos conhecidos e
valorizados colectivamente como arte; por outro, objectos privados cujo
significado e valor se tornam acessíveis apenas a partir de suposições, de
mecanismos de projecção empática e de uma descrição unificada, capaz de
articular partes e todo, objectos e vida.
165 A arte pictórica e a arquitectura combinavam‐se com a música, por exemplo, devido aos inúmeros concertos que a coleccionadora organizava e os continuadores continuam a organizar. 166 Mobília, mesas postas, jarras com flores.
136
Reflectindo sobre souvenirs167, Susan Stewart168 assinala algumas
características que clarificam a associação entre objectos, memória e
subjectividade. O princípio em questão nos souvenirs tem algumas semelhanças
com os princípios da «arte da memória». Também no caso dos souvenirs, as
pessoas associam elementos materiais a experiências difíceis de fixar material e
conceptualmente quando adquirem objectos relacionados com uma
experiência geralmente realizada fora do contexto mais familiar, por exemplo
uma viagem.
Os souvenirs, assim, estão ligados à noção de percurso (material e
conceptual) num determinado espaço físico. Ao mesmo tempo, na medida em
que podem ser descritos como uma recordação fora do corpo (e da consciência)
das pessoas169, parecem concretizar uma exteriorização da memória. Por se
aliarem à recordação de um percurso no espaço físico, por um lado, e pelo facto
de se situarem no exterior do corpo do sujeito, por outro, ajudam-nos a
demonstrar que a memória das pessoas não é unicamente subjectiva e privada,
mas implica uma dimensão pública tanto por depender de experiências
realizadas num espaço físico comum a várias pesssoas, como por poder ser
identificada e parcialmente partilhada através de um objecto material que fez
parte da experiência recordada, tornando-a assim material e visível.
167 Em Stewart, o termo «souvenir» tem sempre o duplo significado que já identificámos (objecto para turistas ou objecto mais pessoal). 168 Stewart 2007, 132‐151. 169 «[Uma] memória no exterior do sujeito e assim apresentando um excedente e uma falta de significado. A experiência do objecto situa‐se no exterior da experiência do corpo» (Stewart 2007, 133).
137
Depois de descrever deste modo os souvenirs, Stewart procura distingui-
los de, por um lado, ferramentas, por outro, objectos de colecção170. A distinção
entre souvenirs e objectos de colecção proposta por Stewart é, contudo, definida
a partir de uma antinomia discutível. Stewart associa os souvenirs à memória e
as colecções ao esquecimento171. Na oposição proposta por Stewart, enquanto o
souvenir desvia a atenção para o passado, «envolvendo o presente no
passado»172, a colecção é um espaço de sincronia, desprendido das coordenadas
da História; enquanto o souvenir é um objecto de nostalgia, indissociável do
passado, a colecção é um espaço de antecipação, orientado para o futuro.
De acordo com Stewart, o arquétipo de todas as colecções é a Arca de
Noé. À semelhança dos animais da Arca de Noé, os objectos de colecção foram
desligados da sua origem com o objectivo de proporcionar um novo começo.
Para Stewart, todas as colecções podem ser relacionadas com esta possibilidade
de começar de novo, sem olhar para trás.
Contra Stewart, visto que não só grande parte do valor dos objectos de
colecção se relaciona com o seu passado e a sua História, mas também porque
poucos coleccionadores serão indiferentes ao percurso dos objectos da sua
colecção no tempo, é errado defender que a colecção ignora totalmente o
passado. Se é verdade que a colecção é importante no presente e pode
desencadear novas práticas, não é certo que estas novas práticas sejam
170 Segundo esta ensaísta, souvenirs, ferramentas e objectos de colecção partilham o mesmo estatuto de concretização material ou de exteriorização de conteúdos mentais das pessoas no espaço físico. 171 «Enquanto o objectivo associado ao souvenir pode ser recordar, ou pelo menos a invenção da memória, o objectivo da colecção é o esquecimento – começar outra vez de modo que um número finito de elementos possa criar, em virtude da sua combinação, um devaneio infinito.» (Stewart 2007, 152.) 172 Stewart 2007, 150.
138
totalmente independentes das práticas anteriores. Pelo contrário, muitas destas
práticas são possíveis pelo facto de o objecto ter previamente adquirido
importância histórica e por esse motivo ter sido preservado.
Como constatámos a propósito da casa-museu de John Soane, uma
colecção parece associar-se a uma perspectiva panorâmica em que passado,
presente e futuro são simultaneamente tomados em consideração. Neste
sentido, a conexão entre colecção e esquecimento do passado revela-se
inadequada.
Na verdade, o erro principal do raciocínio de Susan Stewart parece residir
na descrição da colecção como «mundo autónomo», independente das
«narrativas individuais» dos seus elementos173 . Temos visto que um dos traços
distintivos das colecções e até dos museus é a sua abertura tanto ao presente e
ao futuro como ao passado.
Segundo Stewart, os coleccionadores seriam simplesmente motivados
pelo desejo de encenar a sua identidade, sendo a colecção um adereço
conceptual da dimensão individual e da consciência interior do coleccionador.
Na perspectiva desta ensaísta, assim como as pessoas usam as ferramentas para
transformar o mundo material numa extensão física das necessidades e dos fins
do corpo174, os coleccionadores usam os objectos de colecção para «internalizar»
o espaço físico175.
173 Stewart 2007, 152‐153. 174 Stewart 2007, 102. 175 «Quando os objectos são definidos nos termos do seu valor de uso, funcionam como extensões do corpo no meio, quando os objectos são definidos pela colecção essa extensão inverte‐se, contribuindo para integrar o meio num guião do pessoal. O último termo na série que marca a colecção é o ‘eu’, a articulação da própria ‘identidade’ do coleccionador.» (Stewart 2007, 162‐163.)
139
A perspectiva exposta nas distinções entre, por um lado, souvenirs e
objectos de colecção ou, por outro, ferramentas e objectos de colecção recorda a
tradição que atribui às colecções e aos museus o ónus da descontextualização e
expressa uma descrição da actividade de coleccionar perigosamente próxima
daquela de colecção como prática solipsista que Baudrillard176 ajudou a definir,
na qual parece não haver possibilidade de escapar ao espaço conceptual e
privado do sujeito177.
A descrição da actividade de coleccionar como simples processo de
aquisição ou apropriação toma em consideração apenas os aspectos mais
subjectivos e privados desta actividade, ficando por explicar a sua vertente
exterior, pública e social, relacionada com a organização e exibição dos objectos
coleccionados. Além disso, a descrição de colecção como mera apropriação
baseia-se numa noção de «eu» que não toma em consideração os aspectos
colectivos, sociais, culturais ou familiares que ajudam a definir cada pessoa,
preferindo antes associar esta categoria a uma dimensão conceptual178
supostamente desligada do espaço social.
Do mesmo modo, pressupõe a possibilidade de uma noção de objecto
redutível a uma descrição exclusivamente de teor conceptual que já contestámos
no primeiro capítulo desta tese. Nessa secção defendemos que visto que os
176 Baudrillard, Jean. [1968] 2014. Le système des objets. Paris: Gallimard. 177 Baudrillard afirma claramente: «qualquer que seja a abertura de uma colecção, há nela um elemento irredutível de não‐relacionamento com o mundo» e «o coleccionador procura reconstituir um discurso trasparente a si próprio, de que detém os significantes e cujo referente é ele próprio». (Baudrillard 2014, 149.) 178 «Os objectos […] deixam de ser apenas um corpo material que resiste, para se tornarem um recinto mental em que reino, as coisas cujo significado sou eu.» (Baudrillard 2014, 120.)
140
elementos conceptuais se relacionam com componentes materiais, a
compreensão humana não implica apenas elementos conceptuais. Na relação
entre objectos e pessoas, os primeiros abrem um espaço em relação aos quais as
segundas se situam conceptual e materialmente, manifestando diferentes
possibilidades ontológicas ao longo do tempo, conforme certas características
são ou não valorizadas nas práticas em que as pessoas os integram. O estatuto
ontológico dos objectos depende da interacção de pessoas e objectos, não
podendo ser reduzido simplesmente nem a conceitos prévios nem a
propriedades materiais.
A distinção entre objectos de colecção e souvenirs não tem a ver com a
associação ao esquecimento dos primeiros e a associação dos segundos à
memória, ao contrário do que propõe Susan Stewart, mas antes com a
orientação pública e colectiva das colecções. Como a própria Susan Stewart
reconhece179, a actividade de coleccionar desenvolve-se através de uma
dialéctica entre interior e exterior, público e privado, valor afectivo e valor
comercial, memória e História. Como se verifica em relação a certos elementos
da casa-museu de Isabella Stewart Gardner, enquanto, na maior parte dos
casos, um souvenir tem um significado relacionado com associações privadas,
assumindo um valor insignificante para quem não conheça estas associações180,
179 «Não é suficiente dizer que a colecção se organiza de acordo com o tempo, o espaço ou as propriedades intrínsecas dos objectos em si, porque cada um destes parâmetros se divide numa dialéctica entre interior e exterior, público e privado, significado e valor de troca. Organizar os objectos de acordo com o tempo é justapor tempo pessoal e tempo social, autobiografia e História, e assim criar uma ficção da vida individual, um tempo do sujeito individual tanto transcendente como paralelo ao tempo histórico.» (Stewart 2007, 154.) 180 Mary Berenson, mulher de Bernard Berenson, o especialista em arte renascentista e negociante de arte que, entre outros, ajudou Stewart Gardner a reunir a sua colecção de arte, disse que esta casa lembrava mais uma loja de velharias do que um
141
os objectos de colecção implicam ou suscitam reconhecimento ou desejo de
validação públicos e colectivos. Um coleccionador que não deseja partilhar a sua
colecção é comparável a alguém que paradoxalmente opta por falar numa
linguagem privada, comunicando apenas consigo mesmo, sem qualquer
possibilidade de ser entendido. É um coleccionador ininteligível.
O caso de Isabella Stewart Gardner é particularmente interessante pelo
facto de a coleccionadora colocar ao mesmo nível souvenirs e obras de arte da
sua colecção formal, assim reforçando a noção de indistinção entre vertentes
subjectivas e privadas, e vertentes objectivas e públicas, na medida em que
considera equivalentes objectos associados a experiências privadas e obras de
arte que suscitam reconhecimento público generalizado. Esta equivalência entre
souvenirs e peças de uma colecção formal impossibilita qualquer distinção
destes objectos.
Mesmo numa casa-museu tão encenada e tão pensada até ao último
pormenor como a de John Soane, já tínhamos chamado a atenção para a
indistinção entre espaço da colecção e espaço da vida quotidiana. Neste exemplo
de Londres, não só a casa-museu continua a incluir áreas que tiveram usos
domésticos, como a própria colecção ocupa estas zonas. Outro exemplo de
sobreposição entre colecção e vida quotidiana relaciona-se com a circunstância
de os fragmentos de edifícios ou de esculturas – peças verdadeiramente
distintivas da colecção – serem usados como fonte de inspiração na actividade
museu. Mais recentemente, em 2010, Holland Cotter (http://www.nytimes.com/2010/01/15/arts/design/15museums.html?pagewanted=all&_r=0) disse que o museu lhe lembrava um sótão, o espaço onde habitualmente são arrumados os objectos que deixaram de ser úteis. É a opinião de muitos visitantes pouco familiarizados quer com a vida da coleccionadora quer com os seus objectivos ao construir o museu. Estes visitantes ficam confusos com a indistinção entre arte e vida, vida e casa, objectos e vida, souvenirs e colecção.
142
profissional de Soane e dos seus colaboradores. De modo semelhante, a casa-
museu de Isabella Stewart Gardner inclui souvenirs e objectos da vida
quotidiana da coleccionadora. Estas sobreposições permitem sugerir que os
objectos da colecção não só não podem ser desligados das restantes dimensões
da vida dos coleccionadores, como também são essenciais para a sua definição.
Se uma colecção pode ser descrita como extensão da identidade e da
existência do coleccionador, a noção de «colecção» tem de incluir tudo o que
está em seu torno – tudo o que a contextualiza e lhe dá significado.
Alasdair MacIntyre salientou181 que a inteligibilidade da identidade
humana implica a capacidade de se produzir uma descrição coerente dos
episódios e das diversas dimensões da existência individual ao longo do tempo.
Sem memória, isto é, sem a capacidade de relacionarmos o passado com o
presente em direcção ao futuro, integrando os diferentes momentos, objectos,
pessoas e espaços da nossa vida, nenhuma identidade unitária será inteligível.
No mesmo sentido, só obteremos uma compreensão do papel das colecções se
as relacionarmos com as outras dimensões da vida dos coleccionadores182.
Ao contrário de Susan Stewart, Baudrillard não afirma que uma colecção
implica necessariamente esquecimento. Em vez disso, propõe que os
coleccionadores adoptam uma perspectiva que se sobrepõe à linearidade
cronológica.
181 MacIntyre, Alasdair. [1981] 2011. After Virtue. Londres: Bristol Classical Press, 204‐225. 182 «[P]ara identificarmos e compreendermos correctamente o que alguém está a fazer, temos sempre de situar o episódio particular no contexto de uma série de histórias narrativas, histórias tanto dos indivíduos em questão como dos cenários em que estes agem e são afectados.» (MacIntyre 2011, 211.)
143
Baudrillard sugere que os coleccionadores usam os objectos para se
extraírem da irreversibilidade do tempo e das singularidades da História através
das descontinuidades temporais estabelecidas pelos anacronismos da
organização destes objectos no espaço físico e mental da colecção: «Não
podemos viver na singularidade absoluta, na irreversibilidade assinalada pelo
momento do nascimento, e é precisamente este movimento irreversível do
nascimento para a morte que os objectos ajudam as pessoas a enfrentar.» 183 De
acordo com esta perspectiva, as colecções podem ser descritas como interrupção
da irreversibilidade, pela atenção que podem chamar para as descontinuidades,
as interrupções e as diferenças, mas também as semelhanças, as sobreposições,
as coincidências e as repetições, entre o passado e o presente, através da
colocação lado a lado de objectos de proveniências diferentes nas colecções.
Neste ponto concordamos com Baudrillard. Tal como Soane constrói uma
casa-museu que sobrevive através da integração dos seus efeitos da passagem
do tempo e das suas intimações da mortalidade, os coleccionadores usam o
passado para subverterem a linearidade cronológica. Esta resistência à
irreversibilidade e à linearidade não se processa através do esquecimento do
passado, mas antes através da integração deste no presente e da sua projecção
para o futuro.
O significado dos objectos é recordado e actualizado através de novas
interacções determinadas pelas aspirações e necessidades do presente. O
passado assume assim uma presença activa no presente, contribuindo para a
construção do significado do presente enquanto é por este usado e
reactualizado. Deste modo, as colecções não podem ser desligadas da memória.
183 Baudrillard 2014, 135.
144
Pelo contrário, as colecções podem ser um sustentáculo da memória,
assegurando a presença viva e significativa do passado no presente.
Por último, a integração de recordações e souvenirs pessoais no espaço
público da colecção que se verifica na casa-museu de Isabella Stewart Gardner
consolida a noção heideggeriana de vida como processo de construção de um
território habitável através do estabelecimento de relações físicas e conceptuais
com outras pessoas e coisas.
A noção de «construção de um espaço» chama a atenção para a
necessidade de investimento pessoal activo em cada existência individual. A
identidade individual corresponde a um lugar em construção, não a uma
essência preexistente às suas acções. Para construir um espaço, cada pessoa usa
elementos materiais associados a conceitos, valores, relações sociais, definindo
a sua identidade entre as identidades das outras pessoas e das outras coisas.
Como sugere Heidegger, perceber quem alguém é ou o que alguma coisa
é implica perceber onde essa pessoa ou essa coisa estão. Por implicar a
construção de um lugar, uma colecção faz parte da procura de inteligibilidade
das pessoas em face das coisas e das outras pessoas. A ideia heideggeriana de
espaço como «acontecimento» associa-se à ideia de a identidade ser um lugar
em construção. Um lugar é um acontecimento porque resulta da interacção das
pessoas e das coisas.
Em conclusão, a articulação material de dimensões imateriais ou
conceptuais que temos vindo a assinalar a propósito de túmulos, monumentos a
santos ou heróis, gabinetes de curiosidades e práticas da «arte da memória»
permite-nos sugerir que os elementos materiais ajudam a descrever, a
concretizar e a presentificar elementos imateriais. Se isto se verifica, é porque as
pessoas tendem a compreender elementos situando-os num espaço relacional
145
que é não só físico mas também conceptual, visto que inclui também as relações
entre os elementos que nele se localizam. Esta localização facilita as actividades
de pensar e verbalizar pensamentos sobre assuntos imateriais.
A propósito dos coleccionadores dos romances The Spoils of Poynton e
The Golden Bowl de Henry James, Bill Brown184 nota como coleccionar pode
servir tanto para organizar afectos como para esclarecer os próprios
pensamentos do coleccionador. Em The Spoils of Poynton, à actividade de
coleccionar é atribuída a capacidade de canalizar anseios abstractos para
objectos particulares185. Em The Golden Bowl, Bill Brown associa a actividade
de coleccionar de Adam Verver ao desejo de tornar físicos ou concretizar
pensamentos e emoções, de modo a mais facilmente lidar com estes: «James
intensifica e expande qualquer compreensão do instinto para a acumulação [...]
representando o pensamento como modo de acumulação e assim tratando a
actividade de Adam Verver de reunir raridades europeias como a versão
meramente física de um processo mental que é em grande medida o processo de
tornar os pensamentos físicos.»186; «[é] como se a intensidade da paixão por
coleccionar dos Ververs [...] precipitasse uma capacidade para objectivar
pensamentos e emoções e para se imaginar que se lida com eles fisicamente»187.
184 Brown, Bill. 2003a. A Sense of Things: The Object Matter of American Literature. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 162. 185 Na visita que Fleda Vetch faz à casa do pai em West Kensington, este aconselha‐a a fazer uma colecção: «Não importava de quê. Ela ia sentir que isso tornava a vida mais interessante.» (citado em Brown 2003a, 163). De acordo com esta personagem, a actividade de coleccionar estabilizaria impulsos e desejos vagos, permitindo‐lhes adquirir expressão material. 186 Brown 2003a, 163‐164. 187 Brown 2003a, 165.
146
Reflectindo sobre a importância que objectos como jarros, urnas ou
outros recipientes assumiram tanto na vida das pessoas desde o início da
História como em alguma filosofia, Barbara Johnson nota que estes objectos
talvez se destaquem pela circunstância de, por conterem vazio no seu interior,
poderem dar forma ao que antes era informe188. No ensaio «A Coisa»,
Heidegger afirma a, a propósito de um vaso, que: «[a] coisidade [...] não reside
no material que o constitui mas no vazio que este abrange.»189 Nesta linha de
pensamento, os objectos podem sucessivamente conter e ir dando forma a
diferentes conceitos.
Por outras palavras, os objectos adquirem significado a partir das
conexões conceptuais e físicas que as pessoas estabelecem com eles. Para se
perceber o que é um objecto, são importantes não só as suas características
físicas e a intenção original da sua produção, mas também as práticas de que vai
fazendo parte ao longo do tempo. Appadurai190 chama a atenção para a
importância de estudar as «vidas sociais» dos objectos, em vez de se tomar em
consideração apenas a relação destes com o contexto de origem. Por implicar a
trajectória histórica dos objectos e a interacção pessoal e social das pessoas com
estes objectos, a abordagem defendida por Appadurai amplia a descrição tanto
dos objectos como das pessoas.
188 Johnson 2008, 70. 189 Heidegger, Martin. [1949] 2001. «The Thing», Poetry, Language Thought, Trad. Albert Hofstadter. Nova Iorque: HarperPerennial, 167. 190 Appadurai, Arjun. [1986] 2006. «Introduction: Commodities and the Politics of Value», The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective, Cambridge: Cambridge University Press, 3‐63.
147
Assim se explica como alguns objectos são valorizados por terem
pertencido a determinadas pessoas. Por vezes a identidade do coleccionador que
a colecção manifesta é definida através da ligação com um proprietário de um
objecto no passado. No caso de Isabella Stewart Gardner, como vimos, certas
telas foram adquiridas pela sua ligação a outros coleccionadores, como Rubens
ou Thomas Howard (duque de Arundel).
Como sugerimos na introdução desta tese, por meio de cada objecto de
colecção, o coleccionador integra-se numa «família artificial» constituída pelos
proprietários dos objectos ao longo do tempo. Assim como o património
genético de cada pessoa partilha elementos do património genético de
antepassados e familiares, não podendo ser descrito sem esta referência,
também o património de um coleccionador integra elementos dos que o
precederam enquanto proprietários dos objectos da sua colecção. Tal ligação ao
passado evidencia a dimensão colectiva e pública tanto de cada pessoa como de
cada colecção. A dimensão pública da colecção está igualmente evidente na
organização e na própria necessidade de exposição da colecção.
Como vimos constatando, na cultura ocidental há uma associação antiga
entre memória, subjectividade e materialidade. Esta associação consiste em
representar a memória e a subjectividade através de metáforas ou objectos que
lhes dão substância e as tornam comunicáveis. Objectos e metáforas materiais
não só podem representar a memória e a subjectividade como lhes dão forma
inteligível.
Como verificámos a propósito tanto da casa-museu de John Soane como
da casa-museu de Isabella Stewart Gardner, na tensão privado/público muito do
que é privado é partilhável publicamente a partir de um suporte material – um
objecto, uma casa, uma colecção. Convém, no entanto, reflectir um pouco mais
148
sobre os modos mais ou menos imperfeitos como esta partilha se processa. Esse
será o nosso objectivo nos próximos capítulos.
149
4. Coleccionadores e outras pessoas
«[A]s actividades no friso do Parténon, andar a cavalo, estar sentado, parecem dolorosamente reais no contexto deste reino transcendente [o British Museum]. Que eles tenham corpos não surpreende, mas que eles os usem como nós, sim.»
Robert Harbison191
4.1 Intersubjectividade, partilha e participação: a Fundação Menil
Este capítulo toma como ponto de partida algumas frases que a
coleccionadora Dominique de Menil192 escreveu no prefácio do catálogo da
sua colecção. Dominique de Menil (1908-1997) era filha de Louise Delpech
Schlumberger e Conrad Schlumberger, físico que inventou um mecanismo
electromagnético capaz de detectar depósitos subterrâneos de petróleo e fundou
com o irmão uma empresa de extracção de petróleo que gerou uma grande
fortuna. Em 1931 Dominique casou com o banqueiro Jean de Menil (1904-
1973), que viria a assumir a presidência da empresa da família e a partilhar o
entusiasmo de Dominique pela arte e pelas colecções193.
191 Harbison, Robert. [1997] 2000. Eccentric Spaces. Cambridge, MA e Londres: The MIT Press, 148. 192 Para mais informação biográfica, ver Gere, Charlotte e Marina Vaizey. 1999. Great Women Collectors. Londres: Philip Wilson Publishers, 185‐190. Sobre as actividades da Fundação Menil, ver o interessante Smart, Pamela G. 2010. Sacred Modern: Faith, Activism, and Aesthetics in the Menil Collection. Austin: University of Texas Press. 193 De assinalar que são conhecidos muitos outros casais de coleccionadores importantes nos Estados Unidos durante os século XX: Robert (1917‐1986) e Ethel Scull (1921‐2001); Burton (1901‐1991) e Emily Tremaine (1908‐1987); Paul (1907‐1999) e Rachel «Bunny» Mellon (1910‐2014); Charles (1895‐1986) e Jayne Wrightsman (1919); Donald (1909‐1966) e Mary Hyde (1912‐2003); Victor (1913‐1987) e Sally Ganz (1912‐1997); e Dorothy (1935) e Herb Vogel (1922‐2012), entre outros. (Para mais informações sobre estas colecções, ver Stourton, James. 2002. Great Collectors of Our
150
Dominique de Menil foi educada como protestante mas converteu-se ao
catolicismo em 1932. O ethos humanista das suas actividades como
coleccionadora relaciona-se não só com o interesse do casal pela defesa do
ecumenismo inspirador da obra e das actividades do padre Yves-Marie-Joseph
Congar (1904-1995), mas também com a orientação e o incentivo do padre
dominicano Marie-Alain Couturier (1897-1954), grande defensor da presença de
arte em espaços religiosos194.
Os Menil emigraram para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra
Mundial, na sequência da ocupação nazi de Paris. Depois de passarem por Nova
Iorque, fixaram-se em Houston, Texas, onde hoje se situa a Fundação Menil,
com sede num espaço que inclui, entre outros elementos, o Museu Menil, o
Pavilhão Cy Twombly (concebido por Renzo Piano e terminado em 1992), a
instalação de Dan Flavin em Richmond Hall, a Capela de frescos bizantinos, e a
Capela Rothko (terminada em 1971 como espaço ecuménico, aberto a todas as
religiões). Segundo Dominique de Menil, o início oficial da Colecção Menil terá
sido em 1945, com a compra de Jean de Menil de uma aguarela de Cézanne
(Montanha, 1895). Antes de 1945, no entanto, já o casal tinha adquirido obras
de arte.
Time: Art Collecting Since 1945. Londres: Scala.) A existência de casais de coleccionadores aponta para a vertente social da actividade de coleccionar. 194 Entre outras actividades, Marie‐Alain Couturier encarregou Henri Matisse da decoração da Capela de St Paul de Vence, encomendou a Le Corbusier o projecto da Notre Dame‐du‐Haut em Ronchamp, e convidou artistas como Fernand Léger e Henri Rouault a produzir obras para a decoração de diversas igrejas francesas.
151
Escrito por Dominique de Menil, o prefácio do catálogo da Colecção
Menil195 expressa todo um programa em que a colecção, as actividades e os
espaços da Fundação Menil se relacionam com «as maiores aspirações da
humanidade». O prefácio termina com esta frase: «Os princípios estéticos e
morais que [John de Menil] defendia corporizam-se no museu e na Capela
Rothko, dois edifícios em que as aspirações mais elevadas da humanidade se
podem expressar.» A partir destas palavras, torna-se claro não só que a
actividade destes coleccionadores se rege por princípios éticos, mas também que
o interesse destes pela arte se integra nesta ética.
Este prefácio é precedido por uma reprodução do painel S. João no
Deserto, de Domenico Veneziano (circa 1445). Originalmente o painel S. João
no Deserto fazia parte da predela196 de um altar da Igreja de Santa Lucia de'
Magnoli em Florença. Esta peça chegou à National Gallery of Art de
Washington integrada na Colecção Kress, que foi doada a esta instituição. Antes
disso pertenceu a Bernard Berenson. S. João no Deserto, portanto, não pertence
e só muito dificilmente poderá algum dia vir a pertencer à Colecção Menil197.
No site da National Gallery de Washington, a imagem é acompanhada
por um comentário em que se observa que habitualmente S. João Baptista
aparece representado como homem de barba já com alguma idade e vestido de
peles de animais; nesta pintura, no entanto, S. João é representado como jovem
gracioso, modelado como uma estátua da Antiguidade clássica, no momento em
195 Menil, Dominique de. 1987. Prefácio a The Menil Collection: A Selection from the Paleolithic to the Modern Era. Nova Iorque: Harry N. Abrams, 7‐8. 196 Conjunto de pinturas que complementam o assunto de um quadro ou painel principal e se situam na secção inferior deste. 197 A não ser, obviamente, que um dia desistamos da ideia de museus públicos e/ou as obras de arte destas instituições sejam vendidas a particulares.
152
que rejeita as roupas mundanas para optar por uma existência mais espiritual.
Esta descrição pode ser relacionada com as preocupações éticas da Fundação
Menil. Dominique de Menil admitiu que passou a ver a actividade de
coleccionar como «dever moral» por influência do padre Couturier198.
No prefácio do catálogo, sobre a peça em questão, Dominique de Menil
afirma: «Um adolescente solitário a despir-se na solidão das montanhas; uma
paisagem cinzenta com arbustos verdes-acastanhados e um relance de
vermelho-rubi escuro – a capa dele. Gosto tanto desta pinturazinha estranha e
milagrosa que a vejo como se me pertencesse inteiramente sempre que estou
diante dela. E penso que nos anos vindouros haverá aqueles, desconhecidos
para mim, que se apropriarão e ‘possuirão’ obras que adquiri.»199
No segundo passo deste prefácio que vamos comentar, Dominique de
Menil refere uma das motivações para o projecto do museu da Fundação Menil,
construído para expor a colecção: «À medida que a ideia de um museu ia
tomando forma, sonhei preservar alguma da intimidade na minha relação com
as obras de arte.»200
Nestas frases, Dominique de Menil fala, em primeiro lugar, de uma
relação específica com um objecto que não lhe pertence materialmente, e, em
segundo lugar, de um desejo de partilha do mesmo tipo de relação com outras
198 «Durante muitos anos senti que comprar arte era uma acção ligeiramente condenável, que envolvia demasiado prazer, era demasiado hedonista. O padre Couturier fez‐nos perceber que comprar arte sempre que pudéssemos era quase um dever.» (Citado em Smart 2010, 72.) «Bem, nem só de pão vive o homem e a arte tem um valor redentor. Veja‐se os grandes artistas. Podem ser difíceis, dissolutos, mas nunca são ignóbeis e, na sua busca pela perfeição, aproximam‐se mais das verdades eternas do que pessoas pretensamente mais piedosas. Por isso somos coleccionadores sem culpa.» (Citado em Smart 2010, 73.) 199 Menil 1987, 7. 200 Menil 1987, 7.
153
pessoas. Estas frases contrariam a maior parte das descrições de coleccionador
na literatura sobre o tópico, que apontam a ganância material (o desejo
descontrolado de acumular coisas) como um dos traços principais da actividade
de coleccionar. É importante pensar na noção de colecção em questão nestas
frases201. A relação de que a coleccionadora fala é um pouco inesperada na
medida em que desvaloriza a ideia de posse material e se apoia numa noção de
humanidade.
Seria de esperar que para explicar o papel das colecções na vida das
pessoas fosse necessário descrever a importância das relações entre pessoas e
coisas, mas, quando consideramos as vertentes mais públicas e sociais das
colecções, torna-se claro que também é necessário descrever o que liga as
pessoas entre si. Além de falarmos de subjectividade e de objectos, precisamos
de falar sobre intersubjectividade.
As colecções são modos de fazer sentido e, assim como não podemos ser
humanos sozinhos, não podemos fazer sentido sozinhos. Sentido e humanidade
são processos que implicam construção, partilha e reciprocidade.
As representações tradicionais dos coleccionadores associam-nos à
ganância material e à obsessão pela aquisição. As frases de Dominique de Menil
sugerem uma noção de posse e uma noção de colecção mais amplas do que as
habituais. A identificação de Dominique de Menil com o painel de Domenico
Veneziano dispensa a posse material. A circunstância de a coleccionadora
referir, além disso, que imagina a possibilidade de alguns dos visitantes da sua
colecção sentirem o mesmo em relação a algumas peças da Colecção Menil
201 O meu objectivo não é interpretar estas frases à luz da biografia da coleccionadora, mas sim explorar questões mais gerais, relacionadas com o tópico desta tese.
154
demonstra que neste prefácio e nesta colecção o desejo de posse material de
objectos ou de obras de arte não é o mais importante.
Enquanto coleccionadora, Dominique de Menil é um caso distinto do do
coleccionador de Callot202 referido pelo moralista francês Jean de La Bruyère
(1645-1696) em Les Caractères/Os Caracteres203. Em ambos os casos está em
questão a ausência de um elemento numa colecção, mas enquanto o
coleccionador descrito por La Bruyère confessa que não poderá descansar
enquanto não adquirir a única gravura de Callot que lhe falta, ainda que não lhe
atribua grande valor artístico, Dominique de Menil descreve esta lacuna como
ampliação da sua colecção pessoal. Para esta coleccionadora, a posse material
do painel S. João no Deserto parece menos importante do que a relação que
com ele mantém.
La Bruyère integra-se na tradição que considera condenável o interesse
por colecções. Na secção 47 de Les Caractères, intitulada «Da moda», La
Bruyère enumera depreciativamente vários tipos de coleccionadores,
associando-os à curiosidade, à ganância material, ao desregramento dos desejos
e à moda: «A curiosidade não é um gosto pelo que é bom ou belo, mas pelo que
é raro, único, pelo que se tem quando os outros não o têm. Não se trata de um
apego ao que é perfeito, mas ao que é actual, ao que está na moda. Não é um
divertimento, mas uma paixão, e às vezes tão violenta que não cede nem ao
amor nem à ambição a não ser pela pequenez do seu objecto. Não é a paixão que
202 Desenhista e gravador a buril e água‐forte francês, Jacques Callot (1592‐1635), à semelhança de La Bruyère, interessou‐se muito por certos tipos pitorescos da sociedade de então, como soldados, mendigos, ciganos, artistas e cortesãos. 203 La Bruyère, Jean de. 1688. Les Caractères ou les Moeurs de ce siècle. Paris: Éd. Estienne Michallet. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/17980/17980‐h/17980‐h.htm.
155
se sente pelas coisas raras e actuais, mas aquela que se sente apenas por uma
determinada coisa rara e que portanto está na moda.»
Nesta secção, La Bruyère aponta dois problemas principais à actividade
de coleccionar. Em primeiro lugar, a superficialidade do impulso para a
acumulação. Na sua perspectiva, a acumulação sucessiva que caracteriza a
actividade dos coleccionadores impede o aprofundamento e a reflexão. Na
colecção de coleccionadores de La Bruyère, a figura daqueles que se
caracterizam pela «intemperança do saber», adquirindo sucessivamente
conhecimentos de diversas áreas, mas preferindo «saber muito» a «saber bem»,
ajuda a descrever esta superficialidade: «Alguns por intemperança do saber, e
por não conseguirem renunciar a qualquer tipo de conhecimento, procuram
todos sem possuir nenhum: preferem conhecer muito a conhecer bem e serem
fracos e superficiais em diversas ciências a serem seguros e profundos numa só.
[...] [S]ão vítimas da própria curiosidade e não são capazes de se extrair de uma
ignorância crassa a não ser através de esforços longos e penosos. [...] Essa gente
lê todas as histórias e ignora a História; folheia todos os livros sem conhecer
nenhum […].»
Em segundo lugar, La Bruyère insurge-se contra a falta de valor
intrínseco dos objectos de interesse dos coleccionadores. Na sua perspectiva, os
coleccionadores interessam-se por objectos menores («la petitesse de son
objet») que se distinguem apenas pela raridade ou invulgaridade. Parece estar
em questão uma distinção entre objectos supostamente com valor intrínseco,
associados ao bom e ao belo, e objectos sem qualquer valor a não ser aquele que
lhes é atribuído pela moda e pela curiosidade dos coleccionadores. Para La
Bruyère, o valor verdadeiro não é condicionado pela interacção de pessoas e
objectos. Ao mesmo tempo, sobressai a ideia de que os coleccionadores
156
adquirem certas coisas para que outras pessoas não possam usufruir delas («um
gosto [...] que se tem quando os outros não o têm»).
Entre os exemplos referidos em Les Caractères, o caso do coleccionador
de gravuras de Callot é interessante para nós na medida em que parece de
algum modo próximo da situação descrita por Dominique de Menil no prefácio.
Contudo, enquanto para Dominique de Menil a ausência de um objecto não se
traduz no desejo obsessivo da aquisição da peça em questão, o coleccionador de
Callot confessa que a obsessão com a lacuna na sua colecção é tão intensa que
lhe afecta a saúde: «Sofro – continua ele – de uma aflição da sensibilidade que
me obrigará a renunciar às estampas até ao fim dos meus dias: tenho tudo do
Callot, excepto uma obra, que, para dizer a verdade, não é uma das suas
melhores; pelo contrário, é uma das obras menores, mas que completaria a
minha colecção: tento há vinte anos conseguir esta estampa e desespero por não
conseguir: é tão duro!»
O caso do coleccionador de Callot ajuda La Bruyère a ilustrar o seu
retrato da actividade de coleccionar como patologia relacionada com um
interesse incompreensível por objectos desprovidos de valor autónomo. O
próprio coleccionador em questão admite que a gravura não faz parte das obras
maiores do artista. O único valor desta peça parece derivar de ser a única que
lhe falta para completar a sua colecção de Callot – trata-se de um valor
meramente relacional, subjectivo e contingente, portanto.
Em contraste, Dominique de Menil não expressa contrariedade em
relação à impossibilidade de integrar S. João no Deserto na sua colecção. O
exemplo desta coleccionadora serve para demonstrar uma questão importante
sobre a actividade de coleccionar. Descrever a actividade de coleccionar, como
faz La Bruyère, como mero impulso para a aquisição sucessiva e egoísta, sem
157
referir a vontade de partilha da colecção, é produzir uma descrição incompleta
desta actividade.
A propósito do coleccionador de Callot descrito por La Bruyère, Jean
Baudrillard204 tece alguns comentários interessantes sobre o papel das lacunas
nas colecções. Segundo este ensaísta, as lacunas desempenham um papel
positivo nas colecções na medida em que constituem um elo de ligação entre
coleccionador e universo exterior à colecção, através do qual o coleccionador
recorda a sua própria objectividade e a ligação entre o mundo exterior e a sua
consciência205.
Baudrillard, no entanto, nunca abdica de uma descrição de colecção
como linguagem privada, como mecanismo através do qual o coleccionador
constrói um sistema de sentido desligando os objectos do seu uso e das suas
funções habituais, para os submeter à lógica semântica do conjunto de que
passam a fazer parte. Segundo Baudrillard, esta semântica estaria subordinada
meramente ao sujeito e às relações estabelecidas por cada objecto com os outros
dentro do mesmo conjunto.
O coleccionador de Callot ilustra esta descrição de coleccionador de
Baudrillard. O valor da gravura em falta é determinado pelo lugar que esta
ocuparia na série de que faz parte, não por «propriedades intrínsecas».
Podemos discutir, no entanto, se só este coleccionador atribui tal valor à gravura
em falta. É sabido que uma série completa tem habitualmente mais valor de
mercado, se não maior valor de estudo, como o próprio Quatremère de Quincy
204 Baudrillard 2014, 130. 205 «É preciso perceber se as colecções são para serem terminadas e se a lacuna não desempenha um papel essencial, também positivo, enquanto meio através do qual o sujeito reapreende a própria subjectividade.» (Baudrillard 2014, 130.)
158
reconhece206. Enquanto o coleccionador partilhar o mesmo universo de
inteligibilidade e o mesmo espaço com outros seres humanos, não lhe será
possível construir um sistema semântico totalmente alheio ao universo
supostamente exterior à colecção. Mesmo que o significado e o valor dos
objectos seja afectado pelo conjunto de que fazem parte, o valor e o significado
dos objectos nunca se desligam totalmente do universo exterior à colecção.
Reforçamos, portanto, a nossa discordância relativamente a afirmações
como «qualquer que seja a abertura de uma colecção, há nesta um elemento
irredutível de não-relacionamento com o mundo» e «o coleccionador procura
reconstituir um discurso transparente a si próprio, de que detém os
significantes e cujo referente é ele próprio.»207 Mesmo se o referente fosse o
próprio coleccionador, este faz parte do universo material que habita e do
universo de sentido que partilha com as outras pessoas no mesmo espaço.
A propósito das Investigações Filosóficas de Wittgenstein, Stanley Cavell
observa: «Penso que uma das lições das Investigações como um todo pode ser
esta: o facto, e o estado, da nossa vida (interior) não pode retirar a própria
importância de qualquer coisa especial nela. Por muito que se pense nisso,
descobrimos que o que é comum está lá antes de nós.»208
206 Em Cartas a Miranda, Quatremère nota que a obra de Rafael só poderia ser correctamente avaliada e estudada no contexto da colecção completa das produções deste artista. Só deste modo seria possível perceber a evolução do artista. Para Quatremère, o conhecimento e a apreciação da arte baseiam‐se na análise informada e na comparação de obras de uma série ou de um conjunto, nunca individualmente: «avaliamos sempre por relação e comparação» (Quatremère 1796, 42, Carta IV). 207 Baudrillard 2014, 149. 208 Cavell, Stanley. 1979. The Claim of Reason: Wittgenstein, Skepticism, Morality, and Tragedy. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 361.
159
De acordo com Cavell, enquanto seres humanos racionais, partilhamos
um ponto de vista racional. Com os outros seres humanos estabelecemos
relações de reciprocidade em que reconhecemos a humanidade dos outros a
partir da nossa própria humanidade e vice-versa: a nossa identificação de
alguém, incluindo nós mesmos, como ser humano é uma identificação com
alguém. Aprendemos a ser quem somos definindo-nos em relação aos outros –
por proximidades ou distâncias209. Cavell chama a atenção para o terreno em
comum entre as pessoas, salientando que o colectivo e o partilhado são
anteriores ao distintivo e ao individual. De acordo com esta perspectiva, o
individual é constituído a partir deste terreno comum.
No que diz respeito à importância da intersubjectividade na constituição
da subjectividade, portanto, Cavell está próximo de Davidson, visto que, como
notámos no primeiro capítulo, também Davidson defende que o
desenvolvimento do autoconhecimento depende da interacção com outras
pessoas e da compreensão dos seus processos subjectivos210.
209 MacIntyre aborda a mesma questão, colocando a ênfase na inteligibilidade: «A minha capacidade de perceber o que o outro está a fazer e a minha capacidade para agir inteligivelmente (tanto perante mim como perante os outros) são uma e a mesma capacidade.» (MacIntyre, Alasdair. 2006. «Epistemological crises, dramatic narrative, and the philosophy of science», The Tasks of Philosophy: Selected Essays, Vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 4.) 210 «[A concepção filosófica de subjectividade que cria um hiato lógico entre o meu mundo e o mundo tal como surge aos outros] propõe que o subjectivo é anterior ao objectivo, que há um mundo subjectivo anterior ao conhecimento da realidade externa. É evidente que a imagem do pensamento e do significado que aqui esbocei não deixa espaço para tal prioridade visto que implica o autoconhecimento no conhecimento de outras mentes e do mundo. O objectivo e o intersubjectivo são portanto essenciais para aquilo a que possamos chamar subjectividade e constituem o contexto em que esta toma forma.» (Davidson 1991, 165.)
160
O ponto de partida de Stanley Cavell é a filosofia de Kant. Em
Fundamentos da Metafísica da Moral211 (1785) Kant descreve as pessoas como
membros de dois mundos: o mundo da Natureza e o mundo da razão. Na
primeira dimensão, as pessoas submetem-se às leis da Natureza (à biologia, à
física, à química, etc.). Graças à segunda dimensão, no entanto, podem usar a
razão para impor uma ordem no mundo da Natureza e desenvolverem a própria
liberdade de escolha. A razão permite aos seres humanos tomar opções de modo
relativamente livre após reflexão – opções não determinadas pelas leis da
Natureza. (Como diz Jorge de Sena, «nós somos o que nega a Natureza»212.)
Segundo Kant, esta segunda dimensão distingue-nos enquanto seres humanos.
De acordo com esta perspectiva, as escolhas das pessoas são realizadas
neste universo de inteligibilidade governado pela razão. Todas as escolhas são
realizadas, por conseguinte, de acordo com razões partilháveis. Não há senão
razões partilháveis.
A capacidade de optar livremente pode ser descrita como aptidão para
gerar diversidade e para criar novas possibilidades – por oposição à linearidade
determinista da Natureza. E se, como nota Christine Korsgaard213, a
humanidade se distingue precisamente por esta capacidade de gerar
diversidade e novas possibilidades – isto é, de fazer coisas que outros seres vivos
não conseguem fazer ou de fazer as mesmas coisas de outros modos – , valorizar
211 Kant, Immanuel. [1785] 2006. Groundworks of the Metaphysics of Morals. Trad. e ed. Mary Gregor. Cambridge: Cambridge University Press. 212 Sena, Jorge de. «A Morte, O Espaço, A Eternidade», Sena, Jorge de. [1999] 2001. Antologia Poética. Porto: Edições Asa, 115‐119. 213 Korsgaard, Christine M. 2005. «The Dependence of Value on Humanity», Raz, Joseph. [2003] 2005. The Practice of Value: With Commentaries by Christine M. Korsgaard, Robert Pippin, Bernard Williams. Oxford: Clarendon Press, 63‐85.
161
interesses e escolhas individuais consolida a razão e a cultura. Se reconhecemos
e construímos a nossa própria humanidade a partir da humanidade dos outros,
ser humano implica conhecer, respeitar e partilhar as escolhas racionais dos
outros seres humanos, vistos como fins em si mesmos.
Deste ponto de vista, ao contrário do que La Bruyère sugere em Les
Caractères, os interesses individuais dos coleccionadores, por muito privados
ou incompreensíveis que à primeira vista pareçam, podem ser descritos não só
como manifestações de humanidade, mas também como expressões da
capacidade cultural humana de descobrir novas possibilidades de interesse e de
valor.
De acordo com a perspectiva de Korsgaard, La Bruyère deveria ser
descrito como «realista objectivo»: «Uma interpretação de um Realista
Objectivo do valor de escalar montanhas, ou de coleccionar selos ou moedas ou
arame farpado, ou de ser um excelente jogador de bowling ou de bilhar, não é
muito atraente. Nem o será, penso, uma interpretação do valor de um bom livro
sobre a ética de Kant. Não estamos a falar de valores intrínsecos, já existentes
no universo, que descobrimos, mas sim de expressões da nossa capacidade
distintivamente humana de nos interessarmos ou de encontrarmos alguma
coisa interessante no que nos rodeia. Partilhar os objectivos uns dos outros, ou
pelo menos admitir que estes podem ser partilhados, é vê-los como expressões
dessa capacidade, e portanto como expressões da nossa humanidade
partilhada.»214 Em contraste com La Bruyère, Korsgaard defende uma
perspectiva intersubjectivista segundo a qual o valor das coisas não é descoberto
mas sim construído com base na partilha de valores subjectivos.
214 Korsgaard, Christine M. [1996] 2000. Creating the Kingdom of Ends. Cambridge: Cambridge University Press, 290.
162
A perspectiva de Korsgaard não implica que somos obrigados a promover
os interesses individuais de todas as pessoas, mas sim que temos de encarar os
fins e os interesses dos outros como susceptíveis de merecer o nosso interesse e
a nossa participação215. Temos de admitir a possibilidade de, a partir do
encontro com os interesses dos outros, descobrirmos em nós o desejo de os
partilhar. Nesta relação de reciprocidade a partir da qual a humanidade se
constitui, é através da partilha de valores, interesses, razões e objectos que as
pessoas se vão definindo individualmente.
Quase no fim do ensaio «Três Tipos de Conhecimento», também
Davidson propõe um ponto de vista semelhante: «não quero sugerir que não
possamos entender aqueles com que discordamos relativamente a vastas
questões físicas e morais. É também o caso que a compreensão é uma questão
de grau: outros podem conhecer coisas que não conhecemos, ou até talvez coisas
que não possamos conhecer. O que é certo é que a clareza e a eficácia dos nossos
conceitos crescem com o crescimento da nossa compreensão dos outros. Não
existem limites definitivos a quão longe o diálogo pode ou poderá levar-nos.»216
Nas frases citadas do prefácio de Dominique de Menil parece estar em
questão esta mesma relação de reciprocidade entre seres humanos. Dominique
de Menil admite que as pessoas no exterior da colecção podem estabelecer com
os elementos da colecção uma relação de intimidade tão próxima como a do
próprio coleccionador se os integrarem na sua própria consciência e
215 Como diz Stanley Cavell: «Uma sociedade saudável não pode depender da aprovação mútua dos desejos uns dos outros, mas depende realmente de uma certa capacidade e disponibilidade para nos tornarmos compreensíveis uns aos outros. Neste ponto a ideia de colecção pode desempenhar um papel essencial.» (Cavell, Stanley. 2005. «The World as Things», Cavell, Stanley. 2005. Cavell on Film. Ed. William Rothman. Albany: SUNY, 262.) 216 Davidson 1991, 165.
163
subjectividade – como aconteceu com a própria Dominique de Menil em relação
a um objecto que não fazia parte da sua colecção concreta.
O elemento mais importante da relação entre pessoa e objecto da
colecção não é a posse, mas uma dimensão de sentido ou inteligibilidade,
partilhada por coleccionador e visitantes da colecção, em que há possibilidade
de participação nos mesmos objectos de interesse. Partilhar objectos de
interesse consolida as relações humanas – mais do que isso, é indissociável da
forma de vida humana. Não há humanidade sem esta partilha de interesses. Ser
humano é estar em relação. Aprende-se a ser humano graças a esta relação de
reciprocidade.
Para Dominique de Menil, os objectos da colecção são importantes
porque permitem o estabelecimento de relações – tanto entre pessoas, como
entre pessoas e universo material. É por permitirem o estabelecimento de
relações – relações com outros objectos, com o coleccionador, com os visitantes
da colecção, entre coleccionadores, entre pessoas e universo material – que os
objectos se tornam valiosos. Trata-se de uma concepção de colecção diferente
daquelas propostas por Baudrillard e por La Bruyère e próxima da perspectiva
intersubjectivista de Christine Korsgaard.
Como constatámos no terceiro capítulo, Baudrillard descreve uma
colecção como circuito semântico fechado do coleccionador para si próprio.
Entre as perspectivas de La Bruyère e de Dominique de Menil há ainda mais
pontos de discórdia. De acordo com Dominique de Menil, coleccionar não se
relaciona directamente com o interesse por coisas raras ou únicas que se tornam
valiosas pela circunstância de poucas pessoas terem acesso a elas, ao contrário
do que defende La Bruyère, mas antes com o interesse por objectos partilháveis
que podem assumir igual importância na vida de outras pessoas.
164
Não se pode então dizer, como La Bruyère, que a ganância material é um
dos traços mais distintivos dos coleccionadores. Do mesmo modo, acusar, como
La Bruyère, os coleccionadores de superficialidade por acumularem
sucessivamente objectos ignora a complexidade da relação estabelecida entre
coleccionador e objectos de colecção – uma relação que implica investimento
subjectivo e intersubjectivo.
Pode-se dizer que tanto La Bruyère como Dominique de Menil
reconhecem a importância do estabelecimento de relações na determinação do
valor dos objectos de uma colecção, mas enquanto o primeiro o faz de modo
depreciativo, apontando a ausência de propriedades intrínsecas nos objectos de
colecção, para Dominique de Menil é por permitirem o estabelecimento de
relações que os objectos se tornam valiosos. Como defende Davidson e como
adiante aprofundaremos com Dewey, o valor deste estabelecimento de relações
reside na possibilidade de expansão da consciência individual.
Para Dominique de Menil, a obra de Domenico Veneziano é tão
importante que a coleccionadora inclui uma reprodução desta num lugar de
destaque no catálogo da sua colecção. Apesar de esta obra não pertencer
materialmente à coleccionadora, este gesto parece indicar que nenhuma
descrição da Colecção Menil estaria completa sem incluir esta peça.
A coleccionadora afirma: haverá aqueles, desconhecidos para mim, que
se apropriarão das obras que adquiri, como me aconteceu em relação a S. João
no Deserto. Estas pessoas poderão relacionar-se com estes objectos de modo
equivalente ao da coleccionadora porque partilham com ela um terreno comum
de humanidade e de sentido em que o que são é indissociável da sua relação
com determinado(s) objecto(s).
165
Quando admite a possibilidade de outras pessoas desenvolverem relações
semelhantes com peças da sua colecção, Dominique de Menil partilha com
Stanley Cavell a noção de que há um terreno comum entre todas as pessoas que
lhes permite relacionarem-se de modo comparável com objectos valorizados por
cada pessoa individualmente. Não está em questão neste prefácio a ideia de
repetição da relação particular da coleccionadora com o painel de Veneziano ou
com outra peça da colecção, mas sim a possibilidade de novas relações
particulares com os objectos da Colecção Menil, a partir da ideia de que todos os
indivíduos se relacionam de modo semelhante com as coisas porque aprendem
com as outras pessoas a viver e a ser quem são. As características particulares
das relações de cada indivíduo com o que o rodeia desenvolvem-se a partir deste
terreno comum. Depois de determinado objecto ser integrado numa percepção
individual, o significado deste torna-se particular.
Em Art as Experience217, John Dewey propõe uma noção de humanidade
assente na importância do estabelecimento de relações e semelhante àquela que
vimos explorando, por um lado, a partir dos textos de Kant, Christine Korsgaard
e Stanley Cavell, por outro a partir das actividades da Colecção Menil. Dewey
ajuda a esclarecer a noção de terreno comum entre as pessoas. A importância
que o estabelecimento de relações assume na filosofia de Dewey ajuda-nos a
clarificar a relação tanto entre coleccionador e outras pessoas, como entre
coleccionador e universo material.
Art as Experience é um livro ainda hoje importante no contexto
museológico americano. Este ensaio pode ser considerado essencial para a
compreensão da actividade dos coleccionadores, circunstância a que não será
217 Dewey 2005.
166
alheio o facto de ter sido desenvolvido em associação com a actividade e a obra
escrita de um coleccionador: Albert Barnes. John Dewey não só manteve uma
longa relação de amizade com Albert Barnes, como também reconhece no
prefácio deste livro a importância das conversas que teve com este
coleccionador para a construção dos seus argumentos218.
Para Dewey, a arte e a cultura constituem dimensões inalienáveis da vida
das pessoas. Logo no início de Art as Experience, Dewey salienta que um dos
seus objectivos é demonstrar que existe continuidade entre a arte e a vida
quotidiana219. Para Dewey, é possível ter experiências estéticas sem arte220. A
experiência estética requer uma atenção por vezes ausente na vida quotidiana,
mas que Dewey considera tão elementar que a compara à dos animais: «O
animal em acção está completamente presente, inteiramente ali, em cada uma
das suas acções [...]»; «[a] arte é a prova viva e concreta de que as pessoas são
capazes de recuperar conscientemente, e portanto no plano do significado, a
218 «A minha maior dívida é para com o Dr. A. C. Barnes. Ele viu todos estes capítulos um a um e ainda assim o que devo aos comentários e às sugestões que fez é apenas uma pequena parte desta dívida. Beneficiei de conversas com ele ao longo de vários anos, muitas das quais ocorreram perante a inigualável colecção de pintura que reuniu. A influência destas conversas, assim como a dos livros que escreveu, foi um factor fundamental no desenvolvimento do meu próprio pensamento sobre estética.» (Dewey 2005, viii.) 219 «A arte é remetida para um reino separado, onde é desligada da associação com os materiais e os objectivos de qualquer outra forma de esforço, empreendimento e concretização humana. Impõe‐se assim uma tarefa prioritária àquele que decide escrever sobre a filosofia das belas artes. Esta tarefa é reforçar a continuidade entre as formas de experiência refinada e intensificada que são as obras de arte e os acontecimentos, feitos e sofrimentos da vida de todos os dias que universalmente se reconhece constituírem a experiência.» (Dewey 2005, 3.) 220 «Tentei mostrar neste capítulos que o estético não é um intruso na experiência [...] mas sim o desenvolvimento mais claro e intenso das características que pertencem a todas as experiências normalmente completas» (Dewey 2005, 48.)
167
união do sentido, da necessidade, do impulso e da acção característicos das
criaturas vivas»221.
O que distingue uma experiência estética, segundo Dewey, é a unidade
entre os seus diversos componentes222. Na unidade que caracteriza este tipo de
experiência, a ideia de relação é fundamental223. O sentido é construído através
do estabelecimento de relações, sendo estas relações descritas por Dewey como
«acções e reacções em que algumas coisas são transformadas»224. Por via das
relações estabelecidas no processo de percepção estética, também as pessoas
expandem a sua consciência através da imaginação.
A importância que Dewey atribui ao estabelecimento de relações tanto na
criação artística como na percepção chama a atenção para a vertente
transformativa da experiência estética. De acordo com esta perspectiva, a
consciência individual do sujeito é transformada através tanto do processo de
estabelecimento de relações como através destas experiências.
Perceber as outras pessoas é uma questão de comunicação e participação
em valores da vida por meio da imaginação e da empatia. Este processo
estabelece uma relação previamente inexistente que pode ser descrita como
«expansão do ser humano», à semelhança do que se verifica na amizade (em
221 Dewey 2005, 18, 26. 222 «Uma experiência [estética] tem uma unidade que a identifica, aquela refeição, aquela tempestade, aquela ruptura de amizade. A existência desta unidade é constituída por uma única qualidade que permeia toda a experiência apesar da variação das suas partes constituintes.» (Dewey 2005, 38.) 223 «Uma experiência [estética] tem um padrão e uma estrutura, porque não se trata apenas de fazer ou ser afectado em alternância, ambos estão em relação [...] A relação é o que dá significado; captá‐la é o objectivo» (Dewey 2005, 45‐46.) 224 Dewey 2005, 140.
168
que «os interesses e os modos de resposta do outro se convertem numa
expansão do nosso próprio ser»)225. Para Dewey, assim, a percepção estética é
um elemento essencial da humanidade. Através do processo de interacção em
questão na percepção estética, mas não exclusivo à arte, os seres humanos
constituem-se enquanto tal, construindo e ampliando a própria humanidade a
partir da humanidade dos outros.
De acordo com Dewey, a experiência estética não se limita a permitir a
partilha de humanidade e a constituição de um universo de sentido, mas
contribui igualmente para a sensação de pertença ao mundo material: «Uma
obra de arte suscita e acentua esta qualidade de se ser um todo e de pertencer a
um todo maior, inteiramente abrangente, que é o universo em que vivemos.
Este facto, penso, é a explicação daquela sensação de inteligibilidade e
clarividência veementes que temos na presença de um objecto experienciado
com intensidade estética.» Trata-se de um movimento simultaneamente de
exteriorização e de expansão na medida em que as pessoas se definem e se
transformam em articulação com o que está fora delas: «Somos transportados
além de nós mesmos para nos encontrarmos a nós mesmos.»226
A ideia de reconhecimento da humanidade dos outros é uma das linhas
de força da actividade da Fundação Menil. A própria Colecção Menil, incluindo
antiguidades, ícones do período bizantino, arte de África e da Oceania, arte
225 Dewey 2005, 350. 226 Dewey 2005, 202.
169
ameríndia e arte europeia moderna, revela um âmbito universal, assente na
noção de humanidade partilhada227.
Um bom exemplo das actividades dos Menil é o projecto intitulado The
Image of the Black in Western Art228, financiado pela Fundação Menil entre
1960 e 2000 e a que a Universidade de Harvard deu posteriormente
continuidade. Trata-se de um projecto de recolha e publicação de
representações artísticas de africanos iniciado com o objectivo de combater o
racismo, mas relacionado com a ideia maior de defender a capacidade de
reconhecer a humanidade dos outros. De acordo com Dominique, o racismo não
seria mais do que o fracasso de reconhecer a humanidade dos outros229.
Tudo nas actividades da Fundação Menil se relaciona com as noções de
partilha e de participação. A referência a S. João no Deserto, de Domenico
Veneziano, no prefácio do catálogo da colecção tem a ver com estas noções. A
relação que Dominique estabelece com esse quadro ausente da sua colecção
depende da sua participação numa colecção que não lhe pertence.
No estudo das colecções tem havido atenção à dimensão mais individual
da actividade. Uma colecção tem sido vista como elemento importante da
identidade do coleccionador. As vertentes intersubjectivas da actividade são
igualmente importantes. No caso da Colecção Menil, a abertura aos outros, o
desejo de afectar outras subjectividades, o incentivo à acção e ao envolvimento
227 Estas ideias podem ser associadas ao conceito de «humanismo universal» defendido pelo padre Couturier (Smart 2010, 84). 228 Para mais informação sobre este projecto, consultar o site que lhe é dedicado: http://www.imageoftheblack.com/ 229 Menil, Dominique de. 1976. «Acknowledgements and Perspectives», The Image of the Black in Western Art, vol. 1: From the Pharaohs to the Fall of the Roman Empire. Ed. Ladis Bugner. Cambridge, MA: Harvard University Press, xi.
170
dos outros a partir da contemplação estética chamam a atenção para estas
vertentes.
Uma grande parte da bibliografia sobre colecções acentua os aspectos
relacionados com a aquisição. Na Colecção Menil é evidente a igual importância
tanto da preservação como da exposição. O investimento na recolha de
informação sobre os objectos da colecção relaciona-se com a consolidação da
relação entre objectos, coleccionadores e visitantes da exposição. A colecção,
além disso, foi cedida para exposições e fins pedagógicos antes da construção do
museu.
4.2 Colecções, catálogos e museus imaginários
Em contraste com os autores da tradição que descreve os museus como
espaço de alienação entre as pessoas e a arte, no prefácio ao catálogo da
Colecção Menil, Dominique refere-se à possibilidade de uma relação de
intimidade entre pessoas e arte no espaço museológico da Fundação Menil: «À
medida que a ideia de museu ia lentamente tomando forma, sonhei preservar
alguma da intimidade da minha própria relação com as obras de arte.»230
Dominique de Menil desejaria replicar no museu da Fundação Menil a
experiência de alguém que, como ela mesma, convive diariamente com arte na
sua própria casa. Em vez de passarem pelo espaço do museu como simples
visitantes, vendo a arte como algo que lhes é totalmente exterior, as pessoas
poderiam «habitar» o espaço do museu, integrando a arte na sua
autoconsciência e na sua percepção do mundo.
230 Menil Collection 1987, 7.
171
De acordo com esta perspectiva, as pessoas definem a sua identidade
pessoal e colectiva através da sua relação com os objectos, com os espaços e com
as outras pessoas no museu. Os objectos, os espaços e as outras pessoas
funcionam como coordenadas físicas e culturais que lhes permitem situar-se
quer individualmente, quer colectivamente, tanto no universo físico como no
universo cultural e social.
A frase de Dominique de Menil que refere a intimidade na relação entre
pessoas e obras de arte convoca a noção de casa-museu, um conceito muito
importante para a definição de qualquer colecção privada desde o século XIX.
Como constatámos no segundo e no terceiro capítulos, através da integração de
objectos e obras de arte em divisões como salas de jantar, salas de estar,
quartos, bibliotecas, que não são espaços museológicos tradicionais, as casas-
museus representam e solicitam uma experiência em que tudo está em relação:
arte, objectos de uso quotidiano, o espaço, o ponto de vista do coleccionador e
os visitantes. É desta partilha de intimidade na relação com os objectos de que
Dominique de Menil fala no prefácio.
À semelhança de casas-museus como a de Isabella Stewart Gardner, o
Museu Menil recusou desde o início algumas características mais «pedagógicas»
dos museus públicos, principalmente aquelas que criaram uma polarização
artificial das relações público/privado, colectivo/individual.
O Museu Menil dirige-se a indivíduos entendidos como agentes. Desde o
início, o museu da Fundação Menil foi idealizado como «conceptualização
espacial de uma série de actividades e interacções»231, isto é, como espaço
dinâmico de incentivo a uma relação activa dos visitantes com os objectos da
231 Smart 2010, 110.
172
colecção. Algumas das características que distinguem este espaço relativamente
a um espaço museológico mais linear, associado à História da arte, são as
galerias que não se desdobram sequencialmente, em sintonia com a recusa de
continuidade histórica e da subordinação dos objectos individuais a uma ideia
geral. Entre as distinções relativamente aos museus públicos cultivadas pela
Fundação Menil destacam-se também a recusa clara da acumulação de um
grande número de objectos no mesmo espaço e a rejeição de transmitir
informação histórica232.
O Museu Menil, no entanto, foi planeado numa época em que os museus
tudo faziam para se distinguir da subjectividade de visão predominante nas
casas-museus. Neste período233 privilegiava-se uma atmosfera neutra que
permitisse a contemplação descontextualizada da arte, em contraste com os
espaços sobrepovoados e sobredecorados das casas-museus, onde a arte fazia
parte de um ambiente doméstico, de acordo com a visão pessoal do
coleccionador. Os responsáveis por estes novos museus desejavam manter a
intimidade da relação entre arte e pessoas destes espaços, mas preservando-a de
acusações subjectivistas que os restringissem demasiado à esfera privada e
simultaneamente desassociassem do interesse colectivo e público a que estas
colecções aspiravam.
232 No prefácio do catálogo da colecção, Dominique de Menil observa: «Os maiores museus estão sobrecarregados de obras‐primas, todas competindo por atenção; somos bombardeados com informação que distrai da contemplação e permanece estranha à magia de uma grande pintura; «[num museu ideal][o]s visitantes nunca sofreriam de fadiga do museu» (Menil Collection 1987, 8, 7.) 233 O arquitecto Louis Kahn (1901‐1974) foi contactado para começar a trabalhar num projecto de características museológicas. Depois da morte de Kahn e do próprio Jean de Menil, deu‐se a contratação de Renzo Piano em 1980, para a tarefa mais clara de conceber um museu para albergar a Colecção Menil.
173
Neste período que se prolongou aproximadamente entre o fim da
Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 90 do século XX, os próprios
coleccionadores privados procuraram adoptar uma abordagem formalista em
relação aos objectos. O privilégio de características formais independentemente
do assunto ou da origem cultural ou histórica dos objectos articulou-se com a
constituição de colecções como as de Jean e Dominique de Menil ou a de Robert
Woods Bliss (1875-1962), que reuniam objectos aparentemente muito
diferentes, mas entre os quais era possível descrever proximidades formais,
como arte abstracta ou arte surrealista, por um lado, e esculturas anteriormente
descritas como curiosidades e artefactos coloniais, mais habitualmente expostos
em museus de História Natural, por outro. Desligados do contexto cultural e dos
usos religiosos na sua origem, estes objectos passaram a ser descritos e expostos
como arte.
Aliás, certas coincidências entre as colecções dos Menil e de Robert Bliss
ajudam a descrever algumas das tendências principais desta época. Bliss
coleccionou principalmente arte bizantina, arte pré-colombiana e arte e mobília
europeias. A relação de Bliss com a sua colecção de arte pré-colombiana deriva
de uma abordagem que privilegia as características formais dos objectos, em
detrimento do seu contexto de origem.
Em comum entre as colecções dos Menil e dos Bliss temos a diversidade
dos objectos reunidos, aliada à preocupação de construir espaços de exposição
neutros que favoreçam a contemplação das características formais das obras de
arte. Outra característica em comum é a separação explícita entre por um lado,
espaços museológicos construídos de raiz e, por outro, uma habitação com um
interior tradicional em que os coleccionadores começaram por viver com as
174
obras de arte que iam adquirindo. Em ambos os casos, o museu e a casa dos
coleccionadores são dois edifícios autónomos, ainda que próximos no espaço.
O pavilhão em que a colecção de arte pré-colombiana de Bliss está
exposta foi construído para o efeito e é um espaço neutro e sóbrio, da autoria do
arquitecto Philip Johnson, que permite uma instalação dos objectos de acordo
com a perspectiva estética ocidental que os vê como arte. Este pavilhão integra-
se num conjunto habitacional conhecido como Dumbarton Oaks, partilhando
o espaço com a casa dos Bliss e os jardins. No espaço mais doméstico da casa
estão expostos outros objectos da colecção dos proprietários.
Também o museu da Fundação Menil, concebido por Renzo Piano com
colaboração próxima de Dominique de Menil, partilha o terreno com a casa dos
Menil, concebida em 1948 por Philip Johnson. Do exterior, a casa dos Menil
parece um edifício austero e com formas geométricas depuradas que facilmente
passa despercebido. O interior da habitação, no entanto, é muito diferente. Os
Menil contrataram o designer de têxteis Charles James como decorador e o
resultado não fica atrás da decoração de muitas casas-museus, incluindo tapetes
de pele, paredes em tons pastel e mobília rococó234.
Tanto no espaço da Fundação Menil como em Dumbarton Oaks, as casas
dos coleccionadores, incapazes de se autodesvanecerem, partilham mais ou
menos discretamente o terreno com espaços museológicos mais formais e
supostamente mais neutros, como que chamando a atenção tanto para a
234 De notar que a Fundação Menil manifestou a intenção de abrir este espaço ao público pelo menos em certas ocasiões especiais, o que indicia alguma qualificação da ideia de que os espaços onde a arte é exposta e visitada devem ser neutros e com uma organização totalmente desligada de um ponto de vista subjectivo. Ver: http://www.chron.com/entertainment/article/Restoration‐of‐de‐Menil‐house‐brings‐it‐back‐to‐1512389.php (Consultado em 13 de Novembro de 2014.)
175
importância da relação entre pessoas e objectos, como para a noção de que uma
colecção representa sempre relações entre pessoas e objectos num determinado
espaço, mesmo quando estes espaços foram concebidos intencionalmente para
facilitarem uma contemplação descontextualizada da arte.
A ligação entre a casa e o museu das colecções dos Menil e de Robert
Bliss parece reforçar a ideia de que nenhuma colecção pode existir de modo
totalmente neutro235. No prefácio do catálogo da Colecção Menil, a
coleccionadora não só sublinha a importância desta relação de intimidade entre
pessoas e obras de arte mas também incentiva relações semelhantes entre não-
coleccionadores e os objectos da Colecção Menil.
Entre Dominique de Menil e Robert Bliss encontramos mais um
elemento em comum muito importante. Podemos dizer que para os dois
coleccionadores o interesse pelas características formais dos objectos se
traduziu na elaboração de catálogos. À semelhança de Dominique de Menil,
Robert Bliss teve a preocupação de preparar catálogos das suas colecções.
O catálogo da colecção de arte pré-colombiana236 de Bliss revela
elementos importantes para o estudo da relação do coleccionador com os
objectos desta colecção. Não só este catálogo foi elaborado ainda antes da
construção do pavilhão em que a colecção viria a ser exposta, mas também a
instalação da colecção no museu acabou por adoptar a abordagem seguida neste
235 Certos movimentos como as Guerilla Girls, um grupo que luta contra o sexismo e o racismo no mundo da arte, têm chamado a atenção para os efeitos discriminatórios das concepções de arte concretizadas no espaço supostamente neutro dos museus públicos. Num dos cartazes mais famosos deste movimento pergunta‐se, a propósito da presença escassa no Metropolitan de peças de artistas do sexo feminino, em contraste com o elevado número de figuras femininas representadas nas obras deste museu: «Será que as mulheres têm de estar nuas para entrar no Met?» 236 Lothrop, S. K. 1957. Pre‐Columbian Art: Robert Woods Bliss Collection. Londres: Phaidon Press.
176
catálogo, que se limita a apresentar os objectos sobre um fundo neutro de
estúdio, sem qualquer encenação. A propósito desta situação, Anne Higonnet
observa que o catálogo acabou por ser o melhor instrumento para concretizar a
visão do coleccionador em relação à própria colecção237 visto que só depois da
elaboração deste volume o coleccionador decidiu expô-la.
Num texto deste catálogo, Bliss revelou algumas da suas motivações para
a elaboração deste álbum: «Mas não encontrei um único [objecto] no país de
origem! Portanto, publicando estas reproduções poder-se-ia dizer que, de certo
modo, estou a devolvê-los aos países em que foram criados.»238 Este passo
sugere que, para Bliss, publicar reproduções dos objectos da sua colecção de
arte pré-colombiana equivale a tornar estes objectos acessíveis – às suas
culturas de origem e ao público em geral. O catálogo universaliza estes objectos,
correspondendo esta universalização, segundo Bliss, a uma restituição que, no
entanto, não tem dimensão material.
Para Dominique de Menil, o álbum foi o instrumento adequado para
descrever a relação entre pessoas e arte que considerava importante promover:
uma relação de integração da arte na própria vida e na própria identidade. O
catálogo permitiu à coleccionadora integrar na colecção um objecto que não lhe
pertencia materialmente. Deste modo a coleccionadora pôde expressar a
importância deste objecto na sua vida, uma importância equivalente ou superior
237 «Talvez, acima de tudo, um certo tipo de fotografia expressasse a sua visão da colecção.» (Higonnet, Anne. 2009. A Museum of One’s Own: Private Collecting, Public Gift. Pittsburgh: Periscope Publishing, 75.) Higonnet descreve tal abordagem fotográfica deste modo: «objectos individuais bem iluminados e isolados num cenário de estúdio», «[n]ada interferia com esta encenação de um encontro puramente visual com cada objecto. Era como se cada objecto fosse uma pintura, suficiente em si mesma, posicionada num espaço de contemplação» (Higonnet 2009, 75). 238 Bliss, Robert Woods. 1957. «Preface», Pre‐Columbian Art: Robert Woods Bliss Collection. Londres: Phaidon Press, 7, citado em Higonnet 2009, 75.
177
a objectos que integravam materialmente a sua colecção. S. João no Deserto
tem lugar de destaque no prefácio do catálogo, a seguir ao retrato da
coleccionadora, da autoria de Max Ernst, mas antes dos outros objectos da
Colecção Menil.
A fotografia e a facilidade de reprodução das obras de arte tornam mais
fácil a concretização e a partilha de um pensamento sobre arte e objectos. Certas
representações pictóricas de colecções, à semelhança do que se verifica em
algumas representações de ruínas, derivam de uma abordagem das relações
entre pessoas e objectos indissociável da imaginação e dos próprios desejos ou
preocupações tanto dos coleccionadores como dos artistas. No segundo capítulo
desta tese, a propósito da tela Charles Townley in His Library, de Johan
Zoffany (1782), observámos que algumas representações de colecções devem
ser vistas não como documento realista mas sim como projecções da imaginação
e dos desejos do coleccionador. Conforme sugerido por Dominique de Menil
através do catálogo, a Colecção Menil integra-se nesta noção de colecção como
reunião não só de objectos mas também de desejos e de relações conceptuais,
não só de elementos materiais mas também de elementos conceptuais. A
inclusão da tela de Domenico Veneziano no catálogo da Colecção Menil sugere
que a representação desta colecção não estaria completa sem esta obra
impossível de obter. Uma colecção não pode ser reduzida à soma dos objectos
por que é constituída. A colecção é sempre maior do que a sua concretização
material. Uma colecção é a concretização possível de relações, algumas das
quais são imateriais239.
239 Para um ensaio sobre a vertente mais imaterial da actividade de coleccionar, ver Tamen, Miguel. 2010. «Collecting Experiences: The Very Idea» in Collections. A Journal for Museums and Archives Professionals, Vol. 6, Número 3, Verão de 2010, 205‐214.
178
No prefácio do catálogo da Colecção Menil, uma das ideias mais
interessantes é a da possibilidade de coisas que não nos pertencem serem mais
importantes para nós do que coisas que nos pertencem. Pode ser que
experiências com conexão com o universo material sejam mais valiosas do que
experiências meramente interiores, subjectivas ou imaginárias240, mas, como
nota Dominique de Menil, certas coisas que nunca serão nossas assumem na
nossa vida uma importância mais decisiva do que muitas coisas que nos
pertencem materialmente. A noção de colecção de Dominique de Menil,
implícita também nas representações pictóricas de colecções que explorámos
principalmente no segundo capítulo, abre espaço para a inclusão no contexto de
uma colecção de experiências subjectivas relativamente a objectos
materialmente ausentes ou distantes.
Deste modo, o álbum de reproduções amplia a noção de colecção na
medida em que a liberta de condicionalismos materiais. Por este motivo, pode
ser comparado às representações pictóricas de colecções (e de ruínas) que
combinam elementos reais e conceptuais ou imaginários. Um álbum de
reproduções pode ser um instrumento para a constituição de uma colecção
ideal ou até de um museu ideal de objectos de outro modo impossíveis de obter.
Antes de iniciar formalmente a sua colecção, Isabella Stewart Gardner, por
240 «Uma experiência é valiosa, estamos a sugerir, não só em virtude do seu carácter qualitativo, mas em virtude da sua relação com o mundo, se estiver em algum tipo de relação verdadeira com este. Por exemplo, o prazer de subir ao Evereste e acreditar que isso aconteceu talvez tenha algum valor, sugerimos, mas uma experiência verídica é muito mais valiosa, isto é, fazer realmente alguma coisa é mais valioso do que imaginar que se fez alguma coisa.» (Levinson, Jerrold. 2006. Contemplating Art: Essays in Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 402‐403.)
179
exemplo, elaborou vários álbuns de recordações241 durante as suas viagens, os
quais foram posteriormente expostos no seu museu lado a lado com os objectos
da sua colecção. Para Stewart Gardner, o álbum funcionou como exercício de
antecipação da actividade de coleccionar objectos materiais242.
No caso de Robert Bliss, o catálogo ajudou-o a articular uma visão formal
da colecção e a definir uma abordagem posteriormente concretizada
materialmente num pavilhão construído para o efeito. O catálogo permitiu-lhe
fazer alguma coisa com a colecção243. A liberdade do álbum de reproduções
relativamente a limitações materiais ajudou o coleccionador a pensar sobre a
colecção e sobre o modo preferível de exposição destes objectos.
Descrevendo o seu catálogo de arte pré-colombiana como restituição
destes objectos à sua origem, Robert Bliss refere-se às vertentes imateriais ou
conceptuais das relações das pessoas com os objectos. Por motivos óbvios, Bliss
não devolve realmente os objectos à sua proveniência histórica através deste
catálogo, mas considera que reproduzi-los num catálogo é uma forma de os
tornar acessíveis e de os partilhar.
241 O site da casa‐museu disponibliza algumas imagens deste álbum: http://www.gardnermuseum.org/microsites/travelalbums/ (Consultado em 24 de Outubro de 2014.) 242 «O ensaio [da instalação museológica] de Gardner começou num meio ainda mais feminino que o interior doméstico: o álbum, que inúmeras mulheres daquele tempo usaram como forma de auto‐expressão. Foi num álbum [...] que Gardner registou pela primeira vez a resolução de procurar sentido através da arte. Ao lado de fotografias turísticas convencionais de escultura [...], copiou um passo de um conto de Hans Christian Andersen. A arte, assegurava‐lhe Andersen, conseguia transformar os despojos em beleza radiante; o acto criativo era eterno. [...] Gardner compunha álbuns parecidos com livros da História da arte, preenchidos com fotografias de obras dos Antigos Mestres. Depois passou a comprar originais em vez de fotografias e reuniu‐as num edifício em vez de o fazer num álbum.» (Higonnet 2009, 194.) 243 «[Os catálogos] realizam o desejo de se fazer alguma coisa com a colecção em vez de se permanecer inactivamente perante esta.» (Harbison 2000, 156.)
180
Uma colecção não é simplesmente a expressão material de relações
particulares que o coleccionador estabelece com certos objectos. Por um lado,
estas relações particulares são extensões ou especificações das relações
habituais entre pessoas e objectos. Por outro lado, a colecção estabelece ou
propõe possibilidades de mais relações interpessoais e entre pessoas e objectos
através da partilha de interesses de que resulta e que oferece. A partilha de
interesses assenta na vertente pública e colectiva que a colecção assume quando
exposta. Deste modo, o mais importante numa colecção não é a partilha de
relações particulares nem de experiências interiores244, mas a aposta num
terreno comum que permite às outras pessoas desesenvolverem elas próprias
relações particulares com os objectos apresentados. Não há particular sem
colectivo. Não há subjectividade sem intersubjectividade.
Tanto a Colecção Menil como a Colecção Bliss reúnem objectos de
origens e com usos originais muito diferentes, encontrando nestes semelhanças
e proximidades suficientes para que sejam descritos como arte. Esta abordagem
recorda os álbuns que André Malraux (1901-1976) elaborou e publicou a partir
da noção de «museu imaginário»245. Malraux explorou a noção de «museu
imaginário» em articulação com as potencialidades da criação de álbuns de
reproduções246. Derek Allan247 observa que não se pode dizer que a noção de
244 Um processo problemático, como constatámos no terceiro capítulo em relação à arte da memória. 245 Esta noção é explorada mais aprofundadamente em Malraux, André. [1947] 2010. Le Musée Imaginaire. Paris: Gallimard. 246 Nos livros Le Musée imaginaire de la sculpture mondiale (três volumes, 1952–54) Les Voix du Silence (1951); La Métamorphose des dieux (vol 1. Le Surnaturel, 1957; vol 2. L'Irréel, 1974; vol 3. L'Intemporel, 1976).
181
«museu imaginário» seja uma criação de André Malraux: «Para Malraux, o
museu imaginário é simplesmente um facto da civilização moderna [...]
simplesmente o contexto – o ambiente mental [...] em que agora vemos as obras
de arte»248. Malraux limita-se a explorar as possibilidades deste recurso.
O álbum de reproduções parece levar ao extremo a ideia de colecção. No
ensaio Considerações Morais, Quatremère de Quincy insurgia-se contra a
deslocalização e a descontextualização das obras de arte relativamente à sua
origem nos museus e nas colecções. Por um lado, o «museu imaginário»
tornado possível pela elaboração de um álbum de reproduções, por se ancorar
em reproduções, não depende de qualquer tipo de expropriação e não implica o
deslocamento físico das obras de arte. Por outro lado, este tipo de museu parece
radicalizar o efeito de descontextualização que tanto preocupava Quatremère.
No mesmo álbum podem ser relacionados objectos com origens geográficas e
históricas muito diferentes. A possibilidade de, através da fotografia, criar um
novo enquadramento ou destacar um pormenor nestes objectos parece criar
uma segunda descontextualização dentro da descontextualização
espaciotemporal: não só os objectos perdem a ligação à sua origem, como,
dentro do objecto, se torna possível desligar certas secções do todo de que fazem
parte.
Além de apresentar diversas objecções249 aos álbuns de Malraux, Didi-
Huberman, convidado em 2013 pelo Louvre a revisitar em cinco conferências as
247 Allan, Derek. 2009. Art and the Human Adventure: André Malraux’s Theory of Art. Amesterdão e Nova Iorque: Rodopi. 248 Allan 2009, 264. 249 Perda de «aura», anacronismos, secundarização indevida da História da arte, redução da História da arte ao fotografável, dissociação artificial entre estética e
182
propostas de Malraux250, reconhece as semelhanças entre estas técnicas e as do
cinema, destacando o uso do enquadramento, os grandes planos e o uso do
campo/contracampo. Descrever, como Didi-Huberman, os álbuns de Malraux
como «aparelho [appareillage] fotográfico e textual de um olhar»251 chama a
atenção para o modo como estes concretizam um pensamento visual. Didi-
Huberman nota também que a possibilidade de fixar fotograficamente e ampliar
pormenores assegura condições de visibilidade e percepção que no espaço físico
poderiam ser imperfeitas, representando além disso uma solução para os limites
e para as falhas da memória.
Para Malraux, ainda mais importante do que isto é a concepção de arte
que o novo tipo de organização possibilitado pelas reproduções torna possível.
Permitindo o confronto de objectos anteriormente considerados incomparáveis,
um álbum deixa ver as proximidades entre estes, contribuindo para uma visão
mais ampla e universal da arte, não confinada a limites europeus nem
complicada por problemas de propriedade e de proveniência. Nos álbuns de
Malraux, encontramos lado a lado reproduções de pinturas canónicas,
esculturas de catedrais, artefactos de culturas ditas primitivas, originalmente
com uso exclusivamente religioso. Malraux vê todos como arte.
Ficamos com uma noção universalista de arte, que, ainda que vulnerável
a objecções semelhantes àquelas que Didi-Huberman aponta, abrange
política, adopção de um ponto de vista omnisciente, sem qualquer contemplação por particularidades antropológicas, visão da arte como absoluto eterno, entre outras. 250 O resultado deste trabalhado foi publicado em Didi‐Huberman, Georges. 2013. L’Album de l’art à l’époque du «Musée Imaginaire». Paris: Éditions Hazan. 251 Didi‐Huberman 2013, 68.
183
diferentes tipos de objectos, uma grande parte dos quais foram criados ao longo
do tempo sem quaisquer intenções artísticas.
Malraux engloba os objectos de culto religioso na arte porque vê tanto a
arte como a religião enquanto estratégias humanas de construção de sentido em
face da irracionalidade da Natureza. À semelhança de Kant, Malraux percebe o
universo como arbitrário e contingente. Também para Malraux, a humanidade
constrói possibilidades de sentido. Assim como Kant fala da construção da
liberdade humana relativamente às leis da Natureza através do uso da razão
num universo de inteligibilidade partilhado, Malraux descreve a arte como
«antidestino». Para Malraux, o «museu imaginário», pela sua dissolução de
limites materiais, seria o meio privilegiado para a afirmação e para a partilha de
sentido através da noção de pertença à humanidade traduzida na participação
num património imaterial e, portanto, imune às contingências do destino e da
Natureza.
De acordo com a perspectiva de Malraux, os museus e as colecções são
espaços de afirmação de sentido, de autoafirmação da humanidade num
universo arbitrário e contingente – espaços em que as pessoas reconhecem a
sua pertença à humanidade através de um património partilhado. O diálogo
entre objectos possibilitado pelo «museu imaginário» converte o museu num
espaço em tudo oposto ao mausoléu ou cemitério de obras de arte de que fala
Adorno252. No prefácio do catálogo da sua colecção, Dominique de Menil fala
deste tipo de partilha de sentido e desenvolve uma noção de humanidade
igualmente presente nos ensaios de Cavell, Kant, Korsgaard e Dewey. Esta
coleccionadora e estes autores ajudam-nos a chegar a uma descrição mais
completa de colecção.
252 Adorno 1983.
184
No capítulo anterior interrogámo-nos sobre os modos como se processa a
partilha do privado no público. Neste capítulo respondemos que não só muito
do privado e individual é colectivo porque as pessoas partilham o mesmo
universo de sentido e inteligibilidade – sendo esta partilha o que distingue e
define a forma de vida humana –, mas também que o particular e o individual
são desenvolvidos a partir de um terreno comum, colectivo ou universal.
Um dos principais problemas apontados por Didi-Huberman à noção de
arte de Malraux é a perda das distinções históricas e políticas na origem dos
objectos. Para Didi-Huberman, o filme Les statues meurent aussi/As Estátuas
Também Morrem253, de Alain Resnais e Chris Marker, seria uma das
alternativas à contrapor a esta noção de arte, na medida em que explora as
diferenças antropológicas da arte africana254. Contudo, no fim de Les statues
meurent aussi ouvimos: «Os rostos da arte africana derivam do mesmo rosto
humano [...] [R]econhecemos essa promessa, comum a todas as grandes
culturas, de um ser humano vitorioso sobre o mundo»255. Também neste filme
encontramos noções de arte e de humanidade próximas não só das de Malraux
mas também do passo em epígrafe neste capítulo. Les statues meurent aussi
termina com a ideia de que apesar das distinções entre os objectos descritos
como arte, não há uma diferença decisiva nem entre aqueles que os produzem,
253 Les statues meurent aussi. 1953. Real. Alain Resnais. 254 «[A]lém dessas aparências belas, além desse álbum de família reconciliada da arte, Resnais e Marker encarregaram‐se de um verdadeiro trabalho de desmistificação e de ‘des‐museificação’ da arte. Operaram uma verdadeira politização da arte africana enquanto encenação das divisões históricas e políticas tanto do passado como do presente» (Didi‐Huberman 2013, 166.) 255 O guião deste filme pode ser consultado em Marker, Chris. 1961. Commentaires 1. Paris: Éditions du Seuil, 7‐25.
185
nem sequer no impulso para esta produção: «C’est toujours contre la mort qu’on
se bat.» É sempre contra a morte que nos batemos.
186
187
5. Intenção e valor
«[I]deias sobre separar, purificar, demarcar e punir a transgressão têm como função principal impor sistema a uma experiência intrinsecamente desorganizada. Só exagerando a diferença entre interior e exterior, em torno e abaixo, masculino e feminino, com e contra, pode um simulacro de ordem ser criado.»
Mary Douglas256
5.1 Pré-História das colecções e problemas da taxonomia
Até aqui, nesta tese, tenho explorado exemplos de colecções sem
qualquer interesse em chegar a descrições completas e definitivas de «colecção»
e «coleccionador». Mais do que definir o que é ou não uma colecção, tenho
discutido casos concretos que convidam a uma reflexão mais geral sobre a
relação entre pessoas e coisas. Não há colecção sem estas relações e é impossível
percebermos o que é uma colecção sem percebermos estas relações.
A opção de não propor inicialmente uma definição de colecção relaciona-
se também com o facto de esse trabalho já ter sido feito257 pela grande maioria
dos que escreveram sobre colecções, frequentemente com resultados inglórios,
como também já foi assinalado na literatura sobre o tópico. Num ensaio em que
reflecte sobre definições de colecção, Susan Pearce, uma das autoras que mais
256 Douglas, Mary. [1966] 2002. Purity and Danger. Londres e Nova Iorque: Routledge & Kegan Paul, 5. 257 Para uma antologia de ensaios que lidam com a questão da definição de colecção, ver Pearce, Susan M. (ed.). [1994] 2006. Interpreting Objects and Collections. Londres e Nova Iorque: Routledge. Propostas de outros autores serão comentadas ao longo deste capítulo. Num texto incluído nesse volume, a mesma Susan Pearce aborda a questão de modo aprofundado, não só traçando um panorama dos ensaios que trabalharam esta questão, mas também desenvolvendo uma reflexão alargada e original sobre o tópico.
188
escreveram sobre o assunto, salienta que coleccionar é uma actividade
demasiado complexa para ser subsumida em definições258. Ainda assim, Pearce
reconhece que pensar sobre estas tentativas de descrição nos ajuda a destacar
algumas características importantes da actividade, desde que tenhamos sempre
presentes os problemas que a própria actividade de definir acarreta259.
Perante a facilidade com que se encontra excepções para qualquer
tentativa de definição, podemos dizer que definir «colecção» é um pouco como
definir «arte». Não podemos recorrer exclusivamente às propriedades dos
objectos, temos de prestar atenção às práticas em torno destes objectos e haverá
sempre espaço para discordâncias. Tanto em relação à arte como ao que é uma
colecção parece haver uma noção universal, registada nos dicionários, em que
nos baseamos para discutir casos mais ou menos problemáticos.
É verdade que tudo seria mais fácil na vida se os comportamentos
humanos pudessem ser associados a listas de propriedades distintivas que não
deixassem espaço para dúvidas de identificação. Não sendo isso possível, temos
de aceitar que em certos casos haverá dúvidas e ambiguidades.
Podemos, no entanto, tentar clarificar a noção de colecção que temos
vindo a trabalhar, não como forma de tentar apresentar uma lista capaz não só
de calar para sempre qualquer excepção como também de anular qualquer
258 A última frase deste ensaio é: «Mas coleccionar é uma actividade demasiado complexa e demasiado humana para ser abordada sumariamente por meio de definições.» (Pearce 2006, 157‐159.) 259 «Foram tentadas várias definições do que distingue uma colecção, e ainda que a redacção de definições seja no mínimo uma actividade árida, com cada definição inevitalmente vulnerável a uma diversidade de objecções miudinhas baseadas em exemplos específicos, as definições são um modo útil de adquirir uma perspectiva tanto sobre o tópico em si como sobre o modo como tem sido abordado.» (Pearce 2006, 157.)
189
dúvida sobre o que é ou não uma colecção, mas com o objectivo de sublinhar as
conclusões mais importantes a que vamos chegando sobre o tópico.
Reflectindo sobre as descrições de objectos em La Peau de chagrin260 e
Le Cousin Pons261, de Balzac, Janell Watson262 observa que não existe
propriamente uma relação de oposição entre acumulação e colecção nestes
romances263. De acordo com Watson, uma colecção é simplesmente uma
acumulação de objectos descrita de modo positivo. Visto como acumulação, um
conjunto de objectos é encarado como um grupo de coisas reunidas por acaso,
sem fim específico. Chamar «colecção» ao mesmo conjunto de objectos
corresponde a uma legitimação e a uma atribuição de valor e de inteligibilidade:
«A acumulação é irracional, sensual e libidinal. A colecção é ordenada,
intelectual e intencional. O conceito de colecção não só justifica e legitima a
aquisição de coisas materiais que de outro seriam supérfluas, mas também lhes
fornece significado, valor e princípios de organização.»264
260 Balzac, Honoré de. [1831] 1974. La Peau de chagrin. Paris: Folio. Texto disponível em: http://fr.wikisource.org/wiki/La_Peau_de_chagrin. 261 Balzac, Honoré de. [1847] 2007. Le Cousin Pons. Paris: Folio. Texto disponível em: http://fr.wikisource.org/wiki/Le_Cousin_Pons. 262 Watson, Janell. 2004. Literature and Material Culture From Balzac to Proust: The Collection and Consumption of Curiosities. Cambridge: Cambridge University Press. 263 Vou explorar o «knowlege by description» («conhecimento por descrição») de alguns exemplos literários de colecção por acreditar que o «knowledge by acquaintance» («conhecimento directo», «conhecimento por familiaridade») dos casos reais é indissociável do seu conhecimento por descrição. Recorremos aos mesmos conceitos e às mesmas estratégias para descrevermos e pensarmos tanto sobre colecções e coleccionadores reais como sobre colecções e personagens ficcionais. 264 Watson 2004, 40.
190
Duas das grandes vantagens da permissividade da noção de colecção de
Janell Watson são, primeiro, não fazer depender a descrição «colecção» das
propriedades de um conjunto de objectos e, segundo, chamar a atenção para os
problemas de definições que, pretendendo destacar apenas os traços distintivos
das colecções relativamente a outros conjuntos de objectos, acabam não só por
perder características importantes que as colecções partilham com não-
colecções, mas também por destacar traços mais invulgares de certas colecções
ou de alguns coleccionadores, em vez de tomarem em consideração a grande
maioria das colecções pertencentes a proprietários menos excêntricos.
A proposta de Watson, contudo, revela-se vulnerável à acusação de que a
descrição «colecção» pode ser arbitrária. Por isso, vamos acrescentar-lhe uma
qualificação importante, relacionada com as noções de inteligibilidade e valor.
Estas noções chamam a atenção para a vertente intersubjectiva e pública da
colecção e contrariam a ideia de colecção como descrição arbitrária na medida
em que se articulam com a necessidade de corroboração pública desta noção.
Para clarificar a concepção de colecção que propõe, Watson refere o
exemplo da loja de antiguidades descrita no primeiro capítulo de La Peau de
chagrin. Segundo Watson, os objectos da loja convertem-se em colecção através
do olhar do narrador. Sem esta perspectiva não haveria inteligibilidade – e,
portanto, não haveria colecção – nesta acumulação de objectos.
No início da sua visita à loja de antiguidades, Raphaël Valentin vê apenas
imagens confusas e desordenadas: «Ao primeiro olhar, o estabelecimento
ofereceu-lhe uma paisagem confusa em que todas as obras humanas e divinas
colidiam. [...] O princípio do mundo e os acontecimentos do dia anterior
combinavam-se com uma bonomia grotesca. [...] Todos os países da Terra
191
pareciam ter deixado ali algum despojo das suas ciências, uma amostra das suas
artes. Tratava-se de uma espécie de estrume filosófico a que nada faltava [...]».
A inteligibilidade desta acumulação só se torna clara perto do fim do
percurso, quando o protagonista descreve os objectos na loja como uma
colecção ideal a partir da qual é possível reconstituir a História do universo265. O
conceito «História do universo» une todos os fragmentos e nesta unidade reside
a ideia de colecção. Contudo, visto que a linguagem da desordem vai alternando
com vislumbres de ordem ao longo de toda esta sequência, é claro para os
leitores que continua a haver acumulação na colecção.
Um dos momentos mais importantes deste passo é aquele em que o
naturalista Georges Cuvier (1769-1832) é invocado enquanto poeta: «Não será
Cuvier o maior poeta do nosso século? [...] [O] nosso naturalista imortal
reconstruiu mundos com ossos embranquecidos, como Cadmo reedificou
cidades com dentes, repovoou mil florestas com todos os mistérios da zoologia a
partir de alguns fragmentos de hulha, descobriu populações de gigantes na pata
de um mamute.» Neste passo sugere-se que o olhar de Cuvier é capaz de ver
através das camadas de tempo e de reconstituir o passado a partir de simples
fragmentos e de fósseis incompletos.
Apesar de Cuvier ser mais conhecido pelo seu trabalho na taxonomia,
para Balzac este naturalista destaca-se pela capacidade de reconstituir e
suscitar a imaginação do passado de modo panorâmico («Descobrindo de de
corte em corte, de camada em camada, sob as pedreiras de Montmartre ou nos
xistos dos Urais, esses animais cujos despojos fossilizados pertencem às
265 Nicole Mozet compara esta loja de antiguidades com a Arca de Noé, na medida em que seria possível reconstituir o universo a partir dos seus objectos. (Mozet, Nicole. 2001. «Le passé au présent: Balzac ou l’esprit de la collection» in Romantisme. n.º 112, vol. 31, 86.)
192
civilizações antediluvianas, a alma assusta-se quando entrevê milhares de
milhões de anos, milhões de pessoas»), não por organizar animais e plantas em
classes.
O percurso nesta loja de antiguidades torna-se inteligível quando o
protagonista passa a encarar estes objectos como Cuvier viu fósseis e
fragmentos: imaginando o contexto e as relações em que estes se integravam.
Sem esta actividade não haveria inteligibilidade completa: «Este oceano de
móveis, de invenções, de modas, de obras, de ruínas, compunha para ele um
poema sem fim. Formas, cores, pensamentos, tudo renascia ali; mas nada de
completo se oferecia à alma. O poeta tinha de terminar os esboços do grande
pintor que fizera esta imensa paleta onde os inúmeros acidentes da vida
humana eram lançados em profusão, com desdém.» Só por reconstituição
poética se completa a compreensão do fragmentário.
Se neste passo de La Peau de chagrin encontramos uma acumulação de
objectos que se converte em colecção graças ao olhar e à interpretação do
protagonista (e do narrador)266, não se pode então dizer que uma colecção é
simplesmente uma acumulação. Uma colecção não nasce nem existe
espontaneamente; tem de ser identificada ou criada por uma perspectiva
humana. Precisamos da noção de humanidade e da noção de intenção para
descrevermos a noção de colecção. Uma acumulação de objectos só poderá ser
descrita como colecção através de uma perspectiva humana que lhe atribui
inteligibilidade e valor.
266 Alguns exemplos de acumulações de objectos que não se convertem em colecções são: a descrição da loja de Krook no quinto capítulo de Bleak House; a descrição da loja de Mr. Venus no sétimo capítulo de Our Mutual Friend.
193
Por si só, qualificar «colecção» como descrição relacionada com a
atribuição de valor267 identifica a actividade de coleccionar como actividade
distintamente humana. Como lembra Joseph Alsop268, enquanto certos animais,
como alguns pássaros, produzem acumulações de objectos porque estão
programados geneticamente para reagirem desse modo perante determinados
objectos ou certas combinações de cores e padrões, os seres humanos não
coleccionam por instinto ou por programação genética, mas sim porque tomam
essa opção livremente.
O que distingue um conjunto de objectos reunidos por um animal, por
um lado, e um conjunto de objectos reunidos por uma pessoa, por outro, é a
possibilidade de atribuição de intenção complexa à pessoa. Enquanto um
animal reúne objectos por estar geneticamente programado para tal, uma
pessoa reúne objectos estabelecendo um maior número de relações complexas
entre coisas e assumindo motivações diversas. Além disso, como vimos no
quarto capítulo, podemos explorar e descrever o comportamento humano
através de mecanismos de analogia e de projecção empática. O mesmo não se
aplica ao comportamento dos animais269.
267 Como nota Susan Pearce: «A escolha é central ao processo de coleccionar; é uma palavra que expressa a sua natureza dual específica de selecção e de atribuição de valor.» (Pearce 2006, 27.) 268 Alsop, Joseph. 1982. The Rare Art Traditions: The History of Art Collecting and Its Linked Phenomena Wherever These Have Appeared. Nova Iorque: Harper & Row Publishers, 79. 269 «Se um leão fosse capaz de falar, nós não seríamos capazes de o compreender.» (Wittgenstein, Ludwig. [1953] 1995. Investigações Filosóficas. Trad. M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 596.)
194
A caracterização da actividade de coleccionar como eminentemente
humana vai ao encontro da reflexão sobre o tópico não só de Christine
Korsgaard a partir da filosofia de Kant, mas também de coleccionadores como
Dominique de Menil. Conforme assinalámos no quarto capítulo, na filosofia
kantiana, nomeadamente em Fundamentos da Metafísica da Moral, é muito
importante a distinção entre seres humanos e Natureza através do uso da razão
traduzida na liberdade de escolha e de pensamento.
Não estamos a defender que só podemos descrever um conjunto de
objectos como «colecção» se estes tiverem sido reunidos com essa intenção por
uma (ou mais) pessoa(s), mas sim que a descrição «colecção» requer uma
perspectiva humana.
Podemos ter uma colecção sem termos um coleccionador, se houver
alguém que identifique relações de sentido inteligíveis num conjunto de
objectos. É o que se verifica em relação aos objectos das casas-museus em que o
homenageado não se autodescreveu como coleccionador. Podemos atribuir o
estatuto de colecção a um conjunto de objectos reunidos por alguém que não se
descreveu como coleccionador ou até a um conjunto de objectos não reunidos
por seres humanos, assim como às vezes podemos descrever o comportamento
de uma pessoa de um modo distinto da autodescrição do mesmo
comportamento pela própria pessoa que o praticou.
A descrição «colecção» não se distingue exclusivamente pela associação à
intenção de coleccionar por dois motivos principais. Primeiro, devido às
dificuldades de fixação cronológica do início da colecção que esta associação
traria (é frequente começar-se a coleccionar de modo não-intencional).
Segundo, porque não basta um coleccionador descrever o seu comportamento
como «coleccionar» e um conjunto de objectos como «colecção» para que tais
195
descrições sejam verdadeiras, nem alguém recusar a descrição «colecção» para
o conjunto de objectos que reuniu para que tal descrição seja falsa: «A intenção
de uma pessoa ao agir não é uma coisa tão privada e interior que ela tenha
autoridade absoluta para dizer aquilo que é.»270
Quanto às dificuldades de fixação cronológica do início de uma colecção,
é preciso salientar que a intenção de coleccionar, à semelhança do que se
verifica com outras intenções humanas, precisa de tempo para se desenvolver e
revelar. Como observa Russell W. Belk, ao contrário do que muitos julgam, é
frequente o início de uma colecção ser acidental271. Em vez de alguém decidir
espontaneamente começar uma colecção dedicada a algum tema, é mais comum
esta decisão ser tomada depois de o futuro coleccionador já ter na sua posse um
ou mais objectos oferecidos ou adquiridos sem intenção prévia e inequívoca de
constituição de uma colecção.
Por este motivo, teóricos como Mieke Bal insistem nas ideias de que o
início de uma colecção é «pré-histórico» e de que uma colecção começa quase
sempre in media res272, visto que antes de uma colecção começar oficialmente já
270 Anscombe, Elizabeth. [1957] 2000. Intention. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press, 36. 271 «Em contraste com a sabedoria tradicional, as nossas descobertas e as de Johnston Beddow (1986) indicam que as colecções de um tipo particular de objecto frequentemente têm um início acidental ou informal. [...] Para muitos, um presente [...] ou uma descoberta aparentemente feliz de um objecto […] é o início de uma colecção. [...]/ De certo modo, muitas colecções são ‘descobertas’ pelos seus criadores muito depois de os seus elementos terem sido reunidos. Entre os nossos informantes, um tinha acumulado vários pinturas, tapeçarias e outros artefactos representando animais [...]. Esta ‘colecção’ não se registou [imediatamente] como tal na sua consciência, tendo‐se revelado depois de reflexão.» (Belk, Russell. «Collectors and Collecting», Pearce, Susan M. (ed.). 2006. Interpreting Objects and Collections. Londres e Nova Iorque: Routledge, 318.) 272 «Em relação ao enredo das colecções, o acontecimento inicial é arbitrário, contingente, acidental. [...] Só retrospectivamente, através de uma manipulação
196
muitas coisas aconteceram273. Segundo Mieke Bal, a descrição «colecção»
implica uma manipulação retrospectiva de acontecimentos: o que inicialmente
foi circunstancial é convertido a posteriori num momento motivado de uma
cadeia de acontecimentos relacionados com a colecção.
No segundo capítulo desta tese, a propósito tanto dos mecanismos da
memória como da colecção de John Soane, referimos a manipulação temporal
que caracteriza a actividade de coleccionar. Nas colecções propriamente ditas,
esta manipulação traduz-se em anacronismos relacionados com a presença de
objectos provenientes de tempos e espaços diferentes. Podemos dizer que não só
a actividade de coleccionar consiste em manipular, prolongando, o tempo dos
objectos, como também a própria noção de colecção exige um olhar através do
tempo que reinterpreta o passado a partir do presente, redescrevendo como
«coleccionar» actos inicialmente não motivados por essa intenção.
Visto que a intenção de coleccionar não é necessariamente anterior à
reunião destes objectos, revelando-se, pelo contrário mais frequentemente a
posteriori, as colecções têm uma pré-história enquanto acumulação. A descrição
«colecção» corresponde à identificação e ao desenvolvimento de uma intenção.
O que é válido para intenções e para o comportamento humano em geral
mantém validade no que diz respeito às colecções. Como por vezes se verifica
narrativa da sequência de acontecimentos, pode a aquisição acidental do primeiro objecto converter‐se no início de uma colecção. No enredo, é pré‐histórica, na história intervém in media res. O início, em contraste, é um significado, não um acto. Coleccionar torna‐se coleccionar quando uma série de presentes ou compras fortuitas se convertem subitamente numa sequência com significado.» (Bal, Mieke. [1994] 1997. «Telling Objects: A Narrative Perspective on Collecting, Elsner, John e Roger Cardinal (ed.), The Cultures of Collecting. Londres: Reaktion Books, 99‐100.) 273 A propósito da sua colecção, Dominique de Menil afirmou: «Só muito tarde admitimos que éramos coleccionadores.» (citado em Stourton, James. 2002. Great Collectors of Our Time: Art Collecting Since 1945. Londres: Scala, 160.)
197
com outros comportamentos humanos, as intenções vão-se revelando e
clarificando à medida que as acções vão sendo desenvolvidas, sucedendo por
vezes que a intenção se torna clara ou é revelada mais tarde por outra pessoa.
Assim como a intenção é um processo que se define em acto, traduzindo-se
numa acção observável, também a intenção de constituir uma colecção se vai
concretizando gradualmente.
A ideia de colecção como processo articula-se com a circunstância de as
colecções se prolongarem no tempo com aquisições sucessivas de elementos,
sucedendo por vezes que o conceito inicial se vai refinando, ao ponto de o
coleccionador optar por vender objectos que considera ou menos valiosos ou
menos adequados ao conceito revisto274, usando ou não o dinheiro desta venda
para adquirir outros objectos.
A intenção de coleccionar, além de não estar necessariamente presente
no início não-oficial da colecção, quando é assumida associa-se a um conceito
de colecção susceptível de mais transformações porque dependente da
interacção dos desejos e das concepções do coleccionador com o espaço em que
se move e as pessoas que o rodeiam.
Em todos os casos que até aqui explorámos, a vertente intersubjectiva e
pública das colecções tem-se revelado essencial. Esta circunstância articula-se
com a noção de que a descrição «colecção» não pode depender simplesmente
274 Foi o caso de Louis‐Antoine Prat: «Quando comecei a coleccionar comprava desenhos holandeses, italianos, franceses e alguns do século vinte. Mas encontrava mais facilmente desenhos franceses importantes e interessantes. Na altura, a colecção era muito grande – tinha mais de mil desenhos. Mais tarde pensei que devia começar por me livrar dos desenhos estrangeiros e passar a coleccionar na área que conheço bem – entre Poussin e Cézanne. Escrevi muito sobre Poussin, Watteau, David e vários artistas do século dezanove, como Delacroix. Por isso passei a coleccionar entre 1600 e 1990.» (http://www.panachemag.com/Archive/9_05/TheBuzz/TheCollector/Prats.asp, consultado em 20 de Outubro de 2014.)
198
nem de uma declaração particular da intenção de coleccionar por um pretenso
coleccionador, nem da proposta dessa descrição por terceiros. Tem de haver
consenso e corroboração desta descrição, ambos baseados nas práticas e nas
interacções em torno do conjunto de objectos em questão.
Em Intention, Elizabeth Anscombe refere directamente o tópico dos
coleccionadores uma única vez275, de passagem, associando coleccionar à ideia
de valorização (ou seja, à ideia de que se colecciona o que se considera bom),
mas há outros passos nesta obra que são relevantes para o nosso tópico.
Em algumas secções deste ensaio, Anscombe aproxima as noções de
querer e de saber. Segundo Anscombe, assim como se percebe que alguém
domina determinado assunto (por exemplo, sabe distinguir cores) a partir das
acções e dos comportamentos desta pessoa, também se percebe o que alguém
valoriza a partir do que esta pessoa faz276. Por outras palavras, os nossos
desejos e as nossas intenções revelam-se e concretizam-se no que fazemos: «Ora
bem, se quisermos dizer pelo menos algumas coisas verdadeiras acerca das
intenções de uma pessoa, teremos fortes hipóteses de sucesso se mencionarmos
o que ela realmente fez ou está a fazer. Quaisquer que sejam as suas intenções
275 «Bonum est multiplex: o bom é multiforme e tudo o que é requerido para o nosso conceito de ‘querer’ é que a pessoa veja aquilo que quer sob o aspecto de algum bem. Uma colecção de bocados de osso com 7,62 centímetros, se é um objecto pertencente a alguém, é algo acerca do qual queremos ouvir algum elogio antes de o entendermos enquanto objecto; seria afectação dizer ‘uma pessoa pode querer seja aquilo que for e é o caso que eu quero isto’, e de facto um coleccionador não fala assim; ninguém fala assim a não ser por irritação ou para pôr fim a perguntas maçadoras.» (Anscombe 2000, 75.) 276 «[S]e alguém sem razão aparente nos diz ‘quero um alfinete’ e nega que o queira para alguma coisa e, vamos supor, lhe damos um alfinete e tentamos perceber o que faz com este. Ele pega no alfinete, sorri e diz ‘obrigado, o meu querer foi gratificado’ – mas o que é que ele faz com o alfinete? Se ele o colocar nalgum lado e se esquecer dele, em que sentido ainda é verdade que queria um alfinete?» (Anscombe 2000, 71.)
199
de fazer outras coisas, ou quaisquer que sejam as suas intenções ao fazer o que
está a fazer, a maior parte das coisas que diríamos de caras que essa pessoa fez
ou estava a fazer serão coisas intencionais.»277
Se uma descrição possível de colecção é um conjunto de objectos
relacionados inteligivelmente e valorizados por alguém, de acordo com
Elizabeth Anscombe a melhor descrição de colecção exigiria a descrição das
práticas e das actividades desenvolvidas pelo coleccionador, ou pelo responsável
pela colecção, antes e depois da sua obtenção. O que fazemos com alguma coisa
é indissociável do modo como a valorizamos. De forma semelhante, quem o
coleccionador é articula-se com o que o coleccionador faz; o que uma colecção é
articula-se com o que é feito em torno desta. Colecções, coleccionadores e a
actividade de coleccionar são mais bem descritos a partir de processos ou
interacções, não como elementos fechados.
Na mesma linha de pensamento, Michael Thompson278 nota, aliás, que
uma das grandes virtudes de Intention é usar a interacção como cena
fundamental e assim mostrar que os conteúdos mentais se definem e clarificam
por interacção: «Os exemplos típicos de Anscombe são não só progressivos e
imperfectivos e in media res, mas também tipicamente com a primeira pessoa
como personagem, ou antes, como poderíamos dizer, com a primeira e a
segunda pessoa. [...] Do ponto de vista formal, esta interacção é de certo modo a
cena fundamental que Anscombe trabalha ao longo do livro.»
277 Anscombe 2000, 8. 278 Thompson, Michael. 2011. «Anscombe’s Intention and Practical Knowledge» in Ford, Antony et alii. Essays on Anscombe’s Intention. 2011. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press, 198‐210.
200
O facto de Anscombe descrever o desenvolvimento das acções («quando
as coisas precisamente NÃO estão feitas, NÃO fazem parte do passado; ainda há
mais para vir, falta alguma coisa [...] quando não há acção, mas só alguma coisa
que estou a fazer») permite uma descrição mais completa e correcta das
situações279 e das intenções.
Em La Peau de chagrin, a valorização de Cuvier como poeta e figura de
interpretação coloca em segundo plano o seu trabalho taxonómico280,
secundarizando o papel da classificação, numa curiosa inversão das práticas do
Iluminismo. Antes do Iluminismo, a forma mais cultivada de colecção foi a dos
gabinetes de curiosidades. Os gabinetes de curiosidades estabeleciam um
contexto a partir do qual era possível interpretar as relações dos objectos por
que eram constituídos. Como nota David L. Martin281 a partir da leitura de
Michel Foucault282, ao contrário das colecções posteriores ao Iluminismo,
organizadas hierarquicamente e por categorias, as colecções dos gabinetes de
curiosidades, colocando todos os objectos ao mesmo nível, propunham um
279 Por contraste com Davidson: «Falta assim alguma coisa à doutrina de Davidson sobre os eventos ou as coisas que aconteceram, nomeadamente, para ir directo ao assunto, as coisas que não aconteceram. Ou seja, ele esquece‐se das coisas que não aconteceram mas estavam a acontecer. [...] Por esta razão, sugiro, Davidson não consegue captar correctamente a natureza do que realmente aconteceu, isto é, dos acontecimentos, especialmente nos casos em que estes são acções intencionais completas.» (Thompson 2011, 205.) 280 Cuvier expandiu a taxonomia de Lineu integrando nesta fósseis e seres vivos. 281 «Longe de ser uma falta (de ordem), esta ausência de hierarquia estrita de materiais a separar e a ordenar os vários objectos dentro de uma colecção não era senão atenção ao acto cognitivo decisivo que acompanhava o ‘uso’ de um gabinete: a interpretação. Através de organizações sucessivas [...] esse esclarecimento podia ser achado.» (Martin 2011, 42‐43.) 282 Foucault, Michel. 1966. Les mots et les choses. Paris: Gallimard.
201
convite às práticas da interpretação283. No Iluminismo, associar um espécime a
uma categoria tornou-se mais importante do que explorar quer o contexto
cultural, quer as semelhanças e as relações de objectos que partilhavam o
mesmo contexto.
Para descrever o nosso tópico, as práticas interpretativas associadas aos
gabinetes de curiosidades parecem mais adequadas do que aquelas da
taxonomia. Precisamos mais das actividades do poeta Cuvier do que das
práticas do naturalista. É mais importante explorar as implicações e relações
contextuais das colecções e dos seus objectos do que atribuir-lhes uma etiqueta
classificatória enquanto colecção ou não-colecção que os desliga do contexto e
das práticas através dos quais foram reunidos e/ou integrados na vida das
pessoas.
O privilégio da interpretação em detrimento da classificação associa-se à
ideia de que não podemos distinguir colecção e não-colecção a não ser tomando
em consideração casos concretos e, em articulação com estes, um conjunto de
práticas entre as quais se destaca um discurso capaz de tornar inteligível as
relações que os objectos coleccionados podem estabelecer entre si.
No primeiro capítulo desta tese desenvolvemos um argumento
semelhante a propósito dos Mármores do Parténon. Como Philip Fisher observa
acerca das variações do estatuto ontológico de uma espada, a identidade de um
objecto é afectada pelas práticas e interacções em torno deste. De acordo com
esta perspectiva, sem descrevermos estas práticas não obteremos descrições
completas do que pretendemos estudar.
283 Ver também Hooper‐Greenhill 1992.
202
Visto que uma grande parte da literatura sobre colecções assume uma
vertente psicologista, convém notar que, entre as objecções que é possível
contrapor a descrições exclusivamente psicológicas ou psicanalíticas dos
coleccionadores e da actividade de coleccionar, é importante a ideia de que
coleccionar é uma actividade que se traduz em comportamentos públicos de
interacção, não devendo ser exclusivamente descrita por referência a impulsos e
conteúdos mentais e privados.
Constatar que um dos elementos mais importantes da actividade de
coleccionar é a interacção interior/exterior e o modo como coleccionar
representa uma expansão e concretização do interior no exterior obriga-nos a
problematizar as abordagens psicologistas que tendem a associar
exclusivamente a actividade de coleccionar ao desejo neurótico de protecção em
relação ao mundo exterior, descrevendo-a como forma de resistência ou de
autoprotecção relativamente a forças exteriores que o coleccionador receia não
conseguir controlar. Esta é uma descrição tão abrangente que, como nota
Pearce284, se poderá aplicar a um grande número de actividades humanas. Um
exemplo de alguém que propõe este tipo de descrição é Muensterberger285.
Outro exemplo, já referido, é Baudrillard, que defende que coleccionar expressa
o desejo de escapar à mudança. Como observa Kevin Melchionne286, estas
propostas traçam um retrato estático e neurótico do coleccionador, enquanto
coleccionar é um processo dinâmico que implica interacção, crescimento e
284 Pearce 1995, 10. 285 Muensterberger, Werner. 1994. Collecting: An Unruly Passion. Psychological Perspectives. San Diego, Nova Iorque e Londres: Princeton University Press. 286 Melchionne, Kevin. 1999. «Collecting as an Art» in Philosophy and Literature 23 (1), 148‐156.
203
transformação287. Convém também notar que as abordagens psicologistas se
centram principalmente nas causas do comportamento dos coleccionadores288,
descritas como iguais para todos289, não considerando com a devida atenção
nem a possibilidade de diferenças nas motivações nem o que vem depois das
supostas causas.
Estas abordagens revelam-se artificiais e acabam por destacar as
características mais invulgares, bizarras e negativas da actividade, excluindo
paradoxalmente os seus traços mais comuns, que caracterizam a maioria dos
coleccionadores. Um exemplo deste tipo de abordagem pode ser encontrado no
prefácio do livro The Great Collectors, de Pierre Cabanne290.
Neste prefácio, Cabanne descreve os coleccionadores como inválidos
possessivos, tão degenerados como os toxicodependentes, os alcoólicos e os
jogadores, vítimas de uma paixão neurótica de tipo obsessivo que por vezes
destrói toda a consciência moral, convertendo-os em ladrões e vigaristas.
Cabanne propõe uma justificação psicológica para este tipo de comportamento:
«Na realidade, os objectos cobiçados pelo coleccionador representam a sua 287 «O dinamismo do processo de coleccionar aponta para outra insuficiência do paradigma‐fetiche das colecções, nomeadamente a concepção estática do coleccionador. [...] Para Baudrillard, o impulso recorrente de coleccionar baseia‐se no desejo de evitar a mudança e de assim recuperar uma sensação de segurança. Coleccionar é uma tentativa de evitar o crescimento em vez de uma maneira de crescer.» (Melchionne 1999, 152.) 288 «A minha abordagem é psicológica. Com isto quero dizer que pretendo explorar as condições generativas da causa da enfatuação obsessiva do coleccionador pelos objectos.» (Muensterberger 1994, 7.) 289 «Independentemente das idiossincrasias individuais dos coleccionadores, e independentemente do que ou de como estes coleccionam, há uma questão fundamental: os objectos na posse destes acabam sempre por ser redutos frequentemente inconscientes contra o desespero e a solidão.» (Muensterberger 1994, 48.) 290 Cabanne, Pierre. [1961] 1963. The Great Collectors. Londres: Cassell.
204
busca eterna de si próprio. Supremamente anti-social por natureza, o
coleccionador não sente autoconfiança a não ser através das suas conquistas,
que lhe recordam os momentos em que ele de algum modo dominou o seu
destino. (viii-ix); «Coleccionar é sem dúvida uma forma de defesa contra as
pessoas, a sociedade, o tempo e a História.» (xi). Este prefácio
involuntariamente caricatural sintetiza na perfeição os lugares-comuns mais
frequentes quer das descrições mais académicas, quer das obras mais
generalistas ou mais populares sobre o tema.
Além de sublinharem artificialmente as características mais invulgares
para distinguirem colecção e coleccionador, estas definições tendem a isolá-los
do contexto em que se situam, assim rejeitando o que de mais importante
ajudaria a descrevê-los: as práticas em que se integram.
Encontramos o mesmo tipo de erro em abordagens que defendem a ideia
de que os objectos de colecção não têm valor de uso e que vêem as colecções
como universos estanques, imunes ao tempo e às variações das actividades
humanas. Destacar a suspensão do uso dos objectos de colecção redunda no
erro grave do isolamento da colecção relativamente à vida dos coleccionadores e
dos que os rodeiam e conduz a certos erros lógicos sobre o tópico. Entre os
autores que cometem este erro salientam-se Alsop e Pomian. Segundo Alsop,
ninguém colecciona tomando em consideração qualquer preocupação
relativamente ao uso dos objectos291. Se notarmos que muitas colecções se
291 «[A]rte‐para‐uso‐mais‐beleza cedera o lugar à arte‐como‐fim‐em‐si‐mesmo. Este é o tema comum a todas as colecções de arte. [...] Quando e onde quer que uma colecção de arte comece, as obras de arte [...] tornam‐se fins em si mesmos, sendo portanto coleccionadas sem qualquer consideração da sua utilidade ou da falta desta.» (Alsop 1982, 36‐37.)
205
organizam precisamente em torno da função prática original dos objectos que
integram, concluiremos que Alsop não tem razão.
A abordagem de Pomian ajuda a explicar o erro conceptual da proposta
de Alsop. Pomian chega a cunhar um novo termo – semióforo – para descrever
uma estranha categoria de objectos que só tem significado e nenhuma
utilidade292. Fica por explicar o que determina o significado ou a identidade do
semióforo se este não é usado e nenhum dos seus usos anteriores é considerado
importante. Não se percebe como um objecto pode ser descrito
independentemente das práticas em que é integrado.
Dir-se-ia que, para autores como Pomian e Alsop, as colecções existem
num universo alternativo, totalmente impermeável às actividades humanas:
«este estranho mundo em que a palavra ‘utilidade’ parece ser desconhecida,
visto que dizer que os objectos que agora estão totalmente dependentes do
olhar do curioso ainda têm alguma utilidade seria uma distorção linguística
grosseira: as chaves e os cadeados já não prendem qualquer porta, as máquinas
nada produzem e ninguém espera que os relógios dêem horas. Ainda que
tenham desempenhado uma função específica na sua existência anterior, as
peças de museu e de colecção deixaram de ter qualquer função».293 Sucede, no
292 «[Sobre a relação entre a utilidade e o significado] Há três diferentes situações possíveis: uma coisa tem utilidade mas é desprovida de qualquer significado; um semióforo tem só significado, de que é ele próprio o vector, e absolutamente nenhuma utilidade; ou um objecto tem aparentemente tanto utilidade como significado. [...] [N]enhum objecto pode ser simultaneamente coisa e semióforo para o mesmo observador, visto que só é uma coisa quando está a ser usado, e nessa situação o seu significado é irrelevante. Se o seu significado tem prioridade, a sua utilidade reduz‐se a mera potencialidade. [...] [U]tilidade e significado são mutuamente exclusivos, visto que quanto mais um objecto está carregado de significado, menos útil é e vice‐versa.» (Pomian, Krzysztof. [1987] 1990. Collectors and Curiosities: Paris and Venice 1500‐1800. Trad. Elizabeth Wiles‐Porter, Cambridge: Polity Press, 30.) 293 Pomian 1990, 7‐8.
206
entanto, que ou alguns objectos de colecção continuam a ser usados, apreciados
e usados de acordo com a sua função original, ou, quando isto não se verifica,
continuam integrados na vida dos coleccionadores, da sua família e dos
visitantes da colecção, que os usam para os diferentes fins que bem entendem.
5.2 Oscilações de valor
As colecções não existem na Natureza. Ser colecção requer uma
perspectiva humana que descreva como tal um conjunto de coisas. Na Filosofia
do Dinheiro, Georg Simmel nota que o valor das coisas não está inscrito na sua
existência na Natureza: entregue a si própria, a Natureza destrói objectos que as
pessoas consideram valiosos e preserva coisas pouco importantes na
perspectiva humana294. No quarto capítulo desta tese, a partir de Kant e de
Christine Korsgaard, salientámos que os seres humanos se distinguem na
Natureza pela racionalidade. Nesta dimensão reside a possibilidade de sermos
livres de valorizar e preservar o que consideramos importante para nós.
Na ideia de «colecção» e na actividade de coleccionar está implícita a
atribuição individual de valor295 e de inteligibilidade através de acções. Como
294 «O valor dos objectos, pensamentos e acontecimentos nunca pode ser inferido da sua mera existência na Natureza e do seu mero conteúdo, e a sua classificação em termos de valor difere em grande medida da sua ordem natural. A Natureza, em muitos casos, destrói objectos que, no que diz respeito ao valor, deveriam ser preservados, e preserva objectos sem valor que ocupam o lugar dos mais valiosos.» (Simmel, Georg. [1978] 2011. The Philosophy of Money. Trad. e ed. David Frisby. Londres e Nova Iorque: Routledge, 61.) 295 «Há, podemos dizer, três grandes correntes de pensamentos que convergem no termo presente. São elas: 1. ‘valores’ no sentido sociológico: concepções do que, em última instância, é bom, adequado ou desejável na vida humana; 2. ‘valor’ no sentido económico: o grau em que os objectos são desejados, em particular em termos do que os outros estão preparados para dar em troca para os obter; 3. ‘valor’ no sentido
207
Anscombe observou, colecciona-se o que se considera bom. Esta noção de bom é
relativa aos fins, aos usos e às práticas em que estes objectos se podem integrar,
como observámos no quarto capítulo, quando comentámos a secção de Les
Caractères que La Bruyère dedica aos coleccionadores. Em termos simples, os
coleccionadores reúnem objectos em que reconhecem alguma importância,
integrando-os num conjunto inteligível a partir tanto das relações estabelecidas
entre si como da relação entre o conjunto da colecção e o que a rodeia.
Ser bom, ter valor, é poder ser integrado numa série de acções e relações,
ou seja, é poder ser usado. Um coleccionador valoriza um objecto quando pensa
que este poderá estabelecer relações significativas com outros objectos no
conjunto da colecção, assim contribuindo também para a relevância da colecção
em relação ao que está fora dela.
Deste modo, uma das características mais importantes das colecções é
uma perspectiva humana de reconhecimento ou de construção de valor
conceptual, afectivo, cultural e/ou financeiro – pelo coleccionador e/ou pelos
responsáveis pela atribuição do estatuto de colecção aos objectos em questão. O
que é lixo para alguns pode tornar-se uma colecção valiosa graças a uma
descrição inteligível que se traduz em determinadas práticas como aquisição,
organização conceptual implícita ou explícita, preservação e/ou uso. Esta
atribuição de valor não pode ser reduzida a um conteúdo mental privado porque
se manifesta na vida social e em acções.
linguístico, que remonta à linguística estrutural de Ferdinand de Saussure (1966), e pode ser parafraseado simplesmente como ‘diferença significativa’./Quando os antropólogos de agora falam de ‘valor’ – em particular quando usam o termo ‘valor’ no singular quando um antropólogo de há vinte anos usava o termo ‘valores’ no plural – estão no mínimo a sugerir que não é coincidência que todas estas coisas sejam identificadas através da mesma palavra. Em última instância, todas são refracções da mesma coisa.» (Graeber, David. 2001. Toward an Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams. Nova Iorque: Palgrave, 1‐2)
208
Abordar a questão do valor é essencial para explicar a interacção do
individual, do subjectivo e do interior, por um lado, com o colectivo, o social, o
objectivo e o exterior, por outro. Por implicarem a aquisição e a integração de
elementos, as colecções confrontam valores individuais com valores colectivos e
valores de mercado.
O valor financeiro despendido nas aquisições objectiva e traduz o valor
individual que o coleccionador associa às peças da colecção. Em certos casos,
como o do protagonista do romance Le Cousin Pons, de Balzac, o valor que o
coleccionador atribui aos objectos não é simplesmente afectivo. Poderá
acontecer o coleccionador deter conhecimentos que outros não têm e, por isso,
ser capaz de reconhecer a inadequação do valor de mercado de alguns objectos.
Certas colecções ainda mais idiossincráticas chamam a atenção para objectos
até aí ignorados, pelos quais mais ninguém até então se tinha interessado. A
colecção começa por ser apreciada pelo seu valor historico-cultural, sendo
posteriormente atribuído valor financeiro tanto aos objectos desta colecção
como a objectos semelhantes296. Nestes dois casos, os valores individuais
modificam os valores de mercado297.
A partir do romance Le Cousin Pons podemos, aliás, explorar algumas
destas questões: a relação entre o valor de mercado e o valor atribuído pelo
coleccionador aos objectos de colecção; a capacidade do coleccionador para
296 «As colecções de sucesso começam por ser divertidas, tornando‐se depois interessantes e, por último, importantes. Movimentam‐se a partir do modo de colecção que se situa nas margens do sistema em direcção às categorias artísticas e intelectuais no topo deste.» (Pearce 1995, 394.) 297 Segundo Melchionne, os coleccionadores também afectam os valores estéticos: «A actividade de coleccionar torna‐se original do ponto de vista criativo quando o coleccionador está empenhado em definir o que conta como coleccionável. Neste caso, o coleccionador está a participar na construção social da percepção estética.» (Melchionne 1999, 152.)
209
reconhecer e recuperar objectos de valor esquecidos; o percurso acidentado dos
objectos até à colecção; a relação entre a colecção e a vida familiar e social do
coleccionador; e até a impossibilidade de possuir inteiramente os objectos e de
fixar para sempre a sua importância298.
Sylvain Pons é um coleccionador com fundos limitados mas dotado de
qualidades («tinha os três ingredientes do sucesso: as patas do cervo, o tempo
livre dos flâneurs e a paciência do israelita»), graças às quais reúne uma
colecção de objectos preciosos adquiridos a baixo preço299. A circunstância de
esta colecção vir a ser posteriormente cobiçada tanto por outros coleccionadores
como por familiares indiferentes ao valor cultural dos objectos mas interessados
no seu valor financeiro representa a legitimação social do seu discernimento
enquanto coleccionador.
Na capacidade de descobrir e identificar obras de arte entre o lixo dos
ferros-velhos e das lojas de velharias, assim fazendo aquisições valiosas com
quantias de dinheiro irrisórias, residem o talento e a felicidade de Pons como
coleccionador: «O velho músico punha em prática o axioma de Chenavard, o
sábio coleccionador de gravuras preciosas, que defendia que só se pode ter
prazer a observar um Ruysdael, um Hobbema, um Holbein, um Rafael, um
Murillo, um Greuze, um Sebastiano del Piombo, um Giorgione, um Albrecht
Dürer, se o quadro não tiver custado mais de cinquenta francos. Pons não fazia
aquisições superiores a cem francos e para pagar cinquenta francos por um
298 O nosso objectivo não é propor uma análise literária dos romances de Balzac, mas antes usar estes textos sempre que nos permitam clarificar algumas das questões associadas ao tópicos desta tese. 299 No início do século XIX ainda era possível a descoberta de objectos especiais ou raridades (pintura, miniaturas e porcelana, entre outros objectos) confiscados na Revolução Francesa mas posteriormente esquecidos entre outros objectos insignificantes das lojas de bricabraque ou ferro‐velho.
210
objecto, esse objecto tinha de valer três mil. Se custasse mais de trezentos
francos, a coisa mais bela do mundo deixava de existir para ele.»
Pons identifica objectos que considera valiosos entre trastes esquecidos
em lojas obscuras, objectos que anteriores proprietários consideraram
insignificantes ou cuja importância outras pessoas se revelam incapazes de
apreciar, como se verifica no caso do leque pintado por Watteau que Pons
oferece à prima ignorante. A capacidade de adquirir a preços insignificantes
obras de arte valiosas representa a marca do conhecimento secreto que desde os
gabinetes de curiosidades parece distinguir os coleccionadores300. Tais
aquisições requerem o exercício de um conhecimento singular que permite a
certos coleccionadores trilhar um percurso alternativo à cultura dominante.
Apesar de durante algum tempo Pons desenvolver este percurso
particular, contíguo ao mercado e à sociedade, aliado a uma perspectiva
individual em que o valor dos objectos é determinado não pelo seu valor social e
de mercado mas sim pela importância que o coleccionador lhes atribui ou
reconhece e pelo papel que podem desempenhar na colecção, eventualmente
não só o valor de mercado é afectado pela sua visão e selecção singular, como
também a colecção se revela vulnerável às incursões da família, da sociedade, do
mercado e dos outros coleccionadores. Neste sentido, o percurso de Pons ilustra
300 «Com efeito, se há um princípio primordial nas colecções privadas, é o de que o coleccionador, estabelecendo uma ordem diferente das coisas, aprecia o facto ou a fantasia de sonegar autoridade das instituições e até daquilo a que chamamos ‘cultura’, estabelecendo um sistema diferente de valor e de significado. A colecção torna‐se fonte de conhecimento especializado – sobre vidro veneziano, ou cromos de basebol, ou espadas, ou Barbies, ou selos. Os coleccionadores coleccionam mais do que objectos; coleccionam o conhecimento (por muito pedestre ou profundo que este seja) que lhes dá o poder de retirar prazer desses objectos e de lucrar com a ignorância do outro. Mais do que um simples consumidor, o coleccionador vive para as emoções fortes da discussão de preços porque esta constitui a marca teatral de um conhecimento simultaneamente superior e secreto.» (Brown, Bill, 2001a. «The Collecting Mania», The University of Chicago Magazine, Vol. 94, No. 1.)
211
a interacção entre valores individuais e privados e valores económicos e
universais.
Na história de Pons, o coleccionador consegue manter durante algum
tempo a colecção isolada dos olhares dos outros, designadamente da família,
dos outros coleccionadores, do mercado e das trocas comerciais em geral. A
partir do momento em que Pons é afectado pela doença, a colecção fica
vulnerável ao exterior, tornando-se objecto de visitas clandestinas e de
transacções ilegítimas e furtos.
O próprio título do romance, identificando Pons a partir da suas relações
familiares, sugere desde logo a impossibilidade do protagonista de se isolar da
rede de relações socioeconómicas em que nasceu. Como observa Janell Watson,
a grande lição de Le Cousin Pons é a de que não é possível isolar uma colecção
de tudo o que a rodeia: «Esta é, de certo modo, a ‘moral’ de Le Cousin Pons: é
fútil tentar evitar que uma colecção reunida no mercado regresse ao mercado.
[...] Escondê-la, mesmo que nunca seja encontrada, não a torna menos
social.»301
O que Watson conclui sobre a colecção de Pons aplica-se igualmente a
casos de colecções secretas e de coleccionadores que recusam qualquer visita ou
divulgação das suas colecções. Coleccionar nunca pode ser uma actividade
puramente privada, particular, associada a valores e conteúdos mentais
exclusivos. Mesmo que o coleccionador se esforce por isolar a colecção de tudo o
resto, a verdade é que esta ficará inevitavelmente exposta depois do
desaparecimento ou enfraquecimento do seu proprietário.
301 Watson 2004, 133.
212
Para mais, a necessidade de efectuar transacções e de fazer aquisições
situa inevitavelmente o coleccionador numa rede de conhecimentos e
contactos302. Em Le Cousin Pons, outros coleccionadores já tinham ouvido falar
da colecção mítica de Pons através de comerciantes ainda antes de Pons
adoecer. Como certa vez salientou o coleccionador Otto Schäfer (1912-2000), é
muito difícil ser coleccionador quando se cultiva o isolamento: «A não ser que
os negociantes e os outros coleccionadores nos conheçam e simpatizem
connosco, perdemos as melhores oportunidades para outros.» 303
Deve acrescentar-se ainda que os coleccionadores que proíbem a
divulgação da sua colecção não serão os mais comuns, ainda que alguns deles
possam adquirir alguma notoriedade devido a esta opção. No livro que escreveu
sobre coleccionadores importantes do século XX304, James Stourton salienta
que cerca de dois terços dos coleccionadores referidos manifestaram interesse e
empenharam-se activamente na divulgação das suas colecções305.
302 Ver, por exemplo, este relato sobre a importância da rede de contactos na aquisição de peças para a Colecção Menil: «[O]s especialistas com que John e Dominique cultivavam relações de amizade próxima eram, entre outras coisas, instrumentais para garantir o acesso às obras logo que estas chegavam ao mercado; contribuíam para enriquecer a colecção e melhorar as escolhas dos coleccionares agindo como mentores, conselheiros, intermediários e espiões.» (Smart 2010, 79.) 303 Stourton, James. 2002. Great Collectors of Our Time: Art Collecting Since 1945. Londres: Scala, 16. 304 Stourton 2002. 305 «A maioria, talvez dois terços dos coleccionadores referidos neste livro, de uma forma ou de outra emprestaram, expuseram ou catalogaram as suas colecções.» (Stourton 2002, 10.)
213
Proposta pelo coleccionador Louis-Antoine Prat (1944), a ideia de que
«possuímos apenas aquilo que partilhamos»306 parece descrever a atitude da
maioria dos coleccionadores, não sendo portanto exclusiva a coleccionadores
com preocupações éticas e filantrópicas como os Menil. Charles Saatchi
afirmou: «Compro arte principalmente para a mostrar.»307 A corroboração
social não implica sempre filantropia; pode ser simplesmente uma forma de
auto-afirmação ou de exibicionismo. Na maior parte dos casos, contudo, está
também em causa a vontade de comunicar um conjunto de percepções
consideradas pertinentes e válidas sobre determinados objectos, aliada ao
desejo de participar na discussão colectiva e permanente sobre o que tem valor
ou é importante.
A ideia de se possuir apenas o que se partilha vai igualmente ao encontro
da noção anscombiana de intenção como comportamento observável. A vida
individual das pessoas articula-se com a percepção que as outras pessoas têm
desta. Sem corroboração, a imagem que as pessoas têm de si próprias e das
relações que estabelecem com o que as rodeia parece decorrer num plano pouco
fiável, mais próximo da fantasia.
A propósito da autoconsciência humana, Robert Pippin afirma: «Uma
auto-imagem nunca realizada socialmente, nunca expressa em acção pública,
tem de contar mais como fantasia do que como elemento de autoconhecimento.
[...] A nossa auto-imagem torna-se um facto social através da acção e o seu
significado deixa de poder estar associado exclusivamente à intenção ou à
306 «Possuímos apenas aquilo que partilhamos, seja conhecimento, seja um objecto.» (citado em Stourton 2002, 52.) 307 Stourton 2002, 336.
214
vontade do agente.»308 Neste sentido, uma colecção é semelhante à imagem que
as pessoas têm de si próprias: a partilha torna ambas socialmente objectivas.
Balzac parece consciente do impulso humano para a objectivação de
conteúdos mentais. Em La Peau de chagrin, perto do fim do passo em que se
descreve a loja de antiguidades, nota-se uma certa indistinção entre o
protagonista e os objectos que observa: «Perseguido pelas formas mais
estranhas, por criações maravilhosas instaladas nos confins da morte e da vida,
ele avançava através dos encantamentos de um sonho. Por fim, duvidando da
sua existência, era como esses objectos curiosos, nem totalmente morto, nem
totalmente vivo.» O protagonista deste romance adquire nesta loja uma pele de
onagro mágica que lhe permite a realização de todos os desejos com a
contrapartida de cada desejo satisfeito encurtar a duração da sua vida e
diminuir o objecto mágico. Podemos dizer que esta pele objectiva a vida do
protagonista. Há elementos em comum entre esta situação e a do protagonista
do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, em que as más acções
do protagonista se reflectem fisicamente num retrato em vez de afectarem o seu
corpo. Nos dois casos, a vida moral e física das personagens é representada e
tornada clara através de um objecto.
No romance Le Cousin Pons, como se Pons tivesse ele próprio adquirido
características de objecto, o coleccionador é descrito como uma peça de
colecção: «Sob esse chapéu, que parecia prestes a tombar, prolongava-se uma
dessas figuras grotescas e pitorescas como só os chineses imaginam para os seus
magos de porcelana. Esse rosto largo, crivado como uma escumadeira em que os
buracos produzissem sombras e esculpido como uma máscara romana, 308 Pippin, Robert. 2005. «On ‘Becoming Who One Is’ (and Failing): Proust’s Problematic Selves» in Pippin, Robert B. 2005. The Persistence of Subjectivity: On the Kantian Aftermath. Cambridge: Cambridge University Press, 318‐319.
215
desmentia todas as leis da anatomia.» Depois de falar do «valor arqueológico»
de Sylvain Pons, o narrador do romance sugere ainda que a actividade de
coleccionar afecta de tal maneira o protagonista que Pons acaba por partilhar da
complexidade temporal anacrónica dos objectos de colecção, reunindo em si
características típicas de épocas muito diferentes: «Conservando em alguns
pormenores da sua roupagem alguma fidelidade às modas do ano de 1806, esse
transeunte lembrava o Império sem o fazer de modo demasiado caricatural. [...]
Um homem envergando um spencer, em 1844, é, já estão a ver, como se
Napoleão se tivesse dado ao trabalho de ressuscitar por duas horas.»
Como tentaremos aprofundar no sexto capítulo, não estamos a defender,
como Bill Brown309, que a indistinção entre pessoas e coisas suscitada pelas
colecções faz com que as pessoas possam ser confundidas com coisas e as coisas
sejam tratadas como pessoas. Estamos mais próximos de Simmel neste ponto.
Podemos articular a noção de que os conjuntos de objectos a que chamamos
colecções concretizam conteúdos mentais, conceitos, intenções e valores
disponibilizando-os para corroboração social com a ideia de inspiração
hegeliana de Georg Simmel310 de que a consciência de se ser um sujeito que
deseja objectos representa uma objectivação.
Segundo Simmel, o início da vida mental caracteriza-se pela
indiferenciação entre sujeito e objecto: «A vida mental começa num estado
309 «Se o sucesso da colecção depende, em primeiro lugar, de um acto de objectivação [...] então coleccionar com sucesso pode subitamente levar‐nos a pensar nas pessoas e nas coisas do mesmo modo.» (Brown 2001.) Vamos retomar este passo no sexto capítulo. 310 Simmel 2011.
216
indiferenciado em que o ego e os seus objectos ainda não se distinguiram»311.
Sujeito e objectos constituem-se reciprocamente quando o sujeito adquire
consciência da distância que os separa e a consciência desta distância se associa
à atribuição de valor aos objectos que passa a desejar: «O objecto assim
formado, caracterizado pela separação relativamente ao sujeito que ao mesmo
tempo o estabelece e procura ultrapassá-lo pelo seu desejo, é para nós um valor.
[...] O valor só se restabelece como contraste, como objecto separado do
sujeito»312. A valorização de um objecto depende da consciência da sua distância
relativamente ao sujeito.
De acordo com Simmel, o autoconhecimento humano relaciona-se com a
capacidade de nos objectivarmos perante nós mesmos, isto é, na capacidade de
nos vermos e analisarmos como veríamos um objecto (ou outra pessoa) a que
prestássemos atenção313. Esta ideia parece ter uma demonstração concreta tanto
em La Peau de chagrin e The Picture of Dorian Gray, como na integração de
retratos dos coleccionadores na suas colecções, como acontece quer na Colecção
Menil, quer nas casas-museus de John Soane e de Isabella Stewart Gardner.
Assim como o retrato de Dorian Gray e a pele de onagro de Raphaël
Valentin revelam a vida destas personagens, ao ponto de Dorian Gray esconder
esta imagem para que os outros não percebam quem é, também os objectos das
colecções são extensões dos coleccionadores, como se torna evidente nos casos
311 Simmel 2011, 66. 312 Simmel 2011, 69. 313 «A actividade fundamental da nossa mente que determina a sua forma como um todo é a de podermos observar‐nos, conhecer‐nos e avaliar‐nos a nós próprios como a qualquer outro objecto; dissecamos o ego, experienciado como unidade, num sujeito que percepciona e num objecto que é percepcionado, sem perdermos a sua unidade; pelo contrário, este torna‐se consciente da sua unidade através desse antagonismo interior.» (Simmel 2011, 67.)
217
frequentes em que as colecções integram retratos dos coleccionadores. O facto
de estes retratos assumirem o mesmo estatuto que as restantes peças da
colecção sugere que todas as peças da colecção podem ser vistas como
objectivações do coleccionador. Deste modo, sujeito e objectos constituem-se
reciprocamente: o coleccionador pode ser conhecido através das peças da
colecção e as peças da colecção são conhecidas, percepcionadas e valorizadas
por intermédio do coleccionador.
Não se trata de confundir pessoas com coisas e de tratar coisas como
pessoas, como sugere Bill Brown. O sujeito não é simplesmente convertido num
objecto porque não só preserva a consciência da distância entre sujeito que
percepciona e objecto percepcionado, como também mantém agencialidade,
actividade e responsabilidade.
O«escândalo epistemológico»314 em que as pessoas se afirmam como
sujeitos e agentes através dos objectos que reúnem é, aliás, evidente desde os
tempos dos gabinetes de curiosidades. Como notámos no terceiro capítulo, os
coleccionadores situam-se ao mesmo tempo entre os objectos que coleccionam e
interpretam – e fora deste conjunto. Tendo em conta que os gabinetes de
curiosidades representam uma espécie de universo em miniatura que procura
homenagear e reproduzir a criação divina, os proprietários dos gabinetes de
curiosidades, enquanto seres criados por Deus, integram-se na sua colecção
como qualquer outro dos objectos. Apesar desta integração, os proprietários do
gabinetes assumem ao mesmo tempo o ponto de vista do criador da colecção,
situando-se, portanto, exteriormente a esta e assim preservando a sua
agencialidade.
314 Martin 2011, 50.
218
De acordo com Simmel, o valor económico objectiva e exterioriza valores
subjectivos. A aquisição através de um valor comercial ajuda a objectivar valores
subjectivos: o coleccionador paga a importância que atribui aos objectos.
(Importância aqui, aliás, assume o duplo sentido de relevância e de quantia
monetária.) Nesta troca, o valor subjectivo, objectivando-se numa quantia,
torna-se supra-subjectivo e supra-individual315 na medida em que pode ser
conhecido pelos outros. Pelo facto de implicar uma quantia monetária ou uma
troca por outro objecto, uma aquisição torna objectivo e partilhável o valor que
o coleccionador atribui a um objecto. O valor de transacção do objecto traduz o
valor particular e subjectivo que o coleccionador lhe atribui em termos
compreensíveis pelas outras pessoas. O facto de haver mais do que uma pessoa
envolvida na transacção coloca o valor atribuído numa relação objectiva. Deste
modo, qualquer aquisição implica uma interacção entre o privado e subjectivo,
por um lado, e o público e colectivo, por outro.
Assim, qualquer colecção, por muito secreta que o coleccionador a
considere, depende das relações entre o indivíduo e o que o rodeia. Através das
acções e das aquisições que realiza, o coleccionador vai concretizando relações
de sentido entre si e os objectos adquiridos, por um lado, e, por outro, entre
estes objectos e os outros já integrados na colecção.
Em suma, os maiores problemas das definições de colecção têm a ver
com a referência de traços distintivos que conduzem a noções demasiado
315 «A troca pressupõe uma avaliação objectiva de valorizações subjectivas» (Simmel 2011, 85). «O valor de um objecto adquire esta visibilidade e tangibilidade [...] através do facto de um objecto ser oferecido em troca de outro. Este equilíbrio recíproco retira os dois objectos da esfera da avaliação meramente subjectiva. A relatividade da avaliação significa a sua objectivação.» (Simmel 2011, 83.)
219
restritas do tópico e que, paradoxalmente, o desligam do que de mais
importante há na actividade.
As abordagens psicologistas da actividade de coleccionar habitualmente
retratam os coleccionadores como figuras excêntricas que raiam a patologia e
recorrem às colecções como reduto de estabilidade, em oposição às
instabilidades e mudanças do universo exterior à colecção. De acordo com esta
perspectiva, as colecções constituem universos isolados e inacessíveis a
qualquer interacção com o que as rodeia. Estas abordagens tendem igualmente
a associar a actividade de coleccionar e o próprio valor e significado das
colecções a intenções e conteúdos mentais privados dos coleccionadores,
necessariamente desligados e independentes do universo de inteligibilidade das
outras pessoas.
Pelo contrário, temos constatado a importância da interacção entre
coleccionadores e colecções e o que os rodeia, tanto a nível individual e privado
como socialmente. Para os coleccionadores como indivíduos, as colecções
correspondem a um processo de autodefinição perante si e perante os outros,
pelo modo como ajudam a objectivar e a partilhar intenções, conceitos e valores
na esfera social.
Percebemos também como a sociedade pode ser afectada e influenciada
pelas percepções individuais dos coleccionadores quando estas são
concretizadas através das colecções. A corroboração pública da inteligibilidade e
do valor da colecção enquanto tal pode conduzir a transformação de percepções
de valor, como se verifica no romance Le Cousin Pons. Pela liberdade de os
coleccionadores escolherem livremente o que tem valor – o que é coleccionável
–, as colecções podem funcionar como mecanismos alternativos de produção de
220
sentido e de valor316. Estamos a falar não só do valor de mercado mas também
da própria ontologia dos objectos.
Abordagens do tópico que associam as colecções e os museus à suspensão
do uso dos objectos ignoram que as práticas possibilitadas por estes contextos
dão origem a diferentes estatutos ontológicos destes objectos. Não é por serem
usados de modos que não correspondem à sua função original que estes
objectos deixam de ser usados e integrados na vida e nas práticas das pessoas.
Todas as colecções referidas nesta tese incluem objectos que sofreram
oscilações de valor ao longo dos tempos. Peças do Parténon foram usadas como
entulho; se John Soane não tivesse guardado alguns fragmentos de edifícios
demolidos, estes teriam desaparecido; Mary Berenson disse que a casa-museu
de Isabella Stewart Gardner lhe lembrava mais uma «junkshop» (loja de
velharias) do que um museu pelo facto de incluir objectos de uso diário que
faziam parte da vida da coleccionadora, lado a lado com obras de arte canónicas
e outras consideradas menos valiosas; a Colecção Menil inclui várias peças que
nem sempre foram valorizadas como arte, por exemplo, artefactos pré-
colombianos que durante muito tempo foram vistos como curiosidades
etnográficas ou retratos funerários egípcios que os saqueadores de túmulos
durante muito tempo deixaram para trás como lixo317. A própria colecção
316«A actividade de coleccionar pode ser uma das formas de resistência à repetição vazia da aquisição e às promessas ilusórias da mercadoria. Ser um coleccionador significa ultrapassar a chamada fantasmagoria do objecto e percepcionar, procurar obter, adquirir e apreciar objectos tomando em consideração diversos valores potenciais.» (Melchionne 1999, 151.) 317 «A formação da designação ‘retrato de Fayum’ está intimamente relacionada com a prática de sretirar as imagens funerárias das múmias a que pertencem, prática comum entre os saqueadores de túmulos, negociantes e coleccionadores do século dezanove [...]. Devido ao carácter sui generis do seu estilo particular, nessa altura estes retratos eram considerados lixo e simplesmente deitados fora.» (Menil Collection, 60.)
221
ficcional de Sylvain Pons, posteriormente tão cobiçada pelo valor das suas
peças, foi constituída a partir de visitas a lojas de velharias e ferros-velhos em
que supostamente haveria apenas objectos para ali enviados como lixo. Em
todos estes casos, o coleccionador afectou o valor das peças através da sua
intervenção.
Assim, importa também salientar a característica das colecções que torna
possível esta dinâmica ontológica: a complexidade da relação das colecções com
o tempo. As colecções não só prolongam a vitalidade dos objectos no tempo,
instalando no presente objectos oriundos de um passado mais ou menos
remoto, como também dependem de uma visão retrospectiva que
constantemente reconstrói o passado das aquisições do coleccionador para ir
reformulando o conceito ou conceitos na base da organização da colecção.
A relação das colecções com o tempo reflecte-se igualmente naquilo que
Didier Maleuvre descreve como «a incerteza do valor histórico»318, isto é, na
possibilidade de a informação que a História reconstitui sobre a importância e o
significado dos objectos no seu contexto de origem se desactualizar ou
desvalorizar ou ser reformulada e até esquecida319. A tela Galeria de Arte
Romana no Museu, de Hubert Robert, que descrevemos no segundo capítulo,
pode ilustrar a ideia de que as colecções e os museus são espaços de reavaliação
estética, política e económica que revelam a fragilidade e os limites do valor da
318 Maleuvre 1999, 206. 319 Comentando a secção inicial de La Peau de chagrin, Maleuvre observa que a descrição dos objectos na loja de antiguidades, relacionada no texto com o reflexo do Louvre nas águas do Sena no seu exterior, «sublinha a fragilidade da tradição histórica, a vulnerabilidade do valor histórico ao esquecimento, ao menosprezo e à reinterpretação. [...] [E]nquanto valor, a História perde terreno e sucumbe às vicissitudes do devir histórico.» (Maleuvre 1999, 206‐207.)
222
informação histórica, mesmo quando estes museus ou colecções assumem o
objectivo pedagógico de preservar e divulgar a História320.
Por todos estes motivos, estamos próximos da descrição de colecção que
Russell Belk propõe: «Entendemos a actividade de coleccionar como aquisição
selectiva, activa e longitudinal, posse e disposição de um conjunto inter-
relacionado de objectos diferenciados (coisas materiais, ideias, seres ou
experiências) que contribuem com e extraem significado extraordinário da
entidade (a colecção) que a percepção deste conjunto constitui»321.
A proposta de Belk tem vários méritos322, não sendo o menor destes o
modo como alarga o âmbito do conceito de colecção. Em primeiro lugar, toma
em consideração a importância da noção de série como conjunto dinamizador
do sentido de cada peça individual em interacção com as restantes peças do
grupo. Como nota Belk, numa colecção a ideia do todo vai sendo afectada pelas
aquisições de peças para a colecção, assim como o valor destas peças é
individualmente afectado pela sua integração neste conjunto323. Neste sentido,
320 «Consagrando, mas também reavaliando a História, o museu paradoxalmente instala a incerteza na História.» (Maleuvre 1999, 207.) 321 Citado em Pearce 2006, 158. 322 Como assinala Susan Pearce: «Esta definição inclui a ideia de conjunto inter‐relacionado, a classe ou série de Durost, e acrescenta‐lhe a noção de que a colecção como entidade é maior do que a soma das suas partes, um contributo importante para a discussão. Convoca um coleccionador que selecciona activamente, com uma perspectiva pessoal ou subjectiva desta actividade, e reconhece que coleccionar é uma actividade que se prolonga no tempo.» (Pearce 2006, 158.) 323 Esta descrição pressupõe a ideia de conjunto, pelo que deixa de fora a ideia da existência de colecções de uma só peça. Como de costume, no entanto, se assim o desejarmos, é possível imaginar e discutir excepções. Por exemplo, uma colecção que inclui a única peça que resta de um conjunto prévio de múltiplos elementos que desapareceram ou foram destruídos. A ideia de conjunto persiste. Muensterberger (1994, 34) imagina outro exemplo de uma colecção com uma só peça: «Alguém que
223
coleccionar já é usar os objectos e este uso ou esta interacção, traduzido na
integração num conjunto, afecta o significado e o valor dos objectos dentro e
fora da colecção. Não há significado sem uso, ao contrário do que defendem
Alsop e Pomian. Em segundo lugar, a descrição de Belk inclui uma referência
ao tempo necessário para as colecções, o que se articula com a ideia de que o
significado e o valor da colecção se vão transformando, ampliando e
enriquecendo através de novas aquisições. A terceira grande vantagem da
proposta de Belk é a ideia de que uma colecção não é constituída meramente
por objectos ou coisas materiais: Belk fala de coisas, ideias, seres ou
experiências em relação.
Em conclusão, é importante rejeitar mais uma vez a ideia de que há
fronteiras nítidas e claras entre o que é ou não uma colecção. Não se pode dizer
que haja um conjunto de propriedades identificáveis que convertem
inequivocamente um conjunto de objectos em colecção. Temos de reter a noção
de colecção como actividade humana de construção de inteligibilidade e de
valor. Por esse motivo, para compreendermos esta actividade, interpretar acções
(dos coleccionadores e das pessoas em torno da colecção) parece mais
importante do que classificar ou produzir uma lista de características. Um
conjunto de objectos ser ou não uma colecção é parcialmente determinado pela
actividade interpretativa e pelas acções de quem se relaciona com este conjunto.
procura um único exemplo de raridade ou perfeição inultrapassável, e se sente satisfeito com ele, não é um coleccionador, a meu ver. [...] Contudo, se ele continuar à procura de um exemplo melhor, e depois de outro melhor, e ainda assim a busca não terminar, trata‐se de um coleccionador na minha opinião. O impulso e motivação obsessivas são o mais decisivo [...].» A propósito do traço distintivo de colecção aqui apontado por Muensterberger, convém, no entanto, notar que a obsessão não é uma característica exclusiva aos coleccionadores.
224
Como desenvolveremos no sexto capítulo, uma colecção é mais um modo de ver
– uma relação entre pessoas e coisas – do que um conjunto de objectos.
225
6. Relações entre pessoas e coisas
«E a definição de pessoa seria então: a experiência repetida do fracasso de se tornar uma coisa.»
Barbara Johnson324
6.1 Confusões e distinções
Depois de termos explorado as interacções de pessoas e coisas, sublinhar
algumas distinções entre ambas permitir-nos-á chamar a atenção para a noção
de vida associada ao tópico das colecções – uma noção de vida enquanto acção,
participação e autodefinição no espaço intersubjectivo.
Colocando lado a lado pessoas e coisas, as colecções tornam claro que as
pessoas, quando estão vivas, só se confundem com as coisas se abdicarem (ou
forem impedidas) de agir. Nem os mortos, nem as coisas, nem as pessoas
totalmente enredadas na própria subjectividade podem coleccionar. Coleccionar
implica uma vertente activa relacionada com o interesse para interagir com o
que está fisicamente fora de nós.
Discordamos da observação de Bill Brown segundo a qual a actividade de
coleccionar pode facilmente produzir uma confusão entre pessoas e coisas: «Se
o sucesso da colecção depende, em primeiro lugar, de um acto de objectivação
[...] então coleccionar com sucesso pode subitamente levar-nos a pensar nas
pessoas e nas coisas do mesmo modo. Por muito escandalizados que nos
sintamos perante este excesso, a distinção entre pessoas e coisas
324 Johnson 2008, 59.
226
inevitavelmente desvanece-se um pouco quando coleccionamos coisas para
conjurarmos as pessoas que as possuíram.»325
A afirmação de Brown parece demasiado inofensiva para que nos
importemos com ela. Será, porém, tomada como ponto de partida para
sublinharmos algumas distinções que não queremos deixar escapar. Neste
passo, Bill Brown descreve uma situação habitual – «pensar nas pessoas e nas
coisas do mesmo modo» – sem, contudo, a explorar até às últimas
consequências. Sublinhar, como Bill Brown, as confusões entre pessoas e
objectos sem chamar a atenção para certas distinções quase triviais de tão
evidentes é tratar estas distinções como dado adquirido quando na realidade
elas precisam de atenção. Queremos reflectir um pouco mais sobre os
problemas possíveis da atribuição de características humanas a coisas. Isto
permitir-nos-á simultaneamente salientar alguns dos pontos principais desta
tese.
Em primeiro lugar, a circunstância de serem coleccionadas coisas
relacionadas com pessoas não implica necessariamente que as pessoas são
confundidas com coisas, mas antes que para evocarmos uma pessoa podemos
convocar as coisas de que esta se rodeava visto que estas faziam parte sua vida.
Os objectos e os lugares em que as pessoas vivem fazem parte da identidade
destas porque se integraram ou integram nas suas acções e nos seus
pensamentos. Como Alexander Nehamas observa a partir da filosofia de
Nietzsche, cada pessoa pode ser vista como conjunto não só de pensamentos,
intenções e acções, mas também de conteúdos ou referências concretas destes
325 Brown 2001a.
227
pensamentos, intenções e acções326. Por este motivo, quando as pessoas
desaparecem, estes objectos podem ser associados a elas e à sua memória. No
entanto, nunca as substituem adequadamente327.
Contra Brown, se olharmos para um conjunto de objectos, a noção de
colecção não é imediatamente visível: os objectos não têm ideias, não têm
desejos nem são capazes de realizar acções328. Numa colecção, as intenções, as
ideias, os conceitos e as relações são tão importantes como os objectos – e esta
dimensão conceptual ou imaterial deriva das pessoas, não das coisas. Não há
colecção sem pessoas, como observámos no quinto capítulo. Um conjunto de
objectos não pode ser considerado uma colecção antes de uma perspectiva
humana o descrever enquanto tal e de esta descrição ter corroboração329.
326 «O que temos portanto de atribuir ao eu é a soma dos seus próprios actos juntamente com os conteúdos destes: cada sujeito é constituído não apenas pelo facto de pensar, querer e agir, mas também precisamente por aquilo que pensa, quer e faz.» (Nehamas, Alexander. 1985. Nietzsche: Life as Literature. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press, 180.) 327 Neste sentido, há uma diferença decisiva entre as noções de relíquia e de objecto de colecção ou de museu, visto que, para um crente, a relíquia mantém as mesmas capacidades da pessoa ou do objecto de que fazia parte, sendo capaz de produzir os mesmos efeitos milagrosos, enquanto uma peça de colecção ou de museu é incapaz de agir: «Os objectos de culto religioso medievais tinham agência num sentido mais literal. Não eram como a vida; viviam (pelo menos às vezes). [...] Fragmentos de madeira ou de osso, pão, vinho, lascas de parede ou de tinta eram animados [sangravam, choravam, mexiam‐se, iluminavam‐se]. Dir‐se‐ia que a vida ou agencialidade destes residiam não no seu naturalismo ou na sua similitude mas na sua materialidade.» (Bynum 2011, 282.) 328 A distinção entre pessoas e coisas, já de si suficientemente clara, torna‐se ainda mais evidente se compararmos colecções de pessoas com colecções de objectos. Os coleccionadores de pessoas, sejam eles serial killers, Don Juans, a protagonista do filme A Coleccionadora, de Éric Rohmer, ou o protagonista do romance The Collector de John Fowles, arriscam‐se a enfrentar a possível oposição ou resistência dos que tentam coleccionar. Os coleccionadores de objectos só recebem indiferença. 329 Um caso extremo, mas que reforça a ideia de que a colecção não depende dos «desejos dos objectos», é o do conto «A Colecção Invisível», de Stefan Zweig. Neste
228
No segundo capítulo propusemos que os coleccionadores encaram as
colecções como uma extensão de si mesmos, capaz de preservar a memória e as
intenções destes antes e depois da sua morte. Neste sentido, poderíamos dizer
que os coleccionadores aspiram ao estatuto material e idealmente imperecível
das coisas e dos objectos. Contudo, a impossibilidade de garantir este desejo de
confusão ou indistinção entre coleccionador e colecção, assim como a
dificuldade de impor e fixar uma interpretação da colecção determinada pelo
coleccionador, como é possível observar a propósito de certas reacções à casa-
museu de Isabella Stewart Gardner ou em relação à dispersão de tantas
colecções importantes ou irrelevantes, fazem sobressair os problemas das
confusões entre pessoas e objectos e a dificuldade de recuperar as pessoas a
partir dos objectos que possuíram.
Nenhuma colecção substitui ou traduz o coleccionador garantidamente,
antes ou depois da sua morte. Os objectos não se explicam a si mesmos quando
fora de uma relação com acções e enunciados humanos. Colecções que não são
acompanhadas por um aparato legal e financeiro que assegure a sua preservação
ficam vulneráveis à incompreensão e aos interesses laterais dos herdeiros
(ganhar dinheiro, propor uma organização diferente, etc.) depois da morte dos
coleccionadores.
texto conta‐se a história de um coleccionador que perdeu a visão e cuja família, devido a dificuldades económicas, vendeu a colecção de gravuras, substituindo‐as por folhas de papel em branco. Sem saber isto, o coleccionador revisita a suposta colecção diariamente, sendo capaz de descrever pormenorizadamente as imagens e os episódios associados, como se nada tivesse mudado. Os objectos já não fazem parte da colecção. Esta, no entanto, continua a existir para o coleccionador cego. Também neste caso a propriedade não parece decisiva. A colecção reside na relação do coleccionador com aqueles objectos e por isso é invisível; o mais importante não está nos objectos, mas no coleccionador.
229
Em segundo lugar, na perspectiva de Bill Brown, numa colecção os
próprios objectos parecem adquirir agencialidade: «[Q]uando dizemos que uma
colecção realmente exige esta ou aquela aquisição, estamos a dar voz não ao
desejo por objectos, mas ao desejo dos objectos. Começamos a valorizar o que os
objectos querem: querem que sejamos os intermediários da relação deles com
outros objectos. Começamos a atribuir aos objectos algo como o estatuto de
sujeito, com disposições próprias, se não estranhos acessos de paixão.
Começamos a ultrapassar a distinção ontológica, demasiado sensata, entre seres
humanos e o mundo físico em que estes habitam.»330
A atribuição aos objectos de características humanas como desejos (a
ideia de que os objectos de uma colecção se escolhem uns aos outros, por
exemplo) – uma versão pretensamente mais subtil do lugar-comum segundo a
qual a actividade de coleccionar é uma compulsão – articula-se com a
desresponsabilização dos coleccionadores, o primeiro problema da confusão
entre pessoas e coisas quando se está a reflectir sobre o tópico das colecções
com o objectivo de o clarificar.
Para esta tese é fundamental a ideia de que os coleccionadores, tal como
as outras pessoas, são agentes conscientes e responsáveis pelas próprias acções.
A longo prazo, coleccionar é uma actividade intencional, relacionada com a
autodefinição das pessoas perante si mesmas e perante os outros331. Sugerir,
ainda que pseudometaforicamente, que os objectos têm «disposições próprias»
330 Brown 2001a. 331 Não estamos a negar a possibilidade de as pessoas, de vez em quando ou por doença, agirem impulsiva ou irracionalmente. Visto, no entanto, que, como defendemos no quinto capítulo, a actividade de coleccionar não só se prolonga no tempo como se articula com acções que exigem planeamento, parece difícil defender que todas as aquisições relacionadas com a actividade resultam de impulsos incontroláveis ou são realizadas por compulsão.
230
implica a ideia de que os coleccionadores não são realmente responsáveis pela
própria colecção. Ideias como esta parecem inócuas mas estão espalhadas em
quase tudo o que se escreve sobre o tópico, quer em contexto académico, quer
fora deste. Esta desresponsabilização traduz-se na menorização da actividade de
coleccionar como capricho ou mania, sem qualquer consideração do seu valor e
do seu possível impacto positivo. Propor que «os objectos se escolhem uns aos
outros» associa-se facilmente à ideia de que coleccionar não é uma actividade
que implica tempo, investigação, reflexão, conhecimentos e interacção com as
outras pessoas.
A atribuição destas características humanas aos objectos contribui
também para os lugares-comuns sobre coleccionadores que fomos identificando
ao longo desta tese, os quais, ainda que pareçam apelativos pela bizarria,
acabam por assumir consequências políticas negativas para todos nós. Muita
gente aceitar como certa, sem parar um pouco para pensar sobre estas questões,
a ideia de que os objectos têm certas características humanas mais ou menos
metaforicamente, é um dos motivos pelos quais se enraiza a crença de que
algumas coisas podem proteger-se sozinhas. Por exemplo, quase ninguém
protestará se o trabalho de preservação (incluindo investigação, conservação,
exposição e divulgação) de obras de arte não receber o financiamento
necessário. Se falássemos mais vezes da vulnerabilidade de certas coisas como
obras de arte, textos filosóficos ou literários e algumas práticas em torno destes
que são necessárias à sua preservação, talvez mais pessoas fossem sensíveis à
gravidade dos cortes de financiamento de algumas instituições e actividades.
A imprecisão de Bill Brown e de outros que adoptam uma perspectiva
semelhante para falar da relação entre pessoas e coisas em questão nas
colecções assume, portanto, consequências éticas e consequências políticas. A
231
dimensão ética deste problema relaciona-se com uma má avaliação do impacto
das actividades humanas tanto a nível individual como a nível colectivo.
Individualmente, as pessoas devem ser avaliadas pelo que fazem. Desligar as
pessoas daquilo que fazem não só as desresponsabiliza das próprias acções
como também pode escamotear o valor das suas actividades. Convém
percebermos que, por um lado, as nossas acções têm consequências na nossa
própria vida e na dos outros e que, por outro, o não-empenhamento em certas
actividades tem igualmente repercussões.
Uma descrição da relação entre pessoas e coisas que atribui às segundas
capacidades que só caracterizam as primeiras impossibilita uma boa
compreensão tanto do que é ser uma pessoa, como da necessidade de uma ética
que assegure a preservação das coisas que consideramos importantes. Sem esta
ética relativamente às coisas, sem a compreensão correcta de que ser uma
pessoa implica a liberdade de agir como tal, preservando o que se considera
importante, não teremos decisões políticas que respeitem as pessoas e as coisas.
Sem dúvida, a confusão ou aproximação entre características de coisas e
de pessoas assume muitas vezes aspectos que facilitam a interacção de
conceitos abstractos e elementos materiais e, com esta, a própria inteligibilidade
das pessoas e dos percursos destas no universo material. Ainda assim, é ingénuo
acreditar que todas as confusões entre pessoas e coisas são inofensivas. Não
estamos sequer a pensar nos casos mais graves em que as pessoas são tratadas
como coisas (escravatura, etc.). Queremos apenas chamar a atenção para
algumas consequências do erro conceptual de atribuir às coisas capacidades
humanas.
Estamos a dizer que coleccionar objectos se articula com a percepção de
uma distinção fundamental entre objectos e pessoas, de acordo com a qual os
232
objectos, ao contrário das pessoas, não se protegem nem se explicam a si
mesmos. O primeiro e o segundo capítulo desta tese chamam a atenção para a
vulnerabilidade não só das coisas materiais, mas também das próprias obras de
arte mais importantes da nossa cultura. Entregue a si mesmo, sem protecção
humana, o Parténon aproximou-se do estatuto de ruína. Os museus, as
colecções e os coleccionadores, apesar de serem muitas vezes associados à
desintegração do contexto original das obras de arte, contribuem, pelo
contrário, para preservar certos objectos (e com estes, certas práticas, certos
valores, alguma informação) que de outro modo poderiam perder-se para
sempre.
O segundo problema da confusão entre pessoas e coisas relaciona-se com
o risco de reduzir as pessoas a uma descrição meramente material. Devido a
uma certa saturação relativamente aos problemas e abusos das descrições
psicológicas (generalizações, lugares-comuns, desresponsabilização das pessoas
relativamente às suas acções, explicações demasiado elaboradas), uma das
motivações desta tese foi explorar as possibilidades de descrever
coleccionadores e pessoas a partir do que é intersubjectivo, observável e
partilhado. Esta ideia, no entanto, não é incompatível com a noção de que as
pessoas têm uma vida mental que não é totalmente observável e pode não ser
partilhada, ainda que uma das conclusões desta tese seja a de que o que de
subjectivo partilhamos com os outros é mais importante do que aquilo que não
partilhamos – no sentido em que o partilhado tem mais consequências na vida
dos outros e na nossa.
Estes dois tipos de problemas das confusões entre pessoas e coisas
(desresponsabilização das pessoas, descrições puramente materiais) são
facilmente evitáveis se prestarmos atenção à vertente ética da distinção entre
233
pessoas e objectos – vertente aliás sublinhada por Kant quando fala das pessoas
como «fins em si mesmos». Nesse caso sobressai não só a noção de
responsabilidade das pessoas pelas suas acções, associada à ideia de que é
preciso assumir esta capacidade de acção, mas também a importância de uma
relação ética das pessoas tanto umas com as outras como com os próprios
objectos.
Falar dos objectos de uma pessoa ou de uma cultura para descrevermos
essa pessoa ou essa cultura não implica reduzir a descrição desta pessoa ou
desta cultura aos objectos que lhes pertencem. Implica que, para o melhor e
para o pior, as pessoas também são o que fazem com as coisas à sua disposição.
Aprendemos a ser humanos não só com as pessoas que conhecemos, mas
também com os objectos que herdamos, reunimos, usamos ou preservamos.
Precisamos de uma relação ética com os objectos em nosso redor que
implica quer a consciência da sua possível polivalência ontológica (a ideia de
que estes poderão ser usados de modos diferentes ao longo do tempo), quer a
ideia de que preservar um objecto que valorizamos pode corresponder a
preservar uma faceta cultural ou identitária que não queremos perder. Cabe às
pessoas a preservação das coisas que consideram importantes visto que estas
não se preservam a si próprias.
Depois de salientarmos os problemas da atribuição de características
humanas às coisas, vamos pensar sobre alguns problemas de descrever pessoas
como coisas. No romance À Rebours, de Joris-Karl Huysmans332, estamos
interessados nas implicações que, parecendo óbvias, nem sempre são assumidas
e compreendidas integralmente, da evidência de que as pessoas se distinguem
332 Huysmans, Joris‐Karl. [1884] 1977. À Rebours. Paris: Folio.
234
das coisas pela capacidade de pensar e pela capacidade de agir. Huysmans
propõe-nos um protagonista confuso sobre as distinções entre pessoas e
objectos. Ao longo do romance, des Esseintes vai gradualmente perdendo
características humanas e aproximando-se do estatuto de objecto. Este
romance servirá de ponto de partida para explicarmos melhor os problemas
desta confusão.
O livro de Huysmans tem um enredo fácil de descrever. Com o objectivo
de se isolar do resto da sociedade, o protagonista vende o património da
família para adquirir uma casa decorada por ele próprio e preenchida com as
suas colecções. Este projecto de isolamento, contudo, fracassa. A saúde mental e
física de des Esseintes mostra-se comprometida – esgotamento físico e
intelectual, inércia, memórias intensas, alucinações – , ao ponto de o médico
lhe recomendar que regresse à vida em sociedade se quer sobreviver.
Do ponto de vista narrativo, o romance À Rebours caracteriza-se pela
escassez de acontecimentos. Essencialmente, podemos distinguir três
momentos cronológicos importantes na narrativa: a decisão do protagonista de
se afastar da vida social; o período em que o protagonista vive em isolamento; o
desfecho, em que se vê obrigado pelo médico a regressar à convivência social.
São mencionados diversos episódios da existência do protagonista anterior ao
presente da narração, mas estas referências são apresentadas num contexto
pouco fiável que mistura recordações e alucinações.
O segundo momento, em que são descritos os processos de escolha,
organização e reflexão de des Esseintes sobre os objectos das suas colecções,
ocupa o maior número de páginas. Os capítulos associados a este período não
privilegiam a descrição de acções. Tanto a atenção do protagonista como a
atenção do narrador se centram nos objectos que rodeiam o primeiro. A
235
ausência de interacção do protagonista com outras pessoas e outros espaços
parece anular qualquer possibilidade de progressão da acção. A nossa percepção
de des Esseintes depende essencialmente da descrição dos objectos de que este
se rodeia.
Verifica-se uma indistinção progressiva entre o protagonista e os objectos
de À Rebours. Ao longo do romance, o declínio da saúde física e mental do
protagonista vai-se associando ao enfraquecimento da sua vontade de agir, ao
ponto de des Esseintes ser comparável a um objecto devido à inércia e à
passividade. Mais do que isso, a subjectividade do protagonista torna-se
indistinta dos objectos de que se rodeia333. A sua humanidade vai-se perdendo à
medida que se vão dissolvendo as fronteiras entre, por um lado, a sua
consciência ou subjectividade e, por outro, os objectos da suas colecções. A
tartaruga com diamantes incrustados na carapaça (no quarto capítulo) pode ser
descrita como duplo do protagonista. Assim como a tartaruga morre porque a
trataram e confundiram com um objecto, também des Esseintes pereceria se
insistisse em continuar a existir do mesmo modo. À Rebours mostra os
problemas dos retratos do coleccionador como alienado que se confunde com a
própria colecção. Nenhum coleccionador sobreviveria durante muito tempo se
fosse realmente como os coleccionadores costumam ser descritos: avatares de
des Esseintes. Nenhuma descrição de colecção como abdicação da interacção
social e material está correcta. Nenhuma descrição do coleccionador que o
reduza à própria colecção pode estar completa.
333 «A subjectividade de des Esseintes está completamente enredada na objectividade concretizada textualmente nos produtos da cultura material, móveis, livros, obras de arte, bibelôs e outros coleccionáveis incluídos na casa.» (Watson 2004, 140.)
236
Não parece descabida uma comparação entre o espaço de À Rebours e o
das naturezas-mortas. Nas naturezas-mortas não só a figura humana está
ausente como também os objectos são representados com uma atenção a
pormenores materiais e sensoriais que habitualmente passam despercebidos ao
olhar humano334. Também em À Rebours o protagonista é circunscrito à sua
materialidade, vendo-se preso numa abundância de dados sensoriais. Des
Esseintes queixa-se de percepções sensoriais confusas: «Depois dos pesadelos,
das alucinações olfactivas, dos problemas de visão, da tosse áspera, com a
regularidade de um relógio, dos ruídos das artérias e do coração e dos suores
frios, surgiram as alucinações auditivas, essas alterações que só se manifestam
na fase final de uma maleita».
Na medida em que parece suspenso num presente contínuo, des
Esseintes vive no tempo como um objecto. Por não se implicarem em acções,
tanto os objectos de des Esseintes como o próprio des Esseintes parecem
matéria deslocada – um «lugar mal situado», como diria Daniel Faria335 –, no
sentido em que estão isolados, sem integração em relações dinâmicas, sem
afectarem nem serem afectados.
Jeff Malpas336 sugere que a actividade de pensar – uma das
características que nos distinguem como seres humanos – é indissociável da
capacidade de ocuparmos o nosso lugar no mundo: «O ‘onde’ do pensamento, o
334 Sobre este assunto, ver Bryson, Norman. 1990. Looking at the Overlooked: Four Essays on Still Life Painting. Londres: Reaktion Books. 335 Faria, Daniel. 2003. «Homens que são como lugares mal situados», Poesia. Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições. 336 Malpas, Jeff. 2014. «’Where Are We When We Think?’: Hannah Arendt and the Place of Thinking» (no prelo).
237
verdadeiro lugar do pensamento, é o lugar original em que o próprio mundo se
revela a nós. [...] Pensar é regressar ao lugar em que o próprio pensamento
começa, que é também o lugar em que encontramos o nosso próprio começo – o
lugar onde, poderíamos dizer, nós próprios nascemos para o mundo.» 337
O «lugar onde se começa a pensar» tem a ver com a posição que
ocupamos no contexto cultural em que nascemos. Situarmo-nos neste lugar
implica tomar consciência das possibilidades de acção permitidas em tal
contexto. Quem somos e o que fazemos é condicionado pelas possibilidades de
acção admitidas na nossa cultura338.
A existência humana assume uma dimensão passiva, condicionada pela
colectividade e pela cultura que caracteriza o espaço e tempo em que se
desenvolve. Ao mesmo tempo, implica uma dimensão individual, livre e activa, a
partir da apropriação individual das oportunidades culturais ao seu dispor339.
Para descrevermos uma pessoa, portanto, precisamos de descrever o «lugar»
em que esta se situa e onde «começa a pensar». Em contraste com des
337 Malpas 2014. 338 «[N]ão somos mais (e às vezes menos) que co‐autores das nossas próprias narrativas. [...] Pisamos um palco que não escolhemos e descobrimos que fazemos parte de uma acção que não teve origem em nós.» (MacIntyre 2011, 213.) Segundo MacIntyre, as pessoas começam sempre a vida in media res: «com o início da própria história já decidido por aquilo e por quem as precedeu.» (MacIntyre 2011, 215). Deste modo, são sempre herdeiras do passado: «O que eu sou, portanto, é, num aspecto fundamental, o que herdo, um passado específico que está presente em alguma medida no meu presente. Descubro que faço parte de uma história [...], quer queira, quer não, quer o aceite, quer não, que sou um dos guardiães de uma tradição.» (MacIntyre 2011, 221.) 339 «Lançados no mundo, encontramo‐nos sempre «já» circunstritos a um contexto de possibilidades de compreensão cultural e historicamente constituídas que determinam as escolhas e os modos de compreender as coisas possíveis. Ao mesmo tempo, como projecção para essas possibilidades, estamos sempre a articular o contexto de inteligibilidade numa configuração de significado que é nossa.» (Guignon 2002, 269.)
238
Esseintes, que tudo faz para se libertar de qualquer herança familiar e para se
isolar de todo o contacto social, os seres humanos relacionam-se
necessariamente com o que recebem do contexto biológico, cultural e social em
que se situam. Embora esta dimensão pública e colectiva seja decisiva em
qualquer existência, para descrevermos uma pessoa é necessário tomar em
consideração as acções de individualização e autodefinição dela própria neste
contexto.
Lambert Strether, o protagonista do romance The Ambassadors, de
Henry James, afirma que é possível distinguir os coleccionadores dos simples
herdeiros: «Chad e Miss Gostrey tinham vasculhado e comprado e recolhido e
trocado, examinando minuciosamente, seleccionando, comparando; enquanto a
senhora daquele lugar, maravilhosamente passiva e sob o encanto da
transmissão [...], tinha apenas recebido, aceitado e estado sossegada.»340
Contudo, nenhum de nós consegue sobreviver sem ser parcialmente herdeiro e
parcialmente coleccionador.
Uma vida individual pode ser descrita como apropriação do «lugar» em
que se nasce. Porque permitem estudar com clareza o modo como as pessoas
inscrevem a sua presença neste lugar, as colecções e a actividade de coleccionar
são a expressão por excelência desta apropriação.
Herdamos parcialmente os nossos interesses a partir do que é preservado
e valorizado na cultura em que nascemos. No entanto, tal como o protagonista
do romance Le Cousin Pons, de Balzac, realizamos uma apropriação pessoal
destes valores partilhados. Uma colecção expressa uma percepção individual,
um conjunto de valores individuais, e resulta de um esforço de articulação,
340 Citado em Douglas 2006, ix‐xi.
239
clarificação e estabilização destas percepções e destas valorizações para si
mesmo e para os outros.
Dar uma expressão concreta aos nossos interesses – através de uma
colecção, através da identificação das nossas coisas preferidas – é uma maneira
de fazermos sentido tanto de nós próprios como daquilo que nos rodeia, de
percebermos e partilharmos o que está próximo ou distante de nós, de
compreendermos o que podemos usar ou rejeitar do que temos à nossa
disposição.
Muitas vezes o que torna um objecto ou um conteúdo significativo para
nós não é a intenção na sua origem, mas o significado que somos capazes de lhe
atribuir341. As colecções que estudámos nesta tese são a demonstração da
dimensão activa e individual da apropriação de referências culturais. Por vezes,
como notámos no caso dos Mármores do Parténon, a apropriação individual
processa-se através de descontextualizações e desentendimentos das intenções
na sua origem e estes mal-entendidos afectam a cultura de modo decisivo. Não
só lorde Elgin parece ter desrespeitado a função original dos Mármores do
Parténon, como o próprio British Museum propõe uma apresentação dos
Mármores que representa mal as intenções de lorde Elgin na origem da
constituição desta colecção.
De vez em quando, a cultura define-se a partir de mal-entendidos e
descontextualizações. Como constatámos nos primeiros três capítulos desta
tese, por vezes «descontextualização» é uma descrição de «apropriação
individual» e de «colecção». Esta descontextualização, porém, não é
341 Neste sentido, vivemos uma existência em que as preocupações de disciplinas como a História da Arte não são inicialmente o mais decisivo, ainda que estas possam assumir grande relevância em contextos mais específicos.
240
necessariamente negativa, sobretudo se for a única forma de preservar um
objecto ou uma obra.
Também as casas-museus de John Soane e de Isabella Stewart Gardner
são exemplo deste tipo de apropriação. Os objectos reunidos e expostos nestes
espaços não seguem qualquer critério de organização cronológica ou
genealógica, dependendo antes das opções idiossincráticas dos coleccionadores.
A propósito da Colecção Menil e do «museu imaginário» de Malraux,
constatámos igualmente que um objecto integrado numa colecção de arte pode
ter desempenhado outra função no passado. Estas colecções demonstram que é
possível que as coisas sejam usadas independentemente das intenções na sua
origem ou das funções que desempenham nos contextos que ocuparam. Nestes
mal-entendidos residem novas possibilidades de sentido342.
Como defende Donald Preziosi, em certos momentos é necessário
libertar a arte das disciplinas da estética, da História da arte e da museologia343.
De acordo com Preziosi, estas disciplinas tratam as obras de arte como
repositórios de informação histórica e como meios de expressão das intenções
de um artista. Tal abordagem não toma em consideração a complexidade da 342 «De acordo com um lugar‐comum, o que ouvimos e o que é dito ou o que tem significado para mim e o que tem significado para a outra pessoa raramente coincidem, mas talvez seja menos frequente a ideia de que [...] isto abre espaço para várias oportunidades de reorganização e de reconstrução de ‘significados’ para os nossos próprios fins.» (Wegener 1992, 87‐88.) 343 «[E]m última análise, praticar História da arte ou museologia como aconteceu no século vinte pode não ser necessariamente a melhor maneira de compreender a arte ou a História da arte» (Preziosi, Donald. 2003. Brain of the Earth’s Body: Art, Museums, and the Phantasms of Modernity. Minneapolis e Londres: University of Minnesota, 4). Um pouco mais adiante, Preziosi cita Agamben: «Talvez nada seja mais urgente – se queremos realmente lidar com o problema da arte no nosso tempo – do que uma destruição da estética que, clarificando o que habitualmente não é questionado, nos permita colocar em questão o próprio significado da estética como ciência da obra de arte.» (Preziosi 2003, 42.)
241
interacção entre os objectos artísticos e as pessoas, como John Dewey salienta
em Art as Experience. Para isso, precisamos de uma perspectiva mais ampla,
capaz de captar as interacções das pessoas e de todas as coisas (artísticas ou
não) na vida quotidiana. Estudar a actividade de coleccionar pode contribuir
para a expansão das perspectivas da História da arte e da estética.
6.2 Contiguidades e consideração
Por se articularem com um investimento no que nos rodeia e em nós
mesmos – um compromisso, um empenhamento, uma presença forte –, as
coisas de que gostamos são indissociáveis da pessoa que somos e daquilo que
fazemos. Ao mesmo tempo, o lugar que aquilo de que gostamos ocupa nas
nossas vidas assume uma dimensão ética, relacionada com o tipo de pessoa que
somos ou queremos ser.
Ter interesse pelo que nos rodeia, interagir com o que nos rodeia,
considerando inevitavelmente certas coisas mais importantes do que outras, é
uma característica da vida humana344. Criar uma colecção é dar uma forma
344 A existência humana desenvolve‐se em articulação com as coisas e as pessoas em torno de si. Ter interesse pelo que nos rodeia é como ter saúde: sem saúde e sem interesse pelo que nos rodeia torna‐se mais difícil não só viver mas também sobreviver. Christine Korsgaard explica muito bem esta questão: «A ideia de que os valores culturais são o que dá valor à vida parece‐me errada do mesmo modo que a ideia de que a saúde dá valor à vida estaria errada. Ou melhor, está errada a não ser que a compreendamos como uma espécie de tautologia, como aquela implícita no pensamento de que só queremos sobreviver se tivermos boa saúde. Assim como penso que valorizamos necessariamente a saúde porque temos uma vida física, penso que valorizamos necessariamente os valores culturais porque faz parte da nossa natureza, enquanto seres humanos, ter uma vida cultural. [...] Temos de nos preocupar com a saúde porque temos uma vida física. E temos de nos preocupar com a cultura porque a forma específica da vida humana, da nossa vida, é cultural.» (Korsgaard 2005, 82‐83.)
242
concreta e relativamente estável aos nossos interesses, um modo de
percebermos, indicarmos, partilharmos e chamarmos a atenção para as coisas
importantes na nossa vida. Em suma, concordamos com a lista de motivos para
valorizar a actividade de coleccionar que Stanley Cavell propõe: «temos
interesse em aprender a proximidade, na estabilidade da materialidade, em
sermos compreensíveis aos outros, assim como temos interesse na persistência
do próprio interesse»345. A persistência do interesse pelo que nos rodeia, pela
inteligibilidade dos outros e pela nossa própria inteligibiliddade preserva a
liberdade de sermos humanos.
Contra grande parte da bibliografia sobre o tópico, chegamos assim a
uma descrição aberta da actividade, segundo a qual coleccionar não
corresponde a uma estratégia de autoprotecção do sujeito relativamente a tudo
o que se situa no seu exterior, mas antes não só resulta da interacção do sujeito
com o exterior, como talvez seja o melhor ponto de partida para percebermos
outras interacções das pessoas com o que as rodeia (por exemplo, conversar,
escrever ou criar arte).
O filme Museum Hours346 mostra-nos como este ponto de vista pessoal
se articula com o modo de visão panorâmica que descrevemos mais
pormenorizadamente no segundo capítulo mas exploramos ao longo de toda a
tese.
Este filme passa-se em Viena e tem dois protagonistas: Anne, que está na
cidade para acompanhar os últimos dias de vida de uma prima em coma no
hospital; e Johann, um vigilante do Kunsthistorisches Museum que a primeira
345 Cavell 2005, 266. 346 Museum Hours. 2013. Real. Jem Cohen.
243
conhece numa das visitas que faz a este espaço. Ao longo do filme, seguimos as
actividades com que Anne ocupa o tempo livre na cidade, entre conversas com
Johann e visitas ao hospital e ao museu. Neste percurso, o interior e o exterior
do museu assumem um estatuto equivalente. No museu, o filme mostra objectos
e figuras que poderiam ser encontrados nas ruas. A cidade é filmada e
observada pela protagonista como um museu, devido à acumulação de camadas
de tempo, aos seus rituais, às suas regularidades e lendas ou mitos347 e outros
elementos da paisagem, como torres, sinalizações estranhas, parques, etc.
A dissolução das fronteiras entre o interior e o exterior do museu, assim
como a anulação da distinção entre arte e objectos menores implícitas no
percurso e no olhar da protagonista em Viena, articulam-se com a possibilidade
de pensar sobre o tempo de modo não-linear.
A expressão «comércio activo e atento com o mundo» de Dewey348 é
particularmente adequada para descrever a presença da protagonista de
Museum Hours na cidade que visita. No seu percurso, tudo está em relação: os
objectos representados no museu relacionam-se com o que vê na rua, na feira da
ladra, no bar, ou no hospital, na medida em que a ajudam a fazer sentido da sua
presença na cidade. A materialidade de todos os objectos que encontra e a
consciência do seu carácter perecível articulam-se com a consciência da
347 Sante, Luc. Livrete do filme. 348 Conforme observámos no quarto capítulo, em Art as Experience Dewey sugere que existe continuidade entre a arte e a vida quotidiana. Para Dewey, a experiência estética está presente na vida quotidiana (Dewey [1934] 2005, 48, 50). Na sua perspectiva, isto verifica‐se nos casos em que há interacção atenta das pessoas com o que as rodeia: «A experiência, na medida em que é experiência, é vitalidade intensificada. Em vez de significar estar isolado com os próprios sentimentos e sensações privados, significa um comércio activo e atento com o mundo; na sua máxima expressão, significa interpenetração completa do eu e do mundo dos objectos e dos acontecimentos» (Dewey 2005, 18‐19).
244
efemeridade da presença humana no mundo, relacionada com a proximidade da
morte da prima. As fronteiras espaciotemporais perdem importância no
percurso da protagonista. Objectos de tempos e espaços diferentes estão
relacionados, situando-se ao mesmo nível de importância. Para mostrar e
descrever aquele momento na vida da protagonista, o filme recorre a todos, a
todos dedicando o mesmo tipo de atenção.
A descrição das telas de Bruegel349 proposta por uma guia na sequência
da visita orientada ajuda a caracterizar a relação humana com o tempo. Por um
lado, tal como Bruegel, não podemos escapar ao contexto cultural em que
nascemos na medida em que este condiciona todas as nossas opções. Por outro
lado, como os coleccionadores, podemos assumir uma perspectiva panorâmica,
em que exploramos proximidades e distâncias com objectos e interesses de
todas as épocas.
Salvaguardadas as devidas distâncias, este filme articula-se com uma
perspectiva comparável àquela que Maira Kalman trabalha em My Favorite
Things, o livro que descrevemos na introdução desta tese. Tanto num caso como
noutro, as pessoas são apresentadas através do que suscita o seu interesse e das
relações que estabelecem entre si e o que as rodeia. Em ambos os casos as coisas
preferidas convocam todos os aspectos de uma vida.
349 Na sequência da visita guiada à sala de Bruegel, a guia aborda a questão da relação do tempo com as obras de arte, interrogando‐se sobre a (im)possibilidade de um quadro ser intemporal. Por um lado, Bruegel representa a violência e a brutalidade (guerra, conflitos religiosos, revoltas, massacres) da sua época. Por outro, as suas telas associam‐se a um universo que ainda hoje reconhecemos, de cenas da vida rural, casamentos, banquetes, conjugando uma dimensão realista e outra mais fantástica, relacionada com rituais, mascaradas, alegorias e mais manifestações de humanidade, a que é impossível associar a uma época específica. Algumas das telas de Bruegel podem ser vistas como inventários de pessoas, de provérbios, de aparências, de atitudes e de comportamentos, ocorrendo nelas elementos (rostos, gestos, objectos, pássaros, lixo) que reencontramos nos outros espaços, mais contemporâneos, do filme.
245
À semelhança do que se verifica no filme Museum Hours e no livro My
Favorite Things, nesta tese salienta-se a noção de uma ética em relação às
coisas com que vivemos350 em que as segundas não são encaradas nem como
objecto de posse nem como objecto de conhecimento, mas sim enquanto objecto
de consideração. Neste contexto, o termo «consideração» significa tanto
«atenção» como «apreço» ou «respeito». É uma noção próxima da
«preservação» heideggeriana. De acordo com Heidegger, as pessoas existem
enquanto tal quando habitam o espaço tratando com consideração o que as
rodeia: «O modo como tu estás e eu estou, o modo como nós, seres humanos,
estamos na Terra é Buan, habitando. Ser humano significa estar na Terra como
mortal. Significa habitar. A palavra antiga bauen, que diz que o homem é na
medida em que habita, esta palavra bauen, contudo, significa ao mesmo tempo
valorizar e proteger, preservar e tomar conta de, mais especificamente lavrar o
solo, cultivar a vinha.»351
Encontrámos explicitamente o mesmo tipo de «consideração» nas
actividades da Fundação Menil. A propósito do empenhamento dos Menil no
estudo das peças da colecção, Pamela Smart observou: «o desvelo [dos
coleccionadores] em relação à colecção manifestava-se não só na aquisição de
objectos mas também no tratamento adequado que estes recebiam depois de
350 «E se as obras de arte […] estão entre as coisas mais importantes para nós no mundo [...], então deve certamente haver um impulso ético em questão aqui (isto é, na nossa preservação das obras de arte) a que poderíamos dar uso edificante em outros domínios mais mundanos e noutros aspectos da nossa vida quotidiana no «mundo das coisas». A capacidade ou disponibilidade para nos interessarmos pelo mundo das coisas [...] deve ser redireccionada para a nossa partilha do mundo.» (Roelstraete, Dieter. 2014. «Art as Object Attachments: Thoughts on Thingness», Hudek 2014, 65.) 351 Heidegger 2001, 145 («Construir, Habitar, Pensar», itálico no original).
246
integrados na colecção. Conhecer um objecto, empenhar-se em compreendê-lo
nos seus diversos aspectos, é dar-lhe vida e cuidar dele, intensificando a
densidade da relação [...] entre o coleccionador e o que é coleccionado.»352
Preservar um objecto não é só descrever a sua origem histórica, mas implica
considerá-lo em todos os seus aspectos e potencialidades. Respeitar um objecto
não implica necessariamente confiná-lo à sua função de origem, mas sim tentar
perceber em que descrições e acções este pode ser integrado, de modo que
continue a assumir uma presença significativa na vida das pessoas.
Tal ética em relação aos objectos articula-se com uma ética
relativamente aos seres humanos em que, como assinalam Kant e Korsgaard, a
liberdade é um valor fundamental.
A actividade de coleccionar é a expressão por excelência desta liberdade.
Quando definem o que é coleccionável, os coleccionadores participam no
processo social de definição do que é mais importante na vida. Como observa
David Graeber, «a liberdade suprema não é a liberdade de criar ou acumular
valor, mas a liberdade de decidir (colectiva ou individualmente) o que faz a vida
valer a pena [«what it is that makes life worth living»]. Em última instância,
portanto, a política tem a ver com o sentido da vida.»353
A liberdade de apresentar, partilhar e preservar o que é mais importante
ou interessante para nós tem um impacto político e ético que deve ser estudado
e não secundarizado. Desvalorizar estas formas de autodefinição intersubjectiva
equivale a silenciar talvez a forma mais democrática de influenciar uma cultura
e de a manter viva. Coleccionar e/ou expressar interesses e preferências não são
actividades ociosas, insignificantes e inofensivas, mas sim processos através dos 352 Smart 2011, 78‐79. 353 Graeber 2001, 88.
247
quais as tendências culturais se definem, desenvolvem e ampliam. Secundarizar
estas opções individuais contribui para defender outras já instaladas, pelo que
não é inócuo. Pelo contrário, tem consequências políticas e económicas com um
impacto cultural decisivo na nossa vida colectiva e individual. Ser humano, ser
feliz, ter uma vida com alguma felicidade dependem da possibilidade de se
desenvolver e partilhar os próprios interesses.
Estudar a actividade de coleccionar ajuda-nos a compreender os
processos de individualização e de autodefinição das pessoas. Clarifica o papel e
a importância do estabelecimento de relações entre pessoas, entre coisas e entre
pessoas e coisas. Permite-nos reflectir sobre os modos como uma cultura se
amplia ou, pelo contrário, se vai reduzindo, simplificando e esclerosando. Deste
modo, ajuda-nos a chegar a uma compreensão melhor do que significa estar
vivo e ser uma pessoa.
Em epígrafe no início deste capítulo, Barbara Johnson sugere que ser
uma pessoa corresponde à experiência do fracasso de ser uma coisa354. Um
pouco antes desta frase, Johnson observa no livro Persons and Things: «A
identificação com uma forma bela é uma identificação da vida em si como
354 Vamos tentar explorar sem referências directamente psicanalíticas a oposição entre pessoa e coisa em questão nesta epígrafe, mas sabemos que a frase de Johnson se articula com a noção freudiana de «pulsão de morte», descrita como instinto para regressar ao estado inanimado no ensaio «Além do Princípio do Prazer»: «[a vida] tem de aspirar a um estado antigo, um estado primordial de que partiu e para o qual [...] procura regressar. Se é razoável supor [...] que todos os seres vivos morrem – revertendo ao estado inorgânico – por razões intrínsecas, então vemo‐nos obrigados a dizer que a meta da vida é a morte [...]: o inanimado existia antes do animado.» (Freud, Sigmund. 2003. Beyond the Pleasure Principle and Other Writings. Trad. John Reddick. Londres: Penguin Classics, 78.)
248
imperfeição. Só o inanimado tem a fixidez, a ausência de emoções, a falta de
necessidades que corresponde a um ideal imutável.» 355
Como já vimos, a aspiração das pessoas à imutabilidade perfeita das
coisas relaciona-se com o desejo de fixarem para sempre uma descrição
autocontrolada de si mesmas, ou seja, com o desejo de tornarem clara e estável
a sua própria inteligibilidade perante si mesmas e os outros, inclusivamente
depois da própria morte. Através da colecção, o coleccionador expõe uma
perspectiva que representa a sua interacção com os objectos que fazem parte do
seu lugar no universo, tentando torná-la impermeável à passagem do tempo e às
incompreensões das pessoas. Reunir uma colecção pode ser entendido como a
criação de um prolongamento material, menos vulnerável à morte e à mudança.
Uma colecção pode ser vista como concretização material da perspectiva pessoal
do seu proprietário, da sua subjectividade, ou da sua identidade, capaz de durar
mais do que a seu corpo material, e, portanto, podendo potencialmente
assegurar que o coleccionador seja recordado como ele próprio decidiu. Estas
descrições de coleccionador e de colecção, no entanto, ainda estão incompletas.
Escrevendo sobre Proust, Richard Rorty, numa perspectiva um pouco
diferente da de Barbara Johnson, sugere que a narração da Recherche é
desencadeada pela resistência a ser transformado numa coisa pelo olhar dos
outros356. De acordo com Rorty, Proust teria tentado resolver este problema
redescrevendo-se a si próprio e redescrevendo as coisas e as pessoas
355 Johnson 2008, 58‐59. 356 «[Proust] queria não ser só a pessoa que estas pessoas pensavam que ele era, não queria ficar imobilizado na moldura de uma fotografia captada a partir da perspectiva de outra pessoa. Receava ser, no vocabulário de Sartre, transformado numa coisa pelo olhar do outro [...].» (Rorty, Richard. [1989] 1993. Contingency, Irony and Solidarity. Cambridge, Nova Iorque e Melbourne: Cambridge University Press, 102.)
249
importantes para ele. À semelhança do narrador da Recherche, os
coleccionadores redescrevem-se a si próprios, redescrevendo coisas importantes
para eles através da integração destas na colecção. Enquanto estão vivas, as
pessoas podem agir e afectar a sua descrição. As actividades de escrever a
Recherche ou de reunir uma colecção, neste sentido, podem ser descritas como
manifestação de vida através da acção. Este passo de Rorty lembra-nos que a
«experiência de não ser uma coisa» assume uma vertente activa.
Na primeira secção de La Peau de chagrin há um momento importante
em que a presença de um esqueleto permite aproximar a descrição dos objectos
da loja de uma natureza-morta357. Este esqueleto parece transmitir uma
mensagem ao protagonista: «Um luar vindo do céu fez reluzir um último reflexo
rubro em luta contra a noite, ele ergueu a cabeça, viu um esqueleto quase na
penumbra inclinar dubitativamente o crânio da direita para a esquerda, como
que dizendo: os mortos ainda não te querem!»
Destaca-se neste passo a ideia de uma distinção decisiva entre objectos e
pessoas vivas – uma das características mais importantes das naturezas-
mortas. Balzac chama a atenção para esta distinção sublinhando uma oposição
entre vida e morte, seres animados e seres inanimados: o esqueleto, como
porta-voz dos mortos, parece informar o protagonista de que estes o rejeitam
devido a estas distinções.
De acordo com Norman Bryson, as naturezas-mortas encenam uma
rejeição da presença humana no seu universo: «A natureza-morta nega todo o
processo de construir e afirmar os seres humanos como foco primário da
representação. Em oposição ao antropocentrismo dos géneros ‘mais elevados’,
357 Maleuvre 1999, 264.
250
ataca a centralidade, o valor e o prestígio do sujeito humano. [...] Não se trata
apenas de expulsar fisicamente a presença humana: a natureza-morta também
expulsa os valores que a presença humana impõe no mundo.»358 Vamos tentar
a seguir qualificar estas afirmações.
Em La Peau de chagrin, a rejeição da integração do protagonista no
espaço da natureza-morta supostamente verbalizada pelo esqueleto recorda o
protagonista de que está vivo, o que o faz decidir-se a desistir do suicídio que
planeava. No resto do romance, no entanto, o protagonista aceita confundir a
própria vida com uma coisa (a pele de onagro) e, como poderia ter acontecido
com o protagonista de À Rebours, acaba por perecer.
Como observámos no quinto capítulo a partir de Georg Simmel, a
distinção entre sujeito e objecto359 – e de um interior e de um exterior – parece
importante para a aquisição da consciência de se ser sujeito e de se ter
subjectividade. A percepção da diferença do objecto constitui o sujeito na
medida em que se articula com a percepção e com a definição da
autoconsciência humana através da noção de contraste entre esta e o que não é
humano. Segundo Simmel, sujeito e objecto nascem ao mesmo tempo, quando o
sujeito toma consciência da distância que os separa : «O sujeito e o objecto
nascem no mesmo acto»360.
358 Bryson 1990, 60. 359 Para uma abordagem da relação entre as pessoas e os objectos mais próxima da psicanálise e da fenomenologia de Husserl e de Merleau‐Ponty, ver Schwenger, Peter. 2006. The Tears of Things: Melancholy and Physical Objects. Minneapolis e Londres: University of Minnesota Press. 360 Simmel 2011, 67.
251
Neste sexto capítulo salientei também que uma das diferenças mais
importantes entre pessoas e coisas reside na capacidade de acção que distingue
os seres humanos. Num universo sem acções o elemento humano perde
definição, como se verifica em À Rebours. Deste modo, a distinção entre pessoas
e objectos depende de uma relação/distinção entre ser e fazer.
O poema«Interior (with Jane)»361, de Frank O'Hara pode ser associado a
estas duas ideias362:
The eagerness of objects to be what we are afraid to do cannot help but move us Is this willingness to be a motive in us what we reject? The really stupid things, I mean a can of coffee, a 35 ¢ ear ring, a handful of hair, what do these things do to us? We come into the room, the windows are empty, the sun is weak and slippery on the ice And a sob comes, simply because it is coldest of the things we know
Citando a artista Jane Freilicher363, o título convoca um conjunto de
referências relacionadas com o género da natureza-morta, usado
361 O’Hara, Frank. [1991] 2005. Selected Poems. Manchester: Carcanet. 362 Não me interessa aqui propor uma interpretação do poema, mas sim usar alguns versos como ponto de partida para reflectir sobre pontos importantes do tópico das colecções. 363 Jane Freilicher (1924‐2014), representada no Museum of Modern Art, no Metropolitan e no Whitney, e descrita pelo poeta e amigo James Schuyler como «artista para poetas», começou por fazer pintura abstracta (fazia parte do grupo da
252
frequentemente como referência na obra desta artista364. O género da
natureza-morta está em questão em todo o poema. A alusão mais explícita é o
conjunto de objectos aparentemente insignificantes no sétimo e no oitavo verso
– uma lata de café, um brinco de 35 cêntimos, um punhado de cabelos.
Nos últimos versos do poema («And a// sob comes, simply because it is/
coldest of the things we know»), o soluço (traduzo assim «sob» visto que
«soluçar» também pode significar «chorar»), apesar de descrito como «a coisa
mais fria que conhecemos», funciona como um sinal de vida equivalente à
suposta mensagem do esqueleto na loja de La Peau de chagrin. Por não ser
voluntário e controlado («a//sob comes»), é comparável a certos gestos quase
automáticos relacionados com o instinto humano de autopreservação, como
protegermo-nos de um golpe ou lutarmos pela vida numa situação de risco.
Visto que só as pessoas podem soluçar ou chorar, este soluço é um sinal de que
as pessoas vivas não se confundem com coisas, apesar de por vezes elas próprias
assim o desejarem. À semelhança do esqueleto em La Peau de chagrin, este
soluço expulsa a vida do espaço da natureza-morta. A alguém que chora assim, o
corpo parece dizer: «As coisas ainda não te querem!» Lemos este poema com a
obra de Jane Freilicher. Como nas telas de Jane Freilicher que representam um
interior com uma natureza-morta com vista para um exterior, em «Interior
(with Jane)» há janelas e vida além da natureza-morta.
New York School). Em 1948, no entanto, depois de ver uma retrospectiva de Bonnard no Museum of Modern Art, mudou completamente, tendo passado a ser conhecida por pintar interiores com vista para o exterior. 364 Ver, por exemplo, as telas Bread and Bricks/Pão e Tijolos ou Twelfth Street and Beyond/Décima Segunda Rua e Mais Além.
253
Os três primeiros versos do poema («The eagerness of objects to/be what
we are afraid to do//cannot help but move us») ajudam-nos a perceber que se
os objectos se limitam a ser; as pessoas, no entanto, têm de fazer para ser.
No terceiro verso, o verbo «to move» associa-se às noções de emoção e
de motivação, podendo ser entendido tanto enquanto «comover» como
enquanto «mover». A ideia de que os objectos podem ser motivos («this
willingness to be a motive//in us») recorda alguns passos de Intention, de
Elizabeth Anscombe. Na secção 12 deste livro, Anscombe reflecte sobre a noção
de «motivo», observando que falar de motivos não é o mesmo que falar de
causas365. Os motivos não determinam as acções; ajudam a explicá-las e a
interpretá-las: «Os motivos podem explicar-nos as razões; isto, contudo, não
quer dizer que ‘determinam’, no sentido de causarem, as acções. É verdade que
dizemos ‘O amor dele pela verdade levou-o a...’ e coisas parecidas, e estas
expressões sem dúvida nos ajudam a pensar que um motivo deve ser o que
produz ou desencadeia uma escolha. Contudo, isto significa antes que ‘ele fez
isto com amor à verdade’; isto interpreta a acção.»366
A afirmação anterior é válida tanto sobre motivos como sobre objectos.
Como sugerimos quando comentámos algumas frases de Bill Brown, os
objectos, na medida em que são desprovidos de agencialidade, não são as causas
das acções das pessoas; só podem ser motivos com que as pessoas agem.
Na secção 13 de Intention, Anscombe especifica que indicar um motivo é
parecido com dizer: «vê a acção desta maneira». Portanto, segundo Anscombe,
365 Anscombe 2000, 18‐20. De notar, no entanto, que não me interessa aqui explorar a noção de causalidade, mas sim propor uma descrição da relação entre pessoas e objectos. 366 Anscombe 2000, 19.
254
indicar um motivo é dar a ver as acções a uma certa luz367. Numa linha de
pensamento semelhante, de acordo com Mark Doty, o verdadeiro assunto das
naturezas-mortas não é a representação de objectos, mas sim a representação de
um modo de ver – portanto, de uma relação entre sujeito e objecto368, entre
pessoas e coisas.
Enquanto as pessoas podem ver, as coisas só podem ser vistas. Para
qualificarmos as afirmações supracitadas de Norman Bryson sobre as
naturezas-mortas, convém acrescentar que apesar de haver de facto uma
encenação da rejeição da presença humana neste género, não há nele qualquer
impossível eliminação da perspectiva humana. As coisas são sempre
representadas e percepcionadas a partir de um olhar humano que com elas se
relaciona. Frequentemente os objectos das naturezas-mortas destacam-se sobre
um fundo escuro e a luz que nos permite vê-los com tanta nitidez é a do olhar
humano – o olhar do artista e o nosso olhar.
Doty sugere ainda que a atenção ao que nos rodeia nos situa e nos implica
no mundo. Neste sentido, olhar para fora de nós – para o que nos interessa,
para as nossas colecções, para as nossas famílias – é a melhor forma de nos
conhecermos. Quando prestamos atenção ao que está fora de nós, encontramo-
nos na relação que estabelecemos: «Achamos que para nos encontrarmos a nós
mesmos temos de olhar para dentro e analisar as complexidades da origem, as
367 «Indicar um motivo (do tipo a que chamei ‘motivos‐em‐geral’, por oposição a motivos e intenções retrospectivos) é dizer qualquer coisa como ‘vê a acção deste modo’ [see the action in this light]. Explicar as nossas acções através de uma afirmação que indica um motivo é descrevê‐las de certo modo [is to put them in a certain light].» (Anscombe 2000, 21.) 368 «O que é documentado, em última instância, não é a coisa em si mas o modo de ver – o objecto com o sujeito.» (Doty, Mark. 2001. Still Life with Oysters and Lemon. Boston: Beacon Press, 56.)
255
forças definidoras da personalidade. Mas o eu pode igualmente ser encontrado
no mundo; olhando para fora, experienciamos aquele que vê.»369
Neste modo de ver está em questão uma relação – ser com e não ser
como –, não uma identificação, não uma confusão, não uma indistinção, entre
pessoas e coisas. A própria noção de relação, aliás, implica a noção de diferença.
Sem diferença não há relação, mas sim indistinção e identidade monádica.
À semelhança do que se verifica em muitas naturezas-mortas e também
no passo de La Peau de chagrin que citámos neste capítulo, no poema «Interior
(with Jane)» e no romance À Rebours, as colecções podem ser associadas à
noção de memento mori, mas são uma preparação para a morte apenas na
medida em que preparam para a vida. Como o esqueleto em La Peau de
chagrin, as colecções associam-se à lembrança de que os coleccionadores estão
vivos – e não imobilizados na moldura de uma fotografia captada por outra
pessoa – através da relação dupla de, por um lado, distinção e, por outro,
implicação que os coleccionadores com elas estabelecem.
Os objectos das colecções distinguem-se dos coleccionadores na medida
em que, ao contrário dos segundos, não podem agir nem explicar-se nem
preservar-se a si mesmos. Por este motivo, dependem da realização de acções
que implicam os coleccionadores no espaço físico, social e cultural em que estes
se situam e, portanto, os tornam presentes na própria vida e os obrigam a viver
no tempo e no espaço social, integrando as transformações resultantes de
interacções370.
369 Doty 2001, 67. 370 Como Nehamas observa a propósito de uma das ideias principais de Nietzsche, a identidade de cada um é um processo contínuo de integração de traços de personalidade, hábitos e padrões de acção: «Tornarmo‐nos quem somos […] não é
256
Ao mesmo tempo, devido à relação de implicação entre colecção e
coleccionador, o coleccionador deve sempre ser visto com a colecção. A colecção
dá a ver as acções do coleccionador sob um certo aspecto, de certa maneira, a
uma certa luz. Temos de ver a colecção com o coleccionador e o coleccionador
com a colecção, assim como devemos ver as pessoas com as suas acções e com
os conteúdos destas.
Dominique de Menil afirmou uma vez: «Tentamos não parar de
coleccionar. Parar é pertencer à História.»371 A vontade de coleccionar pode ser
descrita como vontade de fazer História em vez de pertencer à História, e
também como vontade de se sentir vivo, através da demonstração constante de
que não se é uma coisa, mas sim alguém que insiste em tentar fazer sentido das
coisas. Deste modo, a famigerada «compulsão» dos coleccionadores para
adquirir objectos, em vez de responder a uma pulsão de morte, talvez não seja
mais do que uma manifestação de vida.
atingirmos um novo estado específico e pararmos de nos transformar – não é sequer atingir‐se um estado. É identificarmo‐nos com todas as nossas acções, perceber que tudo o que fazemos (o que nos tornamos) é o que somos.» (Nehamas 1985, 191.) 371 Smart 2010, 73.
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Lista de imagens em suporte digital
Esta tese inclui um CD com imagens que ilustram os termos do texto
antecedidos pelo símbolo .
As imagens podem ser visualizadas individualmente ou na opção
«apresentação de diapositivos» a partir da pasta «Ilustrações».
Para visualizar as imagens juntamente com a sua identificação, usar o
ficheiro de Powerpoint.
1. Piquenique (Kalman 2014b, 10-11).
2. Domingo nas Margens do Marne, Henri Cartier-Bresson, 1938 (The
Metropolitan Museum of Art).
3. Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte, Georges-Pierre Seurat,
1884 (Art Institute of Chicago).
4. Retrato das irmãs Nellie e Sally Hewitt (Kalman 2014b, 32).
5. Retrato de lorde Elgin: Thomas Bruce, Sétimo Duque de Elgin, Anton
Graft, c. 1788 (Broomhall House, Escócia).
6. Galeria Duveen do British Museum.
7. Possível referência do ensaio de Heidegger: Par de Sapatos, Van Gogh,
1886 (Museu Van Gogh).
8. Peças do Parténon no Museu da Acrópole (Atenas).
9. Anunciação, Filippo Lippi, c. 1449-1459 (National Gallery de Londres).
10. Pormenor de Anunciação, Filippo Lippi.
11. Ruínas de Pannini: Capricho Arquitectónico com Figuras entre Ruínas
Romanas, Giovanni Paolo Pannini, 1730.
12. Ruínas de Piranesi: Giovanni Battista Piranesi, Antigo Cruzamento entre
Via Ápia e Via Ardetina, segundo frontispício de A Antiguidade
Romana, vol. II, 1756.
13. Charles Townley na Sua Biblioteca, de Johan Zoffany, 1782.
14. Retrato de John Soane: Sir John Soane, John Jackson, 1828 (National
Portrait Gallery de Londres).
15. Casa-Museu de John Soane: Secção Longitudinal através do Museu e da
Cripta, pormenor de uma gravura de John Soane publicada em Soane,
274
John. 1835. Description of the Residence of John Soane, Architect (Knox
2008, 14).
16. Sagrada Família no Egipto, Nicolas Poussin, 1655-1657 (Museu
Hermitage de Sampetersburgo).
17. Vista Aérea em Corte do Banco de Inglaterra a Partir de Sudoeste,
Joseph-Michael Gandy, 1830 (Casa-Museu de John Soane).
18. Edifícios Públicos e Privados Executados por Sir John Soane entre 1780
e 1815, Joseph-Michael Gandy, 1818 (Casa-Museu de John Soane).
19. Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas, Hubert
Robert, 1796 (Museu do Louvre).
20. Artista Desenhando Antiguidades na Pequena Galeria, Hubert Robert,
c. 1800 (Museu do Louvre).
21. Galeria de Arte Romana no Museu, Hubert Robert, c. 1790-1799 (Museu
do Louvre).
22. Cripta: Câmara Sepulcral com o Sarcófago de Seti I, Charles James
Richardson, 1825 (Knox 2008, 105).
23. Pátio do monge (Knox 2008, 99).
24. Dulwich Picture Gallery (exterior).
25. Sepulturas dos fundadores da Dulwich Picture Gallery.
26. Paredes que se desdobram em páginas na iconoteca da Casa-Museu de
John Soane (Knox 2008, 94).
27. Paredes invadidas por fragmentos na Casa-Museu de John Soane (Knox
2008, 115).
28. Retrato de Isabella Stewart Gardner: Isabella Stewart Gardner em
Veneza, Anders Zorn, 1894 (Museu Isabella Stewart Gardner).
29. Museu Isabella Stewart Gardner (exterior).
30. Página de um álbum de Isabella Stewart Gardner.
31. Sala holandesa do Museu Isabella Stewart Gardner.
32. Sala Ticiano do Museu Isabella Stewart Gardner.
33. O Rapto de Europa, Ticiano, 1560-1562 (Museu Isabella Stewart
Gardner).
34. Casa que se desdobra em museu: salão pequeno do do Museu Isabella
Stewart Gardner.
35. Retrato de Dominique de Menil, Max Ernst, 1934 (Fundação Menil).
275
36. Mapa da Fundação Menil (brochura da Fundação Menil).
37. S. João no Deserto, Domenico Veneziano, c. 1445-1450 (National Gallery
de Washington).
38. Pedinte, Jacques Callot, 1622.
39. Imagem do Museu Menil: espaços de exposição neutros.
40. Imagem do pavilhão de arte pré-colombiana de Dumbarton Oaks.
41. Entrada principal de Dumbarton Oaks.
42. Casa da família Menil (exterior).
43. Interior da casa da família Menil.
44. Duas páginas do livro Le Musée Imaginaire de André Malraux.
45. Fotograma do filme Museum Hours, de Jem Cohen.
46. Jane Freilicher no Estúdio, fotografia de Nancy Crampton, 1984.
47. Exemplo de natureza-morta: Natureza-Morta com Terrina Chinesa e
Taça com Náutilo, Willem Kalf, 1662 (Museu Thyssen-Bornemisza).
48. Pão e Tijolos, Jane Freilicher, 1984 (Museu Metropolitan)
49. Décima Segunda Rua e Mais Além, Jane Freilicher, 1976 (Galeria Tibor
de Nagy).