memória jurisprudencial ministro teori zavascki

354
Ministro Teori Zavascki Memória Jurisprudencial Brasília 2020 Supremo Tribunal Federal

Upload: others

Post on 16-Nov-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

Ministro Teori ZavasckiMemória Jurisprudencial

Brasília2020

Supremo Tribunal Federal

Page 2: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória JurisprudencialMINISTRO TEORI ZAVASCKI

DANIEL MITIDIEROBrasília

2020

Page 3: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

Secretaria-Geral da Presidência Daiane Nogueira de Lira

Secretaria do Tribunal Eduardo Silva Toledo

Secretaria de Documentação Naiara Cabeleira de Araújo Pichler

Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Flávia Carvalho Coelho Arlant

Diagramação: Camila Penha Soares

Capa: Jorge Luis Villar Peres

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Mitidiero, Daniel.

Memória jurisprudencial [recurso eletrônico]: Ministro Teori Zavascki / Daniel Mitidiero. - Brasília : Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação, 2020.

353 p. - (Série Memória Jurisprudencial).

Modo de acesso: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=publicacaoPublicacaoInstitucionalMemoriaJurisprud>.

ISBN 978-65-87125-10-7

1. Ministro de tribunal supremo, decisão judicial. 2. Ministro de tribunal supremo, biografia. 3. Brasil. Supremo Tribunal Federal, jurisprudência. 4. Zavascki, Teori Albino, 1948-2017, homenagem. I. Título. II. Série.

CDD-341.419104

Page 4: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009), PresidenteMinistro LUIZ FUX (3-3-2011), Vice-PresidenteMinistro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989), DecanoMinistro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002)Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)Ministra ROSA Maria Pires WEBER (19-12-2011)Ministro Luís ROBERTO BARROSO (26-6-2013)Ministro Luiz EDSON FACHIN (16-6-2015)Ministro ALEXANDRE DE MORAES (22-3-2017)

Page 5: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

Ministro Teori Zavascki

Page 6: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar.

Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou uma renovada época.

Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das presta-ções de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da socie-dade civil.

É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valo-

res expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os hori-zontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.

O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.

A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru-ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a conso-lidação da função do próprio Poder Judiciário.

Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram sim-plesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar.

Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacio-nal em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.

Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tam-bém delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.

Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático.

Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um plenário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.

O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à defesa das instituições democráticas.

Page 7: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.Entender suas decisões e sua jurisprudência.Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determi-

nado julgamento.Interpretar a história de fortalecimento da instituição.Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acre-

ditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam.

Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.

Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entre os juristas.

A injustiça dessa realidade não vem sem preço.O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma

visão burocrática do Tribunal.Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar home-

nagem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.

Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria for-mação do pensamento político brasileiro.

Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro-fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional.

As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.

Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-institu-cionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos.

Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ-mica própria dessas transformações.

Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.

Page 8: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO.

A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço.

Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos polí-ticos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucio-nais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação.

A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE.

O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intérprete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.

É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes ofi-

ciais da Constituição, sempre teve caráter fundamental.Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política,

não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o tra-balho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativo aos dispositivos da Constituição.

Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências.

Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.

Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fron-teiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais.

Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte.

Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO.

Page 9: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.

A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional.

Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil.

Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico--político brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas cons-truídas alhures.

E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura.

Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006.Ministro Nelson A. Jobim

Presidente do Supremo Tribunal Federal

Page 10: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

PREFÁCIO

Conforme bem observou Norberto Bobbio, em sua obra O Tempo da Memória, “somos aquilo que lembramos”. É a memória institucional que define a identidade de uma instituição.

A preservação da memória do Poder Judiciário não constitui apenas um tributo ao passado, mas um compromisso com as futuras gerações, que têm o direito de conhecer a história nacional sob a perspectiva da atuação do SUPREMO na defesa do Estado Democrático de Direito. É a Justiça que, fazendo valer as leis e a Constituição, livra o cidadão do arbítrio e assegura a efetividade de seus direitos mais básicos.

Nesse contexto, a coletânea Memória Jurisprudencial veio para resguar-dar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO, por meio do res-gate da vida e da obra dos Ministros de hoje e de sempre.

Além de fundamental do ponto de vista histórico e cultural, esta coletânea é um retrato do SUPREMO, instituição centenária de defesa da Constituição, com foco nos homens e nas mulheres que, “ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e [à] defesa das instituições democráticas”.*

Preservar e honrar a memória institucional do Supremo Tribunal Federal e de seus Ministros é reafirmar e fortalecer as bases republicanas e democráticas desta grande instituição.

Sempre que esse tema vinha à mente, meu coração lembrava o querido amigo Teori Zavascki. Segui esse sentimento. Por isso, este volume da Memória Jurisprudencial dedicado ao Ministro TEORI ZAVASCKI tem um significado especial.

Conheci o Ministro Teori em 2003, quando foi nomeado para ocupar uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça e se mudou de Porto Alegre, onde atuava no Tribunal Regional Federal, para Brasília. Naquela época, eu era advogado e atuava na Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. Com sua nome-ação para o Supremo Tribunal Federal, passei a desfrutar de seus ensinamentos e a fazer parte do grupo seleto de amigos que tinham o privilégio de conviver mais pro-ximamente com ele. Inúmeras foram as conversas a respeito da vida e do Direito.

Teori Zavascki sempre se destacou pela firmeza e elegância com que expunha seus argumentos. Divergir dele era sempre muito difícil, exatamente pelos robustos fundamentos técnico-jurídicos de seus julgamentos.

* Ministro Nelson A. Jobim, Presidente do Supremo Tribunal Federal, Apresentação Memória Jurisprudencial, março de 2006.

Page 11: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

Os julgados em destaque na presente obra retratam a magnitude do legado deixado pelo Ministro Teori Zavascki para o aperfeiçoamento dos insti-tutos processuais e do Estado Democrático de Direito.

Casos extremamente importantes foram incluídos nesta obra, como a condução dos processos do STF a respeito da chamada operação “Lava Jato”, a prisão de um Senador da República e o afastamento do então Presidente da Câmara dos Deputados. Mesmo nos momentos dramáticos da vida nacional, o Ministro Teori sempre teve a exata percepção da gravidade das questões que lhe eram submetidas e o alto significado do Poder Judiciário para a preservação do Estado Democrático de Direito, para a vida dos cidadãos e para a integridade das instituições.

Em razão de sua defesa do Estado e do patrimônio público, preocupava--se com o impacto de suas decisões, sempre fundamentadas no direito posto e na Constituição. Em matéria tributária e fiscal, destacava-se pelo rigor técnico--jurídico e pela convicção de suas firmes posições.

Para escrever este volume da coleção Memória Jurisprudencial, a escolha não poderia ser mais acertada. O Professor Daniel Mitidiero é pós-doutor pela Universidade de Pavia (Itália), doutor e mestre em Direito pela UFRGS, advo-gado, ex-aluno, colega de departamento na UFRGS e amigo de Teori Zavascki. Daniel Mitidiero revelou um Teori completo. Do perfil pessoal ao judicante. Com uma impressionante capacidade de análise e sensibilidade, identificou o traço do Ministro Teori Zavascki na construção e evolução jurisprudencial do SUPREMO.

Certa vez, citei uma frase muito marcante do escritor e cineasta francês Marcel Pagnol para externar a tristeza que carrego pela perda do Ministro e amigo Teori. Ela diz o seguinte: “a vida é feita de alegrias passageiras e de tristezas inesquecíveis”. Reelaborando essa frase, digo: lançar o volume da Memória Jurisprudencial dedicado ao Ministro Teori Zavascki, durante minha gestão como Presidente do Supremo Tribunal Federal, é uma alegria inesquecí-vel que carregarei por toda a minha vida.

Aproveitem, caros leitores, os conhecimentos e o potencial transforma-dor das lições, ideias e julgados do Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, que assim sempre se fará presente entre nós.

Brasília, agosto de 2020.Ministro Dias Toffoli

Presidente do Supremo Tribunal Federal

Page 12: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

SUMÁRIO

ABREVIATURAS 13DADOS BIOGRÁFICOS 16 NOTA DO AUTOR 24 INTRODUÇÃO 26 PARTE I — DA CONSTITUIÇÃO AO PROCESSO 27 1. TEORI ZAVASCKI E A EFICÁCIA DAS SENTENÇAS NA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 28 1.1 Supremo Tribunal Federal: Corte de cúpula do Poder Judiciário e Corte Constitucional 28 1.2 Sistema de controle de constitucionalidade das normas 31 1.3 A eficácia das sentenças na jurisdição constitucional 36 2. TEORI ZAVASCKI E O DEVIDO PROCESSO 45 2.1 Direito ao devido processo 45 2.2 Direito ao juiz natural 51 2.3 Direito à tutela jurisdicional adequada 65 2.4 Direito à segurança jurídica no processo 69 2.5 Direito ao recurso 74 3. TEORI ZAVASCKI E O PROCESSO COLETIVO 82 3.1 Processo coletivo: tutela dos direitos coletivos e tutela coletiva dos direitos 82 3.2 Atuação do Ministério Público no processo coletivo 82 4. TEORI ZAVASCKI E OS JUIZADOS ESPECIAIS 100 4.1 Acesso à Justiça e juizados especiais 100 4.2 Juizados especiais e devido processo 100PARTE II — DO PROCESSO AO DIREITO 104 1. TEORI ZAVASCKI, O ESTADO DEMOCRÁTICO E

AS ELEIÇÕES 105 1.1 Estado Democrático e eleições 105 1.2 Financiamento político e controle de contas 105

Page 13: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

2. TEORI ZAVASCKI, O ESTADO DE DIREITO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 131

2.1 Concurso público 131 2.2 Vencimentos dos servidores públicos 131 2.3 Pensão especial para viúva de prefeito 132 2.4 Responsabilidade civil 135 3. TEORI ZAVASCKI, O ESTADO SOCIOAMBIENTAL E

A QUESTÃO INDÍGENA 143 3.1 Estado Socioambiental e terras indígenas 143 3.2 Esbulho renitente 143CONSIDERAÇÕES FINAIS 146REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 147APÊNDICE 149LISTA DE CASOS 350ÍNDICE NUMÉRICO 353

Page 14: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

ABREVIATURAS

1ª T Primeira Turma2ª T Segunda Turmaac. AcórdãoAC Ação CautelarACO Ação Cível OrigináriaADC Ação Declaratória de ConstitucionalidadeADCT Ato das Disposições Constitucionais TransitóriasADI Ação Direta de InconstitucionalidadeAgRg Agravo RegimentalAI Agravo de InstrumentoAO Ação OrigináriaAP Ação PenalARE Recurso Extraordinário com Agravoart. artigoCC Conflito de Competênciac/c combinado comCJ Conflito de JurisdiçãoCDC Código de Defesa do ConsumidorCEF Caixa Econômica FederalCF Constituição FederalCLT Consolidação das Leis do TrabalhoCNJ Conselho Nacional de JustiçaCP Código PenalCPC Código de Processo CivilCPP Código de Processo PenalDIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

SocioeconômicosDJ Diário da JustiçaDJE Diário da Justiça Eletrônico

Page 15: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

EC Emenda ConstitucionalED Embargos de DeclaraçãoEREsp Embargos de Divergência em Recurso EspecialExt Extradiçãofl. FolhaFUNAI Fundação Nacional do ÍndioHC Habeas Corpusj. Julgamento emLC Lei ComplementarMC Medida Cautelarmin. MinistroMP Medida ProvisóriaMPF Ministério Público FederalMS Mandado de SegurançaNCPC novo Código de Processo CivilOAB Ordem dos Advogados do BrasilONU Organização das Nações UnidasP Plenáriop/ paraPet PetiçãoPL Projeto de LeiPPE Prisão Preventiva para ExtradiçãoQO Questão de OrdemRcl Reclamação RE Recurso Extraordináriorel. RelatorResp Recurso EspecialRG Repercussão GeralRHC Recurso Ordinário em Habeas CorpusRISTF Regimento Interno do Supremo Tribunal FederalRMS Recurso Ordinário em Mandado de Segurança

Page 16: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

RTJ Revista Trimestral de JurisprudênciaS Seção STF Supremo Tribunal FederalSTJ Superior Tribunal de JustiçaT TurmaTCU Tribunal de Contas da União TRF Tribunal Regional FederalTSE Tribunal Superior EleitoralTST Tribunal Superior do TrabalhoUFRGS Universidade Federal do Rio Grande do SulURP Unidade de Referência de Preçosvs. versus

Page 17: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

16

Ministro Teori Zavascki

DADOS BIOGRÁFICOS

Teori Albino Zavascki nasceu em Faxinal dos Guedes, Santa Catarina, em 15 de agosto de 1948. Filho de Severino Zavascki e Pia Maria Fontana, casou-se, em 1972, com Liana Maria Prehn Zavascki, com quem teve três filhos: Alexandre Prehn Zavascki (1974, médico), Liliana Maria Prehn Zavascki (1978, advogada) e Francisco Prehn Zavascki (1980, advogado). Em 2004 casou-se com Maria Helena Marques de Castro, de quem ficou viúvo no ano de 2013.

Em 1968, após cursar o ensino básico nas Escolas Reunidas Antônio Cabrera, em Faxinal dos Guedes, e no Seminário Diocesano, em Chapecó, ambos em Santa Catarina, Teori transferiu-se para Porto Alegre, onde prestou vestibular para a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo logrado aprovação de imediato. Destacado aluno, foi o orador de sua turma na formatura de 1972. Adotou Porto Alegre como sua cidade do cora-ção — assim como o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, do qual era notório e apaixonado torcedor, como lembra o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo de Tarso Sanseverino.

Ao longo da vida, Teori Zavascki foi Advogado, Professor Universitário, Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Ministro do Supremo Tribunal Federal. Além de ter marcado época por onde passou, especialmente no STF, em que é consi-derado um dos mais importantes e exemplares Ministros, exerceu o magistério universitário por vários anos. A admiração e o afeto despertos em seus alunos e alunas estão muito bem representados nas numerosas distinções que recebeu como professor paraninfo e professor homenageado, notadamente na Faculdade de Direito da UFRGS.

A carreira teve início ainda no primeiro ano da faculdade, quando o uni-versitário Teori iniciou estágio no escritório de advocacia de Luiz Carlos Lopes Madeira, onde também trabalhavam Paulo Odone e Manoel André da Rocha. Permaneceu por lá advogando depois de formado, até abrir o próprio escritório com a sua então esposa, Liana, e Luís Souza Costa, seu colega de faculdade.

Passados alguns anos na advocacia privada, Teori prestou três concursos públicos (para advogado do Banco Central, para Procurador do Estado do Rio Grande do Sul e para Juiz Federal). Aprovado em todos, decidiu-se pela advoca-cia do Banco Central. De 1976 a 1989, exerceu a advocacia pública, primeiro no Banco Central (de 1976 a 1986), depois no Banco Meridional do Brasil S.A. (de 1986 a 1989), já como superintendente jurídico.

Ainda na década de 1980, iniciou a carreira de professor universitário e trilhou-a com grande destaque por boa parte da sua vida. Inicialmente, foi

Page 18: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

17

Ministro Teori Zavascki

professor de introdução ao estudo do direito na Unisinos, de 1980 a 1987. Neste mesmo ano, foi aprovado em concurso público para o cargo de professor da UFRGS, onde lecionou direito comercial e, logo em seguida, direito processual civil — terreno em que sua produção bibliográfica ganharia enorme importância no cenário nacional. Esse primeiro vínculo com a UFRGS permaneceu até o ano de 2005, quando teve de se mudar para Brasília em função da nomeação para o cargo de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Tão logo se instalou na capital federal, Teori passou a lecionar na Universidade de Brasília e permaneceu vin-culado à instituição até 2013 — ano em que retomou o vínculo com a UFRGS.

Foi também na UFRGS que Teori Zavascki obteve os títulos de Mestre e de Doutor em Direito. Orientado pelo saudoso Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira em ambas as ocasiões, tornou-se Mestre em Direito no ano 2000 (com a defesa da dissertação Eficácias da Sentença na Jurisdição Constitucional) e Doutor em Direito no ano de 2005 (com a defesa da tese Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos).

Mesmo antes de ser nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki já era reconhecido como importantíssimo doutrinador, tendo produzido livros de inegável relevância, cujas lições penetraram fundo na dou-trina, na jurisprudência das Cortes de Justiça e nos precedentes das Cortes Supremas. Trata-se de legado oriundo da vocação docente, manifestada não só nas salas de aula, especialmente em nossa Velha Faculdade, mas também no compromisso permanente com um público mais amplo a partir de suas obras.

Deixando de lado seus numerosos ensaios, Teori publicou monografias e comentários que marcaram época no direito brasileiro.

Em 1997, veio à lume seu primeiro livro, Antecipação da Tutela, publicado em sucessivas edições1. Em 1999, foi lançado seu segundo trabalho de fôlego, Título Executivo e Liquidação, publicado em duas edições antes de ser consi-deravelmente ampliado e transformado em Processo de Execução em 20042. Em 2001, Teori nos presenteou com a obra Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, apresentada igualmente em sucessivas edições3. Em 2006, publi-cou Processo Coletivo - Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, obras com várias posteriores edições4.

Preocupado em instrumentalizar a prática, Teori Zavascki comentou tanto o Código de 1973 como o Código de 2015. Em coleção coordenada por

1 Publicado em sete edições pela Saraiva em 1997, 1999, 2000, 2005, 2007 e 2009. 2 Publicado em três edições pela Revista dos Tribunais em 1999, 2001 e 2004. 3 Publicado em quatro edições pela Revista dos Tribunais em 2001, 2012, 2014 e 2017. 4 Publicado em sete edições pela Revista dos Tribunais em 2006, 2007, 2008, 2009, 2011, 2014 e 2017.

Page 19: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

18

Ministro Teori Zavascki

Ovídio Baptista da Silva sobre o Código de 1973, também de saudosa memó-ria, publicou, em 2000, o oitavo volume dos Comentários ao Código de Processo Civil, no qual enfrentou especificamente o processo de execução5. Em coleção sobre o Código de 2015, dirigida por Luiz Guilherme Marinoni e coordenada por Sérgio Cruz Arenhart e por mim, encarregou-se igualmente do processo de execução6, tendo publicado em 2016 o 12º volume dos Comentários ao Código de Processo Civil.

Todos esses livros encontraram ampla recepção na jurisprudência e em numerosos precedentes judiciais. Para ficarmos apenas no terreno das Cortes Supremas, uma rápida pesquisa nos sítios eletrônicos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça confirma essa inequívoca acolhida7.

Para além, portanto, da sua dedicação à magistratura, o elevado espírito público do Ministro Teori Zavascki levou-o a se comprometer igualmente com o desenvolvimento do direito — sobretudo do processo civil — em nosso país como professor e escritor amplamente reconhecido. Nas páginas de seus livros, também aparece o jurista brilhante, que prima pela clareza e pelo comprometi-mento com o Estado de Direito em suas construções doutrinárias.

A magistratura alcançou Teori Zavascki em 1989, quando foi nomeado Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região pelo quinto constitucional. Presidiu a Corte de 2001 a 2003, ano em que ocorreu sua nomea-ção para o Superior Tribunal de Justiça - indicado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso e nomeado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2012, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal pela Presidente Dilma Rousseff, preenchendo a vaga antes ocupada por Cezar Peluso, Sydney Sanches, Alfredo Buzaid, Cunha Peixoto e Aliomar Baleeiro — atualmente a cadeira é ocupada pelo Ministro Alexandre de Moraes.

5 Publicados em duas edições pela Revista dos Tribunais em 2000 e 2003. 6 Publicados em duas edições pela Revista dos Tribunais em 2016 e 2018 (essa última com a atualização de Francisco Zavascki). 7 Por exemplo: Antecipação da Tutela (STF: AR 2.328 MC-AgR/DF, rel. min. Marco Aurélio, j. 19-3-2015, P, DJE de 16-4-2015; STJ: REsp 1.101.740/SP, rel. min. Luiz Fux, j. 4-11-2009, Corte Especial, DJE de 7-12-2009), Comentários ao CPC (de 1973), vol. VII (STJ: REsp 544.189/MG, rel. min. Luiz Fux, j. 2-12-2003, 1ª T, DJ de 28-4-2004), Comentários ao CPC (de 2015), vol. XII (STJ: REsp 1.670.143/RO, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 27-3-2019, DJ de 6-6-2019), Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional (STF: AR 2.436 AgR/SC, rel. min. Celso de Mello, j. 19-5-2017, P, DJE de 13-6-2017; STJ: REsp 1.031.092 AgR/AL, rel. min. Benedito Gonçalves, j. 18-8-2009, 1ª T, DJE de 31-8-2009), Processo Coletivo (STJ: REsp 1.340.444/RS, rel. min. Humberto Martins, rel. p/ o ac. min. Herman Benjamin, j. 14-3-2019, Corte Especial, DJE de 12-6-2019), Processo de Execução (STJ: RMS 20.755/RJ, rel. min. Denise Arruda, rel. p/ o ac. min. José Delgado, j. 13-11-2007, 1ª T, DJE de 4-8-2008) e Título Executivo e Liquidação (STJ: REsp 792.647/BA, rel. min. Nancy Andrighi, j. 3-10-2006, 3ª T, DJ de 20-11-2006).

Page 20: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

19

Ministro Teori Zavascki

Como Relator, Teori Zavascki julgou no Supremo Tribunal Federal 2.203 casos de 2013 a 2016. Postumamente, apareceram ainda 60 casos de 2017 a 2019 sob a sua relatoria, perfazendo um total de 2.263 casos julgados no Supremo Tribunal Federal.

Jurista na mais genuína acepção do termo, com ampla bagagem cultural, Teori foi conhecido como um juiz extremamente técnico (adjetivo que nesse contexto significa sobretudo fiel ao Direito e apartidário do ponto de vista polí-tico)8 e discreto9 (certa vez ouvimos o Ministro Teori declarar, no Plenário do STF, que “juízes devem falar nos autos”, não devem se alvoraçar na “imprensa”). Lembrando passagem da infância em que Teori formou com colegas o time de futebol chamado de “Explosivo” (a que rapidamente se contrapôs outro, o

8 Manifestando-se justamente sobre esse ponto em entrevista a Fernando Fontainha, as res-postas de Teori são extremamente pertinentes para a compreensão da maneira pela qual enten-dia a função jurisdicional em um Estado Constitucional: “a imprensa costuma retratá-lo com um perfil técnico, calmo e sereno. O senhor concorda com essa descrição, sobretudo sobre o comportamento...?”, ao que respondeu Teori: “eu acho que o calmo e o sereno, sim. Quanto ao técnico, eu nunca soube bem o que significa ser, mas tudo bem, pode me chamar de técnico. Eu nunca sei bem se é um elogio ou uma crítica”. O diálogo continua: “costuma opor o perfil técnico ao perfil político”. Teori responde: “também não sei o que é o perfil político. Exatamente esse é o problema. O que é o político? O que é um juiz político? Essa definição, eu acho até de certo modo incompatível com o juiz, se se entender política como fugir do Direito. O juiz não tem como fugir do Direito. Isso não significa dizer que o juiz não decida questões políticas, mas ele não decide politicamente, ele decide questões políticas juridicamente. Fora daí, eu não sei qual a diferença. Até quando decide questões políticas, o juiz tem que ser técnico num certo sentido. Porque não existe decisão judicial discricionária, não existe. Isso os teóricos do direito dizem há muito tempo. O que é o discricionário ou o político? Um juízo político no sentido de exercício da política como exercício de vontade de opções. O juiz discricionário, o juiz político, é aquele que pode escolher entre duas opções. Uma que seja mais conveniente. O juiz não tem essa margem de escolha, o juiz quando assume o cargo ele diz eu prometo que vou cumprir a Constituição e as leis. Claro que tem nas leis algum conteúdo que a gente chama tecnicamente de conceitos indeterminados ou conceitos abertos que permitem uma margem de preenchimento valorativo, vamos dizer assim. E aí entra a figura do juiz, a experiência da vida. Agora, não tem muita mar-gem de vontade. O juiz não tem que fazer aquilo que ele acha, mesmo nesses conceitos abertos, mas aquilo que ele acha que o Direito faz naquele momento. Ele não tem a opção de ser político no sentido de aqui não vou aplicar a lei, aqui eu vou aplicar a lei. Nesse sentido, no meu enten-der, não existe juiz político possível, é uma incompatibilidade. Agora, claro, os juízos políticos se fazem na medida em que se trata de matéria política, principalmente no Supremo. Quando se diz que o Supremo é um tribunal político, isso tem que ser muito bem entendido. Há questões, principalmente quando se examina a Constituição, que dependem mais de juízos valorativos, mas não são juízos políticos. Não é ‘a lei diz isso, mas eu quero que seja assim’. Não estou dizendo que não tenha juiz que decida assim, ‘vou decidir assim porque eu quero’, mas eu acho que não é o correto. Acho que o juiz tem pouca margem para ser político nesse sentido. Ele tem a política com um sentido diferente. Por isso, quando se fala esse é um juiz político e esse é um juiz técnico, é preciso primeiro saber o que se quer dizer com isso. Não é que eu não saiba, eu até imagino o que seja, mas eu vejo que as pessoas que põem esse carimbo, que pode estar certo, nem sem-pre combinam corretamente o sentido do que é o político e o que é o técnico.” (FONTAINHA, Fernando de Castro; VIEIRA, Oscar Vilhena; e SATO, Leonardo Seiichi Sasada (orgs.). História oral do Supremo (1988-2013) - Teori Zavascki. Rio de Janeiro: FGV Rio, 2017. v. XVI, p. 63-64.) 9 Cf. Fernando de Castro Fontainha, Oscar Vilhena Vieira e Leonardo Seiichi Sasada Sato (orgs.), op. cit., p. 17, 23 e 26.

Page 21: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

20

Ministro Teori Zavascki

“Extintor”), o Ministro Castro Meira, do Superior Tribunal de Justiça, excla-mou: “Que paradoxal! Explosivo é tudo o que o Teori não é. Você nunca vai vê-lo batendo boca no plenário ou tentando impor a sua opinião, ele é reservado e sereno”10.

A opinião de seus colegas de toga no Supremo Tribunal Federal não des-toa, revelando a altíssima consideração de que gozava com seus pares. A admi-ração por Teori, aliás, transpassava gerações de juristas.

Na abertura do Ano Judiciário de 2017, por exemplo, o Ministro Celso de Mello, em nome do Plenário do Supremo Tribunal Federal, destacou Teori como “o exemplo de um notável magistrado que sempre soube agir, em todos os graus de jurisdição pelos quais passou, com independência, isenção, serenidade, compostura, discrição e inegável talento, projetando, na experiência concreta de sua atuação profissional, a figura ideal do verdadeiro Juiz”. Ressaltou que “o rigoroso padrão ético que sempre pautou a irrepreensível atuação do Ministro Teori Zavascki como magistrado constitui um dos mais preciosos legados de sua marcante passagem por este Supremo Tribunal Federal”. O decano do STF ainda observou a imprescindibilidade de magistrados “livres, isentos e indepen-dentes” — como foi o Ministro Teori Zavascki — para a promoção dos princí-pios fundamentais do Estado Democrático de Direito e arrematou o discurso afirmando que a lição de vida de Zavascki

representará referência indissociável para aqueles que desejam servir ao nosso País com decência, com dignidade, com probidade e com elevado espírito público. Esse, na realidade, é o grande e inestimável legado que nos deixa o sau-doso e eminente Ministro Teori Zavascki, cujo nome se inscreve, para sempre, nos anais desta Suprema Corte e na memória afetiva de seus colegas e, também, no justo respeito de seus jurisdicionados e concidadãos.11

Na mesma linha, a Ministra Cármen Lúcia pontuou que Teori “repre-senta um dos pontos altos na história da nossa Justiça e seu trabalho perma-necerá para sempre, e a sua presença e o seu exemplo ficarão como um rumo do qual não nos desviaremos, cientes de que as pessoas morrem, suas obras e seus exemplos, não”. O Ministro Ricardo Lewandowski lembrou-o como “um homem de bem, um juiz extremamente competente e um colega leal”, e o Ministro Luiz Fux observou que Teori “será daquelas pessoas das quais não só nos lembraremos sempre, mas antes, jamais o esqueceremos pelo bem que rea-lizou em prol do País e da Justiça”. Daí ter o Ministro Dias Toffoli assinalado que “a serenidade do Ministro Teori Zavascki, sua simplicidade, sua humildade

10 Cf. Fernando de Castro Fontainha, Oscar Vilhena Vieira e Leonardo Seiichi Sasada Sato (orgs.), op. cit., p. 17.

Page 22: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

21

Ministro Teori Zavascki

marcarão para sempre a Justiça brasileira”12. Recordando-o, o Ministro Edson Fachin ressaltou que Teori “muito honrou e sempre honrará esta Suprema Corte e a sociedade brasileira”, sendo um “exemplo de magistrado sereno, técnico, independente e imparcial”13.

O Ministro Luís Roberto Barroso observou ainda que Teori

era um brasileiro que orgulhava o país por sua integridade, seu patrio-tismo e seu compromisso com o bem. Era um juiz que também era motivo de orgulho para o tribunal pelo seu talento, pela sua formação técnica, pelo seu senso de justiça. E era um amigo querido, era o orgulho dos seus amigos tam-bém pela sua lealdade, pelo seu companheirismo, pelo seu senso de humor.14

Abordando especificamente a sua atuação como Relator da Lava Jato, pontuou Barroso que a sua condução era “impecável”, imbuído de um “empe-nho verdadeiro, sincero e discreto em mudar o patamar ético do país [que] marcará época”15. De acordo com o Ministro Marco Aurélio, Teori era um “excepcional amigo”, “homem firme em convicções”, que “tocava as coisas com muita temperança, com muita tranquilidade, com muita convicção”16. Ademais, destacou igualmente o Ministro Carlos Velloso:

a trajetória de Teori Zavascki na magistratura foi luminosa. Ele conduzia as ações e inquéritos com extrema dedicação e, sobretudo, com extrema compe-tência. Ele sabia o que estava fazendo. Sabia o que devia fazer, fazia o que devia fazer. Granjeou, por isso mesmo, o respeito da cidadania, o respeito do jurisdi-cionado brasileiro.17

Também na abertura do ano judiciário de 2017, o Ministro Gilmar Mendes lembrou o Ministro Teori Zavascki como um “notável magistrado de conduta austera e de inestimável saber jurídico”, que deixa “um precioso legado

12 Conforme notícia publicada no site do STF em 23 de janeiro de 2017: “Homenagens ao Ministro Teori são unânimes em destacar seu legado e sua atuação exemplar”, disponível em www.stf.jus.br. 13 Conforme notícia publicada no site do STF em 2 de fevereiro de 2017: “Nota do Gabinete do Ministro Edson Fachin”, disponível em www.stf.jus.br. 14 Conforme notícia publicada no site do STF em 20 de janeiro de 2017: “Ministro Roberto Barroso lembra que Teori Zavascki orgulhava o Brasil por sua integridade”, disponível em www.stf.jus.br. 15 Idem.16 Conforme notícia publicada no site do STF em 20 de janeiro de 2017: “Ministro Marco Aurélio expressa tristeza com falecimento de Teori Zavascki”, disponível em www.stf.jus.br. 17 Conforme notícia publicada no site do STF em 20 de janeiro de 2017: “Ministro Carlos Velloso considera falecimento de Teori Zavascki ‘uma perda irreparável’”, disponível em www.stf.jus.br.

Page 23: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

22

Ministro Teori Zavascki

pela incansável defesa da Constituição, por sua contribuição pelo fortaleci-mento da democracia, pela ética e retidão que pautavam suas decisões”18.

Ao inaugurar o “Espaço de Imprensa Ministro Teori Zavascki” no Supremo Tribunal Federal, a Ministra Cármen Lúcia pontuou que a decisão de assim nomeá-lo constitui uma “singela homenagem que os 11 ministros que compõem atualmente o Supremo Tribunal Federal prestam a esse grande cida-dão e magistrado brasileiro”. Ao justificá-la, a Ministra afirmou que a decisão não se deve apenas a “tudo que ele representa como magistrado”, mas “prin-cipalmente pelo compromisso que ele tinha com todas as formas de liberdade e com a liberdade de imprensa”. E continuou referindo que o Ministro Teori Zavascki desempenhara um trabalho modelar para o Brasil e que “seu legado sempre persistirá para nós como um lúmen a nos lembrar que os bons juízes não morrem, ficam encantados, como diria Guimarães Rosa”. Na mesma ocasião, o Ministro Alexandre de Moraes lembrou que Teori “sabia dialogar e aproximar as pessoas” e que era um “juiz sério, competente e trabalhador” — “um grande homem”, “tranquilo e sensato”19.

Naquela que foi a última conferência do Ministro Teori Zavascki, profe-rida em evento em comemoração aos 75 anos da Justiça do Trabalho e aos 70 anos do Tribunal Superior do Trabalho, a Ministra Rosa Weber saudou-o como “amigo querido”, que conheceu já “lá no final dos anos sessenta, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul”, que “engrandece o Supremo Tribunal Federal”. A Ministra grifou ainda a “excelência de seu trabalho”, como “magistrado paradigmático, magistrado exemplar, jurista de escola, processualista insigne, professor emérito, com obras em especial no campo do processo da maior qualidade” - e que, sobretudo, tem a “exata com-preensão” de que “o direito” exige “sensibilidade”, “equilíbrio”, “consciência” e “reflexão ética”. Enfrentando o tema “Princípios Constitucionais do Processo”, Teori exortou o público a “bem compreender” como os princípios “operam no ordenamento jurídico, para que não façamos com eles nossas próprias leis”20. É uma mensagem que resume muito bem a maneira pela qual o Ministro Teori Zavascki pautava a sua atuação jurisdicional.

Como as páginas que seguem dão conta, o Ministro Teori Zavascki conduziu, enfrentou e julgou no Supremo Tribunal Federal casos da mais alta importância para a vida pública de nosso país — casos verdadeiramente

18 Conforme notícia publicada no site do TSE em 1º de fevereiro de 2017: “TSE abre ano judici-ário de 2017 com homenagem a Teori Zavascki”, disponível em www.tse.jus.br. 19 Conforme notícia publicada no site do STF em 28 de agosto de 2018: “Presidente do STF inau-gura Espaço de Imprensa Ministro Teori Zavascki”, disponível em www.stf.jus.br. 20 Conforme exposições orais da Ministra Rosa Weber e do Ministro Teori Zavascki em semi-nário realizado em 25 de novembro de 2016: “Seminário Comemorativo: 75 Anos da Justiça do Trabalho e 70 Anos do TST”, disponível em www.youtube.com.

Page 24: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

23

Ministro Teori Zavascki

emblemáticos. Do financiamento de campanhas políticas à execução imediata da pena, do Mensalão à Lava Jato, seus votos e suas decisões em nossa Suprema Corte de Direito Constitucional procuraram conduzir o Brasil a um novo pata-mar moral a partir do direito.

Teori Zavascki deixou-nos em 19 de janeiro de 2017, em Paraty, Rio de Janeiro. Seu falecimento em um desastre de avião foi uma tragédia que chocou e enlutou todo o país. Naquele dia, o Brasil perdeu um grande ser humano, Jurista, Professor e Magistrado. Naquele dia, o Supremo Tribunal Federal per-deu reconhecidamente um dos maiores Ministros de toda a sua história. Sua personalidade marcante, no entanto, permanece muito viva entre nós, especial-mente naqueles que com ele se irmanaram e irmanam-se nos princípios funda-mentais do Estado de Direito, aos quais o Ministro Teori Zavascki procurou dar a mais profunda e sentida concretização.

Page 25: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

24

Ministro Teori Zavascki

NOTA DO AUTOR

O convite para organizar a Memória Jurisprudencial do Ministro Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal - formulado pelo Ministro Dias Toffoli - encheu-me de grande alegria, mas também me despertou para uma enorme responsabilidade.

Em primeiro lugar, encheu-me de grande alegria. Conheci o Ministro Teori Zavascki por volta do ano de 2005, quando

frequentávamos o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ambos sob a orientação do Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Já o admirava pelo seu trabalho na doutrina, mas a partir daquele momento passei a prestar atenção igualmente em sua produção jurisprudencial. De 2005 em diante, assisti à sua distinta escalada do Tribunal Regional Federal da 4ª Região para o Superior Tribunal de Justiça e dali para o Supremo Tribunal Federal - sempre cercada dos mais altos e merecidos encô-mios. Nós nos encontramos muitas vezes pelos caminhos da vida, e nosso con-vívio sempre foi fonte de alegria e aprendizado para mim.

Em segundo lugar, despertou-me para uma enorme responsabilidade. O Ministro Teori Zavascki converteu-se, ao longo do tempo, em uma

figura pública de altíssima estima em todos os círculos sociais, judiciais e aca-dêmicos. Sua firme e serena atuação na doutrina e em nossas cortes - espe-cialmente no Supremo Tribunal Federal - notabilizou-o como um dos mais importantes processualistas e juízes da história do Brasil. O convite, então, para participar da sua Memória, despertou-me para a grande responsabilidade da tarefa - a qual procurei desempenhar com muito gosto.

Para elaborar esta Memória, contei com o auxílio de muitas pessoas, de modo que se mostra imperioso agradecer a colaboração de todas elas.

Agradeço o honroso e gentil convite do eminente Ministro Dias Toffoli para participar deste projeto - é motivo de grande alegria poder me associar de algum modo ao trabalho do Ministro Teori Zavascki. Agradeço também à equipe do Supremo Tribunal Federal que me auxiliou na consecução desta Memória, fazendo esse agradecimento nas pessoas do Alexandre Freire, da Andreia Fernandes de Siqueira e da Lilian Braga. Pela mesma razão, agradeço a Adriano Chaves, Camila Plentz, Daniel Coussirat Azevedo, Daniela Serafini, Débora de Mello Moreira, Mariana Morshel, Nicole Witmann, Ludmila Oliveira Lacerda, Luciano Ataíde Rodrigues e Paulo Victor de Carvalho Mendonça pela

Page 26: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

25

Ministro Teori Zavascki

colaboração na seleção de alguns julgados. Por fim, agradeço ao Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça, e a Francisco Zavascki pelos diálogos a respeito do Ministro Teori Zavascki.

Porto Alegre, outono de 2020.Daniel Mitidiero

Page 27: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

26

Ministro Teori Zavascki

INTRODUÇÃO

É difícil abordar um jurista da envergadura intelectual e moral do Ministro Teori Zavascki. Procuramos, portanto, fazê-lo a partir de dois diferentes perfis: o biográfico e o jurisprudencial. Parece-nos que dessa maneira é possível traçar um quadro mais ou menos abrangente da sua vida e da sua produção.

Relativamente ao perfil biográfico de Teori Albino Zavascki, expomos aquilo que entendemos ser mais relevante em sua vida pessoal e em sua forma-ção intelectual. Exibimos, ainda, a forte impressão que o jurista deixou em seus pares - a qual, de resto, reflete a communis opinio a seu respeito. Além disso, exploramos, mesmo que brevemente, seus livros, cujo conjunto permite traçar um pano de fundo teórico particularmente profícuo para a compreensão de muitas decisões do Ministro no Supremo Tribunal Federal.

No aspecto jurisprudencial, selecionamos casos especialmente represen-tativos de sua passagem pela nossa Suprema Corte brasileira. Esse rico material foi organizado em duas grandes partes: da Constituição ao processo e do pro-cesso ao direito. Para não ocupar indevidamente o espaço destinado aos pre-cedentes do Ministro Teori, optamos por apresentá-los em um contexto mais amplo, deixando-os falarem por si mesmos. Por fim, formulamos algumas con-siderações a título conclusivo, além de coligir a bibliografia utilizada para esta Memória.

Page 28: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

PARTE IDA CONSTITUIÇÃO AO PROCESSO

Page 29: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

28

Ministro Teori Zavascki

1. TEORI ZAVASCKI E A EFICÁCIA DAS SENTENÇAS NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Ao publicar a versão comercial de sua dissertação de mestrado em 2001, Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional, Teori Zavascki registrou na sua dedicatória que “magistratura e magistério constituíram a fonte e a fina-lidade do presente estudo”21. Naquela altura, Teori vivia em Porto Alegre, era desembargador federal no TRF da 4ª Região e professor de Processo Civil na UFRGS. Lendo-a em retrospectiva, soa quase como vaticínio.

Em Brasília, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori teve a oportunidade de concretizá-la entre 2015 e 2016 no mínimo em três diferentes pontas. Em primeiro lugar, ao afirmar o STF como cúpula do Poder Judiciário e Corte Constitucional. Em segundo, ao desenvolver as formas de controle de constitucionalidade. Em terceiro, ao projetar a eficácia das sentenças na jurisdi-ção constitucional.

1.1 Supremo Tribunal Federal: Corte de cúpula do Poder Judiciário e Corte Constitucional

Um importante esforço de Teori Zavascki no STF - para além de grifar o papel da Corte como “Tribunal da Constituição”, detentor da “palavra definitiva em matéria de interpretação e aplicação das normas constitucionais”22 - foi no sentido de acentuar a função de intérprete do Texto Constitucional e não tanto de controlador das decisões dos demais tribunais23. A consequência dessa posição está em ver a decisão do caso concreto como tarefa dos juízes e das Cortes de Justiça, sendo papel do STF o de outorgar adequada interpretação ao direito. Ao fazê-lo, Teori procurou destacar o Supremo como órgão de cúpula do Poder Judiciário.

Esse trabalho pode ser bem ilustrado com Dantas vs. STJ, julgado em 2016 pelo Plenário24. Mostrando que a garantia da presunção de inocência é atendida com o duplo grau de jurisdição, Teori Zavascki sublinha exatamente o caráter extraordinário da atuação do STF.

21 Cf. ZAVASCKI, Teori. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional (2001). 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 22 Ibidem, p. 23. 23 Sobre a contraposição entre cortes de controle e cortes de interpretação na formatação das cortes de vértice, com as devidas indicações bibliográficas, cf. MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas - do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente (2013). 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 24 Cf. Dantas vs. STJ, 2016 (HC 126.292/SP, rel. min. Teori Zavascki, j. 17-2-2016, P, DJE de 16-5-2016).

Page 30: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

29

Ministro Teori Zavascki

Em seu voto em Dantas, observa o Ministro:

Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é, portanto, no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado. É dizer: os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devoluti-vidade, já que não se prestam ao debate da matéria fático-probatória. Noutras palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. Os recursos ainda cabíveis para instâncias extraordinárias do STJ e do STF - recurso especial e extraordinário - têm, como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faz sentido, portanto, negar efeito suspensivo aos recursos extraordinários, como o fazem o art. 637 do Código de Processo Penal e o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/1990.

(...) Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza

extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não cul-pabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias.

E segue:

Não custa insistir que os recursos de natureza extraordinária não têm por finalidade específica examinar a justiça ou injustiça de sentenças em casos concretos. Destinam-se, precipuamente, à preservação da higidez do sistema normativo. Isso ficou mais uma vez evidenciado, no que se refere ao recurso extraordinário, com a edição da EC 45/2004, ao inserir como requisito de admissibilidade desse recurso a existência de repercussão geral da matéria a ser julgada, impondo ao recorrente, assim, o ônus de demonstrar a relevância jurídica, política, social ou econômica da questão controvertida. Vale dizer, o Supremo Tribunal Federal somente está autorizado a conhecer daqueles recursos que tratem de questões constitucionais que transcendam o interesse subjetivo da parte, sendo irrelevante, para esse efeito, as circunstâncias do caso concreto. E, mesmo diante das restritas hipóteses de admissibilidade dos recursos extraordi-nários, têm se mostrado infrequentes as hipóteses de êxito do recorrente. Afinal, os julgamentos realizados pelos Tribunais Superiores não se vocacionam a per-mear a discussão acerca da culpa, e, por isso, apenas excepcionalmente teriam, sob o aspecto fático, aptidão para modificar a situação do sentenciado.

Page 31: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

30

Ministro Teori Zavascki

E arremata:

Nesse quadro, cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal, garantir que o processo - único meio de efetivação do jus puniendi estatal - resgate essa sua inafastável função institucional. A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado. Não se mostra arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas ins-tâncias ordinárias.

(...)12. Essas são razões suficientes para justificar a proposta de orientação,

que ora apresento, restaurando o tradicional entendimento desta Suprema Corte, no seguinte sentido: a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordi-nário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência. (HC 126.292/SP, rel. min. Teori Zavascki, j. 17-2-2016, P, DJE de 16-5-2016.)

Trata-se de precedente que marcou época no direito brasileiro. Vários casos foram decididos com base nessa orientação, sendo o de maior repercussão seguramente o caso Lula vs. STJ, julgado pelo Plenário em 201825.

Com Teori, no entanto, o STF teve não só bem cultivada sua função de cúpula do Poder Judiciário, como se pode perceber em Dantas, mas também de Corte Constitucional26. Em 2016, como árbitro das relações entre os Poderes, o Supremo foi chamado a intervir para determinar a prisão de Senador da República27 e afastar o Presidente da Câmara dos Deputados de seu cargo e do exercício de seu mandato parlamentar28. Em ambas as ocasiões, o Tribunal atuou mediante a firme e serena condução de Teori Zavascki.

Em Delcídio, a decisão ficou assim ementada:

Constitucional. Processual penal. Prisão cautelar. Senador da República. Situação de flagrância. Presença dos requisitos de prisão preventiva.

25 Cf. Lula vs. STJ, 2018 (HC 152.752/PR, rel. min. Edson Fachin, j. 4-4-2018, P, DJE de 26-6-2018). 26 Cf. ZAVASCKI, Teori. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional (2001). 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 20/23. Para uma perspectiva comparada, cf. FAVOREU, Louis; MASTOR, Wanda. Les Cours Constitutionnelles (1986). 4. ed. Paris: Dalloz, 2011; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Los Tribunales Constitucionales en Iberoamérica. México: Fundap, 2002. 27 Cf. PGR vs. Delcídio do Amaral, 2015 (AC 4.039/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 25-11-2015, 2ª T, DJE de 13-5-2016). O inteiro teor do acórdão não está disponível, por se tratar de segredo de justiça. 28 Cf. PGR vs. Eduardo Cunha, 2016 (AC 4.070/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 5-5-2016, P, DJE de 21-10-2016). O inteiro teor do acórdão não está disponível, por se tratar de segredo de justiça.

Page 32: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

31

Ministro Teori Zavascki

Inafiançabilidade. Cabimento da prisão cautelar (art. 53, § 2º, da CF). Decisão referendada. (AC 4.039/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 25-11-2015, 2ª T, DJE de 13-5-2016.)

E em Cunha:

Constitucional. Processual penal. Medida cautelar de suspensão do exer-cício da função (art. 319, VI, do CPP), a abranger tanto o cargo de presidente da Câmara dos Deputados quanto o mandato parlamentar. Cabimento da providên-cia, no caso, em face da situação de franca excepcionalidade. Comprovação, na hipótese, da presença de múltiplos elementos de riscos para a efetividade da juris-dição criminal e para a dignidade da própria casa legislativa. Especificamente em relação ao cargo de presidente da Câmara, concorre para a suspensão a cir-cunstância de figurar o requerido como réu em ação penal por crime comum, com denúncia recebida pelo Supremo Tribunal Federal, o que constitui causa inibitó-ria ao exercício da presidência da República. Deferimento da medida suspensiva referendado pelo Plenário. (AC 4.070/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 5-5-2016, P, DJE de 21-10-2016.)

Delcídio e Dantas representaram dois casos da mais alta importância da vida pública brasileira. Ainda que em um primeiro momento Teori os tenha analisado monocraticamente, cuidou de submetê-los o mais rápido possível ao julgamento pelos pares em Plenário. A atuação coordenada e unânime do cole-giado fortaleceu o Supremo como instituição. Já o desempenho preciso em uma situação de “franca excepcionalidade” garantiu à Corte accountability e incre-mentou o sentimento social de supremacia da Constituição e de igualdade de todos perante o Direito.

1.2 Sistema de controle de constitucionalidade das normas

O controle de constitucionalidade no Brasil dispõe de “meios variados e sofisticados”29, constituindo um criativo ponto de encontro entre as vertentes americana e austríaca30. Com tantos instrumentos aplicáveis, o difícil é achar o equilíbrio no seu emprego - conhecida e reiterada preocupação de Teori Zavascki31.

29 Cf. ZAVASCKI, Teori. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional (2001). 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 23. 30 Amplamente, MENDES, Gilmar. Jurisdição constitucional (1996). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014; BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro (2006). 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2016; MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de direito constitucional (2012). 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, em coautoria com Ingo Sarlet e Daniel Mitidiero.31 Entrevista de Teori Zavascki a Fernando Fontainha. FONTAINHA, Fernando de Castro; VIEIRA, Oscar Vilhena; SATO, Leonardo Seiichi Sasada (orgs.). História oral do Supremo (1988-2013) - Teori Zavascki. Rio de Janeiro: FGV Rio, 2017, v. XVI, p. 80.

Page 33: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

32

Ministro Teori Zavascki

Um exemplo desse exercício de autocontenção pode ser conferido em Rollemberg, julgado em 2013 pelo Plenário32. No caso, procurava-se realizar controle difuso e preventivo de constitucionalidade material de projeto de lei. Relator para o acórdão, o Ministro Teori apresenta a questão nestes termos:

Trata-se de mandado de segurança impetrado por Senador da República visando a obter provimento jurisdicional que determine a suspensão da trami-tação e o arquivamento de projeto de lei, já aprovado na Câmara dos Deputados sob n. 4.470/2012, ora tramitando no Senado Federal sob n. 14/2013. O que se alega, substancialmente, é que tal PL está impregnado de manifesto vício de inconstitucionalidade material, por ofender o art. 1º, V, e o art. 17, caput, da Constituição. Sustenta o impetrante que tem direito líquido e certo de, na con-dição de parlamentar, “não participar da produção de atos normativos” eivados com vício desse jaez. Em nome e para tutela desse afirmado direito é que deduz o pedido de sentença mandamental com a extensão indicada.

2. É evidente, registre-se desde logo, que o direito líquido e certo afirmado na impetração - de não ser obrigado, o parlamentar impetrante, a participar do processo legislativo - não traduz a verdadeira e delicada questão constitucional que decorre do pedido formulado na demanda. Esse alegado direito representa, na verdade, uma engenhosa criação mental para justificar a utilização da ação de mandado de segurança, cujo objetivo real, todavia, é outro. Realmente, a esse afirmado direito subjetivo individual de não participar da formação da questionada proposição normativa, seria simples contrapor que tal direito não está sendo sequer ameaçado, nem mesmo em tese, eis que a participação do parlamentar no processo de formação das leis não é obrigatória, nada impedindo o impetrante de, espontaneamente, exercer o afirmado direito, abstendo-se de participar ou de votar ou mesmo, ainda, de apresentar voto contrário à aprovação. Em termos estritamente formais, portanto, está clara a dissociação lógica entre o direito tido como ameaçado e a efetiva pretensão deduzida na demanda. Na verdade, o que se busca, a pretexto de tutelar direito individual, é provimento de consequência muito mais profunda e abrangente: de inibir a própria tramitação do projeto de lei, o que significa impedir, não apenas o impetrante, mas todos os demais parlamentares, de discutir e votar a proposta.

E analisa-a:

Assim definida a efetiva pretensão da demanda e abstraindo as impli-cações de natureza processual daí decorrentes, as questões constitucionais que a ela subjazem ganham contornos de maior dimensão. Põe-se em primeiro plano a questão, prejudicial a todas as demais, referente à viabilidade consti-tucional da intervenção do Poder Judiciário na atividade do Legislativo para, a pedido de um parlamentar, fazer juízo sobre a constitucionalidade material de projetos de lei ou de emendas à Constituição lá em andamento, ordenando, como aqui se pretende, a suspensão do correspondente processo legislativo e o próprio arquivamento da proposta. A discussão dessa matéria, bem se per-cebe, assume, do ponto de vista institucional, importância maior que a do próprio tema de mérito da impetração. É que, por mais relevantes que sejam as

32 Cf. Rollemberg vs. Câmara dos Deputados, 2013 (MS 32.033/DF, rel. min. Gilmar Mendes, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 20-6-2013, P, DJE de 18-2-2014).

Page 34: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

33

Ministro Teori Zavascki

alegações de inconstitucionalidade da proposta legislativa aqui questionada - e inegavelmente o são, como ficou demonstrado pelos exaustivos fundamentos do erudito voto do Ministro relator -, elas dizem respeito a tema pontual e cir-cunstancial no cenário normativo e no contexto político, que, se não for agora, poderá ser enfrentado e resolvido se e quando o projeto se transformar em lei. Já a discussão sobre a legitimidade do controle jurisdicional preventivo da constitucionalidade de propostas legislativas, essa tem natureza institucional de consequências transcendentais, com reflexos não apenas para o caso em pauta, mas principalmente para o futuro, já que definirá um marco permanente nas relações entre os Poderes da República. Envolvendo, como envolve, juízo sobre os limites dos espaços de competências, é questão que toca o cerne da autonomia e da harmonia dos Poderes e, portanto, do sistema representativo e do próprio princípio democrático estabelecido na Constituição. Não custa enfatizar que, no vasto domínio da jurisdição constitucional, é justamente no plano do controle de constitucionalidade das normas que as relações de poder se mos-tram mais sensíveis. É que ali se estabelece, como percebeu Mauro Cappelletti, um confronto entre Jurisdição e Legislação. “O aspecto mais sedutor”, escreveu ele, “diria também o aspecto mais audaz e, certamente, o mais problemático do fenômeno que estamos para examinar está, de fato, justamente aqui: o encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e o julgamento, entre o legislador e o juiz” (CAPPELLETTI, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis no direito comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999. p. 26). Daí a importância que deve merecer essa questão.

Após demonstrar que o Supremo Tribunal Federal abre exceção à regra do controle de projetos normativos em apenas duas hipóteses (proposta de emenda à Constituição manifestamente ofensiva à cláusula pétrea e a projeto legislativo com violação a cláusulas concernentes ao devido processo legisla-tivo), o Ministro Teori Zavascki observa que o objeto da impetração no caso é outro (“o projeto de lei tem conteúdo incompatível com o art. 1º, V, e com o art. 17, caput, da Constituição Federal”, do qual se retirou o pedido de suspen-são da “tramitação do projeto” e inibição de “qualquer discussão ou delibera-ção parlamentar a respeito”)33. Diante disso, passa a defender a necessidade de denegação da ordem como meio de preservar a separação dos poderes.

Observa o Ministro Teori Zavascki:

Ora, admitir mandado de segurança com essa finalidade significa alterar radicalmente o entendimento até aqui adotado, a respeito do controle da ati-vidade parlamentar pelo Supremo Tribunal Federal. A mais notória e evidente consequência será a universalização do controle preventivo de constituciona-lidade, em manifesto desalinhamento com o sistema estabelecido na Carta da República, abonado, nesse aspecto, por antiga e pacífica jurisprudência da Corte, como ao início ficou demonstrado. Ao modelo constitucional de exclusivo con-trole de normas (= controle sucessivo-repressivo), exercido com exclusividade pelos órgãos e instituições arrolados no art. 103 da CF, mediante ação própria ali

33 MS 32.033/DF, voto do rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, p. 144.

Page 35: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

34

Ministro Teori Zavascki

indicada, admitir-se-á, caso acolhido o pedido formulado nesta impetração, um controle jurisdicional, por ação, da constitucionalidade material de projetos de normas (= controle preventivo), a ser exercido por qualquer parlamentar, e exclu-sivamente por parlamentar, mediante utilização, com essa exótica finalidade, da via do mandado de segurança, sob o artificioso pretexto de tutelar direito líquido e certo de não participar da votação do projeto. Tal elastério - que consagraria um modelo de controle jurisdicional preventivo sem similar no direito compa-rado, porque direcionado a meros projetos, antes mesmo de qualquer delibera-ção definitiva do Legislador a respeito (o exemplo, sempre referido de controle preventivo, exercido pelo Conselho Constitucional na França, tem por objeto leis ainda não promulgadas, mas já aprovadas pelo Parlamento) - certamente ultrapassa os limites constitucionais da intervenção do Judiciário no processo de formação das leis, judicializando-o excessiva e injustificadamente.

E segue:

É preciso considerar, nesse ponto, que o processo legislativo constitui a mais típica e peculiar atividade do Poder Legislativo, que o exerce por critérios e mediante instrumentos de caráter marcadamente políticos. Embora se saiba, como assinalou Dieter Grimm, que, nos Estados modernos, “não é mais possível uma separação entre direito e política no nível da legislação”, é preciso acentuar, como ele também reconhece, que as decisões políticas, no plano da formação da lei, pertencem ao Legislativo, não ao Judiciário, cujas decisões somente são consideradas políticas quando e porque têm por substrato o controle de cons-titucionalidade, ou a interpretação ou a aplicação de leis, já formadas, de con-teúdo político (GRIMM, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 11, 14-15). É indispensável, por isso mesmo, que, na relação entre direito e política e seus correspondentes ato-res institucionais, se leve na devida conta a necessária separação que há entre o processo para a formação da lei e o processo para interpretação e aplicação da lei já formada: aquele, pertencente ao domínio político do Parlamento e do poder de veto do Executivo, deve ser resguardado de interferências jurisdicionais inde-vidas, assim como esse, que pertence ao domínio judiciário, não pode ser con-taminado por interferências externas de origem política. Invocando outra vez a lição experiente do professor Dieter Grimm, escrita já na condição de ex-juiz e Presidente da Corte Constitucional da Alemanha, “(...) tribunais constitucionais só podem cumprir sua função fiscalizadora a partir de uma posição de distân-cia da política. A vinculação constitucional a que a política está submetida no estado democrático é uma vinculação jurídica” (op. cit., p. 169). Ora, inserir os tribunais na fiscalização do conteúdo material de projetos de leis significa trans-portá-los para o próprio âmago do debate político, o que compromete o distan-ciamento que se recomenda. E se recomenda, quanto mais não seja, até para preservar as Cortes Constitucionais de sua reconhecida inaptidão “para resolver, por via de ação, os conflitos carregados de paixões políticas”, uma vez que, como foi anotado com ironia e certo exagero, “à semelhança dos sismógrafos, que registram com precisão os abalos sísmicos ocorridos a distância, esses tribunais se transformam em escombros quando situados no epicentro dos terremotos políticos” (Inocêncio Mártires Coelho, citando Georges Burdeau, na apresenta-ção da obra citada, de Dieter Grimm, cit., p. XXIII)”.

Page 36: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

35

Ministro Teori Zavascki

Continua o Ministro Teori:

Pois bem, se as hipóteses de intervenção jurisdicional no processo legislativo hão de estar contidas nos parâmetros expressamente estabeleci-dos na Constituição, não faz sentido algum atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato de constitucio-nalidade de normas, uma prerrogativa, sob todos os aspectos muito mais abran-gente e muito mais eficiente, de provocar esse controle sobre os próprios projetos legislativos. Aliás, a se admitir, em situação assim, a legitimação ativa de um parlamentar, certamente não haveria razão alguma para negar - pelo contrário, seria uma imposição necessária do sistema admitir - que medida semelhante e com a mesma finalidade fosse proposta por qualquer dos legitimados pela Constituição (art. 103) a promover o controle repressivo, ou sucessivo.

7. Também não se pode admitir, como justificativa para essa espécie de controle preventivo por mandado de segurança, o argumento da gravidade do vício que visa a atacar. Soa um pouco redundante falar em inconstitucionali-dade grave. A inconstitucionalidade de uma norma pode ser classificada como mais ou menos evidente, mais ou menos manifesta, porque tal classificação depende apenas da sofisticação maior ou menor dos recursos hermenêuticos necessários para identificar sua ilegitimidade. Todavia, identificada a inconsti-tucionalidade, ela será invariavelmente grave, como é grave, sempre, qualquer ofensa à Constituição. Assim, a discriminação pelo critério de gravidade - que, de resto, é conceito jurídico manifestamente indeterminado, sujeito a preen-chimento valorativo de múltiplos matizes - apenas comprova esta inafastável constatação: admitir essa espécie de mandado de segurança, para controle da constitucionalidade material de projetos de lei, significa, na prática, consagrar a universalização do seu controle preventivo, o que afronta o sistema consagrado na Constituição.

E arremata em um exercício de moderação judicial e de respeito ao Poder Legislativo:

Outra relevante consequência da prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento é a de subtrair, dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detêm de, eles próprios, exercerem o controle preventivo da legitimidade das normas. Convém enfatizar que a manutenção e a preservação do Estado Constitucional de Direito é poder-dever comum aos três Poderes, a ser exercido e exaurido no âmbito das suas corres-pondentes atividades, no seu devido tempo e segundo seus métodos e sua pauta. Não há dúvida que a antecipada intervenção do Judiciário no processo de for-mação das leis, ressalvadas as excepcionais hipóteses antes indicadas e justifi-cadas, retira do Poder Legislativo a prerrogativa constitucional de ele próprio, através do debate parlamentar, aperfeiçoar o projeto e, quem sabe, sanar os seus eventuais defeitos. Reside justamente nesse debate a tipicidade e a essência da atividade parlamentar, com sua lógica e sua logística peculiares, que, embora diferentes das do Judiciário, devem ser igualmente respeitadas e preservadas. Não se pode desacreditar ou dispensar, por antecipação, a eficácia depuradora e enriquecedora da função parlamentar. O mesmo se diga, aliás, da prerrogativa de controle de constitucionalidade que a Constituição atribui ao Presidente da

Page 37: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

36

Ministro Teori Zavascki

República, investido que está do poder, do qual não pode ser destituído por antecipação, de apor vetos a projetos inconstitucionais (CF, art. 66, § 1º).

9. Em suma, ainda que se reconheça - e se reconhece, a plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade material do projeto de lei aqui atacado, e ainda que se dê crédito à afirmação do Impetrante - de que a aprovação do projeto é de interesse da maioria hegemônica do Parlamento e da Presidência da República e que, portanto, é elevada a probabilidade de sua transformação em lei -, isso não justifica, no meu entender, que se abra precedente com tão graves consequências para a relação institucional entre os Poderes da República, que é o de inaugurar e universalizar a tutela jurisdicional da atividade parlamentar mediante controle de constitucionalidade material de projetos de lei, tudo fun-dado na presunção de que, tanto o Legislativo quanto o Executivo, permitirão que a inconstitucionalidade se concretize. Aliás, quanto mais evidente e grotesca for a inconstitucionalidade material de projetos de leis - como seriam as dos exemplos trazidos no voto do relator (instituição de pena de morte, descrimi-nalização da pedofilia ou instituição de censura aos meios de comunicação) - menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar por inteiro a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. Mas, se, por absurdo, um projeto assim viesse a ser transformado em lei, ainda não ficaria de modo algum comprometida a eficácia do controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico. (MS 32.033/DF, rel. min. Gilmar Mendes, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 20-6-2013, P, DJE de 18-2-2014.)

Ao decidir não decidir, o Supremo reafirmou em Rollemberg os limites da sua atividade em relação ao processo legislativo, preservando o espaço de autonomia de cada um dos Poderes. Fortaleceu-os ao reconhecer a “seriedade e o senso de responsabilidade”34 de cada um.

1.3 A eficácia das sentenças na jurisdição constitucional

Como fica a coisa julgada oriunda do controle difuso diante da super-veniência de decisão contrária em controle abstrato? Com o incremento do controle concentrado com a Constituição de 1988, as questões daí oriundas ganharam a pauta do Supremo Tribunal Federal. Duas dessas questões ocupa-ram especialmente o Ministro Teori Zavascki.

A primeira diz respeito à necessidade de distinguir a eficácia normativa da eficácia executiva da declaração de constitucionalidade ou inconstituciona-lidade. De acordo com o decidido em Yanasse, uma vez realizada a fiscaliza-ção abstrata, seu resultado não se impõe à coisa julgada anterior de maneira

34 MS 32.033/DF, voto do rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, p. 148.

Page 38: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

37

Ministro Teori Zavascki

automática, sendo imprescindível para tanto oportuna atuação concreta da parte interessada35.

Depois de observar que “cumpre decidir se a declaração de inconstitu-cionalidade tomada em ADI atinge desde logo sentenças anteriores já cober-tas por trânsito em julgado, que tenham decidido em sentido contrário”36, o Ministro Teori expõe a distinção entre eficácia normativa e eficácia executiva da decisão a respeito da constitucionalidade, para em seguida chamar a aten-ção para a importância de se compreender tal diferença:

A afirmação da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade da norma no âmbito de ação de controle concentrado (ADI ou ADC) simplesmente reconhece a sua validade ou a sua nulidade, gerando, no plano do ordenamento jurídico, a consequência (que se pode denominar de eficácia normativa) de manter ou excluir a referida norma do sistema de direito. Todavia, dessa sen-tença de mérito decorre também o efeito vinculante, consistente em atribuir ao julgado uma qualificada força impositiva e obrigatória em relação a superve-nientes atos administrativos ou judiciais. É o que se pode denominar de eficácia executiva ou instrumental, que, para efetivar-se, tem como mecanismo execu-tivo próprio, embora não único, a reclamação prevista no art. 102, I, l, da Carta Constitucional.

4. É importante distinguir essas duas espécies de eficácia (a normativa e a executiva), pelas consequências que operam em face das situações concretas. A eficácia normativa (= declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade) se opera ex tunc, porque o juízo de validade ou nulidade, por sua natureza, dirige-se ao próprio nascimento da norma questionada. Todavia, quando se trata da eficácia executiva, não é correto afirmar que ele tem eficácia desde a origem da norma. É que o efeito vinculante, que lhe dá suporte, não decorre da validade ou invalidade da norma examinada, mas, sim, da sentença que a examina. Derivando, a eficácia executiva, da sentença (e não da vigência da norma examinada), seu termo inicial é a data da publicação do acórdão do Supremo no Diário Oficial (art. 28 da Lei 9.868/1999). É, consequen-temente, eficácia que atinge atos administrativos e decisões judiciais superve-nientes a essa publicação, não atos pretéritos. Os atos anteriores, mesmo quando formados com base em norma inconstitucional, somente poderão ser desfeitos ou rescindidos, se for o caso, em processo próprio. Justamente por não estarem submetidos ao efeito vinculante da sentença, não podem ser atacados por sim-ples via de reclamação.

Assentadas essas premissas, segue:

Isso se aplica também às sentenças judiciais anteriores. Sobrevindo deci-são em ação de controle concentrado declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo, nem por isso se opera a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento

35 Cf. Yanasse vs. CEF, 2015 (RE 730.462/SP, rel. min. Teori Zavascki, j. 28-5-2015, P, DJE de 8-9-2015). 36 RE 730.462/SP, voto do rel. min. Teori Zavascki, j. 28-5-2015, p. 11.

Page 39: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

38

Ministro Teori Zavascki

diferente. Conforme asseverado, o efeito executivo da declaração de constitucio-nalidade ou inconstitucionalidade deriva da decisão do STF, não atingindo, con-sequentemente, atos ou sentenças anteriores, ainda que inconstitucionais. Para desfazer as sentenças anteriores será indispensável ou a interposição de recurso próprio (se cabível), ou, tendo ocorrido o trânsito em julgado, a propositura da ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispen-sabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto, notadamente quando decide sobre rela-ções jurídicas de trato continuado, tema de que aqui não se cogita. Interessante notar que o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 16-3-2015), com vigência a partir de um ano de sua publicação, traz disposição explícita afir-mando que, em hipóteses como a aqui focada, “caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal” (art. 525, § 12, e art. 535, § 8º). No regime atual, não há, para essa rescisória, termo inicial especial, o qual, portanto, se dá com o trânsito em julgado da decisão a ser rescindida (CPC, art. 495).

6. Pode ocorrer - e, no caso, isso ocorreu - que, quando do advento da decisão do STF na ação de controle concentrado, declarando a inconstituciona-lidade, já tenham transcorrido mais de dois anos desde o trânsito em julgado da sentença em contrário, proferida em demanda concreta. (Fenômeno semelhante poderá vir a ocorrer no regime do novo CPC, se a parte interessada não propuser a ação rescisória no prazo próprio). Em tal ocorrendo, o esgotamento do prazo decadencial inviabiliza a própria ação rescisória, ficando a sentença, consequen-temente, insuscetível de ser rescindida, mesmo que contrária à decisão do STF em controle concentrado.

Imunidades dessa espécie são decorrência natural da já mencionada irre-troatividade do efeito vinculante (e, portanto, da eficácia executiva) das deci-sões em controle concentrado de constitucionalidade. Há, aqui, uma espécie de modulação temporal ope legis dessas decisões, que ocorre não apenas em relação a sentenças judiciais anteriores revestidas por trânsito em julgado, mas também em muitas outras situações em que o próprio ordenamento jurídico impede ou impõe restrições à revisão de atos jurídicos já definitivamente consolida-dos no passado. São impedimentos ou restrições dessa natureza, por exemplo, a prescrição e a decadência. Isso significa que, embora formados com base em preceito normativo declarado inconstitucional (e, portanto, excluído do orde-namento jurídico), certos atos pretéritos, sejam públicos, sejam privados, não ficam sujeitos aos efeitos da superveniente declaração de inconstitucionalidade porque a prescrição ou a decadência inibem a providência extrajudicial (v.g., o lançamento fiscal) ou o ajuizamento da ação própria (v.g., ação anulatória, cons-titutiva, executiva ou rescisória) indispensável para efetivar o seu ajustamento à superveniente decisão do STF. No âmbito criminal, configura hipótese típica de modulação temporal ope legis a norma que não admite revisão criminal da sen-tença absolutória (art. 621 do CPP), bem como inibe o agravamento da pena, em caso de procedência da revisão (art. 626, parágrafo único, do CPP). Isso significa que, declarada inconstitucional e excluída do ordenamento jurídico uma norma penal que tenha sido aplicada em benefício do acusado em sentença criminal transitada em julgado, há empecilho legal à eficácia executiva ex tunc dessa declaração, por falta de instrumentação processual para tanto indispensável.

Page 40: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

39

Ministro Teori Zavascki

E conclui:

Estando o acórdão recorrido em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cumpre negar provimento ao recurso extraordiná-rio, afirmando-se a seguinte tese para efeito de repercussão geral: a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucio-nalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). (RE 730.462/SP, rel. min. Teori Zavascki, j. 28-5-2015, P, DJE de 8-9-2015.)

A segunda questão concerne à necessidade de saber se o precedente cons-titucional superveniente torna inexigível a obrigação constante de título execu-tivo oriundo de coisa julgada contrária. Em Conselho Federal da OAB, julgado em 2016 pelo Plenário, decidiu-se que é constitucional a cessação de eficácia do título executivo em face da superveniência de precedente constitucional em sentido contrário37.

A questão é assim apresentada pelo Ministro Teori Zavascki:

A constitucionalidade do parágrafo único do art. 741 e do § 1º do art.  475-L do CPC/73 (semelhantes aos artigos 525, §§ 12 e 14; 535, § 5º, do CPC/15) decorre do seu significado e da sua função. São preceitos normati-vos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram apenas agregar ao sistema processual um instrumento com eficácia rescisória de certas sentenças eivadas de especiais e qualificados vícios de inconstitucionalidade. Não se trata, portanto, de solução processual com a força ou com o desiderato de solucionar, por inteiro, todos os possíveis conflitos entre os princípios da supremacia da Constituição e o instituto da coisa julgada e muito menos para rescindir ou negar exequibilidade a todas as senten-ças inconstitucionais.

São muito variados, com efeito, os modos como as sentenças podem ope-rar ofensa à Constituição. A sentença é inconstitucional não apenas (a) quando aplica norma inconstitucional (ou com um sentido ou a uma situação tidos por inconstitucionais), ou quando (b) deixa de aplicar norma declarada constitu-cional, mas também quando (c) aplica dispositivo da Constituição considerado não autoaplicável ou (d) quando o aplica à base de interpretação equivocada, ou (e) deixa de aplicar dispositivo da Constituição autoaplicável, e assim por diante. Em suma, a inconstitucionalidade da sentença ocorre em qualquer caso de ofensa à supremacia da Constituição, da qual a constitucionalidade das leis é parte importante, mas é apenas parte.

Repita-se, portanto, que a solução oferecida pelo § 1º do art. 475-L e pará-grafo único do art. 741 do CPC/73 (e seus correspondentes no atual Código de Processo Civil) não abarca todos os possíveis casos de sentença inconstitucional. Muito pelo contrário, é solução legislativa para situações específicas, razão pela

37 Cf. Conselho Federal da OAB vs. Presidente da República, 2016 (ADI 2.418/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 4-5-2016, P, DJE de 16-11-2016).

Page 41: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

40

Ministro Teori Zavascki

qual, convém alertar, não envolve e nem se confunde com a controvertida ques-tão, aqui impertinente e por isso não tratada, a respeito da denominada “relati-vização da coisa julgada”, questão essa centrada, como se sabe, na possibilidade ou não de negar eficácia a decisões judiciais em hipóteses não previstas pelo legislador processual, o que não é o caso.

A partir daí a questão passa a ser enfrentada na forma que segue:

A interpretação literal desse dispositivo sugere que são três os vícios de inconstitucionalidade que permitem a utilização do novo mecanismo: (a) a aplicação de lei inconstitucional; ou (b) a aplicação da lei a situação conside-rada inconstitucional; ou, ainda, (c) a aplicação da lei com um sentido (= uma interpretação) inconstitucional. Há um elemento comum às três hipóteses: o da inconstitucionalidade da norma aplicada pela sentença. O que as diferencia é, apenas, a técnica utilizada para o reconhecimento dessa inconstitucionalidade. No primeiro caso (aplicação de lei inconstitucional), supõe-se a declaração de inconstitucionalidade com redução de texto. No segundo (aplicação da lei em situação tida por inconstitucional), supõe-se a técnica da declaração de incons-titucionalidade parcial sem redução de texto. E no terceiro (aplicação de lei com um sentido inconstitucional), supõe-se a técnica da interpretação conforme a Constituição.

A redução de texto é o efeito natural mais comum da afirmação de inconstitucionalidade dos preceitos normativos em sistemas como o nosso, em que tal vício importa nulidade: se o preceito inconstitucional é nulo, impõe-se seja extirpado do ordenamento jurídico, o que leva à consequente “redução” do direito positivo. Todavia, há situações em que a pura e simples redução de texto não se mostra adequada ao princípio da preservação da Constituição e da sua força normativa. A técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é utilizada justamente em situações dessa natureza, em que a norma é válida (= constitucional) quando aplicada a certas situações, mas invá-lida (= inconstitucional) quando aplicada a outras (BITTENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 128). O reconhecimento dessa dupla face do enunciado normativo impõe que a declaração de sua inconstitucionalidade parcial (= aplicação a cer-tas situações) se dê sem a sua eliminação (= redução) formal, a fim de que fique preservada a sua aplicação na parte (= às situações) tida por constitucional.

É assim também a técnica de interpretação conforme a Constituição, que consiste em “declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição” (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 317). Trata-se de instituto hermenêutico “visando à otimização dos textos jurídicos, mediante agregação de sentidos, portanto, produ-ção de sentido” (STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica ao direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 580), espe-cialmente para preservar a constitucionalidade da interpretação “quando a utili-zação dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco entre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas, deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed.

Page 42: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

41

Ministro Teori Zavascki

Coimbra: Almedina, 1998. p. 1099). A utilização dessa técnica acarreta, tam-bém ela, em maior ou menor medida, declaração de inconstitucionalidade: ao afirmar que a norma somente é constitucional quando interpretada em deter-minado sentido, o que se diz - implícita, mas necessariamente - é que a norma é inconstitucional quando interpretada em sentido diverso. Não fosse para reco-nhecer a existência e desde logo repelir interpretações inconstitucionais esse instrumento seria inútil.

Isso fica bem claro quando se tem em conta que a norma nada mais é, afinal, do que o produto da interpretação. Conforme resumiu Zagrebelsky, na esteira de doutrina clássica, interpretação é a atividade de “transformação das disposições em normas”, a significar que “as normas que surgem através da interpretação (...) são as fontes normativas em sentido prático” (ZAGREBELSKY, Gustavo. La lei y su justicia. Madrid: Editorial Trotta, 2014. p. 140). “A interpreta-ção”, escreveu o Ministro Eros Grau, “é um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas linguísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, dis-posições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (...) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 78). (...).

(...)Justamente por isso se afirma que a interpretação conforme a Constituição

constitui uma das técnicas de declaração de inconstitucionalidade: ao reconhe-cer a constitucionalidade de uma interpretação, o que se faz é (a) afirmar a cons-titucionalidade de uma norma (= a que é produzida por interpretação segundo a Constituição), mas, ao mesmo tempo e como consequência, é (b) declarar a inconstitucionalidade de outra ou de outras normas (= a que é produzida pela interpretação repelida).

O que se busca enfatizar, em suma, é que as três hipóteses explicitamente figuradas nos arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único, do CPC/73 supõem a apli-cação de norma inconstitucional: ou na sua integralidade, ou para a situação em que foi aplicada, ou com o sentido adotado em sua aplicação.

E segue:

Considerando o atual sistema de controle de constitucionalidade e dos efeitos das sentenças do STF dele decorrentes, não há como negar que há outra situação, nele implícita, que autoriza a invocação da inexigibilidade da obrigação contida no título executivo judicial: é quando a sentença exequenda reconheceu a inconstitucionalidade - ou, o que dá no mesmo (Súmula Vinculante 10/STF), simplesmente deixou de aplicar - norma que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional. Essa hipótese, embora não explicitada nos dispositivos processuais, decorre necessariamente de interpretação sistemática. Com efeito, afirmar ou negar judicialmente a constitucionalidade de uma norma são duas faces da mesma moeda. É que a eficácia declarativa decorrente das sentenças opera com a mesma intensidade em sentido positivo ou negativo, produzindo, em qualquer caso e com idêntica marca da imutabilidade, coisa julgada material.

Aliás, é inerente ao sistema de processo a natural eficácia dúplice da sen-tença de mérito, que favorece a posição do demandante, quando afirma a existência

Page 43: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

42

Ministro Teori Zavascki

da situação jurídica afirmada como base para o seu pedido, mas que, com inten-sidade semelhante e com a mesma eficácia de coisa julgada material, favorece a posição do demandado, em caso de improcedência. Tratando-se de decisão do STF no âmbito do controle de constitucionalidade, essa eficácia dúplice está enfatica-mente acentuada em texto normativo (Lei 9.868/99, art. 23), justamente porque tal controle tem a finalidade de propiciar, a um tempo, a preservação do sistema normativo legitimamente estabelecido (o que enseja juízos positivos de constitu-cionalidade) e a sua autopurificação em relação a normas inconstitucionais nele porventura incrustadas (o que enseja juízos negativos de validade).

Daí por que não há razão alguma de ordem jurídica ou institucional para estabelecer distinções ou discriminações, no âmbito das relações jurídicas, quanto ao grau de eficácia entre juízos positivos ou negativos formulados pelo STF sobre a constitucionalidade das normas. Pelo contrário, estranho e írrito ao sistema seria, com base na única justificativa da interpretação literal e contra-rio sensu do parágrafo único do art. 741 do CPC/73, estabelecer essa espécie de discrímen das decisões do STF.

Não é preciso enfatizar a reconhecida pobreza da simples interpretação literal. E, quanto ao argumento a contrario, é sabido que, em muitas situações, ele é superado pelo argumento da analogia, que conduz a resultados opostos. Lembrando que “os próprios romanos preferiram o argumento de analogia”, afirma Engisch, com todo acerto, que “a escolha entre o argumento de analogia e o argumento a contrario não pode de fato fazer-se no plano da pura lógica. A lógica tem-se que combinar com a teleológica” (ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 3. ed. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. p. 237).

No caso, conforme enfatizado, há razões lógicas e teleológicas impondo concluir que também a sentença exequenda que declara inconstitucional ou deixa de aplicar norma que o STF declarou constitucional está sujeita ao regime do § 1º do art. 475-L e do parágrafo único do art. 741 do CPC/73.

14. Por outro lado, a segunda condição indispensável à aplicação do art. 475-L, § 1º, e do art. 741, parágrafo único, do CPC (ou os correspondentes dispositivos do novo CPC/15) é a de que a sentença exequenda tenha decidido a questão constitucional em sentido contrário ao que decidiu o STF. Realmente, assim como ocorre nas hipóteses de ação rescisória, a instituição do mecanismo processual visou solucionar, nos limites que estabeleceu, situações concretas de conflito entre o princípio da supremacia da Constituição e o da estabilidade das sentenças judiciais. E o fez mediante inserção, como elemento moderador do conflito, de um terceiro princípio: o da autoridade do STF. Assim, alargou-se o campo de rescindibilidade das sentenças, para estabelecer que, sendo elas, além de inconstitucionais, também contrárias a precedente da Corte Suprema, ficam sujeitas à rescisão por via de impugnação ou de embargos à execução. A existên-cia de precedente do STF representa, portanto, o diferencial indispensável a essa peculiar forma de rescisão do julgado. Aliás, a inserção desse elemento dife-renciador não é novidade em nosso sistema. Ela representa mais uma das sig-nificativas hipóteses de objetivação (ou de dessubjetivação) e de força expansiva das decisões do STF no exercício da sua jurisdição constitucional, conforme tive oportunidade de enfatizar em voto proferido na Reclamação 4.335, Min. Gilmar Mendes, DJE de 22-10-2014.

No regime do CPC/73, não havia distinção entre ser o precedente ante-rior ou superveniente à sentença exequenda. Mas é claro que, se o precedente do

Page 44: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

43

Ministro Teori Zavascki

STF tiver sido anterior (como agora dispõe o § 14 do art. 525 do CPC/15), fica evidenciado, mais claramente, o desrespeito à autoridade da Suprema Corte. No atual regime (CPC/15), se a decisão do STF, sobre a inconstitucionalidade, for superveniente ao trânsito em julgado da sentença exequenda, “caberá ação res-cisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”.

Também não se fazia alusão nem distinção, à época, entre precedente em controle incidental ou concentrado. Como agora explicita o novo Código, essa distinção é irrelevante. Em qualquer dos casos, e independentemente da exis-tência ou não de resolução do Senado suspendendo a execução da norma decla-rada inconstitucional, tem igual autoridade a manifestação do Supremo em seu juízo de constitucionalidade, sendo de anotar que, de qualquer sorte, não seria cabível resolução do Senado na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e na que decorre da interpretação conforme a Constituição. A distinção restritiva, entre precedentes em controle incidental e em controle con-centrado, não é compatível com a evidente intenção do legislador, já referida, de valorizar a autoridade dos precedentes emanados do órgão judiciário guardião da Constituição, que não pode ser hierarquizada simplesmente em função do procedimento em que a decisão foi tomada. Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF tanto em ação direta quanto nas proferidas em via recursal, estas também com natural vocação expansiva, conforme reco-nheceu o STF no julgamento da Reclamação 4.335, Min. Gilmar Mendes, DJE de 22-10-2014, a evidenciar que está ganhando autoridade a recomendação da doutrina clássica de que a eficácia erga omnes das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade, ainda que incidentalmente, deveria ser considerada “efeito natural da sentença” (BITTENCOURT, Lúcio, op. cit., p. 143; CASTRO NUNES, José. Teoria e prática do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 592). É exatamente isso que ocorre, aliás, nas hipóteses previstas no parágrafo único do art. 949 do CPC/15, reproduzindo o parágrafo único do art. 481 do CPC/73, que submete os demais Tribunais à eficácia vinculante das decisões do plenário do STF em controle de constitucionalidade, indiferentemente de terem sido tomadas em controle concentrado ou difuso.

E finaliza:

Observada a compreensão de seu significado e estabelecidos os limites de sua abrangência material, acima referidos, não há como negar a constitucio-nalidade do parágrafo único do art. 741 do CPC, ao § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como dos correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, e art. 535, § 5º). São dispositivos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram, como já afirmado, apenas agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de certas sentenças inconstitucionais, em tudo semelhante às hipóteses de ação rescisória (art. 485, V, do CPC/73 e art. 966, V, do CPC/15). E não são todos nem são banais (mas apenas alguns, revestidos de gravidade qua-lificada pelo comprometimento da autoridade das decisões do STF), os vícios de inconstitucionalidade que permitem invocar a inexigibilidade da sentença exequenda, por embargos à execução ou por impugnação. A inexigibilidade do título executivo a que se referem os referidos dispositivos se caracteriza exclu-sivamente nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em

Page 45: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

44

Ministro Teori Zavascki

norma reconhecidamente inconstitucional - seja por aplicar norma inconstitu-cional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda. (ADI 2.418/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 4-5-2016, P, DJE de 16-11-2016.)

É interessante perceber precisamente nesse terreno duas pontas da vida de Teori Zavascki se atando. De Porto Alegre a Brasília, as ideias do Professor acabaram concretizando-se na prática da jurisdição constitucional do Ministro.

Page 46: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

45

Ministro Teori Zavascki

2. TEORI ZAVASCKI E O DEVIDO PROCESSO

Teori Zavascki via o direito ao devido processo sobretudo como direito à segurança jurídica38, ligando-o daí ao coração do Estado de Direito. Sendo o devido processo uma fórmula mínima de justiça processual, a doutrina cos-tuma associá-lo ao menos à observância do direito à tutela adequada, efetiva e tempestiva, à ampla defesa, ao juiz natural, à igualdade e à paridade de armas, ao contraditório, à prova, à publicidade, à fundamentação das decisões e à segu-rança jurídica39.

No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Teori teve a oportunidade de examinar a matéria em seus mais diferentes aspectos. Do direito ao devido processo ao juiz natural, da tutela adequada à segurança jurídica e ao recurso, vários casos interessantes foram enfrentados pelas suas mãos.

2.1 Direito ao devido processo

Originariamente pensado como direito atinente apenas ao processo judi-cial, o devido processo conquistou ao longo do tempo os domínios do processo legislativo, administrativo e das relações entre os particulares. Seu êxito na tutela dos direitos pelas estradas da vida foi tão significativo que chegou mesmo a ser empregado com uma função substancial, extrapolando o terreno do pro-cesso. Não por acaso, muitos o consideram como a principal contribuição da tradição do Common Law para a Justiça Civil40.

O direito ao devido processo legislativo é um tema frequente na pauta do STF. Em Lucciola, a questão foi examinada não só pela perspectiva da sindicabili-dade do processo legislativo como também pela relação àquilo que pode ser objeto de antecipação da tutela41 e à própria natureza do direito invocado em juízo.

A questão é posta da seguinte maneira pelo Ministro Teori Zavascki:

Trata-se de mandado de segurança impetrado por deputado federal contra ato da Mesa Diretora do Congresso Nacional que aprovou medidas tendentes a submeter à votação o Veto Parcial n. 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei n. 2.565/2011. Sustenta o Impetrante, em síntese, que a votação desse Veto está sendo promovida “com violação ao devido processo legislativo constitucional”, seja porque não atendeu ao disposto no art. 66, §§ 4º e 6º, da Constituição (que não prevê regime de urgência e que impõe a observância de um

38 Cf. ZAVASCKI, Teori. Antecipação da tutela (1997). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 67. 39 Cf. MARINONI; ARENHART; MITIDIERO. Curso de processo civil (2015). 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, v. I. 40 Cf. GOODHARDT, Arthur. Legal Procedure and Democracy. Cambridge Law Journal, 1964, p. 54.41 Cf. Mesa do Congresso vs. Lucciola, 2013 (MS 31.816 MC-AgR/DF, rel. min. Luiz Fux, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 27-2-2013, P, DJE de 10-5-2013).

Page 47: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

46

Ministro Teori Zavascki

sistema ordenado de votação, impedindo que veto recente seja apreciado antes dos que têm prazo de discussão e votação vencido), seja porque foi descumprido o art. 104 do Regimento Comum (que condiciona a votação à emissão de parecer prévio por Comissão Mista). A inicial apresenta os seguintes pedidos:

(A) Liminar: O fumus boni iuris da presente impetração decorre dos fundamentos expostos acima. O periculum in mora, por sua vez, é manifesto e dramático, tendo em vista a iminência de que seja realizada Sessão Conjunta para a apreciação inconstitucional do veto em questão. Diante desse quadro, pede-se a concessão imediata de medida liminar, inaudita altera pars, para o fim de impedir que seja realizada a referida deliberação.

(...) (B) Pedido principal: (...) o Impetrante requer seja deferido o pre-

sente mandado de segurança para se determinar o cumprimento do art. 66 da Constituição Federal, reconhecendo-se que o Veto n. 38/2012 somente poderá ser votado após a apreciação dos vetos recebidos ante-riormente, a imensa maioria com o prazo de discussão e votação vencido. Caso assim não se entenda, pede-se que seja reconhecida a impossibili-dade de que Veto n. 38/2012 seja apreciado antes dos demais apresenta-dos na presente Legislatura ou Sessão Legislativa. Por fim, por máxima eventualidade, pede-se que seja reconhecido que o Veto n. 38/2012 não poderá ser apreciado antes do decurso do prazo constitucional previsto no art. 66, § 4º, tendo em vista a existência de muitos outros vetos com o prazo já vencido, em relação aos quais, portanto, o Congresso já se encontra em estado de omissão inconstitucional.

Em qualquer caso, pede-se o reconhecimento da necessidade de que sejam cumpridas as disposições regimentais pertinentes, notada-mente as que exigem a constituição de Comissão Mista destinada a ela-borar relatório prévio acerca do veto. Por decisão de 17 de dezembro de 2012, a liminar foi deferida, nos seguin-

tes termos: Ex positis, defiro o pedido liminar nos termos em que formulados

para, inaudita altera parte, determinar à Mesa Diretora do Congresso Nacional que se abstenha de deliberar acerca do veto parcial n. 38/2012 antes que se proceda à análise de todos os vetos pendentes com prazo de análise expirado até a presente data, em ordem cronológica de rece-bimento da respectiva comunicação, observadas as regras regimentais pertinentes. A liminar foi complementada em 07 de fevereiro de 2013, para esclarecer

e reiterar que: A decisão se limita a obstar a deliberação aleatória e casuística

de determinado veto presidencial diante do volume acumulado de vetos pendentes, alguns com prazo constitucional expirado há mais de uma década. Destarte, nos estritos termos da decisão liminar, o Congresso Nacional permanece soberano para apreciar e votar proposi-ções de natureza distinta, segundo sua discrição política e os reclamos de governabilidade.

Page 48: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

47

Ministro Teori Zavascki

Logo em seguida, a análise da violação do direito ao devido processo legislativo passa a ocupar a cena:

Não há como negar a relevância da alegação de ofensa, pelo Congresso Nacional, ao devido processo legislativo constitucional na apreciação de vetos presidenciais, inclusive esse de que trata o mandado de segurança. Refiro-me, especificamente, às disposições dos §§ 4º e 6º do art. 66 da CF, e, não, propria-mente, às normas regimentais invocadas pelo impetrante. Quanto a essas, a pró-pria decisão concessiva de liminar reconhece que “a jurisprudência tradicional desta Corte se consolidou no sentido de que tais assuntos se qualificam como questões interna corporis, considerando-os imunes ao controle judicial”. Não é o caso, portanto, em sede de juízo de mera verossimilhança - como no exame de medida liminar -, de promover a revisão de entendimento assim solidificado, ainda mais por ato monocrático do relator, que atua, nessas circunstâncias, como órgão delegado do Plenário. Na verdade, a existência de jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário à tese da impe-tração afasta, quanto a esse ponto, a verossimilhança da alegação, o que conduz a uma decisão de indeferimento, e, não, ao contrário. Sob esse aspecto, portanto, as alegações de ofensa ao Regimento Comum do Congresso não merecem con-sideração, pelo menos em sede de exame liminar.

3. Já no que se refere às cláusulas constitucionais que disciplinam a vota-ção de vetos, tem razão o Ministro relator ao apontar o seu descumprimento, que não é de hoje, mas de muito tempo. Com efeito, dispõe o § 4º do art. 66 da CF:

§ 4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto. Foi mais adiante a Constituição: além de fixar o prazo de 30 - trinta -

dias, agregou uma severa consequência em caso de descumprimento, a saber: § 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto

será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final. (...)Ora, essa drástica consequência dá bem a medida da gravidade da situ-

ação que se criou com a reconhecida inobservância, pelo Congresso Nacional, do prazo para apreciação de vetos presidenciais. Segundo atestam as informa-ções colhidas nesta demanda, trata-se de descumprimento reiterado e antigo, a ponto de se ter, atualmente, pendentes de apreciação, mais de 3.000 - três mil - vetos, alguns com prazo vencido há cerca de 13 - treze - anos, a significar que, desde então, deveriam ter sido suspensas as “demais proposições” do Congresso Nacional, cuja votação ficaria, portanto, submetida a um sistema ordenado a partir do vencimento do prazo de votação de cada veto pendente.

Esse quadro se mostra ainda mais grave quando se considera que o estrito atendimento das cláusulas constitucionais do devido processo legislativo é pressuposto de validade dos correspondentes atos normativos, a significar que sua inobservância acarreta a inconstitucionalidade formal desses atos e, por-tanto, a sua nulidade. A procedência dessa afirmação permite concluir que uma rígida e estrita aplicação dos §§ 4º e 6º do art. 66 da Constituição, com eficácia ex tunc, não apenas imporia um futuro caótico para a atuação do Congresso Nacional (paralisando qualquer nova deliberação, a não ser a da apreciação, por ordem de vencimento, dos vetos pendentes) como também, o que é ainda mais

Page 49: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

48

Ministro Teori Zavascki

grave, estenderia um manto de insegurança jurídica sobre todas as deliberações tomadas pelo Congresso Nacional pelo menos nos últimos 13 - treze - anos, desde quando decorreu o prazo para deliberação do mais antigo veto ainda não apreciado, deliberações essas sujeitas a declaração de nulidade por inconstitu-cionalidade formal.

E segue:

É nesse cenário fático e jurídico de singular gravidade que se deve exa-minar a pretensão deduzida no presente mandado de segurança e avaliar a legitimidade da liminar, nos termos como deferida. Convém o registro, de natu-reza conceitual, de que as medidas liminares, em mandado de segurança, têm natureza antecipatória, a significar que permitem ao juiz, quando atendidos os requisitos próprios, determinar, com antecipação no tempo, providências que decorrerão da futura sentença final de procedência do pedido. A medida ante-cipatória, por isso mesmo, deve guardar estreita relação de conformidade com o objeto da sentença, não sendo cabível nem legítimo antecipar providência de natureza diferente ou de alcance maior do que as que poderiam ser atendidas no provimento definitivo. É justamente essa necessária relação de pertinência e compatibilidade material entre decisão liminar e sentença final que define e limita o juízo de verossimilhança, que consiste na alta probabilidade de aten-dimento, pela sentença definitiva, da providência objeto da antecipação. A questão a ser aqui examinada é, portanto, a que diz respeito à probabilidade ou não de vir a ser confirmado, quando do julgamento definitivo do mandado de segurança, o provimento liminar deferido pelo Ministro relator, na extensão e com as consequências que poderão daí decorrer.

5. Questão em tudo semelhante à presente foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 4.029/DF, também de relatoria do Min. Luiz Fux (DJE de 27-6-2012). Lá, como aqui, o que se pôs à deliberação do Tribunal foi o descumprimento, pelo Poder Legislativo, de requisitos constitu-cionais do processo legislativo e as consequências daí decorrentes. Lá, o que se alegou foi que, no exame da Medida Provisória 366/2007, que resultou na Lei Federal n. 11.516/2007 (que dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio), não foi atendido ao que precei-tua o art. 62, § 9º, da Constituição, segundo o qual “caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional”. Aqui, o que se alega é que, no processo legislativo de apreciação do Veto Parcial n. 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei n. 2565/2011, não foi atendido ao disposto no art. 66, §§ 4º e 6º, da Constituição. Em ambos os casos, como se percebe, as ques-tões substanciais são as mesmas.

6. Naquela oportunidade, ficou assentado o entendimento de que a ino-bservância estrita dos requisitos constitucionais do processo legislativo acarreta a inconstitucionalidade - e, portanto, a nulidade, do preceito normativo que dele resultar. Atento à gravidade dessa consequência, propôs o Ministro Luiz Fux, relator do caso, “considerando o volume quantitativo de leis aprovadas com base na prática inconstitucional de dispensar a manifestação da Comissão Mista no trâmite parlamentar das Medidas Provisórias” e como “atitude mais pru-dente, a bem do interesse público”, que, mesmo declarando incidentalmente

Page 50: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

49

Ministro Teori Zavascki

a inconstitucionalidade da dispensa do parecer previsto no art. 62, § 9º da CF, ficasse, ainda assim, “preservada a higidez de todas as Medidas Provisórias convertidas em Lei até a presente data, inclusive da Lei Federal n. 11.516/07, impugnada na presente ação”, assegurando-se, “ainda, a validade da adoção do procedimento ora declarado inconstitucional para a aprovação das Medidas Provisórias que atualmente tramitam no Parlamento. Quanto às demais, deverá o Congresso dar cumprimento ao disposto no art. 62, § 9º, da Constituição, sendo vedada a apreciação pelo Plenário sem o prévio parecer da comissão mista de Deputados e Senadores”.

Ora, a situação que agora se apresenta, em face do antigo e reiterado descumprimento dos §§ 4º e 6º do art. 66 da CF, é tão ou mais grave que a que se apresentou ao Tribunal naquela oportunidade. O puro e simples reconheci-mento, com eficácia ex tunc, do vício de inconstitucionalidade do procedimento até agora adotado para apreciação de vetos presidenciais, acarretaria consequên-cias verdadeiramente dramáticas, conforme já referido. Quanto ao passado, fica-riam sujeitas à declaração de inconstitucionalidade formal todas as deliberações do Congresso Nacional tomadas desde que se venceu o prazo do mais antigo dos vetos pendentes de apreciação, que, segundo informam os autos, ocorreu há cerca de 13 - treze - anos. E, quanto ao futuro, restaria ao Congresso Nacional o ingente trabalho de examinar, por ordem cronológica de vencimento do prazo, os mais de três mil vetos presidenciais pendentes de apreciação, sem possibili-dade, no interregno, de apreciar qualquer outra proposição. Isso significaria, na prática, que, a pretexto de fazer cumprir, como se deve, o prazo do § 4º do art. 66 da CF, uma decisão dessa natureza decretaria a impossibilidade material, pelo menos por longo espaço de tempo, da apreciação tempestiva de novos vetos pre-sidenciais que venham a ser apresentados em futuro próximo. Paradoxalmente, portanto, nas circunstâncias de fato que agora se apresentam, o comando no sentido de determinar o estrito cumprimento da Constituição, inclusive quanto ao passado, operaria efeito contrário ao desejado pela norma constitucional.

7. O que se quer afirmar, em suma, é que, o grave cenário de fato que agora se apresenta em decorrência do reiterado descumprimento do processo legislativo para apreciação de vetos, previsto na Constituição, induz a segura convicção de que, a exemplo do decidido no julgamento da ADI 4.029/DF, tam-bém no julgamento definitivo do presente mandado de segurança, o Tribunal - tudo indica - deverá adotar orientação semelhante àquela, ou seja: inobstante venha a declarar a inconstitucionalidade da prática até agora adotada pelo Congresso Nacional no processo legislativo de apreciação de vetos, com reco-mendação de corrigir para o futuro, o Tribunal haverá de atribuir a essa decisão apenas eficácia ex nunc, excluindo de seu comando as deliberações já tomadas, os vetos presidenciais já apreciados e os que já tenham sido apresentados mas estejam pendentes de apreciação no Congresso Nacional.

8. Ora, sendo essa a mais provável decisão que tomará o Tribunal quando do julgamento definitivo da demanda, com ela deverá desde logo se compatibili-zar a medida liminar. Afinal, como já enfatizado, a natureza antecipatória dessa medida determina que seu comando tenha como parâmetro balizador o conte-údo provável do comando definitivo: a liminar não pode ir além, nem deferir providência diversa da que pode derivar da sentença definitiva. Isso significa, agora enfocando o caso presente, que não há como manter, porque isso não será mantido no julgamento final, a determinação liminar ordenando ao Congresso Nacional que “se abstenha de deliberar acerca do Veto Parcial n. 38/2012 antes

Page 51: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

50

Ministro Teori Zavascki

que proceda à análise de todos os vetos pendentes com prazo de análise expi-rado até a presente data, em ordem cronológica de recebimento da respectiva comunicação”.

Essa é razão suficiente para, com a devida vênia, revogar a medida liminar.

9. Todavia, a profunda semelhança, de ordem substancial, entre os fun-damentos e a pretensão deduzidos no presente mandado de segurança e na referida ADI n. 4.029/DF, impõe uma reflexão do Tribunal sobre a adequação do mandado de segurança. É que, a essa substancial semelhança entre os dois casos, contrapõem-se significativas diferenças quanto ao instrumento proces-sual utilizado para provocar a manifestação do Judiciário. Num caso, a pre-tensão foi formulada por ação de controle concentrado de constitucionalidade (ADI), e o que se pediu, com fundamento em vício formal do correspondente processo legislativo, foi provimento jurisdicional declarando a nulidade do pre-ceito normativo. Aqui, ao contrário, o instrumento utilizado é o mandado de segurança, e o que se pretende, também com fundamento em vício formal do processo legislativo, é provimento judicial que iniba a edição do ato normativo em formação. Resta mais que evidente, portanto, que, em ambos os casos, as demandas veiculam, na sua essência, pretensões típicas de controle de constitu-cionalidade formal de atos normativos, uma de caráter sucessivo ou repressivo (= para anular a norma inconstitucional) e a outra de caráter preventivo (= para inibir a aprovação de norma inconstitucional).

Essa circunstância impõe que a Corte se detenha sobre o tema, a fim de superar uma aparente contradição da sua jurisprudência, que, por um lado, nega veementemente a possibilidade jurídica, no direito brasileiro, de qualquer forma de controle preventivo de constitucionalidade das leis, mas, por outro, assegura a parlamentares, pelo menos em alguns casos, a impetração de mandado de segurança visando ao controle de atos do processo legislativo, que, como ocorre no presente caso, traduz uma evidente pretensão de controle preventivo de cons-titucionalidade. Realmente, o que caracteriza o controle preventivo é justamente isso que se pretende neste mandado de segurança.

Por fim, o Ministro Teori finaliza abordando a natureza peculiar do direito alegado em Lucciola mediante mandado de segurança:

Realmente, o que se tem aqui não é um mandado de segurança visando à sua natural vocação constitucional, de instrumento para tutela de direito líquido e certo ameaçado ou violado por ato de autoridade. Não está em causa qualquer direito subjetivo do impetrante, nem uma prerrogativa própria do cargo parla-mentar ou de qualquer interesse específico do cargo ou de situação parlamentar, como seria, por exemplo, a defesa de prerrogativa de minoria. O que há, em verdade, é uma exótica utilização de mandado de segurança com indisfarçável pretensão de controle prévio de constitucionalidade formal do preceito norma-tivo, semelhante, ressalvada a questão temporal (que é prévia e não sucessiva à edição da norma), à que foi deduzida na ADI n. 4.029/DF. O interesse jurídico que move o parlamentar a defender a higidez do processo legislativo é exata-mente o mesmo que dá ensejo ao ajuizamento de ação de controle concentrado. Esse interesse não tem natureza individual, mas se trata de nítido interesse tran-sindividual, de que é titular a sociedade como um todo, cuja tutela judicial, por isso mesmo, tem legitimados próprios, que são os órgãos e entidades indicados

Page 52: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

51

Ministro Teori Zavascki

no art. 103 da Constituição. A se admitir, em situação assim, que um parlamen-tar (que não está legitimado a promover o controle sucessivo de constitucio-nalidade), possa antecipar esse controle, promovendo-o preventivamente por mandado de segurança, certamente não se poderá negar que medida semelhante e com a mesma finalidade venha a ser proposta por qualquer dos legitimados pela Constituição (art. 103) a promover o controle repressivo, ou sucessivo. Aliás, a se adotar a tese da vinculatividade dos fundamentos das decisões do STF em matéria constitucional, não seria nada desprezível, em casos tais - e o caso concreto ilustra isso com clareza solar - o potencial efeito de controle repres-sivo de constitucionalidade das normas já editadas embutido numa decisão que acolha a tese da impetração. (MS 31.816 MC-AgR/DF, rel. min. Luiz Fux, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 27-2-2013, P, DJE de 10-5-2013.)

Com esses contornos, é interessante perceber como Lucciola acaba envol-vendo três pontos de interesse do Ministro Teori Zavascki. Ao qualificar o direito à observância do devido processo legislativo como direito “transindivi-dual” e caracterizar o mandado de segurança impetrado como “controle pré-vio de inconstitucionalidade formal”, Lucciola permite relacionar controle de constitucionalidade e processo coletivo - dois temas intimamente vinculados no pensamento de Teori42. Além disso, mostra como só é possível antecipar pro-visoriamente aquilo que pode ser obtido de maneira definitiva no processo. Por essa razão, Lucciola funciona como bom mirante para alguns temas-chaves da produção intelectual de Teori Zavascki e de como essa marca o rico manancial de casos do Supremo Tribunal Federal.

2.2 Direito ao juiz natural

O direito ao juiz natural - de ser julgado por juiz imparcial e compe-tente - remonta ao “coração”43 da secular tradição da Magna Carta. Daí sua histórica vinculação com o direito ao devido processo.

No STF, o Ministro Teori Zavascki teve a oportunidade de enfrentar três importantes casos que envolviam o direito ao juiz natural. Em ONU, analisou-se a extensão da imunidade de jurisdição relativamente à Organização das Nações Unidas44. Em CNJ, discutiu-se a competência para o julgamento de atos pratica-

42 Cf. ZAVASCKI, Teori. Processo coletivo - tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos (2006). 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 43 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos fundamentais (1999). 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 82.44 Cf. ONU vs. Ormond, 2013 (RE 578.543/MT, rel. min. Ellen Gracie, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 15-5-2013, P, DJE de 4-8-2015).

Page 53: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

52

Ministro Teori Zavascki

dos pelo Conselho Nacional de Justiça45. Em Padilha, debateu-se a competência para o julgamento de agentes políticos por improbidade administrativa46.

A controvérsia em ONU está assim caracterizada pelo Supremo Tribunal Federal:

Não está em causa, aqui, a controvérsia de direito material deduzida perante a Justiça do Trabalho, nem, por isso mesmo, qual o regime jurídico a que estão sujeitas as relações entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e seus consultores. Sequer os mecanismos para a solução desse conflito, no plano inter-nacional, estão aqui em questão. O objeto de exame, no âmbito dos recursos em pauta, oriundos de ação rescisória, é, tão somente, a questão prejudicial a todas as demais, que diz respeito à sujeição, ou não, da ONU, à jurisdição brasileira.

Depois de lembrar em seu voto a Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, promulgada pelo Decreto 27.784, de 1950, o Ministro Teori Zavascki passa a analisar a questão na perspectiva do brocardo pacta sunt servanda, posicionando-se pela necessidade de se reconhecer a imu-nidade de jurisdição no caso concreto:

Isso significa dizer que, salvo se declarados inconstitucionais, os tratados e convenções aprovados e promulgados pelo Brasil devem ser fielmente cumpri-dos por seus signatários. Sendo assim, não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, seja negada aplicação, pura a simplesmente, a preceito normativo dessa natureza, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucio-nalidade ou, se for o caso, a sua não recepção por norma constitucional super-veniente. Conforme prevê o enunciado da súmula vinculante 10⁄STF, “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência, no todo ou em parte”.

No que concerne especificamente à Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, é importante que se tenha consciência da neces-sidade de uma posição clara a respeito: ou se adota o sistema estabelecido nos compromissos internacionais, ou, se inconstitucional, não se adota, caso em que será indispensável, além da sua formal declaração interna de inconstitucionali-dade, também denunciar, no foro internacional próprio, as cláusulas da referida Convenção. Todavia, o puro e simples não cumprimento de qualquer de suas cláusulas, é fácil perceber, comprometerá severamente as relações do Brasil com a comunidade das Nações, mormente em face da norma universal, muito cara ao direito internacional, segundo a qual “pacta sunt servanda”. (RE 578.543/MT, rel. min. Ellen Gracie, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 15-5-2013, P, DJE de 4-8-2015.)

45 Cf. CNJ vs. Santos, 2014 (ACO 1.680 AgR/AL, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-9-2014, P, DJE de 28-11-2014). 46 Cf. Padilha vs. MPF, 2018 (Pet 3.240 AgR/DF, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 10-5-2018, P, DJE de 21-8-2018).

Page 54: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

53

Ministro Teori Zavascki

Em CNJ, o Plenário do STF decidiu ser o Tribunal competente para o julgamento de ações constitucionais propostas contra o Conselho Nacional de Justiça (isto é, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data e habeas corpus). Nos demais casos, a competência é determinada pelas normas comuns de direito processual. O voto do Ministro Teori discute precisamente a lógica dessa solução:

Poder-se-ia argumentar, contra essa orientação, que não faz sentido submeter a juízo de primeiro grau a possibilidade de anular ou suspender, até liminarmente, ato emanado daqueles Conselhos. Essa preocupação, na verdade, se estende a atos administrativos de outras autoridades e órgãos, como os do Presidente da República, do próprio Supremo Tribunal Federal, dos demais Tribunais Superiores, do Conselho da Justiça Federal, e assim por diante, cujo ataque, por mandado de segurança, é submetido a órgão jurisdicional superior. Ocorre, todavia, que a própria Constituição estabeleceu distintos regimes de competência em casos tais, que é definida segundo o critério da natureza do pro-cedimento adotado. Assim, quando contestados por mandado de segurança - ação de procedimento especialíssimo, dirigido contra a própria autoridade que editou o ato atacado, que nela comparecerá diretamente - a competência é atribuída a um órgão jurisdicional de nível superior. Assim, por exemplo, mandados de segurança contra atos do Presidente da República e do STF serão da competência do STF (CF, art. 102, I, d); contra atos de Ministros de Estado ou do STJ serão da competência do STJ (CF, art. 105, I, b) e assim por diante. Todavia, quando esses mesmos atos são contestados por outra via procedimen-tal, a demanda será da competência do juízo de primeiro grau, nela figurando como parte demandada, não a autoridade que editou o ato atacado, mas a pessoa jurídica de direito público a que integra.

Pois bem, nesses casos, o próprio legislador, certamente preocupado com eventuais excessos ilegítimos, cercou o procedimento comum de diversas medi-das de garantia. Assim, há expressa vedação legal à concessão de medidas provi-sórias, cautelares ou antecipatórias, em ações dessa natureza. É o que estabelece o § 1º do art. 2º da Lei 8.437, de 30-6-1992 (“Dispõe sobre a concessão de medi-das cautelares contra atos do Poder Público e dá outras providências”), a saber:

§ 1º Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal. Da mesma forma, a sentença de primeiro grau, em certos casos, não terá

exequibilidade imediata, ficando submetida a reexame necessário e a recurso de apelação, ambos com efeito suspensivo (art. 3º da Lei 8.347/92). Ademais, tanto a sentença quanto a liminar podem ter sua execução suspensa por ato da pre-sidência do tribunal nas situações indicadas no art. 4º e seu § 1º da mesma Lei 8.347/92, a saber:

Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fun-damentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto

Page 55: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

54

Ministro Teori Zavascki

interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

§ 1º Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em pro-cesso de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado. Cumpre registrar que essas disposições, constantes dos artigos 1º, 3º e 4º

da Lei 8.347/92, são também aplicáveis “à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do CPC”, conforme previsão expressa do art. 1º da Lei 9.494, de 10-9-1997 (“Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública (...)”), cuja constitucionalidade foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 4 MC, Min. Sydney Sanches, DJ de 21-5-1999. (ACO 1.680 AgR/AL, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-9-2014, P, DJE de 28-11-2014.)

Por fim, em Padilha, duas foram as questões enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal: i) a submissão ou não desses agentes ao duplo regime sancio-natório (o da Lei 8.429/1990 e o da Lei 1.079/1950, que dispõem sobre crimes de responsabilidade); e ii) a da existência ou não de prerrogativa de foro nas ações que visam a aplicar aquelas sanções. Ambas as questões não tinham ainda sido inteiramente resolvidas pela Corte.

Em seu voto, o Ministro Teori procura, de início, mostrar a situação das questões na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

no julgamento conjunto da ADI 2.797 e da ADI 2.860-0, no dia 15-9-2005 (Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006), o Tribunal declarou a inconstitu-cionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 84 do Código de Processo Penal - CPP, intro-duzido pela Lei 10.628/02, fixando, no que se referia à prerrogativa de foro, o entendimento assim exposto na ementa:

Ação de improbidade administrativa - Extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2º do art. 84 do CPP, intro-duzido pela Lei 10.628⁄2002) - Declaração, por lei, de competência ori-ginária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicita-mente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribu-nais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação à dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implí-citas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer a competência originária do Supremo

Page 56: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

55

Ministro Teori Zavascki

Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre esta-beleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal - salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X, e 96, III - reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária.Todavia, em 13-6-2007, na Reclamação 2.138, em que se questionava a

competência de juízo de primeira instância para ação de improbidade adminis-trativa movida contra Ministro de Estado, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido, mas sob o fundamento - adotado por escassa maioria - da inviabilidade da submissão ao duplo regime sancionatório. Eis a ementa:

Reclamação. Usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. Improbidade administrativa. Crime de responsabilidade. Agentes políticos. I. Preliminares. Questões de ordem. I.1. Questão de ordem quanto à manutenção da competência da Corte que justificou, no pri-meiro momento do julgamento, o conhecimento da reclamação, diante do fato novo da cessação do exercício da função pública pelo interes-sado. Ministro de Estado que posteriormente assumiu cargo de Chefe de Missão Diplomática Permanente do Brasil perante a Organização das Nações Unidas. Manutenção da prerrogativa de foro perante o STF, conforme o art. 102, I, c, da Constituição. Questão de ordem rejeitada. I.2. Questão de ordem quanto ao sobrestamento do julgamento até que seja possível realizá-lo em conjunto com outros processos sobre o mesmo tema, com participação de todos os Ministros que integram o Tribunal, tendo em vista a possibilidade de que o pronunciamento da Corte não reflita o entendimento de seus atuais membros, dentre os quais qua-tro não têm direito a voto, pois seus antecessores já se pronunciaram. Julgamento que já se estende por cinco anos. Celeridade processual. Existência de outro processo com matéria idêntica na sequência da pauta de julgamentos do dia. Inutilidade do sobrestamento. Questão de ordem rejeitada. II. Mérito. II.1. Improbidade administrativa. Crimes de res-ponsabilidade. Os atos de improbidade administrativas são tipificados como crime de responsabilidade na Lei n. 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo. II.2. Distinção entre os regimes de responsa-bilização político-administrativa. O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n. 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, c, (disciplinado pela Lei n. 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma inter-pretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, c, da Constituição. II.3. Regime especial. Ministros de Estado. Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, c; Lei n. 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência pre-visto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992). II. 4. Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal

Page 57: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

56

Ministro Teori Zavascki

processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, c, da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, even-tualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos polí-ticos. II.5. Ação de improbidade administrativa. Ministro de Estado que teve decretada a suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de 8 anos e a perda da função pública por sentença do Juízo da 14ª Vara da Justiça Federal - Seção Judiciária do Distrito Federal. Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime de responsabili-dade, conforme o art. 102, I, c, da Constituição. III. Reclamação julgada procedente (Rcl 2.138/DF, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 13-6-2007, DJE de 18-4-2008).Posteriormente, em 13-3-2008, ao apreciar a Pet 3.211, em que se questio-

nava a prerrogativa de foro em ação de improbidade movida contra Ministro do STF, o Tribunal assentou orientação assim resumida na ementa:

Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade admi-nistrativa. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns. 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal jul-gar ação de improbidade contra seus membros. 2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais (Pet 3.211 QO/DF, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Menezes Direito, j. 13-3-2008, DJE de 27-6-2008).Adotando essa linha de entendimento, no MS 31.234 MC (DJE de 27-3-

2012), em que se questionava a competência em ação de improbidade contra o Ministro de Estado da Fazenda, o Ministro Luiz Fux, relator, deferiu medida liminar asseverando:

Não seria coerente com a unidade normativa do texto constitu-cional, consoante já reconhecido nos precedentes acima transcritos, que Ministro de Estado respondesse como réu em ação de improbidade em trâmite no primeiro grau de jurisdição, à medida que o referido feito também pode acarretar a perda da função pública. Dessume-se, por-tanto, que, a despeito da nítida oscilação jurisprudencial pretérita sobre o tema, o entendimento de que agentes políticos podem responder como réus em ação de improbidade, mas com observância da prerrogativa de foro, tem se consolidado mais recentemente na jurisprudência pátria, e em particular, no âmbito desta Suprema Corte (...).Um ponto comum pode ser identificado nos diversos fundamentos ado-

tados nesses últimos julgamentos, que, apesar da declaração de inconstituciona-lidade reconhecida nas ADI 2.797 e ADI 2.860, acabaram por retirar do juízo de primeiro grau a competência para julgar as ações de improbidade de que então se tratava: implícita ou explicitamente, neles ficou reconhecida e procurou-se supe-rar a perplexidade de submeter agentes políticos detentores dos cargos de maior nível institucional e de responsabilidade política do País (Ministro de Estado e Ministro do Supremo Tribunal Federal, que, em matéria penal, têm foro por prerrogativa de função, mesmo por crimes que acarretam simples pena de multa pecuniária), à possibilidade de sofrerem sanção de perda de cargo ou de suspen-são de direitos políticos em processo de competência de juiz de primeiro grau,

Page 58: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

57

Ministro Teori Zavascki

além de estarem também sujeitos a medida cautelar de afastamento imediato do cargo, no curso do processo (Lei 8.429/92, art. 20, parágrafo único). Ainda quando subordinada a aplicação da pena ao trânsito em julgado, o processo nem sempre teria condições de ser apreciado pelos Tribunais Superiores, cuja com-petência é restrita a hipóteses de ofensa à Constituição (STF) ou às leis federais (STJ), sendo-lhes vedado o reexame dos fatos da causa. Aliás, a partir da vigên-cia da LC 135/2010, que deu nova redação à LC 64/90, eventual condenação em ação de improbidade, proferida por qualquer “órgão judicial colegiado”, mesmo de segundo grau, já acarreta a consequência da inelegibilidade por oito anos (art. 1º, I, l).

Ora, essa perplexidade seria ainda maior em eventual ação de improbi-dade contra o Presidente da República e não deixaria de existir em ações con-tra o Presidente do Senado, ou da Câmara dos Deputados, ou de parlamentar federal, ou contra ministro de tribunal superior, ou governador de Estado, ou desembargador e, enfim, em menor ou maior medida, contra outros detentores de cargos que, na esfera penal, ostentam prerrogativa de foro. Daí a afirmação de que, em face das decisões tomadas na Reclamação 2.138, na Pet 3.211 QO/DF e no MS 31.234 MC, não se pode considerar que o STF tenha posição definitiva sobre as referidas questões relacionadas a ações de improbidade administrativa contra agentes políticos.

Depois de expostas sumariamente as decisões, o Ministro Teori procura esmiuçá-las:

Na Reclamação 2.138, em que ficou afastada a competência do juízo de primeiro grau para ação de improbidade contra Ministro de Estado, vingou, por escassa maioria, a tese da inviabilidade de duplo regime sancionatório dos agentes políticos. Entendeu-se que “o sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regu-lado pela Lei 8.429⁄1992), e o regime fixado no art. 102, I, c (disciplinado pela Lei 1.079⁄1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados por agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab--rogante do disposto no art. 102, I, c, da Constituição”, razão pela qual “somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabi-lidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos” (STF, Rcl. 2.138, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ de 10-4-2008).

A corrente contrária - minoritária, porém representativa - sustentou que a Constituição não impede - ao contrário, admite expressamente (no § 4º do art. 37) -, a duplicidade de regime (civil e penal) para os ilícitos de impro-bidade. Ademais, nem todos os atos de improbidade previstos na Lei 8.429⁄92 estão tipificados como crimes de responsabilidade pela Lei 1.079⁄50, razão pela qual o duplo regime somente se configuraria, se proibido fosse, em relação às tipificações coincidentes, não quanto às demais. Mesmo para essa corrente, todavia, a aplicação da Lei 8.429⁄92 deve ser mitigada em relação aos agentes políticos, para os quais não seria admissível a imposição da sanção de perda do cargo ou de suspensão dos direitos políticos, ao menos em juízo de primeiro

Page 59: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

58

Ministro Teori Zavascki

grau ou antes do trânsito em julgado. Relativamente a esses agentes, a referida Lei deveria, portanto, ser adotada, mas com ablação dessas sanções. São ilustra-tivos dessa polêmica, além dos votos proferidos naquele precedente e em outros julgados do STF, os que constam da ADI 2.860-0, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006.

Vê-se que, cada uma a seu modo, essas correntes de opinião buscaram superar a situação de perplexidade, já referida, de submeter agentes políticos detentores dos mais importantes cargos da organização estatal à possibilidade de sofrerem as sanções previstas na Lei 8.429/92, entre as quais a perda do cargo e a suspensão de direitos políticos, em processo de competência de juiz de pri-meiro grau. Certamente por influência dessa preocupação comum, há, nas duas correntes, a invocação cumulativa de elementos argumentativos de natureza substancialmente diferente: fundamentos de natureza instrumental (regime de competência para julgar a ação de improbidade ou o crime de responsabilidade) são trazidos para sustentar conclusões de natureza material (duplicidade do regime jurídico do ilícito, sua tipificação e seus agentes). Percebe-se, outros-sim, que disposições normativas infraconstitucionais, especialmente as da Lei 1.079⁄50, são reiteradamente invocadas como elementos de argumentação para interpretar o sistema sancionador constitucional, invertendo, de certo modo, o sentido da hierarquia das normas, que deve ser vertical, mas de cima para baixo, e não o contrário.

E segue:

Relativamente à questão do duplo regime sancionatório, é preciso enfatizar que, olhada sob o ângulo exclusivamente constitucional e separados os elementos de argumentação segundo a sua natureza própria, é difícil justificar a tese de que todos os agentes políticos sujeitos a crime de responsabilidade (nos termos da Lei 1.079⁄50 ou do Decreto-lei 201⁄67) estão imunes, mesmo parcial-mente, às sanções do art. 37, § 4º, da Constituição. É que, segundo essa norma constitucional, qualquer ato de improbidade está sujeito às sanções nela esta-belecidas, inclusive à da perda do cargo e à da suspensão de direitos políticos. Ao legislador ordinário, a quem o dispositivo delegou competência apenas para normatizar a “ forma e gradação” dessas sanções, não é dado limitar o alcance do mandamento constitucional. Somente a própria Constituição poderia fazê--lo e, salvo em relação a atos de improbidade do Presidente da República adiante referidos, não se pode identificar no texto constitucional qualquer limitação dessa natureza.

Realmente, as normas constitucionais que dispõem sobre crimes de responsabilidade podem ser divididas em dois grandes grupos: um que trata exclusivamente de competência para o processo e julgamento de tais crimes, estabelecendo foro por prerrogativa de função; e outro que dispõe sobre aspec-tos objetivos do crime, indicando condutas típicas. Situado no primeiro grupo, o art. 52 estabelece que “compete privativamente ao Senado Federal: I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsa-bilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os mem-bros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos

Page 60: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

59

Ministro Teori Zavascki

crimes de responsabilidade”. Nos termos do art. 96, III, compete privativa-mente “aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes (...) de responsabilidade (...)”. Segundo o art. 102, I, c, compete ao Supremo Tribunal Federal “processar e julgar, originariamente, (...) nos crimes de responsabi-lidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”. Nos termos do art. 105, I, compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente, nos crimes de responsabilidade, “os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, o dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais”. E, nos termos do art. 108, I, aos Tribunais Regionais Federais compete processar e julgar, origi-nariamente, nos crimes de responsabilidade, “os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, (...) e os mem-bros do Ministério Público da União (...)”.

Ora, não se pode identificar nessas normas do primeiro grupo - de natu-reza exclusivamente instrumental - qualquer elemento que indique sua incom-patibilidade material com o regime do art. 37, § 4º, da Constituição. O que elas incitam é um problema de natureza processual, concernente à necessidade de compatibilizar as normas sobre prerrogativa de foro com o processo destinado à aplicação das sanções por improbidade administrativa, nomeadamente as que importam a perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos.

O segundo grupo de normas constitucionais é o das que indicam o ele-mento objetivo da conduta caracterizadora do crime de responsabilidade. A teor do § 2º do art. 29-A, “constitui crime de responsabilidade do Prefeito Municipal: I - efetuar repasse que supere os limites definidos neste artigo; II - não enviar o repasse até o dia vinte de cada mês; ou III - enviá-lo a menor em relação à proporção fixada na Lei Orçamentária”. E, nos termos do § 3º do mesmo artigo, “constitui crime de responsabilidade do Presidente da Câmara Municipal o des-respeito ao § 1º deste artigo”, segundo o qual “a Câmara Municipal não gastará mais de setenta por cento de sua receita com folha de pagamento, incluído o gasto com o subsídio de seus Vereadores”. No caput do art. 50 tipifica-se como “crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada” de compare-cimento de Ministro de Estado ou de “quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República” quando convocados pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, para “prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado”. Essas mesmas autoridades, a teor do § 2º do mesmo art. 50, cometem crime de responsabilidade com “a recusa, ou o não atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informa-ções falsas”, em face de pedidos de informações feitos pelas Mesas da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. No art. 85, estabelece a Constituição que “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e especialmente contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercí-cio dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País;

Page 61: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

60

Ministro Teori Zavascki

V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumpri-mento das leis e das decisões judiciais”. Segundo o § 6º do art. 100, “o Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabi-lidade”. E, finalmente, no § 1º do art.167 está determinado, “sob pena de crime de responsabilidade”, que “nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano pluria-nual, ou sem lei que autorize a inclusão (...)”.

Como se percebe, a única alusão à improbidade administrativa como crime de responsabilidade, nesse conjunto normativo do segundo grupo, é a que consta do inciso V do art. 85, ao considerar crime de responsabilidade os atos praticados pelo Presidente da República contra a “probidade na administra-ção”, dando ensejo a processo e julgamento perante o Senado Federal (art. 86). Somente nesta restrita hipótese, consequentemente, é que se identifica, no âmbito material, uma concorrência de regimes, o geral do art. 37, § 4º, e o espe-cial dos arts. 85, V, e 86.

Não se pode, é certo, negar ao legislador ordinário a faculdade de dispor sobre aspectos materiais dos crimes de responsabilidade, tipificando outras con-dutas além daquelas indicadas no texto constitucional. É inegável que essa atri-buição existe, especialmente em relação a condutas de autoridades que a própria Constituição, sem tipificar, indicou como possíveis agentes daqueles crimes. Todavia, no desempenho de seu mister, ao legislador ordinário cumpre observar os limites próprios da atividade normativa infraconstitucional, que não o auto-riza a afastar ou a restringir injustificadamente o alcance de qualquer preceito constitucional. Por isso mesmo, não lhe será lícito, a pretexto de tipificar crimes de responsabilidade, excluir os respectivos agentes das sanções decorrentes do comando superior do art. 37, § 4º.

E conclui:

Excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (submetidos, por força da própria Constituição, a regime especial), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade pre-vistas no art. 37, § 4º. Seria igualmente incompatível com a Constituição even-tual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza. O que há, inegavelmente, é uma situação de natureza estritamente processual, que nem por isso deixa de ser sumamente importante, relacionada com a competência para o processo e julgamento das ações de improbidade, já que elas podem conduzir agentes políticos da mais alta expressão a sanções de perda do cargo e à suspensão de direitos políticos. Essa é a real e mais delicada questão institucional que subjaz à polêmica sobre atos de improbidade prati-cados por agentes políticos. Ora, a solução constitucional para o problema, em nosso entender, está no reconhecimento, também para as ações de improbidade, do foro por prerrogativa de função assegurado nas ações penais.

Para fundamentá-la, o Ministro Teori ensarta-se em um amplo diálogo com a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A sua primeira preocupação está em mostrar o acerto da solução proposta:

Page 62: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

61

Ministro Teori Zavascki

Nesse contexto, deve ser prestigiada a orientação adotada pelo STF, ao declarar que “compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbi-dade contra seus membros” (QO na Pet 3.211-0, relator para o acórdão o Min. Menezes Direito, DJ de 27-6-2008). No particular, a decisão foi tomada por ampla maioria, com apenas um voto vencido, do relator original, Min. Marco Aurélio. Considerou-se, para tanto, que a prerrogativa de foro decorre direta-mente do sistema de competências estabelecido na Constituição, que não se compatibiliza com a possibilidade de juiz de primeira instância processar e jul-gar causa promovida contra ministro do Supremo Tribunal Federal, ainda mais se a procedência da ação puder acarretar a sanção de perda do cargo. Ilustra a posição majoritária o voto então proferido pelo Min. Cezar Peluso:

(...) se, pelos mais graves ilícitos da ordem jurídica, que são o crime e o crime de responsabilidade, Ministro do Supremo Tribunal Federal só pode ser julgado pelos seus pares ou pelo Senado da República, seria absurdo ou o máximo do contrassenso conceber que ordem jurídica permita que Ministro possa ser julgado por outro órgão em ação diversa, mas entre cujas sanções esta também a perda do cargo. Isto seria a deses-truturação de todo o sistema que fundamenta a distribuição da compe-tência, para julgamento dos ilícitos mais graves atribuídos a Ministro da Suprema Corte, entre o Supremo Tribunal Federal e o Senado da República.Esse precedente, como se percebe, afirma a tese da existência, na

Constituição, de competências implícitas complementares, deixando claro que, inobstante a declaração de inconstitucionalidade do preceito normativo infra-constitucional (Lei 10.628, de 2002), a prerrogativa de foro, em ações de impro-bidade, pode, sim, ser sustentada na própria Carta Constitucional.

6. Realmente, a Constituição assegura a certas autoridades a garantia de responderem por crimes comuns e de responsabilidade perante foro especial. O Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, os Ministros do STF e o Procurador-Geral da República respondem, em casos de crimes comuns, perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, b). Também perante esse Tribunal respondem, por crimes comuns e de responsabilidade, os Ministros de Estado, os Comandantes das Forças Armadas, os membros dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União (CF, art. 102, I, c). O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, é o foro competente para as ações por crimes comuns propostas contra Governadores de Estado e do Distrito Federal, e por crimes comuns e de responsabilidade contra os membros dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais do Trabalho e Eleitorais, de Tribunais de Contas Estaduais e Municipais e membros do Ministério Público da União que oficiam perante tribunais (CF, art. 105, I, a). Perante os Tribunais de Justiça respondem, por crimes comuns, os prefeitos municipais (CF, art. 29, X). Por princípio de simetria, são os Tribunais de Justiça que processam e julgam, nos crimes comuns, os membros das Assembleias Legislativas. E, embora não haja previsão constitucional específica nesse sen-tido, os Tribunais Regionais Federais são considerados o foro competente para o julgamento de prefeitos e deputados estaduais acusados de infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas autarquias ou empresas públicas, previstas no art. 109, IV, da Constituição (STF, 2ª T, HC 69.465-9, rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 23-3-2001; STF, 1ª T, HC 80.612-1, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 4-5-2001; STF, 2ª T, HC 76.881-8, rel.

Page 63: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

62

Ministro Teori Zavascki

Min. Nelson Jobim, DJ de 14-8-1998; STF, 2ª T, HC 78.728-2, rel. Min. Maurício Correa, DJ de 16-4-1999; STF, Pleno, HC 78.222-1, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 27-6-2003; STF, 2ª T, HC 69.465-9, rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 23-3-2001; STF, 1ª T, HC 80.612-1, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 4-5-2001; STF, 2ª T, HC 76.881-8, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 14-8-1998; STF, 2ª T, HC 78.728-2, rel. Min. Maurício Correa, DJ de 16-4-1999; STF, Pleno, HC 78.222-1, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 27-6-2003).

Estes e outros casos de prerrogativa de foro constituem uma garantia constitucional do acusado, estabelecida em função da relevância do seu cargo. Conforme observou o Ministro Victor Nunes Leal, em voto proferido no STF, “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garan-tias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acu-sado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado” (Rcl. 473, rel. Min. Victor Nunes, j. 31-1-1962, DJ de 6-6-1962).

Ora, a Lei de Improbidade foi editada visando, fundamentalmente, à aplicação das sanções de natureza punitiva, semelhantes às sanções penais, a saber: suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, a multa civil e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. A perda de bens, a suspensão de direitos e a multa são penas que têm, do ponto de vista substancial, absoluta identidade com as decorrentes de ilícitos penais, conforme se pode ver do art. 5º, XLVI, da Constituição. A suspensão dos direitos políticos é, por força da Constituição, consequência natural da “conde-nação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos” (art. 15, III). Também é efeito secundário da condenação criminal a perda “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso” (CP, art. 91, II, b). A perda de “cargo, função pública ou mandato eletivo” é, igualmente, efeito secundário da condenação cri-minal, nos casos previstos no art. 92, I, do Código Penal: “quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes pratica-dos com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública” e “quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos”.

Embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natu-reza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies, seja quanto à sua função (que é punitiva e com finalidade pedagógica e intimidatória, visando a inibir novas infrações), seja quanto ao conteúdo. Com efeito, não há qualquer diferença entre a perda da função pública ou a suspensão dos direitos políticos ou a imposição de multa pecuniária, quando decorrente de ilícito penal e de ilícito administrativo. Nos dois casos, as consequências práticas em relação ao condenado serão absolutamente idênticas. A rigor, a única diferença se situa em plano puramente jurídico, relacionado com efeitos da condenação em face de futuras infrações: a condenação criminal, ao contrário da não criminal, pro-duz as consequências próprias do antecedente e da perda da primariedade, que

Page 64: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

63

Ministro Teori Zavascki

podem redundar em futuro agravamento de penas ou, indiretamente, em apli-cação de pena privativa de liberdade (CP, arts. 59; 61, I; 63; 77, I; 83, I; 110; 155, § 2º; e 171, § 1º). Quanto ao mais, entretanto, não há diferença entre uma e outra. Somente a pena privativa de liberdade é genuinamente criminal, por ser cabível unicamente em casos de infração penal. (...) Assim, excetuada a pena privativa de liberdade, qualquer outra das sanções previstas no art. 5º, XLVI, da CF pode ser cominada tanto a infrações penais quanto a infrações administrativas, como ocorreu na Lei 8.429/92.

Até mesmo no plano processual se percebe a semelhança. O que a ação de improbidade tem de inovador, em se tratando de um procedimento civil, é a fase procedimental relacionada com a admissibilidade da demanda, prevista nos §§ 6º a 12 do art. 17 da Lei 8.429/92. É visível, quanto ao ponto, a preocupação do legislador de adequar o processo civil à finalidade, que não lhe é peculiar, de ser instrumento para imposição de penalidades ontologicamente semelhantes às das infrações penais. À identidade material das penas veio juntar-se a identidade formal dos mecanismos de sua aplicação. Foi no Código de Processo Penal, com efeito, que o legislador civil se inspirou para formatar o novo instrumento: o pro-cedimento da ação de improbidade é em tudo semelhante ao que rege o processo e julgamento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, previsto nos arts. 513 a 518 do CPP. Lá, como aqui, se exige que a petição inicial (queixa ou denúncia) venha instruída com “documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade” (“que façam presumir a existência do delito”) ou com razões fundamentadas da “impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas” (art. 17, § 6º, da Lei 8.429/92; art. 513 do CPP). Lá como aqui, estando a inicial (queixa ou denúncia) “em devida forma”, o juiz ordenará a notificação do requerido (acusado) para oferecer manifestação escrita, no prazo de quinze dias, que poderá vir acompanhada de “documentos e justificações” (art. 17, § 7º, da Lei 8.429/92; arts. 514 e 515, pará-grafo único, CPP). Recebida a manifestação, o juiz, “em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da impro-cedência da ação ou da inadequação da via eleita” (art. 17, § 8º, da Lei 8.429/92), da mesma forma como, na ação penal, “o juiz rejeitará a queixa ou denúncia, em despacho fundamentado, se convencido, pela resposta do acusado ou do seu defensor, da inexistência do crime ou da improcedência da ação” (CPP, art. 516). Nos dois casos, recebida a petição inicial (denúncia ou queixa), o réu (acusado) será citado para promover a sua defesa, assumindo o processo, daí em diante, o rito comum, civil ou penal (art. 17, § 9º, da Lei 8.429/92; arts. 517 e 518 do CPP).

É justamente essa identidade substancial das penas que dá suporte à dou-trina da unidade da pretensão punitiva (ius puniendi) do Estado, cuja principal consequência “é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao direito administrativo sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias indivi-duais” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. SP: RT, 2000. p. 102; ENTERRIA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás-Ramon. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. SP: RT, 1991. p. 890). Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que pro-duz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos políticos. Por

Page 65: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

64

Ministro Teori Zavascki

isso, embora não se possa traçar uma absoluta unidade de regime jurídico, não há dúvida que alguns princípios são comuns a qualquer sistema sancionatório, seja nos ilícitos penais, seja nos administrativos, entre eles o da legalidade, o da tipicidade, o da responsabilidade subjetiva, o do non bis in idem, o da presunção de inocência e o da individualização da pena, aqui enfatizados pela importância que têm para a adequada compreensão da Lei de Improbidade Administrativa.

Essa compreensão se deve adotar, segundo penso, em relação ao foro por prerrogativa de função. Se a Constituição tem por importante essa prerrogativa, qualquer que seja a gravidade da infração ou a natureza da pena aplicável em caso de condenação penal, não há como deixar de considerá-la ínsita ao sis-tema punitivo da ação de improbidade, cujas consequências, relativamente ao acusado e ao cargo, são ontologicamente semelhantes e eventualmente até mais gravosas. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. Se há, por vontade expressa do Constituinte, prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam sim-ples pena de multa pecuniária, não teria sentido negar tal garantia em relação às ações de improbidade, que importam, além da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos políticos. (Pet 3.240 AgR/DF, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 10-5-2018, P, DJE de 21-8-2018.)

Logo em seguida, combate eventual solução contrária:

Contra esse entendimento, tem sido invocada e preconizada a interpre-tação estritamente literal das normas constitucionais a respeito de competên-cia. Todavia, tal método interpretativo não é o mais adequado nesse domínio. Há situações em que a interpretação ampliativa das regras de competência é uma imposição incontornável do sistema. Conforme reconhecido em boa dou-trina, “é admissível (...) uma complementação de competências constitucionais através do manejo de instrumentos metódicos de interpretação (sobretudo de interpretação sistemática ou teleológica)”, cuja adoção pode revelar “duas hipó-teses de competências implícitas complementares”: as “enquadráveis no pro-grama normativo-constitucional de uma competência explícita, e justificáveis porque não se trata tanto de alargar competências mas de aprofundar competên-cias”; e as “necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes através da leitura sistemática e analógica dos preceitos constitucionais” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992. p. 695). No mesmo sentido, citando, inclusive, inúmeras hipóteses em que o STF adotou, para definir competências, “interpretação extensiva ou compreensiva do texto constitucional”: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. SP: Saraiva, 2007. p. 906.

Esse é o caminho que tem sido seguido pela jurisprudência constitu-cional brasileira. Já se fez alusão às hipóteses de ação penal por crimes federais praticados por parlamentares estaduais e por prefeitos, em que foram conside-rados competentes os Tribunais Regionais Federais, ampliando-se, consequen-temente, os limites de competência estabelecidos no art. 108, I, a, da CF. Há outras situações que tornam inevitável a interpretação ampliativa, inclusive no que diz respeito à competência civil. Assim, embora nada disso esteja expresso na Constituição, considera-se que os Tribunais Regionais Federais são compe-tentes para processar e julgar os mandados de segurança impetrados por ente

Page 66: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

65

Ministro Teori Zavascki

federal contra ato de juiz de direito (STF, Pleno, RE 176.881-9, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 6-3-1998; STJ, 1ª T, RMS 18.300, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 4-10-2004) e atribui-se ao STJ a competência para dirimir conflitos entre turmas recursais e Tribunal de Justiça (STF, Pleno, CC 7.106-1, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 8-11-2002; STF, Pleno, CC 7.090-1, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 11-9-2002; STF, Pleno, CC 7.081-6, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 27-9-2002; STJ, 3ª S., CC 44.124, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 24-11-2004; STJ, 2ª S., CC 41.744, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 6-4-2005). Na vigência da Constituição anterior, mas à base de princípios aplicáveis no atual regime constitucional, considerou-se o Tribunal Federal de Recursos competente para processar e julgar ação rescisória proposta por ente federal, muito embora o acórdão rescindendo fosse de Tribunal de Justiça (STF, 1ª T, RE 106.819-1, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 10-4-1987; STF, Pleno, CJ 6.278-8, rel. Min. Décio Miranda, DJ de 13-3-1981). Também no julgamento do Mandado de Injunção 670-9, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 31-10-2008, o STF atribuiu aos Tribunais Regionais Federais e ao Superior Tribunal de Justiça competência para proces-sar e julgar, originariamente, dissídios relacionados com greves de servidores públicos federais.

Portanto, mesmo em relação às regras sobre competências jurisdicionais, os dispositivos da Constituição comportam interpretação sistemática que per-mita preencher vazios e abarcar certas competências implícitas, mas inafastáveis por imperativo do próprio regime constitucional.

E arremata:

Em suma, o que se afirma é que, sob o ponto de vista constitucional justifica-se, com sobradas razões, a preservação de prerrogativa de foro tam-bém para a ação de improbidade administrativa, entendimento que, além de fundado em boa doutrina (v.g., WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. Revista de Informação Legislativa, v. 35, n. 138, p. 215; TOJAL, Sebastião Botto de Barros; CAETANO, Flávio Crocce. Competência e prerrogativa de foro em ação civil de improbidade administrativa. In: BUENO, Cássio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (coords). Improbidade administrativa: questões polê-micas e atuais, p. 399), recebeu o aval do STF, no precedente citado (QO na Pet. 3.211-0, rel. p/ acórdão Min. Menezes Direito, DJ de 27-6-2008). (Pet 3.240 AgR/DF, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 10-5-2018, P, DJE de 21-8-2018.)

2.3 Direito à tutela jurisdicional adequada

O direito à tutela adequada consiste no direito à necessária calibragem entre o meio empregado e o fim visado. Para que a tutela jurisdicional seja ade-quada, veda-se tanto a utilização de meio insuficiente como excessivo em rela-ção ao fim que se pretende realizar. Havendo empate em termos de eficiência dos meios, deve-se preferir aquele que restrinja menos os direitos em jogo.

Page 67: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

66

Ministro Teori Zavascki

Tendo presente essa diretriz, o Supremo Tribunal Federal decidiu em Pessoa que, em sendo o caso, a parte tem o direito de ver empregadas “medidas cautelares diversas” que tenham a “mesma eficiência” da “custódia cautelar”47. Lê-se do voto do Ministro Teori Zavascki:

Algumas premissas são fundamentais para um juízo seguro a respeito das questões suscitadas no presente pedido de habeas corpus. A primeira delas é a de que, conforme reconhecido expressamente pela decisão que decretou a prisão preventiva, essa medida cautelar é a mais grave no processo penal, que desafia o direito fundamental da presunção de inocência, razão pela qual somente “deve ser decretada quando absolutamente necessária. Ela é uma exce-ção à regra da liberdade” (HC 80.282, Relator(a): Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, DJ de 2-2-2001). Ou seja, a medida somente se legitima em situações em que ela for o único meio eficiente para preservar os valores jurídicos que a lei penal visa a proteger, segundo o art. 312 do Código de Processo Penal. Fora dessas hipóteses excepcionais, a prisão preventiva representa simplesmente uma antecipação da pena, o que tem merecido censura pela jurisprudência desta Suprema Corte, sobretudo porque antecipa a pena para acusado que sequer exerceu o seu direito constitucional de se defender (HC 122.072, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJE de 26-9-2014; HC 105.556 Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJE de 29-8-2013).

A segunda premissa importante é a de que, a teor do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe, sim, prova da exis-tência do crime (materialidade) e indício suficiente de autoria; todavia, por mais grave que seja o ilícito apurado e por mais robusta que seja a prova de autoria, esses pressupostos, por si sós, são insuficientes para justificar o encarceramento preventivo. A eles deverá vir agregado, necessariamente, pelo menos mais um dos seguintes fundamentos, indicativos da razão determinante da medida cau-telar: (a) a garantia da ordem pública, (b) a garantia da ordem econômica, (c) a conveniência da instrução criminal ou (d) a segurança da aplicação da lei penal. O devido processo penal, convém realçar, obedece a fórmulas que propiciam tempos próprios para cada decisão. O da prisão preventiva não é o momento de formular juízos condenatórios. Decretar ou não decretar a prisão preventiva não deve antecipar juízo de culpa ou de inocência, nem, portanto, pode ser visto como antecipação da reprimenda ou como gesto de impunidade. Juízo a tal respeito será formulado em outro momento, o da sentença final, após oportu-nizar aos acusados o direito ao contraditório e à ampla defesa. É a sentença final, portanto, e não a decisão da preventiva, o momento adequado para, se for o caso, sopesar a gravidade do delito e aplicar as penas correspondentes.

Mas há ainda uma terceira premissa: em qualquer dessas situações, além da demonstração concreta e objetiva das circunstâncias de fato indicativas de estar em risco a preservação dos valores jurídicos protegidos pelo art. 312 do Código de Processo Penal, é indispensável ficar evidenciado que o encarcera-mento do acusado é o único modo eficaz para afastar esse risco. Dito de outro modo: cumpre demonstrar que nenhuma das medidas alternativas indicadas no art. 319 da lei processual penal tem aptidão para, no caso concreto, atender

47 Cf. Pessoa vs. STJ, 2015 (HC 127.186/PR, rel. min. Teori Zavascki, j. 28-4-2015, 2ª T, DJE de 31-7-2015).

Page 68: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

67

Ministro Teori Zavascki

eficazmente aos mesmos fins. É o que estabelece, de modo expresso, o art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal: “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”.

Depois de examinar todos os requisitos, o Ministro Teori passa a anali-sar especificamente a possibilidade de se adotar outra medida apta a garantir a higidez dos bens e valores resguardados com a prisão no sistema jurídico brasileiro. Eis o seu voto:

Restaria examinar um derradeiro e indispensável requisito para a manu-tenção da prisão cautelar decretada: o da inviabilidade de adoção de outras medidas alternativas aptas a garantir a higidez dos bens e valores jurídicos indi-cados no art. 312 do Código de Processo Penal. Tem razão o magistrado da causa quando afirma que sobejam elementos indicativos de materialidade e autoria de crimes graves e que se faziam presentes, à época, relevantes motivos específicos a justificar a medida cautelar. Assim, embora não se negue que a prisão preventiva foi, de modo geral, apoiada em elementos idôneos - já que a restrição da liber-dade do paciente e dos outros investigados buscava, em suma, evitar a reiteração criminosa e interromper o suposto ciclo delitivo -, é certo que atualmente, con-siderado o decurso do tempo e a evolução dos fatos, a medida extrema já não se faz indispensável, podendo ser eficazmente substituída por medidas alternativas adiante indicadas.

A propósito, além de ser hoje bem diferente, se comparada com a de novembro de 2014, a situação processual da causa, é importante considerar ainda as seguintes e relevantes circunstâncias: (a) os fatos imputados teriam ocorrido entre o ano de 2006 e o início de 2014; (b) a segregação preventiva do paciente perdura por aproximadamente 6 (seis) meses; (c) as empresas controladas pelo paciente estão impedidas de contratar com a Petrobras; e (d) houve o afastamento formal do paciente da direção dessas empresas, com o consequente afastamento do exercício de atividades empresariais. O quadro demonstra que os riscos apre-sentados, tanto no tocante à conveniência da instrução criminal, quanto à garan-tia da ordem pública, foram consideravelmente reduzidos, se comparados aos indicados no decreto de prisão preventiva. Essa substancial alteração do estado de fato permite viabilizar, por força de lei (art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal), a substituição do encarceramento por outras medidas cautelares diversas que se mostrem suficientes para prevenir eventuais perigos residuais que porven-tura subsistam. E se essa substituição é possível, sua adoção passa a ser um dever do magistrado. Nesse sentido, destaca-se recente decisão desta Corte:

(...) Descaracterizada a necessidade da prisão, não obstante sub-sista o periculum libertatis do paciente na espécie, esse pode ser obviado com medidas cautelares diversas e menos gravosas que contribuam para interromper ou diminuir sua atividade, prevenindo-se, assim, a repro-dução de fatos criminosos e resguardando-se a instrução criminal, a ordem pública e econômica e a futura aplicação da lei penal, até porque o período de segregação enfrentado também poderá servir de freio à pos-sível reiteração de condutas ilícitas. 5. Não mais, subsistente a situação fática que ensejou a manutenção da prisão cautelar, é o caso de conces-são de ordem de habeas corpus, de ofício, para se fixarem, desde logo, as

Page 69: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

68

Ministro Teori Zavascki

medidas cautelares diversas da prisão (HC 123.235, Relator(a): Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJE de 4-12-2014).Cumpre enfatizar, outra vez, que, no caso, a substituição da prisão por

outras medidas cautelares específicas pode, de igual modo, resguardar a ordem pública com a mesma eficiência. O próprio magistrado de primeiro grau aplicou medidas cautelares diversas da prisão para outros investigados que apresenta-vam situação análoga à do paciente. Assim ocorreu, por exemplo, em relação aos corréus Eduardo Hermelino Leite e Dalton dos Santos Avancini, dirigentes da empresa Camargo Corrêa, com atuação ao menos similar à do paciente no suposto cartel e cuja prisão preventiva se dera por fundamentos praticamente idênticos. Esses corréus - com situação processual significativamente asseme-lhada à do ora paciente, tanto que foram denunciados conjuntamente na mesma ação penal -, após firmarem acordo de colaboração premiada, tiveram a prisão preventiva substituída por outras medidas cautelares. Tendo sido eficaz, nesses casos, a substituição da prisão preventiva por medidas alternativas, não há razão jurídica justificável para negar igual tratamento ao ora paciente.

É certo que não consta ter o paciente se disposto a realizar colaboração premiada, como ocorreu em relação aos outros. Todavia, essa circunstância é aqui absolutamente irrelevante, até porque seria extrema arbitrariedade - que certamente passou longe da cogitação do juiz de primeiro grau e dos Tribunais que examinaram o presente caso, o TRF da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça - manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a Lei, deve ser voluntária (Lei 12.850/13, art. 4º, caput e § 6º). Subterfúgio dessa natureza, além de atentató-rio aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada.

E conclui:

Pois bem, em nosso sistema, notadamente a partir da Lei 12.403/11, que deu nova redação ao art. 319 do Código de Processo Penal, o juiz tem não só o poder, mas o dever de substituir a prisão cautelar por outras medidas substituti-vas sempre que essas se revestirem de aptidão processual semelhante. Impõe-se ao julgador, assim, não perder de vista a proporcionalidade da medida cautelar a ser aplicada no caso, levando em conta, conforme reiteradamente enfatizado pela jurisprudência desta Corte, que a prisão preventiva é medida extrema que somente se legitima quando ineficazes todas as demais (HC 106.446, Relator(a): Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJE de 20-9-2011; HC 114.098, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJE de 12-12-2012).

No caso dos autos, como já afirmado, o longo tempo decorrido desde o decreto de prisão e a significativa mudança do estado do processo e das circuns-tâncias de fato estão a indicar que a prisão preventiva, por mais justificada que tenha sido à época de sua decretação, atualmente pode (e, portanto, deve) ser substituída nos termos dos arts. 282 e 319 do Código de Processo Penal, pelas seguintes medidas cautelares:

a) afastamento da direção e da administração das empresas envolvidas nas investigações, ficando proibido de ingressar em quaisquer de seus estabele-cimentos, e suspensão do exercício profissional de atividade de natureza empre-sarial, financeira e econômica;

Page 70: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

69

Ministro Teori Zavascki

b) recolhimento domiciliar integral até que demonstre ocupação lícita, quando fará jus ao recolhimento domiciliar apenas em período noturno e nos dias de folga;

c) comparecimento quinzenal em juízo, para informar e justificar ativi-dades, com proibição de mudar de endereço sem autorização;

d) obrigação de comparecimento a todos os atos do processo, sempre que intimado;

e) proibição de manter contato com os demais investigados, por qual-quer meio;

f) proibição de deixar o país, devendo entregar passaporte em até 48 (quarenta e oito) horas;

g) monitoração por meio da utilização de tornozeleira eletrônica.Destaca-se que o descumprimento injustificado de quaisquer dessas

medidas ensejará, naturalmente, decreto de restabelecimento da ordem de pri-são (art. 282, § 4º, do Código de Processo Penal). (HC 127.186/PR, rel. min. Teori Zavascki, j. 28-4-2015, 2ª T, DJE de 31-7-2015.)

2.4 Direito à segurança jurídica no processo

Embora não esteja textualmente agasalhado na Constituição, há ine-quívoco direito à segurança jurídica no processo48. Um dos seus elementos é o respeito à coisa julgada. Em Camargo, o STF discutiu o alcance do direito à segurança jurídica diante da superveniência de circunstâncias capazes de alterar a situação anteriormente apreciada49. Para tanto, valeu-se da distinção entre eficácia e autoridade da sentença e da necessidade de precisa identifica-ção da eficácia e dos limites temporais do julgado.

A questão foi assim resumida pelo Ministro Teori Zavascki:

O recurso em exame foi veiculado em ação rescisória que, sob os fun-damentos dos incisos IV e V do art. 485 do CPC, busca desconstituir decisão extintiva de processo de execução trabalhista. O Tribunal Superior do Trabalho, confirmando decisões das instâncias inferiores, descartou a alegação de que a extinção da execução estaria ofendendo a coisa julgada, por ser contrária ao título executivo judicial (que reconhecera o direito à incorporação, nos venci-mentos dos reclamantes, do percentual de 26,05% relativo à URP de fevereiro de 1989).

Eis o que consignou o Tribunal de origem: No que se refere à alegada violação da coisa julgada (CPC, art. 485,

IV), em primeiro lugar, porque a sentença exequenda, conforme evi-dencia o trecho transcrito no acórdão recorrido, silencia sobre qualquer espécie de limitação, nela não havendo vedação expressa nesse sentido.

48 Cf. MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional (2012). 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, em coautoria com Ingo Sarlet. 49 Cf. Camargo vs. Banco do Brasil, 2014 (RE 596.663/RJ, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-9-2014, P, DJE de 25-11-2014).

Page 71: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

70

Ministro Teori Zavascki

É o que ainda revela a leitura da íntegra daquela decisão, apresentada com a inicial da ação rescisória a fls. 21/22.

Em segundo lugar, porque a jurisprudência desta Eg. Subseção está orientada no sentido de que a violação da coisa julgada a que alude o art. 485, IV, do CPC diz respeito ao trânsito em julgado operado em outra ação, em que caracterizada a tríplice identidade de partes, pedidos e causa de pedir, situação em que não se enquadra a hipótese sob exame.

(...) Por outra face, os fundamentos recursais, quanto aos erros pro-

cessuais ditos ocorridos na fase de execução (f ls. 186/196), revelam situações fáticas que não correspondem àquelas delineadas no julgado rescindendo, segundo o qual, conforme constatado por meio de prova pericial, a obrigação foi satisfeita, quanto aos empregados do ora Réu, abrangendo o período de fevereiro até agosto de 1989, por força do dissí-dio coletivo já mencionado, sendo que os ora Recorrentes receberam os valores pertinentes às diferenças de proventos de aposentadoria decorren-tes da aplicação do percentual de 26,05% relativo à URP de fevereiro de 1989 - indevidamente - até agosto de 1995 (fl. 87).

Ainda na mesma decisão, a Turma julgadora concluiu que “pro-vado o pagamento posterior à sentença impõe-se a extinção da execução (art. 794, I, do CPC)”, que “a matéria é própria de liquidação, ao contrário do que alegado, já que se definem os efeitos da sentença liquidanda, situa-ção que não infringe a coisa julgada” (fl. 87), e, por fim, que “a autoridade da coisa julgada não se estende ao fato posterior à sentença, extintivo da obrigação” (fl. 88).

A situação, a toda evidência, atrai o óbice da Súmula 410/TST (conversão da O.J. 109/SBDI-2/TST), na medida em que “a ação rescisória calcada em violação de lei não admite reexame de fatos e provas do pro-cesso que originou a decisão rescindenda”.

Impossível, assim, cogitar-se de violação da coisa julgada, tam-bém pelo prisma das violações à Constituição Federal e à Lei (CPC, art. 485, V) manejadas na inicial da ação rescisória (CF, art. 5º, XXXVI; CLT, art. 789, § 1º). Os recorrentes, porém, insistem na tese de infringência ao art. 5º, XXXV,

da Constituição, na consideração de que, ao validar o encerramento do processo executivo, dando por quitada a obrigação de incorporação da URP referente ao mês de fevereiro/89, o acórdão recorrido teria desconsiderado comando expresso do título exequendo, que, segundo entendem, não limitou a incidência do percentual de 26,05% ao ano de 1989, tendo determinado o seu pagamento com efeitos presentes e futuros.

Lê-se de seu voto a solução proposta:

O pedido de vista, conforme referi na oportunidade, se deveu à percep-ção de que, consideradas as circunstâncias do caso, a questão jurídica em debate não diz respeito à coisa julgada, mas, sim, a eficácia temporal da sentença. O exame dos autos confirma esse entendimento. Realmente, a sentença exequenda reconheceu o direito dos demandantes a incorporar, em seus vencimentos, o percentual de 26,05%, relativo à URP de fevereiro de 1989. Trata-se de típica sen-tença sobre relação jurídica de trato continuado, que, portanto, projeta efeitos

Page 72: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

71

Ministro Teori Zavascki

prospectivos. Justamente por isso, a questão que ordinariamente se põe em rela-ção a essa espécie de provimento é a da sua eficácia temporal futura: até quando a sentença tem eficácia? É, porventura, ad aeternum, a produção de seus efeitos?

Sobre esse tema, há uma premissa conceitual incontroversa: a de que a força vinculativa dessas sentenças atua rebus sic stantibus. Realmente, ao pro-nunciar juízos de certeza sobre a existência, a inexistência ou o modo de ser das relações jurídicas, a sentença leva em consideração as circunstâncias de fato e de direito que se apresentam no momento da sua prolação. Tratando-se de relação jurídica de trato continuado, a eficácia temporal da sentença permanece enquanto se mantiverem inalterados esses pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviram de suporte (cláusula rebus sic stantibus). No particular, tivemos oportunidade de sustentar o seguinte, em sede doutrinária (Eficácia das senten-ças na jurisdição constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 101-106):

(...) Ora, a sentença, ao examinar os fenômenos de incidência e pronunciar juízos de certeza sobre as consequências jurídicas daí decorrentes, certificando, oficialmente, a existência, ou a inexistência, ou o modo de ser da relação jurídica, o faz levando em consideração as circunstâncias de fato e de direito (norma abstrata e suporte fático) que então foram apresentadas pelas partes. Considerando a natureza perma-nente ou sucessiva de certas relações jurídicas, põem-se duas espécies de questões: primeira, a dos limites objetivos da coisa julgada, que consiste em saber se a eficácia vinculante do pronunciamento judicial abarca também (a) o desdobramento futuro da relação jurídica permanente, (b) as reiterações futuras das relações sucessivas e (c) os efeitos futuros das relações instantâneas. A resposta positiva à primeira questão suscita a segunda: a dos limites temporais da coisa julgada, que consiste em saber se o comando sentencial, emitido em certo momento, permanecerá inal-terado indefinidamente, mesmo quando houver alteração no estado de fato ou de direito. Ambas as questões, no fundo, guardam íntima relação de dependência, conforme se verá.

No que se refere aos limites objetivos da coisa julgada, a regra geral é a de que, por qualificar norma concreta, fazendo juízo sobre fatos já ocorridos, a sentença opera sobre o passado, e não sobre o futuro.

(...)Estabelecido que a sentença, nos casos assinalados, irradia eficácia

vinculante também para o futuro, surge a questão de saber qual é o termo ad quem de tal eficácia. A solução é esta e vem de longe: a sentença tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. Se ela afirmou que uma rela-ção jurídica existe ou que tem certo conteúdo, é porque supôs a existência de determinado comando normativo (norma jurídica) e de determinada situação de fato (suporte fático de incidência); se afirmou que determi-nada relação jurídica não existe, supôs a inexistência ou do comando normativo, ou da situação de fato afirmada pelo litigante interessado. A mudança de qualquer desses elementos compromete o silogismo original da sentença, porque estará alterado o silogismo do fenômeno de incidên-cia por ela apreciado: relação jurídica que antes existia deixou de existir, e vice-versa. Daí afirmar-se que a força da coisa julgada tem uma condi-ção implícita, a da clausula rebus sic stantibus, a significar que ela atua

Page 73: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

72

Ministro Teori Zavascki

enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito exis-tentes quando da prolação da sentença. Alterada a situação de fato (muda o suporte fático mantendo-se o estado da norma) ou de direito (muda o estado da norma, mantendo-se o estado de fato), ou dos dois, a sentença deixa de ter a força de lei entre as partes que até então mantinha (...).

E prossegue:

Restaria saber se essa superveniente perda de eficácia da sentença depen-deria de ação rescisória ou, ao menos, de uma nova sentença em ação revisional. Quanto à rescisória, a resposta é certamente negativa, até porque a questão posta não se situa no plano da validade da sentença ou da sua imutabilidade, mas, sim, unicamente, no plano da sua eficácia temporal. Quanto à ação de cunho revi-sional, também é dispensável em casos como o da espécie, pois, alteradas por razões de fato ou de direito as premissas originalmente adotadas pela sentença, a cessação de seus efeitos, em regra, opera-se de modo imediato e automático, independente de novo pronunciamento judicial. Sobre esse tema, permito-me, outra vez, reproduzir o que escrevi em sede doutrinária:

(...) A alteração do status quo tem, em regra, efeitos imediatos e automáticos. Assim, se a sentença declarou que determinado servidor público não tinha direito a adicional de insalubridade, a superveniência de lei prevendo a vantagem importará imediato direito de usufruí-la, ces-sando a partir daí a eficácia vinculativa do julgado, independente de novo pronunciamento judicial ou de qualquer outra formalidade. Igualmente, se a sentença declara que os serviços prestados por determinada empresa estão sujeitos a contribuição para a seguridade social, a norma superve-niente que revogue a anterior ou que crie isenção fiscal cortará sua força vinculativa, dispensando o contribuinte, desde logo, do pagamento do tributo. O mesmo pode ocorrer em favor do Fisco, em casos que, reco-nhecida por sentença, a intributabilidade, sobrevier lei criando tributo: sua cobrança pode dar-se imediatamente, independentemente de revisão do julgado anterior.

No que se refere à mudança no estado de fato, a situação é idên-tica. A sentença que, à vista da incapacidade temporária para o trabalho, reconhece o direito ao benefício de auxílio-doença tem força vincula-tiva enquanto perdurar o status quo. A superveniente cura do segurado importa imediata cessação dessa eficácia.

Nos exemplos citados, o interessado poderá invocar a nova situ-ação (que extinguiu, ou modificou a relação jurídica) como matéria de defesa, impeditiva da outorga da tutela pretendida pela parte contrária. Havendo execução da sentença, a matéria pode ser alegada pela via de embargos, nos termos [do] art. 741, VI, do CPC. Tratando-se de matéria típica de objeção, dela pode conhecer o juiz até mesmo de ofício, mor-mente quando se trata de mudança do estado de direito, quando será inteiramente aplicável o princípio jura novit curia (op. cit. p. 106-107).As exceções a essa automática cessação da eficácia vinculante da sen-

tença por decorrência da mudança do status quo ocorre quando, por imposição expressa de lei, atribui-se ao beneficiado a iniciativa de provocar o pronuncia-mento judicial a respeito, configurando, dessa forma, uma espécie de direito potestativo. No mesmo estudo já referido, observei, a esse propósito:

Page 74: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

73

Ministro Teori Zavascki

Em certas situações, a modificação do estado de fato ou de direito somente operará alteração na relação obrigacional se houver iniciativa do interessado e nova decisão judicial. Em outras palavras, assiste ao beneficiado pela mudança no status quo o direito potestativo de provocar, mediante ação própria, a revisão da sentença anterior, cuja força vincu-lativa permanecerá íntegra enquanto não houver aquela provocação. A nova sentença terá, portanto, natureza constitutiva com eficácia ex nunc, provocando a modificação ou a extinção da relação jurídica afirmada na primitiva demanda. Exemplo clássico é o dos alimentos provisionais. A sentença que os fixa está sujeita à cláusula rebus sic stantibus, a significar que a obrigação poderá ser alterada, para mais ou para menos, ou até extinta, com a superveniente mudança do status quo ante. Todavia, aqui não há eficácia automática. Cumpre ao devedor dos alimentos, que teve reduzida a sua capacidade financeira, promover judicialmente a alteração da obrigação; cumpre, igualmente, ao credor, que teve superveniente-mente aumentadas as suas despesas de subsistência, demandar em juízo a majoração do pensionamento. É o que prevê, expressamente, o art. 1.699 do CC. Enquanto não houver a iniciativa do interessado, a obrigação permanece intacta, segundo os parâmetros estabelecidos na sentença. Daí afirmar-se que, em tais casos, há direito potestativo à modificação, que deve ser exercido mediante ação judicial. São casos excepcionais, que, por isso mesmo, recebem interpretação estrita. É justamente nessas situações que será cabível - e indispensável para operar a mudança na relação jurídica objeto da sentença - a chamada ação revisional ou ação de modificação, anunciada no art. 471, II, do CPC.

Compreendida nos exatos e estritos limites acima referidos, a ação de revisão não visa a anular a sentença revisanda, nem a rescindi-la. Conforme observou Pontes de Miranda, “não há dúvida de que a ação de modificação não diz respeito à não existência, nem à não validade da sentença que se quer executar. Tão somente à interpretação, ou ver-são, da sua eficácia” (MIRANDA, Pontes de; CAVALCANTI, Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. t. V. p. 199). Ela tem, certamente, natureza constitutiva, e a corres-pondente sentença de procedência terá eficácia ex nunc, para o efeito de modificar ou extinguir, a partir da sua propositura, a relação jurídica declarada na sentença revisanda. O que se modifica ou extingue é a rela-ção de direito material, não a sentença.

Convém repetir e frisar, todavia, que a ação de revisão é indispen-sável apenas quando a relação jurídica material de trato continuado com-portar, por disposição normativa, o direito potestativo antes referido. É o caso da ação de revisão de alimentos, destinada a ajustá-los à nova situ-ação econômica do devedor ou às supervenientes necessidades do credor, e da ação de revisão de sentença que tenha fixado valores locatícios, para ajustá-los a novas condições de mercado (arts. 19 e 68 da Lei 8.245/1991). Afora tais casos, a modificação do estado de fato ou de direito produz imediata e automaticamente a alteração da relação jurídica, mesmo quando esta tiver sido certificada por sentença com trânsito em julgado, conforme anteriormente assinalado (op. cit., p. 107-108).

Page 75: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

74

Ministro Teori Zavascki

Feito o enquadramento da questão, conclui o Ministro Teori:

Ora, no caso concreto, ocorreu uma evidente alteração no status quo: o percentual de 26,05% objeto da condenação foi inteiramente satisfeito pela ins-tituição executada, tendo sido inclusive objeto de incorporação aos vencimentos dos demandantes por força de superveniente cláusula de dissídio coletivo. Em outras palavras: não houve ofensa alguma ao comando da sentença; pelo contrá-rio, houve, sim, o seu integral cumprimento superveniente. Esgotou-se, assim, a sua eficácia temporal, por ter sido satisfeita a condenação.

(...) Enfatiza-se, portanto, outra vez: não houve, por parte do acórdão recor-

rido, qualquer violação à coisa julgada. O que ele fez, na verdade, foi apenas um juízo sobre o exaurimento da eficácia temporal da sentença exequenda, em face do superveniente atendimento integral do seu comando, ficando assen-tado que, com o advento de acórdão do TST no Dissídio Coletivo 38/89 e com o consequente reajuste dos vencimentos dos ora recorrentes de acordo com os índices apurados pelo DIEESE entre 1º-9-1988 a 31-8-1989, o valor da URP cor-respondente ao mês de fevereiro de 1989 foi definitivamente incorporado aos seus ganhos. Em outras palavras, após o trânsito em julgado da sentença que certificou o direito à incorporação do índice da URP correspondente a fevereiro de 1989, o pagamento deste mesmo percentual passou a ser reconhecido por um outro instrumento normativo autônomo, produzido supervenientemente, e que alterou radicalmente os termos da relação jurídica originariamente posta sob o crivo da Justiça Trabalhista.

Daí ter o juízo de execução determinado, com acerto, a extinção do pro-cesso, impedindo a eternização do pagamento em duplicidade do mesmo per-centual de 26,05%. (RE 596.663/RJ, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-9-2014, P, DJE de 25-11-2014.)

2.5 Direito ao recurso

Em Mensalão50, um de seus casos mais emblemáticos da história do STF, o Ministro Teori Zavascki liderou a Corte em relação à subsistência do direito aos embargos infringentes previstos em seu Regimento Interno em face da Constituição. Em seu conhecido voto, sustentou a necessidade de interpretar a legislação não só de acordo com a Constituição, mas também em conformi-dade aos Direitos Humanos previstos em normas internacionais - no caso, o Pacto de São José da Costa Rica.

A questão está assim resumida pelo Ministro Teori Zavascki:

A controvérsia está centrada na revogação ou não do art. 333, I do Regimento Interno do STF, que, como é reconhecido sem divergência, foi recep-cionado pela CF/88 com status de lei ordinária. E o fundamento adotado pela decisão agravada é de que tal dispositivo foi revogado pela superveniente Lei

50 Cf. Mensalão, 2013 (AP 470 AgR-vigésimo sexto/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 18-9-2013, P, DJE de 14-2-2014).

Page 76: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

75

Ministro Teori Zavascki

8.038/1990, que, ao disciplinar a ação penal originária de competência dos Tribunais, não previu o recurso de embargos infringentes.

Em seu voto, procura em primeiro lugar examinar a compatibilidade dos embargos infringentes com o rito da ação penal originária em uma perspectiva histórica:

Não se pode afirmar que o recurso de embargos infringentes previstos no art. 333, I, do RISTF seja incompatível com a ação penal originária disciplinada na Lei 8.038/90. Pelo contrário, considerada a natureza desse peculiar e vetusto recurso, a presença dele em nosso sistema processual, se ainda pode ser de alguma forma justificada (e não são poucos nem só modernos os que advogam a conveniência de extinguir essa espécie recursal), é justamente para hipóteses em que as decisões embargáveis sejam tomadas por maioria ou já não comportem outra espécie recursal.

Com efeito, há, na doutrina brasileira, um estudo considerado clássico, pela sua importância e profundidade, sobre esse específico recurso de embargos infringentes, escrito pelo Professor Moniz de Aragão (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Estudo sobre os embargos de nulidade e infringentes do julgado pre-vistos no Código de Processo Civil. Curitiba: Litero-Técnica). Foi sua tese de Concurso à Cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, publicada em 1959. Já naquela época, o autor apon-tava - e aderia - as sérias reservas doutrinárias a respeito da conveniência de se manter, no sistema processual, o recurso de embargos infringentes, reservas alicerçadas, entre outros, nesse fundamento invocado na decisão agravada, de se tratar, afinal, de um recurso para o mesmo órgão que proferiu a decisão recor-rida. Essas mesmas críticas são noticiadas por Pontes de Miranda, que, ao tratar do tema, refere como primeiro e antigo “problema de técnica legislativa: o de saber se convém, ou não, que a legislação adote o recurso de embargos. A res-posta”, acrescenta, “é dada diferentemente pelos povos e, durante a pluralidade de legislações processuais dos Estados-membros do Brasil, a tendência à nega-tiva era expressiva” (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. RJ: Forense, 1975. t. III. p. 318). Portanto, a conveniência ou não de manter esse recurso em nosso sistema processual não é questão atual, mas antiga e per-sistente. Todavia, essa é uma questão ligada à conveniência de política legisla-tiva, convindo enfatizar que a conveniência ou inconveniência da lei não é, por si só, causa de sua revogação, nem cabe ao juiz, por esse exclusivo motivo, deixar de aplicá-la.

Discorrendo sobre a origem e a natureza do recurso, escreveu o Professor Moniz de Aragão, na Introdução daquela obra:

Consoante o ensinamento dos doutores, os embargos originam--se dos antigos pedidos de reconsideração, instituídos pela praxe lusitana à época em que foram supressos os tribunais deambulatórios. É lição de Souza, endossada por Lobão, e até hoje não contestada. (...)

A reassunção, pelos embargos, do seu primitivo escopo, quando ainda denominados pedido de reconsideração, de possibilitar recurso con-tra as sentenças, não importou ipso facto na perda do outro propósito, que lhe atribuíra a legislação Afonsina, de meio de ataque do executado. (...)

Page 77: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

76

Ministro Teori Zavascki

Embora uma só a denominação, os embargos de nulidade e infrin-gentes do julgado e os embargos do executado tinham oportunidade bastante diversa. Como recurso destinavam-se a impedir a formação da coisa julgada, fazendo com que o pronunciamento fosse objeto de nova revisão, pelos mesmos juízes que o haviam prolatado, seja no primeiro ou no segundo grau. Como ataque do executado, ao contrário, variava sen-sivelmente o seu objetivo. Já não lhe servia de alvo uma sentença ainda impugnável, mas uma decisão firme, aureolada com a irrecorribilidade. Mesmo assim podiam os embargos inutilizá-la, contrapondo-lhe vícios de forma e de fundo.

Limitada por esse paralelismo desenrolou-se toda a história do recurso, hoje arrolado em nosso Código de Processo Civil, sem que a dou-trina houvesse explicado ou explorado a interessante simultaneidade.Pois bem, inobstante a resistência que recebe de respeitável corrente dou-

trinária, o recurso ainda se mantém em nossa legislação, e se mantém com essa mesma característica essencial formatada ao longo de sua já longínqua origem: como um recurso equiparado a um pedido de reconsideração, que é proposto, não para ser julgado em outra instância, mas sim na própria instância e em geral pelo mesmo órgão que prolatou a decisão embargada, visando a obter uma retratação. Daí afirmar Pontes de Miranda que “a devolução do conhecimento deles a um tribunal do qual não façam parte os juízes prolatores do acórdão embargado destoaria, flagrantemente, da própria definição de embargos, na qual, a despeito da dilatação do corpo julgador do recurso, não se pode eliminar, sem grave perturbação da terminologia e da técnica processuais, o antigo elemento de retratação, que tem persistido” (op. cit., p. 324). O atual Código de Processo Civil, embora não recomende, permite até que fique mantido, no processamento dos embargos, o mesmo relator da decisão embargada (CPC, art. 534, interpretado a contrario sensu).

(...)Essa sua peculiar característica - de se tratar de uma espécie de pedido

de reconsideração - é que determina e impõe uma natural restrição ao âmbito do cabimento dos embargos infringentes, admitidos somente em situações muito especiais, especificamente em duas: (a) contra decisões não sujeitas a outro recurso ou (b) contra decisões colegiadas tomadas por maioria de votos. Da primeira espécie são, por exemplo, os embargos infringentes em causas de alçada, tradicionais em nosso direito processual, como os previstos no art. 839 do CPC de 1939 (“Art. 839. Das sentenças de primeira instância proferidas em ações de valor igual ou inferior a duas vezes o salário mínimo vigente nas capitais respectivas dos Territórios e Estados, só se admitirão embargos de nulidade ou infringentes do julgado e embargos de declaração. § 1º Os embargos de nulidade ou infringentes do julgado, instruídos, ou não, com documentos novos, serão deduzidos, nos cinco (5) dias seguintes à data da sentença, perante o mesmo juízo, em petição fundamentada. § 2º Ouvido o embargado no prazo de cinco (5) dias, serão os autos conclusos ao juiz, que, dentro em dez (10) dias, os rejeitará ou reformará a sentença”), no art. 4º da Lei 6.825/80 (“Art. 4º Das sentenças proferidas pelos juízos federais em causas de valor igual ou inferior a 50 (cin-quenta) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, em que interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes a União, autarquias e empresas públicas federais só se admitirão embargos infringentes do julgado e embargos de declaração. § 1º Os embargos infringentes do julgado, instruídos, ou não, com

Page 78: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

77

Ministro Teori Zavascki

documentos novos, serão deduzidos, perante o mesmo Juízo, em petição funda-mentada, no prazo de 10 (dez) dias, contados na forma do art. 506 do Código de Processo Civil. § 2º Ouvido o embargado, no prazo de 5 (cinco) dias, serão os autos conclusos ao Juiz, que, dentro de 10 (dez) dias, os rejeitará ou reformará a sen-tença. § 3º Os embargos declaratórios serão opostos em petição, sem audiência da parte contrária, na forma dos arts. 464 e 465 do Código de Processo Civil.”) e no art. 34, §§ 2º e 3º da Lei 6.830/80 - Lei de Execução Fiscal, ainda em vigor (“Art. 34. Das sentenças de primeira instância proferidas em execuções de valor igual ou inferior a 50 (cinquenta) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTN, só se admitirão embargos infringentes e de declaração. (...) § 2º Os embargos infringentes, instruídos, ou não, com documentos novos, serão deduzi-dos, no prazo de 10 (dez) dias perante o mesmo Juízo, em petição fundamentada. § 3º Ouvido o embargado, no prazo de 10 (dez) dias, serão os autos conclusos ao Juiz, que, dentro de 20 (vinte) dias, os rejeitará ou reformará a sentença.”). São da segunda espécie, os embargos infringentes disciplinados nos artigos 530 e seguintes do CPC (Art. 530. Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência. Art. 531. Interpostos os embargos, abrir--se-á vista ao recorrido para contrarrazões; após, o relator do acórdão embargado apreciará a admissibilidade do recurso. (...) Art. 533. Admitidos os embargos, serão processados e julgados conforme dispuser o regimento do tribunal. Art. 534. Caso a norma regimental determine a escolha de novo relator, esta recairá, se pos-sível, em juiz que não haja participado do julgamento anterior) e os do parágrafo único do art. 609 do Código de Processo Penal.

Ora, os embargos infringentes previstos no art. 333, I, do Regimento Interno do STF atendem às duas condições: (a) visam à reforma de decisão cole-giada tomada por maioria (aliás, por escassa maioria), decisão essa (b) contra a qual, ademais, já não caberá outro recurso. Por isso se reafirma: essa espécie recursal não é, de forma alguma, incompatível com a ação penal originária de competência do STF. Pelo contrário, é um recurso adequado a essa peculiarís-sima decisão colegiada tomada por estreita maioria em ação de competência originária de um tribunal supremo.

Vencida a questão ligada à compatibilidade, o Ministro Teori Zavascki passa a enfrentar a sua subsistência propriamente dita:

A questão jurídica, portanto, é de outra natureza, ou seja, a de identifi-car o sentido da omissão legislativa, em cuja base subjaz a seguinte pergunta: por não ter previsto recurso algum para as decisões interlocutórias e definitivas proferidas nas ações originárias, teria a lei o efeito jurídico de eliminar a recor-ribilidade dessas decisões ou teria ensejado a aplicação, por analogia ou subsi-diariedade, de outras normas do sistema? Dito de outra forma: tendo previsto recursos para outras ações, advindas de outros órgãos judiciários, teria a Lei 8.038/90 tornado irrecorríveis as decisões interlocutórias e as sentenças definiti-vas proferidas nas ações de competência originária por ela disciplinadas, como é o caso da ação penal, ou estaria hígido o sistema recursal já existente?

Questão semelhante se estabeleceu, na década de 1990, no âmbito do processo civil, em relação ao cabimento ou não de recurso contra decisões

Page 79: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

78

Ministro Teori Zavascki

interlocutórias em mandado de segurança. É que a Lei 1.533/51, que então dis-ciplinava o procedimento dessa ação, era omisso a respeito. Ou melhor, só pre-via recurso das decisões terminativas (extinção do processo sem julgamento de mérito) ou definitivas (sentenças de mérito). A pergunta que então se fazia era a mesma que agora se faz: não tendo a lei especial previsto recurso contra decisões interlocutórias, seriam elas irrecorríveis? Tomando posição a respeito dessa con-trovérsia - que gerava acesos debates, inclusive no âmbito do recém-instalado Superior Tribunal de Justiça, onde predominava o entendimento, depois supe-rado, pela negativa de cabimento do recurso - ainda como juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tive oportunidade de sustentar o seguinte, em escrito originalmente publicado em 1997 (ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. 7. ed. SP: Saraiva. p. 247/250):

[A] Lei n. 1.533, de 1951, efetivamente faz menção a recurso apenas quando trata da sentença que indefere liminarmente a petição inicial (art. 8º) e da que, ao final, julga a ação (art. 12). Terá havido aí intenção de excluir a possibilidade de recurso em relação às demais decisões proferidas no processo, ou se trata, simplesmente, de caso de lacuna, a ser preenchida pela utilização da analogia ou pela aplicação subsidiária do Código de Processo Civil?

Quem defende a primeira alternativa, a que nega a recorribilidade das decisões interlocutórias, utiliza o argumento a contrario sensu: se a lei arrolou expressamente as decisões sujeitas a recurso em mandado de segurança, a contrario sensu, excluiu a possibilidade de recurso em rela-ção às demais. Já os que defendem a recorribilidade, invocam o argumento da analogia, que leva a resultado exatamente inverso: se a lei especial não previu o recurso cabível das decisões interlocutórias, preenche-se o vazio pela aplicação da regra disciplinadora do caso análogo.

Ora, a atividade de interpretação impõe ao jurista, frequentemente, tal espécie de encruzilhada: o argumento a contrario ou o argumento da analogia. É clássico o exemplo da Lei das Doze Tábuas, segundo a qual o proprietário de um “quadrúpede” responde pelos prejuízos que o ani-mal tenha causado. “Ora”, explica Karl Engisch, que figurou a hipótese, “levantou-se a questão da responsabilidade do proprietário pelos prejuízos causados por um animal bípede, por exemplo um avestruz africano. Se mantivermos o ponto de vista de que, através duma ‘simples interpretação’, um animal bípede não pode ser convertido num ‘quadrúpede’, achamo--nos perante a alternativa: argumento de analogia ou argumento ‘a con-trario’. No puro plano lógico-formal estes dois argumentos, que conduzem a resultados completamente diferentes, têm a mesma legitimidade. Tanto se pode dizer que aquilo que vale para os quadrúpedes deve valer também, em virtude da semelhança, para os bípedes igualmente perigosos, como se pode concluir que aquilo que é prescrito em relação a quadrúpedes não pode valer para outros animais”. E, lembrando que “os próprios romanos preferiram o argumento de analogia”, acrescenta que “a escolha entre o argumento de analogia e o argumento ‘a contrario’ não pode de fato fazer--se no plano da pura lógica. A lógica tem-se que combinar com a teleoló-gica” (ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de J. Batista Machado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p. 237).

Assim, e voltando para o tema das interlocutórias em mandado de segurança, a escolha de um ou outro argumento ficará facilitada se

Page 80: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

79

Ministro Teori Zavascki

conseguirmos identificar, teleologicamente, se houve ou não intenção do legislador de negar recurso àquelas decisões. Pois bem: o Ministro Eduardo Ribeiro de Oliveira (STJ), em estudo específico sobre o tema, demonstrou não ter havido intenção alguma, na lei, de excluir a recorribilidade das interlocutórias. A razão pela qual a Lei do Mandado de Segurança dispôs sobre recursos foi outra.E, após reproduzir os fundamentos doutrinários que demonstravam que

a intenção do legislador não foi a de eliminar o recurso contra as interlocutórias, mas simplesmente de definir, entre duas alternativas possíveis (agravo de peti-ção e apelação), qual seria cabível contra as sentenças terminativas e definitivas indicadas, observei, naquele estudo:

Se, como demonstrado, o legislador não pretendeu excluir do man-dado de segurança outros recursos que não o da apelação, resta inquestio-nável a possibilidade da invocação subsidiária e analógica das regras de direito processual comum, como, aliás, ocorre, sem contestação alguma, em relação ao recurso de embargos declaratórios. Conforme refere Barbosa Moreira, seria absurdo - que “brada aos céus” - negar-se, ao argu-mento do silêncio da lei, a utilização desse remédio recursal para decisões obscuras, omissas ou contraditórias (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Recorribilidade das decisões interlocutórias no processo de mandado de segurança. cit., p. 76).Esse mesmo método hermenêutico - de cujo acerto continuo conven-

cido - deve ser aplicado à situação aqui em exame: tanto lá, quanto aqui, não é apropriado resolver a controvérsia com base no puro e simples argumento a contrario sensu. A utilização desse argumento, em face de omissões ou lacunas legislativas, acarreta, como é fácil perceber, a completa eliminação da aplicação analógica ou subsidiária, que é o modo-padrão de superar as inevitáveis lacu-nas do legislador. Portanto, o que importa considerar para definição do método argumentativo, segundo a tradição que nos vem desde os juristas romanos, é o elemento teleológico, a significar que, salvo quando ficar evidente o desiderato do legislador de criar e manter uma lacuna normativa (= o silêncio eloquente), deve-se suprir as situações não disciplinadas (= omissões ou lacunas legisla-tivas) mediante a aplicação das normas gerais ou especiais, ou da analogia ou dos princípios gerais. Essa técnica, aliás, é a recomendada por lei, não somente para suprir omissões e lacunas do direito geral (Lei de Introdução, art. 4º; CPC, art. 126), mas também e especificamente para suprir as lacunas das leis proces-suais que tratam de procedimentos especiais (CPP, art. 3º; CPC, art. 272, pará-grafo único).

Ora, seja sob a perspectiva da voluntas legislatoris, seja da voluntas legis, não se pode identificar na Lei 8.038/90 qualquer desiderato de consagrar a irre-corribilidade das decisões interlocutórias ou definitivas proferidas em ação penal originária de competência do Supremo Tribunal Federal. Conforme se depreende da breve exposição de motivos que acompanhou o seu projeto (PL 2.255/89, Deputado Plínio Martins, publicado no Diário do Congresso Nacional de 17-5-1989, p. 3468), essa Lei teve origem no antigo Tribunal Federal de Recursos e visava a adaptar a legislação vigente à nova realidade decorrente da criação, pela Constituição de 1988, do Superior Tribunal de Justiça. Não se cogi-tou, nem longinquamente, de eliminar recursos previstos no Regimento Interno do STF. E, no que se refere especificamente à ação penal originária, a circuns-tância de ter o legislador disciplinado apenas a fase de instauração, instrução e

Page 81: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

80

Ministro Teori Zavascki

julgamento, de modo algum pode ser entendida como propósito de tornar irre-corríveis as decisões interlocutórias e definitivas. Essa omissão, conforme antes se demonstrou, nada mais representa do que o produto de uma técnica legisla-tiva comumente adotada no sistema de disciplina dos procedimentos judiciais, que confere tratamento separado e autônomo à fase recursal.

Portanto, o silêncio da lei, quanto ao ponto, não comporta interpretação à base do argumento a contrario sensu, que levaria à absoluta irrecorribilidade dessas decisões. Pelo contrário, não tendo a lei disciplinado a matéria, a solução juridicamente adequada é a da aplicação das normas gerais e especiais que dis-ciplinam a fase recursal, cuja vigência não ficou comprometida, muito menos revogada. Aliás, lembrando a lição de Barbosa Moreira, a propósito da polê-mica a respeito da recorribilidade das decisões interlocutórias em mandado de segurança, o argumento a contrario, ou vale para tudo, ou não vale para nada. Invocá-lo para afastar os embargos infringentes de que trata o art. 333, I, do Regimento Interno do STF, levaria, por idêntica razão, à sua necessária aplica-ção para afastar os demais recursos, com o que não seriam cabíveis, também, os embargos de declaração e o agravo contra decisões interlocutórias proferidas pelo relator (recursos que, nesta ação penal, já foram largamente interpostos e aceitos pelo Tribunal), ou mesmo a própria revisão criminal, que o CPP consi-dera recurso (art. 621 e seguintes).

Por fim, o Ministro Teori Zavascki procura analisar a questão desde o ponto de vista dos direitos humanos:

É importante salientar que o reconhecimento da recorribilidade das sen-tenças condenatórias proferidas em ações penais originárias é interpretação que melhor se harmoniza com a proteção consagrada no artigo 8.2,h da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, promul-gado pelo Decreto 678, de 6-11-1992), que assegura, como “garantia mínima” de toda a pessoa, o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal supe-rior”. Na interpretação que lhe confere a Corte Interamericana de Direitos Humanos, recentemente reafirmada em sentença de 23 de novembro de 2012 (caso Mohamed vs. Argentina), essa garantia mínima tem o alcance normativo de assegurar direito a recurso até mesmo em casos em que a condenação penal seja imposta por um tribunal, provocado por recurso contra anterior sentença absolutória. Diz a sentença, a esse propósito:

Sobre este aspecto del derecho a recurrir del fallo, tanto la Comisión como los representantes (supra párrs. 65 y 67) entienden que es una garan-tía establecida a favor del acusado y que, con independencia de que la sen-tencia condenatoria hubiere sido impuesta en única, primera o segunda instancia, debe garantizarse el derecho de revisión de esa decisión por medio de un recurso que cumpla con los estándares desarrollados por la Corte en su jurisprudencia.

(...)92. Teniendo en cuenta que las garantías judiciales buscan que

quien esté incurso en un proceso no sea sometido a decisiones arbitra-rias, la Corte interpreta que el derecho a recurrir del fallo no podría ser efectivo si no se garantiza respecto de todo aquél que es condenado, ya que la condena es la manifestación del ejercicio del poder punitivo del Estado. Resulta contrario al propósito de ese derecho específico que no

Page 82: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

81

Ministro Teori Zavascki

sea garantizado frente a quien es condenado mediante una sentencia que revoca una decisión absolutoria. Interpretar lo contrario, implicaría dejar al condenado desprovisto de un recurso contra la condena. Se trata de una garantía del individuo frente al Estado y no solamente una guia que orienta el diseño de los sistemas de impugnación en los ordenamientos jurídicos de los Estados Partes de la Convención).Por isso se enfatiza, independentemente do juízo que se possa fazer a

respeito dessa recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que a interpretação pela admissão do recurso, no caso em exame, é a que atende, de modo concreto, os compromissos assumidos pelo Brasil perante a comunidade das nações, especialmente em face das cláusulas do Pacto de São José da Costa Rica.

Convém registrar, finalmente, que a garantia assegurada nesse Pacto, relativa ao direito de toda a pessoa de recorrer da sentença penal que lhe impo-nha uma condenação, é mais uma forte razão a determinar a impostergável necessidade de reforma da nossa Constituição, que leve a eliminar ou, ao menos, a reduzir drasticamente, as inúmeras hipóteses de competência de foro por prerrogativa de função perante o Supremo Tribunal Federal. É importante que também essa, entre as muitas outras, seja uma eloquente lição a ser retirada do julgamento da presente ação penal. (AP 470 AgR-vigésimo sexto/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 18-9-2013, P, DJE de 14-2-2014.)

Page 83: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

82

Ministro Teori Zavascki

3. TEORI ZAVASCKI E O PROCESSO COLETIVO

Um dos temas de predileção do Ministro Teori era sem dúvida o processo coletivo. Sua clássica distinção entre tutela dos direitos coletivos e tutela coletiva dos direitos marcou não só a doutrina especializada mas também o modo pelo qual a questão passou a ser enfrentada no dia a dia da Justiça Civil. No Supremo, o processo coletivo teria um de seus pontos mais sensíveis - a legitimação do Ministério Público - enfrentado à luz dessa distinção em um clássico prece-dente relatado justamente por Zavascki.

3.1 Processo coletivo: tutela dos direitos coletivos e tutela coletiva dos direitos

De acordo com o Ministro, o processo coletivo é coletivo em duas acep-ções distintas51. Em uma primeira, o processo é coletivo porque o direito é transindividual - isto é, presta-se tutela a direitos coletivos. O processo é essen-cialmente coletivo porque o direito assim o é. Em uma segunda, o processo é coletivo porque o direito, embora individual, é tratado coletivamente - isto é, presta-se tutela coletiva a direitos. Trata-se de lição que penetrou profunda-mente na doutrina brasileira52.

Diante dessa distinção radical, surge a pergunta: a legitimidade do Ministério Público é alterada em função da natureza do direito tratado no pro-cesso coletivo? Se sim, de que modo? Parece que o Professor soprou a resposta ao Ministro.

3.2 Atuação do Ministério Público no processo coletivo

A história da legitimação do Ministério Público para o processo coletivo passa necessariamente pela análise do caso Marítima, liderado no Supremo pelo Ministro Teori Zavascki53. Trata-se de precedente da mais alta importância para a concretização do devido processo coletivo.

De acordo com Teori Zavascki, “o primeiro e importantíssimo desafio”54 que a matéria apresenta está em identificar a natureza do direito material tutelado mediante o processo coletivo. Em relação à legitimação do Ministério Público, esse exercício deve ser feito levando em consideração ainda o fato de o art. 127 da

51 Cf. ZAVASCKI, Teori. Processo coletivo - tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos (2006). 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 52 Como se pode perceber, por exemplo, em Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna, Curso de processo civil coletivo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 248. 53 Cf. MPF vs. Marítima Seguros S.A., 2014 (RE 631.111/GO, rel. min. Teori Zavascki, j. 7-8-2014, P, DJE de 29-10-2014). 54 RE 631.111/GO, voto do rel. min. Teori Zavascki, p. 8.

Page 84: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

83

Ministro Teori Zavascki

Constituição Federal falar em interesses sociais e individuais indisponíveis e de o art. 129, III, do Texto Constitucional, em interesses difusos e coletivos.

Partindo dessa perspectiva, o Ministro discorre sobre os direitos difusos e coletivos:

Direitos ou interesses difusos e coletivos (= coletivos lato sensu) e direitos ou interesses individuais homogêneos constituem categorias de direitos ontologi-camente diferenciadas. É o que se pode verificar da conceituação que, após sedi-mentada no âmbito doutrinário, acabou sendo convertida em texto normativo (art. 81, parágrafo único, da Lei 8.078/90). Segundo a definição dada pelo legisla-dor, são interesses e direitos difusos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (art. 81, parágrafo único, I); são interesses e direitos coletivos os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (inciso II); e são direitos individuais homogêneos os decorrentes de origem comum (inciso III). A esses últimos poder-se-ia adicionar, para melhor compreensão, os quali-ficativos do art. 46 do CPC: direitos derivados do mesmo fundamento de fato ou de direito (inciso II) ou que tenham, entre si, relação de afinidade por um ponto comum de fato ou de direito (inciso IV).

Direitos difusos e coletivos são, portanto, direitos subjetivamente tran-sindividuais (= sem titular individualmente determinado) e materialmente indi-visíveis. A sua titularidade múltipla, coletiva e indeterminada é que caracteriza a sua transindividualidade. Afirma-se, por isso, que direito coletivo é designação genérica para as duas modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu. Trata-se de uma especial categoria de direito material nascida da superação, hoje indiscutível, da tradicional dicotomia entre interesse público e interesse privado. É direito que não pertence à administração pública nem a indivíduos particularmente determinados. Pertence, sim, a um grupo de pessoas, a uma classe, a uma categoria, ou à própria sociedade, considerada em seu sentido amplo. Na definição de Péricles Prade, “são os titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situação, passíveis de lesões disseminadas entre todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade” (PRADE, Péricles. Conceito de interesses difusos. 2. ed. SP: RT, 1987. p. 61). Direito ao meio ambiente sadio, direito a uma administração pública proba, são exemplos característicos de direitos transindividuais difusos, pertencentes à sociedade como um todo. Direito a ter representantes compondo a quinta parte dos membros de tribunais (o “quinto” constitucional) é típico exemplo de direito transindividual coletivo (stricto sensu), pertencente às classes da advocacia e do Ministério Público (e não a um específico advogado ou a um específico membro do parquet).

Page 85: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

84

Ministro Teori Zavascki

O Ministro Teori prossegue apontando que o protótipo de ação ade-quada para a tutela de direitos difusos e coletivos é a ação civil pública:

A ação civil pública, regulada fundamentalmente, pela Lei n. 7.347, de 1985, é o protótipo dos instrumentos destinados a tutelar direitos transindivi-duais. Trata-se de procedimento especial de cognição completa e integral e com múltipla aptidão, já que dotado de mecanismos para instrumentar demandas visando a obter, isolada ou cumulativamente, provimentos jurisdicionais da mais variada natureza: preventivos, condenatórios, constitutivos, inibitórios, executivos, mandamentais, meramente declaratórios, cautelares e antecipató-rios. A legitimação ativa, invariavelmente em regime de substituição processual, é exercida por entidades e órgãos expressamente eleitos pelo legislador, entre os quais se destaca o Ministério Público, que tem nesse mister uma das suas fun-ções institucionais (CF, art. 129, III). A sentença de mérito faz coisa julgada com eficácia subjetiva erga omnes, salvo se improcedente o pedido por insuficiência de prova. Em caso de procedência, a sentença produz, também, o efeito secundá-rio de tornar certa a obrigação do réu de indenizar os danos individuais decor-rentes do ilícito civil objeto da demanda (art. 103, § 3º, da Lei 8.078/90). E a execução, promovida pelos mesmos legitimados do processo cognitivo, também invariavelmente em regime de substituição processual, segue o rito processual comum, sendo que o eventual produto da condenação em dinheiro reverterá ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, previsto na Lei 9.008, de 21-3-1995 e no Decreto 1.306, de 9-11-1994.

Ao lado dos direitos difusos e coletivos, há os chamados direitos indivi-duais homogêneos. Embora também passíveis de tutela coletiva, esses direitos são individuais e não coletivos. Lê-se do voto do Ministro Teori:

Por outro lado, os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. O qualificativo é destinado a identificar um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que propicia, embora não impo-nha, a defesa coletiva de todos eles. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, não faz sentido, portanto, sua versão singular (um único direito homogêneo), já que a marca da homogeneidade supõe, necessariamente, uma relação de referência com outros direitos individuais assemelhados. Há, é certo, nessa compreensão, uma pluralidade de titulares, como ocorre nos direitos transindividuais; porém, diferentemente destes (que são indivisíveis e seus titulares são indeterminados), a pluralidade, nos direitos individuais homogêneos, não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados ou pelo menos determináveis), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autôno-mas, com titularidade própria (e, por isso, suscetíveis também de tutela indivi-dual). Não se trata, pois, de uma nova espécie de direito material. Os direitos individuais homogêneos são, em verdade, aqueles mesmos direitos comuns ou afins de que trata o art. 46 do CPC (nomeadamente em seus incisos II e IV), cuja coletivização tem um sentido meramente instrumental, como estratégia para permitir sua mais efetiva tutela em juízo. Em outras palavras, os direitos homogêneos “são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em

Page 86: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

85

Ministro Teori Zavascki

estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural (interesses e direitos públicos e difusos) ou da organização ou existência de uma relação jurídica-base (interesses coletivos stricto sensu), mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais” (BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo clássico. In: MILARÉ, Édis (coord). Ação civil pública: Lei 7.347/85 - Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. SP: RT, 1995. p. 96). Quando se fala, pois, em “defesa coletiva” ou em “tutela coletiva” de direi-tos homogêneos, o que se está qualificando como coletivo não é o direito mate-rial tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua tutela.

É, portanto, para esses efeitos processuais que se consideram homogêneos os direitos subjetivos pertencentes a titulares diversos, mas oriundos da mesma causa fática ou jurídica, características essas que lhes confere grau de afinidade suficiente para permitir a sua tutela jurisdicional de forma conjunta. Neles é possível identificar elementos comuns (= núcleo de homogeneidade) e, em maior ou menor medida, elementos característicos e peculiares, o que os individua-liza, distinguindo uns dos outros (= margem de heterogeneidade). O núcleo de homogeneidade dos direitos homogêneos é formado por três elementos das normas jurídicas concretas neles subjacentes: os relacionados com (a) a existên-cia da obrigação (an debeatur = ser devido), (b) a natureza da prestação devida (quid debeatur = o que é devido) e (c) o sujeito passivo (quis debeat = quem deve) comum. A identidade do sujeito ativo (cui debeatur = a quem é devido) e a sua específica vinculação com a relação jurídica, inclusive no que diz respeito ao quantum debeatur (= quantidade devida), se for o caso, são elementos perten-centes a um domínio marginal, formado pelas partes diferenciadas e acidentais dos direitos homogêneos, a sua margem de heterogeneidade.

A tutela dos direitos individuais homogêneos, segue o Ministro Teori, ocorre mediante ação coletiva, cujas características básicas são as seguintes:

A tutela de direitos individuais homogêneos tem como instrumento básico a ação civil coletiva, disciplinada, fundamentalmente, nos artigos 91 a 100 do Código de Defesa do Consumidor - CDC (Lei 8.078/90). Trata- se de procedimento especial com quatro características fundamentais, moldadas pela própria natureza dos direitos tutelados. Primeira, a repartição da atividade cognitiva em duas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada ao juízo de cognição sobre as questões fáticas e jurídicas relacionadas com núcleo de homogeneidade dos direitos tutelados; e outra, a da ação de cumpri-mento, desdobrada em uma ou mais ações, promovida em caso de procedência do pedido na ação coletiva, destinada a complementar a atividade cognitiva mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= margem de heterogeneidade) e a efetivar os correspondentes atos executórios. É essa repartição da cognição a nota mais importante a distinguir a ação coletiva do litisconsórcio ativo facultativo. Se as atividades fossem aglutinadas, a ação coletiva nada mais seria que uma tradicional ação ordinária movida em regime litisconsorcial plúrimo, com todas as limitações e dificuldades a ela inerentes.

A segunda característica da ação coletiva é a dupla forma da legitimação ativa. Na primeira fase, ela se dá necessariamente por substituição processual, sendo promovida por órgão ou entidade autorizado por lei para, em nome pró-prio, defender em juízo direitos individuais homogêneos. Já na segunda fase

Page 87: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

86

Ministro Teori Zavascki

(ação de cumprimento), embora possa ser mediante substituição processual, a legitimação se dá, em regra, pelo regime comum da representação.

A terceira característica diz respeito à natureza da sentença, que é sem-pre genérica: limitando-se a demanda ao núcleo de homogeneidade dos direitos individuais, a correspondente sentença de mérito fica também restrita aos mes-mos limites. Ela fará juízo apenas sobre o an debeatur (= a existência da obriga-ção do devedor), o quis debeat (= a identidade do sujeito passivo da obrigação) e o quid debeatur (= a natureza da prestação devida). Os demais elementos indis-pensáveis para conferir força executiva ao julgado - ou seja, o cui debeatur (= quem é o titular do direito) e o quantum debeatur (= qual é a prestação a que especificamente faz jus) - são objetos de outra sentença, proferida na ação de cumprimento (segunda fase).

A quarta característica da ação coletiva é a da sua autonomia em relação à ação individual, representada pela faculdade atribuída ao titular do direito sub-jetivo de aderir ou não ao processo coletivo. Compreende-se nessa faculdade: (a) a liberdade de litisconsorciar-se ou não ao substituto processual autor da ação coletiva, (b) a liberdade de promover ou de prosseguir a ação individual simultâ-nea à ação coletiva, e (c) a liberdade de executar ou não, em seu favor, a sentença de procedência resultante da ação coletiva.

As normas processuais e procedimentais que disciplinam a ação civil coletiva em defesa do consumidor (artigos 91 a 100 do CDC da Lei 8.078/90) aplicam-se, por analogia, no que couber, às demais hipóteses de tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, nomeadamente às que decorrem de demandas promovidas por entidades associativas, com base na legitimação prevista no art. 5º, XXI, da Constituição, ou por entidades sindicais, com base no seu art. 8º, III. Assim, em qualquer caso: (a) a ação coletiva não inibe nem prejudica a pro-positura da ação individual com o mesmo objeto, ficando o autor individual vinculado ao resultado da sua própria demanda, ainda que improcedente essa e procedente a coletiva; (b) quanto aos demais titulares individuais, a sentença da ação coletiva fará coisa julgada erga omnes, mas somente em caso de proce-dência do pedido; (c) a sentença genérica de procedência servirá de título para a propositura da ação individual de cumprimento, pelo regime de representação, consistente de atividade cognitiva de liquidação por artigos, seguida de ativi-dade executória, desenvolvidas pelo procedimento comum do CPC e em con-formidade com a natureza da prestação devida.

Uma vez traçada a distinção entre os diferentes direitos passíveis de tutela, o Ministro Teori passa a analisar as repercussões gerais daí oriundas:

consideradas as características naturais e próprias dos direitos transin-dividuais (= difusos e coletivos) e dos direitos individuais homogêneos, subs-tancialmente diferentes uns dos outros, é indispensável que se atente para o tratamento processual próprio atribuído a cada qual, inclusive em decorrência das normas constitucionais invocadas no presente recurso extraordinário, trata-mento que é distinto em vários aspectos importantes, a começar, como se apon-tou, pelos meios de tutela em juízo.

Assim, no que se refere ao regime de legitimação ativa: em relação à tutela de direitos transindividuais, cujos titulares são indeterminados, a legitimação ativa será necessariamente em regime de substituição processual, tanto na fase cognitiva quanto na fase executiva; (b) a execução jamais será em benefício

Page 88: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

87

Ministro Teori Zavascki

individual, mas em favor de um Fundo. Todavia, em se tratando de tutela de direitos individuais homogêneos: (a) a legitimação ativa é em regime de substi-tuição processual apenas na fase em que se busca uma sentença genérica; a fase de cumprimento dessa sentença se dá, em regra, por regime de representação; (b) a execução é promovida em favor do titular do direito individual.

Quanto ao procedimento, os direitos transindividuais são tuteláveis em procedimento semelhante ao comum ordinário, de cognição completa e integral, que resulta, não em sentença genérica, mas em sentença específica, dirimindo por completo a controvérsia. Já os direitos individuais, para serem tutelados coletivamente, devem ser submetidos a procedimento cuja cognição será, em maior ou menor medida, mas necessariamente, repartida em duas fases distintas: uma para as questões jurídicas que permitem tratamento jurídico uniforme (núcleo de homogeneidade) e que trará como resultado uma sentença genérica; outra para as questões particulares e diferenciadas de cada titular do direito individual tutelado (margem de heterogeneidade).

Nos direitos transindividuais, independentemente de quem seja o subs-tituto processual autor, a existência de duas ou mais ações decorrentes de causa única importa litispendência ou continência: o direito tutelado, que é indivisível, será o mesmo em todas elas, assim como as mesmas serão as partes da relação material (o beneficiado, embora indeterminado e indeterminável, é, em todas as ações, a mesma comunidade de pessoas). Já em se tratando de direitos individu-ais homogêneos a situação é completamente diferente. A pluralidade de ações, embora com causa comum e até mesmo quando movidas por um único subs-tituto processual, não tem necessariamente o mesmo objeto e nem os mesmos beneficiados, já que o direito tutelado é, por natureza, divisível, comportando individualizações materiais ou subjetivas. Isso significa dizer que entre as várias ações coletivas não há necessariamente relação de litispendência ou de conti-nência, mas sim de conexão ou de prevenção. Essas circunstâncias, como se percebe, determinam a necessidade de tratamento diferente no que se refere às regras de competência.

Em relação a direitos transindividuais, não se coloca o problema da relação entre processo coletivo e processo individual. Seus objetos são necessa-riamente distintos. O objeto da ação individual jamais será um direito transin-dividual. Esse problema somente existe - e é um dos pontos mais delicados do processo coletivo - em se tratando da tutela de direitos individuais homogê-neos. Aqui, a identidade do objeto material acarreta, entre ação coletiva e ação individual, uma relação com uma profusão de vasos comunicantes, o que exige, na formatação do processo coletivo, definições precisas a respeito, entre outros, dos seguintes aspectos: (a) grau de dependência entre uma e outra; (b) vincula-ção ou não do titular individual à ação coletiva; (c) efeitos da sentença e da coisa julgada da ação coletiva em relação à ação individual.

Assentadas todas essas premissas, o Ministro enfrenta especificamente o problema da legitimação do Ministério Público para a tutela dos direitos difusos e coletivos:

Estabelecida, assim, a importante distinção, tanto do ponto de vista do direito material, quanto do ponto de vista processual, entre os direitos transindividuais (= difusos e coletivos) e os direitos individuais homogêneos,

Page 89: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

88

Ministro Teori Zavascki

cumpre examinar o ponto que mais interessa ao exame da causa: o do papel do Ministério Público em relação à tutela jurisdicional de cada uma dessas espécies.

Comecemos pelos direitos e interesses transindividuais (= difusos e coletivos). Entre as mais proeminentes funções institucionais atribuídas pela Constituição Federal ao Ministério Público está a de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III), função reafir-mada na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625, de 12-2-1993, art. 25, IV) e no Estatuto do Ministério Público da União (Lei Complementar 75, de 20-5-1993, art. 6º, VII). A legitimação específica para o exercício, em juízo, dessa função institucional consta também nas leis especiais que estabelecem normas processuais para as várias “ações civis públicas”, como é o caso da Lei 7.347, de 24-7-1985 (disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), da Lei 7.853, de 24-10-1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes), da Lei 7.913, de 7-12-1989 (dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários), da Lei 8.078, de 11-9-1990, o chamado “Código de Proteção e Defesa do Consumidor” (dispõe sobre a proteção do consumidor) e da Lei 8.429, de 2-6-1992 (dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos em caso de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional).

Portanto, relativamente a ações civis públicas que tenham por objeto a tutela de direitos e interesses transindividuais (= difusos e coletivos), a legiti-mação atribuída ao Ministério Público, pela Constituição (art. 129, III), deve ser entendida em sentido irrestrito e amplo, em limites indispensáveis à obtenção da tutela jurisdicional completa e compatível com a natureza e a magnitude da lesão ou da ameaça aos bens e valores tutelados. Inclui, portanto, legitimação para buscar tutela cognitiva, preventiva e reparatória, declaratória, constitutiva ou condenatória. Inclui também poderes para pleitear medidas de tutela provi-sória, de antecipação de tutela e cautelar. Estende-se a legitimação para as medi-das de cumprimento das liminares e das sentenças, inclusive, quando for o caso, para a propositura da ação autônoma de execução.

E prossegue com a análise da legitimação do Ministério Público para a tutela de direitos individuais homogêneos:

Examinemos, agora, a questão da legitimidade do Ministério Público em relação à tutela de direitos individuais homogêneos. Diferentemente do que ocorre com os direitos difusos e coletivos, que são transindividuais e indivi-síveis, os interesses ou direitos individuais homogêneos são divisíveis e indi-vidualizáveis e têm titularidade determinada. Pertencem, assim, à classe dos direitos subjetivos individuais na acepção tradicional do conceito, com titular identificado ou identificável. Assumem, em geral, feição de direitos disponíveis, nomeadamente os que têm conteúdo econômico. Podem, consequentemente, ser tutelados em juízo pelo próprio titular individual. Sua homogeneidade com

Page 90: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

89

Ministro Teori Zavascki

outros direitos da mesma natureza, determinada pela origem comum, é que dá ensejo à tutela de todos eles em forma coletiva, mediante demanda proposta em regime de substituição processual por um dos órgãos ou entidades para tanto legitimados. Não sendo ação promovida pelo próprio titular do direito, a legiti-mação para a ação coletiva há de ser autorizada em prescrição normativa espe-cífica (CPC, art. 6º).

Em se tratando de direitos homogêneos decorrentes de relações de consumo, o primeiro dos legitimados ativos eleitos pelo art. 82 do CDC (Lei 8.078/90) é justamente o Ministério Público. Além dessa, prevista no Código do Consumidor, há outras hipóteses de legitimação do Ministério Público para demandar em juízo a tutela coletiva em prol de direitos de natureza indivi-dual e disponível: a da Lei 7.913, de 7-12-1989, que o legitima a propor ação de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, e a do art. 46, da Lei 6.024, de 13-3-1974, para propor ação de res-ponsabilidade pelos prejuízos causados aos credores por ex-administradores de instituições financeiras em liquidação ou falência. Nas três hipóteses - danos decorrentes de relações de consumo, de investimentos em valores mobiliários e de operações com instituições financeiras -, os direitos lesados são, por natu-reza, individuais, divisíveis e disponíveis.

E precisamente neste ponto chega ao cerne da questão:

Como justificar a constitucionalidade dessas normas de legitimação se a própria Constituição reserva ao Ministério Público, no que se refere a direitos individuais, apenas a atribuição de tutelar os que têm natureza indisponível (CF, art. 127)? Como, por outro lado, sustentar, constitucionalmente, a legitimidade do Ministério Público para promover outras demandas em defesa de direitos individuais homogêneos, além daquelas autorizadas, de modo expresso, pelo legislador ordinário? Em que condições e em que limites é admissível essa espé-cie de legitimação?

O voto do Ministro Teori Zavascki resolve integralmente a questão:

A legitimação do Ministério Público para tutelar, em juízo, direitos individuais homogêneos disponíveis, que tenham como origem relações de consumo, está prevista, conforme acima afirmado, no art. 82, I, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Para que se possa fazer juízo da compatibi-lidade dessa norma de legitimação com as funções institucionais do órgão legi-timado, é importante ter presentes as especiais características da ação coletiva a que se refere. Trata-se de ação de responsabilidade pelos danos sofridos por consumidores a ser proposta “em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores” (art. 91). Como se percebe, é legitimação em regime de substituição processual. Os titulares do direito não serão sequer indicados ou qualificados individualmente na petição inicial, mas simplesmente chamados por edital a intervir como litisconsortes, se assim o desejarem (art. 94). É que o objeto da ação, na sua fase cognitiva inicial, mais que alcançar a satisfação do direito pes-soal e individual das vítimas, consiste em obter a condenação do demandado pelo valor total dos danos que causou.

É importante assinalar este detalhe: os objetivos perseguidos na ação cole-tiva são visualizados não propriamente pela ótica individual e pessoal de cada

Page 91: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

90

Ministro Teori Zavascki

prejudicado, e sim pela perspectiva global, coletiva, impessoal, levando em consi-deração a ação lesiva do causador do dano em sua dimensão integral. Isso fica bem claro no dispositivo que trata da sentença, objeto final da fase de conhecimento: “Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a respon-sabilidade do réu pelos danos causados” (art. 95). A condenação genérica, acen-tue-se, fixará “a responsabilidade do réu pelos danos causados”, e não os prejuízos específicos e individuais dos lesados. Caberá aos próprios titulares do direito, depois, promover a ação de cumprimento da sentença genérica, compreendendo a liquidação e a execução pelo dano individualmente sofrido (art. 97).

Haverá, portanto, no que se refere à legitimação ativa, substancial alte-ração de natureza quando se passar para a ação de cumprimento da sentença genérica, já que para esta será indispensável a iniciativa do próprio titular do direito. Nela, buscar-se-á satisfazer direitos individuais específicos, próprios de cada um dos consumidores lesados, direitos esses que são disponíveis e até mesmo passíveis de renúncia e sujeitos à perda (art. 100). A propositura da ação de cumprimento (= liquidação e execução da sentença genérica) dependerá, portanto, de iniciativa do próprio interessado ou de sua expressa autorização. Ao contrário do que ocorre com a ação coletiva de conhecimento - que admite legitimação por substituição processual -, a ação destinada ao cumprimento da sentença genérica será proposta, em regra, pelo próprio titular, ou seja, em regime de representação. Mesmo quando intentada em forma coletiva (art. 98), a ação de cumprimento se dará em litisconsórcio ativo, ou seja, por representante (que atuará em nome dos interessados), e não por substituto processual (que atua em nome próprio, no interesse de terceiros).

Há, em nosso direito, como acima referido, outras hipóteses de legitima-ção do Ministério Público para a defesa judicial coletiva de interesses ou direitos individuais, semelhantes a essa prevista no Código do Consumidor. Aliás, sob esse aspecto, o CDC não trouxe inovação alguma, a não ser a de conceituar o que chamou de direitos individuais homogêneos. Assim, por exemplo, a Lei 7.913, de 7-12-1989, que “dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários”, prevê a legitima-ção do Ministério Público para adotar “as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado” (art. 1º). Trata-se de legitimação para atuar em busca de tutela preventiva e reparatória de direitos individuais, divisí-veis e disponíveis, decorrentes de origem comum, vale dizer, de típicos direitos individuais homogêneos. Observe-se o detalhe: as importâncias da condenação “reverterão aos investidores lesados, na proporção de seu prejuízo” (art. 2º). A atuação do Ministério Público será, portanto, na condição de substituto proces-sual do conjunto dos investidores, e, embora isso não conste de modo expresso na lei, a sentença condenatória terá, aqui também, caráter genérico e impessoal.

Outra ação civil coletiva que, por força de lei, pode ser promovida pelo Ministério Público em defesa de direitos individuais homogêneos - embora sem essa denominação no preceito normativo instituidor - é ainda mais antiga. Trata-se da ação destinada a apurar a responsabilidade de ex-administradores de instituições financeiras em regime de intervenção ou liquidação extrajudi-cial, prevista nos arts. 45 a 49 da Lei 6.024, de 13-3-1974. Sua propositura se dará nas hipóteses em que, após inquérito administrativo levado a cabo pelo Banco Central, ficar constatada a existência de prejuízo (= passivo a descoberto) na instituição financeira. Verificado o prejuízo, o inquérito administrativo será

Page 92: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

91

Ministro Teori Zavascki

“remetido pelo Banco Central do Brasil ao juiz da falência, ou ao que for compe-tente para decretá-la, o qual o fará com vista ao órgão do Ministério Público, que, em 8 (oito) dias, sob pena de responsabilidade, requererá o sequestro dos bens dos ex- administradores, que não tenham sido atingidos pela indisponibilidade pre-vista no art. 36, quantos bastem para a efetivação da responsabilidade” (art. 45). Efetivado o sequestro (que, na verdade, é genuína medida cautelar de arresto), terá o Ministério Público o prazo de 30 dias para propor a ação principal (art. 46, parágrafo único). “Passada em julgado a sentença que declarar a responsabili-dade dos ex-administradores, o arresto e a indisponibilidade de bens se convola-rão em penhora, seguindo-se o processo de execução”, diz o art. 49. O resultado assim apurado “será entregue ao interventor, ao liquidante ou ao síndico, con-forme o caso, para rateio entre os credores da instituição” (§ 1º do art. 49). Caso a intervenção ou a liquidação extrajudicial venham a se encerrar no curso da ação ou da execução, “o interventor ou o liquidante, por ofício, dará conhecimento da ocorrência ao juiz, solicitando sua substituição como depositário dos bens arres-tados ou penhorados, e fornecendo a relação nominal e respectivos saldos dos cre-dores a serem, nesta hipótese, diretamente contemplados com o rateio previsto no parágrafo anterior” (§ 2º do art. 49).

Não há dúvida, portanto, que se trata de ação civil coletiva em que o Ministério Público atuará como substituto processual dos credores da institui-ção financeira buscando a condenação dos ex-administradores no pagamento de prejuízos causados. Os titulares do direito material tutelado são “os credo-res”. Tem-se presente, portanto, hipótese de tutela de um conjunto de direitos individuais, divisíveis e disponíveis, decorrentes de origem comum. Vale dizer: são direitos individuais homogêneos. Aqui também, um importante detalhe: a atuação do Ministério Público é no sentido de alcançar sentença para “declarar a responsabilidade dos ex-administradores”, ou seja, sentença condenatória gené-rica pelo valor do prejuízo causado, sendo sua execução igualmente promovida pelo valor global do prejuízo. Não se leva em consideração, nem na ação de conhecimento, nem na execução, a situação individual e específica dos titulares do direito, os quais, para a satisfação individual, haverão de habilitar-se pessoal-mente junto ao interventor, ao liquidante ou ao juízo da execução, se for o caso.

Há, como se percebe, uma linha característica comum nas hipóteses de legitimação acima citadas, previstas em leis infraconstitucionais: é a legitimação para o Ministério Público atuar em nome próprio, mas como substituto pro-cessual, em demandas objetivando sentença condenatória genérica, de direitos individuais, divisíveis e disponíveis. Os direitos dos substituídos, em todas as hipóteses, são tutelados sempre globalmente, impessoalmente, coletivamente. Obtida a condenação, genérica e globalmente proferida, encerra-se o papel do substituto processual e tem início, se for o caso, a atuação dos próprios titulares do direito material, com vista a obter sua satisfação específica.

Convém realçar o fundamento constitucional da legitimação. Relativamente a direitos individuais disponíveis, a legitimidade ad causam supõe, segundo a regra geral, a existência de nexo de conformidade entre as partes da relação de direito material e as partes na relação processual. Ninguém pode demandar em nome próprio direito alheio, diz o CPC (art. 6º). A legitima-ção por substituição processual é admitida apenas como exceção, sendo, por isso mesmo, denominada de extraordinária. Há, contudo, em nosso sistema, uma tendência de expansão das hipóteses de substituição processual, notadamente com o objetivo de viabilizar a tutela coletiva. A própria Constituição Federal,

Page 93: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

92

Ministro Teori Zavascki

que consagrou essa técnica para a tutela de direitos e interesses difusos e cole-tivos (art. 129, III), adotou-a também para direitos individuais, seja pela via do mandado de segurança coletivo, para defesa de direitos líquidos e certos (CF, art. 5º, LXX, b), seja pela via de procedimentos comuns, para a tutela de outras espécies de direitos lesados ou ameaçados (art. 5º, XXI, e art. 8º, III). Pode-se afirmar, assim, que, pelo menos no campo da legitimação para tutela coletiva, a substituição processual já não é fenômeno excepcional, mas, pelo contrário, passou a constituir a forma normal de atuação.

Pois bem: é nesse novo contexto que se insere a legitimação do Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado. A ele, a quem a lei já conferira o poder-dever para, na condição de interveniente (custos legis), oficiar em todas as causas “em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte” (CPC, art. 82, III), a Constituição veio atribuir, entre outras, a incumbência mais específica de defender “interes-ses sociais” (CF, art. 127), sem traçar qualquer condição ou limite processual a essa atribuição.

“Interesses sociais”, como consta da Constituição, e “interesse público”, como está no art. 82, III, do CPC, são expressões com significado substancial-mente equivalente. Poder-se-ia, genericamente, defini-los como “interesses cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde”, como o fez J. J. Calmon de Passos, referindo-se a interes-ses públicos (PASSOS, J. J. Calmon de. Intervenção do Ministério Público nas causas a que se refere o art. 82, III do CPC. Revista Forense, v. 268, n. 916-918, p. 55). Relacionam-se, assim, com situações, fatos, atos, bens e valores que, de alguma forma, concorrem para preservar a organização e o funcionamento da comunidade jurídica e politicamente considerada, ou para atender suas necessi-dades de bem-estar e desenvolvimento.

É claro que essas definições não exaurem o conteúdo da expressão “inte-resses sociais”. Não obstante, são suficientes para os limites da conclusão que, por ora, se busca atingir, a saber: a proteção dos consumidores e dos investidores no mercado financeiro e de capitais constitui não apenas interesse individual do próprio lesado, mas interesse da sociedade como um todo. Realmente, é a própria Constituição que estabelece que a defesa dos consumidores é princípio fundamental da atividade econômica (CF, art. 170, V), razão pela qual deve ser promovida, inclusive pelo Estado, em forma obrigatória (CF, art. 5º, XXXII). Não se trata, obviamente, da proteção individual, pessoal, particular, deste ou daquele consumidor lesado, mas da proteção coletiva dos consumidores, consi-derada em sua dimensão comunitária e impessoal.

O mesmo se pode afirmar em relação à tutela jurisdicional dos poupa-dores que investem seus recursos no mercado de valores mobiliários ou junto a instituições financeiras. Conquanto suas posições subjetivas individuais e particulares não tenham, por si sós, relevância social, o certo é que, quando consideradas em sua projeção coletiva, passam a ter significado de ampliação transcendental, de resultado maior que a simples soma das posições individuais. É de interesse social a defesa desses direitos individuais, não pelo significado particular de cada um, mas pelo que a lesão deles, globalmente considerada, representa em relação ao adequado funcionamento do sistema financeiro, que, como se sabe, deve sempre estar voltado às suas finalidades constitucionais: “a

Page 94: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

93

Ministro Teori Zavascki

promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da cole-tividade” (CF, art. 192).

Portanto, compreendida a cláusula constitucional dos interesses sociais (art. 127) na dimensão acima enunciada, não será difícil concluir que nela pode ser inserida a legitimação do Ministério Público para a defesa de direitos indivi-duais homogêneos dos consumidores e dos investidores no mercado financeiro, estabelecida nas Leis 6.024/74, 7.913/89 e 8.078/90, especialmente quando se considera o modo como essa legitimação vai se operar processualmente: (a) em forma de substituição processual, (b) pautada pelo trato impessoal e coletivo dos direitos subjetivos lesados e (c) em busca de uma sentença de caráter genérico. Nessa dimensão, e somente nela, a defesa de tais direitos - individuais, divisí-veis e disponíveis - pode ser promovida pelo Ministério Público sem ofensa à Constituição, porque, quando assim considerada, ela representará verdadeira-mente a tutela de bens e valores jurídicos de interesse social.

Em contrapartida, todavia, não há como supor legítima, sob o enfoque constitucional, a atuação do Ministério Público na fase de execução dessas sen-tenças, em benefício individual dos lesados. Ainda quando promovida coletiva-mente, como prevê o art. 98 da Lei 8.078/90, a execução da sentença - que foi genérica - será destinada à satisfação de direitos e interesses particulares. A ação executiva dependerá de iniciativa dos lesados, sendo promovida, assim, em regime de representação e não de substituição processual, e, quando coletiva, será em genuíno litisconsórcio ativo facultativo. Ora, nessa dimensão pessoal, a defesa de direitos subjetivos individuais e disponíveis é expressamente vedada aos agentes do Ministério Público, a teor do que dispõe, contrario sensu, o mesmo art. 127 da Constituição de 1988. Não se aplica, portanto, ao Ministério Público - sob pena de inconstitucionalidade evidente - o disposto no art. 98 do Código do Consumidor. Ressalva-se, no particular, a execução prevista no art. 100 desse Código, já que o produto de indenização, na hipótese, não será destinado à satisfação individual dos lesados, mas será revertido em favor de um Fundo, criado pelo art. 13 da Lei 7.347/85, onde será gerido e aplicado no interesse comunitário.

Mas não é só. De acordo com o Ministro, resta ainda importante ques-tão a ser analisada: seria constitucional a previsão, definida casuisticamente pelo legislador ordinário, de legitimação do Ministério Público para promover demandas em defesa de outros direitos individuais homogêneos que não nas hipóteses já aventadas? Basta a homogeneidade para legitimar o Ministério Público para a sua tutela?

Para respondê-la, Teori Zavascki procura inicialmente passar em revista a jurisprudência do STF sobre o tema:

Questão mais delicada é a que diz respeito à constitucionalidade da legi-timação do Ministério Público para promover demandas em defesa de outros direitos individuais homogêneos, que não nas hipóteses acima referidas, previs-tas casuisticamente pelo legislador ordinário. Estaria ele legitimado a tutelar em juízo, coletivamente, qualquer espécie de direitos individuais pela simples razão de serem homogêneos entre si? Seria nessa ampla dimensão a interpretação a ser dada ao art. 25, IV, a, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei

Page 95: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

94

Ministro Teori Zavascki

8.625/93), que confere à Instituição, entre outras, a atribuição de “promover o inquérito civil e a ação civil pública (...) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados (...) a outros interesses difusos, coletivos e individuais indis-poníveis e homogêneos”? A circunstância de serem homogêneos, e, como tais, aptos a serem tutelados judicialmente em forma coletiva, seria razão suficiente para considerar os direitos individuais como “interesses sociais” e, assim, confe-rir ao Ministério Público legitimidade para defendê-los em juízo?

São questões que têm inafastável relevância constitucional, devendo ser enfrentadas e resolvidas à luz das normas de legitimação do Ministério Público, de modo especial mediante exame do grau de eficácia do art. 127 da CF/88, segundo o qual incumbe ao Ministério Público, instituição permanente e essen-cial à função jurisdicional do Estado, “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Não se pode considerar ter sido pacífica, ao longo do tempo, a orientação do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria. Pelo menos três orientações distintas se formaram nos precedentes a respeito do tema. Uma primeira linha defendeu a tese segundo a qual os direitos individuais homogêneos, porque pertencentes a um grupo de pessoas, qualificam-se como subespécie de direitos coletivos e, assim, podem ser amplamente tutelados pelo Ministério Público com base no art. 129, III, da Constituição. No RE 163.231, DJ de 29-6-2001, o relator, Ministro Maurício Corrêa, nesse sentido, sustentou: (a) “ao editar-se o Código de Defesa do Consumidor, pelo seu art. 81, parágrafo único, III, uma outra subespécie de direitos coletivos fora instituída, dessa feita, com a denomi-nação dos chamados interesses ou direitos individuais homogêneos”; (b) “por tal disposição vê-se que se cuida de uma nova conceituação no terreno dos interesses coletivos, sendo certo que esse é apenas um nomen iuris atípico da espécie direitos coletivos. Donde se extrai que interesses homogêneos, em verdade, não se consti-tuem como um tertium genus, mas, sim, como uma mera modalidade peculiar, que tanto pode ser encaixada na circunferência dos interesses difusos quanto na dos coletivos”; (c) “ao mencionar a norma do art. 129, III, da Constituição Federal que o MP está credenciado para propor ação civil pública, relacionada a ‘outros interesses difusos e coletivos’, outorgou-se-lhe a prerrogativa para agir na defesa de um grupo lesado” em seus direitos individuais homogêneos.

A adoção dessa linha traz a consequência de expandir de modo extre-mado o âmbito da legitimação, importando credenciar o Ministério Público para defender irrestritamente quaisquer direitos homogêneos, independente-mente de sua essencialidade material, o que não é compatível com os princípios e os valores que a Constituição buscou privilegiar quando elencou o conjunto de atribuições institucionais do órgão ministerial. Essa consequência foi percebida pelo próprio Ministro Maurício Corrêa, que, em voto posterior, revisando sua orientação, observou: “A dicção da norma não delimita o alcance nem fornece os parâmetros para definir o que sejam os referidos ‘outros interesses sociais’, fazendo surgir, à primeira vista, três expectativas ao intérprete: a) a expressão utilizada amplia indefinidamente o cabimento da ação civil pública, a ponto de atingir a totalidade dos interesses difusos e coletivos, de forma a tornar inútil a previsão de proteção ao patrimônio público e social e do meio ambiente, que passaria a estar contida no amplíssimo conceito de interesses difusos e coletivos; ou b) a expressão é mero desenvolvimento da parte inicial do inciso que a contém, de forma a ser entendida como os demais interesses relativos à ideia contida na parte inicial do dispositivo, ou seja, os demais interesses difusos e coletivos relativos à proteção do

Page 96: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

95

Ministro Teori Zavascki

patrimônio público e social e do meio ambiente; ou c) a expressão contém preceito não definido, cuja definição dependeria de lei regulamentadora para lhe fixar o efetivo alcance. (...) Não creio que a melhor interpretação seja aquela (...) segundo a qual a referida expressão ‘outros direitos difusos e coletivos’ alcança todos e quaisquer interesses difusos ou coletivos, entre os quais se incluem os interesses individuais homogêneos. No exame dos excepcionalíssimos casos de legitimação extraordinária não cabe interpretação extensiva (...). Entendo que a expressão ‘outros interesses difusos e coletivos’ é indefinida e, assim, depende de lei que venha a definir o seu alcance, dentro dos limites traçados pela Constituição” (Voto proferido no STF, Pleno, RE 195.056-1, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 14-11-2003). Em outras palavras, sustentou que, no particular, o dispositivo constitucional não é autoaplicável.

O argumento novo, como se percebe, compromete, na prática, toda a tese anterior e inaugura uma segunda posição, bem restritiva: a de que a legitimação ativa do Ministério Público para a tutela de direitos individuais homogêneos se limita às hipóteses previstas pelo legislador ordinário. “A lei é que deve dizer quais são os outros interesses”, afirmou na oportunidade o Ministro Moreira Alves, acrescentando: “Agora, para dizê-lo, tem de vincular-se a esse problema de direitos sociais e indisponíveis, justamente para se ter um parâmetro para julgar a constitucionalidade ou não dela, até em face de sua desarrazoabilidade com fundamento na Constituição (...). A meu ver, essa posição de exigir a lei, mas a lei seguindo um parâmetro dentro da Constituição, para ela não poder considerar que qualquer interesse é objeto de ação civil pública (...) é uma posição equidis-tante, uma posição que estabelece, de um lado, uma certa segurança por decorrer da lei e, de outro, uma segurança contra os desarrazoados da lei”.

Nesse mesmo sentido restritivo, o Ministro Carlos Velloso adotou a seguinte linha de argumentação: (a) “não é na Constituição, art. 129, III, que se pode buscar a legitimidade do Ministério Público para defender, mediante ação civil pública, direitos individuais homogêneos”; (b) não é, igualmente, na Lei 7.347/85 que se pode buscá-la, já que a dita lei trata apenas de direitos difusos e coletivos, e “a ação civil pública, além de estar jungida aos temas menciona-dos, não diz respeito a direitos individuais homogêneos”; (c) assim, “o Ministério Público tem legitimidade para a ação civil pública, quando em jogo direitos indi-viduais homogêneos, quando seus titulares estiverem na condição de consumido-res, ou quando houver uma relação de consumo. É o Código do Consumidor, pois, que confere ao Ministério Público legitimidade para a ação civil pública quando o objeto desta ação é um direito individual homogêneo” (Voto proferido no STF, Pleno, RE 163.231-3, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 29-6-2001, e reproduzido em vários outros, como no STF, Pleno, RE 195.056-1, DJ de 14-11-2003).

O empecilho para a adoção dessa tese, situada no extremo oposto da anterior, reside, justamente, nas excessivas restrições que ela impõe à atuação do Ministério Público, notadamente quando presentes hipóteses concretas, não previstas pelo legislador ordinário, em que a tutela de direitos individuais se mostra indispensável ao resguardo de relevantes interesses da própria sociedade ou de segmentos importantes dela.

E a terceira linha de entendimento é a de que a legitimidade do Ministério Público para tutelar em juízo direitos individuais homogêneos se configura nas hipóteses em que a lesão a tais direitos compromete também interesses sociais subjacentes. O assento normativo da tese pode ser buscado no art. 127 da CF, que trata da tutela dos interesses sociais. Defendendo a orientação, o Ministro

Page 97: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

96

Ministro Teori Zavascki

Sepúlveda Pertence enfatizou que “a afirmação do interesse social para o fim cogitado há de partir de identificação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da República, nela consagrados. Afinal de contas - e malgrado as mutilações que lhe tem imposto a onda das reformas neoliberais deste decênio -, a Constituição ainda aponta como metas da República ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ e ‘erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais’. Esse critério (...) se poderia deno-minar de interesse social segundo a Constituição” (Voto proferido no STF, Pleno, RE 195.056-1, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 14-11-2003). Essa terceira posição, segundo entendemos, é a que deve ser prestigiada, já que guarda harmonia com os valores constitucionais e não acarreta as consequências demasiadamente res-tritivas ou expansivas das outras duas.

E fundamenta sua opção pela terceira corrente:

O preceito constitucional que confere ao Ministério Público a incum-bência de promover a defesa dos interesses sociais (art. 127) é, em tudo, asseme-lhado ao preceito legal contido no art. 82, III, do CPC, que atribui ao Ministério Público a competência para intervir em todas as causas em que há interesse público. Muito se questionou a respeito da extensão de tal comando processual, mas jamais se duvidou de sua autoaplicabilidade. A mesma atitude interpreta-tiva se há de ter frente à norma constitucional do art. 127: pode-se questionar seu conteúdo, mas não sua suficiência e aptidão para gerar, desde logo, a eficácia que lhe é própria.

Partindo-se desse pressuposto, de que o art. 127 da CF é autossuficiente, completo, apto a, desde logo, irradiar todos os efeitos, pode-se afirmar que o Ministério Público está constitucionalmente legitimado a se utilizar de todos os instrumentos necessários ao adequado desempenho da incumbência, do poder--dever de promover a defesa dos interesses sociais. Isso inclui, por certo, sua habilitação para manejar também os instrumentos processuais, se preciso for, de modo a que suas atribuições sejam exauridas às últimas consequências. Seria inimaginável supor que o dever de defesa - imposto ao Ministério Público pelo constituinte - fosse limitado a providências extrajudiciais.

Os interesses sociais constituem categoria jurídica de conteúdo aberto, mas, mesmo assim, seus contornos principais podem ser genericamente identi-ficados no plano teórico, pelo menos para estabelecer os limites entre o que, com certeza, constitui e o que não constitui interesse social. É certo que (a) não cons-tituem interesses sociais os meros interesses de particulares e mesmo os interes-ses da Administração Pública; e que (b) numa definição genérica, são interesses sociais aqueles cuja preservação e tutela o ordenamento jurídico consagra como importantes e indispensáveis não para pessoas ou entidades individualmente consideradas, mas para a sociedade como um todo, para o seu progresso mate-rial, institucional ou moral.

Todavia, há casos em que a tutela dos interesses sociais pressupõe, neces-sariamente, a tutela simultânea e conjunta de interesses de entes públicos, embora sejam com esses evidentemente inconfundíveis. Assim, por exemplo, quando, em defesa do interesse social, é pleiteada a reparação de danos causados ao patrimônio público ou a restituição de valores indevidamente apropriados por administrador ímprobo, o que se estará tutelando não são apenas interesses

Page 98: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

97

Ministro Teori Zavascki

sociais, mas também os direitos subjetivos das pessoas de direito público lesa-das, para as quais, aliás, será canalizado o produto da condenação. Fenômeno semelhante ocorre em relação a direitos subjetivos de particulares. Com efeito, a lesão a certos direitos individuais homogêneos pode, em determinados casos, assumir tal grau de profundidade ou de extensão que acaba comprometendo também interesses maiores da comunidade, ou seja, interesses sociais. Nesses casos, os interesses particulares, visualizados em seu conjunto, transcendem os limites da pura individualidade e passam a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade como um todo. É o que ocorre, por exemplo, com o conjunto de direitos individuais eventualmente atingidos por dano ambiental. A condenação dos responsáveis pelos prejuízos causados diretamente a pessoas individualizadas e aos seus bens constitui interesse de toda a comunidade, por representar a defesa de um bem maior, que a todos diz respeito: o de preservar o direito à boa qualidade de vida e o de sobrevivência da espécie. Nessas circunstâncias, a defesa desse bem maior, que é de interesse social, acaba englobando, direta ou indiretamente, total ou parcialmente, a defesa de direitos subjetivos individuais.

Ora, também no que interessa ao específico tema da atuação do Ministério Público não há dúvida que se deve descartar, à luz do próprio texto constitucio-nal, qualquer sinonímia entre interesses sociais e interesses de entes públicos, já que, em relação a estes, há vedação expressa de patrocínio pelos agentes minis-teriais (CF, art. 129, IX). Interesses sociais, repita-se, não são, simplesmente, inte-resses de entidades públicas nem, por certo, interesses individuais ou de grupos isolados. Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e inte-resse coletivo de particulares, ainda que decorrentes de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio, excluídos da possibilidade de tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). No entanto, como se fez ver anteriormente, há certos interesses indivi-duais - de pessoas privadas ou de pessoas públicas - que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses puramente individuais e passar a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comuni-dade em seu todo.

É o que ocorre com os direitos individuais homogêneos, antes mencionados, dos consumidores e dos poupadores, cuja defesa pelo Ministério Público tem expressa chancela em lei ordinária. E é o que ocorre em todos os demais casos, mesmo não previstos expressamente em normas infraconstitu-cionais, em que a condenação dos responsáveis pelas condutas lesivas constitua não apenas interesse dos próprios lesados em sua individualidade, mas também interesse da comunidade em seu todo, já que se buscará preservar um bem maior, uma instituição, um valor jurídico ou moral que a todos diz respeito e que foi atingido ou está ameaçado. Nesses casos, considerando que a tutela dos direitos individuais é pressuposto para a tutela do interesse social subjacente, a legitimação do Ministério Público para defendê-los é inegável, independente-mente de previsão normativa ordinária, pois que albergada no art. 127 do texto constitucional.

O próprio Ministério Público, independentemente de lei específica, pode, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos homogêneos compromete também interesses sociais. É seu dever, nesses casos, assumir a legitimação ativa e promover as medidas cabíveis para

Page 99: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

98

Ministro Teori Zavascki

a devida tutela jurisdicional. É evidente que a posição e os atos do Ministério Público a respeito estarão sujeitos ao crivo da parte contrária, que poderá, como ocorreu no caso em exame, contestar a existência de interesse social apto a justificar a incidência do art. 127 da Constituição. A palavra final sobre a ade-quada legitimação caberá, sempre, ao Judiciário, que a confirmará ou a afastará. Tratando-se de matéria de ordem pública, dela pode conhecer até mesmo de ofí-cio o juiz da causa (CPC, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e § 4º).

Delineado o precedente, o Ministro Teori desce finalmente para a deci-são do caso concreto:

À luz do exposto, examine-se o caso concreto, em que se questiona a legitimidade ativa do Ministério Público para defender em juízo direitos e interesses de pessoas titulares do seguro DPVAT - Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre -, cuja indenização teria sido paga, pela Seguradora, em valor inferior ao determinado por lei (artigo 3º da Lei 6.194/74). Não há dúvida de que, segundo a classificação antes enunciada, o objeto da demanda diz respeito a direitos individuais homogêneos, já que se trata de um conjunto de direitos subjetivos individuais, divisíveis, com titulares identifica-dos ou identificáveis, assemelhados entre si por um núcleo de homogeneidade. São, por isso, suscetíveis de tutela pelos próprios titulares, em ações individuais, ou de tutela coletiva, mediante ação própria (que aqui foi denominada de ação civil pública, mas que, no rigor técnico, melhor seria denominá-la de ação civil coletiva), promovida em regime de substituição processual. Já se referiu, acima, as razões que justificam a constitucionalidade de normas que atribuem ao Ministério Público legitimidade para tutelar, em juízo, direitos individuais homogêneos nas relações de consumo e nas relações com instituições finan-ceiras. Ainda que, no caso, não haja estrita identificação com essas situações, a legitimação ativa do Ministério Público sem dúvida se justifica, com base no art. 127 da Constituição, pelo interesse social de que se reveste a tutela do conjunto de segurados que teriam sido lesados pela Seguradora.

Realmente, o denominado seguro DPVAT - Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestres - não é um seguro qualquer. É seguro obrigatório por força de lei (Lei 6.194/74, alterada pela Lei 8.441/92, Lei 11.482/07 e Lei 11.945/09), e sua finalidade é proteger as vítimas de um recorrente e nefasto evento da nossa realidade moderna, os acidentes automobilísticos, que tantos males, sociais e econômicos, trazem às pessoas envolvidas, à sociedade e ao Estado, mormente aos órgãos de seguridade social. Por isso mesmo, a pró-pria lei impõe como obrigatório que os danos pessoais cobertos pelo seguro compreendam as indenizações por morte, por invalidez permanente, total ou parcial, e por despesas de assistência médica e suplementares (art. 3º da Lei 6.194/74) e que “o pagamento da indenização será efetuado mediante simples prova do acidente e do dano decorrente, independentemente da existência de culpa, haja ou não resseguro, abolida qualquer franquia de responsabilidade do segurado” (art. 5º). Considera-se tratar-se de responsabilidade objetiva, vincu-lada à teoria do risco, sendo desnecessária qualquer prova de culpa, bastando a demonstração do dano sofrido.

É importante enfatizar que, pela natureza e finalidade desse seguro, o seu adequado funcionamento transcende os interesses individuais dos segurados.

Page 100: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

99

Ministro Teori Zavascki

A própria Lei 8.212/91 (que dispõe sobre Lei Orgânica da Seguridade Social), no seu artigo 27, parágrafo único, determina às companhias seguradoras o repasse à Seguridade Social de 50% do valor total do prêmio desse Seguro, que é destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), para o custeio de assistência médico-hospitalar dos segurados vitimados em acidentes de trânsito.

Há, portanto, manifesto interesse social nessa controvérsia coletiva. A hipótese, sem dúvida, guarda semelhança com outros direitos individuais homogêneos, em relação aos quais - e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis e com titular determinado ou determinável -, o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse social quali-ficado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição, defendê-los em juízo mediante ação coletiva. É o caso dos direitos individuais homogêneos sobre o valor de mensalidades escolares (RE 163.231/SP, Rel. Min. Maurício Côrrea, Tribunal Pleno, julgado em 26-2-1997, DJ de 29-6-2001), sobre contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação (AI 637.853 AgR/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJE de 17-9-2012), sobre contratos de leasing (AI 606.235 AgR/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJE de 22-6-2012), sobre interesses previ-denciários de trabalhadores rurais (RE 475.010 AgR/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJE de 29-9-2011), sobre aquisição de imóveis em loteamentos irregulares (RE 328.910 AgR/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJE de 30-9-2011) e sobre diferenças de correção monetária em contas vinculadas ao FGTS (RE 514.023 AgR/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJE de 5-2-2010). (RE 631.111, rel. min. Teori Zavascki, j. 7-8-2014, P, DJE de 29-10-2014.)

O STF tem reafirmado Marítima como precedente, sendo essa a orienta-ção atual da Corte55.

55 Cf., por exemplo, CEF vs. MPF, 2019 (RE 643.978/SE, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 9-10-2019, P, DJE de 24-10-2019).

Page 101: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

100

Ministro Teori Zavascki

4. TEORI ZAVASCKI E OS JUIZADOS ESPECIAIS

A princípio, pode parecer um paradoxo o Supremo Tribunal Federal ser chamado a decidir casos envolvendo os Juizados Especiais. Se o propósito des-sas instituições é cuidar de casos menos complexos de forma mais simples, a pendência de uma causa no STF a tratar do tema parece um contrassenso. Se considerarmos, no entanto, que o devido processo tem estatura constitucional, a definição da sua feição - inclusive do ponto de vista negativo - constitui tarefa da Suprema Corte.

4.1 Acesso à Justiça e juizados especiais

Entre nós, os Juizados Especiais estão previstos na Constituição Federal meio de promoção do acesso à Justiça. Desse modo, seu funcionamento con-cerne ao STF, seja porque representa uma das portas da Justiça, seja porque seus alicerces devem estar ancorados no devido processo. O Ministro Teori Zavascki teve a oportunidade de enfrentar três temas ligados aos Juizados à luz da Constituição, todos com ampla repercussão em seu desenho processual.

4.2 Juizados especiais e devido processo

Três interessantes casos que envolvem a densificação do direito ao devido processo no âmbito dos Juizados Especiais podem ser colhidos do rico manancial do STF. Em todos, ressai a decisiva contribuição do Ministro Teori para o tema.

O primeiro caso envolve duas perguntas: o requerimento de uniformi-zação de jurisprudência perante os Juizados constitui incidente ou recurso? É cabível sua interposição simultânea com recurso extraordinário?

A resposta pode ser encontrada em Onofre56. Em seu voto, sustentou Teori Zavascki:

Ao contrário do que afirma a parte agravante, o incidente de uniformi-zação de jurisprudência possui evidente natureza recursal, já que pode propiciar a reforma do acórdão impugnado. Acertada, no particular, a decisão tomada na Questão de Ordem 1/02 pela Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU):

Os Juizados Especiais orientam-se pela simplicidade e celeridade processual nas vertentes da lógica e da política judiciária de abreviar os procedimentos e reduzir os custos.

Diante da divergência entre decisões de Turma Recursais de regi-ões diferentes, o pedido de uniformização tem a natureza jurídica de recurso, cujo julgado, portanto, modificando ou reformando, substitui a decisão ensejadora do pedido.

56 Cf. União vs. Onofre Machado Filho, 2015 (ARE 850.960 AgR/SC, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-3-2015, 2a T, DJE de 10-4-2015).

Page 102: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

101

Ministro Teori Zavascki

A decisão constituída pela Turma de Uniformização servirá para fundamentar o juízo de retratação das ações com o processa-mento sobrestado ou para ser declarada a prejudicialidade dos recursos interpostos.

E prossegue:

No presente caso, o recurso extraordinário foi interposto contra acórdão da Turma Recursal, simultaneamente ao incidente de uniformização de juris-prudência apresentado para a TRU4, ambos com o mesmo objetivo de reformar integralmente o acórdão recorrido. Assim, torna-se necessário perquirir se é cabível, à luz do ordenamento jurídico vigente, a interposição simultânea dessas duas espécies recursais.

Segundo Barbosa Moreira, no plano da política legislativa, é concebível “a) que contra determinada decisão seja interponível um único recurso; b) que sejam interponíveis dois ou mais recursos, cumulativamente; c) que sejam inter-poníveis dois ou mais recursos, alternativamente” (Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 5. p. 248). É o que também regis-tra Araken de Assis, invocando o direito comparado:

Exemplo de interposição alternativa de dois recursos localiza-se no art. 360, segunda parte, do CPC italiano, segundo o qual, pondo--se as partes de acordo, nada obstante apelável a sentença, admite-se a interposição do recurso de cassação, desde logo, mas em certos casos, chamando-se tal possibilidade de ricorso per saltum ou omisso medio. Idêntico sistema preside a Sprungrevision germânica (§ 566 da ZPO). E exemplifica a interposição cumulativa o concurso entre o recours em révision, de regra inadmissível quando cabível outro recurso, e, por isso, “subsidiário”, e o pouvoir em cassation, porque neste a Cour de Cassation não reexamina questões de fato, situadas no âmago do primeiro, a teor do art. 595 do Nouveau Code de Procédure Civile. (Manual dos recursos. São Paulo: RT, 2013. p. 97-98). No direito processual civil brasileiro, o art. 809 do Código de Processo

Civil de 1939 consagrou o princípio da unirrecorribilidade (unicidade ou singu-laridade), dispondo que “a parte poderá variar de recurso dentro do prazo legal, não podendo, todavia, usar, ao mesmo tempo, de mais de um recurso”. Embora não positivado atualmente, segundo entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina, o postulado da unirrecorribilidade foi implicitamente adotado pela sistemática recursal do Código de Processo Civil atual. Assim, “tanto no direito anterior como no vigente (...), a regra geral era e continua a ser a de que, para cada caso, há um recurso adequado, e somente um” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 5. p. 249). (ARE 850.960 AgR/SC, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-3-2015, 2a T, DJE de 10-4-2015.)

Daí a conclusão do Supremo Tribunal Federal: diante do princípio da unirrecorribilidade e da natureza recursal adscrita ao incidente de uniformiza-ção, é incabível a interposição conjunta de recurso extraordinário e de pedido de uniformização de jurisprudência.

Page 103: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

102

Ministro Teori Zavascki

No caso Pagel57 também se discute assunto relativo aos Juizados Especiais. Por ora, interessa-nos o questionamento levantado sobre a possibilidade de a regra da reserva de plenário para a declaração de inconstitucionalidade ser apli-cada a esses órgãos da Justiça.

Lê-se do voto do Ministro Teori:

No que toca ao princípio da reserva de plenário, firmou-se nesta Corte o entendimento de que:

(...) o art. 97 da Constituição, ao subordinar o reconhecimento da inconstitucionalidade de preceito normativo a decisão nesse sentido da maioria absoluta de seus membros ou dos membros dos respectivos órgãos especiais, está se dirigindo aos Tribunais indicados no art. 92 e aos respectivos órgãos especiais de que trata o art. 93, IX. A referência, portanto, não atinge juizados de pequenas causas (art. 24, X) e juizados especiais (art. 98, I), que, pela configuração atribuída pelo legislador, não funcionam, na esfera recursal, sob o regime de plenário ou de órgão espe-cial. As Turmas Recursais, órgãos colegiados desses juizados, podem, portanto, sem ofensa ao art. 97 da Constituição e à Súmula Vinculante 10, decidir sobre a constitucionalidade ou não de preceitos normati-vos. (ARE 792.562 AgR, de minha relatoria, Segunda Turma, DJE de 2-4-2014). No mesmo sentido, citem-se: ARE 845.417 AgR, Rel. Min. Rosa Weber,

Primeira Turma, DJE de 17-12-2014; AI 560.036 ED-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJ de 15-9-2006; AI 561.186 AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJ de 9-6-2006. Confiram-se, também, as seguintes decisões monocráticas, proferidas em casos idênticos: ARE 866.672, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 19-3-2015; ARE 866.730, Rel. Min. Luiz Fux, DJE de 4-3-2015; ARE 806.072, Rel. Min. Roberto Barroso, DJE de 12-12-2014. Aliás, o plenário do órgão colegiado de Juizado Especial é a própria Turma Recursal, cujas deci-sões, por decorrência natural, são sempre tomadas por maioria absoluta.

Assim, considerada a manifesta improcedência da alegação de ofensa ao art. 97 da CF/88 pela Turma Recursal de Juizados Especiais, é de se reconhecer desde logo ausente a alegada repercussão geral da matéria, com os efeitos decor-rentes dessa declaração de ausência, conforme decidiu esta Corte no RE 584.608 RG (Min. Ellen Gracie, DJE de 13-3-2009). (ARE 868.457 RG/SC, rel. min. Teori Zavascki, j. 16-4-2015, P, DJE de 27-4-2015.)

O terceiro exemplo é o caso Tuiuti58. A questão aí tratada é a seguinte: um processo originado no âmbito dos Juizados Especiais pode ser suficientemente importante para justificar a atuação do Supremo Tribunal Federal?

57 Cf. INSS vs. Pagel, 2015 (ARE 868.457 RG/SC, rel. min. Teori Zavascki, j. 16-4-2015, P, DJE de 27-4-2015). 58 Cf. Tuiuti vs. Vieira, 2015 (ARE 835.833 RG/RS, rel. min. Teori Zavascki, j. 19-3-2015, P, DJE de 26-3-2015).

Page 104: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

103

Ministro Teori Zavascki

A resposta da Corte surge límpida no voto do Ministro Teori Zavascki:

as causas de competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais previs-tos na Lei 9.099/95 são, por sua natureza, fundadas em controvérsias decorren-tes de relações de direito privado, revestidas de simplicidade fática e jurídica. Justamente por isso, o processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, sim-plicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sem-pre que possível, a conciliação ou a transação (art. 2º). É seguro afirmar que apenas excepcionalmente as causas processadas perante os Juizados Especiais Cíveis Estaduais encontram solução nos dispositivos da Constituição. E mesmo quando tangenciam matéria constitucional, são extremamente incomuns e improváveis as situações em que se pode visualizar a repercussão geral de que tratam o art. 102, § 3º, da Constituição, os arts. 543-A e 543-B do Código de Processo Civil e o art. 322 e ss. do Regimento Interno do STF, podendo-se pre-sumir como raras e atípicas as situações com essas peculiaridades. Não obstante o elevado número de recursos extraordinários provenientes de causas julgadas segundo o regime da Lei 9.099/95, de 1997 até setembro de 2014, a repercussão geral foi reconhecida em apenas nove (9) casos, que dizem respeito a (a) expur-gos inflacionários, (b) competência legislativa sobre relação de consumo, (c) res-ponsabilidade civil de provedor de conteúdo na rede mundial de computadores e (d) aspectos processuais relativos ao funcionamento dos Juizados.

4. É certo que não se pode eliminar por completo a possibilidade de existir, numa causa oriunda de Juizado Especial Cível da Lei 9.099/95, matéria constitucional dotada de repercussão geral. Isso, todavia, não abala a constatação de que a quase totalidade dos milhares de recursos extraordinários interpostos nessas causas não trata de matéria constitucional com qualificado significado de repercussão geral a ensejar a manifestação do Supremo Tribunal Federal. Por isso mesmo se pode afirmar que, pela natureza desses Juizados Especiais, o requisito da repercussão geral supõe, em cada caso, demonstração hábil a reverter a natural essência das causas de sua competência, que é a de envolver relações de direito privado de interesse particular e limitado às partes, revestidas de simplicidade fática e jurídica.

5. O caso dos autos é exemplo típico. Não há questão constitucional envolvida na controvérsia, a não ser por via reflexa e acessória. Toda a contro-vérsia, a rigor, envolve matéria de fato a respeito de um contrato de venda de laticínios firmado entre produtor rural e empresa. Por mais relevante e impor-tante que a causa possa ser e se supõe que o seja para as pessoas nela envolvidas, é indispensável para a funcionalidade e a racionalidade do sistema Judiciário, da sobrevivência dos Juizados Especiais e da preservação do papel constitucio-nal desta Suprema Corte que os atores do processo tenham consciência de que causas assim não poderiam ser objeto de recurso extraordinário. (ARE 835.833 RG/RS, rel. min. Teori Zavascki, j. 19-3-2015, P, DJE de 26-3-2015.)

Page 105: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

PARTE IIDO PROCESSO AO DIREITO

Page 106: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

105

Ministro Teori Zavascki

1. TEORI ZAVASCKI, O ESTADO DEMOCRÁTICO E AS ELEIÇÕES

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de enfrentar dois temas de radical importância democrática: o financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais; e os respectivos meios de controle. Em ambas as oportunidades, a voz ponderada do Ministro Teori foi sentida de maneira firme no Plenário da Corte.

1.1 Estado Democrático e eleições

Como observa a doutrina, o Estado Democrático é caracterizado por “eleições livres, periódicas e pelo povo”59. Para o seu bom funcionamento, no entanto, é preciso saber como o sistema político – em termos de partidos e elei-ções – será custeado. É precisamente nesse ponto que a liberdade encontra a igualdade, e ambas deparam a necessidade de lidar com a inescapável influência do poder econômico no funcionamento das instituições democráticas.

1.2 Financiamento político e controle de contas

Relativamente a esse tema, o STF, como guardião da Constituição Federal, foi chamado a resolver dois difíceis problemas: o financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais; e os respectivos meios de controle de contas. O enfrentamento de ambos ocorreu em controle abstrato.

Em análise da primeira questão, lê-se do voto-vista do Ministro Teori Zavascki:60

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Conselho Federal da OAB contra dispositivos das Leis 9.096/95 e 9.504/97 que dispõem sobre financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais. Mais especi-ficamente, o que se pede é (a) a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto do arts. 31, 38, III, e 39, caput e § 5º, da Lei 9.096/95 e do art. 24 da Lei 9.504/97, e a declaração de inconstitucionalidade do art. 81, caput e § 1º, da Lei 9.504/97, com efeitos ex nunc, no que dispõem sobre a autorização a doações efetuadas por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos; e (b) a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade do art. 23, § 1º, I e II, da Lei 9.504/97, no que diz respeito aos limites das doações realizadas por pessoas naturais e jurídicas, bem assim quanto a aportes de recursos pró-prios dos candidatos, com a manutenção de sua eficácia por 24 meses.

O fundamento central do pedido é o de que, nos termos como atu-almente regulado o financiamento das campanhas eleitorais - que autoriza

59 Cf. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional (1997). 34. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 6. 60 Cf. Conselho Federal da OAB vs. Congresso Nacional e Presidente da República, 2015 (ADI 4.650/DF, rel. min. Luiz Fux, voto-vista do min. Teori Zavascki, j. 17-9-2015, P, DJE de 23-2-2016).

Page 107: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

106

Ministro Teori Zavascki

contribuições financeiras de pessoas jurídicas e estabelece, para doações priva-das, limites proporcionais ao faturamento ou aos ganhos dos doadores -, enseja uma nefasta influência do poder econômico no resultado dos pleitos, com ofensa aos princípios democrático (arts. 1º, caput e parágrafo único, 14, caput, e 60, § 4º, II), republicano (art. 1º, caput) e da igualdade (arts. 5º e 14).

2. A questão do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais é, na atualidade, um dos temas centrais da agenda política, não só no Brasil, mas em muitos outros países e regiões do mundo, conforme reconhece a inicial e atestam os especialistas (a propósito, o excelente estudo do Diretor Regional do IDEA - Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral - ZOVATTO, Daniel. Financiamento dos partidos e campanhas elei-torais na América Latina: uma análise comparada. Opinião Pública, Campinas, vol. XI, n. 2, out. 2005, p. 287-336). A centralidade da questão decorre, por um lado, da importância que tem para a preservação do princípio democrático e da legitimidade da escolha dos representantes políticos, e, por outro, da sua extrema complexidade, que se manifesta sobretudo pela enorme dificuldade para se chegar até mesmo a consensos mínimos sobre os problemas que envolve. É que as relações do poder econômico com a área política despertam um conflito de valores que tracionam em sentidos opostos. Se é certo afirmar - e esse é o aspecto salientado na presente demanda - que o poder econômico pode inter-ferir negativamente no sistema democrático, favorecendo a corrupção eleitoral e outras formas de abuso, também é certo que não se pode imaginar um sistema democrático de qualidade sem partidos políticos fortes e atuantes, especialmente em campanhas eleitorais, o que, evidentemente, pressupõe a disponibilidade de recursos financeiros expressivos. E, sob esse ângulo, os recursos financeiros con-tribuem positivamente para a existência do que se poderia chamar de democracia sustentável, com partidos políticos em condições de viabilizar o sadio proseli-tismo político, a difusão de doutrinas e de ideários, de propostas administrativas e assim por diante. Como lembra Zovatto, “embora a democracia não tenha preço, ela tem um custo de funcionamento que é preciso pagar” (cit., p. 289).

Eis aí, pois, o grande paradoxo: o dinheiro pode fazer muito mal à demo-cracia, mas ele, na devida medida, é indispensável ao exercício e à manutenção de um regime democrático. Onde está o equilíbrio, como conter os excessos, como direcionar o fluxo dos recursos apenas para o bem da democracia evi-tando corrupção e conluio, essas são algumas das perguntas cujas respostas são incessantemente buscadas, no Brasil e em muitos outros países, por especialis-tas e legisladores. Por isso mesmo é que se diz, à luz da experiência de direito comparado, que esse é “um tema condenado à sucessão de distintas reformas legais. Daí a importância de levar em conta seu caráter flutuante e conjuntural, pois a adoção de uma solução (...) costuma engendrar efeitos não buscados que devem ser novamente corrigidos mediante outra reforma legal. Não por acaso, ela é chamada de ‘legislação interminável’ na Alemanha, país que vem dando [ao tema] atenção destacada nos últimos 50 anos” (Zovatto, cit., p. 329/330).

Não há dúvida que, nesse contexto, é de importância fundamental o estabelecimento de um adequado marco normativo. Mas, somente ele não é suficiente para coibir as más relações entre política e dinheiro. Há, sobretudo, a questão da conduta. É preciso que as normas sejam efetivamente cumpridas e a punição seja efetivamente aplicada, se for o caso. Talvez aqui, mais do que na precariedade do marco normativo, esteja a fonte principal dos abusos do poder econômico e da corrupção política: no desrespeito das normas e na impunidade

Page 108: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

107

Ministro Teori Zavascki

dos responsáveis. É o que atestam os especialistas e confirma a experiência, aqui e em outros países: ZOVATTO, cit., p. 319; KANAAN, Alice. Financiamento público, privado e misto frente à reforma política eleitoral que propõe o finan-ciamento público exclusivo. In: RAMOS, André de Carvalho (coord.). Temas de direito eleitoral no século XXI. Brasília: Escola Superior do Ministério Público, 2012. p. 308; SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. Financiamento de cam-panha eleitoral - entre o público e o privado. In: RAMOS, André de Carvalho (coord.). Temas de direito Eleitoral no século XXI, Brasília: Escola Superior do Ministério Público, 2012, p. 266; FLEISCHER, David, BOHN, Simone Rodrigues da Silva (coord.); e WHITAKER, Francisco (colaborador). A fiscaliza-ção das eleições. In: SPECK, Bruno Wilhelm (org.). Caminhos da transparência, 2001; D’ALMEIDA, Noely Manfredini, Financiamento político de campanhas e partidos: a experiência mundial sobre a prestação de contas. Paraná Eleitoral, n. 057, 2005; SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento das campanhas eleito-rais. In: AVRITZER, Leonardo; e ANASTASIA, Fátima (orgs.). Reforma política no Brasil, 2006; CAGGIANO, Monica Herman S. Corrupção e financiamento de campanhas eleitorais. Fórum Administrativo - FA, ano 1, n.  10, dez 2001; FERREIRA, Lara Mariana. O financiamento de partidos políticos e de campa-nhas eleitorais no contexto da reforma política brasileira. Estudos Eleitorais, v. 6, n. 1, jan./abr. 2011; VILLAR, João Heliofar de Jesus. Corrupção: o ovo da serpente. Folha de São Paulo, opinião, 4-1-2010); NICOLAU, Jairo. Para reformar o financiamento de campanhas no Brasil. Democracia Viva, n. 37, dez./2007).

Portanto, a primeira realidade que se deve ter presente é que o finan-ciamento de partidos e de campanhas eleitorais é contingência ineliminável em nosso sistema democrático e que, para evitar que ele produza, ou continue produzindo, efeitos negativos indesejáveis e perversos, não há fórmulas simples, nem soluções prontas. Trata-se, ao contrário, de questão tormentosa, no plano social e político em primeiro lugar e no plano jurídico como consequência.

3. A segunda constatação - essa no estrito domínio normativo e, portanto, mais sensível ao juízo a ser feito na presente ação - é a de que a Constituição Federal não traz disciplina específica a respeito da matéria. Essa constatação resulta claramente estampada na própria petição inicial, que, para sustentar a inconstitucionalidade dos preceitos normativos atacados, invocou ofensa a princípios constitucionais de conteúdo marcadamente aberto e indeterminado: o princípio democrático, o princípio republicano, o princípio da igualdade.

Há, na Constituição, apenas duas referências à influência do poder eco-nômico em seara eleitoral, ambas em parágrafos do art. 14, inserido em capítulo que trata dos direitos políticos. Eis o que dispõem os parágrafos:

Art. 14. (...)§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade

e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

§ 10. O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.O que essas normas visam a combater não é, propriamente, o concurso

do poder econômico em campanhas eleitorais, até porque, como já afirmado,

Page 109: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

108

Ministro Teori Zavascki

não se pode promover campanhas sem suporte financeiro. O que a Constituição combate é a influência econômica abusiva, ou seja, a que compromete a “nor-malidade e legitimidade das eleições” (§ 9º). É o abuso, e não o uso, que enseja a perda do mandato eletivo (§ 10).

Não havendo, além das indicadas, outras disposições constitucionais a respeito, passa a ser dever e prerrogativa típica do legislador infraconstitucio-nal a importante e espinhosa empreitada de formatar a disciplina normativa das fontes de financiamento dos partidos e das campanhas, em moldes a coibir abusos e a preservar a normalidade dos pleitos eleitorais. Ao Judiciário, por sua vez, fica reservado, nesse plano normativo, o papel de guardião da Constituição, cabendo-lhe o controle da legitimidade constitucional das soluções apresenta-das pelo legislador.

Considerando o já referido caráter flutuante e conjuntural dessa pro-blemática, a exigir continuada atenção reformadora para aperfeiçoamento do sistema, é importante que o Supremo Tribunal Federal tenha o cuidado de não extrair das raras disposições da Constituição sobre abuso do poder econômico ou, o que seria mais grave, da amplitude semântica e da plurissignificação dos princípios democrático, republicano e da igualdade, interpretações volunta-ristas que imponham gessos artificiais e permanentes às alternativas que ela, Constituição, oferece ao legislador encarregado de promover ajustes norma-tivos ao sistema de financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Refiro-me, com essa observação, ao financiamento privado e, mais especificamente, às contribuições de pessoas jurídicas, que, conforme procura-rei demonstrar, não podem ser considerados como absoluta e manifestamente incompatíveis com a Constituição, a ponto de impedir, agora e para sempre (enquanto mantido o atual regime constitucional), possam elas ser autorizadas, ainda que limitadamente, pelo legislador ordinário.

4. No caso, o que está em questão não é saber se o modelo normativo brasileiro é conveniente, ou não, se é adequado, ou não, ou mesmo se é eficiente ou não, se representa ou não a melhor forma de enfrentar as mazelas produzidas pela interferência do dinheiro na seara política. O que está em questão é a legiti-midade constitucional das normas indicadas na petição inicial, editadas para dar viabilidade e legitimidade ao aporte de recursos privados aos partidos políticos e às campanhas eleitorais. Pois bem, embora reconhecendo a inadiável necessi-dade de alteração do atual estado das coisas, em que campeiam práticas ilegíti-mas de arrecadação de recursos, de excessos de gastos e de corrupção política, nem por isso se pode concluir que as contribuições financeiras, só por serem de pessoas jurídicas, encontram óbice direto e frontal na Constituição.

Afirma-se, como argumento central da inconstitucionalidade, que as pessoas jurídicas “não exercem cidadania”, pois não têm aptidão para votar. É, com o devido respeito, um argumento do qual não se pode extrair a radical conclusão de que a Constituição proíbe, terminantemente, o aporte de recursos a partidos políticos. A Constituição não faz, nem implicitamente, essa relação necessária entre capacidade de votar e habilitação para contribuir, até porque há também muitas pessoas naturais sem habilitação para votar e nem por isso estão proibidas de contribuir financeiramente para partidos e campanhas. É que o voto é apenas uma das variadas formas de participar da vida em sociedade e de influir para que a escolha de representantes políticos recaia sobre os mais eficientes e mais qualificados. As pessoas jurídicas, embora não votem, embora sejam entidades artificiais do ponto de vista material, ainda assim fazem parte da

Page 110: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

109

Ministro Teori Zavascki

nossa realidade social, na qual desempenham papel importante e indispensável, inclusive como agentes econômicos, produtores de bens e serviços, geradores de empregos e de oportunidades de realização aos cidadãos. Mesmo quando visam a lucro, são entidades que, a rigor, não têm um fim em si mesmas: ao fim e ao cabo, as entidades de existência formal só existem para, direta ou indiretamente, atender e satisfazer interesses e privilegiar valores das pessoas naturais que por trás delas invariavelmente gravitam e das quais funcionam como instrumentos jurídicos de atuação. Bem por isso há quem sustenta, por exemplo, que “em uma comparação internacional, a vedação do financiamento por entidades de classe e sindicatos [que também são pessoas jurídicas e não votam], herdada da dita-dura militar no Brasil, poderia ser considerada anacrônica” porque inibe, em boa medida, que o conflito entre capital e trabalho se projete na representação política e no sistema partidário (SPECK, Bruno Wilhelm. O financiamento de campanhas eleitorais. In: AVRITZER, Leonardo e ANASTASIA, Fátima (orgs.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006).

Diz-se, por outro lado, que pessoas jurídicas só contribuem por interesse. Não se contesta esse fato. Todavia, é exatamente isso o que ocorre também com as pessoas naturais: suas contribuições não podem ser consideradas desinte-ressadas. Nem num caso, nem no outro, entretanto, há de se afirmar que os interesses a que visam as contribuições para partidos ou campanhas políticas sejam, invariavelmente, interesses ilegítimos. Não se mostra assim, por exemplo, o interesse de pessoas jurídicas em ver eleitos candidatos favoráveis a impulsio-nar certas reformas legislativas de natureza econômica, ou tributária, ou traba-lhista, ou em ver priorizadas políticas públicas na área de infraestrutura, ou de expansão de empregos, ou de industrialização ou de desburocratização. É claro que há também interesses escusos movendo doações de pessoas jurídicas, mas seria igualmente ingênuo afirmar que os interesses que movem pessoas naturais a contribuir para campanhas sejam, sempre, interesses legítimos. A realidade está repleta de exemplos em sentido contrário, alguns até da mais alta gravidade, como é o caso de candidaturas sustentadas por organizações criminosas.

Portanto, longe de negar a existência, em muitos casos, de interesses condenáveis nas contribuições feitas a candidatos e partidos, o que se afirma é que não se pode ver nesse fato, isoladamente considerado, um fundamento sufi-ciente para a conclusão radical de que toda e qualquer contribuição de pessoas jurídicas é inconstitucional. Como demonstrado, sob o aspecto da motivação que impulsiona as contribuições, as mesmas razões que determinariam uma proibição constitucional às pessoas jurídicas se aplicariam, igualmente, as pes-soas naturais, a significar que, por esse ângulo, apenas o financiamento exclusi-vamente público seria compatível com a Constituição, tese que a própria inicial se encarrega de afastar.

Na verdade, olhada a questão pelo prisma do interesse que move os doa-dores, o fator decisivo para aferir a legitimidade acaba se transferindo, mais uma vez, do marco normativo para o marco comportamental: tanto as doações de pessoas jurídicas, quanto às de pessoas naturais serão incompatíveis com a Constituição se abusivas. As más práticas, os excessos, a corrupção política, não podem ser simplesmente debitadas às contribuições feitas nos limites autorizados por lei, mas àquelas provindas da ilegalidade. Em outras palavras: é preciso ter cuidado para não atribuir a inconstitucionalidade das normas ao seu sistemá-tico descumprimento.

Page 111: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

110

Ministro Teori Zavascki

5. A história do direito brasileiro dá testemunho claro a esse respeito. Como se sabe, o legislador brasileiro optou, em certa época, por proibir pes-soas jurídicas de contribuir para partidos políticos e campanhas eleitorais. Era assim na vigência da Lei Orgânica dos Partidos Políticos editada em 1971 (Lei 5.682/71, art. 91, IV). Nem por isso, todavia, deixaram de existir na época os mesmos (ou até maiores) abusos, gastos excessivos e corrupção eleitoral que agora se atribuem às normas impugnadas na presente ação direta. Na verdade, a abertura que permitiu doações por parte de pessoas jurídicas, em níveis limi-tados e acompanhados por sistema de controle, como hoje está consagrado nas normas aqui atacadas, resultou de uma opção legislativa explicitamente conce-bida como resposta às imoderações, fraudes e descaminhos verificados quando vigorava a proibição que aqui se busca reimplantar, mazelas que vieram à tona durante as investigações de Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI desen-cadeada no governo do então presidente Fernando Collor de Mello.

Na ocasião, firmou-se o consenso de que a proibição pura em simples do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas seria uma alternativa hipó-crita para minorar a natural e inevitável insinuação do poder econômico sobre as eleições. A admissão de doações privadas, acompanhada do estabelecimento de meios de controle mais efetivos, foi a aposta que acabou sendo adotada, como explica Lara Marina Ferreira:

Os escândalos de corrupção que envolveram a campanha e o governo do presidente Fernando Collor de Mello acenderam as discus-sões sobre o sistema de financiamento de campanhas políticas no Brasil. No centro das investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que levou ao impeachment do primeiro presidente da República eleito após o regime militar estavam as atividades de seu tesoureiro de cam-panha, as doações ilegais e o tráfico de influência entre financiadores e governo. O relatório da CPI traz um capítulo que analisa o tema, bem como propostas destinadas a regulamentar a arrecadação e a fiscalização desses recursos financeiros.

No décimo capítulo do relatório final da CPI, intitulado Dos fato-res que possibilitam esquemas do tipo PC (Congresso Nacional, 1992, p.  303), o primeiro fator elencado é o financiamento de campanhas eleitorais. O relatório destaca, já de início, que “as quantias gastas nas campanhas eleitorais têm cifras assombrosas” (Congresso Nacional, 1992, p. 303) e que esse fenômeno está inserido dentro de um contexto mundial, na medida em que as duas últimas décadas do século XX foram marcadas pelo crescente aumento de gastos nas campanhas eleitorais.

Para fazer frente a esses gastos, os candidatos lançavam mão de recursos de fontes privadas, apesar de proibidas pela Lei n. 5.682/1971, fato que levaria ao discurso corrente de que a legislação brasileira seria “hipócrita”, “irreal e excessivamente rigorosa” (Congresso Nacional,1992, p. 304). Como fundamento principal dessas críticas, estava a necessidade de legalização das doações privadas, que contribuíram para a moraliza-ção e a transparência das contas apresentadas.

O relatório defende, entretanto, que a mera legalização dos recur-sos privados não seria capaz de resolver o problema, pois ainda que con-tribuísse para a veracidade das informações, não bastaria para coibir o abuso do poder econômico em campanhas eleitorais. A possibilidade de doações privadas deveria vir acompanhada de intensa regulamentação

Page 112: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

111

Ministro Teori Zavascki

que evitasse a distorção do poder político em poder econômico, na qual o primeiro se apresenta como mera fachada do segundo.

(...)Como conclusão, o relatório apresenta proposta de lei para adoção

de um sistema de financiamento misto de campanhas eleitorais, com o aporte de recursos públicos e de recursos privados.

No que toca ao financiamento privado, o relatório da CPI defende sua implantação com a adoção de parâmetros realistas e de controle severos. Para tanto, indica a necessidade de limitações para os gastos e de determinação de tetos para as doações e a vedação de financiamento por empresas vinculadas ao Estado por contratos de fornecimento, prestação de obras ou serviços, reforçando mais uma vez a tese de que este constitui um ponto central do problema.

Quanto ao financiamento público, o relatório indica a neces-sidade de maior repasse de recursos aos partidos políticos e candida-tos, contribuindo para diminuir a “irrealidade” da legislação eleitoral da época, ao mesmo tempo em que dificultaria a influência do poder econômico no cenário político. As proposições do relatório final da CPI foram fundamentais para a edição das leis temporárias n. 8.713/1993 e 9.100/1995 que regeram, respectivamente, as eleições de 1994 e de 1996, tendo adotado o sistema de financiamento misto de partidos políti-cos e de campanhas eleitorais. São frequentes os estudos que indicam a relação entre o esquema PC e a adoção do financiamento misto, com a inclusão do financiamento privado.

A mesma sistemática foi mantida pelas leis n. 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos - e 9.504/97 - Lei das Eleições. Esses dois diplo-mas normativos de natureza permanente e aplicáveis a todas as eleições desde então estabeleceram as regras para o sistema misto de financia-mento de partidos e de eleições no Brasil. (FERREIRA, Lara Marina. O financiamento de partidos políticos e de campanhas eleitorais no con-texto da reforma política brasileira. Estudos Eleitorais, v. 6, n. 1, jan./abr. 2011, Tribunal Superior Eleitoral).Presente essa realidade, mostra-se uma alternativa pouco afinada com

a nossa experiência histórica imaginar que a corrupção eleitoral e o abuso do poder econômico sejam produto do atual regime normativo e que isso seria razão ou pretexto suficiente para declará-lo inconstitucional, propiciando assim a volta ao regime proibitivo anterior. Nesse ponto, tem toda razão e atualidade o voto do Min. Sepúlveda Pertence, proferido na ADI 1.076 (DJ de 7-12-2000), a respeito do financiamento privado de campanhas eleitorais no Brasil:

9. Dispensa comentários o rotundo fracasso dessa tentativa ingê-nua de expungir o financiamento das campanhas eleitorais do dinheiro da empresa privada: além da ineficácia notória, a vedação gerou o efeito perverso do acumpliciamento generalizado dos atores da vida política com a prática das contribuições empresariais clandestinas, fruto, na melhor das hipóteses, da sonegação fiscal.

10. Assim como ocorrera na América, sob o estrépito de Watergate, era previsível que, também no Brasil, os escândalos dos últimos anos, universalizando a consciência da sua hipocrisia, sepultariam o velho modelo proibitivo.

Page 113: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

112

Ministro Teori Zavascki

11. Não é que seja desejável que empresas de finalidade lucrativa custeiem a disputa do poder político. Mas é inevitável que o façam. Desse modo, a alternativa real não é permitir ou proibir simplesmente. É proibir nominalmente, fingindo ignorar a inoperância fatal da vedação utópica, ou render-se à realidade inevitável da interferência do poder econômico nas campanhas eleitorais, a fim de tentar discipliná-la, limitá-la e fazê--la transparente.Foi justamente no rumo dessa segunda alternativa, ou seja, com essa deli-

berada finalidade de tentar disciplinar, limitar e dar transparência às contribui-ções de pessoas jurídicas que o legislador editou os preceitos normativos objeto de ataque na presente ação. Não nos iludamos, portanto, e insisto no ponto: o problema da abusiva interferência do poder econômico na política e nas cam-panhas eleitorais - que é uma realidade e que precisa ser combatida - não está no marco normativo, mas no seu sistemático descumprimento. Não é a norma, e sim o seu descumprimento, que propicia fenômenos sobejamente conhecidos da nossa história política, dos tipos eufemisticamente chamados, em tempos recentes, de “recursos não contabilizados” (AP 470), mas que, em todo o tempo, se conhece popularmente como contribuições de “caixa dois” e que, no passado, deu origem às malsinadas “sobras de campanha” (CPI do governo Collor de Mello). A solução, consequentemente, não é eliminar a norma, mas estabelecer e aplicar mecanismos de controle e de sanções que imponham a sua efetiva obser-vância. Já se disse, com inteira razão:

Se a corrupção é um mal de raiz, é rede que atinge o interior do sistema de financiamento dos partidos, é possível afirmar que a alteração do modelo de financiamento, por si só, estaria longe de inibir ingressos ilegais e ilícitos ou os acordos espúrios que comprometem a atividade pública. E a afirmação decorre de uma conclusão muito simples: o pro-blema não está no modelo do financiamento, quer público, quer pri-vado, quer misto, mas, sim, na forma de controle eleitoral e na garantia de eficácia e efetividade das punições aos infratores (KANAAN, Alice. Financiamento público, privado e misto frente à reforma política eleitoral que propõe o financiamento público exclusivo, cit., p. 308).6. Argumenta-se com o elevado custo das campanhas eleitorais, cada vez

maior. É um fato real, verificável não somente no Brasil, mas em outros países, de toda a América e da Europa, e devido, em grande medida, ao moderno “processo revolucionário dos Meios de Comunicação”, produzindo o fenômeno do homo videns de que fala o cientista político italiano Giovanni Sartori: “o vídeo está transformando o homo sapiens produzido pela cultura escrita em um homo videns no qual a palavra vem sendo destronada pela imagem. Tudo se torna visualizado” (SARTORI, Giovanni. Homo videns. Televisão e pós--pensamento, Bauru/SP: EDUSC, 2001. p. 7-8), o que determina um papel deci-sivo e dirigente - e de alto custo - dos meios eletrônicos de comunicação, e da televisão de um modo particular, nas campanhas eleitorais (Zovatto, cit., p. 312). Também no Brasil esse fenômeno se faz presente, eis que, conforme noticiado nos autos, grande parte dos gastos das campanhas correspondem à produção e veiculação de programas e propaganda televisivos.

Aliás, isso mostra outro paradoxo: ao mesmo tempo em que se aponta, com justificada preocupação, para os malefícios dos custos excessivos das campa-nhas, registra-se, por outro lado, como importante avanço democrático a opor-tunidade propiciada pela lei eleitoral de acesso de candidatos e partidos políticos

Page 114: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

113

Ministro Teori Zavascki

aos cobiçadíssimos espaços gratuitos em rádio e televisão, cuja efetiva utilização supõe, entretanto, altíssimos gastos, os mais elevados de toda a campanha!

Paradoxos à parte, convém deixar claro que também esse fato real (o alto custo das campanhas), não pode, por si só, ser invocado como fundamento para um juízo de procedência da presente ação direta. Não há parâmetros normativos que permitam esse juízo, pois nem as normas impugnadas, nem a Constituição tratam da matéria. O que se proíbe, na Constituição, é o abuso do poder econô-mico, cláusula que, todavia, não está necessariamente relacionada com o custo das atividades partidárias. E se esse custo for abusivo, a inconstitucionalidade não estará no preceito normativo, mas nas práticas políticas ilegítimas, a signi-ficar que a procedência ou não da ação não terá, necessariamente, do ponto de vista jurídico, o efeito de eliminar ou limitar aqueles custos.

Portanto, o antídoto para os gastos excessivos de campanha eleitoral não é declarar a inconstitucionalidade das fontes de financiamento, cuja elimina-ção formal provavelmente seria imediatamente substituída por suplementação informal e ilegítima, como mostram os exemplos históricos. A solução mais plausível será a imposição de limites de gastos, acompanhada de instrumentos institucionais de controle e de aplicação de sanções, em casos de excessos. E a definição dos limites adequados é questão que não encontra resposta imediata nas normas constitucionais. Cumpre à lei dispor a respeito, como, aliás, está previsto no art. 17-A da Lei 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300/2006, a saber:

Art. 17-A. A cada eleição caberá à lei, observadas as peculiarida-des locais, fixar até o dia 10 de junho de cada ano eleitoral o limite dos gastos de campanha para os cargos em disputa; não sendo editada lei até a data estabelecida, caberá a cada partido político fixar o limite de gastos, comunicando à Justiça Eleitoral, que dará a essas informações ampla publicidade. Se os limites já pudessem ser deduzidos a partir da aplicação direta de

normas constitucionais, seria supérflua a primeira parte desse dispositivo e certamente inconstitucional a sua segunda parte, o que não está em causa nesse momento. Assim, mais que buscar a intervenção do Supremo Tribunal Federal para prover normativamente sobre fixação de limites de gastos de campanha - matéria que escapa ao âmbito da jurisdição constitucional - será mais com-patível com o princípio democrático e da separação dos Poderes que as forças sociais e suas entidades organizadas façam ver ao Poder Legislativo a impor-tância transcendental e decisiva para a democracia do cumprimento do dever que lhe impôs a norma, em sua primeira parte, suprindo esse evidente déficit normativo. Eventual demora ou omissão do legislador no exercício das funções institucionais que lhe são próprias, como é o caso, somente autorizará a sua substituição - provisória e temporária - pelo Poder Judiciário nas hipóteses e segundo os mecanismos previstos na Constituição, ou seja, por ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º) ou por mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI). O senso de responsabilidade do Poder Legislativo haverá de evitar, com a presteza possível, que seja necessário caminhar por essa via extrema, da qual, entretanto, certamente não se desviará o Supremo Tribunal Federal, se e quando a tanto provocado.

7. Relativamente às doações feitas por pessoas naturais - que a peti-ção inicial reconhece, em princípio, como legítimas -, a demanda questiona a constitucionalidade da norma que fixa o critério para apuração dos limi-tes máximos permitidos, por ofensa ao princípio da igualdade. Com idêntico

Page 115: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

114

Ministro Teori Zavascki

fundamento, imputa-se a inconstitucionalidade da ausência de limite para o aporte de recursos próprios dos candidatos, o que favoreceria os candidatos mais ricos. Relativamente às doações privadas, sustenta-se que “o principal limite ins-tituído, baseado em percentual dos rendimentos obtidos no ano anterior, é, ao mesmo tempo, muito leniente em relação aos ricos, e injustificadamente rigoroso em relação às pessoas menos abastadas” (p. 9 da inicial). “É verdade”, diz-se mais adiante, “que, num sistema que admite o financiamento privado das campanhas, os mais pobres já são naturalmente prejudicados no seu poder político, pois, em regra, não possuem os recursos necessários para realizar doações, em prejuízo da própria subsistência. Mas o legislador, além do limite fático, impôs uma ina-ceitável discriminação jurídica, pois proibiu um indivíduo mais pobre de doar a mesma importância que o mais abastado, mesmo que dispuser de recursos” (p. 15). Propõe a demandante, para superar essa desigualdade, o estabelecimento de um “diálogo interinstitucional entre o STF e o Congresso Nacional, em que o STF pronunciaria a inconstitucionalidade do critério, bem como da ausência de limites para uso de recursos próprios pelos candidatos em campanha, mas não retiraria imediatamente do mundo jurídico as normas em questão (...). Haveria o retardamento da eficácia invalidatória da Corte por 24 meses, e o Congresso Nacional (...) seria exortado a estabelecer, no prazo de 18 meses, um novo limite para doações (...) além de instituir limite, também uniforme, para uso de recur-sos próprios em campanhas pelos candidatos”, e, “caso o Congresso Nacional não disciplinasse a questão no referido prazo, caberia ao TSE fazê-lo provisoria-mente, até o advento da nova legislação de regência” (p. 10).

Cumpre desde logo registrar que o “diálogo interinstitucional” proposto constituiria, na verdade, apenas um monólogo unidirecional: o STF “exortaria” o Congresso a legislar em determinado sentido, num certo prazo, sob pena de, não o fazendo, ficar essa incumbência transferida ao Tribunal Superior Eleitoral. É, como se percebe, uma proposta inovadora, estranha e, no meu entender, incom-patível com os modelos constitucionais de solução de omissão ou insuficiência da atividade legislativa, especialmente no âmbito de ação direta de inconstitucio-nalidade. Mesmo nas hipóteses especiais de procedência de ação de mandado de injunção ou de inconstitucionalidade por omissão, não haveria base constitucio-nal para o Judiciário avançar sobre atribuições típicas do Poder Legislativo, nos moldes pretendidos, especialmente para delegá-las ao Tribunal Superior Eleitoral.

E a hipótese é, realmente, de déficit normativo. Relativamente ao aporte de recursos próprios, o texto normativo atacado (§ 1º do art. 23 da Lei 9.504/97) prevê que as doações e contribuições ficam limitadas:

I – no caso de pessoa física, a dez por cento dos rendimentos bru-tos auferidos no ano anterior à eleição;

II – no caso em que o candidato utilize recursos próprios, ao valor máximo de gastos estabelecido pelo seu partido, na forma desta Lei.O que se busca, na demanda, é substituir essas disposições por outras,

que melhor atendam ao princípio da igualdade. Considerando não ser viável, pelo menos em ação direta de inconstitucionalidade, que o Supremo Tribunal Federal produza, desde logo, uma norma substitutiva, a alternativa de simples-mente declarar a inconstitucionalidade do critério hoje existente - que, ainda que imperfeitamente, prevê um limite para o aporte de recursos - significaria eliminar esse limite e, consequentemente, aprofundar o nível de desigualdade.

Abstraída essa questão instrumental e formal, e sem negar o mérito de iniciativas tendentes a reduzir as desigualdades de forças, derivadas de razões

Page 116: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

115

Ministro Teori Zavascki

econômicas, entre doadores e entre candidatos, a grande dificuldade que se tem, em situações assim, é a que decorre dos dados da realidade: é no plano fático e material que as pessoas são desiguais em sua capacidade de fazer doações finan-ceiras e essa desigualdade é insuscetível de eliminação mediante simples atu-ação no plano formal, por provimentos jurisdicionais ou normativos. E, como lembra Zagrebelsky, “la realidad, en esa parte que no depende de nosotros y se resiste a todas nuestras concepciones e convicciones acerca de lo que debería ser y no es, esa que llamamos la ‘dura realidad’, no puede ser ignorada sob pena de convertir em fútiles nuestros pensamientos” (ZAGREBELSKY, Gustavo. La lei y su justicia - Três capítulos de justicia constitucional. Madrid: Editorial Trota, 2014. p. 13). Portanto, a não ser que se proíba toda e qualquer doação por parte de pessoas naturais (hipótese em que a igualação entre ricos e pobres se daria pela submissão de todos a uma proibição universal e absoluta), qualquer que seja o critério ou o nível de permissão de doações não eliminará, jamais, essa desigualdade no plano material. Sempre haverá pessoas - e talvez elas formem a grande maioria da nossa sociedade - que estarão em situação de desvantagem, porque desprovidas de recursos para fazer qualquer doação a partidos ou cam-panhas eleitorais, seja qual seja o valor permitido. Assim, o declarado propósito da presente demanda - de assegurar aos mais pobres o direito de fazer contri-buições para partidos e campanhas em valores iguais aos permitidos às pessoas mais ricas -, além de soar como defesa de uma situação um tanto exótica no plano fenomênico, não teria jamais o condão de eliminar ou mesmo de reduzir significativamente, no plano da realidade, a situação de vantagem das pessoas com mais recursos.

8. Aliás, relativamente ao princípio da isonomia no âmbito de compe-tições eleitorais, muito mais importante que o estabelecimento de critérios de igualação entre os doadores deve ser a preocupação de preservar a igualdade de armas entre os principais atores da disputa, que são os candidatos e os partidos políticos. A equidade na competição é, com efeito, um princípio fundamental da democracia multipartidária. Olhada a questão por esse prisma, seria ingê-nuo supor que as interferências desequilibradoras entre candidatos e partidos competidores se reduzam apenas às doações financeiras angariadas em época de disputa eleitoral. É preciso considerar, por exemplo, o altíssimo cacife político ostentado pelos partidos ocupantes dos postos de governo, nas diferentes ins-tâncias federativas, especialmente quando candidatos a reeleições, que, muito antes e independentemente do período de campanha, situam-se na privilegiada condição de assumir ou distribuir espaços de poder, de formar alianças, de pro-mover nomeações para cargos de visibilidade eleitoral, que permitem ao titular a tomada de decisões sobre distribuição de verbas a estados ou municípios, ou a celebração de convênios, ou a priorização de obras e serviços públicos, sem falar na promoção das campanhas publicitárias institucionais, ditas de prestação de contas, mas com olhos voltados para as urnas. É evidente, portanto, que o exer-cício dos postos de poder já confere ao seu titular e ao respectivo partido uma natural e significativa vantagem estratégica no plano da disputa eleitoral. Essa vantagem será ampliada ainda mais se o exercício do poder político extrapolar os limites da ética e da legitimidade jurídica, mormente com práticas ilegítimas de indução de doações financeiras.

Portanto, quando se examina a constitucionalidade das fontes de finan-ciamento, como essa relacionada às doações por pessoas jurídicas, é preciso ter cuidado para não aprofundar a desigualdade das condições de disputa eleitoral,

Page 117: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

116

Ministro Teori Zavascki

evitando criar situações que confiram aos ocupantes do poder posições ainda mais privilegiadas do que já ostentam em relação aos seus opositores políticos.

9. Em suma, não há como desconhecer que, no Brasil, já passou da hora de prover medidas no sentido de alterar esse crônico estado das coisas, em que campeiam práticas ilegítimas de arrecadação de recursos, de excessos de gastos e de corrupção política. Todavia, mostra-se uma alternativa pouco afinada com a nossa experiência histórica imaginar que a corrupção eleitoral e o abuso do poder econômico sejam produto do atual regime normativo e que isso seria razão ou pretexto suficiente para declará-lo inconstitucional, propiciando assim a volta ao regime anterior, em que se proibia o aporte de recursos por pessoa jurídica. Só por messianismo judicial se poderia afirmar que, declarando a inconstitucionalidade da norma que autoriza doações por pessoas jurídicas e, assim, retornar ao regime anterior, se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. É ilusão imaginar que isso possa ocorrer, e seria extremamente desgastante à própria imagem do Poder Judiciário alimentar na sociedade, cansada de testemunhar práticas ilegítimas, uma ilusão que não tardará em se transformar em nova desilusão.

Por outro lado, o antídoto para os gastos excessivos de campanha elei-toral não é declarar a inconstitucionalidade das fontes de financiamento, cuja eliminação formal provavelmente seria imediatamente substituída por suple-mentação informal e ilegítima, como também mostram os exemplos históricos. A solução mais plausível será a criação de limites de gastos, acompanhada de instrumentos institucionais de controle e de aplicação de sanções, em casos de excessos. E a definição dos limites adequados é questão que não encontra resposta imediata nas normas constitucionais. Cumpre à lei dispor a respeito, como, aliás, está previsto no art. 17-A da Lei 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300/2006.

Nesse domínio, assim como em relação aos limites de aportes financeiros de pessoas naturais ou de recursos próprios dos candidatos, o que há, na ver-dade, é um déficit normativo que, conforme demonstrado, não pode ser suprido no âmbito da presente ação.

É evidente, repita-se, que o marco normativo deve ser aperfeiçoado, mas não será a destruição do modelo existente, com o consequente restabelecimento de modelo anterior, que levará a esse aperfeiçoamento. A experiência comparada demonstra, no que toca às fontes de financiamento de partidos e campanhas, que o sensível e complexo empreendimento normativo está inserido necessa-riamente em contexto mais amplo e mais profundo de reforma política, espe-cialmente do sistema eleitoral, empreendimento que, por elementar imposição do sistema constitucional de democracia representativa, é do Poder Legislativo.

Isso não significa que o Poder Judiciário esteja de braços atados no com-bate à corrupção eleitoral e ao abuso do poder econômico. Muito pelo contrário, considerando, conforme reiteradamente enfatizado ao longo deste voto, que a causa principal das mazelas decorrentes da indevida intromissão do poder econômico nas questões eleitorais não está na inconstitucionalidade do marco normativo e, sim, no seu sistemático descumprimento, cabe ao Judiciário, notadamente pelo braço da Justiça Eleitoral, zelar pela efetividade do modelo existente e, se for o caso, reprimir as condutas ilegítimas, aplicando, sem ter-giversações, as consequências previstas na Constituição e nas leis, inclusive a perda do cargo e a inelegibilidade, a partidos e candidatos que se valerem abusi-vamente do poder econômico nos pleitos eleitorais.

Page 118: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

117

Ministro Teori Zavascki

É indispensável, sim, que o Legislativo cumpra sua parte, e todas as forças sociais devem ser mobilizadas para sensibilizá-lo da urgência no atendimento desse dever constitucional. Mas não há dúvida que é também importante que essas mesmas forças sociais, as entidades organizadas, os órgãos de fiscalização, o Ministério Público, empreendam um continuado esforço coletivo destinado a impor a mudança de comportamento político, para minimamente ajustá-lo às normas já existentes. É preciso, sobretudo, que os abusos do poder econômico e a corrupção política tenham severa resposta repressiva por parte do Estado, sob pena de tornar ineficaz, não só o modelo atual, mas qualquer outro que venha a substituí-lo no futuro.

10. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido. É o voto. (ADI 4.650/DF, rel. min. Luiz Fux, voto-vista do min. Teori Zavascki, j. 17-9-2015, P, DJE de 23-2-2016.)

Relativamente à arrecadação de recursos financeiros por partidos políticos, o Ministro Teori Zavascki61 observa:

1. A presente ação direta submete uma vez mais ao crivo deste Plenário tema relativo à arrecadação de recursos financeiros por partidos políticos e por candidatos a cargos eletivos, matéria de inconteste importância para a dinâmica das democracias contemporâneas.

Tal como acontece em praticamente todas as instâncias da vida coletiva nas sociedades de mercado, a presença do dinheiro na política é inevitável. Mas, por mais natural que seja, ela inspira cuidados constantes. Afinal, quando encon-tra comodidade suficiente para radicalizar sua persuasão na forma do assédio, o dinheiro se torna uma ameaça insidiosa ao funcionamento republicano da política, colocando em risco de solapamento duas características elementares do sistema de democracia representativa: a igualdade de chances na disputa pelo poder e a autenticidade da representação popular. Sabedora da relevância desses valores, a Constituição Federal firmou com eles um compromisso solene, a ser formalizado, em termos abstratos, num arranjo legislativo apto a evitar a apro-priação da política pela lógica voraz dos interesses econômicos (art. 14, § 9º), e passado a limpo, periodicamente, pelo trabalho da Justiça Eleitoral, mediante o julgamento da regularidade das contas partidárias e de campanha (art. 17, III).

No plano legislativo, a regulamentação do financiamento de campanhas admite combinações normativas bem variadas. Há desde modelos calcados em bases estritamente públicas até aqueles radicados puramente em contribuições privadas. Mas todos eles são montados a partir de estratégias normativas que partem de critérios mais ou menos iguais, mediante a fixação (a) das fontes de captação vedadas e (b) dos limites máximos de arrecadação. Pelo menos por enquanto, a legislação brasileira dá suporte a um sistema de financiamento de base mista. Além de reconhecer a todos os partidos - por direito constitucional (art. 17, § 3º) - o acesso a recursos públicos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão, a legislação permite a arrecadação de receitas privadas, desde que provenientes do próprio candidato, de pessoas físicas ou de outros candidatos e partidos.

61 Conforme Conselho Federal da OAB vs. Congresso Nacional e Presidente da República, 2015 (ADI 5.394 MC/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 12-11-2015, P, DJE de 9-11-2016).

Page 119: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

118

Ministro Teori Zavascki

Até há pouco tempo, como se sabe, não era assim. O financiamento por meio de doações de pessoas jurídicas também era admitido. Porém, no recente julgamento da ADI 4.650, este Supremo Tribunal Federal foi instado a declarar se os limites traçados nas duas leis brasileiras que tratam do assunto - a Lei 9.096/95 (lei dos partidos) e a Lei 9.504/97 (lei das eleições) - seriam suficientes para fomentar um sistema político minimamente igualitário e republicano. A resposta da Corte foi incisiva: em decisão por maioria, o Plenário considerou que a per-missividade com as doações de pessoas jurídicas, na forma como arquitetada pela legislação vigente, era problemática do ponto de vista da representação política e, por isso, seria inválida. O Tribunal também reprovou os limites de quantidade estabelecidos nas duas leis para todos os tipos de doações privadas, fossem elas fei-tas pelos candidatos a si mesmos (as chamadas autodoações), por pessoas jurídicas ou por pessoas físicas, por considerar que elas gerariam iniquidade.

Em função da abrangência do pedido então formulado, a Corte se pro-nunciou apenas sobre esses dois pontos, relativos à legitimidade dos modera-dores de origem e de quantidade estabelecidos para a captação de recursos de fontes privadas. Não houve, na ocasião, questionamentos a respeito dos meios de controle estabelecidos na legislação para o cumprimento dos limites nela desenhados.

2. Aqui, a impugnação tem por objeto justamente esta fase subsequente do modelo de financiamento político, referente aos instrumentos de controle das contas dos partidos e dos candidatos. A norma impugnada pela requerente, constante do art. 2º da Lei 13.165/15, acresceu o § 12 ao art. 28 da Lei 9.504/97, verbalizando regra de escrituração contábil que tem a seguinte literalidade:

Art. 28. (...)§ 12. Os valores transferidos pelos partidos políticos oriundos de

doações serão registrados na prestação de contas dos candidatos como transferência dos partidos e, na prestação de contas dos partidos, como transferência aos candidatos, sem individualização dos doadores. (NR)A Lei 13.165/15 positivou a mais recente das “minirreformas eleitorais”

levadas a cabo nos últimos anos pelo Congresso Nacional. Desde que as doa-ções privadas passaram a ser novamente permitidas no contexto legislativo brasileiro  - o que ocorreu a partir das eleições de 1994, sob a égide da Lei 8.713/93 - muitas foram as inovações introduzidas com a finalidade de tornar mais eficiente a fiscalização da arrecadação e dos gastos de partidos e candi-datos. Antes dessa Lei, pelo menos outros três diplomas - as Leis 11.300/06, 12.034/09 e 12.891/13 - veicularam mudanças relevantes no tocante à arrecada-ção, aos gastos e ao processo de prestação de contas eleitorais.

Entre outras novidades, essas leis (a) obrigaram instituições financeiras a identificar o CPF/CNPJ dos doadores nos extratos bancários (art. 22, § 1º, inciso II, da Lei 9.504/97); (b) estabeleceram que o uso de recursos financeiros estranhos à conta específica para pagamento de gastos de campanha implica a desaprovação das contas, podendo resultar, se comprovado abuso, até na cassação do diploma (art. 22, § 3º, da Lei 9.504/97); (c) exigiram que as doações a candidatos e partidos fossem feitas mediante recibo (art. 23, § 2º, da Lei 9.504/97); (d) discriminaram os meios de transferência admitidos para a realização de doações, sempre enfati-zando a necessidade de identificação do doador (art. 23, § 4º, da Lei 9.504/97); (e) ampliaram o rol de fontes de financiamento vedadas (art. 24 da Lei 9.504/97); (f) definiram quais os gastos eleitorais estão sujeitos a registro e aos limites fixados em lei (art. 39, § 5º, da Lei 9.096/95; e art. 26 da Lei 9.504/97); (g) instituíram a

Page 120: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

119

Ministro Teori Zavascki

obrigação de divulgação na internet de relatórios com os recursos recebidos e os gastos realizados, com identificação dos doadores e respectivos valores na presta-ção de contas final (art. 28, § 4º, da Lei 9.504/97); (h) identificaram bens e doações que estariam dispensadas de registro na prestação de contas (art. 28, § 6º, da Lei 9.504/97); e (i) estabeleceram novas regras para apuração, processamento e julga-mento das contas (art. 34, § 2º, da Lei 9.096/95; e arts. 30 e 30-A da Lei 9.504/97).

Ao lado da adoção, pela Justiça Eleitoral, do Sistema de Prestação de Contas Eletrônico (SPCE), essas mudanças permitiram um monitoramento mais completo do fluxo de movimentações financeiras das contas específicas de campanha de partidos e candidatos. Ponto-chave desta evolução legislativa está no cuidado com o registro transparente das entradas e saídas de recursos doados por particulares, mediante a exigência de emissão de recibos, extratos bancários e a identificação nominal dos responsáveis e dos beneficiados pelas doações. Esses documentos e informações são cruciais para que os técnicos da Justiça Eleitoral possam proceder ao confronto entre as doações eleitorais rece-bidas, os valores lançados nos extratos bancários e os recibos firmados pelos prestadores de serviços contratados para atuar nas campanhas. Somente por meio deste cruzamento de dados é que se faz possível esclarecer, por exemplo, se as doações são oriundas de fontes tidas pela lei como ilícitas ou se excederam o teto estabelecido.

Embora essas leis tenham propiciado avanços no controle da arrecadação e dos gastos eleitorais, elas evidentemente não solveram todas as inconsistências do sistema. Mas, ainda que não tenham sido tão satisfatórios como se poderia esperar, os resultados práticos dessas reformas foram úteis pelo menos para revelar outras fragilidades do modelo, que acabaram sendo aproveitadas para o encobrimento de possíveis irregularidades no financiamento de campanhas do conhecimento da sociedade e da Justiça Eleitoral. Trata-se de capítulo natural na crônica civilizatória de qualquer sociedade: para cada aprimoramento do sistema de controle social, a astúcia adaptativa do ilícito produz uma resposta correspondente. Isto é singularmente verdadeiro na seara eleitoral, em que a aplicação da legislação reclama constante supervisão por parte das instâncias estatais e da sociedade.

O que se verificou foi mais uma prova da aptidão que o dinheiro possui de se fazer clandestino. A partir da vigência da Lei 11.300/06, as doações a can-didatos e a comitês financeiros passaram a se submeter a regras mais rígidas de escrituração, coisa que não era exigida para doações feitas por meio dos partidos políticos. Aliás, até a superveniência da Lei 12.034/09, que inseriu um § 5º no art.  39 Lei 9.096/95, os recursos repassados por partidos políticos a candida-tos em período eleitoral nem mesmo se sujeitavam aos limites previstos na Lei 9.504/97. A permissividade com esse tipo de operação causou uma sensível alte-ração no perfil das doações particulares. Boa parcela dos repasses a candidatos passou a ser feita por intermédio dos partidos políticos, numa triangulação que encobria a identificação dos doadores originários e que, por isso mesmo, recebeu a alcunha de “doação oculta”.

O fenômeno não passou incógnito aos especialistas no tema, que deram testemunho acadêmico desta migração já nas eleições municipais de 2008:

(...) o mencionado cerco ao caixa dois e a maior contabilização de gastos e arrecadação, sem excluir a influência de alguns incrementos da Lei n. 11.300/2006 no campo das obrigações administrativas e contá-beis de partidos e candidatos, devem-se muito mais ao fator psicológico

Page 121: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

120

Ministro Teori Zavascki

advindo da pressão social, principalmente por intermédio da mídia, e do aumento da atuação do órgão de controle.

A moeda de troca da criação desse cenário foi o exaustivamente noticiado aumento das doações ocultas, mediante o expediente, já tradi-cional nas eleições norte-americanas, de utilizar o partido político como intermediário no repasse de recursos a campanhas de determinados can-didatos. De fato, ao contribuir por meio do partido, o doador fica livre de ter seu nome na relação de contribuintes apresentada à Justiça Eleitoral pelo candidato ou pelo comitê financeiro da campanha; em seu lugar aparece apenas o nome do partido. De tal forma, o nome do doador só vem a público na prestação de contas da sigla partidária, realizada anual-mente em abril. A utilização de tal modelo impede a investigação acerca da obediência aos limites de doação para pessoas físicas e jurídicas, bem como a identificação da vinculação do doador a determinado candidato.

Impressiona o aumento de tal expediente nas eleições munici-pais de 2008 em relação às de 2004. Conforme levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, em 2004, na capital paulista, as doações em nome de partidos e candidatos ficaram em apenas 9,28% da arrecadação decla-rada por comitês e candidatos; já em 2008, 53% das doações foram feitas em nome dos partidos. O fenômeno teve repercussão nacional, sendo utilizado por pelo menos 17 das 26 campanhas vitoriosas nas capitais. (...) (LORENCINI, Bruno César. O financiamento das campanhas elei-torais municipais em 2008. In: CAGGIANO, Monica Herman S. (org.). Comportamento eleitoral. Barueri/SP: Minha editora; Centro de estudos políticos e sociais, 2010. p. 111-112).O diagnóstico dessa tendência de incremento do número de “doações

ocultas” levou o Tribunal Superior Eleitoral a debater uma solução para atenuar o problema. Ela veio a ser encontrada pouco antes das eleições de 2014, e foi for-malizada nos termos do art. 26, § 3º, da Resolução 23.406/14, que passou a exigir que as doações entre partidos, comitês e candidatos fossem acompanhadas do registro do doador primitivo:

Art. 26. As doações entre partidos políticos, comitês financeiros e candidatos deverão ser realizadas mediante recibo eleitoral e não estarão sujeitas aos limites impostos nos incisos I e II do art. 25.

(...)§ 3º As doações referidas no caput devem identificar o CPF ou o

CNPJ do doador originário, devendo ser emitido o respectivo recibo elei-toral para cada doação.A determinação do Tribunal Superior Eleitoral esclareceu que todos os

recursos recebidos a título de doação, inclusive aqueles repassados por inter-médio de partidos, comitês ou outros candidatos, deveriam identificar os dados do responsável originário pelo depósito. Nada mais fez do que proclamar que o regime de registro contábil das doações de origem privada era um só, devendo ser aplicado tanto para doações diretas a candidatos como para aquelas realiza-das de modo indireto.

Todavia, na contramão do que havia sido estabelecido para as eleições de 2014, o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.165/15, aqui impugnada, no que adicionou o § 12 ao art. 28 da Lei 9.504/97, eliminando o registro indivi-dualizado dos doadores nas transferências realizadas por partidos em benefício dos candidatos. Por essa nova regra, as doações serão designadas tão somente

Page 122: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

121

Ministro Teori Zavascki

pelas rubricas “transferências dos partidos” ou “transferências aos candidatos”, conforme o lançamento se dê, respectivamente, nas contas de candidatos ou partidos.

Na leitura da entidade requerente, este dispositivo é inconstitucional, porque “viola o princípio da transparência e o princípio da moralidade, e favo-rece, ademais, a corrupção, dificultando o rastreamento das doações eleitorais”, e por isso deve ser cautelarmente suspenso.

3. Não há como recusar plausibilidade ao argumento. Embora existam inúmeras controvérsias a respeito de qual o modelo de financiamento mais apropriado para afastar a influência predatória do poder econômico sobre as eleições - como ficou mais do que claro com as discussões que se estabelece-ram quando do julgamento da ADI 4.650 - um aspecto do debate parece livre de maiores disceptações: há necessidade de dar maior efetividade ao sistema de controle de arrecadação de recursos por partidos e candidatos.

No voto por mim proferido neste precedente fiz questão de frisar isso, que as desavenças experimentadas no cenário político brasileiro se devem muito mais às falhas de aplicação do modelo vigente do que à sua arquitetura norma-tiva propriamente dita. Peço vênia para transcrever trecho do que eu então pon-derava, e que agora reitero:

(...)Não há dúvida que, nesse contexto, é de importância fundamental

o estabelecimento de um adequado marco normativo. Mas, somente ele não é suficiente para coibir as más relações entre política e dinheiro. Há, sobretudo, a questão da conduta. É preciso que as normas sejam efetiva-mente cumpridas e a punição seja efetivamente aplicada, se for o caso. Talvez aqui, mais do que na precariedade do marco normativo, esteja a fonte principal dos abusos do poder econômico e da corrupção política: no desrespeito das normas e na impunidade dos responsáveis.

(...) não há como desconhecer que, no Brasil, já passou da hora de prover medidas no sentido de alterar esse crônico estado das coi-sas, em que campeiam práticas ilegítimas de arrecadação de recursos, de excessos de gastos e de corrupção política. Todavia, mostra-se uma alternativa pouco afinada com a nossa experiência histórica imaginar que a corrupção eleitoral e o abuso do poder econômico sejam produto do atual regime normativo e que isso seria razão ou pretexto suficiente para declará-lo inconstitucional, propiciando assim a volta ao regime anterior, em que se proibia o aporte de recursos por pessoa jurídica. Só por messianismo judicial se poderia afirmar que, declarando a incons-titucionalidade da norma que autoriza doações por pessoas jurídicas e, assim, retornar ao regime anterior, se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. É ilu-são imaginar que isso possa ocorrer, e seria extremamente desgastante à própria imagem do Poder Judiciário alimentar na sociedade, cansada de testemunhar práticas ilegítimas, uma ilusão que não tardará em se trans-formar em nova desilusão.

Por outro lado, o antídoto para os gastos excessivos de campanha eleitoral não é declarar a inconstitucionalidade das fontes de financia-mento, cuja eliminação formal provavelmente seria imediatamente subs-tituída por suplementação informal e ilegítima, como também mostram os exemplos históricos. A solução mais plausível será a criação de limites

Page 123: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

122

Ministro Teori Zavascki

de gastos, acompanhada de instrumentos institucionais de controle e de aplicação de sanções, em casos de excessos. E a definição dos limites ade-quados é questão que não encontra resposta imediata nas normas cons-titucionais. Cumpre à lei dispor a respeito, como, aliás, está previsto no art. 17-A da Lei 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300/2006.

Nesse domínio, assim como em relação aos limites de aportes financeiros de pessoas naturais ou de recursos próprios dos candidatos, o que há, na verdade, é um déficit normativo que, conforme demonstrado, não pode ser suprido no âmbito da presente ação.

É evidente, repita-se, que o marco normativo deve ser aperfeiçoado, mas não será a destruição do modelo existente, com o consequente restabelecimento de modelo anterior, que levará a esse aperfeiçoamento. A experiência comparada demonstra, no que toca às fontes de financiamento de partidos e campanhas, que o sensível e complexo empreendimento normativo está inserido necessariamente em contexto mais amplo e mais profundo de reforma política, especial-mente do sistema eleitoral, empreendimento que, por elementar imposi-ção do sistema constitucional de democracia representativa, é do Poder Legislativo.

Isso não significa que o Poder Judiciário esteja de braços atados no combate à corrupção eleitoral e ao abuso do poder econômico. Muito pelo contrário, considerando, conforme reiteradamente enfatizado ao longo deste voto, que a causa principal das mazelas decorrentes da inde-vida intromissão do poder econômico nas questões eleitorais não está na inconstitucionalidade do marco normativo e, sim, no seu sistemático descumprimento, cabe ao Judiciário, notadamente pelo braço da Justiça Eleitoral, zelar pela efetividade do modelo existente e, se for o caso, repri-mir as condutas ilegítimas, aplicando, sem tergiversações, as consequ-ências previstas na Constituição e nas leis, inclusive a perda do cargo e a inelegibilidade, a partidos e candidatos que se valerem abusivamente do poder econômico nos pleitos eleitorais.

É indispensável, sim, que o Legislativo cumpra sua parte, e todas as forças sociais devem ser mobilizadas para sensibilizá-lo da urgência no atendimento desse dever constitucional. Mas não há dúvida que é também importante que essas mesmas forças sociais, as entidades organizadas, os órgãos de fiscalização, o Ministério Público, empreendam um continuado esforço coletivo destinado a impor a mudança de comportamento político, para minimamente ajustá-lo às normas já exis-tentes. É preciso, sobretudo, que os abusos do poder econômico e a cor-rupção política tenham severa resposta repressiva por parte do Estado, sob pena de tornar ineficaz, não só o modelo atual, mas qualquer outro que venha a substituí-lo no futuro.Para alcançar a efetividade esperada, é indispensável imprimir trans-

parência às contas eleitorais. Sem as informações necessárias, dentre elas a identificação dos particulares que contribuíram originariamente para legen-das e candidatos, o processo de prestação de contas perde sua capacidade de documentar “a real movimentação financeira, os dispêndios e recursos apli-cados nas campanhas eleitorais” (art. 34, caput, da Lei 9.096/95), e se obstrui o cumprimento, pela Justiça Eleitoral, da relevantíssima competência cons-titucional (art.  17, III, da CF) de fiscalizar se o desenvolvimento da atividade

Page 124: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

123

Ministro Teori Zavascki

político-partidária realmente assegura “a autenticidade do sistema representa-tivo” (art. 1º, caput, da Lei 9.096/95).

A identificação fidedigna dos particulares responsáveis pelos aportes financeiros é informação essencial para que se possa constatar se as doações procedem, de fato, de fontes lícitas e se observaram os limites de valor previstos no art. 23 da Lei 9.504/97, como observa Denise Schlickmann, em comentário à Resolução 23.406/14, do TSE:

O objetivo da inclusão é aferir, efetivamente, a fonte das doações que financiam as campanhas eleitorais, seus doadores originários, o que permite - além de conhecer as verdadeiras fontes de financiamento das campanhas - aferir o cumprimento das disposições legais que exigem a observância das fontes lícitas em campanha eleitoral e os limites fixados pela mesma Lei das Eleições. Para tanto, é necessária a emissão de recibo eleitoral para cada doador originário, de forma a permitir, quando da doação ao beneficiário final, a identificação de todos os doadores que compuseram a origem do valor doado.

Com essa providência - inovadora e de efetivo cumprimento das disposições legais, quer pelos doadores de campanha eleitoral, quer pela Justiça Eleitoral, que tem o dever de aferir sua regularidade - o processo eleitoral resta fortalecido e mais transparente, permitindo à sociedade conhecer quem são, efetivamente, os financiadores das campanhas elei-torais no Brasil. (SCHLICKMANN, Denise Goulart. Financiamento de campanhas eleitorais. 7. ed. Curitiba: Juruá, 2014. p. 136)Portanto, ao sonegar o conhecimento de uma informação relevante à

Justiça Eleitoral, o conteúdo do § 12 do art. 28 da Lei 9.504/97, aqui atacado, já aparenta ser acintosamente contraditório com o preceito do art. 17, III, da Constituição Federal, pois, quando menos, ele retira da jurisdição eleitoral meios para exercer de forma realista o controle a posteriori das contas de par-tidos e candidatos. Somente isso já é substancioso o bastante para tornar a tese subscrita na inicial digna de receptividade por parte desse Tribunal.

4. Mas a impropriedade do preceito avulta para muito além isso. O retrocesso que ele representa é bem maior do que o já significativo desfalque instrumental no processo de prestação de contas. Na verdade, ele enseja o ames-quinhamento das condições ideais para a fruição de uma experiência eleitoral verdadeiramente democrática.

Realmente, no modelo representativo praticado no Brasil e na maioria das democracias ocidentais, os agentes eleitos possuem independência para o exercício do mandato, não se vinculando, nas suas atividades políticas, ao cum-primento de instruções daqueles que os elegeram e, a rigor, nem mesmo às próprias promessas feitas em campanha. Não se adota, portanto, a disciplina do mandato imperativo, em que a representação pode ser revogada pelos eleito-res, mas um modelo de responsabilidade política retrospectiva, em que as ações daqueles que foram escolhidos pelo sufrágio popular são julgadas somente ao final do mandato, quando se expõem novamente à aprovação das urnas.

Se é certo que os mandatários políticos devem desfrutar de indepen-dência para que possam cumprir o múnus público da representação - e a Constituição Federal garante isso, embora não explicitamente - em contrapar-tida exige-se deles um senso de responsabilidade cívica que vai além da manu-tenção do decoro específico do cargo em que está investido, contemplando a observância de outros deveres inerentes ao exercício de toda e qualquer função

Page 125: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

124

Ministro Teori Zavascki

pública, dentre os quais o de dar satisfações (“informações-respostas”) à socie-dade pelos atos praticados em seu nome.

Como assentado em ciência política, esse mecanismo de informações--respostas é indispensável para garantir a realização de um efetivo controle social sobre a política e do financiamento eleitoral, como observou Vitor de Moraes Peixoto nesta síntese:

Para a análise que aqui se propõe, os efeitos sobre a primeira esfera (a democrática) são o ponto central. Faz-se, contudo, necessária uma fle-xibilização do conceito de accountability, pois, considerar-se-á não ape-nas o controle sobre as ações ou omissões ilícitas de agentes (ou agências), mas também o controle e produção de informações acerca dos mandatá-rios e dos pleiteantes. Nesse quesito, as agências estatais responsáveis pela “accountability horizontal” poderiam cumprir um papel para além de sua capacidade punitiva, qual seja, a de produzir “informações-respos-tas” necessárias para a efetivação da “accountability vertical”. Por accoun-tability vertical entende-se a capacidade do cidadão em controlar seu representante e, obviamente, as eleições são o seu principal instrumento.

Dotar o sistema de financiamento com recursos que ensejam maior answerability (capacidade de produzir “informações-respostas” acerca das ações dos mandatários, como das pretensões dos candidatos, por exemplo) seria uma forma de prevenir possíveis futuras punições.

Como afirmaram Cheibub e Przeworski (1997, p. 52), “A respon-sabilidade política é um mecanismo retrospectivo, no sentido de que as ações dos governantes são julgadas a posteriori, em termos dos efeitos que causam”. Por se consumarem, necessariamente, a posteriori, muitas des-tas ações produzem consequências custosas para sociedade (mesmo com a responsabilização dos agentes), que por outros caminhos poderiam ter sido evitadas caso houvesse instituições que dotassem o sistema com mais “informações-respostas”. Em outras palavras, answerability é um importante insumo para a accountability vertical (Mainwaring, 2003), no entanto, a antecipação daquela pode até mesmo evitar situações desagra-dáveis em que esta seja necessária no seu sentido negativo.

O ponto central que aqui se defende é que a revelação de infor-mações sobre os doadores e quantias doadas não interessa somente ao controle que as agências fiscalizadoras exercem a posteriori (após as elei-ções). Estas informações podem ser cruciais para os próprios eleitores no momento da tomada de decisão do voto. A identificação dos financiadores das campanhas durante o período eleitoral incrementaria o rol de “sinais” disponível aos eleitores, antecipando até mesmo prováveis punições que seriam somente possíveis quatro anos mais tarde. Em resumo: se as infor-mações estiverem disponíveis aos eleitores durante a campanha, poderão atuar como os “sinais” (simple cues) que substituem a informação com-pleta e conferem maior previsibilidade ao sistema. (PEIXOTO, Vitor de Moraes. Financiamento de campanhas: o Brasil em perspectiva compa-rada. Perspectivas, São Paulo, v. 35, jan./jun. 2009, p. 102)As informações sobre as doações de particulares a candidatos e a partidos

não interessam, pois, apenas às instâncias estatais responsáveis pelo controle da regularidade das contas de campanha, mas à sociedade como um todo. E esses dados possuem valor não apenas após a realização das eleições, na forma de um diagnóstico final da arrecadação e dos gastos realizados, mas sobretudo antes

Page 126: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

125

Ministro Teori Zavascki

disso, quando os cidadãos ainda podem alterar a sua opção de voto. A divulga-ção nesse momento é essencial para habilitar o eleitor a fazer uma prognose mais realista da confiabilidade das promessas manifestadas em campanha. Afinal, o conhecimento dos nomes dos doadores ilumina conexões políticas facilmente subtraídas do público nos discursos de campanha, denunciando a maior ou menor propensão dos candidatos e partidos a abandonar suas convicções ide-ológicas em posturas de pragmatismo político questionáveis, como o fisiolo-gismo, que, se conhecidas de antemão, poderiam sofrer a rejeição do eleitorado.

É necessário garantir ao eleitor a possibilidade de fazer esse juízo antes do momento da escolha nas urnas. Foi por isso que a própria Lei 13.165/15 conferiu a seguinte redação ao § 4º do art. 28 da Lei das Eleições, obrigando a divulgação, durante a campanha eleitoral, dos recursos recebidos por partidos, coligações e candidatos (os relatórios parciais, de que falavam as redações ante-riores desse mesmo dispositivo):

Art. 28. A prestação de contas será feita: (...)§ 4º Os partidos políticos, as coligações e os candidatos são obri-

gados, durante as campanhas eleitorais, a divulgar em sítio criado pela Justiça Eleitoral para esse fim na rede mundial de computadores (inter-net): (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015)

I – os recursos em dinheiro recebidos para financiamento de sua campanha eleitoral, em até 72 (setenta e duas) horas de seu recebimento; (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015)

II – no dia 15 de setembro, relatório discriminando as transferên-cias do Fundo Partidário, os recursos em dinheiro e os estimáveis em dinheiro recebidos, bem como os gastos realizados. (Redação dada pela Lei n 13.165, de 2015) (...)

§ 7º As informações sobre os recursos recebidos a que se refere o § 4º deverão ser divulgadas com a indicação dos nomes, do CPF ou CNPJ dos doadores e dos respectivos valores doados. (Incluído pela Lei n. 13.165, de 2015)O esclarecimento público dessa realidade traz vantagens evidentes para a

democracia brasileira. Num primeiro plano, qualifica o exercício da cidadania, permitindo uma decisão de voto melhor informada, já que confere ao eleitor um elemento a mais para avaliar a seriedade das propostas de campanha. A divulga-ção de informações sobre a origem dos recursos recebidos por partidos também capacita a sociedade civil, inclusive aqueles que concorrem entre si na disputa eleitoral, a cooperar com as instâncias estatais na verificação da legitimidade do processo eleitoral, fortalecendo, assim, o controle social sobre a atividade polí-tico-partidária. Por fim, o acesso a esses dados ainda propicia o aperfeiçoamento da própria política legislativa de combate à corrupção eleitoral, ajudando a denunciar as fragilidades do modelo e a inspirar propostas de correção futuras.

A ADI 4.650, a audiência pública realizada a seu propósito pelo Min. Luiz Fux e os debates que ela produziu nos meios de informação são exemplos categó-ricos disso. Sem as informações hoje conhecidas a respeito dos maiores doadores de campanhas no Brasil, a ação direta talvez não tivesse tido o mesmo destino. Talvez não tivesse sido nem mesmo ajuizada.

5. A busca pela “verdade eleitoral”, tanto antes como após as eleições, depende, portanto, de transparência. Este conceito é mais do que um subprin-cípio ou uma figura parcelar do princípio da publicidade. Instrumento sine qua non para o acesso ao direito fundamental à informação, a transparência

Page 127: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

126

Ministro Teori Zavascki

constitui verdadeira condição da realização da democracia material, uma polí-tica pública de governança exigível de toda e qualquer instância da administra-ção pública brasileira, nos termos da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), mas que se impõe, de modo especialmente intenso, à regulamentação das elei-ções no país, por força da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003 e internalizada definitivamente ao ordenamento nacional, com força de lei ordinária, pelo Decreto Presidencial 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

O item 3 do artigo 7º determina o seguinte:3. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medi-

das legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financiamento de partidos políticos.A mensagem normativa do ordenamento brasileiro em favor da trans-

parência é tão contundente que transcende a governança pública, alcançando também as pessoas jurídicas que interagem com a Administração Pública brasi-leira, entre eles as associações de pessoas, como indica a Lei 12.846/13 ao carac-terizar como lesivos à administração pública nacional ou estrangeira inclusive os seguintes atos:

Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pes-soas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

(...)III – comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou

jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; Embora não seja estritamente aplicável à seara eleitoral, este dispositivo

obvia a perplexidade que a norma impugnada na presente ação direta provoca, pois o que ela permite é justamente que doadores de campanha ocultem ou dis-simulem seus interesses em prejuízo do processo eleitoral. Ao determinar que as doações feitas a candidatos por intermédio de partidos sejam registradas sem a identificação dos doadores originários, a norma institui uma metodologia con-tábil diversionista, estabelecendo uma verdadeira “cortina de fumaça” sobre as declarações de campanha e positivando um controle de fantasia. Pior, premia o comportamento elusivo dos participantes do processo eleitoral e dos respon-sáveis pela administração dos gastos de campanha, reverenciando o patrocínio eleitoral dissimulado. Isto sem dúvida alguma atenta contra todo um bloco de princípios constitucionais que estão na medula do sistema democrático de representação popular, como o princípio republicano, o da moralidade e o da publicidade.

6. Não há qualquer justificativa razoável que milite em favor da oculta-ção contábil dos doadores originários. Não custa lembrar que, além das doa-ções de particulares ou de partidos, a legislação eleitoral permite o aporte às campanhas eleitorais (art. 44, III, da Lei 9.096/95) de um percentual dos valores recebidos pelos partidos políticos do Fundo Especial de Assistência Financeira

Page 128: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

127

Ministro Teori Zavascki

aos Partidos Políticos ou somente Fundo Partidário. Mas, diante da natureza pública destes recursos, a Lei dos Partidos Políticos exige a discriminação deta-lhada da sua aplicação (art. 44, § 1º, da Lei 9.096/95), inclusive pela identificação dos destinatários, quando da apresentação do balanço:

Art. 33. Os balanços devem conter, entre outros, os seguintes itens:I – discriminação dos valores e destinação dos recursos oriundos

do fundo partidário;II – origem e valor das contribuições e doações;III – despesas de caráter eleitoral, com a especificação e compro-

vação dos gastos com programas no rádio e televisão, comitês, propa-ganda, publicações, comícios, e demais atividades de campanha;

IV – discriminação detalhada das receitas e despesas.Mutatis mutandis, o que se exige em relação às doações feitas por par-

ticulares a partidos é o mesmo: que se identifique o seu destinatário final, para fins de cumprimento dos demais limites e vedações da Lei 9.504/97. Daí por que não procede aquilo que foi sustentado nas informações prestadas pelo Senado Federal, de que o § 12 do art. 28 da Lei 9.504/97 teria objetivado a mera simpli-ficação das contas eleitorais. Como visto, o registro dos doadores originários segue a mesma intuição que já prevalece quanto a outras transferências financei-ras dos partidos políticos, e nunca houve quem dissesse que isso impediu quem quer que fosse de prestar contas à Justiça Eleitoral.

Esta, aliás, também parece ser a razão pela qual a Justiça Eleitoral, em boa hora, se adiantou em produzir uma regulamentação (o art. 26, § 3º, da Resolução 23.406/14) que esclarecia a necessidade de declinação do nome dos doadores originários, nos casos de transferências entre partidos, candidatos e comitês. Por tudo o que se mostrou aqui, fica claro que a Resolução apenas incorporou uma linguagem de transparência que, além de já presente em outras passagens da própria legislação eleitoral, é assente em diferentes documentos normati-vos de nosso ordenamento, pelo que não há que se cogitar de abuso de função regulamentar.

Por derradeiro, é equivocado pensar que a divulgação dos nomes daque-les que contribuem com candidatos por intermédio de partidos possa configu-rar afronta aos direitos de privacidade e de expressão dos doadores, ou mesmo que a publicização da transferência produza efeitos inibitórios relevantes sobre a participação política destes últimos. Como já se disse, essas informações são relevantes para a sociedade como todo. Ademais, a legislação brasileira oferece outras possibilidades de apoiamento não financeiro além do voto, que não estão sujeitas a contabilização, dentre as quais as seguintes:

Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei. (Redação dada pela Lei 12.034, de 2009):

(...)§ 7º O limite previsto no § 1º não se aplica a doações estimáveis

em dinheiro relativas à utilização de bens móveis ou imóveis de proprie-dade do doador, desde que o valor estimado não ultrapasse R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). (Redação dada pela Lei 13.165, de 2015)

(...)Art. 27. Qualquer eleitor poderá realizar gastos, em apoio a can-

didato de sua preferência, até a quantia equivalente a um mil UFIR, não sujeitos a contabilização, desde que não reembolsados.

Page 129: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

128

Ministro Teori Zavascki

E, como bem lembrado pelo Procurador-Geral da República em seu parecer, nem mesmo a Suprema Corte americana considerou que a liberdade de expressão pudesse constituir objeção relevante à divulgação dos nomes dos doadores de campanha:

No conhecido julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos conhecido como Citizens United vs. Federal Communications Comission, o tema da divulgação (disclosure) de doadores em campanhas e atos de cunho eleitoral foi abordado. Considerou-se ali até outro ângulo, não abordado desta ação: o de que a obrigatoriedade de revelação dos doado-res de candidatos poderia pôr em risco o direito à liberdade de expressão, por gerar risco de retaliações e ameaças contra aqueles. O argumento foi rejeitado, com o fundamento de que o dever de transparência pode cau-sar ônus à habilidade de o cidadão expressar-se, mas não impõe limites indevidos a atividades eleitorais nem proíbe ninguém de se expressar. Ademais, esse dever estaria justificado por um interesse público sufi-cientemente importante, ou seja, o de fornecer ao eleitorado informação sobre as fontes de gastos eleitorais e permitir-lhe decisões informadas no espaço público.Por tudo o que se vem de expor, é inevitável a conclusão de que a parte

final do § 12 do art. 38 da Lei 9.504/97, acrescentado pela Lei 13.165/15, suprime transparência do processo eleitoral, frustrando o exercício adequado das fun-ções constitucionais da Justiça Eleitoral e impedindo que o eleitor exerça, com pleno esclarecimento, seu direito de escolha dos representantes políticos, o que atenta contra a arquitetura republicana e a inspiração democrática que a Constituição Federal imprimiu ao Estado brasileiro.

Estes motivos são mais do que suficientes para dar respaldo à plausibi-lidade do que sustentado na inicial e - ao lado da proximidade do ciclo elei-toral de 2016, bem assim da necessidade de prover maior segurança jurídica à regulamentação do sufrágio pelo Tribunal Superior Eleitoral (art. 105 da Lei 9.504/97) - caracterizam situação de prioridade excepcional que autorizam o Supremo Tribunal Federal a deferir a cautelar nos termos em que ela foi pedida.

7. Pelo exposto, acolho o pedido de cautelar deduzido na inicial para sus-pender, até o julgamento final desta ação, a eficácia da expressão “sem individu-alização dos doadores”, constante da parte final do § 12 do art. 28 da Lei federal 9.504/97, acrescentado pela Lei 13.165/15.

Dispensável enfatizar que a presente medida cautelar alcança doações relativas às eleições de 2016, sendo impertinente a invocação do princípio da anualidade eleitoral de que trata o art. 16 da Constituição. De qualquer modo, para afastar qualquer dúvida a respeito, proponho, com base no § 1º do art. 11 da Lei 9.868/99, que se confira à decisão eficácia ex tunc.

É o voto. (ADI 5.394 MC/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 12-11-2015, P, DJE de 9-11-2016.)

Page 130: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

129

Ministro Teori Zavascki

2. TEORI ZAVASCKI, O ESTADO DE DIREITO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O Estado de Direito tem sua expressão mais básica na ideia de que todos se encontram submetidos ao império do direito (Rule of Law). Do ponto de vista da organização administrativa do Estado, essa exigência é traduzida pelo prin-cípio da legalidade.

Em sua passagem pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Teori teve a oportunidade de enfrentar casos da mais alta importância, concernentes às relações da Administração Pública no Estado de Direito. Em alguns deles, inclusive, a própria ideia de legalidade foi analisada, em função de outros prin-cípios fundamentais do Estado de Direito.

2.1 Concurso público

O primeiro caso selecionado diz respeito à relação entre o princípio da legalidade e a teoria do fato consumado em se tratando do ingresso no serviço público. Em Araújo62, o Ministro Teori provocou e liderou a Suprema Corte nos seguintes termos:

Há, na situação aqui examinada, o confronto de duas ordens de valores, que, por incompatíveis entre si, devem ser sopesadas para que se defina qual delas merece prevalecer. De um lado, há o interesse individual da candidata em manter o cargo público que, embora obtido sem aprovação em concurso público regular, já estava sendo exercido, por força de liminar, há mais de sete anos à época do acórdão recorrido. De outro lado, tracionando em sentido oposto, está o interesse público de dar cumprimento ao dispositivo constitucional segundo o qual “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação pré-via em concurso público” (art. 37, II), dispositivo esse que, como se sabe, dá concretude a outros princípios da administração pública, especialmente o da impessoalidade, da moralidade e da eficiência. A quebra da exigência de con-curso não deixa de representar, ainda, severo comprometimento do princípio da igualdade, em matéria de acesso aos cargos públicos.

2. Em casos dessa natureza, a jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal é a de dar prevalência à estrita observância das normas consti-tucionais e ao interesse público.

E prossegue, depois de dialogar amplamente com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

É clara, portanto, a jurisprudência do STF a respeito dessa questão: sopesando os valores e interesses em conflito, faz preponderar, sobre o interesse individual do candidato, advogando a proteção da confiança legítima, o peso

62 Cf. Rio Grande do Norte vs. Araújo, 2014 (RE 608.482/RN, rel. min. Teori Zavascki, j. 7-8-2014, P, DJE de 29-10-2014).

Page 131: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

130

Ministro Teori Zavascki

maior do interesse público na manutenção dos elevados valores jurídicos que, de outra forma, ficariam sacrificados.

É realmente difícil, em face das disposições constitucionais que regem o acesso a cargos públicos, justificar a manutenção da situação pretendida pela recorrida. Não se trata, sequer, de considerar o argumento da boa-fé ou o princípio, a ela associado, da proteção da confiança legítima do administrado. Esse argumento é cabível quando, por ato de iniciativa da própria Administração, decorrente de equivocada interpretação da lei ou dos fatos, o servidor se vê alçado a determinada condição jurídica ou vê incorporada ao seu patrimônio funcional determinada vantagem, fazendo com que, por essas peculiares cir-cunstâncias, provoque em seu íntimo uma natural e justificável convicção de que se trata de um status ou de uma vantagem legítima. Por isso mesmo, even-tual superveniente constatação da ilegitimidade desse status ou dessa vantagem caracteriza, certamente, comprometimento da boa-fé ou da confiança legítima provocada pelo primitivo ato da administração, o que pode autorizar, ainda que em nome do “fato consumado”, a manutenção do status quo, ou, pelo menos, a dispensa de restituição de valores. Isso ocorre, todavia, em casos restritos, mar-cados pela excepcionalidade.

É completamente diferente, entretanto, a situação dos autos, em que a vantagem obtida - ou seja, a nomeação e posse em cargo público - se deu, não por iniciativa da Administração, mas por provocação do próprio servidor e contra a vontade da Administração, que, embora manifestando permanente resistência no plano processual, outra alternativa não tinha senão a de cumprir a ordem judicial que deferiu o pedido. Ora, considerando o regime próprio da execução provisória das decisões judiciais - que, como se sabe, é fundada em títulos marcados pela precariedade e pela revogabilidade a qualquer tempo, operando, nesse último caso, por força de lei, automático retorno da situação jurídica ao status quo ante -, não faz sentido pretender invocar os princípios da segurança jurídica ou da proteção da confiança legítima nos atos administrati-vos. Pelo contrário: o que se deve considerar é que o beneficiário da medida judi-cial de natureza precária não desconhecia, porque isso decorre de lei expressa, a natureza provisória e revogável dessa espécie de provimento, cuja execução se dá sob sua inteira responsabilidade e cuja revogação acarreta automático efeito ex tunc, sem aptidão alguma, consequentemente, para conferir segurança ou estabilidade à situação jurídica a que se refere.

A propósito, lembra o Ministro Teori expressamente a natureza das deci-sões provisórias - que, como o próprio nome indica, não são capazes de induzir expectativa legítima na respectiva manutenção:

Com efeito, é decorrência natural do regime das medidas cautelares antecipatórias que a sua concessão se cumpra sob risco e responsabilidade de quem as requer, que a sua natureza é precária e que a sua revogação opera auto-máticos efeitos ex tunc. Em se tratando de mandado de segurança, há até mesmo súmula do STF a respeito (Súmula 405: “Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”. A matéria tem, atualmente, disciplina legal expressa, aplicável a todas as medidas antecipató-rias, sujeitas que estão ao mesmo regime da execução provisória (CPC, art. 273, § 3º). Isso significa que a elas se aplicam as normas do art. 475-O do Código: o

Page 132: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

131

Ministro Teori Zavascki

seu cumprimento corre por conta e responsabilidade do requerente (inciso I), que, portanto, tem consciência dos riscos inerentes; e, se a decisão for revogada, “ficam sem efeito”, “restituindo-se as partes ao estado anterior” (inciso II). O mesmo ocorre em relação às medidas cautelares, cuja revogação impõe o retorno das partes ao status quo ante, ficando o requerente responsável pelos danos oriundos da indevida execução da medida (art. 811 do CPC). (...)

(...)O que se quer realçar, com essa digressão sobre a natureza dos provi-

mentos cautelares e da execução provisória das sentenças, é que não há suporte lógico ou teleológico para, em relação aos efeitos de sua efetivação, pretender evitar o retorno ao status quo ante invocando o princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança legítima.

E conclui:

Se nem esses princípios podem, aqui, ser contrapostos aos que orientam o sistema constitucional de acesso aos cargos públicos, o que resta como fun-damento para sustentar a conclusão do acórdão recorrido é, apenas, o interesse individual de manter o cargo. Ora, esse interesse da recorrida não tem aptidão para justificar o desatendimento do superior interesse público no cumprimento das normas constitucionais. Aliás, a esse interesse individual se opõe, desde logo e com manifesta supremacia, até mesmo outro interesse particular de mesma natureza, daquele candidato que, tendo se submetido e obtido aprovação no concurso, foi, no entanto, alijado do cargo, que acabou ocupado por outro con-corrente sem observância das exigências constitucionais. (RE 608.482/RN, rel. min. Teori Zavascki, j. 7-8-2014, P, DJE de 29-10-2014.)

2.2 Vencimentos dos servidores públicos

O segundo tema diz respeito à acumulação de vantagens no serviço público, especificamente no que tange ao conhecido problema da inexistência de direito adquirido a regime jurídico e à combinação de regimes. Em Faria63, o Ministro Teori assim analisou a questão:

No caso, a pretensão deduzida é exatamente esta: de acumular, no cargo de magistrado, vantagem própria de outro cargo, formando assim um regime híbrido, de caráter individual, mediante a acumulação de vantagens remunera-tórias dos dois, o que a Constituição veda expressamente. O direito adquirido à incorporação dos “quintos”, que não se nega, deve ser exercido nos termos em que foi formado e sob o regime jurídico em que foi adquirido. Não se mostra viável, constitucionalmente, a pretensão aqui deduzida de pinçar tal direito e isolá-lo da sua relação jurídica original, a fim de transferir o seu exercício, de modo separado, para o âmbito de outra relação estatutária, cuja acumulação é proibida.

6. O voto, por isso, é pelo provimento parcial do recurso, nos mesmos limites adotados pelo Tribunal no julgamento de caso análogo (AI 410.946, já referido), cuja conclusão foi dar provimento parcial para considerar:

63 Cf. União vs. Faria, 2013 (RE 587.371/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 14-11-2013, P, DJE de 23-6-2014).

Page 133: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

132

Ministro Teori Zavascki

1) a inexistência de direito adquirido do ora agravado em con-tinuar recebendo os quintos incorporados, após a mudança de regime jurídico;

2) preservados, no entanto, os valores da incorporação já perce-bidos pelo recorrido, em respeito ao princípio da boa-fé, na linha dos precedentes da Segunda Turma no RE 122.202, Min. Francisco Rezek, unânime, DJ de 8-4-1994; no RE 341.732 AgR, rel. Min. Carlos Velloso, unânime, DJ de 1º-7-2005, citados pelo Min. Gilmar Mendes; e ainda com apoio em julgado mais recente deste Plenário no MS 26.085, rel. Min. Cármen Lúcia, unânime, DJE de 13-6-2008. (RE 587.371/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 14-11-2013, P, DJE de 23-6-2014.)

2.3 Pensão especial para viúva de prefeito

O terceiro assunto analisado concerne à convivência entre o princípio da legalidade e o da moralidade. O palco para seu exame foi um caso envolvendo a concessão de pensão especial para viúva de prefeito: o caso Monteiro, julgado em 2013 pelo STF64.

A questão está assim apresentada no voto do Ministro Teori Zavascki:

Trata-se de recursos extraordinários interpostos pelos demandados em ação civil pública movida pelo Ministério Público visando a anular a Lei Municipal 825/86, do Município de Porciúncula (RJ), que concedeu a viúva de ex-Prefeito falecido no exercício do mandato pensão vitalícia correspondente a 30% dos proventos que percebia o falecido. Pede-se na ação, também, a conde-nação de restituir os valores pagos. São demandados e ora recorrentes o Prefeito que sancionou a lei, os vereadores que votaram pela sua aprovação e a viúva bene-ficiada. O pedido foi julgado procedente, ao fundamento de que a referida lei não tem natureza de norma geral e abstrata, tendo criado um privilégio sem base legal, daí porque se trata de um ato “imoral”. Os recursos extraordinários vêm fundados na alegada ofensa à Constituição, especificamente ao art. 5º, XXXVI (“A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”), ao art. 29, VIII (“O Município reger-se-á por lei orgânica (...) atendidos (...) os seguintes pre-ceitos: VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município”), ao art. 102, I, a (“Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) I - processar e julgar originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”) e ao art. 129, III (“São funções institucionais do Ministério Público: (...) III - promover o inqué-rito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público, do meio j. ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”).

64 Cf. Monteiro vs. Ministério Público do Rio de Janeiro, 2013 (RE 405.386/RJ, rel. min. Teori Zavascki, j. 26-2-2013, 2ª T, DJE de 25-3-2013).

Page 134: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

133

Ministro Teori Zavascki

Depois de transcrever os votos da Ministra Ellen Gracie e do Ministro Eros Grau, o Ministro Teori passa a analisar a questão:

O acórdão recorrido deu acentuada ênfase à circunstância de que a lei questionada não tem caráter geral e abstrato, mas de mero ato administrativo individual, dando a entender que isso, por si só, seria fundamento suficiente para sua nulificação. Tal entendimento não pode, a toda evidência, ser acolhido. Não há dúvida de que a lei municipal que concedeu a pensão vitalícia não se reveste de normatividade geral, mas não há empecilho constitucional algum a que sejam editadas leis de efeitos concretos ou mesmo individualizados. Há situações em que somente a lei em sentido formal é o instrumento apto a dispor sobre certas matérias. Por isso mesmo, são corriqueiras as leis dessa natureza, inclusive dispondo sobre pensões especiais, como bem demonstrou em seu voto o Ministro Eros Grau. Assim, cumpre, desde logo, afastar o argumento da nuli-dade formal da lei pelo só fato de dispor sobre situação concreta.

Após devidamente enquadrar a tensão apontada entre legalidade e mora-lidade, o Ministro Teori passa a examiná-la de forma geral:

Resta saber se a lei municipal em causa é, em sua substância, passível de anulação, em face do princípio da moralidade. Embora se trate de lei anterior à Constituição de 1988, a discussão se travou a partir de referências a dispositivos da nova Carta, especialmente porque o princípio da moralidade, implicitamente previsto no regime constitucional anterior, foi intimamente associado, aqui, ao princípio da isonomia, comum a todas as Constituições.

Não há dúvida de que a lei deu tratamento privilegiado - e, portanto, anti-isonômico - a certa pessoa, mas também isso, por si só, não pode ser con-siderado “imoral”. Para tanto, seria indispensável demonstrar que o tratamento discriminatório não tem qualquer motivo razoável. O que a Constituição proíbe não é, propriamente, o tratamento privilegiado, mas a concessão de privilégios injustificados e injustificáveis. Um mínimo de investigação a respeito das causas que determinaram o tratamento privilegiado seria, portanto, indispensável à declaração de nulidade por “imoralidade”. Convém enfatizar - e aqui pedimos licença para invocar o que registramos em sede doutrinária (Processo coletivo - tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 5. ed. SP: RT, 2011. p. 82 e seguintes) - que a moralidade, tal como erigida na Constituição - como prin-cípio da Administração Pública (art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos (art. 5º, LXXIII) -, não é, simplesmente, um puro produto do jusnaturalismo, ou da ética, ou da moral, ou da religião. É o sistema de direito, o ordenamento jurídico e, sobretudo, o ordenamento jurídico- constitucional a sua fonte por excelência, e é nela que se devem buscar a substância e o sig-nificado do referido princípio. É certo que os valores humanos, que inspiram o ordenamento jurídico e a ele subjazem, constituem, em muitos casos, inega-velmente, a concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade. Sob esse aspecto, há, sem dúvida, vasos comunicantes entre o mundo da normatividade jurídica e o mundo normativo não jurídico (natural, ético, moral), razão pela qual esse último, tendo servido como fonte primária do surgimento daquele, constitui também um importante instrumento para a sua compreensão e interpretação. É por isso mesmo que o enunciado do princípio

Page 135: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

134

Ministro Teori Zavascki

da moralidade administrativa - que, repita-se, tem natureza essencialmente jurídica - está associado à gama de virtudes e valores de natureza moral e ética: honestidade, lealdade, boa-fé, bons costumes, equidade, justiça. São valores e virtudes que dizem respeito à pessoa do agente administrativo, a evidenciar que os vícios do ato administrativo por ofensa à moralidade são derivados de causas subjetivas, relacionadas com a intimidade de quem o edita: as suas intenções, os seus interesses, a sua vontade. Ato administrativo moralmente viciado é, por-tanto, um ato contaminado por uma forma especial de ilegalidade: a ilegalidade qualificada por elemento subjetivo da conduta do agente que o pratica. Estará atendido o princípio da moralidade administrativa quando a força interior e subjetiva que impulsiona o agente à prática do ato guardar adequada relação de compatibilidade com os interesses públicos a que deve visar a atividade admi-nistrativa. Se, entretanto, essa relação de compatibilidade for rompida - por exemplo, quando o agente, ao contrário do que se deve razoavelmente esperar do bom administrador, for desonesto em suas intenções, for desleal para com a Administração Pública, agir de má-fé para com o administrado, substituir os interesses da sociedade pelos seus interesses pessoais -, estará concretizada ofensa à moralidade administrativa, causa suficiente de nulidade do ato. A que-bra da moralidade caracteriza-se, portanto, pela desarmonia entre a expressão formal (= a aparência) do ato e a sua expressão real (= a sua substância), criada e derivada de impulsos subjetivos viciados quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação administrativa. É por isso que o desvio de finalidade e o abuso de poder (vícios originados da estrutura subjetiva do agente) são consi-derados defeitos tipicamente relacionados com a violação à moralidade. Pode-se afirmar, em suma, que a lesão ao princípio da moralidade administrativa é, rigorosamente, uma lesão a valores e princípios incorporados ao ordenamento jurídico, constituindo, portanto, uma injuridicidade, uma ilegalidade lato sensu. Todavia, é uma ilegalidade qualificada pela gravidade do vício que contamina a causa e a finalidade do ato, derivado da ilícita conduta subjetiva do agente.

E segue com o seu exame em particular:

O registro dessas premissas é importante para reafirmar a indispensa-bilidade da investigação do elemento subjetivo da conduta dos agentes públicos como condição inafastável para caracterizar a violação ao princípio da morali-dade administrativa e, com base nele, anular o ato.

Ora, no caso, tanto a petição inicial, quanto os atos decisórios das instân-cias ordinárias, se limitaram a considerar “imoral” a lei por ter conferido trata-mento privilegiado a uma pessoa, sem, contudo, fazer juízo algum, por mínimo que fosse, sobre a razoabilidade ou não, em face das circunstâncias de fato e de direito, da concessão do privilégio. A se considerar imoral a lei, pelo só trata-mento privilegiado a certos destinatários, certamente seriam inconstitucionais, apenas para citar um exemplo, todas as leis que estabelecem isenções fiscais.

4. Com maior razão se justifica a indispensabilidade de juízo sobre o elemento subjetivo da conduta, para fins de atribuir responsabilidade civil, no caso dos demandados que exerciam o cargo de vereador, investidos, constitu-cionalmente, da proteção de imunidade material (= inviolabilidade) pelos votos proferidos no exercício do mandato (art. 29, VIII). Se é certo que tal imunidade, inclusive para efeitos civis, se aplica até mesmo em caso de cometimento de

Page 136: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

135

Ministro Teori Zavascki

crime, não se há de afastá-la em casos como o da espécie, que de crime não se trata e em que sequer a intenção dolosa é aventada.

5. Finalmente, embora se trate de lei apenas em sentido formal, sem densidade normativa geral e abstrata, é preciso ter presente que o ato aqui ques-tionado não deixa de ser uma lei, submetida ao correspondente processo legis-lativo próprio, com aprovação da Câmara de Vereadores e a sanção do Prefeito Municipal. Mesmo que se leve em consideração a jurisprudência dominante no STF - no sentido de que a ação direta de inconstitucionalidade, pela sua natureza de processo objetivo de controle abstrato e que produz sentença com eficácia erga omnes não se presta a investigar a legitimidade de leis de efeitos exclusivamente concretos e individuais, que, por isso mesmo, só podem ter natureza de processo subjetivo (v.g.: ADI 842 MC, Min. Celso de Mello, DJ de 14-5-1993) - mesmo assim não se poderá afastar o exame incidental da sua constitucionalidade, se for o caso. E é o caso. A validade da lei está sendo ques-tionada em processo de natureza subjetiva, com pretensões anulatórias e inde-nizatória, cujo pressuposto de procedência é justamente a incompatibilidade dessa lei com a Constituição. Não há razão alguma para, em tais casos, afastar simplesmente o princípio da reserva de plenário imposto pelo art. 97 da CF, como aqui se afastou. (RE 405.386/RJ, rel. min. Teori Zavascki, j. 26-2-2013, 2ª T, DJE de 25-3-2013.)

2.4 Responsabilidade civil

O quarto e o quinto casos abordam a responsabilidade civil. Em Luz, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o problema concernente à prescritibilidade ou não das pretensões oriundas de atos de improbidade administrativa65. Em Silva66, a questão decidida pelo STF versa sobre a responsabilidade do Estado em face dos danos experimentados pelos apenados no sistema prisional.

Em Luz, o Ministro Teori Zavascki retratada a questão em seu voto:

está em causa controvérsia jurídica a respeito do sentido e do alcance do disposto na parte final do art. 37, § 5º, da Constituição Federal, do seguinte teor:

Art. 37. (...) § 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos pratica-

dos por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.Essa ressalva final do texto normativo deu margem à instalação de um

impasse dogmático a seu respeito.

65 Cf. União vs. Luz, 2016 (RE 669.069/MG, rel. min. Teori Zavascki, j. 3-2-2016, P, DJE de 28-4-2016). 66 Cf. Silva vs. União e Mato Grosso do Sul, 2017 (RE 580.252/MS, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, j. 16-2-2017, P, DJE de 11-9-2017).

Page 137: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

136

Ministro Teori Zavascki

Logo em seguida, propõe a respectiva solução:

não há dúvidas de que o fragmento final do § 5º do art. 37 da Constituição veicula, sob a forma da imprescritibilidade, uma ordem de bloqueio destinada a conter eventuais iniciativas legislativas displicentes com o patrimônio público. Esse sentido deve ser preservado. Todavia, não é adequado embutir na norma de imprescritibilidade um alcance ilimitado, ou limitado apenas pelo (a) con-teúdo material da pretensão a ser exercida - o ressarcimento - ou (b) pela causa remota que deu origem ao desfalque no erário - um ato ilícito em sentido amplo. O que se mostra mais consentâneo com o sistema de direito, inclusive o constitucional, que consagra a prescritibilidade como princípio, é atribuir um sentido estrito aos ilícitos de que trata o § 5º do art. 37 da Constituição Federal, afirmando como tese de repercussão geral a de que a imprescritibilidade a que se refere o mencionado dispositivo diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais.

E, à luz das premissas, o Ministro conclui:

Estabelecida a tese, cumpre concluir o julgamento do caso concreto. No particular, a inicial veicula uma ação de ressarcimento instaurada pela União em face de uma empresa de transporte rodoviário e de um motorista a ela vincu-lado, tendo por fundamento a alegada responsabilidade civil dos indicados por acidente automobilístico ocorrido no ano de 20 de outubro de 1997 na rodovia MG 862. A propositura da ação data de 21 de setembro de 2008, quando trans-corridos mais de 11 anos do evento danoso, razão pela qual foi ela extinta pelo juiz sentenciante, em decisão secundada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que afirmou estar a causa submetida ao prazo de prescrição quinquenal.

A pretensão de ressarcimento, bem se vê, está fundamentada em suposto ilícito civil que, embora tenha causado prejuízo material ao patrimônio público, não revela conduta revestida de grau de reprovabilidade mais pronunciado, nem se mostra especialmente atentatória aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública. Por essa razão, não cabe submeter a demanda à regra excepcional de imprescritibilidade, pelas razões antes asseveradas. Deve ser aplicado, aqui, o prazo prescricional comum para as ações de indenização por responsabilidade civil em que a Fazenda figure como autora.

Ao tempo do fato que deu causa à ação - o acidente automobilístico, ocorrido em 20 de outubro de 1997 - estava em vigor o Código Civil de 1916, cuja regra do art. 177 fixava em vinte anos o prazo de prescrição das ações pes-soais, dentre elas as de responsabilidade civil. Todavia, com a vigência do atual Código Civil, em 1º de janeiro de 2003, incidiu a norma de transição do seu art. 2.028, que, a contrario sensu, preconizou a imediata incidência dos prazos prescricionais reduzidos pela nova lei nas hipóteses em que ainda não houvesse transcorrido mais da metade do tempo estabelecido no diploma revogado. É exatamente o que se tem na espécie. Assim, até 31 de dezembro de 2002, estava a demanda em questão submetida ao prazo prescricional vintenário, ficando, a partir de 1º de janeiro de 2003, imediatamente sujeita às regras prescricionais da nova codificação, que, segundo o art. 206, § 3º, V, é de três anos em matéria de reparação civil. Como a presente ação foi ajuizada pela União apenas em 2008,

Page 138: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

137

Ministro Teori Zavascki

isto é, quando ultrapassado o derradeiro marco para a deflagração da medida judicial (1º-1-2006), deve ser reconhecida a prescrição do direito de exercê-la.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso extraordinário, mantendo a conclusão do acórdão recorrido, embora com fundamentação diversa, e propo-nho a fixação de tese segundo a qual a imprescritibilidade a que se refere o art. 37, § 5º, da CF diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos ao erário decor-rentes de atos praticados por qualquer agente, servidor ou não, tipificados como ilícitos de improbidade administrativa ou como ilícitos penais. (RE 669.069/MG, rel. min. Teori Zavascki, j. 3-2-2016, P, DJE de 28-4-2016.)

Em Silva, o Supremo Tribunal Federal teve o ensejo de enfrentar o deli-cado problema da responsabilidade civil do Estado em face dos danos sofridos pelos apenados. Lê-se do voto do Ministro Teori Zavascki:

Registre-se, inicialmente, que não há, aqui, qualquer controvérsia a res-peito dos fatos da causa, nem quanto à configuração do dano moral, cuja exis-tência é reconhecida. O próprio acórdão recorrido deixa expresso que “é notório que a situação do sistema penitenciário sul-mato-grossense tem lesado direitos fundamentais seus, quanto à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica” (fl. 11). Realmente, em todos os atos decisórios do processo, sem exce-ção, está reconhecida a absoluta precariedade das condições carcerárias do estabelecimento penal de Corumbá/MS. O voto vencedor proferido na apelação registrou que “no caso dos autos, é público e notório que a Vigilância Sanitária do Município de Corumbá-MS, em diligência, ocorrida no ano de 2003, constatou que efetivamente há superlotação, além de outros inúmeros problemas de higiene, havendo, outrossim, até o risco de transmissão de doenças, tendo determinado a adoção de providência para sanar tais deficiências” (fl. 332 dos apensos). O acór-dão dos infringentes, por sua vez, salientou que “(...) são notórias as condições precárias dos estabelecimentos penitenciários do país, nos quais, em sua grande maioria, não têm o mínimo de higiene ou salubridade, passam pelo problema da superlotação e da falta de agentes, que consequentemente, trazem danos aos presos” (fl. 405 dos apensos). A realidade também está traduzida em documento encaminhado aos autos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Ofício 3.679/2004-DEPEN/GAB, fls. 247/248 dos apensos) e, ainda, em ato do próprio Governador do Estado de Mato Grosso, o Decreto “E” n. 41, de 18 de maio de 2006, publicado no Diário Oficial 6.731, de 19 de maio de 2006.

Portanto, repita-se, os fatos da causa são incontroversos: o recorrente, assim como os outros detentos do presídio de Corumbá/MS, cumprem pena privativa de liberdade em condições não só juridicamente ilegítimas (porque não atendem às mínimas condições de exigências impostas pelo sistema nor-mativo), mas também humanamente ultrajantes, porque desrespeitosas a um padrão mínimo de dignidade. Também não se discute que, nessas condições, o encarceramento impõe ao detendo um dano moral, cuja configuração é, nessas circunstâncias, até mesmo presumida.

Sendo incontroversos os fatos da causa e a ocorrência do dano, a questão jurídica desenvolvida no presente recurso ficou restrita à sua indenizabilidade, ou seja, à existência ou não da obrigação do Estado de ressarcir os danos morais verificados nas circunstâncias enunciadas. É nesses limites e sob esse enfoque que o recurso extraordinário deve ser examinado.

Page 139: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

138

Ministro Teori Zavascki

2. O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato dos agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37, § 6º, da Constituição, disposição normativa autoaplicá-vel, não sujeita a intermediação legislativa ou administrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo à indenização. Ocorrendo o dano e estabele-cido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado, caso em que os recursos financeiros para a satisfação do dever de indenizar, objeto da condenação, serão providos, se for o caso, na forma do artigo 100 da Constituição.

3. Sendo assim, e considerando que, no caso, a configuração do dano é matéria incontroversa, não há como acolher os argumentos que invocam, para negar o dever estatal de indenizar, o “princípio da reserva do possível”, nessa dimensão reducionista de significar a insuficiência de recursos financeiros. Faz sentido considerar tal princípio em situações em que a concretização de certos direitos constitucionais fundamentais a prestações, nomeadamente os de natu-reza social, dependem da adoção e da execução de políticas públicas sujeitas à intermediação legislativa ou à intervenção das autoridades administrativas. Em tais casos, pode-se afirmar que o direito subjetivo individual a determinada prestação, que tem como contrapartida o dever jurídico estatal de satisfazê-la, fica submetido, entre outros, ao pressuposto indispensável da reserva do pos-sível, em cujo âmbito se insere a capacidade financeira do Estado de prestar o mesmo benefício, em condições igualitárias, em favor de todos os indivíduos que estiverem em iguais condições.

Mas não é disso que aqui se cuida. Aqui, a matéria jurídica se situa no âmbito da responsabilidade civil do Estado de responder pelos danos causados por ação ou omissão de seus agentes, nos termos previstos no art. 37, § 6º, da Constituição. Conforme antes afirmado, trata-se de preceito normativo autoa-plicável, não sujeito a intermediação legislativa ou a providência administrativa de qualquer espécie. Ocorrendo o dano e estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado.

4. Não há dúvida de que o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto ali permanecerem detidas. E é dever do Estado mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir os danos que daí decorrerem. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, deixou assentada a responsabilidade objetiva do Estado pela integridade física e psíquica daqueles que estão sob sua custódia. No ARE 662.563 AgR/GO, DJE de 2-4-2012, o Min. Gilmar Mendes, relator, afirmou em seu voto que “(…) a jurisprudência dominante desta Corte que se firmou no sen-tido de que a negligência estatal no cumprimento do dever de guarda e vigilância dos detentos configura ato omissivo a dar ensejo à responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que, na condição de garante, tem o dever de zelar pela integri-dade física dos custodiados (...)”. Esse dever de proteção, assentou a Segunda Turma, abrange, inclusive, o de protegê-los contra eles próprios, impedindo que causem danos uns aos outros ou a si mesmos (RE 466.322 AgR/MT, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJE de 27-4-2007). No mesmo sentido: RE 272.839, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 8-4-2005).

5. Não se nega que a eliminação ou, pelo menos, a redução de viola-ções à integridade e à dignidade da pessoa dos presos dependem da adoção de

Page 140: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

139

Ministro Teori Zavascki

políticas públicas sérias e voltadas especificamente à obtenção de tais resulta-dos. Disso não decorre, porém, que as violações causadoras de danos pessoais, mesmo morais, aos detentos, ainda ocorrentes, devam ser mantidas impunes ou não passíveis de indenização, ainda mais nas circunstâncias fáticas descritas na presente causa, em que o próprio acórdão recorrido admite que “é notório que a situação do sistema penitenciário sul-mato-grossense tem lesado direitos fundamentais seus, quanto à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica” (fl. 11). Porque juridicamente bem diferenciadas e inconfundíveis, merecem tratamento diferenciado as seguintes situações: uma, a de instituir políticas públicas de melhoria das condições carcerárias, que aqui não está em discussão; e a outra, juridicamente bem distinta, a do dever do Estado de inde-nizar danos individuais - seja de natureza material, seja de natureza moral - causados a detentos. É dessa última que aqui se trata. A obrigação de ressarcir danos, que é imposta pelas leis civis a qualquer pessoa que os cause (Código Civil, arts. 186 e 927), é também do Estado, que, mais que decorrer da norma civil (Código Civil, art. 43), tem previsão em superior norma específica, o art. 37, § 6º, dispositivo autoaplicável, não sujeito a intermediação legislativa ou admi-nistrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo.

6. É evidente, pois, que as violações a direitos fundamentais causado-ras de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários não podem ser simplesmente relevadas ao argumento de que a indenização não tem o alcance para eliminar o grave problema prisional globalmente considerado, que depende da definição e da implantação de políticas públicas específicas, provi-dências de atribuição legislativa e administrativa, não de provimentos judiciais. Esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuação da desumana situação que se constata em presídios como o de que trata a presente demanda. Ainda que se admita não haver direito subjetivo individual de deduzir em juízo pretensões que visem a obrigar o Estado a formular e implantar política pública determinada, inclusive em relação à questão carcerária, certamente não se pode negar ao indivíduo encarcerado o direito de obter, inclusive judicialmente, pelo menos o atendimento de prestações inerentes ao que se denomina mínimo existencial, assim consideradas aquelas prestações que, à luz das normas consti-tucionais, podem ser desde logo identificadas como necessariamente presentes qualquer que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida. E ninguém pode duvidar de que, em qualquer circunstância, jamais se poderia excluir das obrigações estatais em matéria carcerária a de indenizar danos individuais de qualquer natureza causados por ação ou omissão do Estado a quem está, por seu comando, submetido a encarceramento.

7. Não custa recordar que a garantia mínima de segurança pessoal, física e psíquica, dos detentos, constitui dever estatal que possui amplo lastro não ape-nas no ordenamento nacional (Constituição Federal, art. 5º, XLVII, “e”; XLVIII; XLIX; Lei 7.210/84 (LEP), arts. 10; 11; 12; 40; 85; 87; 88; Lei 9.455/97 - crime de tortura; Lei 12.874/13 - Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), como também em fontes normativas internacionais adotadas pelo Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, arts. 2; 7; 10; e 14; Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, arts. 5º; 11; 25; Princípios e Boas Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas - Resolução 01/08, aprovada em 13 de março de 2008, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Convenção da ONU contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; e

Page 141: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

140

Ministro Teori Zavascki

Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros - adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes, de 1955). Sob esse aspecto, pode-se afirmar, como o fez Fernanda Mathias de Souza Garcia em notável estudo doutrinário a respeito, que, “no que tange ao direito do presidiário à saúde, ao bem estar, à proteção, à vida, cabe reconhecer um verda-deiro direito público positivo e individual a prestações materiais, deduzidos dire-tamente da Constituição (...)” (GARCIA, Fernanda Mathias de Souza. O dever de indenização e a superlotação carcerária no Brasil. Temas Contemporâneos do Direito - Homenagem ao Bicentenário do Supremo Tribunal Federal. obra cole-tiva, Luiz Guerra (coord.), Brasília: Guerra Editora, 2011. p. 201).

A despeito do alto grau de positivação jurídica, a efetivação desse direito básico ainda constitui um desafio mundial inacabado, cuja superação é especial-mente deficitária em muitos países de desenvolvimento tardio, como nas nações da América Latina em geral e no Brasil em especial, uma das cinco nações com maior população carcerária no mundo. Não por outra razão, o Brasil, nos últi-mos 10 anos, foi seguidamente notificado pela Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH) para tomar medidas emergenciais em relação a pelo menos três presídios específicos, por conta de suas condições intoleráveis (Urso Branco, em Porto Velho/RO; Pedrinhas/MA; e Presídio Central, em Porto Alegre/RS). É significativa, ainda, a menção a excerto do Relatório Final produzido em 2009 por Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, no qual se conclui que “a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sis-tema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário” (fl. 247).

São evidentemente atuais, nesse sentido, as palavras de Heleno Fragoso:12. Embora as leis digam que tem de ser preservada a dignidade

humana dos presos, em nossas prisões as condições de vida são into-leráveis. Aos defeitos comuns em todas as prisões, acrescentam-se, nas nossas, a superlotação, a ociosidade e a promiscuidade. Os presos não têm direitos. A prisão reflete, em ultima análise, condições estruturais da sociedade, que a mantém, como realidade violenta e totalizante e que dela se serve. A prisão também cumpre uma função ideológica impor-tante, como expressão do castigo, no esquema da repressão, formando falsamente a imagem do criminoso. Sabemos hoje muito bem que não é possível, através da prisão, alcançar a ressocialização ou a readaptação social do condenado.

(...)14. Os direitos humanos estão interligados. Não é possível supri-

mir os direitos civis e políticos, para realizar os direitos econômicos, sociais e culturais, ao contrário do que têm afirmado os ditadores. Do mesmo modo, só com reformas sociais importantes, que acabem com a miséria e proporcionem melhor nível de vida, será possível estabele-cer regimes de liberdade. Os povos do Terceiro Mundo já compreen-deram que o crescimento econômico, por si só, não resolve o problema da pobreza, antes o agrava, como o exemplo do Brasil demonstrou tão bem, quando se adota um modelo de desenvolvimento que só beneficia os que possuem. Daí o crescimento da criminalidade, que se procura

Page 142: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

141

Ministro Teori Zavascki

inutilmente combater endurecendo o sistema repressivo e desrespei-tando, cada vez mais, os direitos humanos.

(...)16. A realização dos direitos humanos na justiça criminal está, pois,

em função de um problema essencialmente político. É preciso compreen-der que aqui está o fundo da questão. Esses direitos só serão observados na justiça criminal de uma sociedade autenticamente democrática, onde se afirme como valor fundamental, verdadeiramente, o respeito à digni-dade da pessoa humana, na luta permanente do povo contra a opressão, pela liberdade, pela justiça e pela paz (FRAGOSO, Heleno. Boletim 150, maio de 2005, Instituto Brasileiro de ciências criminais. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/boletim_sumario/179-150-Maio-2005).8. Não se pode deixar de reconhecer - pelo contrário, é preciso que

isso seja também enfatizado - que a indigência carcerária representa apenas uma parte - importante, mas uma parte apenas - de um todo maior, que é o sistema de segurança pública oferecido pelo Estado brasileiro. É sabido que a disfuncionalidade desse sistema percorre todos os seus níveis, e dele se constata, claramente: (a) baixa eficiência das ações de polícia preventiva; (b) ínfimo per-centual de elucidação de crimes violentos; (c) demora na formação da culpa pelo aparelho de persecução penal; (d) desumanização no cumprimento da pena; e (e) recidiva do comportamento criminoso. Segundo relatório divulgado em abril de 2014 pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime - UNODC (http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/GSH2013/2014 GLOBAL HOMICIDE BOOK web.pdf), durante o ano de 2012, o Brasil conta-bilizou 50.108 homicídios em seu território (25,1 homicídios para cada 100 mil habitantes), o que representou cerca de 11% de todos os assassinatos cometidos no planeta no mesmo período. O dado, alarmante por si só, fica ainda mais perturbador quando analisado conjuntamente com as estatísticas reunidas pelo Conselho Nacional do Ministério Público em 2012 (http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio enasp_FINAL.pdf) que estimam em algo em torno de 5% o número de inquéritos que resultam na elucidação da autoria de homicídios. E, como todos sabemos, desses, apenas uma parcela irrisória resulta em condenação judicial.

9. Há, ademais, o lado ainda mais sombrio: as vítimas de crimes violen-tos, ou seus herdeiros, além de ultrajados pela ação de criminosos que raramente serão submetidos às penalidades da lei, ficam muitas vezes desamparadas de qualquer compensação ou ressarcimento dos prejuízos morais e materiais que a violência lhes infligiu. Tem-se, aqui, o fenômeno da vitimização secundária, ainda não aplacado pelo legislador ordinário, que até hoje não regulamentou o art. 245 da Constituição, segundo o qual “A lei disporá sobre as hipóteses e condi-ções em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”.

10. Embora sejam de suma importância todas as questões relacionadas ao sistema de segurança pública e aos direitos que devem ser assegurados às vítimas de crimes e aos seus herdeiros, cumpre renovar a observação de que a presente demanda diz respeito apenas a uma parte restrita dessa problemática: a da lesão à pessoa do detento. A reparabilidade civil a que fazem jus pelos danos que venham a sofrer em função das ilegais e desumanas condições de encar-ceramento a que se acham submetidos não fica comprometida nem limitada

Page 143: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

142

Ministro Teori Zavascki

pelo deficiente funcionamento dos demais elos do sistema de segurança pública. Havendo a transgressão dos limites normativos de aplicação da pena, deve o Poder Judiciário agir para restabelecer prontamente a ordem jurídica, inclusive por meio da tutela repressiva de natureza cível. A responsabilidade do Judiciário não se esgota no controle do processo penal, nem tampouco na fiscalização administrativa das condições dos estabelecimentos penitenciários, mas alcança, igualmente, o aspecto civil decorrente de eventuais violações aos direitos de personalidade dos detentos. Essa tutela chega a ser explicitamente garantida pela Constituição Federal em caso de erro judiciário (art. 5º, LXXV), e compreende, naturalmente, outras dimensões de violações aos direitos humanos dos custo-diados. Caracterizada a atitude opressiva do Estado, a ocorrência do dano mate-rial ou moral e o nexo causal, deve ser imposta a condenação correspondente. A criação de subterfúgios teóricos (tais como a separação dos Poderes, a reserva do possível e a natureza coletiva dos danos sofridos) para afastar a responsabilidade estatal pelas calamitosas condições da carceragem de Corumbá/MS, afronta não apenas o sentido do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, como determina o esvaziamento das inúmeras cláusulas constitucionais e convencionais antes cita-das, transformando o seu descumprimento reiterado em mero e inconsequente ato de fatalidade, o que não pode ser tolerado.

Convém enfatizar que a invocação seletiva de razões de estado para negar, especificamente a determinada categoria de sujeitos, o direito à integri-dade física e moral, não é compatível com o sentido e o alcance do princípio da jurisdição, já que, acolhidas essas razões, estar-se-ia recusando aos detentos os mecanismos de reparação judicial dos danos sofridos, deixando-os a descoberto de qualquer proteção estatal, numa condição de vulnerabilidade juridicamente desastrosa. Trata-se de uma dupla negativa, do direito e da jurisdição. Não pode a decisão judicial, que é o subproduto mais decantado da experiência jurídica, desfavorecer sistematicamente a um determinado grupo de sujeitos, sob pena de comprometer a sua própria legitimidade.

11. Em suma, a tese de repercussão geral que proponho seja afirmada é a seguinte: considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema norma-tivo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, compro-vadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.

12. Diante do exposto, conheço do recurso extraordinário e a ele dou provimento, para restabelecer o juízo condenatório nos termos e nos limites do acórdão proferido no julgamento da apelação. (RE 580.252/MS, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, j. 16-2-2017, P, DJE de 11-9-2017.)

Page 144: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

143

Ministro Teori Zavascki

3. TEORI ZAVASCKI, O ESTADO SOCIOAMBIENTAL E A QUESTÃO INDÍGENA

Para além de suas conhecidas feições de Estado Democrático e Estado de Direito, o Estado brasileiro vem sendo caracterizado também como um Estado Socioambiental67. Seguindo suas linhas de força, aparecem no tablado das dis-cussões a preservação do meio ambiente, da cultura indígena e a solução do conflito fundiário aí implicado.

3.1 Estado Socioambiental e terras indígenas

Como observa a doutrina, “a miséria e a pobreza (como projeções da falta de acesso aos direitos sociais básicos, como saúde, saneamento básico, educação, moradia, alimentação, renda mínima etc.) caminham juntas com a degradação e poluição ambiental, expondo a vida das populações de baixa renda e violando, por duas vias distintas, a sua dignidade”68. Se isso é verdade em geral, é verda-deiro em particular em relação à questão indígena. Daí a conexão entre Estado Socioambiental e terras indígenas, em que a sua demarcação aparece como pres-suposto para o exercício de outros direitos sociais básicos.

3.2 Esbulho renitente

Em sua passagem pela Suprema Corte, o Ministro Teori Zavascki teve a oportunidade de colaborar na formação de precedente que envolvia o conceito de esbulho renitente no caso Castelo Branco69. Sua análise procurou equacionar a questão indígena a partir do estabelecimento de conceitos capazes de facilitar a operacionalização do tema.

Nessa linha, em seu voto, interessa especificamente a definição de esbulho renitente — até então tratado apenas de passagem no Supremo Tribunal Federal:

Restaria, como fundamento de legitimação de ato demarcatório, ave-riguar a existência do que, no julgamento da Pet 3.388, se denominou de “esbulho renitente”. O voto vencedor do julgado atacado considerou presente a ocorrência desse esbulho nos seguintes termos:

Na hipótese, restou incontroverso que, à época da promulgação da Constituição Federal de 1988, os índios da etnia Terena não estavam na posse da área reivindicada, posteriormente demarcada e homologada pelo Decreto Presidencial.

67 Cf. SARLET, Ingo. Curso de direito constitucional (2012). 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 279/280 e 297/301, em coautoria com Marinoni e Mitidiero. 68 Ibidem, p. 299. 69 Cf. Castelo Branco vs. União, MPF e FUNAI, 2014 (ARE 803.462 AgRg/MS, rel. min. Teori Zavascki, j. 9-12-2014, 2ª T, DJE de 11-2-2015).

Page 145: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

144

Ministro Teori Zavascki

Importa saber, portanto, se dela foram os índios desalojados em virtude de renitente esbulho praticado por não índios. Acerca desta ques-tão, o laudo pericial explica exatamente como os silvícolas foram desalo-jados do local onde viviam. (Fl. 1100):

Como indicamos nos itens 2.1 e 2.2, e depois nos itens 4.1 e 4.2 deste laudo, o processo de colonização da região da bacia do Aquidauana se intensifica especialmente depois do término da Guerra do Paraguai. Na região em questão, existiam diversos aldeamentos indígenas, como Ipegue na planície e o Piranhinha nos morros, como são registrados nos documentos já citados, pelo menos desde 1865-66. A partir de 1892 inicia-se um processo de colonização conduzido por um grupo de coronéis (apesar de que antes da aquisição de terras por esse grupo, já existiam posseiros na região, como é o caso de João Dias Cordeiro) por meio da cons-tituição vila de Aquidauana e de propriedades rurais e urbanas. Pelos documentos localizados, a partir de 1895 em diante inicia-se um processo de titulação em terras localizadas entre o Córrego João Dias, o Morro do Amparo e o Aquidauana que se choca com as terras de ocupação indígena em diversos pontos. Isso carac-teriza um choque entre o poder local e a economia agropecuária e a sociedade Terena. Esse choque de interesses sobre as terras e os recursos ambientais está registrado nos diversos documentos analisados e citados no laudo, e resultará na titulação das terras para o município em 1928 e depois na criação da Colônia XV de Agosto em 1959, incidentes na área depois identificada como indí-gena. Assim, consolida-se o processo ocupação nos territórios em questão. Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu ocupação indígena (no sentido de uso para habi-tação) até o ano de 1953, quando em meio ao processo de demarca-ção houve a expulsão dos índios da área, mas a ocupação (como uso de recursos naturais e ambientais) permanece até os dias de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra. (Grifei). Além disso, o MM. Juiz sentenciante constatou na inspeção judi-

cial que, a partir do ano de 1953, os índios, não por vontade própria, ficaram impedidos de utilizar as terras da área litigiosa. Confira-se o seguinte trecho da r. sentença:

Por ocasião da inspeção que realizei na área em litígio constatei que a Fazenda Santa Bárbara tem divisa bem definida com as terras indígenas. Além da divisa natural, representada pelo paredão da Serra de Amambaí, tornando difícil o acesso entre as glebas, existem cercas em todo o perímetro da fazenda. Essas cer-cas remontam à época que antecedeu a passagem do agrimensor Camilo Boni (1953). (Fls. 2417) Diante disso, restando comprovado, nos autos, o renitente esbu-

lho praticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na Pet 3.388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal.

Ademais, não vislumbro como afastar as conclusões do laudo ofi-cial, considerando que nem mesmo os argumentos que foram deduzidos pelo assistente técnico do autor conseguiram desconstituir a conclusão a

Page 146: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

145

Ministro Teori Zavascki

que chegou o perito judicial, de reconhecida idoneidade e competência. (Fl. 2831/2832) O que se tem nessa argumentação, bem se percebe, é a constatação de

que, no passado, as terras questionadas foram efetivamente ocupadas pelos índios, fato que é indiscutível. Todavia, renitente esbulho não pode ser confun-dido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito posses-sório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.

Também não pode servir como comprovação de “esbulho renitente” a sustentação desenvolvida no voto vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto a órgãos públi-cos, desde o começo do Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propó-sito, (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o reque-rimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual. Nesse aspecto, cumpre registrar o que atestou o voto vencido do aresto impugnado:

Desde a desocupação na década de 1950, o grupo tribal Terenas não reivindica direta ou indiretamente a área. A tolerância que se suce-deu ao esbulho praticado pelos membros da sociedade nacional com-prometeu o liame entre a fazenda e os usos, costumes, tradições da comunidade e originou uma situação fática que veio a ser legitimada pela Constituição Federal de 1988. (Fl. 2914). Dessa forma, sendo incontroverso que as últimas ocupações indígenas

na Fazenda Santa Bárbara ocorreram em 1953 e não se constatando, nas déca-das seguintes, situação de disputa possessória, fática ou judicializada, ou de outra espécie de inconformismo que pudesse caracterizar a presença de não índios como efetivo “esbulho renitente”, a conclusão que se impõe é a de que o indispensável requisito do marco temporal da ocupação indígena, fixado por esta Corte no julgamento da Pet 3.388 não foi cumprido no presente caso. (ARE 803.462 AgRg/MS, rel. min. Teori Zavascki, j. 9-12-2014, 2ª T, DJE de 11-2-2015.)

Page 147: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

146

Ministro Teori Zavascki

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde sua instalação, o Supremo Tribunal Federal vem pautando a vida pública brasileira e procurando — como nenhum outro ator social — responder às novas situações carentes de tutela, sobretudo aquelas reconduzíveis ao caldo de cultura da redemocratização de nosso país e da concretização de um projeto institucional assumido com a Constituição de 1988.

Para além da sua paulatina transformação em um tribunal de interpreta-ção e de precedentes, deixando para os livros de história a sua compreensão como uma simples corte de controle e de jurisprudência, nossa Suprema Corte depende necessariamente de juízes engajados na promoção dos ideais de protetividade do Estado Democrático de Direito. A postura desses magistrados deve refletir a serena fidelidade aos princípios da segurança jurídica, da liberdade e da igual-dade, sem a qual o compromisso com os direitos fundamentais pode soçobrar.

Ao ocupar uma das onze cadeiras do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Teori Zavascki soube dar um exemplo fundamental para a nossa comunidade jurídica e para toda a sociedade brasileira. Suas ações mostra-ram ser possível promover uma efetiva transformação social pelo direito. Sem desbordar da moldura normativa nem abrir mão de sua inabalável serenidade, seus julgados e sua postura como representante da cúpula do Poder Judiciário permanecerão incrustados nas paredes e fluirão pelos corredores da nossa his-tória institucional, guiando — da maneira mais accountable possível — todas as pessoas tocadas pela alta missão de velar pelo Império do Direito mediante a Justiça Civil.

Page 148: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

147

Ministro Teori Zavascki

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Curso de processo civil coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. 427 p.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 7. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016. 454 p.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos fundamentais. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. xii, 577 p.

FAVOREU, Louis; MASTOR, Wanda. Les cours constitutionnelles. 4. ed. Paris: Dalloz, 2011.

FERRER MAC-GREGOR, Eduardo. Los tribunales constitucionales en Iberoamérica. México: Fundap, 2002.

FONTAINHA, Fernando de Castro; VIEIRA, Oscar Vilhena; SATO, Leonardo Seiichi Sasada (orgs.). História oral do Supremo (1988 – 2013): Teori Zavascki. Rio de Janeiro: FGV Rio, 2017, v.16.

GOODHARDT, Arthur. Legal procedure and democracy. Cambridge Law Journal, London, v. 22, 1964.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, v. 1.

MENDES, Gilmar. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 552 p.

MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 174 p.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 34. ed., rev. e atual. até a EC nº 99, de 14 de dezembro 2017. São Paulo: Atlas, 2018. xxxi, 988 p.: il.

Page 149: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

148

Ministro Teori Zavascki

SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva jur, 2020. 1552 p.

ZAVASCKI, Teori. Antecipação da tutela. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. xviii, 311 p.

. Comentários ao Código de Processo Civil: v. 8: arts. 566 a 645: do processo de execução. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 510 p.

. Comentários ao Código de Processo Civil: Volume XII (arts. 771 ao 796). 2. ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. 221 p. Atualizado por Francisco Zavascki.

. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 204 p.

. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 283 p.

. Processo de execução: parte geral. 3. ed., rev., atual. e ampl. da 2. ed. da obra Título executivo e liquidação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 462 p.

. Título executivo e liquidação. 2. ed., rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 216 p.

Page 150: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

APÊNDICE

Page 151: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

150

Ministro Teori Zavascki

HABEAS CORPUS 126.292 — SP

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. À vista da Súmula 691/STF, não cabe ao Supremo Tribunal Federal, de regra, conhecer de habeas corpus impe-trado contra decisão do relator pela qual, em habeas corpus requerido a tribunal superior, não se obteve a liminar, sob pena de indevida — e, no caso, dupla — supressão de instância. Todavia, admite-se o conhecimento do pedido em casos excepcionais, quando a decisão impugnada se evidencie teratológica, mani-festamente ilegal (v.g., entre outros, HC 122.670, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 5/8/2013, DJE de 15-8-2014; HC 121.181, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 22-4-2014, DJE de 13-5-2014). No caso específico do paciente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao negar provimento ao recurso de apelação, determinou a imediata execução provisória da condenação, com a ordem: “Expeça-se man-dado de prisão contra o acusado Márcio”. Não se tratando de prisão cautelar, mas de execução provisória da pena, a decisão está em claro confronto com o entendimento deste Supremo Tribunal, consagrado no julgamento do HC 84.078/MG (Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJE de 26-2-2010), segundo o qual a prisão decorrente de condenação pressupõe o trânsito em julgado da sen-tença. Essa circunstância autoriza o excepcional conhecimento da impetração, não obstante a referida Súmula 691/STF.

2. O tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal.

3. A possibilidade da execução provisória da pena privativa de liberdade era orientação que prevalecia na jurisprudência do STF, mesmo na vigência da Constituição Federal de 1988. Nesse cenário jurisprudencial, em caso seme-lhante ao agora sob exame, esta Suprema Corte, no julgamento do HC 68.726 (Rel. Min. Néri da Silveira), realizado em 28-6-1991, assentou que a presunção de inocência não impede a prisão decorrente de acórdão que, em apelação, con-firmou a sentença penal condenatória recorrível, em acórdão assim ementado:

“Habeas corpus. Sentença condenatória mantida em segundo grau. Mandado de prisão do paciente. Invocação do art. 5º, inciso LVII, da Constituição. Código de Processo Penal, art. 669. A ordem de prisão, em decorrência de decreto de custódia preventiva, de sentença de pronúncia ou de decisão e órgão julgador de segundo grau, é de natureza processual e concernente aos interesses de garantia da aplicação da lei penal ou de execução da pena imposta, após o

Page 152: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

151

Ministro Teori Zavascki

devido processo legal. Não conflita com o art. 5º, inciso LVII, da Constituição. De acordo com o § 2º do art. 27 da Lei nº 8.038/1990, os recursos extraordinário e especial são recebidos no efeito devolutivo. Mantida, por unanimidade, a sen-tença condenatória, contra a qual o réu apelara em liberdade, exauridas estão as instâncias ordinárias criminais, não sendo, assim, ilegal o mandado de prisão que órgão julgador de segundo grau determina se expeça contra o réu. Habeas corpus indeferido.”

Ao reiterar esses fundamentos, o Pleno do STF asseverou que, “com a condenação do réu, fica superada a alegação de falta de fundamentação do decreto de prisão preventiva”, de modo que “os recursos especial e extraordiná-rio, que não têm efeito suspensivo, não impedem o cumprimento de mandado de prisão” (HC 74.983, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 30-6-1997).

E, ao reconhecer que as restrições ao direito de apelar em liberdade deter-minadas pelo art. 594 do CPP (posteriormente revogado pela Lei 11.719/2008) haviam sido recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, o Plenário desta Corte, nos autos do HC 72.366/SP (Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 26-1-1999), mais uma vez invocou expressamente o princípio da presunção de inocência para concluir pela absoluta compatibilidade do dispositivo legal com a Carta Constitucional de 1988, destacando, em especial, que a superveniência da sen-tença penal condenatória recorrível imprimia acentuado “juízo de consistência da acusação”, o que autorizaria, a partir daí, a prisão como consequência natural da condenação.

Em diversas oportunidades — antes e depois dos precedentes menciona-dos —, as Turmas do STF afirmaram e reafirmaram que princípio da presunção de inocência não inibia a execução provisória da pena imposta, ainda que pen-dente o julgamento de recurso especial ou extraordinário: HC 71.723, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ de 16-6-1995; HC 79.814, Rel. Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, DJ de 13-10-2000; HC 80.174, Rel. Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ de 12-4-2002; RHC 84.846, Rel. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ de 5-11-2004; RHC 85.024, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ de 10-12-2004; HC 91.675, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJE de 7-12-2007; e HC 70.662, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, DJ de 4-11-1994; esses dois últimos assim ementados:

“HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. NÃO CONFIGURAÇÃO DE REFORMATIO IN PEJUS. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade, quando os recursos pendentes de julgamento não têm efeito suspensivo. (…) 3. Habeas corpus denegado.”

Page 153: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

152

Ministro Teori Zavascki

“(…) A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL NÃO IMPEDE — PRECISAMENTE POR SE TRATAR DE MODALIDADE DE IMPUGNAÇÃO RECURSAL DESVESTIDA DE EFEITO SUSPENSIVO — A IMEDIATA EXECUÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA, INVIABILIZANDO, POR ISSO MESMO, A CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA MEDIANTE FIANÇA.”

Ilustram, ainda, essa orientação as Súmulas 716 e 717, aprovadas em ses-são plenária realizada em 24-9-2003, cujos enunciados têm por pressupostos situações de execução provisória de sentenças penais condenatórias. Veja-se:

Súmula nº 716: Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Súmula nº 717: Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.

A alteração dessa tradicional jurisprudência — que afirmava a legitimi-dade da execução da pena como efeito de decisão condenatória recorrível — veio de fato a ocorrer, após debates no âmbito das Turmas, no julgamento, pelo Plenário, do HC 84.078/MG, realizado em 5-2-2009, oportunidade em que, por sete votos a quatro, assentou-se que o princípio da presunção de inocência se mostra incompatível com a execução da sentença antes do trânsito em julgado da condenação.

4. Positivado no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), o princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade) ganhou destaque no ordenamento jurídico nacional no período de vigência da Constituição de 1946, com a adesão do País à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujo art. 11.1 estabelece:

“Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocên-cia, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa.”

O reconhecimento desse verdadeiro postulado civilizatório teve reflexos importantes na formulação das supervenientes normas processuais, especial-mente das que vieram a tratar da produção das provas, da distribuição do ônus probatório, da legitimidade dos meios empregados para comprovar a materia-lidade e a autoria dos delitos. A implementação da nova ideologia no âmbito nacional agregou ao processo penal brasileiro parâmetros para a efetivação de modelo de justiça criminal racional, democrático e de cunho garantista, como o do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, do juiz natural, da inadmissibilidade de obtenção de provas por meios ilícitos, da não

Page 154: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

153

Ministro Teori Zavascki

auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), com todos os seus desdobra-mentos de ordem prática, como o direito de igualdade entre as partes, o direito à defesa técnica plena e efetiva, o direito de presença, o direito ao silêncio, o direito ao prévio conhecimento da acusação e das provas produzidas, o da possi-bilidade de contraditá-las, com o consequente reconhecimento da ilegitimidade de condenação que não esteja devidamente fundamentada e assentada em pro-vas produzidas sob o crivo do contraditório.

O plexo de regras e princípios garantidores da liberdade previsto em nossa legislação revela quão distante estamos, felizmente, da fórmula inversa em que ao acusado incumbia demonstrar sua inocência, fazendo prova negativa das faltas que lhe eram imputadas. Com inteira razão, portanto, a Ministra Ellen Gracie, ao afirmar que

“o domínio mais expressivo de incidência do princípio da não-culpabi-lidade é o da disciplina jurídica da prova. O acusado deve, necessariamente, ser considerado inocente durante a instrução criminal — mesmo que seja réu con-fesso de delito praticado perante as câmeras de TV e presenciado por todo o país” (HC 84.078, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, DJE de 26-2-2010).

5. Realmente, antes de prolatada a sentença penal há de se manter reser-vas de dúvida acerca do comportamento contrário à ordem jurídica, o que leva a atribuir ao acusado, para todos os efeitos — mas, sobretudo, no que se refere ao ônus da prova da incriminação —, a presunção de inocência. A eventual con-denação representa, por certo, um juízo de culpabilidade, que deve decorrer da logicidade extraída dos elementos de prova produzidos em regime de contradi-tório no curso da ação penal. Para o sentenciante de primeiro grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa – pressuposto inafastável para condenação —, embora não definitivo, já que sujeito, se houver recurso, à revi-são por Tribunal de hierarquia imediatamente superior. É nesse juízo de apelação que, de ordinário, fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da responsabilidade penal do acusado. É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição, destinado ao reexame de decisão judicial em sua inteireza, mediante ampla devolutividade da matéria deduzida na ação penal, tenha ela sido apreciada ou não pelo juízo a quo. Ao réu fica assegurado o direito de acesso, em liberdade, a esse juízo de segundo grau, respeitadas as prisões cautelares porventura decretadas.

Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é, portanto, no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado. É dizer: os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutivi-dade, já que não se prestam ao debate da matéria fático-probatória. Noutras

Page 155: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

154

Ministro Teori Zavascki

palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. Os recursos ainda cabíveis para instâncias extraordinárias do STJ e do STF — recurso especial e extraordinário — têm, como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faz sentido, portanto, negar efeito suspensivo aos recursos extraordinários, como o fazem o art. 637 do Código de Processo Penal e o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/1990.

6. O estabelecimento desses limites ao princípio da presunção de inocên-cia tem merecido o respaldo de autorizados constitucionalistas, como é, reco-nhecidamente, nosso colega Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que, a propósito, escreveu:

“No que se refere à presunção de não culpabilidade, seu núcleo essencial impõe o ônus da prova do crime e sua autoria à acusação. Sob esse aspecto, não há maiores dúvidas de que estamos falando de um direito fundamental proces-sual, de âmbito negativo.

Para além disso, a garantia impede, de uma forma geral, o tratamento do réu como culpado até o trânsito em julgado da sentença. No entanto, a definição do que vem a se tratar como culpado depende de intermediação do legislador.

Ou seja, a norma afirma que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da condenação, mas está longe de precisar o que vem a se considerar alguém culpado.

O que se tem, é, por um lado, a importância de preservar o imputado con-tra juízos precipitados acerca de sua responsabilidade. Por outro, uma dificul-dade de compatibilizar o respeito ao acusado com a progressiva demonstração de sua culpa.

Disso se deflui que o espaço de conformação do legislador é lato. A cláu-sula não obsta que a lei regulamente os procedimentos, tratando o implicado de forma progressivamente mais gravosa, conforme a imputação evolui. Por exem-plo, para impor a uma busca domiciliar, bastam ‘fundadas razões’ — art. 240, § 1º, do CPP. Para tornar implicado o réu, já são necessários a prova da materia-lidade e indícios da autoria (art. 395, III, do CPP). Para condená-lo é imperiosa a prova além de dúvida razoável.

Como observado por Eduardo Espínola Filho, ‘a presunção de inocência é vária, segundo os indivíduos sujeitos passivos do processo, as contingências da prova e o estado da causa’.

Ou seja, é natural à presunção de não culpabilidade evoluir de acordo com o estágio do procedimento. Desde que não se atinja o núcleo fundamental, o tratamento progressivamente mais gravoso é aceitável. (…).

Esgotadas as instâncias ordinárias com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força de que o réu é culpado e a sua prisão necessária.

Page 156: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

155

Ministro Teori Zavascki

Nesse estágio, é compatível com a presunção de não culpabilidade deter-minar o cumprimento das penas, ainda que pendentes recursos” (In: MELLO, Marco Aurélio. Ciência e Consciência. 2015. 2 v. ).

Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não cul-pabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias.

Nessa trilha, aliás, há o exemplo recente da Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), que, em seu art. 1º, I, expressamente consagra como causa de inelegibilidade a existência de sentença condenatória por crimes nela relacio-nados quando proferidas por órgão colegiado. É dizer, a presunção de inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado.

7. Não é diferente no cenário internacional. Como observou a Ministra Ellen Gracie quando do julgamento do HC 85.886 (DJ de 28-10-2005), “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”. A esse respeito, merece referência o abrangente estudo realizado por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman, que reproduzo:

“a) Inglaterra.Hoje, a legislação que trata da liberdade durante o trâmite de recursos

contra a decisão condenatória é a Seção 81 do Supreme Court Act 1981. Por esse diploma é garantida ao recorrente a liberdade mediante pagamento de fiança enquanto a Corte examina o mérito do recurso. Tal direito, contudo, não é abso-luto e não é garantido em todos os casos. (…)

O Criminal Justice Act 2003 representou restrição substancial ao proce-dimento de liberdade provisória, abolindo a possibilidade de recursos à High Court versando sobre o mérito da possibilidade de liberação do condenado sob fiança até o julgamento de todos os recursos, deixando a matéria quase que exclusivamente sob competência da Crown Court’. (…)

Hoje, tem-se que a regra é aguardar o julgamento dos recursos já cum-prindo a pena, a menos que a lei garanta a liberdade pela fiança. (...)

b) Estados Unidos.A presunção de inocência não aparece expressamente no texto consti-

tucional americano, mas é vista como corolário da 5ª, 6ª e 14ª Emendas. Um exemplo da importância da garantia para os norte-americanos foi o célebre Caso ‘Coffin versus Estados Unidos’ em 1895.

Page 157: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

156

Ministro Teori Zavascki

Mais além, o Código de Processo Penal americano (Criminal Procedure Code), vigente em todos os Estados, em seu art. 16 dispõe que ‘se deve presumir inocente o acusado até que o oposto seja estabelecido em um veredicto efetivo’.

(…) Contudo, não é contraditório o fato de que as decisões penais conde-

natórias são executadas imediatamente seguindo o mandamento expresso do Código dos Estados Unidos (US Code). A subseção sobre os efeitos da sentença dispõe que uma decisão condenatória constitui julgamento final para todos os propósitos, com raras exceções.

(…) Segundo Relatório Oficial da Embaixada dos Estados Unidos da América

em resposta a consulta da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, “nos Estados Unidos há um grande respeito pelo que se poderia comparar no sistema brasileiro com o ‘juízo de primeiro grau’, com cumpri-mento imediato das decisões proferidas pelos juízes”. Prossegue informando que “o sistema legal norte-americano não se ofende com a imediata execução da pena imposta ainda que pendente sua revisão”.

c) Canadá(…)O código criminal dispõe que uma corte deve, o mais rápido possível

depois que o autor do fato for considerado culpado, conduzir os procedimentos para que a sentença seja imposta.

Na Suprema Corte, o julgamento do caso R. vs. Pearson (1992) 3 S.C.R. 665, consignou que a presunção da inocência não significa, “é claro”, a impossi-bilidade de prisão do acusado antes que seja estabelecida a culpa sem nenhuma dúvida. Após a sentença de primeiro grau, a pena é automaticamente executada, tendo como exceção a possibilidade de fiança, que deve preencher requisitos rígidos previstos no Criminal Code, válido em todo o território canadense.

d) Alemanha(…)Não obstante a relevância da presunção da inocência, diante de uma

sentença penal condenatória, o Código de Processo Alemão (…) prevê efeito suspensivo apenas para alguns recursos. (…)

Não há dúvida, porém, e o Tribunal Constitucional assim tem decidido, que nenhum recurso aos Tribunais Superiores tem efeito suspensivo. Os alemães entendem que eficácia (…) é uma qualidade que as decisões judiciais possuem quando nenhum controle judicial é mais permitido, exceto os recursos especiais, como o recurso extraordinário (…). As decisões eficazes, mesmo aquelas contra as quais tramitam recursos especiais, são aquelas que existem nos aspectos pes-soal, objetivo e temporal com efeito de obrigação em relação às consequências jurídicas.

e) FrançaA Constituição Francesa de 1958 adotou como carta de direitos funda-

mentais a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, um dos paradigmas de toda positivação de direitos fundamentais da história do mundo pós-Revolução Francesa. (…)

Apesar disso, o Código de Processo Penal Francês, que vem sendo refor-mado, traz no art. 465 as hipóteses em que o Tribunal pode expedir o mandado de prisão, mesmo pendentes outros recursos. (…)

Page 158: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

157

Ministro Teori Zavascki

f) Portugal(...) O Tribunal Constitucional Português interpreta o princípio da presun-

ção de inocência com restrições. Admite que o mandamento constitucional que garante esse direito remeteu à legislação ordinária a forma de exercê-lo. As decisões dessa mais alta Corte portuguesa dispõem que tratar a presunção de inocência de forma absoluta corresponderia a impedir a execução de qualquer medida privativa de liberdade, mesmo as cautelares.

g) Espanha(…) A Espanha é outro dos países em que, muito embora seja a presunção de

inocência um direito constitucionalmente garantido, vigora o princípio da efeti-vidade das decisões condenatórias. (…)

Ressalte-se, ainda, que o art. 983 do Código de Processo Penal espanhol admite até mesmo a possibilidade da continuação da prisão daquele que foi absolvido em instância inferior e contra o qual tramita recurso com efeito sus-pensivo em instância superior.

h) ArgentinaO ordenamento jurídico argentino também contempla o princípio da pre-

sunção da inocência, como se extrai das disposições do art. 18 da Constituição Nacional.

Isso não impede, porém, que a execução penal possa ser iniciada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. De fato, o Código de Processo Penal federal dispõe que a pena privativa de liberdade seja cumprida de ime-diato, nos termos do art. 494. A execução imediata da sentença é, aliás, expres-samente prevista no art. 495 do CPP, e que esclarece que essa execução só poderá ser diferida quando tiver de ser executada contra mulher grávida ou que tenha filho menor de 6 meses no momento da sentença, ou se o condenado estiver gravemente enfermo e a execução puder colocar em risco sua vida” (Execução provisória da pena. Um contraponto à decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 84.078. Garantismo penal integral. 3. ed. p. 507).

8. Não custa insistir que os recursos de natureza extraordinária não têm por finalidade específica examinar a justiça ou injustiça de sentenças em casos concretos. Destinam-se, precipuamente, à preservação da higidez do sistema normativo. Isso ficou mais uma vez evidenciado, no que se refere ao recurso extraordinário, com a edição da EC 45/2004, ao inserir como requisito de admis-sibilidade desse recurso a existência de repercussão geral da matéria a ser jul-gada, impondo ao recorrente, assim, o ônus de demonstrar a relevância jurídica, política, social ou econômica da questão controvertida. Vale dizer, o Supremo Tribunal Federal somente está autorizado a conhecer daqueles recursos que tra-tem de questões constitucionais que transcendam o interesse subjetivo da parte, sendo irrelevante, para esse efeito, as circunstâncias do caso concreto. E, mesmo diante das restritas hipóteses de admissibilidade dos recursos extraordinários, tem se mostrado infrequentes as hipóteses de êxito do recorrente. Afinal, os jul-gamentos realizados pelos Tribunais Superiores não se vocacionam a permear a discussão acerca da culpa, e, por isso, apenas excepcionalmente teriam, sob o

Page 159: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

158

Ministro Teori Zavascki

aspecto fático, aptidão para modificar a situação do sentenciado. Daí a constata-ção do Ministro Joaquim Barbosa, no HC 84.078:

“Aliás, na maioria esmagadora das questões que nos chegam para julga-mento em recurso extraordinário de natureza criminal, não é possível vislum-brar o preenchimento dos novos requisitos traçados pela EC 45, isto é, não se revestem expressivamente de repercussão geral de ordem econômica, jurí-dica, social e política. Mais do que isso: fiz um levantamento da quantidade de Recursos Extraordinários dos quais fui relator e que foram providos nos últimos dois anos e cheguei a um dado relevante: de um total de 167 REs julgados, 36 foram providos, sendo que, destes últimos, 30 tratavam do caso da progressão de regime em crime hediondo. Ou seja, excluídos estes, que poderiam ser facil-mente resolvidos por habeas corpus, foram providos menos de 4% dos casos.”

Interessante notar que os dados obtidos não compreenderam os recursos interpostos contra recursos extraordinários inadmitidos na origem (AI/ARE), os quais poderiam incrementar, ainda mais, os casos fadados ao insucesso. E não se pode desconhecer que a jurisprudência que assegura, em grau absoluto, o princípio da presunção da inocência — a ponto de negar executividade a qual-quer condenação enquanto não esgotado definitivamente o julgamento de todos os recursos, ordinários e extraordinários — tem permitido e incentivado, em boa medida, a indevida e sucessiva interposição de recursos das mais variadas espécies, com indisfarçados propósitos protelatórios visando, não raro, à confi-guração da prescrição da pretensão punitiva ou executória.

9. Esse fenômeno, infelizmente frequente no STF, como sabemos, se reproduz também no STJ. Interessante lembrar, quanto a isso, os registros de Fernando Brandini Barbagalo sobre o ocorrido na ação penal subjacente ao já mencionado HC 84.078 (Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, DJE de 26-2-2010), que resultou na extinção da punibilidade em decorrência da prescri-ção da pretensão punitiva, impulsionada pelos sucessivos recursos protelatórios manejados pela defesa. Veja-se:

“Movido pela curiosidade, verifiquei no sítio do Superior Tribunal de Justiça a quantas andava a tramitação do recurso especial do Sr. Omar. Em resumo, o recurso especial não foi recebido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo impetrado agravo para o STJ, quando o recurso especial foi, então, rejeitado monocraticamente (RESP n. 403.551/MG) pela ministra Maria Thereza de Assis. Como previsto, foi interposto agravo regimental, o qual, negado, foi combatido por embargos de declaração, o qual, conhecido, mas improvido. Então, fora interposto novo recurso de embargos de declaração, este rejeitado in limine. Contra essa decisão, agora vieram embargos de divergência que, como os outros recursos anteriores, foi indeferido. Nova decisão e novo recurso. Desta feita, um agravo regimental, o qual teve o mesmo desfecho dos demais recur-sos: a rejeição. Irresignada, a combativa defesa apresentou mais um recurso de embargos de declaração e contra essa última decisão que também foi de rejei-ção, foi interposto outro recurso (embargos de declaração). Contudo, antes que

Page 160: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

159

Ministro Teori Zavascki

fosse julgado este que seria o oitavo recurso da defesa, foi apresentada petição à presidente da terceira Seção. Cuidava-se de pedido da defesa para — surpresa — reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. No dia 24 de fevereiro de 2014, o eminente Ministro Moura Ribeiro, proferiu decisão, cujo dispositivo foi o seguinte: ‘Ante o exposto, declaro de ofício a extinção da punibilidade do con-denado, em virtude da prescrição da pretensão punitiva da sanção a ele imposta, e julgo prejudicado os embargos de declaração de fls. 2090/2105 e o agravo regi-mental de fls. 2205/2213’” (Presunção de inocência e recursos criminais excepcio-nais. 2015).

Nesse ponto, é relevante anotar que o último marco interruptivo do prazo prescricional antes do início do cumprimento da pena é a publicação da sen-tença ou do acórdão recorríveis (art. 117, IV, do CP). Isso significa que os apelos extremos, além de não serem vocacionados à resolução de questões relacionadas a fatos e provas, não acarretam a interrupção da contagem do prazo prescricio-nal. Assim, ao invés de constituírem um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade do apenado, acabam representando um mecanismo inibi-dor da efetividade da jurisdição penal.

10. Nesse quadro, cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal, garantir que o processo — único meio de efetivação do jus puniendi estatal —, resgate essa sua inafastável função institucional. A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado. Não se mostra arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas ins-tâncias ordinárias.

11. Sustenta-se, com razão, que podem ocorrer equívocos nos juízos con-denatórios proferidos pelas instâncias ordinárias. Isso é inegável: equívocos ocor-rem também nas instâncias extraordinárias. Todavia, para essas eventualidades, sempre haverá outros mecanismos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena. Medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário ou especial são instrumentos inteiramente adequados e eficazes para controlar situações de injustiças ou excessos em juízos condenatórios recorridos. Ou seja: havendo plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-lhe efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. Mais ainda: a ação constitucional do habeas corpus igualmente compõe o conjunto de vias processuais com inegável aptidão para controlar eventuais atentados aos direitos fundamentais decorrentes da condenação do acusado. Portanto, mesmo que exequível provisoriamente a

Page 161: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

160

Ministro Teori Zavascki

sentença penal contra si proferida, o acusado não estará desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos.

12. Essas são razões suficientes para justificar a proposta de orientação, que ora apresento, restaurando o tradicional entendimento desta Suprema Corte, no seguinte sentido: a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraor-dinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.

13. Na linha da tese proposta, voto no sentido de denegar a ordem de habeas corpus, com a consequente revogação da liminar concedida. É o voto.

MANDADO DE SEGURANÇA 32.033 — DF

VOTOO Sr. Ministro Teori Zavascki (Redator do acórdão): 1. Trata-se de man-

dado de segurança impetrado por Senador da República visando a obter provi-mento jurisdicional que determine a suspensão da tramitação e o arquivamento de projeto de lei, já aprovado na Câmara dos Deputados sob n. 4.470/2012, ora tramitando no Senado Federal sob n. 14/2013. O que se alega, substancialmente, é que tal PL está impregnado de manifesto vício de inconstitucionalidade material, por ofender o art. 1º, V e o art. 17, caput, da Constituição. Sustenta o impetrante que tem direito líquido e certo de, na condição de parlamentar, “não participar da produção de atos normativos” eivados com vício desse jaez. Em nome e para tutela desse afirmado direito é que deduz o pedido de sentença mandamental com a extensão indicada.

2. É evidente, registre-se desde logo, que o direito líquido e certo afirmado na impetração — de não ser obrigado, o parlamentar impetrante, a participar do processo legislativo —, não traduz a verdadeira e delicada questão constitucio-nal que decorre do pedido formulado na demanda. Esse alegado direito repre-senta, na verdade, uma engenhosa criação mental para justificar a utilização da ação de mandado de segurança, cujo objetivo real, todavia, é outro. Realmente, a esse afirmado direito subjetivo individual de não participar da formação da questionada proposição normativa, seria simples contrapor que tal direito não está sendo sequer ameaçado, nem mesmo em tese, eis que a participação do par-lamentar no processo de formação das leis não é obrigatória, nada impedindo o impetrante de, espontaneamente, exercer o afirmado direito, abstendo-se de participar ou de votar ou mesmo, ainda, de apresentar voto contrário à aprova-ção. Em termos estritamente formais, portanto, está clara a dissociação lógica entre o direito tido como ameaçado e a efetiva pretensão deduzida na demanda.

Page 162: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

161

Ministro Teori Zavascki

Na verdade, o que se busca, a pretexto de tutelar direito individual, é provi-mento de consequência muito mais profunda e abrangente: de inibir a própria tramitação do projeto de lei, o que significa impedir, não apenas o impetrante, mas todos os demais parlamentares, de discutir e votar a proposta.

Assim definida a efetiva pretensão da demanda e abstraindo as implica-ções de natureza processual daí decorrentes, as questões constitucionais que a ela subjazem ganham contornos de maior dimensão. Põe-se em primeiro plano a questão, prejudicial a todas as demais, referente à viabilidade consti-tucional da intervenção do Poder Judiciário na atividade do Legislativo para, a pedido de um parlamentar, fazer juízo sobre a constitucionalidade material de projetos de lei ou de emendas à Constituição lá em andamento, ordenando, como aqui se pretende, a suspensão do correspondente processo legislativo e o próprio arquivamento da proposta. A discussão dessa matéria, bem se percebe, assume, do ponto de vista institucional, importância maior que a do próprio tema de mérito da impetração. É que, por mais relevantes que sejam as ale-gações de inconstitucionalidade da proposta legislativa aqui questionada — e inegavelmente o são, como ficou demonstrado pelos exaustivos fundamentos do erudito voto do Ministro relator —, elas dizem respeito a tema pontual e cir-cunstancial no cenário normativo e no contexto político, que, se não for agora, poderá ser enfrentado e resolvido se e quando o projeto se transformar em lei. Já a discussão sobre a legitimidade do controle jurisdicional preventivo da constitucionalidade de propostas legislativas, essa tem natureza institucional de consequências transcendentais, com reflexos não apenas para o caso em pauta, mas principalmente para o futuro, já que definirá um marco permanente nas relações entre os Poderes da República. Envolvendo, como envolve, juízo sobre os limites dos espaços de competências, é questão que toca o cerne da autono-mia e da harmonia dos Poderes e, portanto, do sistema representativo e do pró-prio princípio democrático estabelecido na Constituição. Não custa enfatizar que, no vasto domínio da jurisdição constitucional, é justamente no plano do controle de constitucionalidade das normas que as relações de poder se mos-tram mais sensíveis. É que ali se estabelece, como percebeu Mauro Cappelletti, um confronto entre Jurisdição e Legislação. “O aspecto mais sedutor”, escreveu ele, “diria também o aspecto mais audaz e, certamente, o mais problemático do fenômeno que estamos para examinar está, de fato, justamente aqui: o encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e o julgamento, entre o legislador e o juiz” (CAPPELLETTI, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis no direito comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999. p. 26). Daí a importância que deve merecer essa questão.

3. É sabido que nosso sistema constitucional não prevê nem autoriza o controle de constitucionalidade de meros projetos normativos. A jurisprudência desta Corte Suprema está firmemente consolidada na orientação de que, em

Page 163: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

162

Ministro Teori Zavascki

regra, devem ser rechaçadas as demandas judiciais com tal finalidade. A título ilustrativo, que reflete a visão tradicional da Corte, reporto-me ao que ficou assentado na ADI 466/DF (DJ de 10-5-1991), relatada pelo Ministro Celso de Mello, em que se pretendia, mediante ação direta, o reconhecimento da incons-titucionalidade da Proposta de Emenda Constitucional — PEC n. 1-B, de 1988, que submetia a plebiscito popular a instituição de pena de morte para os crimes nela indicados. Na oportunidade, o Tribunal não admitiu a ação, sob fundamen-tos assim expostos pelo Ministro relator:

“O direito constitucional positivo brasileiro, ao longo de sua evolução histórica, jamais autorizou — como a nova Constituição promulgada em 1988 também não o admite — o sistema de controle jurisdicional preventivo de cons-titucionalidade, em abstrato. Inexiste, desse modo, em nosso sistema jurídico, a possibilidade de fiscalização abstrata preventiva da legitimidade constitucional de meras proposições normativas pelo Supremo Tribunal Federal.

Atos normativos in fieri, ainda em fase de formação, com tramitação pro-cedimental não concluída, não ensejam e nem dão margem ao controle concen-trado ou em tese de constitucionalidade, que supõe — ressalvadas as situações configuradoras de omissão juridicamente relevante — a existência de espécies normativas definitivas, perfeitas e acabadas. Ao contrário do ato normativo — que existe e que pode dispor de eficácia jurídica imediata, constituindo, por isso mesmo, uma realidade inovadora da ordem positiva —, a mera proposição legislativa nada mais encerra do que simples proposta de direito novo, a ser sub-metida à apreciação do órgão competente, para que, de sua eventual aprovação, possa derivar, então, a sua introdução formal no universo jurídico.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem refletido claramente essa posição em tema de controle normativo abstrato, exigindo, nos termos do que prescreve o próprio texto constitucional — e ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade por omissão — que a ação direta tenha, e só possa ter, como objeto juridicamente idôneo, apenas leis e atos normativos, federais ou estaduais, já promulgados, editados e publicados.”

Somente em duas situações a jurisprudência do STF abre exceção a essa regra: a primeira, quando se trata de Proposta de Emenda à Constituição — PEC que seja manifestamente ofensiva a cláusula pétrea; e a segunda, em relação a projeto de lei ou de PEC em cuja tramitação for verificada manifesta ofensa a alguma das cláusulas constitucionais que disciplinam o correspondente pro-cesso legislativo. Nos dois casos, as justificativas para excepcionar a regra estão claramente definidas na jurisprudência do Tribunal: em ambos, o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e pro-cedimentais da atuação legislativa. Assim, a impetração de segurança é admis-sível, segundo essa jurisprudência, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.

Realmente, na primeira situação (PEC ofensiva a cláusulas pétreas), o que levou o STF a justificar o cabimento do mandado de segurança foi assim

Page 164: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

163

Ministro Teori Zavascki

enunciado na ementa do acórdão em que, pela primeira vez, tal orientação foi tomada:

“Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a deliberação de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser tendente a abolição da república.

Cabimento do mandado de segurança em hipóteses em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou a sua deliberação (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade diz res-peito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer em face da gravidade dessas deliberações, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a pro-posta se transformar em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a constituição. (…)” (MS 20.257/DF, Pleno, Maioria, Redator para o acórdão o Min. Moreira Alves, j. 8-10-1980, DJ de 27-8-1981).

O voto então proferido, ainda à luz da Constituição anterior, esclarece bem a excepcional razão de admitir o controle preventivo nesses casos:

“No § 1º do artigo 47 da Constituição Federal, preceitua-se que: ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a

abolir a Federação ou a República’. Objeto de deliberação significa, sem a menor dúvida, objeto de votação,

porque é neste momento que se delibera a favor da emenda ou contra ela. Por outro lado, se a direção dos trabalhos do Congresso cabe ao Presidente

do Senado; se este, pelo próprio Regimento comum do Congresso Nacional (art. 73), pode, liminarmente, rejeitar a proposta de emenda que não atende ao dis-posto no artigo 47, § 1º, da Constituição (e quem tem poder de rejeição liminar o tem, igualmente, no curso do processo); e se a Constituição alude a objeto de deliberação (o que implica dizer que seu termo é o momento imediatamente anterior à votação); não há dúvida, a meu ver, de que a qualquer tempo, antes da votação, pode a Presidência do Congresso, convencendo-se de que a proposta de emenda tende a abolir a Federação ou a República, rejeitá-la, ainda que não tenha feito inicialmente.

Cabível, portanto, no momento em que o presente mandado de segu-rança foi impetrado, sua impetração preventiva, uma vez que visava ele a impe-dir que a Presidência do Congresso colocasse em votação a proposta de emenda. Aprovada esta, o mandado de segurança — como tem entendido esta Corte — se transforma de preventivo em restaurador da legalidade.”

Registre-se que a Constituição de 1988, ao tratar das cláusulas pétreas, reproduz a mesma linguagem proibitiva, no seu art. 60, § 4º (“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...)”). Justifica-se essa cláusula limitadora, que não existe para projetos de leis, não apenas porque se trata de proposta de norma com suprema hierarquia no ordenamento jurídico, mas sobretudo porque, ao contrário das outras espécies normativas — cuja

Page 165: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

164

Ministro Teori Zavascki

aprovação está subordinada a uma segunda instância de Poder, a do Executivo, que poderá vetá-las —, a proposta de emenda constitucional é aprovada por deliberação de instância única, apenas a do Poder Constituinte reformador, de que se investe, com exclusividade, o Congresso Nacional.

Na outra situação — de projetos de lei ou de PEC em cuja tramitação não seja observado o processo legislativo disciplinado na Constituição —, a justifica-ção é a mesma: em casos tais, a ofensa à Constituição se manifesta desde logo, no curso da própria tramitação do projeto, independentemente de aprovação ou não. Reporto-me à própria decisão liminar aqui proferida, que atesta essa cir-cunstância ao afirmar:

“A orientação aqui perfilhada (quanto ao cabimento do presente writ) está em consonância com o entendimento desta Corte, que, desde o julgamento do MS 20.257-DF (Rel. p/o acórdão o Ministro Moreira Alves, Pleno, DJ de 27-2-1981), já acolhia a tese do cabimento do mandado de segurança preventivo nas hipóteses em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda. Nesse caso, a inconstitucionalidade já existiria antes mesmo de o projeto ou de a proposta se transformar em lei ou em emenda cons-titucional, porque o processamento, por si só, já desrespeitaria, frontalmente, a própria Constituição.”

Apenas nessas duas excepcionais situações é que se tem admitido, por-tanto, o controle da legitimidade constitucional de projetos de lei ou de emenda à Constituição, controle que se viabiliza por mandado de segurança, de inicia-tiva exclusiva de membro do Parlamento.

Em voto proferido no MS 31.816, manifestei reservas pessoais quanto ao cabimento da medida, mesmo nesses casos excepcionais, notadamente em face da reserva de iniciativa assegurada a parlamentar, a quem a Constituição sequer confere legitimidade para provocar o controle de constitucionalidade sucessivo, por ação. Não posso deixar de reconhecer, entretanto, que se trata de orientação com o abono — e por isso merece o devido respeito — da jurisprudência do STF, como documenta o seguinte precedente:

“CONSTITUCIONAL. PODER LEGISLATIVO: ATOS: CONTROLE JUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PARLAMENTARES. I. — O Supremo Tribunal Federal admite a legitimidade do parlamentar — e somente do parlamentar — para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucio-nal incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo. II. — Precedentes do STF: MS 20.257/DF, Ministro Moreira Alves (leading case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, Ministro Aldir Passarinho (RTJ 116/47); MS 21.642/DF, Ministro Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF, Ministro Celso de Mello, DJ de 15-9-2003; MS 24.593/DF, Ministro Maurício Corrêa, DJ de 8-8-2003; MS 24.576/DF, Ministra Ellen Gracie, DJ de 12-9-2003;

Page 166: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

165

Ministro Teori Zavascki

MS 24.356/DF, Ministro Carlos Velloso, DJ de 12-9-2003. III. — Agravo não provido (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23-4-2004).”

4. Todavia, a hipótese dos autos não se enquadra em qualquer dessas duas excepcionais situações. Aqui, não se está a tratar de PEC ofensiva a cláusula pétrea, mas de projeto de lei. Tampouco se alega, na inicial, que na tramitação do projeto de lei tenha sido descumprida alguma das exigências estabelecidas pela Constituição para o regular processo legislativo. O que se afirma, simplesmente, é que o projeto de lei tem conteúdo incompatível com o art. 1º, V e com o art. 17, caput, da Constituição Federal. Com fundamento nessa exclusiva alegação de inconstitucionalidade material é que se pede ao STF para suspender a tramita-ção do projeto e inibir qualquer discussão ou deliberação parlamentar a respeito.

Ora, admitir mandado de segurança com essa finalidade significa alterar radicalmente o entendimento até aqui adotado, a respeito do controle da ativi-dade parlamentar pelo Supremo Tribunal Federal. A mais notória e evidente consequência será a universalização do controle preventivo de constituciona-lidade, em manifesto desalinhamento com o sistema estabelecido na Carta da República, abonado, nesse aspecto, por antiga e pacífica jurisprudência da Corte, como ao início ficou demonstrado. Ao modelo constitucional de exclusivo con-trole de normas (= controle sucessivo-repressivo), exercido com exclusividade pelos órgãos e instituições arrolados no art. 103 da CF, mediante ação própria ali indicada, admitir-se-á, caso acolhido o pedido formulado nesta impetração, um controle jurisdicional, por ação, da constitucionalidade material de projetos de normas (= controle preventivo), a ser exercido por qualquer parlamentar, e exclu-sivamente por parlamentar, mediante utilização, com essa exótica finalidade, da via do mandado de segurança, sob o artificioso pretexto de tutelar direito líquido e certo de não participar da votação do projeto. Tal elastério — que consagraria um modelo de controle jurisdicional preventivo sem similar no direito compa-rado, porque direcionado a meros projetos, antes mesmo de qualquer delibera-ção definitiva do Legislador a respeito (o exemplo, sempre referido de controle preventivo, exercido pelo Conselho Constitucional na França, tem por objeto leis ainda não promulgadas, mas já aprovadas pelo Parlamento) — certamente ultrapassa os limites constitucionais da intervenção do Judiciário no processo de formação das leis, judicializando-o excessiva e injustificadamente.

5. É preciso considerar, nesse ponto, que o processo legislativo constitui a mais típica e peculiar atividade do Poder Legislativo, que o exerce por critérios e mediante instrumentos de caráter marcadamente políticos. Embora se saiba, como assinalou Dieter Grimm, que, nos Estados modernos, “não é mais possível uma separação entre direito e política no nível da legislação”, é preciso acentuar, como ele também reconhece, que as decisões políticas, no plano da formação da lei, pertencem ao Legislativo, não ao Judiciário, cujas decisões somente são

Page 167: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

166

Ministro Teori Zavascki

consideradas políticas quando e porque têm por substrato o controle de cons-titucionalidade, ou a interpretação ou a aplicação de leis, já formadas, de con-teúdo político (GRIMM, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 11, 14-15). É indispensável, por isso mesmo, que na relação entre direito e política e seus correspondentes atores institucionais, se leve na devida conta a necessária separação que há entre o pro-cesso para a formação da lei e o processo para interpretação e aplicação da lei já formada: aquele, pertencente ao domínio político do Parlamento e do poder de veto do Executivo, deve ser resguardado de interferências jurisdicionais inde-vidas, assim como esse, que pertence ao domínio judiciário, não pode ser con-taminado por interferências externas de origem política. Invocando outra vez a lição experiente do professor Dieter Grimm, escrita já na condição de ex-juiz e Presidente da Corte Constitucional da Alemanha, “(...) tribunais constitucio-nais só podem cumprir sua função fiscalizadora a partir de uma posição de dis-tância da política. A vinculação constitucional a que a política está submetida no estado democrático é uma vinculação jurídica” (op. cit., p. 169). Ora, inserir os tribunais na fiscalização do conteúdo material de projetos de leis significa transportá-los para o próprio âmago do debate político, o que compromete o distanciamento que se recomenda. E se recomenda, quanto mais não seja, até para preservar as Cortes Constitucionais de sua reconhecida inaptidão “para resolver, por via de ação, os conflitos carregados de paixões políticas”, uma vez que, como foi anotado com ironia e certo exagero, “à semelhança dos sismógra-fos, que registram com precisão os abalos sísmicos ocorridos à distância, esses tribunais se transformam em escombros quando situados no epicentro dos ter-remotos políticos” (Inocêncio Mártires Coelho, citando Georges Burdeau, na apresentação da obra citada, de Dieter Grimm, cit., p. XXIII).

6. Pois bem, se as hipóteses de intervenção jurisdicional no processo legislativo hão de estar contidas nos parâmetros expressamente estabeleci-dos na Constituição, não faz sentido algum atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato de constitu-cionalidade de normas, uma prerrogativa, sob todos os aspectos muito mais abrangente e muito mais eficiente, de provocar esse controle sobre os próprios projetos legislativos. Aliás, a se admitir, em situação assim, a legitimação ativa de um parlamentar, certamente não haveria razão alguma para negar — pelo contrário, seria uma imposição necessária do sistema admitir — que medida semelhante e com a mesma finalidade fosse proposta por qualquer dos legitima-dos pela Constituição (art. 103) a promover o controle repressivo, ou sucessivo.

7. Também não se pode admitir, como justificativa para essa espécie de controle preventivo por mandado de segurança, o argumento da gravidade do vício que visa a atacar. Soa um pouco redundante falar em inconstitucionali-dade grave. A inconstitucionalidade de uma norma pode ser classificada como

Page 168: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

167

Ministro Teori Zavascki

mais ou menos evidente, mais ou menos manifesta, porque tal classificação depende apenas da sofisticação maior ou menor dos recursos hermenêuticos necessários para identificar sua ilegitimidade. Todavia, identificada a inconsti-tucionalidade, ela será invariavelmente grave, como é grave, sempre, qualquer ofensa à Constituição. Assim, a discriminação pelo critério de gravidade — que, de resto, é conceito jurídico manifestamente indeterminado, sujeito a preen-chimento valorativo de múltiplos matizes — apenas comprova essa inafastável constatação: admitir essa espécie de mandado de segurança, para controle da constitucionalidade material de projetos de lei, significa, na prática, consagrar a universalização do seu controle preventivo, o que afronta o sistema consagrado na Constituição.

8. Outra relevante consequência da prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento é a de subtrair, dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de, eles próprios, exercerem o controle preventivo da legitimidade das normas. Convém enfatizar que a manutenção e a preservação do Estado Constitucional de Direito é poder-dever comum aos três Poderes, a ser exercido e exaurido no âmbito das suas corres-pondentes atividades, no seu devido tempo e segundo seus métodos e sua pauta. Não há dúvida que a antecipada intervenção do Judiciário no processo de for-mação das leis, ressalvadas as excepcionais hipóteses antes indicadas e justifi-cadas, retira do Poder Legislativo a prerrogativa constitucional de ele próprio, através do debate parlamentar, aperfeiçoar o projeto e, quem sabe, sanar os seus eventuais defeitos. Reside justamente nesse debate a tipicidade e a essência da atividade parlamentar, com sua lógica e sua logística peculiares, que, embora diferentes das do Judiciário, devem ser igualmente respeitadas e preservadas. Não se pode desacreditar ou dispensar, por antecipação, a eficácia depuradora e enriquecedora da função parlamentar. O mesmo se diga, aliás, da prerrogativa de controle de constitucionalidade que a Constituição atribui ao Presidente da República, investido que está do poder, do qual não pode ser destituído por antecipação, de apor vetos a projetos inconstitucionais (CF, art. 66, § 1º).

9. Em suma, ainda que se reconheça — e se reconhece, a plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade material do projeto de lei aqui atacado, e ainda que se dê crédito à afirmação do Impetrante — de que a aprovação do projeto é de interesse da maioria hegemônica do Parlamento e da Presidência da República e que, portanto, é elevada a probabilidade de sua transformação em lei —, isso não justifica, no meu entender, que se abra precedente com tão graves consequências para a relação institucional entre os Poderes da República, que é o de inaugurar e universalizar a tutela jurisdicional da atividade parlamentar mediante controle de constitucionalidade material de projetos de lei, tudo fun-dado na presunção de que, tanto o Legislativo quanto o Executivo, permitirão

Page 169: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

168

Ministro Teori Zavascki

que a inconstitucionalidade se concretize. Aliás, quanto mais evidente e gro-tesca for a inconstitucionalidade material de projetos de leis — como seriam as dos exemplos trazidos no voto do relator (instituição de pena de morte, descriminalização da pedofilia ou instituição de censura aos meios de comuni-cação) — menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar por inteiro a serie-dade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. Mas, se, por absurdo, um projeto assim viesse a ser transformado em lei, ainda não ficaria de modo algum comprometida a eficácia do controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico.

10. Ante o exposto, por não ver presente a alegada ameaça ao afirmado direito líquido e certo do impetrante de não participar do processo legislativo aqui questionado e por não reconhecer como direito subjetivo ou prerrogativa constitucional de parlamentar a de provocar o controle preventivo de inconsti-tucionalidade material de projetos de lei, voto no sentido de revogar a liminar e denegar a ordem. É o voto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 730.462 — SP

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. A disciplina da matéria rela-cionada a honorários advocatícios por sucumbência é de natureza tipicamente infraconstitucional. É a lei ordinária que estabelece em que casos cabe ou não a condenação, bem como os critérios para a fixação do respectivo valor (AI 817.165 AgR, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJE de 27-3-2014; ARE 755.830 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 4-12-2013; e ARE 740.552 AgR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, DJE de 13-6-2013). É igualmente atribuição do legislador ordinário a formatação da disciplina da coisa julgada, seus limites e o modo como se materializa processualmente (ARE 800.013 AgR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, DJE de 6-5-2014; ARE 796.136 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJE de 7-5-2014; e ARE 775.408 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 7-5-2014). Essa orientação foi explicitamente adotada em jul-gamento sob regime de repercussão geral, no ARE 748.371 RG (Rel. Min. GILMAR MENDES, Tema 660), o qual, embora afirmando a inexistência de repercussão geral, tem eficácia em relação a todos os recursos sobre matéria idêntica (art. 543-A, § 5º, do CPC c/c art. 327, § 1º, do RISTF).

Page 170: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

169

Ministro Teori Zavascki

2. Afastados esses fundamentos do recurso, o que nele subsiste, como matéria constitucional, é a questão relacionada ao alcance da eficácia das sen-tenças que, em controle concentrado, declaram a inconstitucionalidade de um preceito normativo. Mais especificamente: cumpre decidir se a declaração de inconstitucionalidade tomada em ADI atinge desde logo sentenças anteriores já cobertas por trânsito em julgado, que tenham decidido em sentido contrário. Essa é a questão a ser enfrentada.

3. A afirmação da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade da norma no âmbito de ação de controle concentrado (ADI ou ADC) simplesmente reconhece a sua validade ou a sua nulidade, gerando, no plano do ordenamento jurídico, a consequência (que se pode denominar de eficácia normativa) de manter ou excluir a referida norma do sistema de direito. Todavia, dessa sen-tença de mérito decorre também o efeito vinculante, consistente em atribuir ao julgado uma qualificada força impositiva e obrigatória em relação a super-venientes atos administrativos ou judiciais. É o que se pode denominar de efi-cácia executiva ou instrumental, que, para efetivar-se, tem como mecanismo executivo próprio, embora não único, a reclamação prevista no art. 102, I, “l”, da Carta Constitucional. No julgamento da ADC 1 por este Supremo Tribunal Federal ficou reconhecido, nos termos do voto do Min. Moreira Alves, relator, que do efeito vinculante resultam as seguintes consequências típicas:

(a) “se os demais órgãos do Poder Judiciário, nos casos sob seu julga-mento, não respeitarem a decisão prolatada nessa ação, a parte prejudicada poderá valer-se do instituto da reclamação para o STF, a fim de que este garanta a autoridade dessa decisão”; e (b) “essa decisão (e isso se restringe ao dispositivo dela, não abrangendo como sucede na Alemanha os seus fundamentos determi-nantes (…)) alcança os atos normativos de igual conteúdo daquele que deu ori-gem a ela mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova ação, serem tidos por constitucionais ou inconstitucionais, adstrita essa eficácia aos atos normativos emanados dos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo, uma vez que ela não alcança os atos emanados do Poder Legislativo” (RTJ 157:382).

4. É importante distinguir essas duas espécies de eficácia (a normativa e a executiva), pelas consequências que operam em face das situações concretas. A eficácia normativa (= declaração de constitucionalidade ou de inconstituciona-lidade) se opera ex tunc, porque o juízo de validade ou nulidade, por sua natu-reza, dirige-se ao próprio nascimento da norma questionada. Todavia, quando se trata da eficácia executiva, não é correto afirmar que ele tem eficácia desde a origem da norma. É que o efeito vinculante, que lhe dá suporte, não decorre da validade ou invalidade da norma examinada, mas, sim, da sentença que a exa-mina. Derivando, a eficácia executiva, da sentença (e não da vigência da norma examinada), seu termo inicial é a data da publicação do acórdão do Supremo no Diário Oficial (art. 28 da Lei 9.868/1999). É, consequentemente, eficácia que

Page 171: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

170

Ministro Teori Zavascki

atinge atos administrativos e decisões judiciais supervenientes a essa publicação, não atos pretéritos. Os atos anteriores, mesmo quando formados com base em norma inconstitucional, somente poderão ser desfeitos ou rescindidos, se for o caso, em processo próprio. Justamente por não estarem submetidos ao efeito vinculante da sentença, não podem ser atacados por simples via de reclamação. É firme nesse sentido a jurisprudência do Tribunal:

“Inexiste ofensa à autoridade de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal se o ato de que se reclama é anterior à decisão emanada da Corte Suprema. A ausência de qualquer parâmetro decisório, previamente fixado pelo Supremo Tribunal Federal, torna inviável a instauração de processo de reclama-ção, notadamente porque inexiste o requisito necessário do interesse de agir” (Rcl 1.723 AgR-QO, Min. Celso de Mello, Pleno, DJ de 6-4-2001).

No mesmo sentido: Rcl 5.388 AgR, Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, DJE de 23-10-2014; Rcl. 12.741 AgR, 2ª Turma, Min. Ricardo Lewandowski, DJE de 18-9-2011; Rcl 4.962, Min. Cármen Lúcia, 2ª Turma, DJE de 25-6-2014.

5. Isso se aplica também às sentenças judiciais anteriores. Sobrevindo decisão em ação de controle concentrado declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo, nem por isso se opera a automá-tica reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado enten-dimento diferente. Conforme asseverado, o efeito executivo da declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade deriva da decisão do STF, não atingindo, consequentemente, atos ou sentenças anteriores, ainda que inconsti-tucionais. Para desfazer as sentenças anteriores será indispensável ou a interpo-sição de recurso próprio (se cabível), ou, tendo ocorrido o trânsito em julgado, a propositura da ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execu-ção de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto, notadamente quando decide sobre relações jurídicas de trato continuado, tema de que aqui não se cogita. Interessante notar que o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 16-3-2015), com vigência a partir de um ano de sua publicação, traz disposição explícita afirmando que, em hipóteses como a aqui focada, “caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão pro-ferida pelo Supremo Tribunal Federal” (art. 525, § 12 e art. 535, § 8º). No regime atual, não há, para essa rescisória, termo inicial especial, o qual, portanto, se dá com o trânsito em julgado da decisão a ser rescindida (CPC, art. 495).

6. Pode ocorrer — e, no caso, isso ocorreu — que, quando do advento da decisão do STF na ação de controle concentrado, declarando a inconstituciona-lidade, já tenham transcorrido mais de dois anos desde o trânsito em julgado da sentença em contrário, proferida em demanda concreta. (Fenômeno seme-lhante poderá vir a ocorrer no regime do novo CPC, se a parte interessada não

Page 172: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

171

Ministro Teori Zavascki

propuser a ação rescisória no prazo próprio). Em tal ocorrendo, o esgotamento do prazo decadencial inviabiliza a própria ação rescisória, ficando a sentença, consequentemente, insuscetível de ser rescindida, mesmo que contrária à deci-são do STF em controle concentrado.

Imunidades dessa espécie são decorrência natural da já mencionada irre-troatividade do efeito vinculante (e, portanto, da eficácia executiva) das deci-sões em controle concentrado de constitucionalidade. Há, aqui, uma espécie de modulação temporal ope legis dessas decisões, que ocorre não apenas em relação a sentenças judiciais anteriores revestidas por trânsito em julgado, mas também em muitas outras situações em que o próprio ordenamento jurídico impede ou impõe restrições à revisão de atos jurídicos já definitivamente consolida-dos no passado. São impedimentos ou restrições dessa natureza, por exemplo, a prescrição e a decadência. Isso significa que, embora formados com base em preceito normativo declarado inconstitucional (e, portanto, excluído do orde-namento jurídico), certos atos pretéritos, sejam públicos, sejam privados, não ficam sujeitos aos efeitos da superveniente declaração de inconstitucionalidade porque a prescrição ou a decadência inibem a providência extrajudicial (v.g., o lançamento fiscal) ou o ajuizamento da ação própria (v.g., ação anulatória, cons-titutiva, executiva ou rescisória) indispensável para efetivar o seu ajustamento à superveniente decisão do STF. No âmbito criminal, configura hipótese típica de modulação temporal ope legis a norma que não admite revisão criminal da sen-tença absolutória (art. 621 do CPP), bem como inibe o agravamento da pena, em caso de procedência da revisão (art. 626, parágrafo único, do CPP). Isso significa que, declarada inconstitucional e excluída do ordenamento jurídico uma norma penal que tenha sido aplicada em benefício do acusado em sentença criminal transitada em julgado, há empecilho legal à eficácia executiva ex tunc dessa declaração, por falta de instrumentação processual para tanto indispensável.

7. No caso, mais de dois anos se passaram entre o trânsito em julgado da sentença no caso concreto reconhecendo, incidentalmente, a constitucionali-dade do artigo 9º da Medida Provisória 2.164-41 (que acrescentou o artigo 29-C na Lei 8.036/90) e a superveniente decisão do STF que, em controle concentrado, declarou a inconstitucionalidade daquele preceito normativo, a significar, pelos fundamentos já expostos, que aquela sentença é insuscetível de rescisão.

8. O que se acaba de sustentar tem apoio na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a saber:

R ECU R SO E X T R AOR DI NÁ R IO. COISA J U LGA DA E M SENTIDO MATERIAL. INDISCUTIBILIDADE, IMUTABILIDADE E COERCIBILIDADE: ATRIBUTOS ESPECIAIS QUE QUALIFICAM OS EFEITOS RESULTANTES DO COMANDO SENTENCIAL. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL QUE AMPARA E PRESERVA A AUTORIDADE DA COISA JULGADA. EXIGÊNCIA DE CERTEZA E DE SEGURANÇA

Page 173: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

172

Ministro Teori Zavascki

JURÍDICAS. VALORES FUNDAMENTAIS INERENTES AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. EFICÁCIA PRECLUSIVA DA RES JUDICATA. TANTUM JUDICATUM QUANTUM DISPUTATUM VEL DISPUTARI DEBEBAT. CONSEQUENTE IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO DE CONTROVÉRSIA JÁ APRECIADA EM DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO, AINDA QUE PROFERIDA EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A QUESTÃO DO ALCANCE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 741 DO CPC. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação res-cisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento pos-terior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade.

A superveniência de decisão do Supremo Tribunal Federal, declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada de eficácia ex tunc — como sucede, ordinariamente, com os julgamentos proferidos em sede de fiscaliza-ção concentrada (RTJ 87/758 — RTJ 164/506-509 — RTJ 201/765) —, não se revela apta, só por si, a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte. Doutrina. Precedentes.

O significado do instituto da coisa julgada material como expressão da própria supremacia do ordenamento constitucional e como elemento inerente à existência do Estado Democrático de Direito (RE 592.912 AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJE de 22-11-2012).

AGRAVO REGIMENTAL EM R E C U R S O E X T R AOR DI NÁ R IO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DESAPROPRIAÇÃO. BENFEITORIAS. PAGAMENTO EM ESPÉCIE. DISPOSITIVOS LEGAIS DECLARADOS INCONSTITUCIONAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. COISA JULGADA. DESCONSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

É certo que esta Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de dispositivos que autorizam o pagamento, em espécie, de benfeitorias fora da regra do precatório. Isso não obstante, no caso dos autos, esse pagamento foi determinado por título executivo que está protegido pelo manto da coisa julgada, cuja desconstituição não é possível em sede de recurso extraordinário interposto contra acórdão proferido em processo de embargos à execução. Precedente: RE 443.356 AgR, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence. Agravo regimental des-provido. (RE 473.715 AgR, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, DJE de 25-5-2007)

Desapropriação: recurso do INCRA contra decisão proferida em execu-ção, onde se alega impossibilidade do pagamento de benfeitorias úteis e necessá-rias fora da regra do precatório: rejeição: preservação da coisa julgada. Malgrado o Supremo Tribunal Federal tenha se manifestado, por duas vezes, quanto à

Page 174: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

173

Ministro Teori Zavascki

inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizam o pagamento das benfeitorias úteis e necessárias fora da regra do precatório (ADIn 1.187 MC, 9-2-1995, Ilmar; RE 247.866, Ilmar, RTJ 176/976), a decisão recorrida, exarada em processo de execução, tem por fundamento a fidelidade devida à sentença proferida na ação de desapropriação, que está protegida pela coisa julgada a res-peito. (RE 431.014 AgR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, DJE de 25-5-2007).

9. Saliente-se, por outro lado, que não há incompatibilidade com a tese aqui defendida e o decidido por esta Corte no RE 363.889 (Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Plenário, DJE de 16-12-2011), precedente suscitado no parecer da Procuradoria-Geral da República para fundamentar o provimento do recurso extraordinário. Nesse julgado, o STF reconheceu a legitimidade da relativização de coisa julgada estabelecida em ação de investigação de paternidade julgada improcedente por falta de provas, em decorrência da não realização de exame de DNA. Privilegiou-se, assim, o direito à busca da identidade genética, decor-rente do princípio da dignidade da pessoa humana, em face do postulado da segurança jurídica.

Bem se percebe, assim, que naquele precedente estavam em discussão princípios constitucionais que não encontram aplicabilidade na presente hipó-tese. Com efeito, o que aqui se sustenta não é a imutabilidade absoluta da coisa julgada material, mas apenas que, transcorrido o prazo decadencial da ação rescisória, não podem ser desconstituídos os efeitos de sentença transitada em julgado sob o argumento de que a norma que a fundamentou foi posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Resguarda-se, nesta hipótese, a segurança jurídica, consubstanciada na preservação da coisa julgada material, sem, contudo, descartar a legitimidade de sua relativização em casos excepcionais, como aquele apreciado por esta Corte nos autos do RE 363.889.

10. Estando o acórdão recorrido em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cumpre negar provimento ao recurso extraordi-nário, afirmando-se a seguinte tese para efeito de repercussão geral: a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitu-cionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495).

11. Diante do exposto, nego provimento ao recurso extraordinário. É o voto.

Page 175: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

174

Ministro Teori Zavascki

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.418 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): (...). 6. Também em questão nesta Ação Direta de Inconstitucionalidade a legitimidade constitucional do pará-grafo único do art. 741 do CPC, cuja redação original adveio da MP 2.180-35/2001 e que foi modificado pela Lei 11.232/2005. Tratando da inexigibilidade do título executivo como matéria de defesa em “Execução contra a Fazenda Pública”, o dispositivo estabelece que “(...) considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. Dispositivo semelhante é o do § 1º do art. 475-L, que trata da defesa dos demais devedores nas execuções de sentenças condenatórias de pagar quantia, que, a partir da reforma processual introduzida pela mesma Lei 11.232/2005, se dá mediante impugnação, incidente que, por analogia, é também aplicável às demais ações denominadas executivas lato sensu, assim caracterizadas por concentrarem, numa única relação processual, toda a ativi-dade jurisdicional cognitiva e executiva. É o caso das ações para cumprimento de obrigações pessoais de fazer e não fazer (art. 461 do CPC) e de entregar coisa (art. 461-A).

7. Conforme já registrado, o novo Código de Processo Civil tem disci-plina semelhante, embora não idêntica, a essa que existia no Código de 1973, agora revogado. Assim, no capítulo que trata “do cumprimento definitivo da sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa”, traz os seguintes dispositivos (em substituição ao § 1º do art. 475-L do Código revo-gado de 1973):

Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, indepen-dentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.

§ 1º Na impugnação, o executado poderá alegar: (...)III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;(...)§ 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se

também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.

Page 176: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

175

Ministro Teori Zavascki

§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.

§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trân-sito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

E no capítulo que trata especificamente “do cumprimento definitivo da sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública”, o novo Código traz o seguinte dispositivo (em substituição ao parágrafo único do art. 741 do Código revogado, de 1973):

“Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu represen-tante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:

(...)III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;(...)§ 5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, conside-

ra-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

O regime atual tem como novidades, além da explicitação de que as deci-sões do Supremo ali referidas podem ser “em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso”, os acréscimos e explicitações constantes nos parágrafos 13 a 15 do art. 525, matéria não tratada pelo Código revogado. Embora esses parágrafos não tenham sido reproduzidos no capítulo que trata da execução contra a Fazenda Pública (art. 535 do NCPC), parece evidente que sua aplicação por analogia deverá ser reconhecida também naquela situação.

O que se questiona, na presente ação, são os dispositivos Código de 1973. Todavia, dada a similitude de tratamento jurídico dispensado à matéria pelo Código atual (exceto no que se refere aos parágrafos 13 e 15 do art. 525, que aqui não estão em questão, já que tratam de matéria normativa inédita) as referên-cias aos textos normativos questionados podem ser reproduzidas em relação aos correspondentes dispositivos do CPC de 2015, o mesmo podendo-se afirmar em relação aos fundamentos para justificar a sua validade ou invalidade.

8. Tanto o parágrafo único do art. 741 do CPC/73, quanto o § 1º do seu art. 475-L, com redação semelhante, vieram agregar às hipóteses de rescisão dos julgados, até então elencadas no art. 485 do CPC/73 e veiculáveis por ação res-cisória, um novo mecanismo de oposição a sentenças com trânsito em julgado, cujo fundamento é um peculiar vício de inconstitucionalidade da sentença exe-quenda, consistente na sua contrariedade a decisão do STF em controle de cons-titucionalidade, vício esse cuja invocação pode se dar, conforme o caso, por ação

Page 177: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

176

Ministro Teori Zavascki

autônoma de embargos à execução (art. 741, parágrafo único) ou por impugna-ção ao cumprimento da sentença (art. 475-L, § 1º). Em qualquer das hipóteses, as consequências são semelhantes: tanto a procedência da ação rescisória, como a procedência dos embargos à execução ou do incidente de impugnação inibem a prática dos atos executivos da sentença atacada e impõem a extinção do pro-cesso de execução.

9. Registre-se, desde logo, que, segundo a jurisprudência assentada no STF (por todos, ilustrativamente, o acórdão de lavra do Min. Celso de Mello no RE 681.953, DJE de 9-11-2012, com farta indicação de precedentes no mesmo sentido), o instituto da coisa julgada, embora de matriz constitucional, tem sua conformação delineada pelo legislador ordinário, ao qual se confere a faculdade de estabelecer seus limites objetivos e subjetivos, podendo, portanto, indicar as situações em que tal instituto cede passo a postulados, princípios ou bens de mesma hierarquia, porque também juridicamente protegidos pela Constituição. É o que ocorre, v.g., nas hipóteses de ação rescisória previstas no art. 485 do CPC/73 (e no art. 966 do CPC/15), em que a coisa julgada fica submetida a outros valores constitucionais considerados circunstancialmente preponderan-tes, como o da imparcialidade do juiz (incisos I e II), o da boa-fé e da seriedade das partes quando buscam a tutela jurisdicional (inciso III), o da própria coisa julgada (inciso IV) e, mesmo, o da justiça da sentença quando comprometida por ofensa à literalidade de lei ou por manifesta contrariedade aos fatos ou à prova (incisos V a IX). É evidente que, como sempre ocorre nessa atividade nor-mativa infraconstitucional de dar concreção a normas constitucionais e, se for o caso, de estabelecer fórmulas para harmonizar eventuais situações de colisão de valores ou princípios de superior hierarquia, a legitimidade da solução ofe-recida pelo legislador ordinário supõe observância de critérios de razoabilidade e de proporcionalidade, a fim de não comprometer mais do que o estritamente necessário qualquer dos valores ou princípios constitucionais colidentes.

10. À luz das premissas indicadas é que deve ser examinada a legitimi-dade constitucional do instrumento processual previsto no parágrafo único do art. 741 do CPC/73 e no art. 475-L, § 1º (reproduzidos, como já se enfatizou, nos artigos 525, §§ 12 e 14, 535, § 5º do CPC/15). Há polêmica a respeito dele na doutrina. Por um lado, há os que simplesmente o consideram inconstitucional por ofensa ao princípio da coisa julgada (v.g.: NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 8. ed. SP: RT, 2004. p. 1156; DALLAZEM, Dalton Luiz. Execução de título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF. Revista Dialética de Direito Processual — RDDP, 14:21). É posicionamento que tem como pressu-posto lógico — expresso ou implícito — a sobrevalorização do princípio da coisa julgada, que estaria hierarquicamente acima de qualquer outro princípio cons-titucional, inclusive o da supremacia da Constituição, o que não é verdadeiro.

Page 178: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

177

Ministro Teori Zavascki

Se o fosse, ter-se-ia de negar a constitucionalidade da própria ação rescisória, instituto que evidencia claramente que a coisa julgada não tem caráter absoluto, comportando limitações, especialmente quando estabelecidas, como ocorreu no dispositivo em exame, por via de legislação ordinária.

Há, por outro lado, corrente de pensamento situada no outro extremo, dando prevalência máxima ao princípio da supremacia da Constituição e, por isso mesmo, considerando insuscetível de execução qualquer sentença tida por inconstitucional, independentemente do modo como tal inconstitucionalidade se apresenta ou da existência de pronunciamento do STF a respeito, seja em controle difuso, seja em controle concentrado (v.g.: THEODORO JR., Humberto. A reforma do processo de execução e o problema da coisa julgada inconstitucional. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 89, p. 94 ⁄95, jan.-jun. 2004,). Também essa corrente merece críticas. Ela confere aos embargos à execução uma eficácia rescisória muito maior que a prevista no parágrafo único do art. 741 do CPC/73, aqui examinado, eficácia essa que, para sustentar-se, haveria de buscar apoio, portanto, não nesse dispositivo infraconstitucional, mas diretamente na Constituição. Ademais, a admitir- se a ineficácia das sentenças em tão amplos domínios, restaria eliminado, de modo completo, pelo menos em matéria consti-tucional, o instituto da coisa julgada, que também tem assento na Constituição. Comprometer-se-ia também um dos escopos primordiais do processo, o da pacificação social mediante eliminação da controvérsia, pois ficaria aberta a oportunidade de permanente renovação do questionamento judicial de lides já decididas. Ensejar-se-ia que qualquer juiz, simplesmente invocando a inconsti-tucionalidade, negasse execução a qualquer sentença, inclusive as proferidas por órgãos judiciários hierarquicamente superiores (tribunais de apelação e mesmo tribunais superiores). Em suma, propiciar-se-ia, em matéria constitucional, a perene instabilidade do julgado, dando razão à precisa crítica de Barbosa Moreira:

“Suponhamos que um juiz convencido da incompatibilidade entre certa sentença e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de con-siderá-la, por sua vez, inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pode ser afastado em relação à pri-meira sentença, porque não poderá sê-lo em relação à segunda?” (Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Revista Dialética de Direito Processual — RDDP, n. 22, p. 108⁄9).

In medio virtus. Entre as duas citadas correntes (que, com suas posições extremadas, acabam por comprometer o núcleo essencial de princípios consti-tucionais, ou o da supremacia da Constituição ou o da coisa julgada) estão os que, reconhecendo a constitucionalidade das questionadas normas (arts. 741,

Page 179: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

178

Ministro Teori Zavascki

parágrafo único, e 475-L, § 1º, do CPC/73), buscam dar-lhes o alcance compatível com o seu enunciado, alcance esse que, todavia, nem sempre é de compreensão unívoca. Há quem sustente que a inexigibilidade do título executivo judicial seria invocável apenas nas restritas hipóteses em que houver precedente do STF em controle concentrado de constitucionalidade, declarando a inconstitucio-nalidade do preceito normativo aplicado pela sentença exequenda (v.g.: ASSIS, Araken de. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. Revista Dialética de Direito Processual — RDDP, São Paulo: Dialética, n. 4. p. 9-27.). E há quem vê no texto normativo um domínio maior, que abarcaria também as hipóteses em que (a) a sentença exequenda der aplicação a preceito normativo declarado inconstitucio-nal pelo STF em controle difuso e suspenso por resolução do Senado (art. 52, X, da CF/88) e em que (b) a sentença exequenda nega aplicação a preceito normativo declarado constitucional pelo STF, em controle concentrado (v.g.: TALAMINI, Eduardo. Embargos à execução de título judicial eivado de inconstitucionali-dade — CPC, art. 741, parágrafo único RePro. São Paulo: RT. v. 106, p. 38-83. ). Essas divergências, bem se percebe, têm como pano de fundo a distinta com-preensão a respeito da natureza (subjetiva ou objetiva) e da eficácia (limitada ou expansiva) a ser reconhecida às decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. O novo Código de Processo Civil tomou partido na maté-ria, estabelecendo expressamente que o precedente do STF pode ser “em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso”.

11. A constitucionalidade do parágrafo único do art. 741 e do § 1º do art. 475-L do CPC/73 (semelhantes aos artigos 525, §§ 12 e 14, 535, § 5º do CPC/15) decorre do seu significado e da sua função. São preceitos normativos que, bus-cando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram apenas agregar ao sistema processual um instrumento com eficácia resci-sória de certas sentenças eivadas de especiais e qualificados vícios de inconstitu-cionalidade. Não se trata, portanto, de solução processual com a força ou com o desiderato de solucionar, por inteiro, todos os possíveis conflitos entre os princí-pios da supremacia da Constituição e o instituto da coisa julgada e muito menos para rescindir ou negar exequibilidade a todas as sentenças inconstitucionais.

São muito variados, com efeito, os modos como as sentenças podem ope-rar ofensa à Constituição. A sentença é inconstitucional não apenas (a) quando aplica norma inconstitucional (ou com um sentido ou a uma situação tidos por inconstitucionais), ou quando (b) deixa de aplicar norma declarada constitu-cional, mas também quando (c) aplica dispositivo da Constituição considerado não autoaplicável ou (d) quando o aplica à base de interpretação equivocada, ou (e) deixa de aplicar dispositivo da Constituição autoaplicável, e assim por diante. Em suma, a inconstitucionalidade da sentença ocorre em qualquer caso de ofensa à supremacia da Constituição, da qual a constitucionalidade das leis é parte importante, mas é apenas parte.

Page 180: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

179

Ministro Teori Zavascki

Repita-se, portanto, que a solução oferecida pelo § 1º do art. 475-L e pará-grafo único do art. 741 do CPC/73 (e seus correspondentes no atual Código de Processo Civil) não abarca todos os possíveis casos de sentença inconstitucio-nal. Muito pelo contrário, é solução legislativa para situações específicas, razão pela qual, convém alertar, não envolve e nem se confunde com a controvertida questão, aqui impertinente e por isso não tratada, a respeito da denominada “relativização da coisa julgada”, questão essa centrada, como se sabe, na possi-bilidade ou não de negar eficácia a decisões judiciais em hipóteses não previstas pelo legislador processual, o que não é o caso.

12. Aqui, as hipóteses de ineficácia da sentença exequenda estão expressa-mente limitadas pelo texto normativo (parágrafo único do art. 741 do CPC/73), a saber:

“(...) título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados incons-titucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou inter-pretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.”

A interpretação literal desse dispositivo sugere que são três os vícios de inconstitucionalidade que permitem a utilização do novo mecanismo: (a) a aplicação de lei inconstitucional; ou (b) a aplicação da lei a situação considerada inconstitucional; ou, ainda, (c) a aplicação da lei com um sentido (= uma interpre-tação) inconstitucional. Há um elemento comum às três hipóteses: o da incons-titucionalidade da norma aplicada pela sentença. O que as diferencia é, apenas, a técnica utilizada para o reconhecimento dessa inconstitucionalidade. No pri-meiro caso (aplicação de lei inconstitucional) supõe-se a declaração de incons-titucionalidade com redução de texto. No segundo (aplicação da lei em situação tida por inconstitucional), supõe-se a técnica da declaração de inconstitucionali-dade parcial sem redução de texto. E no terceiro (aplicação de lei com um sentido inconstitucional), supõe-se a técnica da interpretação conforme a Constituição.

A redução de texto é o efeito natural mais comum da afirmação de inconstitucionalidade dos preceitos normativos em sistemas como o nosso, em que tal vício importa nulidade: se o preceito inconstitucional é nulo, impõe-se seja extirpado do ordenamento jurídico, o que leva à consequente “redução” do direito positivo. Todavia, há situações em que a pura e simples redução de texto não se mostra adequada ao princípio da preservação da Constituição e da sua força normativa. A técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é utilizada justamente em situações dessa natureza, em que a norma é válida (= constitucional) quando aplicada a certas situações, mas invá-lida (= inconstitucional) quando aplicada a outras (BITTENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 128). O reconhecimento dessa dupla face do enunciado normativo

Page 181: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

180

Ministro Teori Zavascki

impõe que a declaração de sua inconstitucionalidade parcial (= aplicação a cer-tas situações) se dê sem a sua eliminação (= redução) formal, a fim de que fique preservada a sua aplicação na parte (= às situações) tida por constitucional.

É assim também a técnica de interpretação conforme a Constituição, que consiste em “declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição” (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 317). Trata-se de instituto hermenêutico “visando à oti-mização dos textos jurídicos, mediante agregação de sentidos, portanto, produção de sentido” (STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica ao direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 580), especialmente para preservar a constitucionalidade da interpretação “quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco entre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas, deve dar-se preferência à interpreta-ção que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1099). A utilização dessa técnica acarreta, também ela, em maior ou menor medida, declaração de inconstitucionalidade: ao afirmar que a norma somente é constitucional quando interpretada em determinado sentido, o que se diz — implícita, mas necessariamente — é que a norma é inconstitucional quando interpretada em sentido diverso. Não fosse para reconhecer a existência e desde logo repelir interpretações inconstitucionais esse instrumento seria inútil.

Isso fica bem claro quando se tem em conta que a norma nada mais é, afinal, do que o produto da interpretação. Conforme resumiu Zagrebelsky, na esteira de doutrina clássica, interpretação é a atividade de “transformação das disposições em normas”, a significar que “as normas que surgem através da interpretação (...) são as fontes normativas em sentido prático” (ZAGREBELSKY, Gustavo. La lei y su justicia. Madrid: Editorial Trotta, 2014. p. 140). “A interpre-tação”, escreveu o Ministro Eros Grau, “é um processo intelectivo através do qual, par-tindo de fórmulas linguísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (...) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 78).

E observou, mais adiante:

“A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas dis-posições. Do que diremos ser — a interpretação — uma atividade que se presta a

Page 182: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

181

Ministro Teori Zavascki

transformar disposições (textos, enunciados) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (...) que “(...) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete, (...)”. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa inter-pretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (...) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando através e mediante a interpretação — são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem — elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (...)” (op. cit., p. 80).

Justamente por isso se afirma que a interpretação conforme a Constituição constitui uma das técnicas de declaração de inconstitucionalidade: ao reconhe-cer a constitucionalidade de uma interpretação, o que se faz é (a) afirmar a cons-titucionalidade de uma norma (= a que é produzida por interpretação segundo a Constituição), mas, ao mesmo tempo e como consequência, é (b) declarar a inconstitucionalidade de outra ou de outras normas (= a que é produzida pela interpretação repelida).

O que se busca enfatizar, em suma, é que as três hipóteses explicitamente figuradas nos arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único, do CPC/73 supõem a apli-cação de norma inconstitucional: ou na sua integralidade, ou para a situação em que foi aplicada, ou com o sentido adotado em sua aplicação.

13. Considerando o atual sistema de controle de constitucionalidade e dos efeitos das sentenças do STF dele decorrentes, não há como negar que há outra situação, nele implícita, que autoriza a invocação da inexigibilidade da obrigação contida no título executivo judicial: é quando a sentença exequenda reconheceu a inconstitucionalidade — — ou, o que dá no mesmo (Súmula Vinculante 10/STF), simplesmente deixou de aplicar — norma que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional. Essa hipótese, embora não explicitada nos dispositivos processuais, decorre necessariamente de interpretação sistemá-tica. Com efeito, afirmar ou negar judicialmente a constitucionalidade de uma norma são duas faces da mesma moeda. É que a eficácia declarativa decorrente das sentenças opera com a mesma intensidade em sentido positivo ou negativo, produzindo, em qualquer caso e com idêntica marca da imutabilidade, coisa julgada material.

Page 183: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

182

Ministro Teori Zavascki

Aliás, é inerente ao sistema de processo a natural eficácia dúplice da sen-tença de mérito, que favorece a posição do demandante, quando afirma a exis-tência da situação jurídica afirmada como base para o seu pedido, mas que, com intensidade semelhante e com a mesma eficácia de coisa julgada material, favo-rece a posição do demandado, em caso de improcedência. Tratando-se de decisão do STF no âmbito do controle de constitucionalidade, essa eficácia dúplice está enfaticamente acentuada em texto normativo (Lei 9.868/99, art. 23), justamente porque tal controle tem a finalidade de propiciar, a um tempo, a preservação do sistema normativo legitimamente estabelecido (o que enseja juízos positivos de constitucionalidade) e a sua autopurificação em relação a normas inconstitucio-nais nele porventura incrustadas (o que enseja juízos negativos de validade).

Daí por que não há razão alguma de ordem jurídica ou institucional para estabelecer distinções ou discriminações, no âmbito das relações jurídicas, quanto ao grau de eficácia entre juízos positivos ou negativos formulados pelo STF sobre a constitucionalidade das normas. Pelo contrário, estranho e írrito ao sistema seria, com base na única justificativa da interpretação literal e a contra-rio sensu do parágrafo único do art. 741 do CPC/73, estabelecer essa espécie de discrímen das decisões do STF.

Não é preciso enfatizar a reconhecida pobreza da simples interpretação literal. E, quanto ao argumento a contrario, é sabido que, em muitas situações, ele é superado pelo argumento da analogia, que conduz a resultados opostos. Lembrando que “os próprios romanos preferiram o argumento de analogia”, afirma Engisch, com todo acerto, que “a escolha entre o argumento de analogia e o argumento a contrario não pode de fato fazer- se no plano da pura lógica. A lógica tem-se que combinar com a teleológica” (ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 3. ed. Tradução de J. Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. p. 237).

No caso, conforme enfatizado, há razões lógicas e teleológicas impondo concluir que também a sentença exequenda que declara inconstitucional ou deixa de aplicar norma que o STF declarou constitucional está sujeita ao regime do § 1º do art. 475-L e do parágrafo único do art. 741 do CPC/73.

14. Por outro lado, a segunda condição indispensável à aplicação do art. 475-L, § 1º, e do art. 741, parágrafo único, do CPC (ou os correspondentes dispositivos do novo CPC/15) é a de que a sentença exequenda tenha decidido a questão constitucional em sentido contrário ao que decidiu o STF. Realmente, assim como ocorre nas hipóteses de ação rescisória, a instituição do mecanismo processual visou solucionar, nos limites que estabeleceu, situações concretas de conflito entre o princípio da supremacia da Constituição e o da estabilidade das sentenças judiciais. E o fez mediante inserção, como elemento moderador do conflito, de um terceiro princípio: o da autoridade do STF. Assim, alargou-se o

Page 184: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

183

Ministro Teori Zavascki

campo de rescindibilidade das sentenças, para estabelecer que, sendo elas, além de inconstitucionais, também contrárias a precedente da Corte Suprema, ficam sujeitas à rescisão por via de impugnação ou de embargos à execução. A existên-cia de precedente do STF representa, portanto, o diferencial indispensável a essa peculiar forma de rescisão do julgado. Aliás, a inserção desse elemento dife-renciador não é novidade em nosso sistema. Ela representa mais uma das sig-nificativas hipóteses de objetivação (ou de dessubjetivação) e de força expansiva das decisões do STF no exercício da sua jurisdição constitucional, conforme tive oportunidade de enfatizar em voto proferido na Reclamação 4.335, Min. Gilmar Mendes, DJE de 22-10-2014.

No regime do CPC/73, não havia distinção entre ser o precedente ante-rior ou superveniente à sentença exequenda. Mas é claro que, se o precedente do STF tiver sido anterior (como agora dispõe o § 14 do art. 525 do CPC/15), fica evidenciado, mais claramente, o desrespeito à autoridade da Suprema Corte. No atual regime (CPC/15), se a decisão do STF, sobre a inconstitucionalidade, for superveniente ao trânsito em julgado da sentença exequenda, “caberá ação res-cisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”.

Também não se fazia alusão nem distinção, à época, entre precedente em controle incidental ou concentrado. Como agora explicita o novo Código, essa distinção é irrelevante. Em qualquer dos casos, e independentemente da exis-tência ou não de resolução do Senado suspendendo a execução da norma decla-rada inconstitucional, tem igual autoridade a manifestação do Supremo em seu juízo de constitucionalidade, sendo de anotar que, de qualquer sorte, não seria cabível resolução do Senado na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e na que decorre da interpretação conforme a Constituição. A distinção restritiva, entre precedentes em controle incidental e em controle con-centrado, não é compatível com a evidente intenção do legislador, já referida, de valorizar a autoridade dos precedentes emanados do órgão judiciário guardião da Constituição, que não pode ser hierarquizada simplesmente em função do procedimento em que a decisão foi tomada. Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF tanto em ação direta quanto nas proferidas em via recursal, estas também com natural vocação expansiva, conforme reco-nheceu o STF no julgamento da Reclamação 4.335, Min. Gilmar Mendes, DJE de 22-10-2014, a evidenciar que está ganhando autoridade a recomendação da doutrina clássica de que a eficácia erga omnes das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade, ainda que incidentalmente, deveria ser considerada “efeito natural da sentença” (BITTENCOURT, Lúcio, op. cit., p. 143; CASTRO NUNES, José. Teoria e prática do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 592). É exatamente isso que ocorre, aliás, nas hipóteses previstas no parágrafo único do art. 949 do CPC/15, reproduzindo o parágrafo único do art. 481 do

Page 185: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

184

Ministro Teori Zavascki

CPC/73, que submete os demais Tribunais à eficácia vinculante das decisões do plenário do STF em controle de constitucionalidade, indiferentemente de terem sido tomadas em controle concentrado ou difuso.

15. Observada a compreensão de seu significado e estabelecidos os limites de sua abrangência material, acima referidos, não há como negar a constitucio-nalidade do parágrafo único do art. 741 do CPC , ao § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como dos correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, e art. 535, § 5º). São dispositivos que, buscando harmoni-zar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram, como já afirmado, apenas agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de certas sentenças inconstitucionais, em tudo seme-lhante às hipóteses de ação rescisória (art. 485, V do CPC/73 e art. 966, V do CPC/15). E não são todos nem são banais (mas apenas alguns, revestidos de gravidade qualificada pelo comprometimento da autoridade das decisões do STF), os vícios de inconstitucionalidade que permitem invocar a inexigibili-dade da sentença exequenda, por embargos à execução ou por impugnação. A inexigibilidade do título executivo a que se referem os referidos dispositivos se caracteriza exclusivamente nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma reconhecidamente inconstitucional — seja por aplicar norma inconstitucional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em jul-gado da sentença exequenda.

16. Ante o exposto, considerados os limites e parâmetros hermenêuticos adotados na fundamentação, voto pela improcedência do pedido formulado na ação direta de inconstitucionalidade. É o voto.

AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR NO MANDADO DE SEGURANÇA 31.816 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Redator do acórdão): 1. Trata-se de man-dado de segurança impetrado por deputado federal contra ato da Mesa Diretora do Congresso Nacional que aprovou medidas tendentes a submeter à votação o Veto Parcial nº 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei nº 2.565/2011. Sustenta o Impetrante, em síntese, que a votação desse Veto está

Page 186: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

185

Ministro Teori Zavascki

sendo promovida “com violação ao devido processo legislativo constitucional”, seja porque não atendeu ao disposto no art. 66, §§ 4º e 6º da Constituição (que não prevê regime de urgência e que impõe a observância de um sistema orde-nado de votação, impedindo que veto recente seja apreciado antes dos que tem prazo de discussão e votação vencido), seja porque foi descumprido o art. 104 do Regimento Comum (que condiciona a votação à emissão de parecer prévio por Comissão Mista). A inicial apresenta os seguintes pedidos:

(A). LIMINAR: O fumus boni iuris da presente impetração decorre dos fundamentos expostos acima. O periculum in mora, por sua vez, é manifesto e dramático, tendo em vista a iminência de que seja realizada Sessão Conjunta para a apreciação inconstitucional do veto em questão. Diante desse quadro, pede-se a concessão imediata de medida liminar, inaudita altera pars, para o fim de impedir que seja realizada a referida deliberação.

(...)(B). PEDIDO PRINCIPAL: (...) o Impetrante requer seja deferido o pre-

sente mandado de segurança para se determinar o cumprimento do art. 66 da Constituição Federal, reconhecendo-se que o Veto nº 38/2012 somente poderá ser votado após a apreciação dos vetos recebidos anteriormente, a imensa maioria com o prazo de discussão e votação vencido. Caso assim não se entenda, pede-se que seja reconhecida a impossibilidade de que Veto nº 38/2012 seja apreciado antes dos demais apresentados na presente Legislatura ou Sessão Legislativa. Por fim, por máxima eventualidade, pede-se que seja reconhecido que o Veto nº 38/2012 não poderá ser apreciado antes do decurso do prazo cons-titucional previsto no art. 66, § 4º, tendo em vista a existência de muitos outros vetos com o prazo já vencido, em relação aos quais, portanto, o Congresso já se encontra em estado de omissão inconstitucional.

Em qualquer caso, pede-se o reconhecimento da necessidade de que sejam cumpridas as disposições regimentais pertinentes, notadamente as que exigem a constituição de Comissão Mista destinada a elaborar relatório prévio acerca do veto.

Por decisão de 17 de dezembro de 2012, a liminar foi deferida, nos seguin-tes termos:

Ex positis, defiro o pedido liminar nos termos em que formulados para, inaudita altera parte, determinar à Mesa Diretora do Congresso Nacional que se abstenha de deliberar acerca do veto parcial nº 38/2012 antes que se proceda à análise de todos os vetos pendentes com prazo de análise expirado até a presente data, em ordem cronológica de recebimento da respectiva comunicação, obser-vadas as regras regimentais pertinentes.

A liminar foi complementada em 7 de fevereiro de 2013, para esclarecer e reiterar que:

A decisão se limita a obstar a deliberação aleatória e casuística de deter-minado veto presidencial diante do volume acumulado de vetos pendentes, alguns com prazo constitucional expirado há mais de uma década. Destarte, nos estritos termos da decisão liminar, o Congresso Nacional permanece soberano

Page 187: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

186

Ministro Teori Zavascki

para apreciar e votar proposições de natureza distinta, segundo sua discrição política e os reclamos de governabilidade.

2. Não há como negar a relevância da alegação de ofensa, pelo Congresso Nacional, ao devido processo legislativo constitucional na apreciação de vetos presidenciais, inclusive esse de que trata o mandado de segurança. Refiro-me, especificamente, às disposições dos §§ 4º e 6º do art. 66 da CF, e, não, propria-mente, às normas regimentais invocadas pelo impetrante. Quanto a essas, a própria decisão concessiva de liminar reconhece que “a jurisprudência tradi-cional desta Corte se consolidou no sentido de que tais assuntos se qualificam como questões interna corporis, considerando-os imunes ao controle judicial”. Não é o caso, portanto, em sede de juízo de mera verossimilhança — como no exame de medida liminar —, de promover a revisão de entendimento assim solidificado, ainda mais por ato monocrático do relator, que atua, nessas cir-cunstâncias, como órgão delegado do Plenário. Na verdade, a existência de juris-prudência consolidada do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário à tese da impetração afasta, quanto a esse ponto, a verossimilhança da alegação, o que conduz a uma decisão de indeferimento, e, não, ao contrário. Sob esse aspecto, portanto, as alegações de ofensa ao Regimento Comum do Congresso não mere-cem consideração, pelo menos em sede de exame liminar.

3. Já no que se refere às cláusulas constitucionais que disciplinam a vota-ção de vetos, tem razão o Ministro relator ao apontar o seu descumprimento, que não é de hoje, mas de muito tempo. Com efeito, dispõe o § 4º do art. 66 da CF:

“§ 4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria abso-luta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto.”

Foi mais adiante a Constituição: além de fixar o prazo de 30 — trinta — dias, agregou uma severa consequência em caso de descumprimento, a saber:

“§ 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposi-ções, até sua votação final.”

A agregação dessa sanção (que é como se define, em teoria geral, a medida de “reação do direito à inobservância ou à violação das suas normas” — BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho. Tradução de Jorge Guerrero R. 2. ed. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1992. p. 133”) confere ao prazo constitucional um caráter peremptório, distinto do meramente ordinatório ou programático. Realmente, na Constituição — como no ordenamento jurídico em geral — há prazos que são fixados sem agregação de sanção pelo descumprimento. Assim, v. g., o previsto no art. 67 do ADCT (“A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”), que,

Page 188: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

187

Ministro Teori Zavascki

entretanto, por não estar acompanhado de medida sancionatória, é considerado pela jurisprudência do STF como “prazo programático” (RMS nº 26.212/DF, 1ª Turma, Min. Ricardo Lewandowski, DJE de 19-5-2011), que não opera caduci-dade, nem inibe a prática futura e destempada do ato administrativo. No caso em exame, porém, o descumprimento do prazo estabelecido no § 4º do art. 66 atrai, automaticamente, independentemente de manifestação de vontade ou de qualquer outra formalidade, a consequência prevista no § 6º do mesmo artigo, ou seja, a colocação do veto na ordem do dia, “sobrestadas as demais proposi-ções, até sua votação final”.

Registre-se que a imposição de sobrestamento diz respeito não apenas à votação de outros vetos, mas, sim de todas as “demais proposições” de compe-tência do Congresso Nacional.

Ora, essa drástica consequência dá bem a medida da gravidade da situa-ção que se criou com a reconhecida inobservância, pelo Congresso Nacional, do prazo para apreciação de vetos presidenciais. Segundo atestam as informações colhidas nesta demanda, trata-se de descumprimento reiterado e antigo, a ponto de se ter, atualmente, pendentes de apreciação, mais de 3.000 — três mil — vetos, alguns com prazo vencido há cerca de 13 — treze — anos, a significar que, desde então, deveriam ter sido suspensas as “demais proposições” do Congresso Nacional, cuja votação ficaria, portanto, submetida a um sistema ordenado a partir do vencimento do prazo de votação de cada veto pendente.

Esse quadro se mostra ainda mais grave quando se considera que o estrito atendimento das cláusulas constitucionais do devido processo legislativo é pres-suposto de validade dos correspondentes atos normativos, a significar que sua inobservância acarreta a inconstitucionalidade formal desses atos e, portanto, a sua nulidade. A procedência dessa afirmação permite concluir que uma rígida e estrita aplicação dos §§ 4º e 6º do art. 66 da Constituição, com eficácia ex tunc, não apenas imporia um futuro caótico para a atuação do Congresso Nacional (paralisando qualquer nova deliberação, a não ser a da apreciação, por ordem de vencimento, dos vetos pendentes) como também, o que é ainda mais grave, estenderia um manto de insegurança jurídica sobre todas as deliberações toma-das pelo Congresso Nacional pelo menos nos últimos 13 — treze — anos, desde quando decorreu o prazo para deliberação do mais antigo veto ainda não apre-ciado, deliberações essas sujeitas a declaração de nulidade por inconstituciona-lidade formal.

4. É nesse cenário fático e jurídico de singular gravidade que se deve examinar a pretensão deduzida no presente mandado de segurança e avaliar a legitimidade da liminar, nos termos como deferida. Convém o registro, de natu-reza conceitual, de que as medidas liminares, em mandado de segurança, têm natureza antecipatória, a significar que permitem ao juiz, quando atendidos os

Page 189: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

188

Ministro Teori Zavascki

requisitos próprios, determinar, com antecipação no tempo, providências que decorrerão da futura sentença final de procedência do pedido. A medida ante-cipatória, por isso mesmo, deve guardar estreita relação de conformidade com o objeto da sentença, não sendo cabível nem legítimo antecipar providência de natureza diferente ou de alcance maior do que as que poderiam ser atendidas no provimento definitivo. É justamente essa necessária relação de pertinência e compatibilidade material entre decisão liminar e sentença final que define e limita o juízo de verossimilhança, que consiste na alta probabilidade de aten-dimento, pela sentença definitiva, da providência objeto da antecipação. A questão a ser aqui examinada é, portanto, a que diz respeito à probabilidade ou não de vir a ser confirmado, quando do julgamento definitivo do mandado de segurança, o provimento liminar deferido pelo Ministro relator, na extensão e com as consequências que poderão daí decorrer.

5. Questão em tudo semelhante à presente foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4.029/DF, também de relatoria do Min. Luiz Fux (DJE de 27-6-2012). Lá, como aqui, o que se pôs à deliberação do Tribunal foi o descumprimento, pelo Poder Legislativo, de requisitos constitu-cionais do processo legislativo e as consequências daí decorrentes. Lá, o que se alegou foi que, no exame da Medida Provisória 366/2007, que resultou na Lei Federal nº 11.516/2007 (que dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade — ICMBio), não foi atendido ao que pre-ceitua o art. 62, § 9º da Constituição, segundo o qual “caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional”. Aqui, o que se alega é que, no processo legislativo de apreciação do Veto Parcial nº 38/2012, aposto pela Presidente da República ao Projeto de Lei nº 2565/2011, não foi atendido ao disposto no art. 66, §§ 4º e 6º da Constituição. Em ambos os casos, como se percebe, as questões substanciais são as mesmas.

6. Naquela oportunidade, ficou assentado o entendimento de que a inob-servância estrita dos requisitos constitucionais do processo legislativo acarreta a inconstitucionalidade — e, portanto, a nulidade, do preceito normativo que dele resultar. Atento à gravidade dessa consequência, propôs o Ministro Luiz Fux, relator do caso, “considerando o volume quantitativo de leis aprovadas com base na prática inconstitucional de dispensar a manifestação da Comissão Mista no trâmite parlamentar das Medidas Provisórias” e como “atitude mais prudente, a bem do interesse público”, que, mesmo declarando incidentalmente a inconsti-tucionalidade da dispensa do parecer previsto no art. 62, § 9º da CF, ficasse, ainda assim, “preservada a higidez de todas as Medidas Provisórias convertidas em Lei até a presente data, inclusive da Lei Federal nº 11.516/07, impugnada na pre-sente ação”, assegurando- se, “ainda, a validade da adoção do procedimento ora

Page 190: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

189

Ministro Teori Zavascki

declarado inconstitucional para a aprovação das Medidas Provisórias que atual-mente tramitam no Parlamento. Quanto às demais, deverá o Congresso dar cum-primento ao disposto no art. 62, § 9º, da Constituição, sendo vedada a apreciação pelo Plenário sem o prévio parecer da comissão mista de Deputados e Senadores”.

Ora, a situação que agora se apresenta, em face do antigo e reiterado descumprimento dos §§ 4º e 6º do art. 66 da CF, é tão ou mais grave que a que se apresentou ao Tribunal naquela oportunidade. O puro e simples reconhe-cimento, com eficácia ex tunc, do vício de inconstitucionalidade do procedi-mento até agora adotado para apreciação de vetos presidenciais, acarretaria consequências verdadeiramente dramáticas, conforme já referido. Quanto ao passado, ficariam sujeitas à declaração de inconstitucionalidade formal todas as deliberações do Congresso Nacional tomadas desde que se venceu o prazo do mais antigo dos vetos pendentes de apreciação, que, segundo informam os autos, ocorreu há cerca de 13 — treze — anos. E, quanto ao futuro, restaria ao Congresso Nacional o ingente trabalho de examinar, por ordem cronológica de vencimento do prazo, os mais de três mil vetos presidenciais pendentes de apre-ciação, sem possibilidade, no interregno, de apreciar qualquer outra proposição. Isso significaria, na prática, que, a pretexto de fazer cumprir, como se deve, o prazo do § 4º do art. 66 da CF, uma decisão dessa natureza decretaria a impos-sibilidade material, pelo menos por longo espaço de tempo, da apreciação tem-pestiva de novos vetos presidenciais que venham a ser apresentados em futuro próximo. Paradoxalmente, portanto, nas circunstâncias de fato que agora se apresentam, o comando no sentido de determinar o estrito cumprimento da Constituição, inclusive quanto ao passado, operaria efeito contrário ao desejado pela norma constitucional.

7. O que se quer afirmar, em suma, é que, o grave cenário de fato que agora se apresenta em decorrência do reiterado descumprimento do processo legislativo para apreciação de vetos, previsto na Constituição, induz a segura convicção de que, a exemplo do decidido no julgamento da ADI 4.029/DF, tam-bém no julgamento definitivo do presente mandado de segurança, o Tribunal — tudo indica — deverá adotar orientação semelhante àquela, ou seja: inobstante venha a declarar a inconstitucionalidade da prática até agora adotada pelo Congresso Nacional no processo legislativo de apreciação de vetos, com reco-mendação de corrigir para o futuro, o Tribunal haverá de atribuir a essa decisão apenas eficácia ex nunc, excluindo de seu comando as deliberações já tomadas, os vetos presidenciais já apreciados e os que já tenham sido apresentados mas estejam pendentes de apreciação no Congresso Nacional.

8. Ora, sendo essa a mais provável decisão que tomará o Tribunal quando do julgamento definitivo da demanda, com ela deverá desde logo se compati-bilizar a medida liminar. Afinal, como já enfatizado, a natureza antecipatória dessa medida determina que seu comando tenha como parâmetro balizador

Page 191: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

190

Ministro Teori Zavascki

o conteúdo provável da comando definitivo: a liminar não pode ir além, nem deferir providência diversa da que pode derivar da sentença definitiva. Isso significa, agora enfocando o caso presente, que não há como manter, porque isso não será mantido no julgamento final, a determinação liminar ordenando ao Congresso Nacional que “se abstenha de deliberar acerca do Veto Parcial nº 38/2012 antes que proceda à análise de todos os vetos pendentes com prazo de análise expirado até a presente data, em ordem cronológica de recebimento da respectiva comunicação”.

Essa é razão suficiente para, com a devida vênia, revogar a medida liminar.

9. Todavia, a profunda semelhança, de ordem substancial, entre os fun-damentos e a pretensão deduzidos no presente mandado de segurança e na referida ADI nº 4.029/DF, impõe uma reflexão do Tribunal sobre a adequação do mandado de segurança. É que, a essa substancial semelhança entre os dois casos, contrapõem-se significativas diferenças quanto ao instrumento proces-sual utilizado para provocar a manifestação do Judiciário. Num caso, a pre-tensão foi formulada por ação de controle concentrado de constitucionalidade (ADI), e o que se pediu, com fundamento em vício formal do correspondente processo legislativo, foi provimento jurisdicional declarando a nulidade do pre-ceito normativo. Aqui, ao contrário, o instrumento utilizado é o mandado de segurança, e o que se pretende, também com fundamento em vício formal do processo legislativo, é provimento judicial que iniba a edição do ato normativo em formação. Resta mais que evidente, portanto, que, em ambos os casos, as demandas veiculam, na sua essência, pretensões típicas de controle de constitu-cionalidade formal de atos normativos, uma de caráter sucessivo ou repressivo (= para anular a norma inconstitucional) e a outra de caráter preventivo (= para inibir a aprovação de norma inconstitucional).

Essa circunstância impõe que a Corte se detenha sobre o tema, a fim de superar uma aparente contradição da sua jurisprudência, que, por um lado, nega veementemente a possibilidade jurídica, no direito brasileiro, de qualquer forma de controle preventivo de constitucionalidade das leis, mas, por outro, assegura a parlamentares, pelo menos em alguns casos, a impetração de man-dado de segurança visando ao controle de atos do processo legislativo, que, como ocorre no presente caso, traduz uma evidente pretensão de controle pre-ventivo de constitucionalidade. Realmente, o que caracteriza o controle preven-tivo é justamente isso que se pretende neste mandado de segurança. Ilustrativa, no ponto, a doutrina de Canotilho:

Não se trata, por um lado, de um controlo sobre normas válidas, mas sobre projectos de normas. Por outro lado, o tribunal ou órgão encarregado deste controlo não declara a nulidade de uma lei; propõe a reabertura do processo

Page 192: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

191

Ministro Teori Zavascki

legislativo para eliminar eventuais inconstitucionalidades (CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 983).

Ora, está firmemente consolidado na Corte o entendimento de que é inviável, em nosso sistema, a pretensão jurisdicional de controle preventivo de inconstitucionalidade, seja por vício formal, seja por vício material. A título ilustrativo, que reflete a visão tradicional da Corte, eis o que ficou assentado na ADI nº 466/DF (DJ de 10-5-1991), relatada pelo Ministro Celso de Mello:

O direito constitucional positivo brasileiro, ao longo de sua evolução histórica, jamais autorizou — como a nova Constituição promulgada em 1988 também não o admite — o sistema de controle jurisdicional preventivo de cons-titucionalidade, em abstrato. Inexiste, desse modo, em nosso sistema jurídico, a possibilidade de fiscalização abstrata preventiva da legitimidade constitucional de meras proposições normativas pelo Supremo Tribunal Federal.

Atos normativos “in fieri”, ainda em fase de formação, com tramitação procedimental não concluída, não ensejam e nem dão margem ao controle con-centrado ou em tese de constitucionalidade, que supõe — ressalvadas as situações configuradoras de omissão juridicamente relevante — a existência de espécies normativas definitivas, perfeitas e acabadas. Ao contrário do ato normativo — que existe e que pode dispor de eficácia jurídica imediata, constituindo, por isso mesmo, uma realidade inovadora da ordem positiva —, a mera proposição legis-lativa nada mais encerra do que simples proposta de direito novo, a ser submetida à apreciação do órgão competente, para que, de sua eventual aprovação, possa derivar, então, a sua introdução formal no universo jurídico.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem refletido claramente essa posição em tema de controle normativo abstrato, exigindo, nos termos do que prescreve o próprio texto constitucional — e ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade por omissão — que a ação direta tenha, e só possa ter, como objeto juridicamente idôneo, apenas leis e atos normativos, federais ou estaduais, já promulgados, editados e publicados.

No seu incisivo voto, o Ministro Marco Aurélio chegou mesmo a propor um julgamento de carência de ação, já que a hipótese traduzia pretensão qua-lificável como verdadeira “impossibilidade jurídica”. No caso concreto, mais ainda se justificaria tal solução, eis que, além da carência de ação, soma-se, aqui, a impropriedade da via (= mandado de segurança com função de ação direta de inconstitucionalidade) e a ilegitimidade da parte (= controle concentrado pro-movido por parlamentar).

Realmente, o que se tem aqui não é um mandado de segurança visando à sua natural vocação constitucional, de instrumento para tutela de direito líquido e certo ameaçado ou violado por ato de autoridade. Não está em causa qualquer direito subjetivo do impetrante, nem uma prerrogativa própria do cargo parla-mentar ou de qualquer interesse específico do cargo ou de situação parlamentar, como seria, por exemplo, a defesa de prerrogativa de minoria. O que há, em verdade, é uma exótica utilização de mandado de segurança com indisfarçável

Page 193: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

192

Ministro Teori Zavascki

pretensão de controle prévio de constitucionalidade formal do preceito norma-tivo, semelhante, ressalvada a questão temporal (que é prévia e não sucessiva à edição da norma), à que foi deduzida na ADI nº 4.029/DF. O interesse jurídico que move o parlamentar a defender a higidez do processo legislativo é exata-mente o mesmo que dá ensejo ao ajuizamento de ação de controle concentrado. Esse interesse não tem natureza individual, mas se trata de nítido interesse tran-sindividual, de que é titular a sociedade como um todo, cuja tutela judicial, por isso mesmo, tem legitimados próprios, que são os órgãos e entidades indicados no art. 103 da Constituição. A se admitir, em situação assim, que um parlamen-tar (que não está legitimado a promover o controle sucessivo de constitucio-nalidade), possa antecipar esse controle, promovendo-o preventivamente por mandado de segurança, certamente não se poderá negar que medida semelhante e com a mesma finalidade venha a ser proposta por qualquer dos legitimados pela Constituição (art. 103) a promover o controle repressivo, ou sucessivo. Aliás, a se adotar a tese da vinculatividade dos fundamentos das decisões do STF em matéria constitucional, não seria nada desprezível, em casos tais — e o caso con-creto ilustra isso com clareza solar — o potencial efeito de controle repressivo de constitucionalidade das normas já editadas embutido numa decisão que acolha a tese da impetração.

Impõe-se, portanto, sob pena de ampla consagração do sistema de con-trole preventivo, que se estabeleça um limite na legitimação atribuída a parla-mentar, para impetrar mandado de segurança no curso de processo legislativo. Tal legitimação poderá ser admitida nas hipóteses de defesa específica de direito individual, ou de prerrogativa do cargo, ou, ainda, da posição de minoria na situação parlamentar. Todavia, não se mostra compatível com o sistema brasi-leiro de controle de constitucionalidade, a utilização do mandado de segurança como instrumento de controle preventivo da constitucionalidade — formal ou material — de atos normativos, ainda mais quando o impetrante não detém legi-timidade para provocar o controle sucessivo da legitimidade desses atos.

10. Em suma, há substanciais razões para acreditar que, no julgamento definitivo do presente mandado de segurança, o Impetrante não obterá do Tribunal o atendimento da pretensão nos termos como deduzida na inicial e antecipada liminarmente. Assim, a improbabilidade de êxito retira da impetra-ção o indispensável requisito da verossimilhança, sem o qual a medida liminar não pode ser deferida. Assim, voto pelo provimento do agravo regimental.

Page 194: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

193

Ministro Teori Zavascki

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 578.543 — MT

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Redator do acórdão): 1. Não está em causa, aqui, a controvérsia de direito material deduzida perante a Justiça do Trabalho, nem, por isso mesmo, qual o regime jurídico a que estão sujeitas as relações entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e seus consultores. Sequer os mecanismos para a solução desse conflito, no plano internacional, estão aqui em questão. O objeto de exame, no âmbito dos recursos em pauta, oriundos de ação rescisória, é, tão somente, a questão prejudicial a todas as demais, que diz respeito à sujeição, ou não, da ONU, à jurisdição brasileira.

2. Por outro lado, no âmbito estreito dessa ação rescisória, se mostra estranho e impertinente qualquer juízo sobre a substituição da ONU pela União Federal nas responsabilidades decorrentes da alegação relação empregatícia afirmada na inicial, que demandaria ação própria, observado o contraditório e ampla defesa, em foro próprio, que, a adotar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) em situações análogas (v. g. trabalhadores temporários), sequer seria da Justiça do Trabalho. Registre-se, apenas, que, em demandas con-tra a União, consultores da ONU/PNUD têm invocado, com sucesso perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a condição de servidor daquele organismo internacional para, nessa condição, usufruir dos benefícios fiscais (= isenção do imposto de renda perante o fisco brasileiro) decorrentes da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, promulgada pelo Decreto 27.784 ⁄1950. Assim se decidiu, entre outros, no Resp 1.159.379, Min. Teori Zavascki, 1ª Seção do STJ, DJE de 27-6-2011.

3. A “Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas”, adotada em Londres, por ocasião da sua Assembleia Geral de 13 de fevereiro de 1946, e promulgada no Brasil pelo Decreto 27.784/1950, dispõe, em sua Seção 2:

“A Organização das Nações Unidas, seus bens e haveres, qualquer que seja o seu detentor, gozarão de imunidade de jurisdição, salvo na medida em que a Organização a ela tiver renunciado em determinado caso. Fica, todavia, enten-dido que a renúncia não pode compreender medidas executivas.”

4. As normas de direito internacional, estabelecidas em acordos, trata-dos ou convenções de caráter normativo, a que o Brasil tenha aderido, assu-mem, quando regularmente internalizados segundo as normas constitucionais, o status de lei ordinária, para todos os efeitos, inclusive quanto ao controle de sua constitucionalidade. Conforme reiterada jurisprudência do STF (v.g.: RE 80.004/SE, Min. Cunha Peixoto, RTJ 83⁄809-848; PPE 194/ARGENTINA, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 4-4-1997, RTJ 177⁄43; EXT 795/ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 6-4-2001), os tratados

Page 195: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

194

Ministro Teori Zavascki

e convenções internacionais de caráter normativo, “(...) uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias”, inclusive para efeito de controle difuso ou concentrado de cons-titucionalidade (STF, ADI MC 1.480/DF, Min. Celso de Mello, DJ de 18-5-2001), com eficácia revogatória de normas anteriores de mesma hierarquia com eles incompatíveis (lex posterior derrogat legi priori).

Aliás, após a Emenda Constitucional 45⁄2004, essas fontes normativas internacionais alçam-se até à estatura constitucional, quando dispõem sobre direitos humanos e são aprovadas em dois turnos, por três quintos dos votos dos membros das Casas do Congresso Nacional (art. 5º, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil — CRFB/1988). Isso significa dizer que, salvo se declarados inconstitucionais, os tratados e convenções aprovados e promulgados pelo Brasil devem ser fielmente cumpridos por seus signatários. Sendo assim, não se admite, porque então sim haverá ofensa à Constituição, seja negada aplicação, pura a simplesmente, a preceito normativo dessa natureza, sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade ou, se for o caso, a sua não recepção por norma constitucional superveniente. Conforme prevê o enunciado da súmula vinculante 10⁄STF, “viola a cláusula de reserva de plená-rio (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência, no todo ou em parte”.

No que concerne especificamente à Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, é importante que se tenha consciência da necessidade de uma posição clara a respeito: ou se adota o sistema estabelecido nos compromissos internacionais, ou, se inconstitucional, não se adota, caso em que será indispensável, além da sua formal declaração interna de inconstitu-cionalidade, também denunciar, no foro internacional próprio, as cláusulas da referida Convenção. Todavia, o puro e simples não cumprimento de qualquer de suas cláusulas, é fácil perceber, comprometerá severamente as relações do Brasil com a comunidade das Nações, mormente em face da norma universal, muito cara ao direito internacional, segunda a qual “pacta sunt servanda”.

5. Ante o exposto, acompanho o voto da Relatora, a Ministra Ellen Gracie, com a vênia da Ministra Cármen Lúcia. É o voto.

Page 196: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

195

Ministro Teori Zavascki

AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA 1.680 — AL

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. O art. 102, I, ‘r’, da Constituição estabelece a competência do Supremo Tribunal Federal para “processar e julgar, originariamente (…) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público”. Em acórdão unânime do Plenário, de 18-12-2013, a Corte definiu o sentido e o alcance dessa norma constitucional de competência, firmando a seguinte orientação:

“CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). CAUSAS DE NATUREZA CIVIL CONTRA ELE INSTAURADAS. A QUESTÃO DAS ATRIBUIÇÕES JURISDICIONAIS ORIGINÁRIAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (CF, ART. 102, I, ‘r’). CARÁTER ESTRITO E TAXATIVO DO ROL FUNDADO NO ART. 102 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REGRA DE COMPETÊNCIA QUE NÃO COMPREENDE QUAISQUER LITÍGIOS QUE ENVOLVAM IMPUGNAÇÃO A DELIBERAÇÕES DO CNJ. RECONHECIMENTO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL APENAS QUANDO SE CUIDAR DE IMPETRAÇÃO de mandado de segurança, de habeas data, de habeas corpus (se for o caso) ou de mandado de injunção NAS SITUAÇÕES EM QUE O CNJ (órgão não per-sonificado definido como simples ‘parte formal’, investido de mera ‘personali-dade judiciária’ ou de capacidade de ser parte) FOR APONTADO como órgão coator. LEGITIMAÇÃO PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO FEDERAL NAS DEMAIS HIPÓTESES, PELO FATO DE AS DELIBERAÇÕES DO CNJ SEREM JURIDICAMENTE IMPUTÁVEIS À PRÓPRIA UNIÃO FEDERAL, QUE É O ENTE DE DIREITO PÚBLICO EM CUJA ESTRUTURA INSTITUCIONAL SE ACHA INTEGRADO MENCIONADO CONSELHO. COMPREENSÃO E INTELIGÊNCIA DA REGRA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA INSCRITA NO ART. 102, I, ‘r’, DA CONSTITUIÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. AÇÃO ORIGINÁRIA NÃO CONHECIDA. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. A competência originária do Supremo Tribunal Federal, cuidando-se de impug-nação a deliberações emanadas do Conselho Nacional de Justiça, tem sido reconhecida apenas na hipótese de impetração, contra referido órgão do Poder Judiciário (CNJ), de mandado de segurança, de habeas data, de habeas corpus (quando for o caso) ou de mandado de injunção, pois, em tal situação, o CNJ qualificar-se-á como órgão coator impregnado de legitimação passiva ad cau-sam para figurar na relação processual instaurada com a impetração originária, perante a Suprema Corte, daqueles writs constitucionais. Em referido contexto, o Conselho Nacional de Justiça, por ser órgão não personificado, define-se como simples ‘parte formal’ (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 4. ed. Forense, 1995. t. I/222-223, item n. 5; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. Atlas, 2012. p. 15/17, item n. 5, v.g.), revestido de mera “personalidade judiciária” (LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público. Forense, 1960. p. 424/439), achando-se investido, por efeito de tal condição, da capacidade de ser parte (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil. 5. ed. RT, 2013.

Page 197: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

196

Ministro Teori Zavascki

p. 101; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 54. ed. Forense, 2013. v. I/101, item n. 70; NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 13. ed. RT, 2013. p. 233, item n. 5, v.g.), circunstância essa que plenamente legitima a sua participação em mencionadas causas mandamentais. Precedentes. Tratando-se, porém, de demanda diversa (uma ação ordinária, p. ex.), não se configura a competên-cia originária da Suprema Corte, considerado o entendimento prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, manifestado, inclusive, em julgamentos colegiados, eis que, nas hipóteses não compreendidas no art. 102, I, alíneas ‘d’ e ‘q’, da Constituição, a legitimação passiva ad causam referir-se--á, exclusivamente, à União Federal, pelo fato de as deliberações do Conselho Nacional de Justiça serem juridicamente imputáveis à própria União Federal, que é o ente de direito público em cuja estrutura institucional se acha integrado o CNJ. Doutrina. Precedentes (AO 1.706 AgR/DF, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 18-12-2013, DJE de 18-2-2014).

Transcrevo o voto do Ministro relator:

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO (Relator): Não assiste razão à parte recorrente, eis que a decisão agravada ajusta-se, com integral fide-lidade, à diretriz jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame.

Cabe registrar, desde logo, que não se desconhece que a competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional — e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida —, não comporta a pos-sibilidade de ser estendida a situações que extravasem os rígidos limites fixa-dos, em “numerus clausus”, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política, consoante adverte a doutrina (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 2/217, 1992, Saraiva) e proclama a jurisprudência desta própria Corte (RTJ 43/129 — RTJ 44/563 — RTJ 50/72 — RTJ 53/776).

Esse regime de direito estrito, a que se submete a definição da com-petência institucional do Supremo Tribunal Federal, tem levado esta Corte Suprema, por efeito da taxatividade do rol constante da Carta Política, a afas-tar, do âmbito de suas atribuições jurisdicionais originárias, o processo e o julgamento de causas de natureza civil que não se acham inscritas no texto constitucional — tais como ações populares (RTJ 121/17, Rel. Min. MOREIRA ALVES — RTJ 141/344, Rel. Min. CELSO DE MELLO — Pet 352/DF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES — Pet 431/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA — Pet 487/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO — Pet 1.641/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), ações civis públicas (RTJ 159/28, Rel. Min. ILMAR GALVÃO — Pet 240/DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA) ou ações cautelares, ações ordi-nárias, ações declaratórias e medidas cautelares (RTJ 94/471, Rel. Min. DJACI FALCÃO — Pet 240/DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA — Pet 1.738 AgR/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO) —, mesmo que instauradas contra o Presidente da República, ou contra o Presidente da Câmara dos Deputados, ou, ainda, con-tra qualquer das autoridades, que, em matéria penal (CF, art. 102, I, “b” e “c”), dispõem de prerrogativa de foro perante esta Corte ou que, em sede de mandado de segurança, estão sujeitas à jurisdição imediata deste Tribunal.

Page 198: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

197

Ministro Teori Zavascki

Essa orientação jurisprudencial, por sua vez, tem o beneplácito de auto-rizados doutrinadores (ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 180, item n. 7.8, 6ª ed., 1999, Atlas; RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, “Ação Popular”, p. 129/130, 1994, RT; HELY LOPES MEIRELLES, “Mandado de Segurança, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, ‘Habeas Data’”, p. 122, 19ª ed., atualizada por Arnoldo Wald, 1998, Malheiros; HUGO NIGRO MAZZILLI, “O Inquérito Civil”, p. 83/84, 1999, Saraiva; MARCELO FIGUEIREDO, “Probidade Administrativa”, p. 91, 3ª ed., 1998, Malheiros, v.g.), cujo magistério também assinala não se incluir, na esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal, o poder de processar e julgar causas de natureza civil não referidas no texto da Constituição.

A “ratio” subjacente a esse entendimento, que acentua o caráter abso-lutamente estrito da competência constitucional do Supremo Tribunal Federal, vincula-se à necessidade de inibir indevidas ampliações descaracterizadoras da esfera de atribuições institucionais desta Suprema Corte, conforme ressal-tou, a propósito do tema em questão, em voto vencedor, o saudoso Ministro ADALÍCIO NOGUEIRA (RTJ 39/56-59, 57).

Esses fundamentos traduzem, em suma, os elementos que norteiam a orientação jurisprudencial desta Corte a propósito da compreensão e dos limi-tes que conformam o reconhecimento de sua própria competência originária, cuja base normativa resulta, diretamente, do texto constitucional.

Nem se diga que a norma consubstanciada no art. 102, I, “r”, da Constituição autorizaria o reconhecimento, na espécie, da competência origi-nária do Supremo Tribunal Federal para apreciar a presente causa.

É certo que a Constituição da República, em regra especial de competên-cia, conferiu, a esta Suprema Corte, atribuição para apreciar, em sede originária, “as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público” (CF, art. 102, I, “r”, na redação dada pela EC nº 45/2004).

Ocorre que a competência originária do Supremo Tribunal Federal, cuidando-se de impugnação a deliberações emanadas do Conselho Nacional de Justiça, tem sido reconhecida apenas na hipótese de impetração, contra referido órgão do Poder Judiciário (CNJ), de mandado de segurança, de “habeas data”, de “habeas corpus” (quando for o caso) ou de mandado de injunção, pois, em tal situação, o CNJ qualificar-se-á como órgão coator impregnado de legitima-ção passiva “ad causam” para figurar na relação processual instaurada com a impetração originária, perante esta Suprema Corte, daqueles “writs” constitu-cionais. Em referido contexto, o Conselho Nacional de Justiça, por ser órgão não personificado, define-se como simples “parte formal” (PONTES DE MIRANDA, “Comentários ao Código de Processo Civil”, tomo I/222-223, item n. 5, 4ª ed., 1995, Forense; JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, “Manual de Direito Administrativo”, p. 15/17, item n. 5, 25ª ed., 2012, Atlas, v.g.), revestido de mera “personalidade judiciária” (VICTOR NUNES LEAL, “Problemas de Direito Público”, p. 424/439, 1960, Forense), achando-se investido, por efeito de tal con-dição, da capacidade de ser parte (LUIZ GUILHERME MARINONI e DANIEL MITIDIERO, “Código de Processo Civil”, p. 101, 5ª ed., 2013, RT; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, “Curso de Direito Processual Civil”, vol. I/101, item n. 70, 54ª ed., 2013, Forense; NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, “Código de Processo Civil Comentado”, p. 233, item n. 5, 13ª ed., 2013, RT, v.g.), circunstância essa que plenamente legitima a sua parti-cipação em mencionadas causas mandamentais.

Page 199: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

198

Ministro Teori Zavascki

Tratando-se, porém, de demanda diversa (uma ação ordinária, p. ex.), como sucede no caso, não se configura a competência originária desta Suprema Corte, considerado o entendimento prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, manifestado em julgamentos monocráticos e colegiados (Pet 3.986-AgR/TO, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI — ACO 1.733/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO — ACO 1.734/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO — Pet 4.309-TA/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO — Pet 4.404/DF, Rel. Min. EROS GRAU — Pet 4.492/DF, Rel. Min. EROS GRAU — Pet 4.571 MC/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO), eis que, nas hipóteses não compreendidas no art. 102, I, alíneas “d” e “q”, da Constituição, a legitimação passiva “ad causam” referir--se-á, exclusivamente, à União Federal, pelo fato de as deliberações do Conselho Nacional de Justiça serem juridicamente imputáveis à própria União Federal, que é o ente de direito público em cuja estrutura institucional se acha integrado o CNJ:

“(...) 2. Uma leitura apressada do texto constitucional pode levar à conclusão pela competência desta Corte de Justiça para processar e julgar toda e qualquer demanda em que se discuta ato do CNJ. Sucede que a Magna Lei fixa a competência originária do Supremo Tribunal Federal apenas quando o próprio Conselho figure no pólo passivo da ação, como se dá nas hipóteses de impetração de mandado de segurança, mandado de injunção e ‘habeas data’. Nesses casos, o órgão (CNJ), e não a pessoa (União), comparece diretamente na defesa de ato por si editado. Tem-se, então, a situação de personalidade judiciá-ria conferida ao órgão da pessoa político-administrativa para defesa de seus atos e prerrogativas, objetos dessas ações constitucionais.

3. Com efeito, o CNJ é um órgão do Poder Judiciário, nos termos do inciso I-A do art. 92 da Magna Lei. Donde se concluir que é a União, e não o CNJ, a pessoa legitimada a figurar no pólo passivo de ações ordinárias em que se ques-tionem atos daquele Conselho. Pólo passivo em que a União deve comparecer representada pela sua Advocacia-Geral, como determina a cabeça do art. 131 da Lei Maior. (…).”

(ACO 1.704/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO — grifei)Vale destacar, no ponto, as observações de JOSÉ AFONSO DA SILVA

(“Comentário Contextual à Constituição”, p. 563/564, item 6.11, 7ª ed., 2010, Malheiros Editores):

“Ações contra os Conselhos de Justiça e do Ministério Público. Matéria inse-rida pela Emenda Constitucional 45/2004 com o acréscimo da alínea ‘r’ ao inciso I do artigo em comentário, pela qual se dá competência originária ao STF para processar e julgar as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público. Essa competência assim estendida às ações em geral (civis, comerciais, administrativas) cria algumas dificuldades, porque esses Conselhos não têm personalidade jurídica para serem sujeitos de direito e obrigações, para serem partes de relação jurídica processual. Quem responde por órgãos federais, como é o caso, perante a jurisdição, é a União; portanto, as ações, em tais casos, são contra ela, e não contra os órgãos, e a competên-cia para o processo é da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I. O que esses Conselhos têm é personalidade judiciária, porque seus atos podem dar ensejo ao mandado de segurança, ‘habeas corpus’ e, possivelmente, ‘habeas data’. O certo, pois, teria sido incluí-los no contexto da alínea ‘d’ do inciso I do artigo.” (grifei)

Assinalo, para efeito de mero registro, que esta Suprema Corte tem pro-cedido a uma interpretação estrita da norma de competência consubstanciada

Page 200: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

199

Ministro Teori Zavascki

no art. 102, I, “r”, da Constituição, buscando delimitar o alcance dessa cláusula constitucional, como o evidenciam os precedentes firmados em julgamento plenário desta Suprema Corte, nos quais se deixou assentado que o Supremo Tribunal Federal não dispõe de competência para processar e julgar, originaria-mente, ações ordinárias eventualmente ajuizadas com o objetivo de converter esta Corte em verdadeira instância revisional de qualquer deliberação do CNJ que não afete as decisões e a competência dos demais órgãos judiciários nem apreciar, em caráter originário, aquelas ações ordinárias em que a União, pes-soa jurídica de direito público, ostente legitimação “ad causam” para figurar no polo passivo da relação processual, ainda que o litígio envolva discussão sobre deliberação do Conselho Nacional de Justiça:

“(…) 1. A competência originária do Supremo Tribunal para processar e julgar ações contra o Conselho Nacional de Justiça não o transforma em instân-cia revisora de toda e qualquer decisão desse órgão administrativo.

2. As decisões do CNJ que não interferem nas esferas de competência dos tribunais ou dos juízes não substituem aquelas decisões por eles proferidas, pelo que não atraem a competência do Supremo Tribunal.”

(MS 29.118 AgR/DF, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Pleno — grifei)“(…) a jurisprudência desta Casa tem conferido interpretação estrita

à competência insculpida na alínea ‘r’ do inciso I do art. 102 da Carta Política, vinculando-a às hipóteses em que o CNJ, órgão do Poder Judiciário, teria personalidade judiciária para figurar no polo passivo da lide — mandados de segurança, ‘habeas corpus’, ‘habeas data’. Nas ações ordinárias ajuizadas con-tra a União — ente dotado de personalidade jurídica —, ainda que envolvendo discussão acerca de ato emanado do CNJ, a competência é da Justiça Federal.”

(AO 1.718/DF, Rel. Min. ROSA WEBER — grifei)“(…) 1. O STF não se reduz à singela instância revisora das decisões

proferidas pelo CNJ.2. Em especial, descabe compelir o CNJ a adotar a providência de fundo

entendida pela parte interessada como correta, se a decisão impugnada não tiver alterado relações jurídicas ou, de modo ativo, agravado a situação de jurisdicio-nado. Cabe à parte interessada, que não teve sua pretensão atendida no campo administrativo com uma decisão positiva-ativa, buscar a tutela jurisdicional que, no caso, é alheia à competência originária do STF.”

(MS 28.133 AgR/DF, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Pleno — grifei)Vale observar, no ponto, que esse entendimento — que não reconhece,

em casos como o que ora se examina, a competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ações ajuizadas contra o Conselho Nacional de Justiça, exceto aquelas referidas nas alíneas “d” e “q” do inciso I do art. 102 da Constituição, remanescendo as demais causas na esfera das atri-buições jurisdicionais da Justiça Federal comum — tem sido reafirmado em outros julgamentos desta Suprema Corte, além daqueles anteriormente já men-cionados (ACO 1.680/AL, Rel. Min. AYRES BRITTO — ACO 1.704/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO — ACO 1.796/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO — ACO 1.801-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO — Pet 3.986 AgR/TO, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, v.g.).

Manifesta, pois, a falta de competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar a presente causa, considerado o que dispõe, em norma de direito estrito (assim interpretada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal), o art. 102, I, “r”, da Constituição.

Page 201: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

200

Ministro Teori Zavascki

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, nego provi-mento ao presente recurso de agravo, mantendo, em consequência, por seus próprios fundamentos, a decisão ora agravada.

É o meu voto.

2. Portanto, segundo a orientação adotada pelo Plenário, as “ações” a que se refere o art. 102, I, “r” da Constituição Federal são apenas as ações constitu-cionais de mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data e habeas corpus. As demais ações em que se questionam atos do Conselho Nacional de Justiça — CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público — CNMP submetem-se, consequentemente, ao regime de competência estabelecido pelas normas comuns de direito processual.

3. Poder-se-ia argumentar, contra essa orientação, que não faz sentido submeter a juízo de primeiro grau a possibilidade de anular ou suspender, até liminarmente, ato emanado daqueles Conselhos. Essa preocupação, na verdade, se estende a atos administrativos de outras autoridades e órgãos, como os do Presidente da República, do próprio Supremo Tribunal Federal, dos demais Tribunais Superiores, do Conselho da Justiça Federal, e assim por diante, cujo ataque, por mandado de segurança, é submetido a órgão jurisdicional supe-rior. Ocorre, todavia, que a própria Constituição estabeleceu distintos regimes de competência em casos tais, que é definida segundo o critério da natu-reza do procedimento adotado. Assim, quando contestados por mandado de segurança — ação de procedimento especialíssimo, dirigido contra a própria autoridade que editou o ato atacado, que nela comparecerá diretamente — a competência é atribuída a um órgão jurisdicional de nível superior. Assim, por exemplo, mandados de segurança contra atos do Presidente da República e do STF, serão da competência do STF (CF, art. 102, I, d); contra atos de Ministros de Estado ou do STJ, serão da competência do STJ (CF, art. 105, I, b) e assim por diante. Todavia, quando esses mesmos atos são contestados por outra via proce-dimental, a demanda será da competência do juízo de primeiro grau, nela figu-rando como parte demandada, não a autoridade que editou o ato atacado, mas a pessoa jurídica de direito público a que integra.

Pois bem, nesses casos, o próprio legislador, certamente preocupado com eventuais excessos ilegítimos, cercou o procedimento comum de diversas medi-das de garantia. Assim, há expressa vedação legal a concessão de medidas provi-sórias, cautelares ou antecipatórias, em ações dessa natureza. É o que estabelece o § 1º do art. 2º da Lei 8.437, de 30-6-1992 (“Dispõe sobre a concessão de medi-das cautelares contra atos do Poder Público e dá outras providências”), a saber:

§ 1º Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar inomi-nada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal.

Page 202: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

201

Ministro Teori Zavascki

Da mesma forma, a sentença de primeiro grau, em certos casos, não terá exequibilidade imediata, ficando submetida a reexame necessário e a recurso de apelação, ambos com efeito suspensivo (art. 3º da Lei 8.347/92). Ademais, tanto a sentença, quanto a liminar, podem ter sua execução suspensa por ato da pre-sidência do tribunal nas situações indicadas no art. 4º e seu § 1º da mesma Lei 8.347/92, a saber:

Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conheci-mento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a exe-cução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegiti-midade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

§ 1º Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.

Cumpre registrar que essas disposições, constantes dos artigos 1º, 3º e 4º da Lei 8.347/92, são também aplicáveis “à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do CPC”, conforme previsão expressa do art. 1º da Lei 9.494, de 10-9-1997 (“Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública (...)”), cuja constitucionalidade foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 4-MC, Min. Sydney Sanches, DJ de 21-5-1999.

4. No caso, trata-se de ação de procedimento comum ordinário, movida por detentores de delegação provisória de serviços notariais visando a anular atos do Conselho Nacional de Justiça — CNJ que incluiu as serventias em “rela-ção de vacância”, instituiu o dever de apresentação de balancetes mensais dos emolumentos e submeteu os ganhos dos demandantes a teto remuneratório.

5. Diante do exposto, nego provimento aos agravos regimentais. É o voto.

AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO 3.240 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. São duas as questões trazidas a debate no presente recurso, ambas a respeito da posição jurídica dos agentes políticos em face da Lei 8.429/90, que trata das sanções por ato de improbidade: (a) a da submissão ou não desses agentes ao duplo regime sancionatório (o da Lei 8.429/90 e o da Lei 1.079/50, que dispõe sobre crimes de responsabilidade) e (b) a da existência ou não de prerrogativa de foro nas ações que visam a aplicar

Page 203: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

202

Ministro Teori Zavascki

aquelas sanções. São questões distintas, embora imbricadas entre si, que nessa dimensão não estão, no meu entender, inteiramente resolvidas pela jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal. Realmente, no julgamento conjunto da ADI 2.797 e da ADI 2.860-0, no dia 15-9-2005 (Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006), o Tribunal declarou a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 84 do Código de Processo Penal — CPP introduzido pela Lei 10.628/02, fixando, no que se referia à prerrogativa de foro, o entendimento assim exposto na ementa:

“Ação de improbidade administrativa — Extensão da competência espe-cial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condena-tório contra o mesmo dignitário (§ 2º do art. 84 do CPP, introduzido pela Lei 10.628⁄2002) — Declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de compe-tência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade constitucional da fonte das com-petências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União espe-cial em relação à dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da com-petência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pre-tensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer a competência originá-ria do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sem-pre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal — salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X, e 96, III  — reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a defi-nição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária.”

Todavia, em 13-6-2007, na Reclamação 2.138, em que se questionava a competência de juízo de primeira instância para ação de improbidade adminis-trativa movida contra Ministro de Estado, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido, mas sob a fundamento — adotado por escassa maioria — da inviabilidade da submissão ao duplo regime sancionatório. Eis a ementa:

“RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CRIME DE RESPONSABILIDADE. AGENTES POLÍTICOS. I. PRELIMINARES. QUESTÕES DE ORDEM. I.1. Questão de ordem quanto à manutenção da com-petência da Corte que justificou, no primeiro momento do julgamento, o conhe-cimento da reclamação, diante do fato novo da cessação do exercício da função pública pelo interessado. Ministro de Estado que posteriormente assumiu cargo

Page 204: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

203

Ministro Teori Zavascki

de Chefe de Missão Diplomática Permanente do Brasil perante a Organização das Nações Unidas. Manutenção da prerrogativa de foro perante o STF, con-forme o art. 102, I, “c”, da Constituição. Questão de ordem rejeitada. I.2. Questão de ordem quanto ao sobrestamento do julgamento até que seja possível realizá--lo em conjunto com outros processos sobre o mesmo tema, com participação de todos os Ministros que integram o Tribunal, tendo em vista a possibilidade de que o pronunciamento da Corte não reflita o entendimento de seus atuais membros, dentre os quais quatro não têm direito a voto, pois seus antecessores já se pronunciaram. Julgamento que já se estende por cinco anos. Celeridade processual. Existência de outro processo com matéria idêntica na sequência da pauta de julgamentos do dia. Inutilidade do sobrestamento. Questão de ordem rejeitada. II. MÉRITO. II.1. Improbidade administrativa. Crimes de responsabi-lidade. Os atos de improbidade administrativas são tipificados como crime de responsabilidade na Lei n. 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo. II.2. Distinção entre os regimes de responsabilização político-administrativa. O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a con-corrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, “c”, (disciplinado pela Lei n° 1.079/1950). Se a com-petência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, “c”, da Constituição. II.3. Regime especial. Ministros de Estado. Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsa-bilidade (CF, art. 102, I, “c”; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992). II. 4. Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal pro-cessar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, “c”, da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos. II.5. Ação de improbidade administrativa. Ministro de Estado que teve decretada a suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de 8 anos e a perda da função pública por sentença do Juízo da 14ª Vara da Justiça Federal — Seção Judiciária do Distrito Federal. Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime de respon-sabilidade, conforme o art. 102, I, “c”, da Constituição. III. Reclamação julgada procedente” (Rcl 2.138/DF, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 13-6-2007, DJE de 18-4-2008).

Posteriormente, em 13-3-2008, ao apreciar a PET 3.211, em que se ques-tionava a prerrogativa de foro em ação de improbidade movida contra Ministro do STF, o Tribunal assentou orientação assim resumida na ementa:

“Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade adminis-trativa. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência

Page 205: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

204

Ministro Teori Zavascki

da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns. 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros. 2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais” (Pet 3.211 QO/DF, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Menezes Direito, j. 13-3-2008, DJE de 27-6-2008).

Adotando essa linha de entendimento, no MS 31.234 MC (DJE de 27-3-2012), em que se questionava a competência em ação de improbidade contra o Ministro de Estado da Fazenda, o Ministro Luiz Fux, relator, deferiu medida liminar asseverando:

“Não seria coerente com a unidade normativa do texto constitucional, consoante já reconhecido nos precedentes acima transcritos, que Ministro de Estado respondesse como réu em ação de improbidade em trâmite no primeiro grau de jurisdição, à medida que o referido feito também pode acarretar a perda da função pública. Dessume-se, portanto, que, a despeito da nítida oscilação jurisprudencial pretérita sobre o tema, o entendimento de que agentes políticos podem responder como réus em ação de improbidade, mas com observância da prerrogativa de foro, tem se consolidado mais recentemente na jurisprudência pátria, e em particular, no âmbito desta Suprema Corte (...)”

Um ponto comum pode ser identificado nos diversos fundamentos ado-tados nesses últimos julgamentos, que, apesar da declaração de inconstituciona-lidade reconhecida nas ADI 2.797 e ADI 2.860, acabaram por retirar do juízo de primeiro grau a competência para julgar as ações de improbidade de que então se tratava: implícita ou explicitamente, neles ficou reconhecida e procurou-se superar a perplexidade de submeter agentes políticos detentores dos cargos de maior nível institucional e de responsabilidade política do País (Ministro de Estado e Ministro do Supremo Tribunal Federal, que, em matéria penal, têm foro por prerrogativa de função, mesmo por crimes que acarretam simples pena de multa pecuniária), à possibilidade de sofrerem sanção de perda de cargo ou de suspensão de direitos políticos em processo de competência de juiz de pri-meiro grau, além de estarem também sujeitos a medida cautelar de afastamento imediato do cargo, no curso do processo (Lei 8.429/92, art. 20, parágrafo único). Ainda quando subordinada a aplicação da pena ao trânsito em julgado, o pro-cesso nem sempre teria condições de ser apreciado pelos Tribunais Superiores, cuja competência é restrita a hipóteses de ofensa à Constituição (STF) ou às leis federais (STJ), sendo-lhes vedado o reexame dos fatos da causa. Aliás, a partir da vigência da LC 135/2010, que deu nova redação à LC 64/90, eventual condena-ção em ação de improbidade, proferida por qualquer “órgão judicial colegiado”, mesmo de segundo grau, já acarreta a consequência da inelegibilidade por oito anos (art. 1º, I, l).

Page 206: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

205

Ministro Teori Zavascki

Ora, essa perplexidade seria ainda maior em eventual ação de improbi-dade contra o Presidente da República e não deixaria de existir em ações con-tra o Presidente do Senado, ou da Câmara dos Deputados, ou de parlamentar federal, ou contra ministro de tribunal superior, ou governador de Estado, ou desembargador e, enfim, em menor ou maior medida, contra outros detentores de cargos que, na esfera penal, ostentam prerrogativa de foro. Daí a afirmação de que, em face das decisões tomadas na Reclamação 2.138, na PET 3.211 QO/DF e no MS 31.234 MC, não se pode considerar que o STF tenha posição definitiva sobre as referidas questões relacionadas a ações de improbidade administrativa contra agentes políticos. O exame desses precedentes evidencia essa afirmação. Veja-se.

2. Na Reclamação 2.138, em que ficou afastada a competência do juízo de primeiro grau para ação de improbidade contra Ministro de Estado, vingou, por escassa maioria, a tese da inviabilidade de duplo regime sancionatório dos agentes políticos. Entendeu-se que “o sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regu-lado pela Lei 8.429⁄1992), e o regime fixado no art. 102, I, c (disciplinado pela Lei 1.079⁄1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados por agentes políticos, sub-metidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab--rogante do disposto no art. 102, I, c, da Constituição”, razão pela qual “somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de respon-sabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos” (STF, Rcl. 2.138, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJ de 10-4-2008).

A corrente contrária — minoritária, porém representativa — sustentou que a Constituição não impede - ao contrário, admite expressamente (no § 4º do art. 37) —, a duplicidade de regime (civil e penal) para os ilícitos de impro-bidade. Ademais, nem todos os atos de improbidade previstos na Lei 8.429⁄92 estão tipificados como crimes de responsabilidade pela Lei 1.079⁄50, razão pela qual o duplo regime somente se configuraria, se proibido fosse, em relação às tipificações coincidentes, não quanto às demais. Mesmo para essa corrente, todavia, a aplicação da Lei 8.429⁄92 deve ser mitigada em relação aos agentes políticos, para os quais não seria admissível a imposição da sanção de perda do cargo ou de suspensão dos direitos políticos, ao menos em juízo de primeiro grau ou antes do trânsito em julgado. Relativamente a esses agentes, a referida Lei deveria, portanto, ser adotada, mas com ablação dessas sanções. São ilustra-tivos dessa polêmica, além dos votos proferidos naquele precedente e em outros

Page 207: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

206

Ministro Teori Zavascki

julgados do STF, os que constam da ADI 2.860-0, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19-12-2006.

Vê-se que, cada uma a seu modo, essas correntes de opinião buscaram superar a situação de perplexidade, já referida, de submeter agentes políticos detentores dos mais importantes cargos da organização estatal à possibilidade de sofrerem as sanções previstas na Lei 8.429/92, entre as quais a perda do cargo e a suspensão de direitos políticos, em processo de competência de juiz de pri-meiro grau. Certamente por influência dessa preocupação comum, há, nas duas correntes, a invocação cumulativa de elementos argumentativos de natureza substancialmente diferente: fundamentos de natureza instrumental (regime de competência para julgar a ação de improbidade ou o crime de responsabilidade) são trazidos para sustentar conclusões de natureza material (duplicidade do regime jurídico do ilícito, sua tipificação e seus agentes). Percebe-se, outros-sim, que disposições normativas infraconstitucionais, especialmente as da Lei 1.079⁄50, são reiteradamente invocadas como elementos de argumentação para interpretar o sistema sancionador constitucional, invertendo, de certo modo, o sentido da hierarquia das normas, que deve ser vertical, mas de cima para baixo, e não o contrário.

3. Relativamente à questão do duplo regime sancionatório, é preciso enfatizar que, olhada sob o ângulo exclusivamente constitucional e separados os elementos de argumentação segundo a sua natureza própria, é difícil justificar a tese de que todos os agentes políticos sujeitos a crime de responsabilidade (nos termos da Lei 1.079⁄50 ou do Decreto-lei 201⁄67) estão imunes, mesmo parcial-mente, às sanções do art. 37, § 4º, da Constituição. É que, segundo essa norma constitucional, qualquer ato de improbidade está sujeito às sanções nela esta-belecidas, inclusive à da perda do cargo e à da suspensão de direitos políticos. Ao legislador ordinário, a quem o dispositivo delegou competência apenas para normatizar a “ forma e gradação” dessas sanções, não é dado limitar o alcance do mandamento constitucional. Somente a própria Constituição poderia fazê--lo e, salvo em relação a atos de improbidade do Presidente da República adiante referidos, não se pode identificar no texto constitucional qualquer limitação dessa natureza.

Realmente, as normas constitucionais que dispõem sobre crimes de responsabilidade podem ser divididas em dois grandes grupos: um que trata exclusivamente de competência para o processo e julgamento de tais crimes, estabelecendo foro por prerrogativa de função; e outro que dispõe sobre aspec-tos objetivos do crime, indicando condutas típicas. Situado no primeiro grupo, o art. 52 estabelece que “compete privativamente ao Senado Federal: I – proces-sar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de respon-sabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

Page 208: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

207

Ministro Teori Zavascki

II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os mem-bros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade”. Nos termos do art. 96, III, compete privativa-mente “aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes (...) de responsabilidade (...)”. Segundo o art. 102, I, c, compete ao Supremo Tribunal Federal “processar e julgar, originariamente, (...) nos crimes de responsabi-lidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomá-tica de caráter permanente”. Nos termos do art. 105, I, compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente, nos crimes de responsa-bilidade, “os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, o dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais”. E, nos ter-mos do art. 108, I, aos Tribunais Regionais Federais compete processar e julgar, originariamente, nos crimes de responsabilidade, “os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, (...) e os membros do Ministério Público da União (...)”.

Ora, não se pode identificar nessas normas do primeiro grupo — de natu-reza exclusivamente instrumental — qualquer elemento que indique sua incom-patibilidade material com o regime do art. 37, § 4º, da Constituição. O que elas incitam é um problema de natureza processual, concernente à necessidade de compatibilizar as normas sobre prerrogativa de foro com o processo destinado à aplicação das sanções por improbidade administrativa, nomeadamente as que importam a perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos.

O segundo grupo de normas constitucionais é o das que indicam o ele-mento objetivo da conduta caracterizadora do crime de responsabilidade. A teor do § 2º do art. 29-A, “constitui crime de responsabilidade do Prefeito Municipal: I – efetuar repasse que supere os limites definidos neste artigo; II – não enviar o repasse até o dia vinte de cada mês; ou III – enviá-lo a menor em relação à proporção fixada na Lei Orçamentária”. E, nos termos do § 3º do mesmo artigo, “constitui crime de responsabilidade do Presidente da Câmara Municipal o des-respeito ao § 1º deste artigo”, segundo o qual “a Câmara Municipal não gastará mais de setenta por cento de sua receita com folha de pagamento, incluído o gasto com o subsídio de seus Vereadores”. No caput do art. 50 tipifica-se como “crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada” de compare-cimento de Ministro de Estado ou de “quaisquer titulares de órgãos diretamente

Page 209: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

208

Ministro Teori Zavascki

subordinados à Presidência da República” quando convocados pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, para “prestarem, pessoalmente, informa-ções sobre assunto previamente determinado”. Essas mesmas autoridades, a teor do § 2º do mesmo art. 50, cometem crime de responsabilidade com “a recusa, ou o não atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informa-ções falsas”, em face de pedidos de informações feitos pelas Mesas da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. No art. 85, estabelece a Constituição que “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e especialmente contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais”. Segundo o § 6º do art. 100, “o Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retar-dar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabilidade”. E, finalmente, no § 1º do art. 167 está determinado, “sob pena de crime de responsabilidade”, que “nenhum investimento cuja execução ultra-passe um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão (...)”.

Como se percebe, a única alusão à improbidade administrativa como crime de responsabilidade, nesse conjunto normativo do segundo grupo, é a que consta do inciso V do art. 85, ao considerar crime de responsabilidade os atos praticados pelo Presidente da República contra a “probidade na adminis-tração”, dando ensejo a processo e julgamento perante o Senado Federal (art. 86). Somente nesta restrita hipótese, consequentemente, é que se identifica, no âmbito material, uma concorrência de regimes, o geral do art. 37, § 4º, e o espe-cial dos arts. 85, V, e 86.

Não se pode, é certo, negar ao legislador ordinário a faculdade de dispor sobre aspectos materiais dos crimes de responsabilidade, tipificando outras condutas além daquelas indicadas no texto constitucional. É inegável que essa atribuição existe, especialmente em relação a condutas de autoridades que a própria Constituição, sem tipificar, indicou como possíveis agentes daqueles crimes. Todavia, no desempenho de seu mister, ao legislador ordinário cumpre observar os limites próprios da atividade normativa infraconstitucional, que não o autoriza a afastar ou a restringir injustificadamente o alcance de qual-quer preceito constitucional. Por isso mesmo, não lhe será lícito, a pretexto de tipificar crimes de responsabilidade, excluir os respectivos agentes das sanções decorrentes do comando superior do art. 37, § 4º.

4. O que se conclui, em suma, é que, excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (submetidos, por força

Page 210: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

209

Ministro Teori Zavascki

da própria Constituição, a regime especial), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4º. Seria igualmente incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza. O que há, ine-gavelmente, é uma situação de natureza estritamente processual, que nem por isso deixa de ser sumamente importante, relacionada com a competência para o processo e julgamento das ações de improbidade, já que elas podem conduzir agentes políticos da mais alta expressão a sanções de perda do cargo e à suspen-são de direitos políticos. Essa é a real e mais delicada questão institucional que subjaz à polêmica sobre atos de improbidade praticados por agentes políticos.

Ora, a solução constitucional para o problema, em nosso entender, está no reconhecimento, também para as ações de improbidade, do foro por prerro-gativa de função assegurado nas ações penais.

5. Nesse contexto, deve ser prestigiada a orientação adotada pelo STF, ao declarar que “compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbi-dade contra seus membros” (QO na Pet 3.211-0, relator para o acórdão o Min. Menezes Direito, DJ de 27-6-2008). No particular, a decisão foi tomada por ampla maioria, com apenas um voto vencido, do relator original, Min. Marco Aurélio. Considerou-se, para tanto, que a prerrogativa de foro decorre direta-mente do sistema de competências estabelecido na Constituição, que não se compatibiliza com a possibilidade de juiz de primeira instância processar e jul-gar causa promovida contra ministro do Supremo Tribunal Federal, ainda mais se a procedência da ação puder acarretar a sanção de perda do cargo. Ilustra a posição majoritária o voto então proferido pelo Min. Cezar Peluso:

“...se, pelos mais graves ilícitos da ordem jurídica, que são o crime e o crime de responsabilidade, Ministro do Supremo Tribunal Federal só pode ser julgado pelos seus pares ou pelo Senado da República, seria absurdo ou o máximo do contra-senso conceber que ordem jurídica permita que Ministro possa ser julgado por outro órgão em ação diversa, mas entre cujas sanções esta também a perda do cargo. Isto seria a desestruturação de todo o sistema que fun-damenta a distribuição da competência, para julgamento dos ilícitos mais graves atribuídos a Ministro da Suprema Corte, entre o Supremo Tribunal Federal e o Senado da República.”

Esse precedente, como se percebe, afirma a tese da existência, na Constituição, de competências implícitas complementares, deixando claro que, inobstante a declaração de inconstitucionalidade do preceito normativo infra-constitucional (Lei 10.628, de 2002), a prerrogativa de foro, em ações de impro-bidade, pode, sim, ser sustentada na própria Carta Constitucional.

6. Realmente, a Constituição assegura a certas autoridades a garantia de responderem por crimes comuns e de responsabilidade perante foro especial.

Page 211: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

210

Ministro Teori Zavascki

O Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, os Ministros do STF e o Procurador-Geral da República respondem, em casos de crimes comuns, perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, b). Também perante esse Tribunal respondem, por crimes comuns e de res-ponsabilidade, os Ministros de Estado, os Comandantes das Forças Armadas, os membros dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União (CF, art. 102, I, c). O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, é o foro competente para as ações por crimes comuns propostas contra Governadores de Estado e do Distrito Federal, e por crimes comuns e de responsabilidade contra os membros dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais do Trabalho e Eleitorais, de Tribunais de Contas Estaduais e Municipais e membros do Ministério Público da União que oficiam perante tribunais (CF, art. 105, I, a). Perante os Tribunais de Justiça respondem, por crimes comuns, os prefeitos municipais (CF, art. 29, X). Por princípio de sime-tria, são os Tribunais de Justiça que processam e julgam, nos crimes comuns, os membros das Assembleias Legislativas. E, embora não haja previsão constitucio-nal específica nesse sentido, os Tribunais Regionais Federais são considerados o foro competente para o julgamento de prefeitos e deputados estaduais acusados de infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas autarquias ou empresas públicas, previstas no art. 109, IV, da Constituição (STF, 2ª T, HC 69.465-9, rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 23-3-2001; STF, 1ª T, HC 80.612-1, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 4-5-2001; STF, 2ª T, HC 76.881-8, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 14-8-1998; STF, 2ª T, HC 78.728-2, rel. Min. Maurício Correa, DJ de 16-4-1999; STF, Pleno, HC 78.222-1, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 27-6-2003; STF, 2ª T, HC 69.465-9, rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 23-3-2001; STF, 1ª T, HC 80.612-1, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 4-5-2001; STF, 2ª T, HC 76.881-8, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 14-8-1998; STF, 2ª T, HC 78.728-2, rel. Min. Maurício Correa, DJ de 16-4-1999; STF, Pleno, HC 78.222-1, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 27-6-2003).

Estes e outros casos de prerrogativa de foro constituem uma garantia constitucional do acusado, estabelecida em função da relevância do seu cargo. Conforme observou o Ministro Victor Nunes Leal, em voto proferido no STF, “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de indepen-dência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida inde-pendência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral,

Page 212: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

211

Ministro Teori Zavascki

garantia contra e a favor do acusado” (Recl. 473, rel. Min. Victor Nunes, j. 31-1-1962, DJ de 6-6-1962).

Ora, a Lei de Improbidade foi editada visando, fundamentalmente, à aplicação das sanções de natureza punitiva, semelhantes às sanções penais, a saber: suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, a multa civil e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. A perda de bens, a suspensão de direitos e a multa são penas que têm, do ponto de vista substancial, absoluta identidade com as decorrentes de ilícitos penais, conforme se pode ver do art. 5º, XLVI, da Constituição. A suspensão dos direitos políticos é, por força da Constituição, consequência natural da “conde-nação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos” (art. 15, III). Também é efeito secundário da condenação criminal a perda “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso” (CP, art. 91, II, b). A perda de “cargo, função pública ou mandato eletivo” é, igualmente, efeito secundário da condenação criminal, nos casos previstos no art. 92, I, do Código Penal: “quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública” e “quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos”.

Embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natu-reza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies, seja quanto à sua função (que é punitiva e com finalidade pedagógica e intimidatória, visando a inibir novas infrações), seja quanto ao conteúdo. Com efeito, não há qualquer diferença entre a perda da função pública ou a suspensão dos direi-tos políticos ou a imposição de multa pecuniária, quando decorrente de ilícito penal e de ilícito administrativo. Nos dois casos, as consequências práticas em relação ao condenado serão absolutamente idênticas. A rigor, a única diferença se situa em plano puramente jurídico, relacionado com efeitos da condenação em face de futuras infrações: a condenação criminal, ao contrário da não crimi-nal, produz as consequências próprias do antecedente e da perda da primarie-dade, que podem redundar em futuro agravamento de penas ou, indiretamente, em aplicação de pena privativa de liberdade (CP, arts. 59; 61, I; 63; 77, I; 83, I; 110; 155, § 2º; e 171, § 1º). Quanto ao mais, entretanto, não há diferença entre uma e outra. Somente a pena privativa de liberdade é genuinamente criminal, por ser cabível unicamente em casos de infração penal. (...). Assim, excetuada a pena privativa de liberdade, qualquer outra das sanções previstas no art. 5º, XLVI, da CF pode ser cominada tanto a infrações penais, quanto a infrações administra-tivas, como ocorreu na Lei 8.429/92.

Page 213: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

212

Ministro Teori Zavascki

Até mesmo no plano processual se percebe a semelhança. O que a ação de improbidade tem de inovador, em se tratando de um procedimento civil, é a fase procedimental relacionada com a admissibilidade da demanda, prevista nos §§ 6º a 12 do art. 17 da Lei 8.429/92. É visível, quanto ao ponto, a preocupação do legislador de adequar o processo civil à finalidade, que não lhe é peculiar, de ser instrumento para imposição de penalidades ontologicamente semelhantes às das infrações penais. À identidade material das penas veio juntar-se a identi-dade formal dos mecanismos de sua aplicação. Foi no Código de Processo Penal, com efeito, que o legislador civil se inspirou para formatar o novo instrumento: o procedimento da ação de improbidade é em tudo semelhante ao que rege o processo e julgamento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públi-cos, previsto nos arts. 513 a 518 do CPP. Lá, como aqui, se exige que a petição inicial (queixa ou denúncia) venha instruída com “documentos ou justifica-ção que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade” (“que façam presumir a existência do delito”) ou com razões fundamentadas da “impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas” (art. 17, § 6º, da Lei 8.429/92; art. 513 do CPP). Lá como aqui, estando a inicial (queixa ou denúncia) “em devida forma”, o juiz ordenará a notificação do requerido (acu-sado) para oferecer manifestação escrita, no prazo de quinze dias, que poderá vir acompanhada de “documentos e justificações” (art. 17, § 7º, da Lei 8.429/92; arts. 514 e 515, parágrafo único, do CPP). Recebida a manifestação, o juiz, “em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita” (art. 17, § 8º, da Lei 8.429/92), da mesma forma como, na ação penal, “o juiz rejeitará a queixa ou denúncia, em despacho fundamentado, se convencido, pela resposta do acusado ou do seu defensor, da inexistência do crime ou da improcedência da ação” (CPP, art. 516). Nos dois casos, recebida a petição inicial (denúncia ou queixa), o réu (acusado) será citado para promover a sua defesa, assumindo o processo, daí em diante, o rito comum, civil ou penal (art. 17, § 9º, da Lei 8.429/92; arts. 517 e 518 do CPP).

É justamente essa identidade substancial das penas que dá suporte à dou-trina da unidade da pretensão punitiva (ius puniendi) do Estado, cuja principal consequência “é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao direito administrativo sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias indivi-duais” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. SP: RT, 2000. p. 102; ENTERRIA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás- Ramon. Curso de direito administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. SP: RT, 1991. p. 890). Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que produz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes

Page 214: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

213

Ministro Teori Zavascki

quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos polí-ticos. Por isso, embora não se possa traçar uma absoluta unidade de regime jurídico, não há dúvida que alguns princípios são comuns a qualquer sistema sancionatório, seja nos ilícitos penais, seja nos administrativos, entre eles o da legalidade, o da tipicidade, o da responsabilidade subjetiva, o do non bis in idem, o da presunção de inocência e o da individualização da pena, aqui enfatizados pela importância que têm para a adequada compreensão da Lei de Improbidade Administrativa.

Essa compreensão se deve adotar, segundo penso, em relação ao foro por prerrogativa de função. Se a Constituição tem por importante essa prerrogativa, qualquer que seja a gravidade da infração ou a natureza da pena aplicável em caso de condenação penal, não há como deixar de considerá-la ínsita ao sis-tema punitivo da ação de improbidade, cujas consequências, relativamente ao acusado e ao cargo, são ontologicamente semelhantes e eventualmente até mais gravosas. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. Se há, por vontade expressa do Constituinte, prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam sim-ples pena de multa pecuniária, não teria sentido negar tal garantia em relação às ações de improbidade, que importam, além da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos políticos.

7. Contra esse entendimento, tem sido invocada e preconizada a interpre-tação estritamente literal das normas constitucionais a respeito de competência. Todavia, tal método interpretativo não é o mais adequado nesse domínio. Há situações em que a interpretação ampliativa das regras de competência é uma imposição incontornável do sistema. Conforme reconhecido em boa doutrina, “é admissível (...) uma complementação de competências constitucionais através do manejo de instrumentos metódicos de interpretação (sobretudo de inter-pretação sistemática ou teleológica)”, cuja adoção pode revelar “duas hipóteses de competências implícitas complementares”: as “enquadráveis no programa normativo-constitucional de uma competência explícita, e justificáveis porque não se trata tanto de alargar competências mas de aprofundar competências”; e as “necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes através da leitura sistemática e analógica dos preceitos constitucionais” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992. p. 695). No mesmo sentido, citando, inclusive, inúmeras hipóteses em que o STF adotou, para definir competências, “interpretação extensiva ou compreensiva do texto constitucional”: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. SP: Saraiva, 2007. p. 906.

Esse é o caminho que tem sido seguido pela jurisprudência constitucio-nal brasileira. Já se fez alusão às hipóteses de ação penal por crimes federais

Page 215: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

214

Ministro Teori Zavascki

praticados por parlamentares estaduais e por prefeitos, em que foram conside-rados competentes os Tribunais Regionais Federais, ampliando-se, consequen-temente, os limites de competência estabelecidos no art. 108, I, a, da CF. Há outras situações que tornam inevitável a interpretação ampliativa, inclusive no que diz respeito à competência civil. Assim, embora nada disso esteja expresso na Constituição, considera-se que os Tribunais Regionais Federais são compe-tentes para processar e julgar os mandados de segurança impetrados por ente federal contra ato de juiz de direito (STF, Pleno, RE 176.881-9, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 6-3-1998; STJ, 1ª T, RMS 18.300, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 4-10-2004) e atribui-se ao STJ a competência para dirimir conflitos entre turmas recursais e Tribunal de Justiça (STF, Pleno, CC 7.106-1, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 8-11-2002; STF, Pleno, CC 7.090-1, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 11-9-2002; STF, Pleno, CC 7.081-6, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 27-9-2002; STJ, 3ª S., CC 44.124, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 24-11-2004; STJ, 2ª S., CC 41.744, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 6-4-2005). Na vigência da Constituição anterior, mas à base de princípios aplicáveis no atual regime constitucional, considerou-se o Tribunal Federal de Recursos competente para processar e julgar ação rescisória proposta por ente federal, muito embora o acórdão rescindendo fosse de Tribunal de Justiça (STF, 1ªT, RE 106.819-1, rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 10-4-1987; STF, Pleno, CJ 6.278-8, rel. Min. Décio Miranda, DJ de 13-3-1981). Também no julgamento do Mandado de Injunção 670-9, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 31-10-2008, o STF atribuiu aos Tribunais Regionais Federais e ao Superior Tribunal de Justiça competência para proces-sar e julgar, originariamente, dissídios relacionados com greves de servidores públicos federais.

Portanto, mesmo em relação às regras sobre competências jurisdicionais, os dispositivos da Constituição comportam interpretação sistemática que per-mita preencher vazios e abarcar certas competências implícitas, mas inafastá-veis por imperativo do próprio regime constitucional.

8. Em suma, o que se afirma é que, sob o ponto de vista constitucional justifica-se, com sobradas razões, a preservação de prerrogativa de foro tam-bém para a ação de improbidade administrativa, entendimento que, além de fundado em boa doutrina (v.g. WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. Revista de Informação Legislativa, v. 35, n. 138, p. 215; TOJAL, Sebastião Botto de Barros; CAETANO, Flávio Crocce. Competência e prerrogativa de foro em ação civil de improbidade administrativa. In: BUENO, Cássio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (coords.). Improbidade administrativa: questões polê-micas e atuais. p. 399), recebeu o aval do STF, no precedente citado (QO na Pet. 3.211-0, rel. p⁄ acórdão Min. Menezes Direito, DJ de 27-6-2008).

Page 216: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

215

Ministro Teori Zavascki

9. Voto, por isso, no sentido de conhecer e dar provimento ao agravo regi-mental, para reconhecer a competência do Supremo Tribunal Federal para pro-cessar e julgar a ação de improbidade contra o requerido Eliseu Lemos Padilha, deputado federal, determinando o desmembramento do processo em relação aos demais demandados, para que, em relação a eles, tenha prosseguimento no foro próprio. É o voto. Publicado sem revisão.

HABEAS CORPUS 127.186 — PR

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Os fundamentos invocados originalmente para o decreto da prisão preventiva do paciente foram, em essên-cia, os seguintes:

“[...]. As provas, em cognição sumária, revelam que os depósitos efetuados

nas contas controladas por Alberto Youssef tem origem, natureza e propósitos criminosos.

Trata-se de dinheiro sujo, obtido pelas empreiteiras através de fraudes às licitações de obras da Petrobrás, com manipulação do preço, que foram, sucessi-vamente, repassados a contas em nome de empresas de fachada e com simulação de negócios para a justificação das transferências, com o intuito de ocultar e dissimular sua origem, natureza e propósito criminoso.

[…]. Além da prova da materialidade, há relevante prova, em cognição sumá-

ria, de autoria.[…] há provas mais específicas a respeito da responsabilidade dos

dirigentes.[…]A partir dos depoimentos de Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa, é

possível apontar que os principais responsáveis pelo cartel criminoso seriam, na Camargo Correia, Eduardo Hermelino Leite, Dalton dos Santos Avancini e João Ricardo Auler, na OAS, José Aldemário Pinheiro Filho (Leo Pinheiro) e Agenor Franklin Magalhães Medeiros, na UTC, Ricardo Ribeiro Pessoa, na Queiroz Galvão, Othon Zanoide de Moraes Filho e Ildefonso Colares Filho, na Galvão Engenharia, Erton Medeiros Fonseca, na Engevix, Gerson de Mello Almada, na Mendes Júnior, Sergio Cunha Mendes, como sintetizado em quadro pela autori-dade policial nas fls. 65-69 da representação policial.

[…]Merece referência principal Ricardo Ribeiro Pessoa, Presidente da

empresa, e apontado tanto por Alberto Youssef como por Paulo Roberto Costa, como o responsável na UTC pelo esquema criminoso.

Page 217: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

216

Ministro Teori Zavascki

Foram identificadas, na interceptação telemática, trocas de mensa-gens entre Alberto Youssef e Ricardo Ribeiro Pessoa, conforme fls. 187-189 da representação.

Ricardo Pessoa foi ainda identificado como visitante, por uma vez, do escritório de lavagem de dinheiro mantido na Rua Doutor Renato Paes de Barros, n.º 778, São Paulo/SP, conforme registros dos acessos de visitantes do local. Interessante notar que ele não permitiu, na ocasião, que fosse tirada a foto dele para o registro fotográfico de acesso (fl. 31 da representação).

Depoimentos recentemente prestados por Augusto Ribeiro de Mendonça Neto e Júlio Gerin de Almeida Camargo, relacionados à empresa Toyo Setal, também componente do cartel, apontam Ricardo Ribeiro Pessoa, da UTC, como responsável pelo pagamento de propinas a agentes públicos e ainda como ‘coor-denador’ do cartel.

[...]Conforme análise probatória já realizada, encontram-se presentes os

pressupostos da prisão preventiva, especificamente boa prova de materialidade e de autoria. Falta o exame dos fundamentos.

Os crimes narrados na representação policial estenderam- se por período considerável de tempo, pelo menos de 2006 a 2014.

Mantiveram-se até mesmo após a saída de Paulo Roberto Costa da Diretoria de Abastecimento da Petrobrás, o que é revelado pela realização de pagamentos posteriores pelas empreiteiras não só a ele, mas também a Alberto Youssef, havendo como, já apontado pagamentos, que datam de 2013 e até 2014, nas vésperas das prisões cautelares de ambos.

Os crimes, além de reiterados e habituais, teriam significativa dimensão. […]Em um contexto de criminalidade desenvolvida de forma habitual, pro-

fissional e sofisticada durante anos, não há como não reconhecer a presença de risco à ordem pública, inclusive de reiteração de condutas, caso não tomadas medidas drásticas para sua interrupção.

[...]A esse respeito, destaque-se ainda informação levantada pelo MPF na

fl. 87 do parecer no sentido que as empreiteiras investigadas mantêm, atual-mente, contratos ativos com a Administração Pública Federal de cerca de R$ 4.211.203.081,25, presente risco de que o mesmo esquema criminoso, com nuan-ces diversas, esteja neles também sendo empregado.

[…] o entendimento de que a habitualidade criminosa e reiteração deli-tiva constituem fundamentos para a prisão preventiva é aplicável, com as devi-das adaptações, mesmo para crimes desta espécie.

Afinal, o fato de tratarem-se de crimes de lavagem de dinheiro, ou seja, crimes comumente qualificados como ‘crimes de colarinho branco’, não exclui o risco a ordem pública. Crimes de colarinho branco podem ser tão ou mais dano-sos à sociedade ou a terceiros que crimes praticados nas ruas, com violência […].

O respeito ao Estado de Direito demanda medida severa, mas necessária, para coibir novas infrações penais por parte dos investigados, por ser constatada a habitualidade criminosa e reiteração delitiva, com base em juízo fundado nas circunstâncias concretas dos crimes que constituem objeto deste processo.

A gravidade em concreto dos crimes também pode ser invocada como fundamento para a decretação da prisão preventiva. A credibilidade das institui-ções públicas e a confiança da sociedade na regular aplicação da lei e igualmente

Page 218: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

217

Ministro Teori Zavascki

no Estado de Direito restam abaladas quando graves violações da lei penal não recebem uma resposta do sistema de Justiça criminal. Não se trata de anteci-pação de pena, nem medida da espécie é incompatível com um processo penal orientado pela presunção de inocência. […]

Portanto, encontra-se evidenciado risco à ordem pública, caracteri-zado pela prática habitual e reiterada e que se estende ao presente, de cri-mes de extrema gravidade em concreto, entre eles lavagem e crimes contra a Administração Pública, o que impõe a preventiva para impedir a continuidade do ciclo delitivo e resgatar a confiança da sociedade no regular funcionamento das instituições públicas e na aplicação da lei penal.

Vislumbro igualmente risco à investigação e à instrução penal. Os crimes foram cometidos através da produção de uma gama significa-

tiva de documentos falsos, especialmente contratos e notas fiscais, visando aco-bertar as transferências milionárias para o grupo criminoso de Alberto Youssef.

Há risco de que, mantidos sem controle os principais responsáveis, novas falsidades, documentais ou mesmo com utilização de testemunhas, serão fabri-cadas, prejudicando a integridade do processo.

Não se trata de um risco remoto. Como adiantado, este Juízo, a pedido da autoridade policial, concedeu

às empreiteiras a oportunidade de esclarecerem os fatos e justificarem as trans-ferências às empresas controladas por Alberto Youssef nos diversos inquéritos individuais instaurados.

Para surpresa deste Juízo, parte das empreiteiras omitiu- se, mas, o que é mais grave, parte delas simplesmente apresentou os contratos e notas fraudu-lentas nos inquéritos, o que caracteriza, em tese, não só novos crimes de uso de documento falso, mas também tentativa de justificar os fatos de uma forma frau-dulenta perante este Juízo, afirmando como verdadeiras prestações de serviços técnicos de fato inexistentes.

No mínimo, apresentando a documentação falsa em Juízo, deveriam ter esclarecido o seu caráter fraudulento. Jamais poderiam simplesmente apresentar documentos fraudados ao Judiciário, sem desde logo esclarecer a natureza deles.

Se as empreiteiras, ainda em uma fase inicial da investigação, não se sentiram constrangidas em apresentar documentos falsos ao Judiciário, forçoso reconhecer que a integridade das provas e do restante da instrução encontra-se em risco sem uma contramedida.

Agregue-se que as empresas investigadas são dotadas de uma capacidade econômica de grande magnitude, o que lhes concede oportunidade para interfe-rências indevidas, em várias perspectivas, no processo judicial.

Relata a autoridade policial que emissários das empreiteiras tentaram cooptar, por dinheiro ou ameaça velada, uma das testemunhas do processo, a referida Meire Bonfim Pozza (fls. 420-432 da representação).

Os diálogos foram gravados e as tentativas de cooptação e ameaças por um dos emissários, identificado apenas como ‘Edson’, são relativamente explí-citas, inclusive com referência reprovável a familiar da testemunha. Referida pessoa afirma, na gravação, estar agindo a mando das empreiteiras e estaria relacionada a advogados que teriam sido contratados pelas empreiteiras e inclu-sive se deslocado para Curitiba, segundo a gravação, em avião fretado por uma das empreiteiras.

[...]

Page 219: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

218

Ministro Teori Zavascki

Há notícia ainda, como divulgado amplamente na imprensa, de que uma das empreiteiras envolvidas no esquema criminoso teria pago vantagens inde-vidas a parlamentar federal já falecido para obstruir o andamento de pretérita Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as atividades da Petrobrás, a revelar a ousadia dos investigados e o risco que a investigação e a instrução sofrem.

Também merece referência, a ilustrar o poder das empreiteiras em coop-tar e corromper agentes públicos, o aludido episódio no qual utilizaram Alberto Youssef para lograr êxito em ‘negociação’ para o pagamento de precatório com o Governo do Maranhão, com graves indícios de pagamento de vantagens inde-vidas a agentes públicos.

Com o poder econômico de que dispõem, o risco de prejudicarem as investigações e a instrução ou de obstruírem o processo através da produção de provas falsas ou da cooptação de testemunhas e mesmo de agentes públicos envolvidos de alguma forma no processo é real e imediato.

Encontra-se presente igualmente certo risco à aplicação da lei penal. Várias das empreiteiras, senão todas, tem filiais no exterior, com recursos eco-nômicos também mantidos no exterior, o que oportuniza aos investigados fácil refúgio alhures, onde podem furtar-se à jurisdição brasileira.

Recentemente, noticiado em vários veículos de imprensa que parte dos investigados teria se refugiado no exterior, temeroso de prisões cautelares. Embora esse tipo de notícia deva ser visto com reservas, o fato é que a autoridade aponta, mediante consulta aos registros de controle de fronteiras da Polícia Federal, que vários dos investigados têm feito frequentes viagens para fora do país desde agosto deste ano e que alguns inclusive não teriam voltado (fl. 443 da representação):

[…]Nesse contexto, de risco a ordem pública, de risco à investigação ou ins-

trução criminal e de risco à aplicação da lei penal, não vislumbro como substituir de maneira eficaz a prisão preventiva por medida cautelar substitutiva. Não há, por exemplo, como interromper os contratos das empresas com a Administração Pública Federal, não há como prevenir interferências indevidas na produção probatória ou no processo, nem há como, mediante mero recolhimento de pas-saportes, prevenir, em país com fronteiras porosas e em relação a investigados afluentes, fuga ao exterior […]” (Decisão de 10-11-2014 — “evento 10”).

“[...]Em decisão datada de 10-11-2014 (evento 10), decretei, a pedido da auto-

ridade policial e do MPF, prisões cautelares de dirigentes de empreiteiras, de ex--Diretor da Petróleo Brasileiros S.A. — Petrobras e de outras pessoas associadas aos crimes.

Especificamente decretei a prisão preventiva de somente seis acusa-dos, Eduardo Hermelino Leite, da Construtora Camargo Correa, José Ricardo Nogueira Breghirolli, da OAS, Agenor Franklin Magalhães Medeiros, da OAS, Sergio Cunha Mendes, da Mendes Júnior, Gerson de Mello Almada, da Engevix, e Erton Medeiros Fonseca, da Galvão Engenharia.

Decretei a prisão temporária de outros dezenove acusados.[…]Na referida decisão datada de 10-11-2014 (evento 10), decretei, a pedido

da autoridade policial e do MPF, examinei longamente, embora em cognição sumária, as questões jurídicas, as questões de fato, as provas existentes, inclusive a competência deste Juízo. Desnecessário transcrever aqui os argumentos então utilizados.

Page 220: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

219

Ministro Teori Zavascki

[…]A prisão preventiva é um remédio amargo no processo penal. A regra é a

punição apenas após o julgamento. Embora a preventiva não tenha por função punir, mas prevenir riscos à sociedade, a outros indivíduos e ao próprio processo até o julgamento, tem efeitos deletérios sobre a liberdade, motivo pelo qual deve ser imposta a título excepcional.

Nesse contexto e embora entenda, na esteira do já argumentado na deci-são anterior, que se encontram presentes, para todos, os riscos que justificam a imposição da preventiva, resolvo limitar esta modalidade de prisão cautelar ao conjunto de investigados em relação aos quais a prova me parece, nesse momento e prima facie, mais robusta.

[…]5. É o caso igualmente dos dirigentes do Grupo UTC/Constran, em rela-

ção aos quais, além dos depoimentos dos criminosos colaboradores, existem provas decorrentes da interceptação telemática e telefônica, provas documentais colhidas nas quebras de sigilo bancário e nas buscas e apreensões, de materia-lidade e autoria dos crimes, conforme descrito cumpridamente na decisão do evento 10.

[…] foram apreendidas planilhas de contabilidade informal de Alberto Youssef, apontando fluxo financeiro robusto em espécie entre a UTC e o escri-tório de lavagem deste.

Agregue-se que a interceptação telemática e telefônica revelou conta-tos frequentes entre Alberto Youssef e agentes da UTC, inclusive em entregas de dinheiro a terceiros, além de dezenas de visitas de empregados da UTC no escritório de lavagem de dinheiro de Alberto Youssef, tudo isso a corroborar a conclusão da autoridade policial e do MPF de que as transações entre ambos, por cautela, faziam-se sempre em espécie.

O envolvimento da UTC com o cartel, com a frustração à licitação, com a lavagem de dinheiro e com o pagamento de propina a agentes da Petrobras, foram, aliás, confirmados pelos criminosos colaboradores Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa, além ainda de Carlos Alberto Pereira da Costa.

Augusto Ribeiro de Mendonça Neto e Júlio Gerin de Almeida Camargo, relacionados à empresa Toyo Setal, e que também decidiram confessar e cola-borar, confirmaram o fato e inclusive apontaram o papel central de Ricardo Ribeiro Pessoa na coordenação das empresas do cartel criminoso.

A autoridade policial, na representação originária, pleiteou a prisão preventiva de Ricardo Ribeiro Pessoa. Na ocasião, embora este Juízo enten-desse presentes os pressupostos e fundamentos, deferi, em vista do parecer do Ministério Público Federal, apenas a prisão temporária.

Assim, considerando a alteração da posição do MPF e presentes sufi-cientes provas de materialidade e de autoria também no âmbito dos crimes praticados pelo Grupo UTC/Constran em relação a Ricardo Ribeiro Pessoa, reportando-me, quanto ao restante da fundamentação, ao exposto na decisão do evento 10, defiro o requerido e decreto a prisão preventiva dele” (Decisão de 18.11.2014 — “evento 173”).

2. Algumas premissas são fundamentais para um juízo seguro a respeito das questões suscitadas no presente pedido de habeas corpus. A primeira delas é a de que, conforme reconhecido expressamente pela decisão que decretou

Page 221: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

220

Ministro Teori Zavascki

a prisão preventiva, essa medida cautelar é a mais grave no processo penal, que desafia o direito fundamental da presunção de inocência, razão pela qual somente “deve ser decretada quando absolutamente necessária. Ela é uma exce-ção à regra da liberdade” (HC 80.282, Relator(a): Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, DJ de 2-2-2001). Ou seja, a medida somente se legitima em situações em que ela for o único meio eficiente para preservar os valores jurídicos que a lei penal visa a proteger, segundo o art. 312 do Código de Processo Penal. Fora dessas hipóteses excepcionais, a prisão preventiva representa simples-mente uma antecipação da pena, o que tem merecido censura pela jurisprudên-cia desta Suprema Corte, sobretudo porque antecipa a pena para acusado que sequer exerceu o seu direito constitucional de se defender (HC 122.072, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 26-9-2014; HC 105.556, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJE de 29-8-2013).

A segunda premissa importante é a de que, a teor do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe, sim, prova da exis-tência do crime (materialidade) e indício suficiente de autoria; todavia, por mais grave que seja o ilícito apurado e por mais robusta que seja a prova de autoria, esses pressupostos, por si sós, são insuficientes para justificar o encarceramento preventivo. A eles deverá vir agregado, necessariamente, pelo menos mais um dos seguintes fundamentos, indicativos da razão determinante da medida cau-telar: (a) a garantia da ordem pública, (b) a garantia da ordem econômica, (c) a conveniência da instrução criminal ou (d) a segurança da aplicação da lei penal. O devido processo penal, convém realçar, obedece a fórmulas que propiciam tempos próprios para cada decisão. O da prisão preventiva não é o momento de formular juízos condenatórios. Decretar ou não decretar a prisão preventiva não deve antecipar juízo de culpa ou de inocência, nem, portanto, pode ser visto como antecipação da reprimenda ou como gesto de impunidade. Juízo a tal respeito será formulado em outro momento, o da sentença final, após opor-tunizar aos acusados o direito ao contraditório e à ampla defesa. É a sentença final, portanto, e não a decisão da preventiva, o momento adequado para, se for o caso, sopesar a gravidade do delito e aplicar as penas correspondentes.

Mas há ainda uma terceira premissa: em qualquer dessas situações, além da demonstração concreta e objetiva das circunstâncias de fato indicativas de estar em risco a preservação dos valores jurídicos protegidos pelo art. 312 do Código de Processo Penal, é indispensável ficar evidenciado que o encarcera-mento do acusado é o único modo eficaz para afastar esse risco. Dito de outro modo: cumpre demonstrar que nenhuma das medidas alternativas indicadas no art. 319 da lei processual penal tem aptidão para, no caso concreto, atender efi-cazmente aos mesmos fins. É o que estabelece, de modo expresso, o art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal: “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”.

Page 222: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

221

Ministro Teori Zavascki

Essas premissas têm sido reiteradamente afirmadas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se pode constatar, entre inúmeros outros precedentes, do acórdão desta 2ª Turma, relatado pelo Ministro Celso de Mello, assim ementado:

“A privação cautelar da liberdade individual — cuja decretação resulta possível em virtude de expressa cláusula inscrita no próprio texto da Constituição da República (CF, art. 5º, LXI), não conflitando, por isso mesmo, com a presunção constitucional de inocência (CF, art. 5º, LVII) — reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser ordenada, por tal razão, em situações de absoluta e real necessidade. A prisão processual, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe — além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício sufi-ciente de autoria) — que se evidenciem, com fundamento em base empírica idô-nea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. Doutrina. Precedentes. A PRISÃO PREVENTIVA — ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR  — NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. A prisão cautelar não pode — nem deve — ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o prin-cípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar — que não deve ser con-fundida com a prisão penal — não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é ine-rente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. Precedentes. A PRISÃO CAUTELAR NÃO PODE APOIAR-SE EM JUÍZOS MERAMENTE CONJECTURAIS. A mera suposição, fundada em simples conjecturas, não pode autorizar a decretação da prisão cautelar de qualquer pessoa. A decisão que ordena a privação cautelar da liberdade não se legitima quando desacompanhada de fatos concretos que lhe justifiquem a necessidade, não podendo apoiar-se, por isso mesmo, na avaliação puramente subjetiva do magistrado de que a pessoa investigada ou processada, se em liberdade, poderá delinquir ou interferir na instrução probatória ou evadir-se do distrito da culpa ou, então, prevalecer-se de sua particular condição social, funcional ou econô-mico-financeira para obstruir, indevidamente, a regular tramitação do processo penal de conhecimento. Presunções arbitrárias, construídas a partir de juízos meramente conjecturais, porque formuladas à margem do sistema jurídico, não podem prevalecer sobre o princípio da liberdade, cuja precedência constitucio-nal lhe confere posição eminente no domínio do processo penal” (HC 95.290, Relator(a): Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJE de 1º-8-2012).

3. À luz de tais premissas é que se examina o caso concreto. Quanto à exis-tência do ilícito (materialidade) e aos indícios suficientes de autoria, o decreto de prisão preventiva fez minuciosa análise do material probatório colhido até aquele momento (depoimentos, farta documentação apreendida, quebras de sigilo bancário e telefônico, entre outros), indicando, com acentuada margem

Page 223: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

222

Ministro Teori Zavascki

de segurança, a existência de graves crimes, pontuados por formação de cartel, corrupção ativa e lavagem de dinheiro, para a consecução dos quais teria havido importante participação do paciente. Nesse aspecto, ficaram atendidos, com sobradas razões, os pressupostos gerais do art. 312 do Código de Processo Penal.

4. Quanto aos fundamentos específicos, uma das razões invocadas no decreto de prisão é a possibilidade de fuga do paciente e, consequentemente, de risco à aplicação da lei penal. No ponto, o decreto prisional faz menção genérica a todos aqueles investigados que são dirigentes de empreiteiras envolvidas nos supostos crimes (e que tiveram a prisão cautelar decretada). Segundo a decisão, “várias das empreiteiras, senão todas, têm filiais no exterior, com recursos eco-nômicos também mantidos no exterior, o que oportuniza aos investigados fácil refúgio alhures, onde podem furtar-se à jurisdição brasileira” (decisão de 10-11-2014 — “evento 10”). Igualmente sem fazer menção direta ao paciente, argu-menta ainda que “vários dos investigados têm feito frequentes viagens para fora do país”, o que também representaria risco de fuga.

Da mesma forma como ocorreu em caso recentemente julgado por una-nimidade pela Turma (HC 125.555, de minha relatoria, cujo paciente era Renato de Souza Duque), não houve, aqui, a indicação de atos concretos e específicos atribuídos ao paciente que demonstrem sua efetiva intenção de furtar-se à apli-cação da lei penal. O fato de o agente ser dirigente de empresa que possua filial no exterior, por si só, não constitui motivo suficiente para a decretação da pri-são preventiva. Indispensável seria que a decisão indicasse condutas concretas aptas a formar um convencimento minimamente seguro sobre risco de fuga, se não certo, ao menos provável. No ponto, a custódia cautelar do paciente está calcada em presunção de que o paciente, por poder fugir, o fará, presunção que, a rigor, sempre se pode considerar existente, seja qual for o acusado e seja qual for o ilícito, razão pela qual é fundamento rechaçado categoricamente pela jurisprudência desta Suprema Corte (HC 122.572, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJE de 4-8-2014; HC 114.661, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJE de 1º-8-2014; HC 103.536, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 22-3-2011; HC 92.842, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJE de 25-4-2008; HC 105.494, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, DJE de 27-10-2011).

5. Outro fundamento invocado para a prisão é o da conveniência da ins-trução criminal, tendo em vista que teria ocorrido ameaça a testemunhas, jun-tada de documentação fraudulenta em juízo e cooptação de agentes públicos. Consta do decreto de prisão em relação a esse ponto específico:

“Vislumbro igualmente risco à investigação e à instrução penal.[…]

Page 224: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

223

Ministro Teori Zavascki

Relata a autoridade policial que emissários das empreiteiras tentaram cooptar, por dinheiro ou ameaça velada, uma das testemunhas do processo, a referida Meire Bonfim Pozza (fls. 420-432 da representação).

Os diálogos foram gravados e as tentativas de cooptação e ameaças por um dos emissários, identificado apenas como ‘Edson’, são relativamente explí-citas, inclusive com referência reprovável a familiar da testemunha. Referida pessoa afirma, na gravação, estar agindo a mando das empreiteiras e estaria relacionada a advogados que teriam sido contratados pelas empreiteiras e inclu-sive se deslocado para Curitiba, segundo a gravação, em avião fretado por uma das empreiteiras.

[...]Também merece referência, a ilustrar o poder das empreiteiras em coop-

tar e corromper agentes públicos, o aludido episódio no qual utilizaram Alberto Youssef para lograr êxito em ‘negociação’ para o pagamento de precatório com o Governo do Maranhão, com graves indícios de pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos.

Com o poder econômico de que dispõem, o risco de prejudicarem as investigações e a instrução ou de obstruírem o processo através da produção de provas falsas ou da cooptação de testemunhas e mesmo de agentes públicos envolvidos de alguma forma no processo é real e imediato”.

Aqui também, como se percebe, a argumentação tem caráter genérico, sem individualizar a indispensabilidade da medida em face da situação espe-cífica de cada investigado. De qualquer modo, apontou-se a necessidade de garantir a instrução criminal tendo em vista a possibilidade de interferência no depoimento de testemunhas e na produção de provas, circunstâncias que, a princípio, realmente autorizam a decretação da custódia cautelar, nos termos da jurisprudência desta Corte (HC 126.025, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJE de 26-3-2015; HC 120.865 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJE de 11-9-2014; RHC 121.223, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJE de 29-5-2014; RHC 116.995, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, DJE de 27-8-2013).

Ocorre, porém, que o decreto de prisão considerou, como não poderia deixar de ser, as circunstâncias presentes à época em que foi editado, ou seja, em novembro de 2014, há cerca de seis meses, portanto. Cumpre examinar, assim, se essas circunstâncias ainda persistem e ainda se revestem da gravidade de que então estavam revestidas. A resposta é negativa. Como consta das informações prestadas pelo magistrado de primeiro grau, nesse período intermediário, de novembro passado até hoje, a instrução criminal foi praticamente concluída, tendo sido colhida toda a prova acusatória (interceptações telefônicas, buscas e apreensões, perícias e oitivas de testemunhas), restando apenas a tomada de alguns depoimentos de testemunhas de defesa. Portanto, o panorama fático atual é inteiramente diferente. No que se refere à garantia da instrução, a prisão preventiva exauriu sua finalidade. Não mais subsistindo risco de interferên-cia na produção probatória requerida pelo titular da ação penal, não mais se

Page 225: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

224

Ministro Teori Zavascki

justifica, sob esse fundamento, a manutenção da prisão, conforme tem decidido o Supremo Tribunal Federal (HC 101.816, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJE de 11-10-2011; HC 100.340, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, DJE de 18-12-2009).

6. O outro fundamento do decreto prisional é o da necessidade de resguar-dar a ordem pública, ante a gravidade dos crimes imputados, a necessidade de “resgatar a confiança da sociedade no regular funcionamento das instituições” e o receio de reiteração delitiva. Ocorre que a jurisprudência desta Suprema Corte, em reiterados pronunciamentos, tem afirmado que, por mais graves e reprováveis que sejam as condutas supostamente perpetradas, isso não justifica, por si só, a decretação da prisão cautelar (HC 94.468, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, DJE de 3-4-2009; RHC 123.871, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJE de 5-3-2015; HC 121.006, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 21-10-2014; HC 121.286, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJE de 30-5-2014; HC 113.945, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, DJE de 12-11-2013; HC 115.613, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJE de 13-8-2014). De igual modo, a jurisprudência do Tribunal tem orientação segura de que, em princípio, não se pode legitimar a decretação da prisão preventiva unicamente com o argumento da credibilidade das instituições públicas, “nem a repercussão nacional de certo episódio, nem o sentimento de indignação da sociedade” (HC 101.537, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJE de 14-11-2011). No mesmo sentido: HC 95.358, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJE de 6-8-2010; HC 84.662, Relator(a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, DJE de 22-10-2004). Não se nega que a sociedade tem justificadas e sobradas razões para se indignar com notícias de cometimento de crimes como os aqui indicados e de esperar uma adequada resposta do Estado, no sentido de identificar e punir os responsáveis. Todavia, a sociedade saberá também compreender que a credibilidade das instituições, especialmente do Poder Judiciário, somente se fortalecerá na exata medida em que for capaz de manter o regime de estrito cumprimento da lei, seja na apuração e no julga-mento desses graves delitos, seja na preservação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do direito a ampla defesa e do devido processo legal, no âmbito dos quais se insere também o da vedação de prisões provisórias fora dos estritos casos autorizados pelo legislador.

7. Restaria examinar um derradeiro e indispensável requisito para a manutenção da prisão cautelar decretada: o da inviabilidade de adoção de outras medidas alternativas aptas a garantir a higidez dos bens e valores jurídi-cos indicados no art. 312 do Código de Processo Penal. Tem razão o magistrado da causa quando afirma que sobejam elementos indicativos de materialidade e autoria de crimes graves e que se faziam presentes, à época, relevantes motivos

Page 226: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

225

Ministro Teori Zavascki

específicos a justificar a medida cautelar. Assim, embora não se negue que a prisão preventiva foi, de modo geral, apoiada em elementos idôneos — já que a restrição da liberdade do paciente e dos outros investigados buscava, em suma, evitar a reiteração criminosa e interromper o suposto ciclo delitivo —, é certo que atualmente, considerado o decurso do tempo e a evolução dos fatos, a medida extrema já não se faz indispensável, podendo ser eficazmente substi-tuída por medidas alternativas adiante indicadas.

A propósito, além de ser hoje bem diferente, se comparada com a de novembro de 2014, a situação processual da causa, é importante considerar ainda as seguintes e relevantes circunstâncias: (a) os fatos imputados teriam ocorrido entre o ano de 2006 e o início de 2014; (b) a segregação preventiva do paciente perdura por aproximadamente 6 (seis) meses; (c) as empresas contro-ladas pelo paciente estão impedidas de contratar com a Petrobras; e (d) houve o afastamento formal do paciente da direção dessas empresas, com o consequente afastamento do exercício de atividades empresariais. O quadro demonstra que os riscos apresentados, tanto no tocante à conveniência da instrução criminal, quanto à garantia da ordem pública, foram consideravelmente reduzidos, se comparados aos indicados no decreto de prisão preventiva. Essa substancial alteração do estado de fato permite viabilizar, por força de lei (art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal), a substituição do encarceramento por outras medidas cautelares diversas que se mostrem suficientes para prevenir eventuais perigos residuais que porventura subsistam. E se essa substituição é possível, sua adoção passa a ser um dever do magistrado. Nesse sentido, destaca-se recente decisão desta Corte:

“[...] Descaracterizada a necessidade da prisão, não obstante subsista o periculum libertatis do paciente na espécie, esse pode ser obviado com medi-das cautelares diversas e menos gravosas que contribuam para interromper ou diminuir sua atividade, prevenindo-se, assim, a reprodução de fatos criminosos e resguardando-se a instrução criminal, a ordem pública e econômica e a futura aplicação da lei penal, até porque o período de segregação enfrentado também poderá servir de freio à possível reiteração de condutas ilícitas. 5. Não mais, sub-sistente a situação fática que ensejou a manutenção da prisão cautelar, é o caso de concessão de ordem de habeas corpus, de ofício, para se fixarem, desde logo, as medidas cautelares diversas da prisão” (HC 123.235, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 4-12-2014).

Cumpre enfatizar, outra vez, que, no caso, a substituição da prisão por outras medidas cautelares específicas pode, de igual modo, resguardar a ordem pública com a mesma eficiência. O próprio magistrado de primeiro grau aplicou medidas cautelares diversas da prisão para outros investigados que apresenta-vam situação análoga à do paciente. Assim ocorreu, por exemplo, em relação aos corréus Eduardo Hermelino Leite e Dalton dos Santos Avancini, dirigentes da empresa Camargo Corrêa, com atuação ao menos similar à do paciente no

Page 227: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

226

Ministro Teori Zavascki

suposto cartel e cuja prisão preventiva se dera por fundamentos praticamente idênticos. Esses corréus — com situação processual significativamente asseme-lhada à do ora paciente, tanto que foram denunciados conjuntamente na mesma ação penal —, após firmarem acordo de colaboração premiada, tiveram a prisão preventiva substituída por outras medidas cautelares. Tendo sido eficaz, nesses casos, a substituição da prisão preventiva por medidas alternativas, não há razão jurídica justificável para negar igual tratamento ao ora paciente.

É certo que não consta ter o paciente se disposto a realizar colaboração premiada, como ocorreu em relação aos outros. Todavia, essa circunstância é aqui absolutamente irrelevante, até porque seria extrema arbitrariedade — que certamente passou longe da cogitação do juiz de primeiro grau e dos Tribunais que examinaram o presente caso, o TRF da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça — manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a Lei, deve ser voluntária (Lei 12.850/13, art. 4º, caput e § 6º). Subterfúgio dessa natureza, além de atentató-rio aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada.

8. Pois bem, em nosso sistema, notadamente a partir da Lei 12.403/11, que deu nova redação ao art. 319 do Código de Processo Penal, o juiz tem não só o poder, mas o dever de substituir a prisão cautelar por outras medidas substituti-vas sempre que essas se revestirem de aptidão processual semelhante. Impõe-se ao julgador, assim, não perder de vista a proporcionalidade da medida cautelar a ser aplicada no caso, levando em conta, conforme reiteradamente enfatizado pela jurisprudência desta Corte, que a prisão preventiva é medida extrema que somente se legitima quando ineficazes todas as demais (HC 106.446, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 20-9-2011; HC 114.098, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJE de 12-12-2012).

No caso dos autos, como já afirmado, o longo tempo decorrido desde o decreto de prisão e a significativa mudança do estado do processo e das circuns-tâncias de fato estão a indicar que a prisão preventiva, por mais justificada que tenha sido à época de sua decretação, atualmente pode (e, portanto, deve) ser substituída nos termos dos arts. 282 e 319 do Código de Processo Penal, pelas seguintes medidas cautelares:

a) afastamento da direção e da administração das empresas envolvidas nas investigações, ficando proibido de ingressar em quaisquer de seus estabele-cimentos, e suspensão do exercício profissional de atividade de natureza empre-sarial, financeira e econômica;

b) recolhimento domiciliar integral até que demonstre ocupação lícita, quando fará jus ao recolhimento domiciliar apenas em período noturno e nos dias de folga;

Page 228: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

227

Ministro Teori Zavascki

c) comparecimento quinzenal em juízo, para informar e justificar ativi-dades, com proibição de mudar de endereço sem autorização;

d) obrigação de comparecimento a todos os atos do processo, sempre que intimado;

e) proibição de manter contato com os demais investigados, por qualquer meio;

f) proibição de deixar o país, devendo entregar passaporte em até 48 (qua-renta e oito) horas;

g) monitoração por meio da utilização de tornozeleira eletrônica.Destaca-se que o descumprimento injustificado de quaisquer dessas

medidas ensejará, naturalmente, decreto de restabelecimento da ordem de pri-são (art. 282, § 4º, do Código de Processo Penal).

9. Registre-se, por fim, que o objeto da presente ordem de habeas cor-pus restringiu-se aos decretos prisionais proferidos pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba em novembro de 2014 nos autos do Processo 5073475-13.2014.404.7000/PR (“eventos” 10 e 173), não alcançando outros eventuais decretos de prisão.

10. Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem, para substituir a pri-são preventiva do paciente decretada no Processo 5073475-13.2014.404.7000/PR pelas medidas cautelares acima especificadas, se por outro motivo não estiver preso. É o voto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 596.663 — RJ

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Redator do acórdão): 1. O recurso em exame foi veiculado em ação rescisória que, sob os fundamentos dos incisos IV e V do art. 485 do CPC, busca desconstituir decisão extintiva de processo de execução trabalhista. O Tribunal Superior do Trabalho, confirmando decisões das instâncias inferiores, descartou a alegação de que a extinção da execução estaria ofendendo a coisa julgada, por ser contrária ao título executivo judicial (que reconhecera o direito à incorporação, nos vencimentos dos reclamantes, do percentual de 26,05% relativo à URP de fevereiro de 1989).

Eis o que consignou o Tribunal de origem:

No que se refere à alegada violação da coisa julgada (CPC, art. 485, IV), em primeiro lugar, porque a sentença exeqüenda, conforme evidencia o trecho

Page 229: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

228

Ministro Teori Zavascki

transcrito no acórdão recorrido, silencia sobre qualquer espécie de limitação, nela não havendo vedação expressa nesse sentido.

É o que ainda revela a leitura da íntegra daquela decisão, apresentada com a inicial da ação rescisória a fls. 21/22.

Em segundo lugar, porque a jurisprudência desta Eg. Subseção está orien-tada no sentido de que a violação da coisa julgada a que alude o art. 485, IV, do CPC diz respeito ao trânsito em julgado operado em outra ação, em que caracte-rizada a tríplice identidade de partes, pedidos e causa de pedir, situação em que não se enquadra a hipótese sob exame.

(...)Por outra face, os fundamentos recursais, quanto aos erros processu-

ais ditos ocorridos na fase de execução (fls. 186/196), revelam situações fáticas que não correspondem àquelas delineadas no julgado rescindendo, segundo o qual, conforme constatado por meio de prova pericial, a obrigação foi satis-feita, quanto aos empregados do ora Réu, abrangendo o período de fevereiro até agosto de 1989, por força do dissídio coletivo já mencionado, sendo que os ora Recorrentes receberam os valores pertinentes às diferenças de proventos de aposentadoria decorrentes da aplicação do percentual de 26,05% relativo à URP de fevereiro de 1989 — indevidamente — até agosto de 1995 (fl. 87).

Ainda na mesma decisão, a Turma julgadora concluiu que “provado o pagamento posterior à sentença impõe-se a extinção da execução (art. 794, I, do CPC)”, que “a matéria é própria de liquidação, ao contrário do que alegado, já que se definem os efeitos da sentença liquidanda, situação que não infringe a coisa julgada” (fl. 87), e, por fim, que “a autoridade da coisa julgada não se estende ao fato posterior à sentença, extintivo da obrigação” (fl. 88).

A situação, a toda evidência, atrai o óbice da Súmula 410/TST (conver-são da O.J. 109/SBDI-2/TST), na medida em que “a ação rescisória calcada em violação de lei não admite reexame de fatos e provas do processo que originou a decisão rescindenda”.

Impossível, assim, cogitar-se de violação da coisa julgada, também pelo prisma das violações à Constituição Federal e à Lei (CPC, art. 485, V) manejadas na inicial da ação rescisória (CF, art. 5º, XXXVI; CLT, art. 789, § 1º).

Os recorrentes, porém, insistem na tese de infringência ao art. 5º, XXXV, da Constituição, na consideração de que, ao validar o encerramento do processo executivo, dando por quitada a obrigação de incorporação da URP referente ao mês de fevereiro/89, o acórdão recorrido teria desconsiderado comando expresso do título exequendo, que, segundo entendem, não limitou a incidência do percentual de 26,05% ao ano de 1989, tendo determinado o seu pagamento com efeitos presentes e futuros.

Iniciado o julgamento, o Ministro Marco Aurélio, relator do caso, pro-nunciou-se pelo provimento do recurso, após o que pedi vista dos autos, para melhor exame das circunstâncias do caso.

2. O pedido de vista, conforme referi na oportunidade, se deveu à percep-ção de que, consideradas as circunstâncias do caso, a questão jurídica em debate não diz respeito à coisa julgada, mas, sim, a eficácia temporal da sentença. O

Page 230: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

229

Ministro Teori Zavascki

exame dos autos confirma esse entendimento. Realmente, a sentença exequenda reconheceu o direito dos demandantes a incorporar, em seus vencimentos, o percentual de 26,05%, relativo à URP de fevereiro de 1989. Trata-se de típica sen-tença sobre relação jurídica de trato continuado, que, portanto, projeta efeitos prospectivos. Justamente por isso, a questão que ordinariamente se põe em rela-ção a essa espécie de provimento é a da sua eficácia temporal futura: até quando a sentença tem eficácia? É, por ventura, ad aeternum, a produção de seus efeitos?

Sobre esse tema, há uma premissa conceitual incontroversa: a de que a força vinculativa dessas sentenças atua rebus sic stantibus. Realmente, ao pro-nunciar juízos de certeza sobre a existência, a inexistência ou o modo de ser das relações jurídicas, a sentença leva em consideração as circunstâncias de fato e de direito que se apresentam no momento da sua prolação. Tratando-se de rela-ção jurídica de trato continuado, a eficácia temporal da sentença permanece enquanto se mantiverem inalterados esses pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviram de suporte (cláusula rebus sic stantibus). No particular, tivemos oportunidade de sustentar o seguinte, em sede doutrinária (Eficácia das senten-ças na jurisdição constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 101-106):

“(...) Ora, a sentença, ao examinar os fenômenos de incidência e pronun-ciar juízos de certeza sobre as consequências jurídicas daí decorrentes, certifi-cando, oficialmente, a existência, ou a inexistência, ou o modo de ser da relação jurídica, o faz levando em consideração as circunstâncias de fato e de direito (norma abstrata e suporte fático) que então foram apresentadas pelas partes. Considerando a natureza permanente ou sucessiva de certas relações jurídicas, põem-se duas espécies de questões: primeira, a dos limites objetivos da coisa jul-gada, que consiste em saber se a eficácia vinculante do pronunciamento judicial abarca também (a) o desdobramento futuro da relação jurídica permanente, (b) as reiterações futuras das relações sucessivas e (c) os efeitos futuros das relações instantâneas. A resposta positiva à primeira questão suscita a segunda: a dos limites temporais da coisa julgada, que consiste em saber se o comando sen-tencial, emitido em certo momento, permanecerá inalterado indefinidamente, mesmo quando houver alteração no estado de fato ou de direito. Ambas as ques-tões, no fundo, guardam íntima relação de dependência, conforme se verá.

No que se refere aos limites objetivos da coisa julgada, a regra geral é a de que, por qualificar norma concreta, fazendo juízo sobre fatos já ocorridos, a sentença opera sobre o passado, e não sobre o futuro.

(...)Estabelecido que a sentença, nos casos assinalados, irradia eficácia vin-

culante também para o futuro, surge a questão de saber qual é o termo ad quem de tal eficácia. A solução é esta e vem de longe: a sentença tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. Se ela afirmou que uma relação jurídica existe ou que tem certo conteúdo, é porque supôs a existência de determinado comando normativo (norma jurídica) e de determinada situação de fato (suporte fático de incidência); se afirmou que determinada relação jurídica não existe, supôs

Page 231: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

230

Ministro Teori Zavascki

a inexistência ou do comando normativo, ou da situação de fato afirmada pelo litigante interessado. A mudança de qualquer desses elementos compromete o silogismo original da sentença, porque estará alterado o silogismo do fenômeno de incidência por ela apreciado: relação jurídica que antes existia deixou de exis-tir, e vice-versa. Daí afirmar-se que a força da coisa julgada tem uma condição implícita, a da clausula rebus sic stantibus, a significar que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da pro-lação da sentença. Alterada a situação de fato (muda o suporte fático mantendo--se o estado da norma) ou de direito (muda o estado da norma, mantendo-se o estado de fato), ou dos dois, a sentença deixa de ter a força de lei entre as partes que até então mantinha (...)”

3. Restaria saber se essa superveniente perda de eficácia da sentença dependeria de ação rescisória ou, ao menos, de uma nova sentença em ação revisional. Quanto à rescisória, a resposta é certamente negativa, até porque a questão posta não se situa no plano da validade da sentença ou da sua imutabi-lidade, mas, sim, unicamente, no plano da sua eficácia temporal. Quanto à ação de cunho revisional, também é dispensável em casos como o da espécie, pois, alteradas por razões de fato ou de direito as premissas originalmente adotadas pela sentença, a cessação de seus efeitos, em regra, opera-se de modo imediato e automático, independente de novo pronunciamento judicial. Sobre esse tema, permito-me, outra vez, reproduzir o que escrevi em sede doutrinária:

“(...) A alteração do status quo tem, em regra, efeitos imediatos e automá-ticos. Assim, se a sentença declarou que determinado servidor público não tinha direito a adicional de insalubridade, a superveniência de lei prevendo a vantagem importará imediato direito de usufruí-la, cessando a partir daí a eficácia vincu-lativa do julgado, independente de novo pronunciamento judicial ou de qualquer outra formalidade. Igualmente, se a sentença declara que os serviços prestados por determinada empresa estão sujeitos a contribuição para a seguridade social, a norma superveniente que revogue a anterior ou que crie isenção fiscal cortará sua força vinculativa, dispensando o contribuinte, desde logo, do pagamento do tributo. O mesmo pode ocorrer em favor do Fisco, em casos que, reconhecida por sentença, a intributabilidade, sobrevier lei criando tributo: sua cobrança pode dar-se imediatamente, independentemente de revisão do julgado anterior.

No que se refere à mudança no estado de fato, a situação é idêntica. A sen-tença que, à vista da incapacidade temporária para o trabalho, reconhece o direito ao benefício de auxílio-doença tem força vinculativa enquanto perdurar o status quo. A superveniente cura do segurado importa imediata cessação dessa eficácia.

Nos exemplos citados, o interessado poderá invocar a nova situação (que extinguiu, ou modificou a relação jurídica) como matéria de defesa, impedi-tiva da outorga da tutela pretendida pela parte contrária. Havendo execução da sentença, a matéria pode ser alegada pela via de embargos, nos termos art. 741, VI, do CPC. Tratando-se de matéria típica de objeção, dela pode conhecer o juiz até mesmo de ofício, mormente quando se trata de mudança do estado de direito, quando será inteiramente aplicável o princípio jura novit curia” (op. cit. p. 106-107).

Page 232: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

231

Ministro Teori Zavascki

As exceções a essa automática cessação da eficácia vinculante da sen-tença por decorrência da mudança do status quo ocorre quando, por imposição expressa de lei, atribui-se ao beneficiado a iniciativa de provocar o pronuncia-mento judicial a respeito, configurando, dessa forma, uma espécie de direito potestativo. No mesmo estudo já referido, observei, a esse propósito:

“Em certas situações, a modificação do estado de fato ou de direito somente operará alteração na relação obrigacional se houver iniciativa do inte-ressado e nova decisão judicial. Em outras palavras, assiste ao beneficiado pela mudança no status quo o direito potestativo de provocar, mediante ação pró-pria, a revisão da sentença anterior, cuja força vinculativa permanecerá íntegra enquanto não houver aquela provocação. A nova sentença terá, portanto, natu-reza constitutiva com eficácia ex nunc, provocando a modificação ou a extin-ção da relação jurídica afirmada na primitiva demanda. Exemplo clássico é o dos alimentos provisionais. A sentença que os fixa está sujeita à cláusula rebus sic stantibus, a significar que a obrigação poderá ser alterada, para mais ou para menos, ou até extinta, com a superveniente mudança do status quo ante. Todavia, aqui não há eficácia automática. Cumpre ao devedor dos alimentos, que teve reduzida a sua capacidade financeira, promover judicialmente a altera-ção da obrigação; cumpre, igualmente, ao credor, que teve supervenientemente aumentadas as suas despesas de subsistência, demandar em juízo a majoração do pensionamento. É o que prevê, expressamente, o art. 1.699 do CC. Enquanto não houver a iniciativa do interessado, a obrigação permanece intacta, segundo os parâmetros estabelecidos na sentença. Daí afirmar-se que, em tais casos, há direito potestativo à modificação, que deve ser exercido mediante ação judicial. São casos excepcionais, que, por isso mesmo, recebem interpretação estrita. É justamente nessas situações que será cabível — e indispensável para operar a mudança na relação jurídica objeto da sentença — a chamada ação revisional ou ação de modificação, anunciada no art. 471, II, do CPC.

Compreendida nos exatos e estritos limites acima referidos, a ação de revisão não visa a anular a sentença revisanda, nem a rescindi-la. Conforme observou Pontes de Miranda, “não há dúvida de que a ação de modificação não diz respeito à não existência, nem à não validade da sentença que se quer execu-tar. Tão somente à interpretação, ou versão, da sua eficácia” (MIRANDA, Pontes de; CAVALCANTI, Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. t. V. p. 199). Ela tem, certamente, natureza consti-tutiva, e a correspondente sentença de procedência terá eficácia ex nunc, para o efeito de modificar ou extinguir, a partir da sua propositura, a relação jurídica declarada na sentença revisanda. O que se modifica ou extingue é a relação de direito material, não a sentença.

Convém repetir e frisar, todavia, que a ação de revisão é indispensável apenas quando a relação jurídica material de trato continuado comportar, por disposição normativa, o direito potestativo antes referido. É o caso da ação de revisão de alimentos, destinada a ajustá-los à nova situação econômica do devedor ou às supervenientes necessidades do credor, e da ação de revisão de sentença que tenha fixado valores locatícios, para ajustá-los a novas condições de mercado (arts. 19 e 68 da Lei 8.245/1991). Afora tais casos, a modificação do estado de fato ou de direito produz imediata e automaticamente a alteração da

Page 233: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

232

Ministro Teori Zavascki

relação jurídica, mesmo quando esta tiver sido certificada por sentença com trânsito em julgado, conforme anteriormente assinalado” (op. cit., p. 107-108).

4. Ora, no caso concreto, ocorreu uma evidente alteração no status quo: o percentual de 26,05% objeto da condenação foi inteiramente satisfeito pela ins-tituição executada, tendo sido inclusive objeto de incorporação aos vencimentos dos demandantes por força de superveniente cláusula de dissídio coletivo. Em outras palavras: não houve ofensa alguma ao comando da sentença; pelo contrá-rio, houve, sim, o seu integral cumprimento superveniente. Esgotou-se, assim, a sua eficácia temporal, por ter sido satisfeita a condenação.

É o que restou claramente estabelecido no acórdão recorrido, que, fazendo referência a pronunciamento anterior do Tribunal Regional do Trabalho, regis-trou o seguinte:

Como já relatado, os Autores arrimam a sua irresignação na ofensa à coisa julgada, nos termos do art. 485, inciso IV, do CPC, e em violação dos arts. 5º, XXXVI, da CF e 879, § 1º, da CLT e contrariedade à O.J. 35/SBDI-2/TST (CPC, art. 485, V).

O Regional, na decisão recorrida, quanto à alegada ofensa à coisa julgada e ao art. 5º, XXXVI, da CF, assim manifestou seu convencimento, para concluir pela improcedência da pretensão de corte rescisório (fls. 164/165):

“A exordial desta ação é uma representação clara e direta contra o v. acór-dão de fls. 86-88, da Egrégia Quarta Turma, mantenedor da r. decisão de 1º grau que extinguiu a execução pelo cumprimento do decisum, porquanto o Devedor conseguiu provar nos autos da reclamação que não há crédito remanescente dos ora Autores, e, a despeito do esforço com que estes buscam demonstrar que o ato atacado violou a lei e ofendeu a coisa julgada, não obtêm sucesso.

O que a r. sentença de fls. 21-22 assegurou aos Autores, repito, foi:‘(...omissis...) condenar o réu a pagar aos autores os valores da incidên-

cia da URP de fevereiro/89, ao percentual de 26,05% sobre os proventos deles, assegurando que esta incidência integra os mencionados proventos, com efeitos presentes e futuros (...omissis...)’.

Ora, foi exatamente isso que aconteceu, segundo se constata nos autos, tendo em mira que os valores apurados pelos Reclamantes às fls. 105-106, dos autos principais (relativos ao Reclamante Aprigio Belarmino de Camargo), e fls. 111-112 (com relação ao Reclamante Roberto Bastos Gonçalves), foram homologados pelo doutor juiz, à fl. 115 daqueles autos (aqui fl. 36), por não terem sido impugnados pelo Banco do Brasil S.A.

Atualizados e incididos os juros moratórios, os valores foram pagos por meio dos alvarás e, posteriormente, o laudo pericial constatou que não existe débito a ser apurado; não há, pois, crédito remanescente, estando plenamente satisfeito o comando da res judicada.”

Por outra face, com relação à lesão indicada ao art. 879, § 1º, da CLT, o acórdão recorrido, inicialmente, assim está posto:

“[...] o certo é que os autores querem rever toda a discussão travada na execução a fim de mudar o rumo daquilo que lhes foi desfavorável por não terem direito executivo. [...] (fl. 166)

Page 234: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

233

Ministro Teori Zavascki

Após, o Exmo. Relator transcreveu o voto de vista proferido, na sessão de julgamento, pelo Exmo. Sr. Desembargador Jorge Fernando Gonçalves da Fonte, quem, analisando os autos, acrescentou aos fundamentos já expostos que o percentual de 26,05% relativo à URP de fevereiro de 1989 foi incorpo-rado aos salários dos empregados do Banco do Brasil, e aos proventos dos aposentados, por meio de decisão proferida pelo TST nos autos do Dissídio Coletivo nº 38/89, cuja cláusula primeira estabeleceu que “o Banco reajustará em 01/09/1989 o valor dos salários de seus empregados pela aplicação da varia-ção integral do índice do custo de vida apurado pelo DIEESE no período de 1º de setembro de 88 a 31 de agosto de 89”, concluindo que “obviamente, a URP de fevereiro foi absorvida aqui por essa decisão do TST” (fls. 166/167).

E prosseguiu o Regional (fl. 167):“Assim, confirma-se que o Réu pagou nos autos da reclamação trabalhista

em duplicidade o que já havia sido pago por ocasião do cumprimento da cláusula normativa suso citada. Há, aqui, clara incidência da Orientação Jurisprudencial Nº 35 da SDI2/TST, quando se devem limitar as diferenças salariais em questão à data-base da categoria profissional, além do mais porque verificado o devido pagamento do percentual objeto daquela ação.

O que fica demonstrado, ademais, é o absoluto descaso para com o erário público perpetrado pelo Banco Réu, ao permitir a liberação de pagamento de valores já auferidos pelos Autores, cuja conduta é inadmissível e repreensível, à luz dos princípios que norteiam a Administração Pública.

Por esse motivo, acrescento às razões de decidir a determinação de que seja expedido ofício ao Ministério Público Federal, para que tome as providên-cias cabíveis.”

Não prospera a pretensão recursal, por todos os prismas debatidos pelos Recorrentes.

Enfatiza-se, portanto, outra vez: não houve, por parte do acórdão recor-rido, qualquer violação à coisa julgada. O que ele fez, na verdade, foi apenas um juízo sobre o exaurimento da eficácia temporal da sentença exequenda, em face do superveniente atendimento integral do seu comando, ficando assen-tado que, com o advento de acórdão do TST no Dissídio Coletivo 38/89 e com o consequente reajuste dos vencimentos dos ora recorrentes de acordo com os índices apurados pelo DIEESE entre 1º-9-1988 a 31-8-1989, o valor da URP cor-respondente ao mês de fevereiro de 89 foi definitivamente incorporado aos seus ganhos. Em outras palavras, após o trânsito em julgado da sentença que certi-ficou o direito à incorporação do índice da URP correspondente a fevereiro de 1989, o pagamento deste mesmo percentual passou a ser reconhecido por um outro instrumento normativo autônomo, produzido supervenientemente, e que alterou radicalmente os termos da relação jurídica originariamente posta sob o crivo da Justiça Trabalhista.

Daí ter o juízo de execução determinado, com acerto, a extinção do pro-cesso, impedindo a eternização do pagamento em duplicidade do mesmo per-centual de 26,05%.

Page 235: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

234

Ministro Teori Zavascki

5. Cumpre asseverar, ademais, que os fundamentos adotados pelo acór-dão recorrido guardam compatibilidade com o entendimento manifestado pelo STF em situações análogas, como, v.g., em recente julgado, em que, analisando processo representativo de controvérsia, inserido no âmbito da sistemática da repercussão geral, fixou a tese de que, não obstante reconhecida judicialmente certa diferença de vencimentos de servidor público, o termo final dessa obri-gação “deve ocorrer no momento que a carreira do servidor passa por uma res-truturação remuneratória, porquanto não há direito à percepção ad aeternum de parcela de remuneração por servidor público” (RE 561.836/RN, rel. Min. Luiz Fux, Pleno, DJE de 10-2-2014). Orientação semelhante é adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, como, v.g., no MS 11.045, de que fui relator (Corte Especial, DJE de 25-2-2010).

No sentido da legitimidade de decisões dessa natureza, por parte do TCU, a Primeira Turma, ao julgar o MS 27.580 AgR (Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 7-10-2013), entendeu que:

“Agravo regimental em mandado de segurança. Impetração voltada con-tra acórdão proferido pelo Tribunal de Contas da União com o qual ele determi-nou o corte de vantagens que considerou terem sido ilegalmente agregadas aos proventos de aposentadoria de servidor público. Admissibilidade.

1. Está assentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o entendimento de que não se aplica ao TCU, no exercício do controle da legali-dade de aposentadorias, a decadência administrativa prevista na Lei nº 9.784/99.

2. Tampouco se pode falar em desrespeito ao princípio da irredutibilidade de vencimentos quando se determina a correção de ilegalidades na composição de proventos de aposentadoria de servidores públicos.

3. Não ocorre violação da autoridade da coisa julgada quando se reco-nhece a incompatibilidade de novo regime jurídico com norma anterior que disciplinava a situação funcional de servidor público. Precedentes. 4. Agravo regimental a que se nega provimento”.

Na linha do exposto, o que se pode assentar como tese de repercussão geral para o caso em exame é o seguinte: a sentença que reconhece ao trabalha-dor ou servidor o direito a determinado percentual de acréscimo remuneratório deixa de ter eficácia a partir da superveniente incorporação definitiva do refe-rido percentual nos seus ganhos.

6. Diante do exposto, com a devida vênia ao Relator, é de se negar provi-mento ao recurso extraordinário. É como voto.

Page 236: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

235

Ministro Teori Zavascki

VIGÉSIMO SEXTO AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO PENAL 470 — MG

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki: 1. A controvérsia está centrada na revoga-ção ou não do art. 333, I, do Regimento Interno do STF, que, como é reconhecido sem divergência, foi recepcionado pela CF/88 com status de lei ordinária. E o fundamento adotado pela decisão agravada é de que tal dispositivo foi revogado pela superveniente Lei 8.038/1990, que, ao disciplinar a ação penal originária de competência dos Tribunais, não previu o recurso de embargos infringentes.

2. Conforme dispõe o § 1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42), são três os modos ou causas pelos quais uma lei superveniente pode revogar a antecedente: “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

3. A primeira causa está, certamente, descartada: não houve revogação expressa do art. 333, I, do Regimento Interno do STF. Portanto, se revogação ocorreu o foi de modo implícito, em decorrência de uma das duas outras: (a) a de ser, a Lei superveniente, incompatível com o recurso de embargos infringen-tes ou (b) a de ter, essa Lei posterior, disciplinado inteiramente a matéria antes tratada no art. 333, I, do Regimento Interno.

4. Não se pode afirmar que o recurso de embargos infringentes previstos no art. 333, I, do RI/STF seja incompatível com a ação penal originária disci-plinada na Lei 8.038/90. Pelo contrário, considerada a natureza desse peculiar e vetusto recurso, a presença dele em nosso sistema processual, se ainda pode ser de alguma forma justificada (e não são poucos nem só modernos os que advogam a conveniência de extinguir essa espécie recursal), é justamente para hipóteses em que as decisões embargáveis sejam tomadas por maioria ou já não comportem outra espécie recursal.

Com efeito, há, na doutrina brasileira, um estudo considerado clássico, pela sua importância e profundidade, sobre esse específico recurso de embargos infringentes, escrito pelo Professor Moniz de Aragão (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Estudo sobre os embargos de nulidade e infringentes do julgado pre-vistos no Código de Processo Civil. Curitiba: Editora Litero-Técnica). Foi sua tese de Concurso à Cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, publicada em 1959. Já naquela época, o autor apon-tava — e aderia — as sérias reservas doutrinárias a respeito da conveniência de se manter, no sistema processual, o recurso de embargos infringentes, reservas alicerçadas, entre outros, nesse fundamento invocado na decisão agravada, de se tratar, afinal, de um recurso para o mesmo órgão que proferiu a decisão

Page 237: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

236

Ministro Teori Zavascki

recorrida. Essas mesmas críticas são noticiadas por Pontes de Miranda, que, ao tratar do tema, refere como primeiro e antigo “problema de técnica legislativa: o de saber se convém, ou não, que a legislação adote o recurso de embargos. A resposta”, acrescenta, é dada diferentemente pelos povos e, durante a plurali-dade de legislações processuais dos Estados-membros do Brasil, a tendência à negativa era expressiva” (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. RJ: Forense, 1975. t. VII. p. 318). Portanto, a conveniência ou não de manter esse recurso em nosso sistema processual não é questão atual, mas antiga e persistente. Todavia, essa é uma questão ligada à conveniência de política legislativa, convindo enfatizar que a conveniência ou inconveniência da lei não é, por si só, causa de sua revogação, nem cabe ao juiz, por esse exclusivo motivo, deixar de aplicá-la.

Discorrendo sobre a origem e a natureza do recurso, escreveu o Professor Moniz de Aragão, na Introdução daquela obra:

Consoante o ensinamento dos doutores, os embargos originam-se dos antigos pedidos de reconsideração, instituídos pela praxe lusitana à época em que foram supressos os tribunais deambulatórios. É lição de SOUZA, endossada por LOBÃO, e até hoje não contestada. (...)

A reassunção, pelos embargos, do seu primitivo escopo, quando ainda denominados pedido de reconsideração, de possibilitar recurso contra as senten-ças, não importou “ipso facto” na perda do outro propósito, que lhe atribuíra a legislação Afonsina, de meio de ataque do executado. (...)

Embora uma só a denominação, os embargos de nulidade e infringentes do julgado e os embargos do executado tinham oportunidade bastante diversa. Como recurso destinavam-se a impedir a formação da coisa julgada, fazendo com que o pronunciamento fosse objeto de nova revisão, pelos mesmos juízes que o haviam prolatado, seja no primeiro ou no segundo grau. Como ataque do executado, ao contrário, variava sensivelmente o seu objetivo. Já não lhe servia de alvo uma sentença ainda impugnável, mas uma decisão firme, aureolada com a irrecorri-bilidade. Mesmo assim podiam os embargos inutilizá-la, contrapondo-lhe vícios de forma e de fundo.

Limitada por esse paralelismo desenrolou-se toda a história do recurso, hoje arrolado em nosso Código de Processo Civil, sem que a doutrina houvesse explicado ou explorado a interessante simultaneidade.

Pois bem, inobstante a resistência que recebe de respeitável corrente dou-trinária, o recurso ainda se mantém em nossa legislação, e se mantém com essa mesma característica essencial formatada ao longo de sua já longínqua origem: como um recurso equiparado a um pedido de reconsideração, que é proposto, não para ser julgado em outra instância, mas sim na própria instância e em geral pelo mesmo órgão que prolatou a decisão embargada, visando a obter uma retra-tação. Daí afirmar Pontes de Miranda que “a devolução do conhecimento deles a um tribunal do qual não façam parte os juízes prolatores do acórdão embargado destoaria, flagrantemente, da própria definição de embargos, na qual, a despeito

Page 238: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

237

Ministro Teori Zavascki

da dilatação do corpo julgador do recurso, não se pode eliminar, sem grave pertur-bação da terminologia e da técnica processuais, o antigo elemento de retratação, que tem persistido” (op. cit., p. 324). O atual Código de Processo Civil, embora não recomende, permite até que fique mantido, no processamento dos embar-gos, o mesmo relator da decisão embargada (CPC, art. 534, interpretado a con-trario sensu).

São exemplos de embargos infringentes — cuja existência no plano nor-mativo atual ninguém questiona — processados e julgados pelo próprio órgão prolator da decisão embargada: no STF, os interpostos em ação rescisória de seus julgados, cuja competência, tanto para a ação (RI, art. 6º, I, b) quanto para os respectivos embargos infringentes (RI, art. 6º, IV) é do Plenário; no STJ, os embargos infringentes em rescisórias de acórdãos da Corte Especial (RI, art. 11, XIV) e das Seções (RI, art. 12, § único, I) cujo julgamento igualmente compete ao próprio órgão prolator do acórdão embargado; e nos tribunais de justiça e tribunais regionais federais, os embargos infringentes em ações rescisórias deci-didas por seus órgãos judiciários superiores (“órgãos especiais”), nos termos dos respectivos regimentos internos.

Essa sua peculiar característica — de se tratar de uma espécie de pedido de reconsideração — é que determina e impõe uma natural restrição ao âmbito do cabimento dos embargos infringentes, admitidos somente em situações muito especiais, especificamente em duas: (a) contra decisões não sujeitas a outro recurso ou (b) contra decisões colegiadas tomadas por maioria de votos. Da primeira espécie são, por exemplo, os embargos infringentes em causas de alçada, tradicionais em nosso direito processual, como os previstos no art. 839 do CPC de 1939 (“Art. 839. Das sentenças de primeira instância proferidas em ações de valor igual ou inferior a duas vezes o salário mínimo vigente nas capitais respectivas dos Territórios e Estados, só se admitirão embargos de nuli-dade ou infringentes do julgado e embargos de declaração. § 1º Os embargos de nulidade ou infringentes do julgado, instruídos, ou não, com documentos novos, serão deduzidos, nos cinco (5) dias seguintes à data da sentença, perante o mesmo juízo, em petição fundamentada. § 2º Ouvido o embargado no prazo de cinco (5) dias, serão os autos conclusos ao juiz, que, dentro em dez (10) dias, os rejeitará ou reformará a sentença”), no art. 4º da Lei 6.825/80 (“Art. 4º Das sentenças pro-feridas pelos juízos federais em causas de valor igual ou inferior a 50 (cinquenta) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, em que interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes a União, autarquias e empresas públicas federais só se admitirão embargos infringentes do julgado e embargos de declara-ção. § 1º Os embargos infringentes do julgado, instruídos, ou não, com documen-tos novos, serão deduzidos, perante o mesmo Juízo, em petição fundamentada, no prazo de 10 (dez) dias, contados na forma do art. 506 do Código de Processo Civil. § 2º Ouvido o embargado, no prazo de 5 (cinco) dias, serão os autos conclusos ao

Page 239: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

238

Ministro Teori Zavascki

Juiz, que, dentro de 10 (dez) dias, os rejeitará ou reformará a sentença. § 3º Os embargos declaratórios serão opostos em petição, sem audiência da parte contrá-ria, na forma dos arts. 464 e 465 do Código de Processo Civil.”) e no art. 34, §§ 2º e 3º da Lei 6.830/80 — Lei de Execução Fiscal, ainda em vigor (“Art. 34 - Das sen-tenças de primeira instância proferidas em execuções de valor igual ou inferior a 50 (cinquenta) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTN, só se admi-tirão embargos infringentes e de declaração. (...) § 2º Os embargos infringentes, instruídos, ou não, com documentos novos, serão deduzidos, no prazo de 10 (dez) dias perante o mesmo Juízo, em petição fundamentada. § 3º Ouvido o embar-gado, no prazo de 10 (dez) dias, serão os autos conclusos ao Juiz, que, dentro de 20 (vinte) dias, os rejeitará ou reformará a sentença.”). São da segunda espécie, os embargos infringentes disciplinados nos artigos 530 e seguintes do CPC (Art. 530. Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver refor-mado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à maté-ria objeto da divergência. Art. 531. Interpostos os embargos, abrir-se-á vista ao recorrido para contrarrazões; após, o relator do acórdão embargado apreciará a admissibilidade do recurso. (...). Art. 533. Admitidos os embargos, serão processa-dos e julgados conforme dispuser o regimento do tribunal. Art. 534. Caso a norma regimental determine a escolha de novo relator, esta recairá, se possível, em juiz que não haja participado do julgamento anterior) e os do parágrafo único do art. 609 do Código de Processo Penal.

Ora, os embargos infringentes previstos no art. 333, I, do Regimento Interno do STF atendem às duas condições: (a) visam à reforma de decisão cole-giada tomada por maioria (aliás, por escassa maioria), decisão essa (b) contra a qual, ademais, já não caberá outro recurso. Por isso se reafirma: essa espécie recursal não é, de forma alguma, incompatível com a ação penal originária de competência do STF. Pelo contrário, é um recurso adequado a essa peculiarís-sima decisão colegiada tomada por estreita maioria em ação de competência originária de um tribunal supremo.

Fica, assim, descartada também essa segunda causa de revogação do art. 333, I, do Regimento Interno do STF.

5. Restaria, assim, a derradeira hipótese de revogação: a que decorre da integral regulação da matéria pela lei superveniente. Mas nem tal hipótese ocorreu. Certamente não se pode afirmar que a Lei 8.038/90 “regulou inteira-mente” a matéria relativa à recorribilidade das decisões — interlocutórias ou definitivas — proferidas em ação penal originária. Com efeito, no seu Título I, Capítulo I, essa Lei 8.038/1990 disciplinou a referida ação penal, mas apenas no que diz respeito à primeira fase do procedimento, ou seja, a da sua instaura-ção, instrução e julgamento, e mesmo assim, quanto à etapa de julgamento, há expressa remissão a normas regimentais (art. 12). Relativamente à fase recursal

Page 240: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

239

Ministro Teori Zavascki

propriamente dita, a Lei não tem dispositivo algum. Nesse ponto, a técnica legislativa foi a tradicionalmente adotada em situações da espécie, tanto no processo civil, quanto no processo penal, cujos Códigos conferem previsão nor-mativa autônoma para as duas fases, seja quando disciplinam os procedimentos comuns, seja os especiais. Em ambos, a fase recursal está regulada em títulos e capítulos distintos da primeira fase (instauração, instrução e julgamento da causa). É o que se constata, por exemplo, no CPP: ele trata dos recursos no Título II do Livro III, em separado, portanto, dos processos de competência originá-ria (Livro II, Título III), bem como de outros procedimentos comuns (Livro II, Título I) e especiais (Livro II, Título II). Assim também ocorre no próprio regimento interno do STF, que trata em títulos distintos as ações originárias (Título IX) e os recursos (Título XI). Não é estranho, assim — mas, pelo con-trário, é fruto da técnica legislativa tradicional — que a Lei 8.038/90, ao regular o procedimento especial da ação penal originária (Capítulo I), tenha deixado de tratar dos recursos cabíveis nessa ação. Essa mesma técnica foi adotada para as demais ações originárias ali disciplinadas, a saber: a reclamação (Capítulo II), a Intervenção Federal (Capítulo III) e o Habeas Corpus (Capítulo IV).

É certo que essa Lei tem um título destinado a recursos (Título II). Mas nele são disciplinados apenas os recursos constitucionais para o STF e para o STJ de decisões proferidas em causas de competência de outros órgãos judiciários (Capítulos I a IV). Há, outrossim, no Título III, das disposições gerais, modificações de certos dispositivos do Código de Processo Civil que tratam de recursos no processo em geral (onde, aliás, está elencado o recurso de embargos infringentes). Nem ali, todavia, há menção a respeito de recursos em ações de competência originária, sejam as de natureza civil, sejam as de natureza penal.

6. Não é certo, portanto, afirmar que a Lei 8.038/90 “regulou inteira-mente” a matéria relativa a recursos em ação penal originária. O que nela se constata, na verdade, é inteira omissão a respeito, realidade jurídica diversa — e oposta — a “regular inteiramente a matéria”.

7. A questão jurídica, portanto, é de outra natureza, ou seja, a de identi-ficar o sentido da omissão legislativa, em cuja base subjaz a seguinte pergunta: por não ter previsto recurso algum para as decisões interlocutórias e definitivas proferidas nas ações originárias, teria a lei o efeito jurídico de eliminar a recor-ribilidade dessas decisões ou teria ensejado a aplicação, por analogia ou subsi-diariedade, de outras normas do sistema? Dito de outra forma: tendo previsto recursos para outras ações, advindas de outros órgãos judiciários, teria a Lei 8.038/90 tornado irrecorríveis as decisões interlocutórias e as sentenças definiti-vas proferidas nas ações de competência originária por ela disciplinadas, como é o caso da ação penal, ou estaria hígido o sistema recursal já existente?

Page 241: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

240

Ministro Teori Zavascki

Questão semelhante se estabeleceu, na década de 1990, no âmbito do pro-cesso civil, em relação ao cabimento ou não de recurso contra decisões interlo-cutórias em mandado de segurança. É que a Lei 1.533/51, que então disciplinava o procedimento dessa ação, era omisso a respeito. Ou melhor, só previa recurso das decisões terminativas (extinção do processo sem julgamento de mérito) ou definitivas (sentenças de mérito). A pergunta que então se fazia era a mesma que agora se faz: não tendo a lei especial previsto recurso contra decisões interlocutó-rias, seriam elas irrecorríveis? Tomando posição a respeito dessa controvérsia — que gerava acesos debates, inclusive no âmbito do recém-instalado Superior Tribunal de Justiça, onde predominava o entendimento, depois superado, pela negativa de cabimento do recurso — ainda como juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tive oportunidade de sustentar o seguinte, em escrito ori-ginalmente publicado em 1997 (ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de Tutela. 7. ed. SP: Saraiva. p. 247/250):

“[A] Lei n. 1.533, de 1951, efetivamente faz menção a recurso apenas quando trata da sentença que indefere liminarmente a petição inicial (art. 8º) e da que, ao final, julga a ação (art. 12). Terá havido aí intenção de excluir a possibili-dade de recurso em relação às demais decisões proferidas no processo, ou se trata, simplesmente, de caso de lacuna, a ser preenchida pela utilização da analogia ou pela aplicação subsidiária do Código de Processo Civil?

Quem defende a primeira alternativa, a que nega a recorribilidade das decisões interlocutórias, utiliza o argumento ‘a contrario sensu’: se a lei arrolou expressamente as decisões sujeitas a recurso em mandado de segurança, ‘a con-trario sensu’, excluiu a possibilidade de recurso em relação às demais. Já os que defendem a recorribilidade, invocam o argumento da analogia, que leva a resul-tado exatamente inverso: se a lei especial não previu o recurso cabível das decisões interlocutórias, preenche-se o vazio pela aplicação da regra disciplinadora do caso análogo.

Ora, a atividade de interpretação impõe ao jurista, frequentemente, tal espécie de encruzilhada: o argumento ‘a contrario’ ou o argumento da analogia. É clássico o exemplo da Lei das Doze Tábuas, segundo a qual o proprietário de um “quadrúpede” responde pelos prejuízos que o animal tenha causado. “Ora”, explica Karl Engisch, que figurou a hipótese, “levantou-se a questão da respon-sabilidade do proprietário pelos prejuízos causados por um animal bípede, por exemplo um avestruz africano. Se mantivermos o ponto de vista de que, através duma ‘simples interpretação’, um animal bípede não pode ser convertido num ‘quadrúpede’, achamo-nos perante a alternativa: argumento de analogia ou argumento ‘a contrario’. No puro plano lógico-formal estes dois argumentos, que conduzem a resultados completamente diferentes, têm a mesma legitimidade. Tanto se pode dizer que aquilo que vale para os quadrúpedes deve valer também, em virtude da semelhança, para os bípedes igualmente perigosos, como se pode concluir que aquilo que é prescrito em relação a quadrúpedes não pode valer para outros animais”. E, lembrando que “os próprios romanos preferiram o argu-mento de analogia”, acrescenta que “a escolha entre o argumento de analogia e o argumento ‘a contrario’ não pode de fato fazer-se no plano da pura lógica. A lógica tem-se que combinar com a teleológica” (ENGISCH, Karl. Introdução ao

Page 242: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

241

Ministro Teori Zavascki

pensamento jurídico. Tradução de J. Batista Machado, 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p. 237).

Assim, e voltando para o tema das interlocutórias em mandado de segu-rança, a escolha de um ou outro argumento ficará facilitada se conseguirmos identificar, teleologicamente, se houve ou não intenção do legislador de negar recurso àquelas decisões. Pois bem: o Ministro Eduardo Ribeiro de Oliveira (STJ), em estudo específico sobre o tema, demonstrou não ter havido intenção alguma, na lei, de excluir a recorribilidade das interlocutórias. A razão pela qual a Lei do Mandado de Segurança dispôs sobre recursos foi outra.”

E, após reproduzir os fundamentos doutrinários que demonstravam que a intenção do legislador não foi a de eliminar o recurso contra as interlocutórias, mas simplesmente de definir, entre duas alternativas possíveis (agravo de peti-ção e apelação), qual seria cabível contra as sentenças terminativas e definitivas indicadas, observei, naquele estudo:

Se, como demonstrado, o legislador não pretendeu excluir do mandado de segurança outros recursos que não o da apelação, resta inquestionável a pos-sibilidade da invocação subsidiária e analógica das regras de direito processual comum, como, aliás, ocorre, sem contestação alguma, em relação ao recurso de embargos declaratórios. Conforme refere Barbosa Moreira, seria absurdo — que “brada aos céus” — negar-se, ao argumento do silêncio da lei, a utilização desse remédio recursal para decisões obscuras, omissas ou contraditórias (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Recorribilidade das decisões interlocutórias no processo de mandado de segurança. cit., p. 76).

Esse mesmo método hermenêutico — de cujo acerto continuo conven-cido — deve ser aplicado à situação aqui em exame: tanto lá, quanto aqui, não é apropriado resolver a controvérsia com base no puro e simples argumento a contrario sensu. A utilização desse argumento, em face de omissões ou lacunas legislativas, acarreta, como é fácil perceber, a completa eliminação da aplicação analógica ou subsidiária, que é o modo-padrão de superar as inevitáveis lacu-nas do legislador. Portanto, o que importa considerar para definição do método argumentativo, segundo a tradição que nos vem desde os juristas romanos, é o elemento teleológico, a significar que, salvo quando ficar evidente o desiderato do legislador de criar e manter uma lacuna normativa (= o silêncio eloquente), deve-se suprir as situações não disciplinadas (= omissões ou lacunas legislativas) mediante a aplicação das normas gerais ou especiais, ou da analogia ou dos prin-cípios gerais. Essa técnica, aliás, é a recomendada por lei, não somente para suprir omissões e lacunas do direito geral (Lei de Introdução, art. 4º; CPC, art. 126), mas também e especificamente para suprir as lacunas das leis processuais que tratam de procedimentos especiais (CPP, art. 3º; CPC, art. 272, parágrafo único).

Ora, seja sob a perspectiva da voluntas legislatoris, seja da voluntas legis, não se pode identificar na Lei 8.038/90 qualquer desiderato de consagrar a irrecorribilidade das decisões interlocutórias ou definitivas proferidas em ação

Page 243: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

242

Ministro Teori Zavascki

penal originária de competência do Supremo Tribunal Federal. Conforme se depreende da breve exposição de motivos que acompanhou o seu projeto (PL 2.255/89, Deputado Plínio Martins, publicado no Diário do Congresso Nacional de 17-5-1989, p. 3468), essa Lei teve origem no antigo Tribunal Federal de Recursos e visava a adaptar a legislação vigente à nova realidade decorrente da criação, pela Constituição de 1988, do Superior Tribunal de Justiça. Não se cogi-tou, nem longinquamente, de eliminar recursos previstos no Regimento Interno do STF. E, no que se refere especificamente à ação penal originária, a circuns-tância de ter o legislador disciplinado apenas a fase de instauração, instrução e julgamento, de modo algum pode ser entendida como propósito de tornar irre-corríveis as decisões interlocutórias e definitivas. Essa omissão, conforme antes se demonstrou, nada mais representa do que o produto de uma técnica legisla-tiva comumente adotada no sistema de disciplina dos procedimentos judiciais, que confere tratamento separado e autônomo à fase recursal.

Portanto, o silêncio da lei, quanto ao ponto, não comporta interpretação à base do argumento a contrário sensu, que levaria à absoluta irrecorribilidade dessas decisões. Pelo contrário, não tendo a lei disciplinado a matéria, a solução juridicamente adequada é a da aplicação das normas gerais e especiais que dis-ciplinam a fase recursal, cuja vigência não ficou comprometida, muito menos revogada. Aliás, lembrando a lição de Barbosa Moreira, a propósito da polê-mica a respeito da recorribilidade das decisões interlocutórias em mandado de segurança, o argumento a contrário, ou vale para tudo, ou não vale para nada. Invocá-lo para afastar os embargos infringentes de que trata o art. 333, I, do Regimento Interno do STF, levaria, por idêntica razão, à sua necessária aplica-ção para afastar os demais recursos, com o que não seriam cabíveis, também, os embargos de declaração e o agravo contra decisões interlocutórias proferidas pelo relator (recursos que, nesta ação penal, já foram largamente interpostos e aceitos pelo Tribunal), ou mesmo a própria revisão criminal, que o CPP consi-dera recurso (art. 621 e seguintes).

8. Não posso deixar de registrar que, no que se refere a mandados de segurança de sua competência originária, o STF tem súmula (n. 622) afirmando a irrecorribilidade da decisão interlocutória do relator, que defere ou indefere a liminar. Considera-se que o Regimento Interno não prevê agravo regimental em tais casos (o Tribunal, observe-se, conferiu superlativa força às suas disposições regimentais!). A propósito, duas observações são importantes: primeira, a de que, inobstante a súmula, a jurisprudência do Tribunal sempre foi oscilante a respeito do tema, que, em certa época, decidia o oposto e, mesmo depois, sem-pre registrou expressivo número de votos vencidos e ressalvas de pontos de vista pessoal em sentido contrário (resenha, a propósito, foi levantada no MS 23.466-1 AgR, Sepúlveda Pertence, DJ de 6-4-2001); segundo: o entendimento do STF dizia respeito aos mandados de segurança de sua competência originária, não

Page 244: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

243

Ministro Teori Zavascki

alcançando outros tribunais (na Representação 1.299, Min. Célio Borja, RTJ 119/980, o STF declarou inconstitucional, por ofensa ao princípio da colegia-lidade, norma do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Goiás que não admitia agravo regimental de decisão do relator em mandado de segurança). De qualquer modo, convém enfatizar também que, a se adotar aqui a rigidez do entendimento que ensejou a Súmula 622, o resultado seria o do não cabimento de agravo regimental contra as decisões interlocutórias do relator em ação penal originária, posição que esse Plenário tem reiteradamente desconsiderado.

9. Por fim, é importante salientar que o reconhecimento da recorribi-lidade das sentenças condenatórias proferidas em ações penais originárias é interpretação que melhor se harmoniza com a proteção consagrada no artigo 8.2,h da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto 678, de 6-11-1992), que assegura, como “garantia mínima” de toda a pessoa, o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”. Na interpretação que lhe confere a Corte Interamericana de Direitos Humanos, recentemente reafirmada em sentença de 23 de novembro de 2012 (caso Mohamed vs. Argentina), essa garantia mínima tem o alcance normativo de assegurar direito a recurso até mesmo em casos em que a conde-nação penal seja imposta por um tribunal, provocado por recurso contra ante-rior sentença absolutória. Diz a sentença, a esse propósito:

“Sobre este aspecto del derecho a recurrir del fallo, tanto la Comisión como los representantes (supra párrs. 65 y 67) entienden que es una garantía establecida a favor del acusado y que, con independencia de que la sentencia condenatoria hubiere sido impuesta en única, primera o segunda instancia, debe garantizarse el derecho de revisión de esa decisión por medio de un recurso que cumpla con los estándares desarrollados por la Corte en su jurisprudencia.

(...)92. Teniendo en cuenta que las garantías judiciales buscan que quien esté

incurso en un proceso no sea sometido a decisiones arbitrarias, la Corte interpreta que el derecho a recurrir del fallo no podría ser efectivo si no se garantiza respecto de todo aquél que es condenado, ya que la condena es la manifestación del ejer-cicio del poder punitivo del Estado. Resulta contrario al propósito de ese derecho específico que no sea garantizado frente a quien es condenado mediante una sentencia que revoca una decisión absolutoria. Interpretar lo contrario, implica-ría dejar al condenado desprovisto de un recurso contra la condena. Se trata de una garantía del individuo frente al Estado y no solamente una guia que orienta el diseño de los sistemas de impugnación en los ordenamientos jurídicos de los Estados Partes de la Convención).”

Por isso se enfatiza, independentemente do juízo que se possa fazer a respeito dessa recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que a interpretação pela admissão do recurso, no caso em exame, é a que atende, de modo concreto, os compromissos assumidos pelo Brasil perante a

Page 245: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

244

Ministro Teori Zavascki

comunidade das nações, especialmente em face das cláusulas do Pacto de San José da Costa Rica.

Convém registrar, finalmente, que a garantia assegurada nesse Pacto, relativa ao direito de toda a pessoa de recorrer da sentença penal que lhe impo-nha uma condenação, é mais uma forte razão a determinar a impostergável necessidade de reforma da nossa Constituição, que leve a eliminar ou, ao menos, a reduzir drasticamente, as inúmeras hipóteses de competência de foro por prerrogativa de função perante o Supremo Tribunal Federal. É importante que também essa, entre as muitas outras, seja uma eloquente lição a ser retirada do julgamento da presente ação penal.

10. Ante o exposto, dou provimento ao agravo regimental.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 631.111 — GO

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Dois são os dispositivos cons-titucionais invocados pelo Ministério Público para defender a sua legitimidade ativa para a presente causa: o artigo 127 e o artigo 129, III. Eis seu texto:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...)III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do

patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

O primeiro e importantíssimo desafio que esses dispositivos impõem ao aplicador é o de identificar e distinguir a natureza do direito material a ser tutelado, uma vez que o art. 127 faz referência a “interesses sociais e individuais indisponíveis” e o art. 129, III, a “interesses difusos e coletivos”. Aliás, a ina-dequada compreensão da natureza dessas duas grandes categorias de direito material tem sido o foco das frequentes dificuldades na compreensão dos insti-tutos e conceitos do moderno ramo do processo civil conhecido como processo coletivo, cujos instrumentos processuais são, entre outros, a ação civil pública (destinada a tutelar direitos e interesses difusos e coletivos) e a ação civil coletiva (destinada a tutelar, em forma coletiva, certos direitos individuais denominados “homogêneos”).

Page 246: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

245

Ministro Teori Zavascki

2. Direitos ou interesses difusos e coletivos (= coletivos lato sensu) e direitos ou interesses individuais homogêneos constituem categorias de direitos ontologicamente diferenciadas. É o que se pode verificar da conceituação que, após sedimentada no âmbito doutrinário, acabou sendo convertida em texto normativo (art. 81, parágrafo único, da Lei 8.078/90). Segundo a definição dada pelo legislador, são interesses e direitos difusos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circuns-tâncias de fato (art. 81, parágrafo único, I); são interesses e direitos coletivos os transindividuais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurí-dica base (inciso II); e são direitos individuais homogêneos os decorrentes de origem comum (inciso III). A esses últimos poder-se-ia adicionar, para melhor compreensão, os qualificativos do art. 46 do CPC: direitos derivados do mesmo fundamento de fato ou de direito (inciso II) ou que tenham, entre si, relação de afinidade por um ponto comum de fato ou de direito (inciso IV).

Direitos difusos e coletivos são, portanto, direitos subjetivamente transin-dividuais (= sem titular individualmente determinado) e materialmente indivi-síveis. A sua titularidade múltipla, coletiva e indeterminada é que caracteriza a sua transindividualidade. Afirma-se, por isso, que direito coletivo é designação genérica para as duas modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu. Trata-se de uma especial categoria de direito material nascida da superação, hoje indiscutível, da tradicional dicotomia entre interesse público e interesse privado. É direito que não pertence à administração pública nem a indivíduos particularmente determinados. Pertence, sim, a um grupo de pessoas, a uma classe, a uma categoria, ou à própria sociedade, considerada em seu sentido amplo. Na definição de Péricles Prade, “são os titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situação, passíveis de lesões disseminadas entre todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade”. (PRADE, Péricles. Conceito de interesses difusos. 2. ed. SP: RT, 1987. p. 61). Direito ao meio ambiente sadio, direito a uma administração pública proba, são exemplos característicos de direitos transindividuais difusos, pertencentes à sociedade como um todo. Direito a ter representantes compondo a quinta parte dos membros de tribunais (o “quinto” constitucional) é típico exemplo de direito transindividual coletivo (stricto sensu), pertencente às classes da advocacia e do Ministério Público (e não a um específico advogado ou a um específico membro do parquet).

A ação civil pública, regulada fundamentalmente, pela Lei nº 7.347, de 1985, é o protótipo dos instrumentos destinados a tutelar direitos transindivi-duais. Trata-se de procedimento especial de cognição completa e integral e com múltipla aptidão, já que dotado de mecanismos para instrumentar demandas

Page 247: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

246

Ministro Teori Zavascki

visando a obter, isolada ou cumulativamente, provimentos jurisdicionais da mais variada natureza: preventivos, condenatórios, constitutivos, inibitórios, executivos, mandamentais, meramente declaratórios, cautelares e antecipató-rios. A legitimação ativa, invariavelmente em regime de substituição processual, é exercida por entidades e órgãos expressamente eleitos pelo legislador, entre os quais se destaca o Ministério Público, que tem nesse mister uma das suas fun-ções institucionais (CF, art. 129, III). A sentença de mérito faz coisa julgada com eficácia subjetiva erga omnes, salvo se improcedente o pedido por insuficiência de prova. Em caso de procedência, a sentença produz, também, o efeito secundá-rio de tornar certa a obrigação do réu de indenizar os danos individuais decor-rentes do ilícito civil objeto da demanda (art. 103, § 3º da Lei 8.078/90). E a execução, promovida pelos mesmos legitimados do processo cognitivo, também invariavelmente em regime de substituição processual, segue o rito processual comum, sendo que o eventual produto da condenação em dinheiro reverterá ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, previsto na Lei 9.008, de 21/3/95 e no Decreto 1.306, de 9/11/94.

3. Por outro lado, os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. O qualificativo é destinado a identificar um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que propicia, embora não impo-nha, a defesa coletiva de todos eles. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, não faz sentido, portanto, sua versão singular (um único direito homogêneo), já que a marca da homogeneidade supõe, necessariamente, uma relação de referência com outros direitos individuais assemelhados. Há, é certo, nessa compreensão, uma pluralidade de titulares, como ocorre nos direitos transindividuais; porém, diferentemente destes (que são indivisíveis e seus titulares são indeterminados), a pluralidade, nos direitos individuais homogêneos, não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados ou pelo menos determináveis), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autôno-mas, com titularidade própria (e, por isso, suscetíveis também de tutela indivi-dual). Não se trata, pois, de uma nova espécie de direito material. Os direitos individuais homogêneos são, em verdade, aqueles mesmos direitos comuns ou afins de que trata o art. 46 do CPC (nomeadamente em seus incisos II e IV), cuja coletivização tem um sentido meramente instrumental, como estratégia para permitir sua mais efetiva tutela em juízo. Em outras palavras, os direitos homogêneos “são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural (interesses e direitos públicos e difusos) ou da organização ou existência de uma relação jurídica-base (interesses coletivos stricto sensu), mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia

Page 248: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

247

Ministro Teori Zavascki

processuais” (BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo clássico. In: MILARÉ, Édis (coord). Ação civil pública: Lei 7.347/85 — Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. SP: RT, 1995. p. 96). Quando se fala, pois, em “defesa coletiva” ou em “tutela coletiva” de direi-tos homogêneos, o que se está qualificando como coletivo não é o direito mate-rial tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua tutela.

É, portanto, para esses efeitos processuais que se consideram homogê-neos os direitos subjetivos pertencentes a titulares diversos, mas oriundos da mesma causa fática ou jurídica, características essas que lhes confere grau de afinidade suficiente para permitir a sua tutela jurisdicional de forma conjunta. Neles é possível identificar elementos comuns (= núcleo de homogeneidade) e, em maior ou menor medida, elementos característicos e peculiares, o que os individualiza, distinguindo uns dos outros (= margem de heterogeneidade). O núcleo de homogeneidade dos direitos homogêneos é formado por três elemen-tos das normas jurídicas concretas neles subjacentes: os relacionados com (a) a existência da obrigação (an debeatur = ser devido), (b) a natureza da presta-ção devida (quid debeatur = o que é devido) e (c) o sujeito passivo (quis debeat = quem deve) comum. A identidade do sujeito ativo (cui debeatur = a quem é devido) e a sua específica vinculação com a relação jurídica, inclusive no que diz respeito ao quantum debeatur (= quantidade devida), se for o caso, são elemen-tos pertencentes a um domínio marginal, formado pelas partes diferenciadas e acidentais dos direitos homogêneos, a sua margem de heterogeneidade.

A tutela de direitos individuais homogêneos tem como instrumento básico a ação civil coletiva, disciplinada, fundamentalmente, nos artigos 91 a 100 do Código de Defesa do Consumidor — CDC (Lei 8.078/90). Trata-se de proce-dimento especial com quatro características fundamentais, moldadas pela pró-pria natureza dos direitos tutelados. Primeira, a repartição da atividade cognitiva em duas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada ao juízo de cognição sobre as questões fáticas e jurídicas relacionadas com núcleo de homo-geneidade dos direitos tutelados; e outra, a da ação de cumprimento, desdobrada em uma ou mais ações, promovida em caso de procedência do pedido na ação coletiva, destinada a complementar a atividade cognitiva mediante juízo especí-fico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= margem de hete-rogeneidade) e a efetivar os correspondentes atos executórios. É essa repartição da cognição a nota mais importante a distinguir a ação coletiva do litisconsórcio ativo facultativo. Se as atividades fossem aglutinadas, a ação coletiva nada mais seria que uma tradicional ação ordinária movida em regime litisconsorcial plú-rimo, com todas as limitações e dificuldades a ela inerentes.

A segunda característica da ação coletiva é a dupla forma da legitimação ativa. Na primeira fase, ela se dá necessariamente por substituição processual, sendo promovida por órgão ou entidade autorizado por lei para, em nome

Page 249: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

248

Ministro Teori Zavascki

próprio, defender em juízo direitos individuais homogêneos. Já na segunda fase (ação de cumprimento), embora possa ser mediante substituição processual, a legitimação se dá, em regra, pelo regime comum da representação.

A terceira característica diz respeito à natureza da sentença, que é sem-pre genérica: limitando-se a demanda ao núcleo de homogeneidade dos direitos individuais, a correspondente sentença de mérito fica também restrita aos mes-mos limites. Ela fará juízo apenas sobre o an debeatur (= a existência da obriga-ção do devedor), o quis debeat (= a identidade do sujeito passivo da obrigação) e o quid debeatur (= a natureza da prestação devida). Os demais elementos indis-pensáveis para conferir força executiva ao julgado — ou seja, o cui debeatur (= quem é o titular do direito) e o quantum debeatur (= qual é a prestação a que especificamente faz jus) — são objetos de outra sentença, proferida na ação de cumprimento (segunda fase).

A quarta característica da ação coletiva é a da sua autonomia em relação à ação individual, representada pela faculdade atribuída ao titular do direito subjetivo de aderir ou não ao processo coletivo. Compreende-se nessa facul-dade: (a) a liberdade de litisconsorciar-se ou não ao substituto processual autor da ação coletiva, (b) a liberdade de promover ou de prosseguir a ação individual simultânea à ação coletiva, e (c) a liberdade de executar ou não, em seu favor, a sentença de procedência resultante da ação coletiva.

As normas processuais e procedimentais que disciplinam a ação civil coletiva em defesa do consumidor (artigos 91 a 100 do CDC da Lei 8.078/90) aplicam-se, por analogia, no que couber, às demais hipóteses de tutela cole-tiva de direitos individuais homogêneos, nomeadamente às que decorrem de demandas promovidas por entidades associativas, com base na legitimação prevista no art. 5º, XXI, da Constituição, ou por entidades sindicais, com base no seu art. 8º, III. Assim, em qualquer caso: (a) a ação coletiva não inibe nem prejudica a propositura da ação individual com o mesmo objeto, ficando o autor individual vinculado ao resultado da sua própria demanda, ainda que improce-dente essa e procedente a coletiva; (b) quanto aos demais titulares individuais, a sentença da ação coletiva fará coisa julgada erga omnes, mas somente em caso de procedência do pedido; (c) a sentença genérica de procedência servirá de título para a propositura da ação individual de cumprimento, pelo regime de repre-sentação, consistente de atividade cognitiva de liquidação por artigos, seguida de atividade executória, desenvolvidas pelo procedimento comum do CPC e em conformidade com a natureza da prestação devida.

4. Pois bem, consideradas as características naturais e próprias dos direi-tos transindividuais (= difusos e coletivos) e dos direitos individuais homogê-neos, substancialmente diferentes uns dos outros, é indispensável que se atente para o tratamento processual próprio atribuído a cada qual, inclusive em

Page 250: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

249

Ministro Teori Zavascki

decorrência das normas constitucionais invocadas no presente recurso extraor-dinário, tratamento que é distinto em vários aspectos importantes, a começar, como se apontou, pelos meios de tutela em juízo.

Assim, no que se refere ao regime de legitimação ativa: em relação à tutela de direitos transindividuais, cujos titulares são indeterminados, a legitimação ativa será necessariamente em regime de substituição processual, tanto na fase cognitiva quanto na fase executiva; (b) a execução jamais será em benefício indi-vidual, mas em favor de um Fundo. Todavia, em se tratando de tutela de direitos individuais homogêneos: (a) a legitimação ativa é em regime de substituição processual apenas na fase em que se busca uma sentença genérica; a fase de cum-primento dessa sentença se dá, em regra, por regime de representação; (b) a exe-cução é promovida em favor do titular do direito individual.

Quanto ao procedimento, os direitos transindividuais são tuteláveis em procedimento semelhante ao comum ordinário, de cognição completa e integral, que resulta, não em sentença genérica, mas em sentença específica, dirimindo por completo a controvérsia. Já os direitos individuais, para serem tutelados coletivamente, devem ser submetidos a procedimento cuja cognição será, em maior ou menor medida, mas necessariamente, repartida em duas fases distintas: uma para as questões jurídicas que permitem tratamento jurídico uniforme (núcleo de homogeneidade) e que trará como resultado uma sentença genérica; outra para as questões particulares e diferenciadas de cada titular do direito individual tutelado (margem de heterogeneidade).

Nos direitos transindividuais, independentemente de quem seja o subs-tituto processual autor, a existência de duas ou mais ações decorrentes de causa única importa litispendência ou continência: o direito tutelado, que é indivisível, será o mesmo em todas elas, assim como as mesmas serão as partes da relação material (o beneficiado, embora indeterminado e indeterminável, é, em todas as ações, a mesma comunidade de pessoas). Já em se tratando de direitos indi-viduais homogêneos a situação é completamente diferente. A pluralidade de ações, embora com causa comum e até mesmo quando movidas por um único substituto processual, não tem necessariamente o mesmo objeto e nem os mes-mos beneficiados, já que o direito tutelado é, por natureza, divisível, compor-tando individualizações materiais ou subjetivas. Isso significa dizer que entre as várias ações coletivas não há necessariamente relação de litispendência ou de continência, mas sim de conexão ou de prevenção. Essas circunstâncias, como se percebe, determinam a necessidade de tratamento diferente no que se refere às regras de competência.

Em relação a direitos transindividuais, não se coloca o problema da relação entre processo coletivo e processo individual. Seus objetos são necessariamente distintos. O objeto da ação individual jamais será um direito transindividual.

Page 251: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

250

Ministro Teori Zavascki

Esse problema somente existe — e é um dos pontos mais delicados do processo coletivo — em se tratando da tutela de direitos individuais homogêneos. Aqui, a identidade do objeto material acarreta, entre ação coletiva e ação individual, uma relação com uma profusão de vasos comunicantes, o que exige, na formata-ção do processo coletivo, definições precisas a respeito, entre outros, dos seguin-tes aspectos: (a) grau de dependência entre uma e outra; (b) vinculação ou não do titular individual à ação coletiva; (c) efeitos da sentença e da coisa julgada da ação coletiva em relação à ação individual.

5. Estabelecida, assim, a importante distinção, tanto do ponto de vista do direito material, quanto do ponto de vista processual, entre os direitos transindi-viduais (= difusos e coletivos) e os direitos individuais homogêneos, cumpre exa-minar o ponto que mais interessa ao exame da causa: o do papel do Ministério Público em relação à tutela jurisdicional de cada uma dessas espécies.

Comecemos pelos direitos e interesses transindividuais (= difusos e coletivos). Entre as mais proeminentes funções institucionais atribuídas pela Constituição Federal ao Ministério Público está a de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III), função reafir-mada na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625, de 12-2-1993, art. 25, IV) e no Estatuto do Ministério Público da União (Lei Complementar 75, de 20-5-1993, art. 6º, VII). A legitimação específica para o exercício, em juízo, dessa função institucional consta também nas leis especiais que estabelecem normas processuais para as várias “ações civis públicas”, como é o caso da Lei 7.347, de 24-7-1985 (disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), da Lei 7.853, de 24-10-1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes), da Lei 7.913, de 7-12-1989 (dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários), da Lei 8.078, de 11-9-1990, o chamado “Código de Proteção e Defesa do Consumidor” (dispõe sobre a proteção do consumidor) e da Lei 8.429, de 2-6-1992 (dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos em caso de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional).

Portanto, relativamente a ações civis públicas que tenham por objeto a tutela de direitos e interesses transindividuais (= difusos e coletivos), a legiti-mação atribuída ao Ministério Público, pela Constituição (art. 129, III), deve ser entendida em sentido irrestrito e amplo, em limites indispensáveis à obtenção

Page 252: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

251

Ministro Teori Zavascki

da tutela jurisdicional completa e compatível com a natureza e a magnitude da lesão ou da ameaça aos bens e valores tutelados. Inclui, portanto, legitimação para buscar tutela cognitiva, preventiva e reparatória, declaratória, constitutiva ou condenatória. Inclui também poderes para pleitear medidas de tutela provi-sória, de antecipação de tutela e cautelar. Estende-se a legitimação para as medi-das de cumprimento das liminares e das sentenças, inclusive, quando for o caso, para a propositura da ação autônoma de execução.

6. Examinemos, agora, a questão da legitimidade do Ministério Público em relação à tutela de direitos individuais homogêneos. Diferentemente do que ocorre com os direitos difusos e coletivos, que são transindividuais e indivi-síveis, os interesses ou direitos individuais homogêneos são divisíveis e indi-vidualizáveis e têm titularidade determinada. Pertencem, assim, à classe dos direitos subjetivos individuais na acepção tradicional do conceito, com titular identificado ou identificável. Assumem, em geral, feição de direitos disponíveis, nomeadamente os que têm conteúdo econômico. Podem, consequentemente, ser tutelados em juízo pelo próprio titular individual. Sua homogeneidade com outros direitos da mesma natureza, determinada pela origem comum, é que dá ensejo à tutela de todos eles em forma coletiva, mediante demanda proposta em regime de substituição processual por um dos órgãos ou entidades para tanto legitimados. Não sendo ação promovida pelo próprio titular do direito, a legiti-mação para a ação coletiva há de ser autorizada em prescrição normativa espe-cífica (CPC, art. 6º).

Em se tratando de direitos homogêneos decorrentes de relações de con-sumo, o primeiro dos legitimados ativos eleitos pelo art. 82 do CDC (Lei 8.078/90) é justamente o Ministério Público. Além dessa, prevista no Código do Consumidor, há outras hipóteses de legitimação do Ministério Público para demandar em juízo a tutela coletiva em prol de direitos de natureza indivi-dual e disponível: a da Lei 7.913, de 7-12-1989, que o legitima a propor ação de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, e a do art. 46, da Lei 6.024, de 13-3-1974, para propor ação de res-ponsabilidade pelos prejuízos causados aos credores por ex-administradores de instituições financeiras em liquidação ou falência. Nas três hipóteses — danos decorrentes de relações de consumo, de investimentos em valores mobiliários e de operações com instituições financeiras —, os direitos lesados são, por natu-reza, individuais, divisíveis e disponíveis.

Como justificar a constitucionalidade dessas normas de legitimação se a própria Constituição reserva ao Ministério Público, no que se refere a direitos individuais, apenas a atribuição de tutelar os que têm natureza indisponível (CF, art. 127)? Como, por outro lado, sustentar, constitucionalmente, a legiti-midade do Ministério Público para promover outras demandas em defesa de direitos individuais homogêneos, além daquelas autorizadas, de modo expresso,

Page 253: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

252

Ministro Teori Zavascki

pelo legislador ordinário? Em que condições e em que limites é admissível essa espécie de legitimação? Essas indagações remetem ao cerne do tema objeto do presente recurso extraordinário.

7. A legitimação do Ministério Público para tutelar, em juízo, direitos individuais homogêneos disponíveis, que tenham como origem relações de consumo, está prevista, conforme acima afirmado, no art. 82, I, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Para que se possa fazer juízo da compatibi-lidade dessa norma de legitimação com as funções institucionais do órgão legi-timado, é importante ter presentes as especiais características da ação coletiva a que se refere. Trata-se de ação de responsabilidade pelos danos sofridos por consumidores a ser proposta “em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores” (art. 91). Como se percebe, é legitimação em regime de substituição processual. Os titulares do direito não serão sequer indicados ou qualificados individualmente na petição inicial, mas simplesmente chamados por edital a intervir como litisconsortes, se assim o desejarem (art. 94). É que o objeto da ação, na sua fase cognitiva inicial, mais que alcançar a satisfação do direito pes-soal e individual das vítimas, consiste em obter a condenação do demandado pelo valor total dos danos que causou.

É importante assinalar esse detalhe: os objetivos perseguidos na ação coletiva são visualizados não propriamente pela ótica individual e pessoal de cada prejudicado, e sim pela perspectiva global, coletiva, impessoal, levando em consideração a ação lesiva do causador do dano em sua dimensão integral. Isso fica bem claro no dispositivo que trata da sentença, objeto final da fase de conhecimento: “Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados” (art. 95). A condenação genérica, acentue-se, fixará “a responsabilidade do réu pelos danos causados”, e não os prejuízos específicos e individuais dos lesados. Caberá aos próprios titu-lares do direito, depois, promover a ação de cumprimento da sentença genérica, compreendendo a liquidação e a execução pelo dano individualmente sofrido (art. 97).

Haverá, portanto, no que se refere à legitimação ativa, substancial alte-ração de natureza quando se passar para a ação de cumprimento da sentença genérica, já que para esta será indispensável a iniciativa do próprio titular do direito. Nela, buscar-se-á satisfazer direitos individuais específicos, próprios de cada um dos consumidores lesados, direitos esses que são disponíveis e até mesmo passíveis de renúncia e sujeitos à perda (art. 100). A propositura da ação de cumprimento (= liquidação e execução da sentença genérica) dependerá, portanto, de iniciativa do próprio interessado ou de sua expressa autorização. Ao contrário do que ocorre com a ação coletiva de conhecimento — que admite legitimação por substituição processual —, a ação destinada ao cumprimento da sentença genérica será proposta, em regra, pelo próprio titular, ou seja, em

Page 254: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

253

Ministro Teori Zavascki

regime de representação. Mesmo quando intentada em forma coletiva (art. 98), a ação de cumprimento se dará em litisconsórcio ativo, ou seja, por representante (que atuará em nome dos interessados), e não por substituto processual (que atua em nome próprio, no interesse de terceiros).

Há, em nosso direito, como acima referido, outras hipóteses de legitima-ção do Ministério Público para a defesa judicial coletiva de interesses ou direitos individuais, semelhantes a essa prevista no Código do Consumidor. Aliás, sob esse aspecto, o CDC não trouxe inovação alguma, a não ser a de conceituar o que chamou de direitos individuais homogêneos. Assim, por exemplo, a Lei 7.913, de 7-12-1989, que “dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários”, prevê a legitima-ção do Ministério Público para adotar “as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado” (art. 1º). Trata-se de legitimação para atuar em busca de tutela preventiva e reparatória de direitos individuais, divisí-veis e disponíveis, decorrentes de origem comum, vale dizer, de típicos direitos individuais homogêneos. Observe-se o detalhe: as importâncias da condenação “reverterão aos investidores lesados, na proporção de seu prejuízo” (art. 2º). A atuação do Ministério Público será, portanto, na condição de substituto proces-sual do conjunto dos investidores, e, embora isso não conste de modo expresso na lei, a sentença condenatória terá, aqui também, caráter genérico e impessoal.

Outra ação civil coletiva que, por força de lei, pode ser promovida pelo Ministério Público em defesa de direitos individuais homogêneos — embora sem essa denominação no preceito normativo instituidor — é ainda mais antiga. Trata-se da ação destinada a apurar a responsabilidade de ex-administradores de instituições financeiras em regime de intervenção ou liquidação extrajudi-cial, prevista nos arts. 45 a 49 da Lei 6.024, de 13-3-1974. Sua propositura se dará nas hipóteses em que, após inquérito administrativo levado a cabo pelo Banco Central, ficar constatada a existência de prejuízo (= passivo a descoberto) na instituição financeira. Verificado o prejuízo, o inquérito administrativo será “remetido pelo Banco Central do Brasil ao juiz da falência, ou ao que for com-petente para decretá-la, o qual o fará com vista ao órgão do Ministério Público, que, em 8 (oito) dias, sob pena de responsabilidade, requererá o sequestro dos bens dos ex- administradores, que não tenham sido atingidos pela indisponibili-dade prevista no art. 36, quantos bastem para a efetivação da responsabilidade” (art. 45). Efetivado o sequestro (que, na verdade, é genuína medida cautelar de arresto), terá o Ministério Público o prazo de 30 dias para propor a ação prin-cipal (art. 46, parágrafo único). “Passada em julgado a sentença que declarar a responsabilidade dos ex-administradores, o arresto e a indisponibilidade de bens se convolarão em penhora, seguindo-se o processo de execução”, diz o art. 49. O resultado assim apurado “será entregue ao interventor, ao liquidante ou

Page 255: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

254

Ministro Teori Zavascki

ao síndico, conforme o caso, para rateio entre os credores da instituição” (§ 1º do art. 49). Caso a intervenção ou a liquidação extrajudicial venham a se encerrar no curso da ação ou da execução, “o interventor ou o liquidante, por ofício, dará conhecimento da ocorrência ao juiz, solicitando sua substituição como depositá-rio dos bens arrestados ou penhorados, e fornecendo a relação nominal e respec-tivos saldos dos credores a serem, nesta hipótese, diretamente contemplados com o rateio previsto no parágrafo anterior” (§ 2º do art. 49).

Não há dúvida, portanto, que se trata de ação civil coletiva em que o Ministério Público atuará como substituto processual dos credores da institui-ção financeira buscando a condenação dos ex-administradores no pagamento de prejuízos causados. Os titulares do direito material tutelado são “os credo-res”. Tem-se presente, portanto, hipótese de tutela de um conjunto de direitos individuais, divisíveis e disponíveis, decorrentes de origem comum. Vale dizer: são direitos individuais homogêneos. Aqui também, um importante detalhe: a atuação do Ministério Público é no sentido de alcançar sentença para “decla-rar a responsabilidade dos ex-administradores”, ou seja, sentença condenatória genérica pelo valor do prejuízo causado, sendo sua execução igualmente pro-movida pelo valor global do prejuízo. Não se leva em consideração, nem na ação de conhecimento, nem na execução, a situação individual e específica dos titulares do direito, os quais, para a satisfação individual, haverão de habilitar--se pessoalmente junto ao interventor, ao liquidante ou ao juízo da execução, se for o caso.

Há, como se percebe, uma linha característica comum nas hipóteses de legitimação acima citadas, previstas em leis infraconstitucionais: é a legitimação para o Ministério Público atuar em nome próprio, mas como substituto pro-cessual, em demandas objetivando sentença condenatória genérica, de direitos individuais, divisíveis e disponíveis. Os direitos dos substituídos, em todas as hipóteses, são tutelados sempre globalmente, impessoalmente, coletivamente. Obtida a condenação, genérica e globalmente proferida, encerra-se o papel do substituto processual e tem início, se for o caso, a atuação dos próprios titulares do direito material, com vista a obter sua satisfação específica.

Convém realçar o fundamento constitucional da legitimação. Relativamente a direitos individuais disponíveis, a legitimidade ad causam supõe, segundo a regra geral, a existência de nexo de conformidade entre as partes da relação de direito material e as partes na relação processual. Ninguém pode demandar em nome próprio direito alheio, diz o CPC (art. 6º). A legitima-ção por substituição processual é admitida apenas como exceção, sendo, por isso mesmo, denominada de extraordinária. Há, contudo, em nosso sistema, uma tendência de expansão das hipóteses de substituição processual, notada-mente com o objetivo de viabilizar a tutela coletiva. A própria Constituição Federal, que consagrou essa técnica para a tutela de direitos e interesses difusos

Page 256: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

255

Ministro Teori Zavascki

e coletivos (art. 129, III), adotou-a também para direitos individuais, seja pela via do mandado de segurança coletivo, para defesa de direitos líquidos e cer-tos (CF, art. 5º, LXX, b), seja pela via de procedimentos comuns, para a tutela de outras espécies de direitos lesados ou ameaçados (art. 5º, XXI, e art. 8º, III). Pode-se afirmar, assim, que, pelo menos no campo da legitimação para tutela coletiva, a substituição processual já não é fenômeno excepcional, mas, pelo contrário, passou a constituir a forma normal de atuação.

Pois bem: é nesse novo contexto que se insere a legitimação do Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado. A ele, a quem a lei já conferira o poder-dever para, na condição de interveniente (custos legis), oficiar em todas as causas “em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte” (CPC, art. 82, III), a Constituição veio atribuir, entre outras, a incumbência mais específica de defender “interes-ses sociais” (CF, art. 127), sem traçar qualquer condição ou limite processual a essa atribuição.

“Interesses sociais”, como consta da Constituição, e “interesse público”, como está no art. 82, III, do CPC, são expressões com significado substancial-mente equivalente. Poder-se-ia, genericamente, defini-los como “interesses cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde”, como o fez J. J. Calmon de Passos, referindo-se a interes-ses públicos (PASSOS, J. J. Calmon de. Intervenção do Ministério Público nas causas a que se refere o art. 82, III do CPC. Revista Forense, v. 268, n. 916-918, p. 55). Relacionam-se, assim, com situações, fatos, atos, bens e valores que, de alguma forma, concorrem para preservar a organização e o funcionamento da comunidade jurídica e politicamente considerada, ou para atender suas necessi-dades de bem-estar e desenvolvimento.

É claro que essas definições não exaurem o conteúdo da expressão “inte-resses sociais”. Não obstante, são suficientes para os limites da conclusão que, por ora, se busca atingir, a saber: a proteção dos consumidores e dos investidores no mercado financeiro e de capitais constitui não apenas interesse individual do próprio lesado, mas interesse da sociedade como um todo. Realmente, é a própria Constituição que estabelece que a defesa dos consumidores é princípio fundamental da atividade econômica (CF, art. 170, V), razão pela qual deve ser promovida, inclusive pelo Estado, em forma obrigatória (CF, art. 5º, XXXII). Não se trata, obviamente, da proteção individual, pessoal, particular, deste ou daquele consumidor lesado, mas da proteção coletiva dos consumidores, consi-derada em sua dimensão comunitária e impessoal.

O mesmo se pode afirmar em relação à tutela jurisdicional dos poupa-dores que investem seus recursos no mercado de valores mobiliários ou junto

Page 257: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

256

Ministro Teori Zavascki

a instituições financeiras. Conquanto suas posições subjetivas individuais e particulares não tenham, por si sós, relevância social, o certo é que, quando consideradas em sua projeção coletiva, passam a ter significado de ampliação transcendental, de resultado maior que a simples soma das posições individuais. É de interesse social a defesa desses direitos individuais, não pelo significado particular de cada um, mas pelo que a lesão deles, globalmente considerada, representa em relação ao adequado funcionamento do sistema financeiro, que, como se sabe, deve sempre estar voltado às suas finalidades constitucionais: “a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da cole-tividade” (CF, art. 192).

Portanto, compreendida a cláusula constitucional dos interesses sociais (art. 127) na dimensão acima enunciada, não será difícil concluir que nela pode ser inserida a legitimação do Ministério Público para a defesa de direitos indivi-duais homogêneos dos consumidores e dos investidores no mercado financeiro, estabelecida nas Leis 6.024/74, 7.913/89 e 8.078/90, especialmente quando se considera o modo como essa legitimação vai se operar processualmente: (a) em forma de substituição processual, (b) pautada pelo trato impessoal e coletivo dos direitos subjetivos lesados e (c) em busca de uma sentença de caráter genérico. Nessa dimensão, e somente nela, a defesa de tais direitos — individuais, divisí-veis e disponíveis — pode ser promovida pelo Ministério Público sem ofensa à Constituição, porque, quando assim considerada, ela representará verdadeira-mente a tutela de bens e valores jurídicos de interesse social.

Em contrapartida, todavia, não há como supor legítima, sob o enfoque constitucional, a atuação do Ministério Público na fase de execução dessas sen-tenças, em benefício individual dos lesados. Ainda quando promovida coletiva-mente, como prevê o art. 98 da Lei 8.078/90, a execução da sentença — que foi genérica — será destinada à satisfação de direitos e interesses particulares. A ação executiva dependerá de iniciativa dos lesados, sendo promovida, assim, em regime de representação e não de substituição processual, e, quando coletiva, será em genuíno litisconsórcio ativo facultativo. Ora, nessa dimensão pessoal, a defesa de direitos subjetivos individuais e disponíveis é expressamente vedada aos agentes do Ministério Público, a teor do que dispõe, contrario sensu, o mesmo art. 127 da Constituição de 1988. Não se aplica, portanto, ao Ministério Público — sob pena de inconstitucionalidade evidente — o disposto no art. 98 do Código do Consumidor. Ressalva-se, no particular, a execução prevista no art. 100 desse Código, já que o produto de indenização, na hipótese, não será destinado à satisfação individual dos lesados, mas será revertido em favor de um Fundo, criado pelo art. 13 da Lei 7.347/85, onde será gerido e aplicado no interesse comunitário.

8. Questão mais delicada é a que diz respeito à constitucionalidade da legitimação do Ministério Público para promover demandas em defesa de

Page 258: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

257

Ministro Teori Zavascki

outros direitos individuais homogêneos, que não nas hipóteses acima referi-das, previstas casuisticamente pelo legislador ordinário. Estaria ele legitimado a tutelar em juízo, coletivamente, qualquer espécie de direitos individuais pela simples razão de serem homogêneos entre si? Seria nessa ampla dimensão a interpretação a ser dada ao art. 25, IV, a, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93), que confere à Instituição, entre outras, a atribuição de “promover o inquérito civil e a ação civil pública (...) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados (...) a outros interesses difusos, coletivos e indi-viduais indisponíveis e homogêneos”? A circunstância de serem homogêneos, e, como tais, aptos a serem tutelados judicialmente em forma coletiva, seria razão suficiente para considerar os direitos individuais como “interesses sociais” e, assim, conferir ao Ministério Público legitimidade para defendê-los em juízo?

São questões que têm inafastável relevância constitucional, devendo ser enfrentadas e resolvidas à luz das normas de legitimação do Ministério Público, de modo especial mediante exame do grau de eficácia do art. 127 da CF/88, segundo o qual incumbe ao Ministério Público, instituição permanente e essen-cial à função jurisdicional do Estado, “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Não se pode considerar ter sido pacífica, ao longo do tempo, a orientação do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria. Pelo menos três orientações distintas se formaram nos precedentes a respeito do tema. Uma primeira linha defendeu a tese segundo a qual os direitos individuais homogêneos, porque pertencentes a um grupo de pessoas, qualificam-se como subespécie de direitos coletivos e, assim, podem ser amplamente tutelados pelo Ministério Público com base no art. 129, III, da Constituição. No RE 163.231, DJ de 29-6-2001, o relator, Ministro Maurício Corrêa, nesse sentido, sustentou: (a) “ao editar-se o Código de Defesa do Consumidor, pelo seu art. 81, parágrafo único, III, uma outra subespécie de direitos coletivos fora instituída, dessa feita, com a denomi-nação dos chamados interesses ou direitos individuais homogêneos”; (b) “por tal disposição vê-se que se cuida de uma nova conceituação no terreno dos interesses coletivos, sendo certo que esse é apenas um nomen iuris atípico da espécie direitos coletivos. Donde se extrai que interesses homogêneos, em verdade, não se consti-tuem como um tertium genus, mas, sim, como uma mera modalidade peculiar, que tanto pode ser encaixada na circunferência dos interesses difusos quanto na dos coletivos”; (c) “ao mencionar a norma do art. 129, III, da Constituição Federal que o MP está credenciado para propor ação civil pública, relacionada a ‘outros interesses difusos e coletivos’, outorgou-se-lhe a prerrogativa para agir na defesa de um grupo lesado” em seus direitos individuais homogêneos.

A adoção dessa linha traz a consequência de expandir de modo extremado o âmbito da legitimação, importando credenciar o Ministério Público para defender irrestritamente quaisquer direitos homogêneos, independentemente

Page 259: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

258

Ministro Teori Zavascki

de sua essencialidade material, o que não é compatível com os princípios e os valores que a Constituição buscou privilegiar quando elencou o conjunto de atribuições institucionais do órgão ministerial. Essa consequência foi percebida pelo próprio Ministro Maurício Corrêa, que, em voto posterior, revisando sua orientação, observou: “A dicção da norma não delimita o alcance nem fornece os parâmetros para definir o que sejam os referidos ‘outros interesses sociais’, fazendo surgir, à primeira vista, três expectativas ao intérprete: a) a expressão utilizada amplia indefinidamente o cabimento da ação civil pública, a ponto de atingir a totalidade dos interesses difusos e coletivos, de forma a tornar inútil a previsão de proteção ao patrimônio público e social e do meio ambiente, que passaria a estar contida no amplíssimo conceito de interesses difusos e coletivos; ou b) a expressão é mero desenvolvimento da parte inicial do inciso que a contém, de forma a ser entendida como os demais interesses relativos à ideia contida na parte inicial do dispositivo, ou seja, os demais interesses difusos e coletivos relativos à proteção do patrimônio público e social e do meio ambiente; ou c) a expressão contém preceito não definido, cuja definição dependeria de lei regulamentadora para lhe fixar o efetivo alcance. (...) Não creio que a melhor interpretação seja aquela (...) segundo a qual a referida expressão ‘outros direitos difusos e coletivos’ alcança todos e quaisquer interesses difusos ou coletivos, entre os quais se incluem os interesses individuais homogêneos. No exame dos excepcionalíssimos casos de legitimação extraordinária não cabe interpretação extensiva (...). Entendo que a expressão ‘outros interesses difusos e coletivos’ é indefinida e, assim, depende de lei que venha a definir o seu alcance, dentro dos limites traçados pela Constituição” (Voto proferido no STF, Pleno, RE 195.056-1, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 14-11-2003). Em outras palavras, sustentou que, no particular, o dispositivo constitucional não é autoaplicável.

O argumento novo, como se percebe, compromete, na prática, toda a tese anterior e inaugura uma segunda posição, bem restritiva: a de que a legitimação ativa do Ministério Público para a tutela de direitos individuais homogêneos se limita às hipóteses previstas pelo legislador ordinário. “A lei é que deve dizer quais são os outros interesses”, afirmou na oportunidade o Ministro Moreira Alves, acrescentando: “Agora, para dizê-lo, tem de vincular-se a esse problema de direitos sociais e indisponíveis, justamente para se ter um parâmetro para julgar a constitucionalidade ou não dela, até em face de sua desarrazoabilidade com fun-damento na Constituição (...). A meu ver, essa posição de exigir a lei, mas a lei seguindo um parâmetro dentro da Constituição, para ela não poder considerar que qualquer interesse é objeto de ação civil pública (...) é uma posição equidis-tante, uma posição que estabelece, de um lado, uma certa segurança por decorrer da lei e, de outro, uma segurança contra os desarrazoados da lei”.

Nesse mesmo sentido restritivo, o Ministro Carlos Velloso adotou a seguinte linha de argumentação: (a) “não é na Constituição, art. 129, III, que se

Page 260: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

259

Ministro Teori Zavascki

pode buscar a legitimidade do Ministério Público para defender, mediante ação civil pública, direitos individuais homogêneos”; (b) não é, igualmente, na Lei 7.347/85 que se pode buscá-la, já que a dita lei trata apenas de direitos difusos e coletivos, e “a ação civil pública, além de estar jungida aos temas menciona-dos, não diz respeito a direitos individuais homogêneos”; (c) assim, “o Ministério Público tem legitimidade para a ação civil pública, quando em jogo direitos indi-viduais homogêneos, quando seus titulares estiverem na condição de consumido-res, ou quando houver uma relação de consumo. É o Código do Consumidor, pois, que confere ao Ministério Público legitimidade para a ação civil pública quando o objeto desta ação é um direito individual homogêneo” (Voto proferido no STF, Pleno, RE 163.231-3, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 29-6-2001, e reproduzido em vários outros, como no STF, Pleno, RE 195.056-1, DJ de 14-11-2003).

O empecilho para a adoção dessa tese, situada no extremo oposto da anterior, reside, justamente, nas excessivas restrições que ela impõe à atuação do Ministério Público, notadamente quando presentes hipóteses concretas, não previstas pelo legislador ordinário, em que a tutela de direitos individuais se mostra indispensável ao resguardo de relevantes interesses da própria sociedade ou de segmentos importantes dela.

E a terceira linha de entendimento é a de que a legitimidade do Ministério Público para tutelar em juízo direitos individuais homogêneos se configura nas hipóteses em que a lesão a tais direitos compromete também interesses sociais subjacentes. O assento normativo da tese pode ser buscado no art. 127 da CF, que trata da tutela dos interesses sociais. Defendendo a orientação, o Ministro Sepúlveda Pertence enfatizou que “a afirmação do interesse social para o fim cogi-tado há de partir de identificação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da República, nela consagrados. Afinal de contas — e malgrado as mutilações que lhe tem imposto a onda das reformas neoliberais deste decênio —, a Constituição ainda aponta como metas da República ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ e ‘erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-gualdades sociais e regionais’. Esse critério (...) se poderia denominar de interesse social segundo a Constituição” (Voto proferido no STF, Pleno, RE 195.056-1, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 14-11-2003). Essa terceira posição, segundo enten-demos, é a que deve ser prestigiada, já que guarda harmonia com os valores constitucionais e não acarreta as consequências demasiadamente restritivas ou expansivas das outras duas. É o que se procurará demonstrar.

9. O preceito constitucional que confere ao Ministério Público a incum-bência de promover a defesa dos interesses sociais (art. 127) é, em tudo, asseme-lhado ao preceito legal contido no art. 82, III, do CPC, que atribui ao Ministério Público a competência para intervir em todas as causas em que há interesse público. Muito se questionou a respeito da extensão de tal comando processual,

Page 261: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

260

Ministro Teori Zavascki

mas jamais se duvidou de sua autoaplicabilidade. A mesma atitude interpreta-tiva se há de ter frente à norma constitucional do art. 127: pode-se questionar seu conteúdo, mas não sua suficiência e aptidão para gerar, desde logo, a eficácia que lhe é própria.

Partindo-se desse pressuposto, de que o art. 127 da CF é autossuficiente, completo, apto a, desde logo, irradiar todos os efeitos, pode-se afirmar que o Ministério Público está constitucionalmente legitimado a se utilizar de todos os instrumentos necessários ao adequado desempenho da incumbência, do poder--dever de promover a defesa dos interesses sociais. Isso inclui, por certo, sua habilitação para manejar também os instrumentos processuais, se preciso for, de modo a que suas atribuições sejam exauridas às últimas consequências. Seria inimaginável supor que o dever de defesa — imposto ao Ministério Público pelo constituinte — fosse limitado a providências extrajudiciais.

Os interesses sociais constituem categoria jurídica de conteúdo aberto, mas, mesmo assim, seus contornos principais podem ser genericamente identi-ficados no plano teórico, pelo menos para estabelecer os limites entre o que, com certeza, constitui e o que não constitui interesse social. É certo que (a) não cons-tituem interesses sociais os meros interesses de particulares e mesmo os interes-ses da Administração Pública; e que (b) numa definição genérica, são interesses sociais aqueles cuja preservação e tutela o ordenamento jurídico consagra como importantes e indispensáveis não para pessoas ou entidades individualmente consideradas, mas para a sociedade como um todo, para o seu progresso mate-rial, institucional ou moral.

Todavia, há casos em que a tutela dos interesses sociais pressupõe, neces-sariamente, a tutela simultânea e conjunta de interesses de entes públicos, embora sejam com esses evidentemente inconfundíveis. Assim, por exemplo, quando, em defesa do interesse social, é pleiteada a reparação de danos causados ao patrimônio público ou a restituição de valores indevidamente apropriados por administrador ímprobo, o que se estará tutelando não são apenas interesses sociais, mas também os direitos subjetivos das pessoas de direito público lesa-das, para as quais, aliás, será canalizado o produto da condenação. Fenômeno semelhante ocorre em relação a direitos subjetivos de particulares. Com efeito, a lesão a certos direitos individuais homogêneos pode, em determinados casos, assumir tal grau de profundidade ou de extensão que acaba comprometendo também interesses maiores da comunidade, ou seja, interesses sociais. Nesses casos, os interesses particulares, visualizados em seu conjunto, transcendem os limites da pura individualidade e passam a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade como um todo. É o que ocorre, por exemplo, com o conjunto de direitos individuais eventualmente atingidos por dano ambiental. A condenação dos responsáveis pelos prejuízos causados diretamente a pessoas individualizadas e aos seus bens

Page 262: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

261

Ministro Teori Zavascki

constitui interesse de toda a comunidade, por representar a defesa de um bem maior, que a todos diz respeito: o de preservar o direito à boa qualidade de vida e o de sobrevivência da espécie. Nessas circunstâncias, a defesa desse bem maior, que é de interesse social, acaba englobando, direta ou indiretamente, total ou parcialmente, a defesa de direitos subjetivos individuais.

Ora, também no que interessa ao específico tema da atuação do Ministério Público não há dúvida que se deve descartar, à luz do próprio texto constitucio-nal, qualquer sinonímia entre interesses sociais e interesses de entes públicos, já que, em relação a estes, há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministe-riais (CF, art. 129, IX). Interesses sociais, repita-se, não são, simplesmente, inte-resses de entidades públicas nem, por certo, interesses individuais ou de grupos isolados. Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio, excluídos da possibilidade de tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). No entanto, como se fez ver anteriormente, há certos interesses individuais — de pessoas privadas ou de pessoas públicas — que, quando visu-alizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de trans-cender a esfera de interesses puramente individuais e passar a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade em seu todo.

É o que ocorre com os direitos individuais homogêneos, antes mencio-nados, dos consumidores e dos poupadores, cuja defesa pelo Ministério Público tem expressa chancela em lei ordinária. E é o que ocorre em todos os demais casos, mesmo não previstos expressamente em normas infraconstitucionais, em que a condenação dos responsáveis pelas condutas lesivas constitua não apenas interesse dos próprios lesados em sua individualidade, mas também interesse da comunidade em seu todo, já que se buscará preservar um bem maior, uma ins-tituição, um valor jurídico ou moral que a todos diz respeito e que foi atingido ou está ameaçado. Nesses casos, considerando que a tutela dos direitos indivi-duais é pressuposto para a tutela do interesse social subjacente, a legitimação do Ministério Público para defendê-los é inegável, independentemente de previsão normativa ordinária, pois que albergada no art. 127 do texto constitucional.

O próprio Ministério Público, independentemente de lei específica, pode, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos homogêneos compromete também interesses sociais. É seu dever, nesses casos, assumir a legitimação ativa e promover as medidas cabíveis para a devida tutela jurisdicional. É evidente que a posição e os atos do Ministério Público a respeito estarão sujeitos ao crivo da parte contrária, que poderá, como ocorreu no caso em exame, contestar a existência de interesse social apto a jus-tificar a incidência do art. 127 da Constituição. A palavra final sobre a adequada

Page 263: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

262

Ministro Teori Zavascki

legitimação caberá, sempre, ao Judiciário, que a confirmará ou a afastará. Tratando-se de matéria de ordem pública, dela pode conhecer até mesmo de ofí-cio o juiz da causa (CPC, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e § 4º).

10. À luz do exposto, examine-se o caso concreto, em que se questiona a legitimidade ativa do Ministério Público para defender em juízo direitos e inte-resses de pessoas titulares do seguro DPVAT — Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre —, cuja indenização teria sido paga, pela Seguradora, em valor inferior ao determinado por lei (artigo 3º da Lei 6.194/74). Não há dúvida de que, segundo a classificação antes enunciada, o objeto da demanda diz respeito a direitos individuais homogêneos, já que se trata de um conjunto de direitos subjetivos individuais, divisíveis, com titulares identifica-dos ou identificáveis, assemelhados entre si por um núcleo de homogeneidade. São, por isso, suscetíveis de tutela pelos próprios titulares, em ações individu-ais, ou de tutela coletiva, mediante ação própria (que aqui foi denominada de ação civil pública, mas que, no rigor técnico, melhor seria denominá-la de ação civil coletiva), promovida em regime de substituição processual. Já se referiu, acima, as razões que justificam a constitucionalidade de normas que atribuem ao Ministério Público legitimidade para tutelar, em juízo, direitos individuais homogêneos nas relações de consumo e nas relações com instituições finan-ceiras. Ainda que, no caso, não haja estrita identificação com essas situações, a legitimação ativa do Ministério Público sem dúvida se justifica, com base no art. 127 da Constituição, pelo interesse social de que se reveste a tutela do conjunto de segurados que teriam sido lesados pela Seguradora.

Realmente, o denominado seguro DPVAT — Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestres — não é um seguro qualquer. É seguro obrigatório por força de lei (Lei 6.194/74, alterada pela Lei 8.441/92, Lei 11.482/07 e Lei 11.945/09), e sua finalidade é proteger as vítimas de um recor-rente e nefasto evento da nossa realidade moderna, os acidentes automobilís-ticos, que tantos males, sociais e econômicos, trazem às pessoas envolvidas, à sociedade e ao Estado, mormente aos órgãos de seguridade social. Por isso mesmo, a própria lei impõe como obrigatório que os danos pessoais cobertos pelo seguro compreendam as indenizações por morte, por invalidez perma-nente, total ou parcial, e por despesas de assistência médica e suplementares (art. 3º da Lei 6.194/74) e que “o pagamento da indenização será efetuado mediante simples prova do acidente e do dano decorrente, independentemente da existência de culpa, haja ou não resseguro, abolida qualquer franquia de responsabilidade do segurado.” (art. 5º). Considera-se tratar-se de responsabilidade objetiva, vin-culada à teoria do risco, sendo desnecessária qualquer prova de culpa, bastando a demonstração do dano sofrido.

É importante enfatizar que, pela natureza e finalidade desse seguro, o seu adequado funcionamento transcende os interesses individuais dos segurados. A

Page 264: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

263

Ministro Teori Zavascki

própria Lei 8.212/91 (que dispõe sobre Lei Orgânica da Seguridade Social), no seu artigo 27, parágrafo único, determina às companhias seguradoras o repasse à Seguridade Social de 50% do valor total do prêmio desse Seguro, que é des-tinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), para o custeio de assistência médico--hospitalar dos segurados vitimados em acidentes de trânsito.

Há, portanto, manifesto interesse social nessa controvérsia coletiva. A hipótese, sem dúvida, guarda semelhança com outros direitos individuais homogêneos, em relação aos quais — e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis e com titular determinado ou determinável —, o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse social quali-ficado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição, defendê-los em juízo mediante ação coletiva. É o caso dos direitos individuais homogêneos sobre o valor de mensalidades escolares (RE 163.231/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CÔRREA, Tribunal Pleno, jul-gado em 26-2-1997, DJ de 29-6-2001), sobre contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação (AI 637.853 AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJE de 17-9-2012), sobre contratos de leasing (AI 606.235 AgR/DF, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJE de 22-6-2012), sobre interesses previdenciários de trabalhadores rurais (RE 475.010 AgR/RS, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 29-9-2011), sobre aquisição de imóveis em loteamentos irregulares (RE 328.910 AgR/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 30-9-2011) e sobre diferenças de corre-ção monetária em contas vinculadas ao FGTS (RE 514.023 AgR/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJE de 5-2-2010).

11. Ante o exposto, voto pelo provimento do recurso.

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 850.960 — SC

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Para adequada compreensão do tema, é importante rememorar os termos da demanda. Na presente ação de cobrança, ajuizada em face da União, o autor, ora agravado, pretende o paga-mento de Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI), devida no período de 17-12-2004 a 30-6-2006. Os pedidos foram julgados procedentes pela sentença, que (a) declarou o direito do autor à percepção da VPNI pleiteada, no período de 17-12-2004 a 30-6-2006, e (b) condenou a União a restituir ao autor o valor de R$ 14.320,39, atualizado monetariamente até novembro de 2009. O

Page 265: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

264

Ministro Teori Zavascki

recurso inominado interposto pela União teve o provimento negado pela 3ª Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina, que confirmou a sentença por seus próprios fundamentos. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.

Para impugnar o acórdão da Turma Recursal, a União interpôs, simul-taneamente, recurso extraordinário e incidente de uniformização de jurispru-dência. No extraordinário, alega ofensa aos arts. 5º, caput, XXXV, XXXVI, LIV e LV, 37, caput, X e XV, e 61, 1º, II, “a”, da Constituição, bem como à Súmula 339/STF, argumentando, em suma, que a VPNI pleiteada não é vantagem de caráter geral, tendo sido instituída para atender situação pessoal dos servidores que, após a aplicação de nova estrutura de cargos e salários, tiveram sua remunera-ção reduzida.

No incidente de uniformização de jurisprudência, sustenta que o acórdão recorrido não está em consonância com julgados proferidos pela 1ª Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul (processo 2005.71.57.002480-0) e pela 2ª Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina (processo 2007.72.51.000209-3), ambos no sentido de que a VPNI postulada nesta demanda possui caráter pessoal.

O Juiz Federal Presidente da 3ª Turma Recursal inadmitiu o recurso extraordinário ao fundamento de que a matéria nele discutida é de índole infraconstitucional. Contra essa decisão, a União interpôs agravo ao Supremo Tribunal Federal.

Todavia, o incidente de uniformização de jurisprudência foi admitido, tendo sido determinada a remessa dos autos à Turma Regional de Uniformização da 4ª Região (TRU4). No seu julgamento, o pedido não foi acolhido pela TRU4, que o julgou nos termos da seguinte ementa:

DIREITO ADMINISTRATIVO. ADVOGADO DA UNIÃO DE SEGUNDA CATEGORIA. POSSE POSTERIOR A 30/06/2000. PERCEPÇÃO DA VPNI — VANTAGEM PESSOAL NOMINALMENTE IDENTIFICADA. LEI 10.909/2004. VERBA GENÉRICA DE CARÁTER IMPESSOAL. ACÓRDÃO RECORRIDO NO MESMO SENTIDO DE ORIENTAÇÃO FIRMADA POR ESTA TRU. QUESTÃO DE ORDEM 13 DA TNU. NÃO CONHECIMENTO.

1. O acórdão recorrido se encontra no mesmo sentido da orientação fir-mada por esta Turma de Uniformização, no sentido de que ‘a referida vantagem adquiriu caráter geral, impessoal, anômalo e permanente a partir do início dos efeitos da Lei nº 10.909/2004 (01.04.2004), passando a integrar a própria remune-ração do cargo de Advogado da União de Segunda Categoria”. (inicial) os efeitos financeiros da progressão funcional na carreira Policial Federal devem retroa-gir ao momento em que tiverem sido completados os cincos anos ininterruptos de efetivo exercício” (v.g., IUJFEF n. 2005.70.50.015660-8, Rel. Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva, DE 5-5-2009; IUJEF n. 5008795.69.2012.404.7200, Rel. Juíza Federal Ana Beatriz Vieira da Luz Palumbo, DE 26-7-2012).

Page 266: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

265

Ministro Teori Zavascki

2. Incidente de Uniformização não conhecido, nos termos da Questão de Ordem 13 da TNU, aplicada analogicamente.

Contra esse julgado, a União interpôs incidente de uniformização de jurisprudência perante a Turma Nacional de Uniformização (TNU), susten-tando divergência entre o acórdão da TRU4 e o julgado proferido pela TNU no PEDILEF 2005.71.57.00.2480-0. Todavia, o incidente não foi conhecido pela TNU, por ser intempestivo, uma vez que, nos termos da Questão de Ordem 32/TNU, o prazo para a interposição do incidente de uniformização nacio-nal e regional é único e tem início com a intimação do acórdão proferido pela Turma Recursal. Segundo informações do sítio eletrônico da TNU, esse acór-dão foi publicado em 22-8-2014, transitando em julgado em 15-9-2014. Em 19-11-2014, os autos foram remetidos a esta Corte, para julgamento do recurso extraordinário.

2. Ao contrário do que afirma a parte agravante, o incidente de uniformi-zação de jurisprudência possui evidente natureza recursal, já que pode propiciar a reforma do acórdão impugnado. Acertada, no particular, a decisão tomada na Questão de Ordem 1/02 pela Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU):

Os Juizados Especiais orientam-se pela simplicidade e celeridade proces-sual nas vertentes da lógica e da política judiciária de abreviar os procedimentos e reduzir os custos.

Diante da divergência entre decisões de Turma Recursais de regiões diferentes, o pedido de uniformização tem a natureza jurídica de recurso, cujo julgado, portanto, modificando ou reformando, substitui a decisão ensejadora do pedido.

A decisão constituída pela Turma de Uniformização servirá para funda-mentar o juízo de retratação das ações com o processamento sobrestado ou para ser declarada a prejudicialidade dos recursos interpostos.

A natureza recursal do incidente de uniformização de que trata o art. 14 da Lei 10.259/01 é também reconhecida pela doutrina especializada, a saber:

Importa reconhecer a natureza recursal dos incidentes de uniformização nos Juizados Especiais. Diferentemente do incidente de uniformização de juris-prudência previsto no Código de Processo Civil, o pedido de uniformização de jurisprudência do art. 14 da Lei 10.259/01 consubstancia verdadeira modalidade recursal, não sendo apenas uma fase incidental e precedente ao julgamento do recurso. Ao contrário, a decisão dos incidentes de uniformização dos JEF’s traz como consequência a eventual modificação do resultado do julgamento pro-ferido nos autos, impondo reconhecer sua natureza recursal. (SAVARIS, José Antonio; XAVIER, Flavia da Silva. Manual dos Recursos nos Juizados Especiais Federais. Curitiba: Juruá, 2003. p. 170-171)

Ainda sobre a dessemelhança dos institutos, o incidente do artigo 476 só pode ser instaurado quando o dissenso ocorre intramuros, ou seja, entre julgados

Page 267: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

266

Ministro Teori Zavascki

de um mesmo tribunal judiciário. Em contraposição, a uniformização do artigo 14 pode versar sobre dissídio externo, tanto que alcança até mesmo o dissenso em relação a enunciado da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. Daí a impossibili-dade de confusão entre os institutos do artigo 476 do Código e do artigo 14 da Lei n. 10.259, de 2001. Aliás, tanto o artigo 14 da Lei n. 10.259 quanto o Regimento Interno editado pela Resolução n. 390 sugerem a natureza recursal da uniformi-zação dos Juizados Federais, ao contrário da uniformização de jurisprudência do artigo 476 do Código, cuja natureza de incidente processual é ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência. (PIMENTEL, Bernardo. Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 374)

Em face da sua natureza recursal, o incidente de uniformização de juris-prudência corresponde, no âmbito dos juizados especiais, aos embargos de divergência cabíveis perante o STJ e o STF, nos termos do art. 546 do CPC, e aos embargos perante o TST, nos termos do art. 894, II, da CLT, recursos cabí-veis quando “houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei” (art. 14, caput, da Lei 10.259/01). A propósito, assevera Joel Dias Figueira Júnior:

(…) a Lei 10.259/2001, tomando por base os valores da segurança que se fazia mister conferir ao julgado, a espécie de objeto controvertido colocado comumente à cognição do Estado-juiz e que seria também uma constante nos Juizados Especiais Federais (lide jurídica), o direito material em questão e os interesses da Fazenda Pública (considerando-se, aqui, o interesse geral coletivo), resolveu em determinadas circunstâncias admitir pedido de uniformização de interpretação de lei federal, sendo o requisito de fundo a divergência entre deci-sões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na inter-pretação da lei (art. 14, caput).

(…)Trata-se, na verdade, de embargos de divergência, objetivando unifor-

mizar a jurisprudência das Turmas Recursais integrantes da mesma Região ou de Regiões diferentes, desde que a apontada discrepância entre os julgados esteja fundamentada em direito material objeto da controvérsia na qual a parte interessada tenha sido vencida total ou parcialmente. (FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais federais cíveis e criminais: comentários à Lei 10.259, de 10-7-2001. São Paulo: RT, 2002. p. 364-365)

3. No presente caso, o recurso extraordinário foi interposto contra acór-dão da Turma Recursal, simultaneamente ao incidente de uniformização de jurisprudência apresentado para a TRU4, ambos com o mesmo objetivo de reformar integralmente o acórdão recorrido. Assim, torna-se necessário perqui-rir se é cabível, à luz do ordenamento jurídico vigente, a interposição simultânea dessas duas espécies recursais.

Segundo Barbosa Moreira, no plano da política legislativa, é concebí-vel “a) que contra determinada decisão seja interponível um único recurso; b) que sejam interponíveis dois ou mais recursos, cumulativamente; c) que sejam

Page 268: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

267

Ministro Teori Zavascki

interponíveis dois ou mais recursos, alternativamente” (Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 5. p. 248). É o que também registra Araken de Assis, invocando o direito comparado:

Exemplo de interposição alternativa de dois recursos localiza-se no art. 360, segunda parte, do CPC italiano, segundo o qual, pondo-se as partes de acordo, nada obstante apelável a sentença, admite-se a interposição do recurso de cassação, desde logo, mas em certos casos, chamando-se tal possibilidade de ricorso per saltum ou omisso medio. Idêntico sistema preside a Sprungrevision germânica (§ 566 da ZPO). E exemplifica a interposição cumulativa o con-curso entre o recours em révision, de regra inadmissível quando cabível outro recurso, e, por isso, “subsidiário”, e o pouvoir em cassation, porque neste a Cour de Cassation não reexamina questões de fato, situadas no âmago do primeiro, a teor do art. 595 do Nouveau Code de Procédure Civile. (Manual dos recursos. São Paulo: RT, 2013. p. 97-98)

No direito processual civil brasileiro, o art. 809 do Código de Processo Civil de 1939 consagrou o princípio da unirrecorribilidade (unicidade ou singu-laridade), dispondo que “a parte poderá variar de recurso dentro do prazo legal, não podendo, todavia, usar, ao mesmo tempo, de mais de um recurso”. Embora não positivado atualmente, segundo entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina, o postulado da unirrecorribilidade foi implicitamente adotado pela sistemática recursal do Código de Processo Civil atual. Assim, “tanto no direito anterior como no vigente (…), a regra geral era e continua a ser a de que, para cada caso, há um recurso adequado, e somente um” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 5. p. 249).

O princípio, é certo, comporta algumas exceções, mas fundamentalmente para hipóteses em que se admite a interposição cumulativa de recursos. É o caso de interposição simultânea dos recursos especial e extraordinário contra acór-dão que, ao mesmo tempo, incorrer nas previsões dos arts. 102, III, e 105, III, da CF/88. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, possui entendimento sumu-lado no sentido de que “é incabível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário” (Súmula 126/STJ). Este Supremo Tribunal Federal possui orien-tação análoga (ARE 802.391 AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJE de 3-9-2014; AI 831.740 ED, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJE de 24-4-2012).

Não há, entretanto, previsão legal ou constitucional que permita concluir pelo cabimento da interposição simultânea de recurso extraordinário e inci-dente de uniformização de jurisprudência. Trata-se, na verdade, de hipótese em que há previsão de dois recursos, insuscetíveis, todavia, de interposição

Page 269: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

268

Ministro Teori Zavascki

simultânea: a parte deve optar pela via do recurso extraordinário ou pela via do incidente de uniformização de jurisprudência, sob pena de ofensa ao postulado da unirrecorribilidade.

A interposição simultânea só será cabível, sem ofensa ao princípio da unirrecorribilidade, contra julgados objetivamente complexos, em que há, materialmente, pronunciamentos jurisdicionais autônomos, cada um sujeito a ataque por diferente via recursal. A propósito, confira-se:

Os pronunciamentos objetivamente complexos aprofundam as trincas que vincam a aplicação do princípio da singularidade.

Às vezes, o pronunciamento é formalmente único, mas materialmente se divide em vários capítulos autônomos. Por exemplo: o juiz enfrenta as ques-tões prévias arguidas pelo réu, rejeitando a alegação de coisa julgada (art. 301, VI), materialmente questão incidente, mas acolhe a prescrição, materialmente questão de mérito. É também o caso do acórdão que, resolvendo duas ou mais questões, dispõe de forma unânime em relação a uma, ou a algumas, e de forma majoritária quanto a outra ou outras. Em tal contingência, no tocante ao capítulo majoritário, e respeitada a inexistência de dupla conformidade (…), admitem-se embargos infringentes (art. 530); no que tange aos capítulos unânimes, ao invés, cabem recursos especial ou extraordinário, conforme o caso, a teor do art. 498.

Na opinião prevalecente, a rigor a hipótese não excepciona o princípio da singularidade, justamente pela razão indicada: cada capítulo autônomo consti-tui, materialmente, pronunciamento autônomo. (ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: RT, 2013. p. 99)

Não é essa, todavia, a hipótese dos autos. Aqui, ambos os recursos — o incidente de uniformização e o extraordinário — atacaram o mesmo capítulo do julgado recorrido. Incabível, portanto, a apresentação simultânea.

Esse mesmo raciocínio é aplicável a espécies recursais similares, como os embargos de divergência e os embargos previstos no art. 894, II, da CLT. No tocante aos embargos de divergência, é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que sua apresentação simultaneamente a recurso extraordinário viola o princípio da unirrecorribilidade. Eis, a propósito, recente julgado do Plenário:

Reitero, no mais, que a interposição desses 2 (dois) extraordinários se deu de forma açodada, pois não houve o prévio esgotamento da instância de origem, o que inviabiliza o conhecimento desses apelos extremos. Com efeito, ambos os extraordinários foram interpostos antes do julgamento definitivo dos embargos de divergência pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Incide, portanto, o enunciado da Súmula nº 281/STF, segundo o qual “é inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”.

Muito embora esses embargos sejam de natureza facultativa, se a parte opta por sua interposição, não pode, ao mesmo tempo, manejar 2 (dois) recursos extraordinários antes do julgamento da divergência. Em tal hipótese, é mister aguardar-se a decisão definitiva daqueles embargos para, apenas então, inter-por-se o extraordinário, sob pena de ausência de esgotamento de instância e de

Page 270: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

269

Ministro Teori Zavascki

violação do princípio da unicidade recursal. (RE 839.163 QO-segunda, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJE de 10-2-2015)

Quando integrava a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça tive oportunidade de decidir, quanto ao tema, o seguinte:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO E EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE RECURSAL. INADMISSÃO DO RECURSO APRESENTADO POR ÚLTIMO.

1. A interposição simultânea, contra o acórdão que julgou o recurso especial, de embargos de divergência e recurso extraordinário, acarreta a inadmissibilidade do recurso que foi protocolado por último, ante a preclusão consumativa.

2. O entendimento do STF, consolidado quando do julgamento do AI.AgR 275.637/SP, 1ª T., Min. Ellen Gracie, julgado em 26.06.2001, DJ de 19.12.2001, no sentido da possibilidade de sobrestamento do recurso extraordinário interposto concomitantemente aos embargos de divergência contra a decisão do STJ em recurso especial, já restou superado pela jurisprudência do Pretório Excelso, cujos julgamentos recentes têm contemplado a aplicação do princípio da unirre-corribilidade recursal, sobretudo após a vigência da Lei 10.352/01. Precedentes: RE-AgR 355497/SP, 2ª T., Min. Maurício Corrêa, DJ de 25-04-2003 e AI-AgR 563505/MS, 1ª T, Min. Eros Grau, DJ de 04-11-2005.

3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg nos EREsp 582.746, de minha relatoria, Primeira Seção, DJ de 11-9-2006)

Ainda quanto à aplicação do princípio da unirrecorribilidade em casos de interposição simultânea de recurso extraordinário e embargos de divergência, confiram-se: AI 771.806 AgR-segundo, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJE de 2-4-2012; AI 563.505 AgR, Rel. Min. EROS GRAU, Primeira Turma, DJ de 4-11-2005; RE 355.497 AgR, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, DJ de 25-4-2003. Nesse mesmo sentido, posiciona-se a jurisprudência do STJ: AgRg nos EREsp 303.546, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, Segunda Seção, DJE de 1º-10-2013; EDcl nos EREsp 439.172, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira Seção, DJE de 18-11-2010; AgRg nos EREsp 150.167, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, Corte Especial, DJ de 16-4-2007; AgRg nos EREsp 511.234, Rel. Min. LUIZ FUX, Corte Especial, DJ de 20-9-2004.

Essa mesma orientação também é seguida por esta Corte em hipóteses em que ocorre a interposição simultânea, no Tribunal Superior do Trabalho, de recurso extraordinário e embargos do art. 894, II, da CLT, a saber:

Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Recurso extraordinário extemporâneo. Orientação da Súmula 281. Princípio da unirre-corribilidade recursal. Precedentes.

(…)

Page 271: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

270

Ministro Teori Zavascki

3. A interposição simultânea, pela ora agravante, de recurso extraordiná-rio e de recurso de embargos malferiu o princípio da unirrecorribilidade recursal.

4. Agravo regimental não provido. (ARE 718.944 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 29-8-2013)

AGR AVO R EGI M EN TA L . PROCE SSO DO TR A BA LHO. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO DE EMBARGOS E DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DA MESMA DECISÃO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. SÚMULA 281.

1. Não consiste em exceção ao princípio da unirrecorribilidade a inter-posição de recurso extraordinário e recurso de embargos da mesma decisão. Ausência de posterior ratificação. Hipótese que impõe a aplicação da Súmula 281.

2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 677.964 AgR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJE de 14-6-2012)

TRABALHISTA. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE DOIS RECURSOS CONTR A UMA MESMA DECISÃO. OFENSA AO PR INCÍPIO DA SINGULARIDADE OU DA UNIRRECORRIBILIDADE. NÃO ESGOTAMENTO DOS RECURSOS ORDINÁRIOS NA INSTÂNCIA DE ORIGEM. PRECLUSÃO.

1. Interposição concomitante de embargos para o TST (art. 894 da CLT, na redação dada pela Lei 11.496/2007) e de recurso extraordinário (art. 102, III, da CF) para o STF contra uma mesma decisão. Ausência de previsão na legisla-ção. Afronta ao princípio da singularidade ou unirrecorribilidade recursal.

2. Apresentação do apelo extremo antes do esgotamento dos recursos no âmbito trabalhista. Ocorrência de preclusão em razão da perda de objeto do RE.

3. Agravo regimental improvido. (AI 735.760 AgR, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJE de 16-4-2010)

Essa orientação é aplicável, às inteiras, ao incidente de uniformização de jurisprudência de que trata a Lei 10.259/01, que, confirma já afirmado, se reveste de natureza recursal semelhante à dos embargos de divergência do art. 546 do CPC e dos embargos do art. 894, II, da CLT. Assim, apresentado incidente de uni-formização de jurisprudência perante o acórdão da Turma Recursal, o recurso extraordinário só será cabível, em tese, contra o acórdão que julgar esse incidente.

Por outro lado, o art. 102, III, da CF/88, dispõe que compete ao STF “jul-gar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância (…)”. Nos Juizados Especiais, é certo que “o exaurimento da via ordinária se dá (…) com a decisão proferida por Turma Recursal, ainda que sejam admissíveis os competentes incidentes para uniformização da interpreta-ção de lei federal” (SAVARIS, José Antonio; XAVIER, Flavia da Silva. Manual dos recursos nos juizados especiais federais. Curitiba: Juruá, 2003. p. 296). Entretanto, uma vez apresentado incidente de uniformização de jurisprudência contra o acórdão da Turma Recursal, não há mais como considerar que julgou a causa em “última instância”.

Page 272: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

271

Ministro Teori Zavascki

Na hipótese em análise, conforme já enfatizado, o recurso extraordinário foi interposto simultaneamente com o incidente de uniformização de jurispru-dência para a TRU4, em evidente ofensa ao princípio da unirrecorribilidade. Ademais, tendo o recorrente optado pela interposição do incidente, a instância ordinária somente veio a ser exaurida com o julgamento desse recurso, sendo incabível, também por isso, o recurso extraordinário antes apresentado.

4. Diante do exposto, nego provimento ao agravo regimental. É o voto.

REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 868.457 — SC

DECISÃO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário interposto em demanda visando à revisão de benefício previdenciário. Alega a autora que, ao deferir seu pedido de aposentadoria por tempo de contribuição, o Instituto Nacional do Seguro Social  — INSS não considerou como especial o período de tempo (de 29-4-1968 a 31-12-1975) em que trabalhou em condições insalubres. Sustenta que o direito à revisão deve ser reconhecido desde a data de entrada do correspon-dente requerimento (DER), respeitada a prescrição quinquenal. Pede, assim, o reconhecimento, a contagem e averbação do período trabalhado em condições insalubres, com os respectivos efeitos em seus proventos.

A Turma Recursal da Seção Judiciária de Santa Catarina, acolhendo o pedido, decidiu que os efeitos financeiros da concessão ou revisão dos benefí-cios previdenciários deverão retroagir à data do requerimento administrativo (DER), em qualquer caso, se desde aquela data foram cumpridos os requisitos legais à percepção do benefício ainda que o requerimento de averbação de certo período ou sua prova só tenham sido apresentados depois (fl. 3, peça 50).

No recurso extraordinário, o INSS sustenta, preliminarmente, a existência de repercussão geral da matéria, conforme estabelece o art. 543-A, § 2º, do CPC, porquanto a tese pode ter reflexo sobre todos os vinte e nove milhões de benefí-cios previdenciários hoje em manutenção. Aponta ofensa aos seguintes disposi-tivos constitucionais: (a) arts. 5º, II, 37, 97 e 105, III, pois o Judiciário (no caso, a Turma Recursal do Juizado Federal) não pode conceder benefício previdenciário sem que sejam atendidos os requisitos previstos na Lei 8.213/91, cuja aplicação não pode ser afastada sem a declaração de sua inconstitucionalidade, observado o princípio da reserva de plenário (Súmula Vinculante 10); (b) art. 5º, XXXV, LIV

Page 273: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

272

Ministro Teori Zavascki

e LV, porque não foram comprovados os fatos constitutivos do direito à percep-ção do benefício à época do requerimento administrativo, de modo que não foi possível o exame de qualquer prova do trabalho rural ou prestado em condições especiais; (c) arts. 195, § 5º, e 201, ao argumento de que o acórdão recorrido criou benefício previdenciário sem indicar sua respectiva fonte de custeio; (d) arts. 5º, caput, e 201, § 1º, porquanto foi reservado tratamento anti-isonômico aos segu-rados que tiveram seus benefícios concedidos antes e depois da MP 1.523-9/97 e também aos que diligentemente instruíram, na forma da lei, o requerimento de benefício com a documentação necessária à comprovação do tempo de ser-viço especial; (e) arts. 2º e 84, IV, 194, III, e 195, caput, já que é competência do Poder Legislativo a criação de benefícios previdenciários e dos critérios para sua concessão, de modo que a Turma Recursal invadiu a esfera de livre discriciona-riedade do legislador ao conferir à norma aplicação e abrangência diferentes das previstas nos textos constitucional e legal; (f) art. 5º, XXXVI, visto que foi afas-tada a decadência do direito de revisão do benefício, apesar de ter sido concedido mais de 10 anos antes do ajuizamento da ação. Requer, por fim, o provimento do recurso extraordinário para que (a) seja reconhecida a decadência do direito de revisão do ato de concessão do benefício da parte autora; (b) seja a data da citação fixada como marco temporal dos efeitos financeiros da revisão pleiteada; ou (c) seja reconhecida, de ofício, a prescrição quinquenal.

2. No que toca à alegada decadência do direito de pleitear a revisão do benefício previdenciário, a Turma Recursal decidiu em conformidade com a jurisprudência desta Corte (RE 626.489, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 16-10-2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL — MÉRITO DJE de 23-9-2014) no sentido de que o prazo decadencial para a revisão dos benefícios previdenciários alcança tam-bém os benefícios concedidos anteriormente à edição da Medida Provisória n. 1.523-9/1997 (…) (fl. 1, peça 50). Com essa orientação, afastou-se a ocorrência da decadência sob o seguinte fundamento:

No caso dos autos, a autora pretende o reconhecimento de período espe-cial para revisão do benefício. Todavia, a autora efetuou o pedido administra-tivo de revisão do benefício para reconhecimento do período ora pleiteado em 4-5-2011 (fls. 17/18, Procadm5, evento 1). Assim, é de ser afastada a alegação, uma vez que entre a data do pedido de revisão administrativa (4-5-2011) e o ajuizamento da demanda (6-12-2011) ainda não decorreu o prazo de dez anos. Do mesmo modo, entre a data da concessão do benefício (13-6-2001) e a data do requerimento administrativo de revisão (4-5-2011) também não havia transcor-rido o prazo decadencial. (fl. 2, peça 50).

Sem razão, portanto, o recurso extraordinário, quando alega ter o acór-dão impugnado afirmado que os benefícios concedidos antes de 28-6-1997 são revisáveis ad aeternum, diferentemente dos benefícios concedidos a partir de

Page 274: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

273

Ministro Teori Zavascki

então (fl. 8, peça 56). Quanto ao decurso ou não do prazo de dez anos, no caso concreto, eventual dúvida demandaria exame de matéria de prova, sabidamente insuscetível de juízo nessa instância extraordinária (Súmula 279/STF).

3. Há muitos dispositivos constitucionais invocados no recurso que, além de não prequestionados, tratam de matéria que apenas reflexa e longinquamente diz respeito ao tema objeto da demanda e do acórdão recorrido. Assim, não houve juízo acerca das matérias de que tratam as normas insertas nos arts. 2º, 5º, caput, II, XXXV, LIV e LV, 37, 84, IV, 105, III, 194, III, 195, caput, 201, § 1º, da CF/88, tampouco essas questões foram suscitadas no momento oportuno, em sede dos embargos de declaração, razão pela qual, à falta do indispensável pre-questionamento, o recurso extraordinário não pode ser conhecido, incidindo o óbice das Súmulas 282 e 356 do STF. Saliente-se, no que toca à prescrição quinquenal, que mesmo as matérias de ordem pública suscitadas no extraordi-nário devem ser prequestionadas, sob pena de não conhecimento. Precedentes: ARE 822.344 AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJE de 9-3-2015; RE 808.546 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 20-8-2014; ARE 713.213 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJE de 10-12-2012.

4. Quanto aos arts. 5º, II, XXXV, LIV e LV, e 37 da Constituição Federal, conforme reiterada jurisprudência desta Corte, não se presta a via do recurso extraordinário ao exame de alegada violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada ou aos princípios da legalidade, do contra-ditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da prestação jurisdicional, quando, para isso, seja inafastável o reexame da interpretação conferida pelo Juízo de origem a dispositivos infraconstitucionais. É que, em casos tais, mais uma vez, as ofensas alegadas seriam, quando muito, de natureza indireta ou reflexa. Nesse sentido: AI 796.905 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJE de 21-5-2012; AI 622.814 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 8-3-2012; ARE 642.062 AgR, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJE de 19-8-2011.

5. No mais, o recurso extraordinário submete à apreciação do Supremo Tribunal Federal, em síntese, dois temas (a) a violação, pela Turma Recursal, do princípio da reserva de plenário e (b) a legitimidade da definição da data de entrada do requerimento administrativo como marco temporal dos efeitos financeiros da revisão do benefício.

6. No que toca ao princípio da reserva de plenário, firmou-se nesta Corte o entendimento de que:

(…) o art. 97 da Constituição, ao subordinar o reconhecimento da inconstitucionalidade de preceito normativo a decisão nesse sentido da maioria absoluta de seus membros ou dos membros dos respectivos órgãos especiais, está

Page 275: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

274

Ministro Teori Zavascki

se dirigindo aos Tribunais indicados no art. 92 e aos respectivos órgãos especiais de que trata o art. 93, IX. A referência, portanto, não atinge juizados de pequenas causas (art. 24, X) e juizados especiais (art. 98, I), que, pela configu-ração atribuída pelo legislador, não funcionam, na esfera recursal, sob o regime de plenário ou de órgão especial. As Turmas Recursais, órgãos colegiados desses juizados, podem, portanto, sem ofensa ao art. 97 da Constituição e à Súmula Vinculante 10, decidir sobre a constitucionalidade ou não de preceitos normati-vos. (ARE 792.562 AgR, de minha relatoria, Segunda Turma, DJE de 2-4-2014)

No mesmo sentido, citem-se: ARE 845.417 AgR, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJE de 17-12-2014; AI 560.036 ED-AgR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, DJ de 15-9-2006; AI 561.186 AgR, Rel. Min. EROS GRAU, Segunda Turma, DJ de 9-6-2006. Confiram-se, também, as seguintes decisões monocráticas, proferidas em casos idênticos: ARE 866.672, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJE de 19-3-2015; ARE 866.730, Rel. Min. LUIZ FUX, DJE de 4-3-2015; ARE 806.072, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJE de 12-12-2014. Aliás, o plenário do órgão colegiado de Juizado Especial é a própria Turma Recursal, cujas decisões, por decorrência natural, são sempre tomadas por maioria absoluta.

Assim, considerada a manifesta improcedência da alegação de ofensa ao art. 97 da CF/88 pela Turma Recursal de Juizados Especiais, é de se reconhecer desde logo ausente a alegada repercussão geral da matéria, com os efeitos decor-rentes dessa declaração de ausência, conforme decidiu esta Corte no RE 584.608 RG (Min. ELLEN GRACIE, DJE de 13-3-2009).

7. Quanto aos demais fundamentos ventilados pela recorrente, não há matéria constitucional a ser analisada. Não se pode ver no acórdão recorrido qualquer indício de que tenha instituído ou que reconheça legítima a instituição ou majoração de benefício previdenciário sem fonte de custeio. Na verdade, a Turma Recursal apenas manifestou o entendimento de que, tendo a segurada preenchido os requisitos para a concessão de prestação mais vantajosa na data de entrada do requerimento administrativo, os efeitos financeiros da revisão do benefício devem retroagir àquela data. Tal matéria não tem qualquer assento constitucional, sendo tratada, como o fez o acórdão recorrido, exclusivamente sob o regime de normas infraconstitucionais. Ademais, o Supremo Tribunal Federal já pacificou a orientação de que é inviável a apreciação, em recurso extraordinário, de alegada violação a dispositivo da Constituição Federal que, se houvesse, seria meramente indireta ou reflexa, uma vez que é imprescindível a análise de normas infraconstitucionais. Nesse sentido, em casos idênticos, manifestaram-se, em sede monocrática, todos os Ministros desta Corte: ARE 868.473, de minha relatoria, DJE de 20-3-2015; ARE 868.846, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE de 20-3-2015; ARE 867.662, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJE de 20-3-2015; ARE 869.189, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJE de 19-3-2015;

Page 276: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

275

Ministro Teori Zavascki

ARE 870.690, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJE de 19-3-2015; ARE 852.828, Rel. Min. ROSA WEBER, DJE de 11-3-2015; ARE 865.198, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJE de 5-3-2015; ARE 867.628, Rel. Min. LUIZ FUX, DJE de 4-3-2015; ARE 806.072, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJE de 12-12-2014; RE 817.444, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJE de 1º-8-2014.

8. Não há, portanto, no presente recurso, matéria constitucional que possa consistentemente ser considerada como de repercussão geral e, dessa forma, atender ao indispensável requisito constitucional de admissibilidade. E o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que é possível a atribuição dos efeitos da declaração de ausência de repercussão geral quando não há matéria constitucional a ser apreciada ou quando eventual ofensa à Constituição Federal ocorra de forma indireta ou reflexa (RE 584.608 RG, Min. ELLEN GRACIE, DJE de 13-3-2009).

9. Diante do exposto, manifesto-me pela inexistência de repercussão geral da questão suscitada.

REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 835.833 — RS

DECISÃO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário em ação de cobrança processada e decidida no âmbito de Juizado Especial Cível, regido pela Lei 9.099/95. Na petição inicial, o demandante, ora recorrido, alega a inadimplência em rela-ção a dois contratos celebrados com a sociedade empresária Brasileite Ind. e Com. de Laticínios Ltda., consistentes na venda de 5.310 litros de leite in natura pelo valor de R$ 3.397,04. Informa que os negócios eram realizados mediante a entrega dos produtos a uma transportadora, que os enviava para que fossem resfriados em outra empresa, a qual, por sua vez, remetia-os à Agropecuária Tuiuti Ltda., ora recorrente, para comércio. Afirma que incumbia a essa empresa efetuar o pagamento à Brasileite Ind. e Com. de Laticínios Ltda., a quem cabia repassar os valores ao recorrido. Por fim, aduz que, não obstante inúmeras ten-tativas, não logrou êxito em receber a quantia devida.

A Brasileite Ind. e Com. de Laticínios Ltda. foi excluída do polo passivo da demanda, a pedido do requerente, por não ter sido localizada. Afastada a pre-liminar de ilegitimidade passiva da Agropecuária Tuiuti Ltda. ao fundamento de que foi comprovada a relação comercial entre as empresas na aquisição dos

Page 277: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

276

Ministro Teori Zavascki

produtos, foram julgados procedentes os pedidos, em sentença integralmente mantida pela Turma Recursal. Assim, a referida empresa resolveu submeter o caso ao Supremo Tribunal Federal, mediante recurso extraordinário interposto com base no art. 102, III, a, da Constituição Federal.

No apelo, argumenta, conforme estabelece o art. 543-A, § 2º, do CPC, ser indiscutível repercussão geral do tema, diante de sua relevância política, social e jurídica. Sustenta violação aos seguintes dispositivos constitucionais: (a) art. 5º, XXXVI, pois o não reconhecimento da ilegitimidade passiva da recor-rente importou ofensa ao princípio da segurança jurídica, já que ela não fazia parte do negócio firmado entre o produtor rural e a Brasileite Ind. e Com. de Laticínios Ltda.; (b) art. 5º, XXXIV, a, porque foi devidamente comprovado que o pagamento pelo leite adquirido foi devidamente realizado à empresa Brasileite Ind. e Com. de Laticínios Ltda., de forma que não há como imputar qualquer responsabilidade à recorrente.

2. A instituição de Juizados Especiais de Pequenas Causas, embora pre-vistos em nosso constitucionalismo desde 1934, se deu pela Lei 7.244/84. Nos termos do art. 1º daquele diploma legal, competia a tais Juizados processar e julgar as causas de reduzido valor econômico, assim compreendidas aquelas que (a) tratassem de direitos patrimoniais e (b) não excedessem a vinte vezes o salá-rio mínimo vigente. A Constituição Federal de 1988 reiterou, em seu art. 24, X, a previsão dos Juizados de Pequenas Causas e dispôs, em seu art. 98, acerca da criação de Juizados Especiais competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo (...). Independentemente do debate sobre a previsão constitu-cional de um ou dois órgãos jurisdicionais, o fato é que a Lei 9.099/95, revogando expressamente a Lei 7.244/84, instituiu o Juizado Especial Cível no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, visto como o sucedâneo do Juizado Especial de Pequenas Causas, só que remodelado e com a competência ampliada e dividida em dois critérios: o do valor da causa e o atinente à matéria jurídica em dis-cussão (REINALDO FILHO, Demócrito Ramos. Juizados especiais cíveis. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 3). São da competência desses Juizados, segundo o art. 3º da Lei 9.099/95, as causas cíveis de menor complexidade ali indicadas (I as cau-sas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo; II as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil; III a ação de despejo para uso próprio; IV as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo).

De outro lado, o art. 3º, § 2º, da Lei 9.099/95 afasta da competência do Juizado Especial Cível as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimo-nial. O dispositivo visa a excluir causas que, apesar do pequeno valor, podem

Page 278: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

277

Ministro Teori Zavascki

se revestir de certa complexidade fática ou jurídica, o que não seria compatível com a natureza dos Juizados Especiais Cíveis (CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública: uma abor-dagem crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 27). Ademais, a norma regente afastou, em seu art. 8º, caput, a legitimidade, para ser parte, do incapaz, do preso, das pessoas jurídicas de direito público, das empresas públicas da União, da massa falida e do insolvente civil, reafirmando a simplicidade do pro-cedimento ao afastar sujeitos que, em razão de sua condição, pudessem obstar o andamento célere da demanda e a possibilidade de autocomposição da lide (CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da fazenda pública: uma abordagem crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 50-53). Cumpre registrar que outros Juizados Especiais, distintos dos previstos na Lei 9.099/95, foram criados posteriormente, especificamente para viabilizar o julgamento de causas envolvendo pessoas de direito público (Lei 10.259/2001, que criou os Juizados Especiais da Justiça Federal, e Lei 12.153/09, que criou os Juizados Especiais da Fazenda Pública dos Estados).

3. Bem se percebe, portanto, que as causas de competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais previstos na Lei 9.099/95 são, por sua natureza, fun-dadas em controvérsias decorrentes de relações de direito privado, revestidas de simplicidade fática e jurídica. Justamente por isso, o processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia proces-sual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação (art. 2º). É seguro afirmar que apenas excepcionalmente as causas processadas perante os Juizados Especiais Cíveis Estaduais encontram solução nos disposi-tivos da Constituição. E mesmo quando tangenciam matéria constitucional, são extremamente incomuns e improváveis as situações em que se pode visualizar a repercussão geral de que tratam o art. 102, § 3º, da Constituição, os arts. 543-A e 543-B do Código de Processo Civil e o art. 322 e ss. do Regimento Interno do STF, podendo-se presumir como raras e atípicas as situações com essas peculiaridades. Não obstante o elevado número de recursos extraordinários provenientes de causas julgadas segundo o regime da Lei 9.099/95, de 1997 até setembro de 2014, a repercussão geral foi reconhecida em apenas nove (9) casos, que dizem respeito a (a) expurgos inflacionários, (b) competência legislativa sobre relação de consumo, (c) responsabilidade civil de provedor de conteúdo na rede mundial de computadores e (d) aspectos processuais relativos ao fun-cionamento dos Juizados.

4. É certo que não se pode eliminar por completo a possibilidade de exis-tir, numa causa oriunda de Juizado Especial Cível da Lei 9.099/95, matéria cons-titucional dotada de repercussão geral. Isso, todavia, não abala a constatação de que a quase totalidade dos milhares de recursos extraordinários interpostos nessas causas não trata de matéria constitucional com qualificado significado

Page 279: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

278

Ministro Teori Zavascki

de repercussão geral a ensejar a manifestação do Supremo Tribunal Federal. Por isso mesmo se pode afirmar que, pela natureza desses Juizados Especiais, o requisito da repercussão geral supõe, em cada caso, demonstração hábil a rever-ter a natural essência das causas de sua competência, que é a de envolver rela-ções de direito privado de interesse particular e limitado às partes, revestidas de simplicidade fática e jurídica.

5. O caso dos autos é exemplo típico. Não há questão constitucional envolvida na controvérsia, a não ser por via reflexa e acessória. Toda a contro-vérsia, a rigor, envolve matéria de fato a respeito de um contrato de venda de laticínios firmado entre produtor rural e empresa. Por mais relevante e impor-tante que a causa possa ser e se supõe que o seja para as pessoas nela envolvidas, é indispensável para a funcionalidade e a racionalidade do sistema Judiciário, da sobrevivência dos Juizados Especiais e da preservação do papel constitucio-nal desta Suprema Corte que os atores do processo tenham consciência de que causas assim não poderiam ser objeto de recurso extraordinário.

6. Diante do exposto, manifesto-me pela inexistência de repercussão geral da questão suscitada.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 608.482 — RN

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Há, na situação aqui exami-nada, o confronto de duas ordens de valores, que, por incompatíveis entre si, devem ser sopesadas para que se defina qual delas merece prevalecer. De um lado, há o interesse individual da candidata em manter o cargo público que, embora obtido sem aprovação em concurso público regular, já estava sendo exercido, por força de liminar, há mais de sete anos à época do acórdão recor-rido. De outro lado, tracionando em sentido oposto, está o interesse público de dar cumprimento ao dispositivo constitucional segundo o qual “a investi-dura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público” (art. 37, II), dispositivo esse que, como se sabe, dá concretude a outros princípios da administração pública, especialmente o da impessoalidade, da moralidade e da eficiência. A quebra da exigência de concurso não deixa de representar, ainda, severo comprometimento do princípio da igualdade, em matéria de acesso aos cargos públicos.

2. Em casos dessa natureza, a jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal é a de dar prevalência à estrita observância das normas

Page 280: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

279

Ministro Teori Zavascki

constitucionais e ao interesse público. Nesse sentido, v.g. na 1ª Turma, em caso semelhante (no qual a recorrente estava há 7 (sete) anos na Polícia Militar gaúcha):

EMENTA: Concurso público. Anulação de questões de prova pelo Poder Judiciário. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Teoria do fato consu-mado. Inaplicabilidade. Precedentes. 1. Pacífica a jurisprudência desta Corte de que o Poder Judiciário não pode se substituir à banca examinadora do concurso público para aferir a correção das questões de prova e a elas atribuir a devida pontuação, consoante previsão editalícia. 2. Inadmissível, em recurso extraor-dinário, o reexame dos fatos e das provas dos autos. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. A jurisprudência deste Tribunal é no sentido da inaplicabilidade da teoria do fato consumado a casos nos quais se pleiteia a permanência em cargo público, cuja posse tenha ocorrido de forma precária, em razão de decisão judi-cial não definitiva. 4. Agravo regimental não provido (RE 405.964/RS, 1ª Turma, Min. Dias Toffoli, DJE de 16-5-2012).

Sustentou o Ministro Relator, em seu voto:

“A jurisprudência deste Tribunal tem se posicionado no sentido da ina-plicabilidade da teoria do fato consumado a casos em que, como o presente, se pleiteia a permanência em cargo público cuja posse tenha ocorrido de forma precária, em razão de decisão judicial não definitiva. Desse modo, é certo que o transcurso do tempo não poderia, por si só, como pretende o agravante, conva-lidar sua posse no cargo em comento.”

Também da 1ª Turma:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRU-MENTO. ADMINISTRATIVO. ASCENSÃO FUNCIONAL. 1. PROVIMENTO DE CARGO PÚBLICO POR CONCURSO INTERNO: IMPOSSIBILIDADE APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 2. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DO FATO CONSUMADO. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO (AI 794.852 AgR/MG, Min. CÁRMEN LÚCIA, DJE de 13-3-2011)

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRU-MENTO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. REQUISITO PREVISTO EM EDITAL. 1) ALEGAÇÃO DE CONTRARIEDADE AO ART. 5º, INC. LV E LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. 2) INAPLICABILIDADE DA TEORIA DO FATO CONSUMADO. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO (AI 813.739 AgR/RJ, Min. CÁRMEN LÚCIA, 1ª Turma, DJE de 1º-2-2011).

Salientou a Ministra Relatora, em seu voto, que:

“(...) a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido da inaplicabilidade da teoria do fato consumado a situações subjetivas referentes a concurso público.”

Page 281: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

280

Ministro Teori Zavascki

No mesmo sentido, na 2ª Turma, em caso em que o candidato já estava exercendo o cargo de sargento:

Ementa: RECURSO. Agravo de Instrumento. Exame de seleção. Curso de Sargento da Polícia Militar. Teste de avaliação física. Reprovação. Matrícula. Antecipação de tutela. Teoria do Fato Consumado. Inaplicabilidade. Reexame de fatos e provas. Aplicação da súmula 279. Agravo regimental improvido. Precedentes. Não se conhece de agravo de instrumento que tenha por objeto reexame de fatos e provas (AI 504.970 AgR/MG, 2ª Turma, Min. Cezar Peluso, DJE de 29-8-2012).

Também da 2ª Turma:

Ementa: Agravo de instrumento. Embargos de declaração recebidos como recurso de agravo. Concurso Público. Exame psicotécnico. Exigência de rigor científico. Necessidade de um grau mínimo de objetividade. Direito do candidato de conhecer os critérios norteadores da elaboração e das con-clusões resultantes dos testes psicológicos que lhe tenham sido desfavoráveis. Possibilidade de impugnação judicial de tais resultados. Princípio constitu-cional da inafastabilidade do controle jurisdicional dos atos da Administração Pública. Repercussão Geral da matéria que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu no julgamento do AI 758.533-QO- RG/MG. Reafirmação, quando da apreciação de mencionado recurso, da jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou no exame dessa controvérsia. Rejeição da teoria do fato consumado. PRECEDENTES (STF). Recurso de Agravo improvido (AI 504.987 ED/MG, 2ª Turma, Min. Celso de Mello, DJE de 1º-7-2011).

Afirmou o Ministro Relator em seu voto:

“Impõe-se ter presente, de outro lado, na linha de decisões emanadas desta Suprema Corte (RE 275.159/SC, Rel. Min. ELLEN GRACIE) que situações de fato, geradas pela concessão de provimentos judiciais de caráter meramente provisório, não podem revestir-se, ordinariamente, “tractu temporis”, de efi-cácia jurídica que lhes atribua sentido de definitividade, compatível, apenas, com decisões favoráveis revestidas da autoridade da coisa julgada. Esse enten-dimento tem prevalecido no magistério jurisprudencial que ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal firmaram no tema concernente à teoria do fato consumado (RTJ 176/263, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI — RTJ 177/220, Rel. Min. MOREIRA ALVES — RTJ 177/241, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA).

Outro precedente:

Ementa: ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONCURSO PÚBLICO. REEXAME DE FATOS E PROVAS E CLAUSÚLAS DO EDITAL. TEORIA DO FATO CONSUMADO. INAPLICABILIDADE. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO. 1. A análise do recurso extraordinário depende da interpretação do teor do edital do concurso público e do reexame dos fatos e das provas da causa. 2. A partici-pação em curso da Academia de Polícia Militar assegurada por força de anteci-pação de tutela, não é apta a caracterizar o direito líquido e certo à nomeação.

Page 282: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

281

Ministro Teori Zavascki

3. Esta Corte já rejeitou a chamada “teoria do fato consumado”. Precedentes: RE 120.893 AgR/SP e AI 586.800 ED/DF, dentre outros. 4. Agravo regimen-tal improvido (RE 476.783 AgR/SE, Min. ELLEN GRACIE, 2ª Turma, DJE de 21-11-2008)

Registrou o voto da Ministra Relatora, nesse julgado:

“Ou seja, se a recorrente participou das etapas seguintes do certame, chegando a cursar a Academia de Polícia Militar por força de antecipação de tutela, e não demonstrou a concessão definitiva a seu favor, não há que se invocar direito adquirido para proteger o ato.

Conforme assentei no julgamento pela Primeira Turma do RMS 23.692/DF, de que fui relatora, DJ de 16-11-2001, “a participação em segunda etapa de concurso público assegurada por força de liminar em que não se demonstra a concessão definitiva da segurança pleiteada, não é apta a caracterizar o direito líquido e certo à nomeação. No mesmo sentido, o RMS 24.551/DF, Segunda Turma, DJ de 24-10-2003.

Entendo, assim, que o direito adquirido e o decurso de tempo, no caso, não podem ser invocados porque, na linha de vários precedentes desta Corte, também rejeito a chamada “teoria do fato consumado”. Cito o AI 586.800 ED/DF, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, DJE de 17-8-2008, RE 462.909 AgR/GO, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJ de 12-5-2006, e o RE 120.893 AgR/SP, Primeira Turma, DJ de 11-12-1987, relatado pelo Min. Moreira Alves, cujo voto, na parte que interessa, tem o seguinte teor:

‘Não desconheço que esta Corte tem, vez por outra, admitido — por fundamento jurídico que não sei qual seja — a denominada “teoria do fato con-sumado”, desde que se trate de situação ilegal consolidada no tempo quando decorrente de deferimento de liminar em mandado de segurança.

Jamais compartilhei esse entendimento que leva a premiar quem não tem direito pelo fato tão só de um Juízo singular ou de um Tribunal retardar exage-rada e injustificadamente o julgamento definitivo de um mandado de segurança em que foi concedida liminar, medida provisória por natureza, ou de a demora, na desconstituição do ato administrativo praticado por força de liminar poste-riormente cassada, resultar de lentidão da máquina administrativa.’”

As inúmeras decisões monocráticas no mesmo sentido (v.g.: AI 856.711/RS, Rel. Min. ROSA WEBER, DJE de 28-11-2012; ARE 707.111/MG, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJE de 11-10-2012; RE 710.073/MG, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJE de 2-10-2012) evidenciam a solidez da jurisprudência do STF quanto ao tema.

Registro, ainda, que, ao julgar o RE 635.739, Rel. Min. GILMAR MENDES, o próprio Plenário, em sessão de 19-2-2014, com apenas dois votos vencidos, rea-firmou a jurisprudência das Turmas, afastando a possibilidade de “modulação de efeitos” fundada em alegado fato consumado.

3. É clara, portanto, a jurisprudência do STF a respeito dessa questão: sopesando os valores e interesses em conflito, faz preponderar, sobre o interesse individual do candidato, advogando a proteção da confiança legítima, o peso

Page 283: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

282

Ministro Teori Zavascki

maior do interesse público na manutenção dos elevados valores jurídicos que, de outra forma, ficariam sacrificados.

É realmente difícil, em face das disposições constitucionais que regem o acesso a cargos públicos, justificar a manutenção da situação pretendida pela recorrida. Não se trata, sequer, de considerar o argumento da boa-fé ou o princípio, a ela associado, da proteção da confiança legítima do administrado. Esse argumento é cabível quando, por ato de iniciativa da própria Administração, decorrente de equivocada interpretação da lei ou dos fatos, o servidor se vê alçado a determinada condição jurídica ou vê incorporada ao seu patrimônio funcional determinada vantagem, fazendo com que, por essas peculiares circunstâncias, provoque em seu íntimo uma natural e justificável convicção de que se trata de um status ou de uma vantagem legítima. Por isso mesmo, eventual superveniente constatação da ilegitimidade desse status ou dessa van-tagem caracteriza, certamente, comprometimento da boa-fé ou da confiança legítima provocada pelo primitivo ato da administração, o que pode autorizar, ainda que em nome do “fato consumado”, a manutenção do status quo, ou, pelo menos, a dispensa de restituição de valores. Isso ocorre, todavia, em casos res-tritos, marcados pela excepcionalidade.

É completamente diferente, entretanto, a situação dos autos, em que a vantagem obtida — ou seja, a nomeação e posse em cargo público — se deu, não por iniciativa da Administração, mas por provocação do próprio servidor e contra a vontade da Administração, que, embora manifestando permanente resistência no plano processual, outra alternativa não tinha senão a de cumprir a ordem judicial que deferiu o pedido. Ora, considerando o regime próprio da execução provisória das decisões judiciais — que, como se sabe, é fundada em títulos marcados pela precariedade e pela revogabilidade a qualquer tempo, operando, nesse último caso, por força de lei, automático retorno da situação jurídica ao status quo ante —, não faz sentido pretender invocar os princípios da segurança jurídica ou da proteção da confiança legítima nos atos administrati-vos. Pelo contrário: o que se deve considerar é que o beneficiário da medida judi-cial de natureza precária não desconhecia, porque isso decorre de lei expressa, a natureza provisória e revogável dessa espécie de provimento, cuja execução se dá sob sua inteira responsabilidade e cuja revogação acarreta automático efeito ex tunc, sem aptidão alguma, consequentemente, para conferir segurança ou estabilidade à situação jurídica a que se refere.

Com efeito, é decorrência natural do regime das medidas cautelares ante-cipatórias que a sua concessão se cumpra sob risco e responsabilidade de quem as requer, que a sua natureza é precária e que a sua revogação opera automáti-cos efeitos ex tunc. Em se tratando de mandado de segurança, há até mesmo súmula do STF a respeito (Súmula 405: “Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a

Page 284: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

283

Ministro Teori Zavascki

liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”. A matéria tem, atualmente, disciplina legal expressa, aplicável a todas as medidas antecipató-rias, sujeitas que estão ao mesmo regime da execução provisória (CPC, art. 273, § 3º). Isso significa que a elas se aplicam as normas do art. 475-O do Código: o seu cumprimento corre por conta e responsabilidade do requerente (inciso I), que, portanto, tem consciência dos riscos inerentes; e, se a decisão for revo-gada, “ficam sem efeito”, “restituindo-se as partes ao estado anterior” (inciso II). O mesmo ocorre em relação às medidas cautelares, cuja revogação impõe o retorno das partes ao status quo ante, ficando o requerente responsável pelos danos oriundos da indevida execução da medida (art. 811 do CPC).

A doutrina é uníssona a respeito, cumprindo referir, por todos, a lição didática de Humberto Theodoro Júnior:

“Não há dúvida que a Teoria do Risco, no campo da tutela cautelar, foi adotada pelo CPC e amplamente acatada pela doutrina, como melhor, mais justa e jurídica opção do legislador. Com efeito, tem-se a responsabilidade objetiva do art. 811 ‘como contrapartida do juízo provisório e superficial que justifica a concessão da cautelar... Quem pleiteia em juízo, valendo-se apenas dos aspectos da probabilidade, há que indenizar a parte contrária sempre que esta, em um melhor exame, demonstrar a sua razão. É o risco e sua assunção andando lado a lado’.

Não se trata, em síntese, de sancionar a má-fé, mas apenas de cobrar do promovente da medida cautelar o prejuízo acarretado ao requerido, visto que tudo se passou sob o pálio de um juízo provisório e superficial próprio da tutela emergencial prestada por conta e risco da parte que, afinal, veio a decair de sua pretensão.

(...)Pontes de Miranda já vislumbrava, mesmo antes da criação do instituto

genérico da antecipação de tutela, a aplicabilidade da responsabilidade objetiva fundada no art. 588, CPC (atual art. 475-O), a toda e qualquer execução provisó-ria fundada em “outros títulos que a sentença”.

Daí se poder concluir que todos os atos executivos provisórios admitidos e tutelados pelo direito processual sujeitam o promovente à responsabilidade objetiva, sejam elas medidas cautelares (art. 811), medidas de antecipação de tutela (art. 273) ou medidas promovidas no processo de execução provisória de sentença (art. 475-O).

As medidas de antecipação de tutela hão de receber igual tratamento das medidas cautelares não só porque pertencem ao mesmo gênero das medi-das cautelares — tutela provisória de urgência — como porque o legislador, ao regulá-las, fez expressa referência ao antigo art. 588, submetendo-as ao disposto nos incisos I e II do citado dispositivo legal.

O inciso III do art. 588 estabelecia, expressamente, a responsabilidade civil do exequente (de sentença não definitiva ou de medida de antecipação de tutela) pela restituição do requerido ao status quo ante, caso sobreviesse acórdão que modificasse ou anulasse a sentença que fora objeto de execução.

(…)

Page 285: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

284

Ministro Teori Zavascki

Não se indagava de má-fé, dolo ou culpa, grave ou leve. Bastava que a parte tivesse assumido o risco de promover em seu favor a execução de medida judicial provisória, despida de segurança e definitividade. O regime do art. 588 foi mantido pelo atual 475-O.

Já afirmava Pontes de Miranda, com respaldo em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que “o exequente, na execução provisória, assume o risco de não ser vencedor na via recursal. A volta ao status quo ante por vezes acarreta indenização de danos, inclusive morais. Não se indaga se houve dolo, ou culpa. O ato de executar provisoriamente entra no mundo jurídico como ato-fato lícito, que dá causa à reparação, por se ter de repor o status quo ante’”.

(…)As medidas de antecipação de tutela acham-se vinculadas à cláusula legal

de reversibilidade. Proíbe a lei a concessão de qualquer antecipação de tutela que crie simplesmente o perigo da irreversibilidade (CPC, art. 273, § 2º). E para assegurar a reversibilidade, no caso de insucesso da parte autora no julgamento final da causa, é claro que o sucumbente deverá responder, amplamente, pela reposição das coisas no seu status quo ante. Isto se dará, independentemente de apuração de culpa ou dolo, porque se trata de emanação natural do sistema da lei, que assegura à parte a plena utilidade e completa efetividade dos resultados do processo.

Se, pois, a antecipação se dá sob a garantia legal de reversibilidade, e se a reversão terá de ser feita com a restituição das partes ao estado anterior, forçosa-mente a recomposição patrimonial do prejudicado só poderá correr por conta de quem promoveu a execução de medida substancialmente provisória.

Por fim, impende concluir que se a responsabilidade objetiva, nesse qua-dro, é a solução imposta pela lei para as medidas cautelares e para a execução provisória de sentença, com igual intensidade terá de ser observada também nas antecipações de tutela, dada a substancial identidade de razões que as jus-tificam no plano normativo. Medida cautelar (conservativa) e medida ante-cipatória (satisfativa) são espécies distintas de um mesmo gênero — a tutela de urgência — porque ambas têm em comum a força de quebrar a seqüência normal do procedimento ordinário, ensejando, sumariamente, provimentos que, em regra, só seriam cabíveis depois do acertamento definitivo do direito da parte”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil — Processo de Execução e Cumprimento da Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. 45. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 715-719).

Especificamente sobre o tema aqui examinado, calha a doutrina de Leonardo José Carneiro da Cunha:

A antecipação de tutela acarreta a imediata execução ou efetivação da medida, consistindo, em verdade, numa execução provisória. Significa que o regime da execução provisória é aplicável à efetivação da tutela antecipada, pondo-se em evidência a regra do inciso II do art. 475-O do CPC: revogada, modificada ou anulada a decisão antecipatória, fica sem efeito a tutela anteci-pada, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos por arbitramento.

Daí por que deferida tutela antecipada para determinar, por exemplo, a manutenção de um candidato num concurso público, a posterior revogação, anulação ou cassação da medida antecipatória impõe a restituição ao estado

Page 286: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

285

Ministro Teori Zavascki

anterior: o candidato deve ser considerado eliminado do certame, não se apli-cando a teoria do fato consumado (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 6. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 248-250).

O que se quer realçar, com essa digressão sobre a natureza dos provi-mentos cautelares e da execução provisória das sentenças, é que não há suporte lógico ou teleológico para, em relação aos efeitos de sua efetivação, pretender evitar o retorno ao status quo ante invocando o princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança legítima.

4. Se nem esses princípios podem, aqui, ser contrapostos aos que orien-tam o sistema constitucional de acesso aos cargos públicos, o que resta como fundamento para sustentar a conclusão do acórdão recorrido é, apenas, o inte-resse individual de manter o cargo. Ora, esse interesse da recorrida não tem aptidão para justificar o desatendimento do superior interesse público no cum-primento das normas constitucionais. Aliás, a esse interesse individual se opõe, desde logo e com manifesta supremacia, até mesmo outro interesse particular de mesma natureza, daquele candidato que, tendo se submetido e obtido aprovação no concurso, foi, no entanto, alijado do cargo, que acabou ocupado por outro concorrente sem observância das exigências constitucionais.

5. Ante o exposto, e sem prejuízo de assegurar à recorrida os vencimentos e vantagens percebidos até a data desse julgamento, dou provimento ao recurso extraordinário, para julgar improcedente o pedido.

É o voto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 587.371 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Conforme registrado no rela-tório, a controvérsia aqui estabelecida foi considerada, em decisão do plenário virtual, como de natureza constitucional e com repercussão geral. Embora a configuração ou não de direito adquirido constitua, em geral, matéria de dis-ciplina infraconstitucional, predominou o entendimento de que assume carac-terísticas constitucionais a discussão relacionada ao sentido e aos limites da própria cláusula da Constituição que estabelece a garantia, como é caso, em que se questiona a respeito de estar constitucionalmente assegurado ou não o direito à manutenção de regime jurídico. No particular, não são poucos os precedentes do Supremo Tribunal Federal que reconhecem presente, sob essa perspectiva,

Page 287: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

286

Ministro Teori Zavascki

uma questão suscetível de exame em recurso extraordinário. Assim, reafir-mando a decisão do plenário virtual, é de se conhecer do recurso.

2. Inúmeras vezes o STF afirmou que não há direito adquirido a regime jurídico, negando procedência a pedidos como o formulado na presente demanda. É exemplo o acórdão proferido no AI 410.946 AgR (Plenário, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJE de 7-5-2010), tratando de matéria idêntica à aqui em exame, em que a votação majoritária foi justamente nessa linha. Eis o que consta do voto da Ministra relatora:

2. Verifico que este Supremo Tribunal, em diversas oportunidades, deci-diu não haver direito adquirido a regime jurídico, confirmando, dessa forma, a constitucionalidade da matéria tratada no presente recurso extraordinário. Nesse sentido: RE 177.072, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, unânime, DJ de 5-4-2002; RE 244.610, rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 29-6-2001; RE 211.903 AgR, redator para o acórdão Min. Celso de Mello, 2ª Turma, por maioria, DJ de 28-4-2000; RE 293.606, rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, unânime, DJ de 14-11-2003; RE 526.878 AgR, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, unânime, DJE de 1º-10-2009; RE 408.291 AgR, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, unânime, DJE de 19-2-2009; RE 446.767 AgR, rel. Min. Carlos Britto, 1ª Turma, unânime, DJ de 3-3-2006; AI 685.866 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, unânime, DJE de 21-5-2009; RE 550.650 AgR, rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, unânime, DJE de 26-6-2008; RE 438.481, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, unânime, DJE de 10-4-2008; e AI 609.997 AgR, rel. Min. Cezar Peluso, 2ª Turma, unânime, DJE de 12-3-2009.

Ao julgar o recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o ora agravado faz jus aos quintos incorporados aos vencimentos antes de seu ingresso na magistratura, por concluir que tal vantagem é de caráter pessoal e, dessa forma, não pode ser suprimida, sob pena de ofensa ao direito adquirido. Eis o teor da ementa do aresto recorrido:

“M A N DA DO DE SEGU R A NÇA — DE SEM BA RGA DOR . INCORPORAÇÃO DE QUINTOS. Se os quintos já foram incorporados aos proventos do impetrante quando membro do Ministério Público, não pode tal parcela ser negada em razão da nomeação para a magistratura, pois trata-se de vantagem pessoal, cuja supressão implica em ofensa ao instituto do direito adquirido. Recurso provido.” (Fl. 223).

Tal entendimento diverge da orientação deste Supremo Tribunal no sen-tido de que não há direito adquirido a regime jurídico.

No acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região ficou consignado que (fl. 65) o recorrido “foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça, em vaga destinada pela Constituição Federal (art. 94 c/c art. 104, II) a membro do Ministério Público, eis que pertencia aos quadros do Ministério Público Federal, onde ocupava o cargo de Subprocurador-Geral da República”.

Dessa forma, o agravado, ao ingressar no Superior Tribunal de Justiça, passou a ser regido por novo regime jurídico, diverso ao da carreira do Ministério Público. Verifica- se que a Lei Orgânica da Magistratura — LOMAN (LC 35/1979) não prevê essa vantagem, não existindo direito adquirido do recorrido de manter vantagem que lhe foi concedida antes do seu ingresso na magistratura.

Page 288: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

287

Ministro Teori Zavascki

No mesmo sentido, o Ministro GILMAR MENDES registrou em seu voto a “inexistência de direito adquirido do recorrido no que diz respeito à manuten-ção, como vantagem remuneratória, dos ‘quintos̀ incorporados à sua remunera-ção quando membro do Ministério Público”.

O Ministro RICARDO LEWANDOWSKI também acompanhou o voto da Relatora, porque considerou ser a jurisprudência da Corte pacificada com relação à “inexistência de direito adquirido a regime jurídico”.

3. Há, todavia, um outro fundamento, complementar e inteiramente compatível com o antes indicado, que, independentemente do argumento da exaustividade ou não das vantagens previstas na LC 35/79 (LOMAN), é por si só suficiente para negar a existência do suposto direito de usufruir, no exercício de certo cargo público — da magistratura ou não — de vantagem incorporada a vencimentos percebidos em outro cargo, de natureza ou de carreira diversa, submetido a outro regime jurídico.

Com efeito, é certo que a Constituição assegura ao titular de direito adqui-rido a garantia de sua preservação, inclusive em face de lei nova, garantia essa que inclui a faculdade de exercê-lo no devido tempo. Mas não é menos certo que os direitos subjetivos, assim adquiridos, somente podem ser exercidos nos ter-mos em que foram formados e segundo a estrutura que lhes conferiu o regime jurídico no âmbito do qual se desenvolveu a relação jurídica correspondente, com seus sujeitos ativo e passivo, com as mútuas obrigações e prestações devidas.

É no âmbito desse regime, e somente nele, e perante o sujeito que tem o dever jurídico de prestar, que o titular do direito adquirido estará habilitado a exigir a corresponde prestação. Não se pode considerar legítimo, por exemplo, que um servidor estadual, que tenha incorporado aos seus vencimentos deter-minadas vantagens como integrante de uma determinada carreira (v.g., oficial de justiça), possa, em nome do direito assim adquirido, exigir que tais vantagens continuem sendo pagas no âmbito de uma nova relação funcional, em outra carreira (v.g., procurador do Estado), ou que venha a manter com outra entidade (um Município ou a União ou, mesmo, uma pessoa de direito privado); ou que direitos adquiridos no âmbito de relações privadas, possam ser exigidas de outra pessoa, pública ou privada; ou que direitos adquiridos numa relação funcional com a União venham a ser exercidos no âmbito de outra relação funcional de natureza diversa, ou em carreira distinta, ou em face de outra pessoa jurídica de direito público. Os exemplos podem ser multiplicados, todos ilustrando o que antes se afirmou: os direitos adquiridos somente podem ser legitimamente exercidos nos termos em que foram formados, segundo a estrutura que lhes conferiu o correspondente regime jurídico no âmbito do qual foram adquiridos e em face de quem tem o dever jurídico de entregar a prestação. Tais direitos não estão revestidos da qualidade que os demandantes pretendem lhes dar, ou seja,

Page 289: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

288

Ministro Teori Zavascki

de uma espécie de portabilidade que permite exercê-los fora da relação jurídica donde se originaram, ainda mais quando tal relação já não mais subsiste e, por-tanto, já não há qualquer dever de contraprestação por parte do servidor.

No caso, as vantagens que se pretende acrescentar aos vencimentos de magistrado referem-se a “quintos” ou “décimos” devidos aos recorridos quando servidores administrativos do quadro Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, a saber: Jayder Ramos de Araújo, nas funções de Operador de Terminal e diretor de Secretaria (fls. 22); Luciana Pessoa Ramos: Oficial de Gabinete (fls. 31); Ticiano Vogado Rodrigues Júnior: Oficial de Gabinete (fls. 40). Tais relações funcionais já não mais existem. Não há dever de contraprestação pelos servidores, hoje exonerados. Não faz sentido algum, portanto, afirmar a sobrevivência apenas de uma certa parcela remuneratória dessa relação jurídica desfeita.

4. Por outro lado, considerando a vedação constitucional de acumulação remunerada de cargos públicos, não se pode imaginar legítima, nem mesmo perante um mesmo ente jurídico, a acumulação, num dos cargos, de vantagem somente devida pelo exercício do outro. A vedação de acumular certamente se estende tanto aos deveres do cargo (= de prestar seus serviços) como principal-mente aos direitos (de obter as vantagens remuneratórias).

Não há base constitucional — muito ao contrário, há vedação expressa — para pretender apenas a acumulação da remuneração. Não existe direito de formar um regime híbrido, de caráter pessoal e inteiramente individual, que represente a acumulação, num deles, de vantagem própria e exclusiva do outro. Em várias oportunidades, apreciando situações análogas, o STF rejeitou pre-tensões da espécie, como, v.g., no RE 278.718-3⁄SP (Plenário, Min. MOREIRA ALVES, DJ de 14-6-2002), no qual foi afastada revisão de benefício previdenciá-rio por se “pretender beneficiar-se de um sistema híbrido que conjugue os aspec-tos mais favoráveis de cada uma dessas legislações”. No mesmo sentido, mutatis mutandis, foi decidido no MS 20.593-8 (Min. CARLOS MADEIRA, DJ de 17-6-1988, RTJ 126⁄562), no RE 81.268 (Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, de RTJ 75⁄949) e no RE 103.991 (Min. RAFAEL MAYER, DJ de 10-5-1985, RTJ 113⁄1336), todos afirmando a ilegitimidade de pretensões de estabelecer regimes híbridos, ainda que formados pela reunião de direitos adquiridos.

Em suma, a garantia de preservação do direito adquirido, prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, assegura ao seu titular, como é natu-ral, também a faculdade de exercê-lo. Mas de exercê-lo nas condições e sob a configuração com que o direito foi formado e foi adquirido. Ela não serve para sustentar a criação e o exercício de um direito de tertium genus, composto das vantagens de dois regimes diferentes, cujo exercício cumulativo não tem qual-quer amparo na lei ou na Constituição.

Page 290: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

289

Ministro Teori Zavascki

5. No caso, a pretensão deduzida é exatamente essa: de acumular, no cargo de magistrado, vantagem própria de outro cargo, formando assim um regime híbrido, de caráter individual, mediante a acumulação de vantagens remuneratórias dos dois, o que a Constituição veda expressamente. O direito adquirido à incorporação dos “quintos”, que não se nega, deve ser exercido nos termos em que foi formado e sob o regime jurídico em que foi adquirido. Não se mostra viável, constitucionalmente, a pretensão aqui deduzida de pinçar tal direito e isolá-lo da sua relação jurídica original, a fim de transferir o seu exer-cício, de modo separado, para o âmbito de outra relação estatutária, cuja acu-mulação é proibida.

6. O voto, por isso, é pelo provimento parcial do recurso, nos mesmos limites adotados pelo Tribunal no julgamento de caso análogo (AI 410.946, já referido), cuja conclusão foi a dar provimento parcial “para considerar:

“1) a inexistência de direito adquirido do ora agravado em continuar recebendo os quintos incorporados, após a mudança de regime jurídico;

2) preservados, no entanto, os valores da incorporação já percebidos pelo recorrido, em respeito ao princípio da boa-fé, na linha dos precedentes da Segunda Turma no RE 122.202, Min. Francisco Rezek, unânime, DJ de 8-4-1994; no RE 341.732 AgR, rel. Min. Carlos Velloso, unânime, DJ de 1º-7-2005, citados pelo Min. Gilmar Mendes; e ainda com apoio em julgado mais recente deste Plenário no MS 26.085, rel. Min. Cármen Lúcia, unânime, DJE de 13-6-2008.”

É o voto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 405.386 — RJ

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Redator do acórdão): 1. Trata-se de recur-sos extraordinários interpostos pelos demandados em ação civil pública movida pelo Ministério Público visando a anular a Lei Municipal 825/86, do Município de Porciúncula (RJ), que concedeu a viúva de ex-Prefeito falecido no exercício do mandato pensão vitalícia correspondente a 30% dos proventos que percebia o falecido. Pede-se na ação, também, a condenação de restituir os valores pagos. São demandados e ora recorrentes o Prefeito que sancionou a lei, os vereadores que votaram pela sua aprovação e a viúva beneficiada. O pedido foi julgado pro-cedente, ao fundamento de que a referida lei não tem natureza de norma geral e abstrata, tendo criado um privilégio sem base legal, daí porque se trata de um ato “imoral”. Os recursos extraordinários vêm fundados na alegada ofensa à Constituição, especificamente ao art. 5º, XXXVI (“A lei não prejudicará o

Page 291: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

290

Ministro Teori Zavascki

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”), ao art. 29, VIII (“O Município reger-se-á por lei orgânica (...) atendidos (...) os seguintes preceitos: VIII – inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exer-cício do mandato e na circunscrição do Município”), ao art. 102, I, a (“Compete ao Supremo Tribunal Federal (...) I – processar e julgar originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”) e ao art. 129, III (“São funções institucionais do Ministério Público: (...) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”). Em sessão de 20-6-2006, a relatora, Min. Ellen Gracie, conheceu em parte os recursos e negou-lhes provimento, por razões assim enunciadas, em sua essência:

“(...)2. Para melhor compreensão da pretensão que circunscreve a presente

demanda, recordo que sua propositura visa obter a declaração de nulidade da Lei municipal 825/86, que conferiu pensão vitalícia à viúva de ex-prefeito em valor correspondente a 30% da última remuneração do falecido, juntamente com o ressarcimento ao erário dos valores indevidamente recebidos pela viúva há mais de 10 anos. No pólo passivo da relação processual foram incluídos a municipalidade, a viúva, o prefeito que sancionou a lei e os 9 (nove) vereado-res que a aprovaram. O juízo de primeiro grau condenou todos (à exceção do município), solidariamente, a restituírem os valores indevidamente recebidos pela esposa do de cujus ao erário, sentença essa que foi confirmada pelo acórdão desafiado (...). (fl. 417)

3. De imediato, verifico que o apontado diploma municipal, malgrado sua forma de lei, é ato destituído de qualquer coeficiente de abstração, generali-dade e impessoalidade, características essas que, na concepção de Hans Kelsen (Teoria Geral das Normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Safe, 1986. p.11), tipificam os atos normativos:

(...)4. A impessoalidade, a generalidade e a abstração evidenciam-se, em sua

acepção tradicional, como elementos materiais qualitativos que devem integrar as normas jurídicas, conferindo-lhes um atributo de igualdade, fundamento de nosso ordenamento jurídico. Na hipótese dos autos, em que uma lei municipal é inserida no ordenamento jurídico local com o fim único de favorecer uma pes-soa específica, viúva de ex-prefeito, tem-se, a toda evidência, uma arbitrariedade emanada daquele Poder Legislativo municipal.

(...)5. Notadamente carecedor dos predicados essenciais capazes de tipificá-

-lo como lei, o ato estatal em exame revela-se mero ato administrativo autoriza-tivo emanado do Poder Legislativo municipal e, nessa condição, subjuga-se aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, determinados no caput do art. 37 da Constituição Federal.

Nesse sentido, a instituição de pensão vitalícia à viúva de ex-prefeito, como bem salientado no acórdão recorrido (fls. 194/195), representa um pri-vilégio que agride frontalmente os valores jurídicos contidos no art. 37 da Constituição Federal, notadamente os princípios da impessoalidade e da

Page 292: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

291

Ministro Teori Zavascki

moralidade administrativa, esta qualificada, no caso dos autos, pela manifesta lesividade ao erário municipal, impondo-se a condenação prevista no art. 3º da Lei 7.347/85.

6. Por fim, não há que se falar em violação a prerrogativa dos vereado-res à imunidade parlamentar em sentido material por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município (inc. VIII do art. 29 da Constituição Federal), porquanto evidenciada nos autos a expedição de mero ato administrativo autorizativo e não, como pretendem os recorrentes, de norma jurídica resultante do exercício das atividades inerentes ao mandato parlamentar, estas compreendidas como as atividades de representação, fiscali-zação e legislação.

Preserva-se, com isso, a garantia da imunidade parlamentar assegurada constitucionalmente aos vereadores no plano do direito penal e do civil, por representar uma proteção destinada a tutelar, no exercício do mandato, os mem-bros do Poder Legislativo dos municípios por eventuais crimes contra a honra a eles imputados. Nesse sentido, AI 488.891, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 8-10-2004; ADI 371, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 23-4-2004; RE 354.987, rel. Min. Moreira Alves, DJ de 5-2-2003; RE 210.917, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, unânime, DJ de 18-6-2001; e HC 74.201, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 13-12-1996, do qual destaco o seguinte excerto:

(...)A imunidade parlamentar material — ao consagrar a inviolabilidade dos

Vereadores por palavras, opiniões e votos proferidos no exercício do mandato legislativo e no âmbito restrito da circunscrição territorial do Município ao qual se vinculam funcionalmente — criou uma situação de descaracterização típica concernente aos delitos de opinião e aos crimes contra a honra.

(...)Enfatizo, nesse julgado, o alcance normativo outorgado à garantia cons-

titucional da inviolabilidade prevista no inc. VIII do art. 29 da Constituição Federal, porquanto os vereadores não dispõem da prerrogativa concernente à imunidade parlamentar em sentido formal, podendo sofrer persecução penal por delitos outros (que não sejam crimes contra a honra), independentemente de prévia licença da Câmara Municipal a que se acham organicamente vinculados.

7. Ante o exposto, conheço parcialmente dos recursos para negar-lhes provimento.”

Seguiram-se debates sobre as peculiaridades do caso, tendo pedido vista o Ministro Eros Grau, que trouxe o caso a julgamento na sessão de 29-9-2009 com voto pelo provimento, por razões assim deduzidas:

“(...)3. O voto da relatora toma a lei em questão como ato administrativo, logo

sujeito aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publi-cidade e da eficiência, positivados no art. 37 da Constituição do Brasil.

4. A Lei municipal n. 825/86 efetivamente consubstancia uma lei--medida. Aqui há um ato concreto. O que no direito alemão é conhecido como Massnahmegesetz. Lei apenas em sentido formal, lei que não é norma jurídica dotada de generalidade e abstração. Lei que não constitui preceito primário, no sentido de que se impõe por força própria, autônoma. Algo análogo ao que a Constituição do Brasil prevê no seu art. 37, XIX e XX, ato administrativo

Page 293: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

292

Ministro Teori Zavascki

especial. Daí a afirmar-se violação, no caso, do princípio da moralidade vai uma larga distância.

5. Deveras, o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no interior do próprio direito, até porque a sua contemplação não pode conduzir à substi-tuição da ética da legalidade por qualquer outra. Vale dizer, não significa uma abertura do sistema jurídico para a introdução, nele, de preceitos morais. O que importa assinalar, ao considerarmos a função do direito positivo, o direito posto pelo Estado, é que este o põe de modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume a sociedade civil, conferindo concomitantemente a ela a forma que a constitui. Nessa medida, o sistema jurídico tem de recusar a invasão de si próprio por regras estranhas a sua eticidade própria, advindas das várias con-cepções morais ou religiosas presentes na sociedade civil, ainda que isto não sig-nifique o sacrifício de valorações éticas. Ocorre que a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade. E não pode ser outra, senão esta, de modo que a afirmação, pela Constituição e pela legislação infraconstitucional, do princípio da morali-dade o situa, necessariamente, no âmbito desta ética, ética da legalidade, que não pode ser ultrapassado, sob pena de dissolução do próprio sistema.

6. Isto posto, compreenderemos facilmente esteja confinado, o questio-namento da moralidade da Administração, nos lindes do desvio de poder ou de finalidade. Qualquer questionamento para além desses limites estará sendo pos-tulado no quadro da legalidade pura e simples. Essa circunstância é que explica e justifica a menção, a um e a outro princípios, na Constituição e na legislação infraconstitucional. Permitam-me que eu insista neste ponto: a moralidade da Administração somente pode ser concebida por referência à legalidade.

7. Deu-se, no caso, que um Prefeito municipal faleceu no curso de seu mandato. Daí a questão: a concessão, a sua viúva, de pensão vitalícia equivalente a trinta por cento dos vencimentos de Prefeito consubstancia desvio de poder ou de finalidade ? Penso que não. De sorte que peço vênia à eminente relatora para discordar afirmação de que, no caso, “uma lei municipal é inserida no ordena-mento jurídico local com o fim único de favorecer uma pessoa específica, viúva de ex-prefeito”, o que consubstanciaria “uma arbitrariedade”. Haveria aqui, aliás, uma contradição: ou bem se aceita a existência, no caso, de lei em sentido formal, lei inserida no ordenamento jurídico local — o que faz incidir o preceito veiculado pelo art. 29, VIII sobre a hipótese — ou cuide-se de tomar a concessão da pensão de que se trata absolutamente como ato administrativo, em todos os sentidos.

8. Imprescindível observar, desde logo, ser descabida a sujeição da lei municipal de que se cuida à incidência do disposto no artigo 37 da Constituição de 1.988. Pois a lei municipal n. 825 é de 1.986! Esse artigo 37 não retroage para colhê-la. A respeito exatamente deste ponto, veja-se o RE 186.389, Relator o Ministro Sydney Sanches: Sendo as Leis instituidoras do benefício anteriores à Constituição Federal de 05.10.1988, não é de ser acolhida a alegação de que violaram o caput de seu artigo 37, no ponto em que determina a observância do princípio da moralidade.

9. Outrossim, esta Corte já se manifestou pela constitucionalidade das chamadas pensões especiais ao apreciar, entre outros, o RE 121.840, Relator o Ministro Francisco Rezek e o RE 77.453, Relator o Ministro Thompson Flores.

10. Além de tudo não visualizo nas condutas de integração do pro-cesso legislativo — aviso aos desatentos: o processo legislativo é integrado pelo Legislativo e pelo Executivo; em outros termos, quem faz as leis no Brasil é o

Page 294: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

293

Ministro Teori Zavascki

Executivo e o Legislativo — não visualizo nas condutas de integração do pro-cesso legislativo desvio de poder ou de finalidade, menos ainda uma arbitrarie-dade legislativa . Aliás, o que seria uma arbitrariedade legislativa? Luís S. Cabral de Moncada , citado pela eminente relatora, toma-a como a vontade pura e simples — expressão de uma vontade, sem mais — que se manifesta [s]empre que o legislador legisla sem bases materiais de apoio na Constituição, embora se admita que elas possam extremamente vago e impreciso, como se vê. Algo que se traduz, simplesmente, no princípio da constitucionalidade, como reconhece o próprio Luís S. Cabral de Moncada. Pois não visualizo nas condutas considera-das, de integração do processo legislativo, arbitrariedade ser relativamente inde-terminadas e carecendo de interpretação. Algo nenhuma. A lei municipal de que se trata não é expressão da vontade pura e simples, sem mais, do Legislativo local, encontrando, sim, base material de apoio na Constituição. A concessão de pensão vitalícia à viúva de certo Prefeito municipal, falecido no curso de seu mandato, em princípio não afronta o mencionado princípio da constitucionali-dade. Dizendo-o de modo direto: não afronta a Constituição.

11. Digo mais: a concessão de pensões especiais em situações análo-gas à examinada nestes autos é corriqueira, sem que jamais essa prática tenha sido concebida como expressiva de arbitrariedade ou de desvio de poder ou de finalidade.

12. Começo por esta Corte. No decreto 1.439, de 14 de dezembro de 1.905, o Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, Francisco de Paula Rodrigues Alves, sancionando-a, faz saber que o Congresso Nacional decre-tou resolução que concede a pensão anual de 1:800$ a D. Theodora Álvares de Azevedo Macedo Soares, viúva do Dr. Antonio Joaquim de Macedo Soares, ex--juiz do Supremo Tribunal Federal. Não vejo arbitrariedade alguma na conces-são dessa pensão. Ou diria alguém que ela expressa a vontade pura e simples do Congresso Nacional, não consubstanciando senão a expressão de uma vontade, sem mais?

13. Há milhares de exemplos a serem referidos. O da pensão em julho de 1.870 atribuída pelo Congresso norte-americano a Mary Tood Lincoln viúva de Abraham Lincoln, no montante de US$ 3,000 por ano, é antológico. Entre nós, é extremamente expressivo o decreto-lei n. 5.060, de 9 de dezembro de 1.942, concedendo pensão vitalícia a D. Maria Augusta, viúva de Ruy Barbosa, que não possui recursos bastantes para viver e nem pode exercer qualquer atividade que lhe garanta a subsistência. Arbitrariedade em nome de Ruy?

14. Dizendo-o sucintamente: a Lei n. 7.705/88 concede pensão espe-cial a Jacira Braga de Oliveira, Rosa Braga e Belchior Beltrão Zica, trinetos de Tiradentes; a Lei n. 6.038/74 concede pensão especial à filha de Delmiro Gouveia; a Lei n. 5.806/72 concede pensão especial à viúva de Arthur de Souza Costa; a Lei n. 5.667/71 concede pensão especial a Mozart Camargo Guarnieri; a Lei n. 4.812/65 concede pensão vitalícia à filha solteira de Aarão Reis; a Lei n. 3.684/59 concede pensão especial à viúva e aos filhos de Bernardo Saião Carvalho Araújo; o Decreto n. 2.554/12 concede pensão à viúva de David Campista, repartidamente com suas quatro filhas; o Decreto n. 1.447 con-cede pensão, repartidamente, às filhas solteiras e aos filhos menores de Cesário Alvim. Poderia prosseguir indefinidamente a registrar outros exemplos, pois eles existem às pencas. Retenho-me não apenas para não maçar a Corte, como também para evitar que alguém lembre um trecho de Saramago, afirmando que é preciso ser-se Deus para gostar de tanto sangue...

Page 295: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

294

Ministro Teori Zavascki

15. A Lei municipal n. 825/86, de Porciúncula, não afronta o princípio da constitucionalidade, vale dizer, não afronta a Constituição. Encontra base mate-rial de apoio na Constituição: por tudo, no artigo 3º, I.

16. Resta a ser considerada a questão da imunidade parlamentar dos vereadores “por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município”. A eminente relatora afirma que dela não se pode-ria no caso cogitar “porquanto evidenciada nos autos a expedição de mero ato administrativo autorizativo [sic] e não, como pretendem os recorrentes, de norma jurídica resultante do exercício das atividades inerentes ao mandato par-lamentar, estas compreendidas como as atividades de representação, fiscalização e legislação”. Neste passo peço novamente vênia para discordar.

17. A Lei municipal n. 825/86, embora materialmente consubstancie um ato administrativo, é, formalmente, uma lei. É lei em sentido formal. Incide, sim, no caso, o art. 29, VIII da Constituição do Brasil. Que é lei em sentido formal, isso se diz na afirmação de que, no caso, “uma lei municipal é inserida no ordenamento jurídico local com o fim único de favorecer uma pessoa espe-cífica, viúva de ex-prefeito”, o que consubstanciaria “uma arbitrariedade”. De resto não se pode sustentar a um tempo só que no caso se trata de lei e de ato administrativo.

18. A imunidade parlamentar dos vereadores “por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município” abrangeria exclusivamente a responsabilização penal e civil do vereador por supostas práti-cas de calúnia, difamação ou injúrias? Vale dizer, estaria limitada à proteção de opiniões, palavras e votos do vereador no contexto dos delitos contra a honra?

19. O artigo 29 da Constituição do Brasil diz que o Município reger-se--á por lei orgânica, atendidos os princípios nela e na Constituição do respectivo Estado estabelecidos e determinados preceitos. Entre esses, no inciso VIII, o da “inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exer-cício do mandato e na circunscrição do Município”. Não vejo como possa um vereador praticar algum delito contra a honra ao votar alguma deliberação na Câmara Municipal. Poderá cometê-lo por palavras, inclusive ao manifestar alguma opinião, mas não ao votar. Não consigo conceber delito de opinião ou delito de voto algum relacionado a delito contra a honra. Além disso, a aprova-ção de um projeto de lei — e ainda que se trate de lei somente em sentido for-mal — é decisão de um colegiado.

20. Evidentemente raciocino no quadro da normalidade. A admitir-se, no plano do absurdo, que um arremedo de lei afirmasse que fulano é ladrão, então teríamos um delito contra a honra. Mas um texto como tal não poderia ser tido como ato compatível e adequado ao exercício do mandato que o preceito constitucional protege sob o manto da inviolabilidade. O que se há de afirmar, destarte, é o sentido político da inviolabilidade dos Vereadores por seus votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município. O que se não admite é o comprometimento da liberdade política do titular de mandato. Especialmente se a lei em sentido formal encontra base material de apoio constitucional, como no caso se dá, a inviolabilidade dos Vereadores por seus votos afasta a responsa-bilização indenizatória solidária, com imposição da devolução ao erário público do recebido. De mais a mais, como observei inicialmente, a imputação de imo-ralidade e lesividade à lei em sentido formal é, no caso, descabida.

Conheço e dou provimento aos recursos”.

Page 296: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

295

Ministro Teori Zavascki

Em seguida, pediu vista o Ministro Cezar Peluso, a quem sucedi.2. O acórdão recorrido deu acentuada ênfase à circunstância de que a lei

questionada não tem caráter geral e abstrato, mas de mero ato administrativo individual, dando a entender que isso, por si só, seria fundamento suficiente para sua nulificação. Tal entendimento não pode, a toda evidência, ser acolhido. Não há dúvida de que a lei municipal que concedeu a pensão vitalícia não se reveste de normatividade geral, mas não há empecilho constitucional algum a que sejam editadas leis de efeitos concretos ou mesmo individualizados. Há situações em que somente a lei em sentido formal é o instrumento apto a dispor sobre certas matérias. Por isso mesmo, são corriqueiras as leis dessa natureza, inclusive dispondo sobre pensões especiais, como bem demonstrou em seu voto o Ministro Eros Grau. Assim, cumpre, desde logo, afastar o argumento da nuli-dade formal da lei pelo só fato de dispor sobre situação concreta.

3. Resta saber se a lei municipal em causa é, em sua substância, passível de anulação, em face do princípio da moralidade. Embora se trate de lei anterior à Constituição de 1988, a discussão se travou a partir de referências a dispositivos da nova Carta, especialmente porque o princípio da moralidade, implicitamente previsto no regime constitucional anterior, foi intimamente associado, aqui, ao princípio da isonomia, comum a todas as Constituições.

Não há dúvida de que a lei deu tratamento privilegiado — e, portanto, anti-isonômico — a certa pessoa, mas também isso, por si só, não pode ser con-siderado “imoral”. Para tanto, seria indispensável demonstrar que o tratamento discriminatório não tem qualquer motivo razoável. O que a Constituição proíbe não é, propriamente, o tratamento privilegiado, mas a concessão de privilégios injustificados e injustificáveis. Um mínimo de investigação a respeito das causas que determinaram o tratamento privilegiado seria, portanto, indispensável à declaração de nulidade por “imoralidade”. Convém enfatizar — e aqui pedimos licença para invocar o que registramos em sede doutrinária (Processo coletivo — tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 5. ed. SP: RT, 2011. p. 82 e seguintes) — que a moralidade, tal como erigida na Constituição - como prin-cípio da Administração Pública (art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos (art. 5º, LXXIII) —, não é, simplesmente, um puro produto do jusnaturalismo, ou da ética, ou da moral, ou da religião. É o sistema de direito, o ordenamento jurídico e, sobretudo, o ordenamento jurídico-constitucional a sua fonte por excelência, e é nela que se devem buscar a substância e o sig-nificado do referido princípio. É certo que os valores humanos, que inspiram o ordenamento jurídico e a ele subjazem, constituem, em muitos casos, inega-velmente, a concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade. Sob esse aspecto, há, sem dúvida, vasos comunicantes entre o mundo da normatividade jurídica e o mundo normativo não jurídico (natural, ético,

Page 297: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

296

Ministro Teori Zavascki

moral), razão pela qual esse último, tendo servido como fonte primária do surgimento daquele, constitui também um importante instrumento para a sua compreensão e interpretação. É por isso mesmo que o enunciado do princípio da moralidade administrativa — que, repita-se, tem natureza essencialmente jurídica — está associado à gama de virtudes e valores de natureza moral e ética: honestidade, lealdade, boa-fé, bons costumes, equidade, justiça. São valores e virtudes que dizem respeito à pessoa do agente administrativo, a evidenciar que os vícios do ato administrativo por ofensa à moralidade são derivados de causas subjetivas, relacionadas com a intimidade de quem o edita: as suas intenções, os seus interesses, a sua vontade. Ato administrativo moralmente viciado é, por-tanto, um ato contaminado por uma forma especial de ilegalidade: a ilegalidade qualificada por elemento subjetivo da conduta do agente que o pratica. Estará atendido o princípio da moralidade administrativa quando a força interior e subjetiva que impulsiona o agente à prática do ato guardar adequada relação de compatibilidade com os interesses públicos a que deve visar a atividade admi-nistrativa. Se, entretanto, essa relação de compatibilidade for rompida — por exemplo, quando o agente, ao contrário do que se deve razoavelmente esperar do bom administrador, for desonesto em suas intenções, for desleal para com a Administração Pública, agir de má-fé para com o administrado, substituir os interesses da sociedade pelos seus interesses pessoais —, estará concretizada ofensa à moralidade administrativa, causa suficiente de nulidade do ato. A que-bra da moralidade caracteriza-se, portanto, pela desarmonia entre a expressão formal (= a aparência) do ato e a sua expressão real (= a sua substância), criada e derivada de impulsos subjetivos viciados quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação administrativa. É por isso que o desvio de finalidade e o abuso de poder (vícios originados da estrutura subjetiva do agente) são consi-derados defeitos tipicamente relacionados com a violação à moralidade. Pode-se afirmar, em suma, que a lesão ao princípio da moralidade administrativa é, rigo-rosamente, uma lesão a valores e princípios incorporados ao ordenamento jurí-dico, constituindo, portanto, uma injuridicidade, uma ilegalidade lato sensu. Todavia, é uma ilegalidade qualificada pela gravidade do vício que contamina a causa e a finalidade do ato, derivado da ilícita conduta subjetiva do agente.

O registro dessas premissas é importante para reafirmar a indispensabi-lidade da investigação do elemento subjetivo da conduta dos agentes públicos como condição inafastável para caracterizar a violação ao princípio da morali-dade administrativa e, com base nele, anular o ato.

Ora, no caso, tanto a petição inicial, quanto os atos decisórios das ins-tâncias ordinárias, se limitaram a considerar “imoral” a lei por ter conferido tratamento privilegiado a uma pessoa, sem, contudo, fazer juízo algum, por mínimo que fosse, sobre a razoabilidade ou não, em face das circunstâncias de fato e de direito, da concessão do privilégio. A se considerar imoral a lei, pelo só

Page 298: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

297

Ministro Teori Zavascki

tratamento privilegiado a certos destinatários, certamente seriam inconstitucio-nais, apenas para citar um exemplo, todas as leis que estabelecem isenções fiscais.

4. Com maior razão se justifica a indispensabilidade de juízo sobre o elemento subjetivo da conduta, para fins de atribuir responsabilidade civil, no caso dos demandados que exerciam o cargo de vereador, investidos, constitu-cionalmente, da proteção de imunidade material (= inviolabilidade) pelos votos proferidos no exercício do mandato (art. 29, VIII). Se é certo que tal imunidade, inclusive para efeitos civis, se aplica até mesmo em caso de cometimento de crime, não se há de afastá-la em casos como o da espécie, que de crime não se trata e em que sequer a intenção dolosa é aventada.

5. Finalmente, embora se trate de lei apenas em sentido formal, sem densidade normativa geral e abstrata, é preciso ter presente que o ato aqui questionado não deixa de ser uma lei, submetida ao correspondente processo legislativo próprio, com aprovação da Câmara de Vereadores e a sanção do Prefeito Municipal. Mesmo que se leve em consideração a jurisprudência domi-nante no STF — no sentido de que a ação direta de inconstitucionalidade, pela sua natureza de processo objetivo de controle abstrato e que produz sentença com eficácia erga omnes não se presta a investigar a legitimidade de leis de efeitos exclusivamente concretos e individuais, que, por isso mesmo, só podem ter natureza de processo subjetivo (v.g.: ADI 842 MC, Min. Celso de Mello, DJ de 14-5-1993) — mesmo assim não se poderá afastar o exame incidental da sua constitucionalidade, se for o caso. E é o caso. A validade da lei está sendo questionada em processo de natureza subjetiva, com pretensões anulatórias e indenizatória, cujo pressuposto de procedência é justamente a incompatibili-dade dessa lei com a Constituição. Não há razão alguma para, em tais casos, afastar simplesmente o princípio da reserva de plenário imposto pelo art. 97 da CF, como aqui se afastou.

6. Com essas razões complementares, adiro ao voto divergente do Ministro Eros Grau, para dar provimento aos recursos. É o voto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 669.069 — MG

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. A contrário do que sustentam as contrarrazões, a questão constitucional aqui colocada não envolve contro-vérsia sobre matéria de fato. Tanto a sentença quanto o acórdão recorrido se limitaram a fazer juízo sobre prescrição, no plano exclusivamente normativo.

Page 299: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

298

Ministro Teori Zavascki

Afasta-se, portanto, a preliminar de não conhecimento suscitada com base na Súmula 279/STF.

2. No mérito, está em causa controvérsia jurídica a respeito do sentido e do alcance do disposto na parte final do art. 37, § 5º, da Constituição Federal, do seguinte teor:

Art. 37. (…)§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por

qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.

Essa ressalva final do texto normativo deu margem à instalação de um impasse dogmático a seu respeito. Uma das linhas de entendimento é essa sugerida pelo recurso, que, fundado em interpretação literal, atribui à ressalva constitucional a consequência de tornar imprescritível toda e qualquer ação de ressarcimento movida pelo erário, desde que o dano reclamado decorra de algum ilícito, independentemente da natureza dessa ilicitude. Ocorre, todavia, que ilícito, em sentido amplo, é “tudo quanto a lei não permite que se faça, ou é praticado contra o direito, a justiça, os bons costumes, a moral social ou a ordem pública e suscetível de sanção” (NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. 12. ed. Livraria Freitas Bastos. p. 478). Para configuração do ilícito, nesse sentido amplo, “o que se exige, a todos, além do ato (e às vezes da culpa), é a contrariedade à lei”, explica Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado. SP: RT, 1974. t. II. p. 207). Ora, se fosse nesse amplíssimo sentido o conceito de ilícito anunciado no § 5º do art. 37 da CF, estaria sob a proteção da imprescritibilidade toda e qualquer ação ressarcitória movida pelo Erário, mesmo as fundadas em ilícitos civis que sequer decorrem de dolo ou culpa. A própria execução fiscal seria imprescritível, eis que a não satisfação de tributos ou de outras obrigações fiscais, principais ou acessórias, certamente repre-senta um comportamento contrário ao direito (ilícito, portanto) e causador de dano. Essa visão tão estremada certamente não se mostra compatível com uma interpretação sistemática do ordenamento constitucional. Mesmo o domínio jurídico específico do art. 37 da Constituição, que trata dos princípios da admi-nistração pública, conduz a uma interpretação mais restrita. É o que procu-ramos demonstrar em voto proferido em julgamento perante o STJ, tratando do prazo prescricional das ações civis públicas, no qual, a propósito da norma constitucional aqui em questão, observamos o seguinte:

“A questão prescricional, aqui, é particularmente relevante em face do que estabelece o § 5º do art. 37 da Constituição Federal, segundo o qual “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. Bem se vê que o Constituinte, ao atribuir ao legislador ordi-nário a incumbência de estabelecer prazos prescricionais para ilícitos praticados

Page 300: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

299

Ministro Teori Zavascki

por agentes administrativos, prescreveu uma ressalva, que não pode ser igno-rada e cujo conteúdo e sentido devem ser desvendados pelo intérprete. Para isso, deve-se considerar que, em nosso direito, a prescritibilidade é a regra. É ela fator importante para a segurança e estabilidade das relações jurídicas e da convivên-cia social. São raríssimas as hipóteses de imprescritibilidade. Nas palavras de Pontes de Miranda, “a prescrição, em princípio, atinge a todas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, que de direitos reais, privados ou públi-cos. A imprescritibilidade é excepcional” (MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo VI, 4ª ed., RT, 1974, § 667, p. 127). É assim no próprio texto constitucional. A Constituição, que em várias passagens faz referência ao insti-tuto da prescrição (além do art. 37, § 5º, o art. 53, § 5º e o art. 146, III, b), enumera explicitamente as hipóteses de imprescritibilidade: art. 5º, incisos XLII e XLIV.

Se a prescritibilidade das ações e pretensões é a regra — pode-se até dizer, o princípio —, a imprescritibilidade é a exceção, e, por isso mesmo, a norma que a contempla deve ser interpretada restritivamente. Nessa linha de entendimento, merece interpretação restritiva a excepcional hipótese de imprescritibilidade prevista no citado § 5º do art. 37 da Constituição Federal. O alcance desse dis-positivo deve ser buscado mediante a sua associação com o do parágrafo ante-rior, que trata das sanções por ato de improbidade administrativa. Ambos estão se referindo a um mesmo conjunto de bens e valores jurídicos, que são os da preservação da idoneidade da gestão pública e da penalização dos agentes admi-nistrativos ímprobos. Assim, ao ressalvar da prescritibilidade “as respectivas ações de ressarcimento”, o dispositivo constitucional certamente está se refe-rindo, não a qualquer ação, mas apenas às que busquem ressarcir danos decor-rentes de atos de improbidade administrativa de que trata o § 4º do mesmo art. 37. Interpretação que não seja a estrita levaria a resultados incompatíveis com o sistema, como seria o de considerar imprescritíveis ações de ressarcimento fundadas em danos causados por seus agentes por simples atos culposos” (REsp 764.278, 1ª Turma, DJE de 25-5-2008).

Pode-se agregar entre as ações de ressarcimento imprescritíveis, sem ofensa a esse entendimento estrito, as que têm por objeto danos decorrentes de ilícitos penais praticados contra a administração pública, até porque tal espécie de ilícito é, teoricamente, mais grave que o de improbidade administrativa. É o que foi preconizado pelo Min. Cezar Peluso no julgamento do MS 26.210, rela-tado pelo Min. Ricardo Lewandowski, DJE de 10-10-2008, no qual, aderindo ao voto do Relator, acrescentou o seguinte:

“A matéria envolve tema constitucional, que diz com o art. 37 da Constituição Federal. Concordo integralmente com todas as demais pondera-ções e argumentos do eminente Relator, mas gostaria de fazer uma ressalva em relação à interpretação do art. 37, § 5º.

Esta norma estabelece claramente uma exceção — eu diria, exceção mar-cante — em relação a princípio jurídico universal: o princípio de limitação do prazo de exercício de todas as pretensões, porque é este requisito de segurança jurídica. Há larga discussão em doutrina sobre as ações declaratórias, para saber se seriam ou não imprescritíveis, mas a regra geral, como princípio universal, formulado em benefício da paz social e da segurança jurídica, é que todas as pretensões estão sujeitas à prescrição, e alguns direitos, sujeitos à decadência.

Page 301: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

300

Ministro Teori Zavascki

Então, em se tratando de exceção a uma regra de tão amplo alcance, teria de ser interpretada, já desse ponto de vista, estritamente.

Em segundo lugar, o que me parece claro dessa regra — com o devido respeito — é que se trata de uma exceção à previsão de prescrição para ilícitos, ou seja, há aqui segunda exceção, normativa, uma exceção de segundo grau, que é de abrir ressalva à prescritibilidade em relação aos ilícitos praticados por qual-quer agente, que, seja servidor ou não, cause prejuízo ao Erário.

Isso significa, no meu entender, que em primeiro lugar, a hipótese excep-cional não é de qualquer ilícito, sobretudo não é de ilícito civil. Aliás, o próprio Tribunal de Contas da União, ao prestar informações, invoca acertada doutrina que, provavelmente citada nos seus acórdãos, diz o seguinte:

A Constituição Federal colocou fora do campo de normatização da Lei o prazo prescricional da ação de ressarcimento referente a prejuízos causados ao erário, só podendo a lei estabelecer o prazo prescricional para os ilícitos, como tal podendo-se entender os crimes.

Noutras palavras, as ações relativas a crimes são prescritíveis, não, porém, as respectivas ações de ressarcimento. Respectivas do quê? Dos crimes, isto é, as ações tendentes a reparar os prejuízos oriundos da prática de crime danoso ao Erário. Este o sentido lógico do adjetivo respectivos. Não se trata, portanto, de qualquer ação de ressarcimento, senão apenas das ações de ressar-cimento de danos oriundos de ilícitos de caráter criminal. Aí se entende, então, o caráter excepcional da regra da imprescritibilidade. Por quê? Porque é caso do ilícito mais grave na ordem jurídica. E a Constituição, por razões soberanas, entendeu que, nesse caso, cuidando-se de delitos, no sentido criminal da pala-vra, as respectivas ações de ressarcimento não prescrevem, conquanto prescre-vam as demais ações nascidas do ilícito penal.”

3. Em suma, não há dúvidas de que o fragmento final do § 5º do art. 37 da Constituição veicula, sob a forma da imprescritibilidade, uma ordem de bloqueio destinada a conter eventuais iniciativas legislativas displicentes com o patrimônio público. Esse sentido deve ser preservado. Todavia, não é adequado embutir na norma de imprescritibilidade um alcance ilimitado, ou limitado apenas pelo (a) conteúdo material da pretensão a ser exercida — o ressarci-mento — ou (b) pela causa remota que deu origem ao desfalque no erário — um ato ilícito em sentido amplo. O que se mostra mais consentâneo com o sistema de direito, inclusive o constitucional, que consagra a prescritibilidade como princípio, é atribuir um sentido estrito aos ilícitos de que trata o § 5º do art. 37 da Constituição Federal, afirmando como tese de repercussão geral a de que a imprescritibilidade a que se refere o mencionado dispositivo diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais.

4. Estabelecida a tese, cumpre concluir o julgamento do caso con-creto. No particular, a inicial veicula uma ação de ressarcimento instaurada pela União em face de uma empresa de transporte rodoviário e de um motorista a ela vinculado, tendo por fundamento a alegada responsabilidade civil dos indi-cados por acidente automobilístico ocorrido no ano de 20 de outubro de 1997

Page 302: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

301

Ministro Teori Zavascki

na rodovia MG 862. A propositura da ação data de 21 de setembro de 2008, quando transcorridos mais de 11 anos do evento danoso, razão pela qual foi ela extinta pelo juiz sentenciante, em decisão secundada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que afirmou estar a causa submetida ao prazo de prescri-ção quinquenal.

A pretensão de ressarcimento, bem se vê, está fundamentada em suposto ilícito civil que, embora tenha causado prejuízo material ao patrimônio público, não revela conduta revestida de grau de reprovabilidade mais pronunciado, nem se mostra especialmente atentatória aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública. Por essa razão, não cabe submeter a demanda à regra excepcional de imprescritibilidade, pelas razões antes asseveradas. Deve ser aplicado, aqui, o prazo prescricional comum para as ações de indenização por responsabilidade civil em que a Fazenda figure como autora.

Ao tempo do fato que deu causa à ação — o acidente automobilístico, ocorrido em 20 de outubro de 1997 — estava em vigor o Código Civil de 1916, cuja regra do art. 177 fixava em vinte anos o prazo de prescrição das ações pes-soais, dentre elas as de responsabilidade civil. Todavia, com a vigência do atual Código Civil, em 1º de janeiro de 2003, incidiu a norma de transição do seu art. 2.028, que, a contrario sensu, preconizou a imediata incidência dos prazos prescricionais reduzidos pela nova lei nas hipóteses em que ainda não houvesse transcorrido mais da metade do tempo estabelecido no diploma revogado.

É exatamente o que se tem na espécie. Assim, até 31 de dezembro de 2002, estava a demanda em questão submetida ao prazo prescricional vintenário, ficando, a partir de 1º de janeiro de 2003, imediatamente sujeita às regras prescricionais da nova codificação, que, segundo o art. 206, § 3º, V, é de três anos em matéria de reparação civil. Como a presente ação foi ajuizada pela União apenas em 2008, isto é, quando ultrapassado o derradeiro marco para a deflagração da medida judicial (1º/1/2006), deve ser reconhecida a prescrição do direito de exercê-la.

5. Ante o exposto, nego provimento ao recurso extraordinário, mantendo a conclusão do acórdão recorrido, embora com fundamentação diversa, e pro-ponho a fixação de tese segundo a qual a imprescritibilidade a que se refere o art. 37, § 5º, da CF diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de atos praticados por qualquer agente, servidor ou não, tipificados como ilícitos de improbidade administrativa ou como ilícitos penais. É o voto.

Page 303: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

302

Ministro Teori Zavascki

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 803.462 — MS

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. A controvérsia foi relatada pela decisão agravada nos seguintes termos:

1. Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário interposto em ação declaratória. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região deci-diu, em suma, que (a) “ainda que os índios tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível direito de postular sua restituição, desde que ela decorra de tradicional (antiga, imemorial) ocupação” (fl. 2824); (b) “a perícia encon-trou elementos materiais e imateriais que caracterizam a área como de ocupa-ção Terena, desde período anterior ao requerimento/titulação dessas terras por particulares” (fl. 2830- verso); (c) inaplicável a Súmula 650/STF ao caso, visto que “não consta que a área objeto desta ação seja área de extinto aldeamento indígena, ou seja, não consta tenham os indígenas deixado de ocupá-la algum dia, por vontade própria e em passado remoto, ali retornando após o decurso de tempo suficiente para justificar o título de domínio defendido pelo autor nestes autos” (fl. 2831); (d) “restando comprovado, nos autos, o renitente esbulho pra-ticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na PET 3388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal” (fl. 2832).

No recurso extraordinário, a parte recorrente aponta, com base no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, violação ao art. 231 da CF/88, pois, (a) segundo a firme jurisprudência do STF, para que seja considerada tradicional, a posse indígena deve ser verificada na data em que promulgada a Carta Magna; (b) não houve esbulho renitente por parte do recorrente, visto que a convi-vência com os índios Terena foi pacífica desde 1950 até 1996, quando iniciado o processo de demarcação da Aldeia Limão Verde; (c) o Tribunal de origem concluiu pela existência de “eventual prática de esbulho” apenas com base em três reclamações genéricas elaboradas pelos índios Terena em 1982, 1984 e 1989, nenhuma das quais se referia diretamente à Fazenda Santa Bárbara.

Em contrarrazões, os recorridos postulam, preliminarmente, o não conhecimento do recurso, em razão da (a) ausência de prequestionamento; (b) fundamentação deficiente; (c) ofensa constitucional reflexa; (d) não demonstra-ção da repercussão geral da matéria; (e) necessidade de reexame probatório. No mérito, pedem o desprovimento do recurso.

A Procuradoria-Geral da República opinou pelo desprovimento do agravo, ao entendimento de que o provimento do recurso extraordinário demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 279/STF.

2. A decisão agravada enfatizou a presença do óbice da Súmula 279/STF a impedir o conhecimento do recurso extraordinário. Todavia, as razões de agravo e, sobretudo, os aprofundados votos proferidos no julgamento, nesta Turma, em 16-9-2014, do RMS 29.087, em que ficou designado o Ministro Gilmar Mendes para redigir o acórdão, conduzem a uma conclusão diferente

Page 304: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

303

Ministro Teori Zavascki

quanto a esse ponto. Realmente, sem necessidade de invocação de outros fatos que não os expressamente indicados no acórdão recorrido, é possível formular um juízo seguro a respeito do tema constitucional posto no recurso extraordi-nário. Assim, superado esse óbice e considerada a relevância da matéria, trago a questão desde logo à consideração do Colegiado.

3. Ao julgar a Pet 3.388 (Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJE de 1º-7-2010), o Plenário desta Corte assentou que o art. 231, § 1º, da CF/88 estabeleceu, como marco temporal para reconhecimento à demarcação como de natureza indígena de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, a data da promulgação da Carta Constitucional, ou seja, 5 de outubro de 1988. Assim, não se incluem nesse o conceito de terras indígenas aquelas ocupadas por eles no passado e nem as que venham a ser ocupadas no futuro. Confira-se:

I — o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outu-bro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradi-cionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermi-náveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada na Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine. (…)

Ressalvou-se, é certo, que não descaracterizaria a tradicionalidade da posse nativa eventual situação de “esbulho renitente” cometido por não índios. Veja-se:

(…) Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via admi-nistrativa quanto jurisdicional. (…)

Page 305: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

304

Ministro Teori Zavascki

4. Ora, no caso, tanto o voto vencedor, quanto o voto vencido do acórdão recorrido permitem concluir que a última ocupação indígena na área objeto da presente demanda (Fazenda Santa Bárbara), deixou de existir desde, pelo menos, o ano de 1953, data em que os últimos índios teriam sido expulsos da região. Portanto, é certo que não havia ocupação indígena em outubro de 1988.

Argumenta, porém, o voto vencedor, que, “ainda que os índios tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível direito de postular sua res-tituição, desde que ela decorra de tradicional (antiga, imemorial) ocupação” (fls. 2824). Esse entendimento, todavia, não se mostra compatível com a juris-prudência do Supremo Tribunal Federal, que, conforme já afirmado, é pacífica no sentido de que o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram ocupadas pelos nativos no passado. Nesse sentido é a própria Súmula 650/STF: “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Foi também nesse sentido o recente julgado da Segunda Turma em caso análogo ao presente, acima referido, em que foi reafirmado o marco temporal fixado na Pet 3.388:

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicio-nalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Constituição Federal (5-10-1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios (RE 219.983, DJ de 17-9-1999; Pet. 3.388, DJE d e 24-9-2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comu-nidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segu-rança. (RMS 29.087, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJE de 14-10-2014)

Nesse aresto, a controvérsia foi decidida pelo Min. Gilmar Mendes nos seguintes termos:

Após precisa análise, verifico que o relatório de identificação e delimita-ção da terra indígena Guyraroká, elaborado pela FUNAI, indica que a popula-ção Kaiowá residiu na terra reivindicada até o início da década de 1940 e que, “a

Page 306: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

305

Ministro Teori Zavascki

partir dessa época, as pressões dos fazendeiros que começam a comprar as terras na região tornaram inviável a permanência de índios no local” (fl. 26).

Nos termos do laudo, que deu base à edição da Portaria 3.219, objeto da presente demanda:

“Os Kaiowá só deixaram a terra devido às pressões que recebe-ram dos colonizadores que conseguiram os primeiros títulos de terras na região. A ocupação da terra pelas fazendas desarticulou a vida comunitá-ria dos Kaiowá, mas mesmo assim muitas famílias lograram permanecer no local, trabalhando como peões para os fazendeiros. Essa estratégia de permanência na terra foi praticada até início da década de 1980, quando as últimas famílias foram obrigadas a deixar o local.” (fl. 30). Vê-se, pois, que o laudo da FUNAI indica que há mais de setenta anos

não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena. O acórdão do Superior Tribunal de Justiça reitera que “a comunidade

Kaiowá encontra-se na área a ser demarcada desde os anos de 1750-1760, tendo sido desapossados de suas terras nos anos 40 por pressão dos fazendeiros”, mas que alguns permaneceram na região “trabalhando nas fazendas, cultivando cos-tumes dos seus ancestrais e mantendo laços com a terra”. Nos termos da decisão do STJ, esse fato seria suficiente para legitimar a demarcação pretendida.

Se esse critério pudesse ser adotado, muito provavelmente teríamos de aceitar a demarcação de terras nas áreas onde estão situados os antigos aldea-mentos indígenas em grandes cidades do Brasil, especialmente na região Norte e na Amazônia.

Diferente desse entendimento, a configuração de terras “tradicional-mente ocupadas” pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe:‘os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.’.

No RE 219.983, precedente dessa Súmula, o Min. Nelson Jobim destacou, em relação ao reconhecimento de terras indígenas, que:

“Há um dado fático necessário: estarem os índios na posse da área. É um dado efetivo em que se leva em conta o conceito objetivo de haver a posse. É preciso deixar claro, também, que a palavra ‘tradicio-nalmente’ não é posse imemorial, é a forma de possuir; não é a posse no sentido da comunidade branca, mas, sim, da comunidade indígena. Quer dizer, o conceito de posse é o conceito tradicional indígena, mas há um requisito fático e histórico da atualidade dessa posse, possuída de forma tradicional.” (RE 219.983, julg. em 9-12-1998). Mesmo preceito foi seguido no julgamento do caso Raposa Serra do Sol,

em 19 de março de 2009. Na Pet. 3.388, o Supremo Tribunal Federal estipulou uma série de fundamentos e salvaguardas institucionais relativos à demarcação de terras indígenas. Trata-se de orientações não apenas direcionados a esse caso específico, mas a todos os processos sobre mesmo tema.

Importante foi a reafirmação de marcos do processo demarcatório, a começar pelo marco temporal da ocupação. O objetivo principal dessa delimita-ção foi procurar dar fim a disputas infindáveis sobre terras, entre índios e fazen-deiros, muitas das quais, como sabemos, bastante violentas.

Deixou-se claro, portanto, que o referencial insubstituível para o reco-nhecimento aos índios dos “direitos sobre as terras que tradicionalmente

Page 307: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

306

Ministro Teori Zavascki

ocupam”, é a data da promulgação da Constituição Federal, isto é, 5 de outubro de 1988.

(…)Em complemento ao marco temporal, há o marco da tradicionalidade da

ocupação. Não basta que a ocupação fundiária seja coincidente com o dia e o ano da promulgação, é preciso haver um tipo “qualificadamente tradicional de per-durabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios.” (voto Min. Ayres Britto, Pet. 3.388).

Nota-se, com isso, que o segundo marco é complementar ao primeiro. Apenas se a terra estiver sendo ocupada por índios na data da promulgação da Constituição Federal é que se verifica a segunda questão, ou seja, a efetiva relação dos índios com a terra que ocupam. Ao contrário, se os índios não esti-verem ocupando as terras em 5 de outubro de 1988, não é necessário aferir-se o segundo marco.

A decisão impugnada pelo presente recurso ordinário chegou a mencio-nar a Pet 3.388 e, inclusive, transcreveu trechos relativos à definição dos marcos temporal e tradicional, nela delimitados. Realizou, contudo, equivocada inter-pretação da jurisprudência desta Casa.

Como visto, há mais de setenta anos não existe comunidade indígena na região reivindicada. Isto é, em 5 de outubro de 1988, marco objetivo insubstituí-vel para o reconhecimento aos índios dos “direitos sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam”, essas terras não eram habitadas por comunidade indígena há quase meio século!

O marco temporal relaciona-se com a existência da comunidade e a efe-tiva e formal ocupação fundiária. Caso contrário, em nada adiantaria o estabe-lecimento de tais limites, que não serviriam para evitar a ocorrência de conflitos fundiários. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, repita-se, não com-preende a palavra “tradicionalmente” como posse imemorial.

Esse entendimento, como se vê, infirma a orientação da corrente ven-cedora do acórdão recorrido, que, ante o mero fato de os índios Terena terem ocupado a Fazenda Santa Bárbara no passado, considerou legítima a demar-cação daquela área como terra indígena, não obstante a inexistência de efetiva ocupação em 1988.

5. Restaria, como fundamento de legitimação de ato demarcatório, ave-riguar a existência do que, no julgamento da Pet 3.388, se denominou de “esbulho renitente”. O voto vencedor do julgado atacado considerou presente a ocorrência desse esbulho nos seguintes termos:

Na hipótese, restou incontroverso que, à época da promulgação da Constituição Federal de 1988, os índios da etnia Terena não estavam na posse da área reivindicada, posteriormente demarcada e homologada pelo Decreto Presidencial.

Importa saber, portanto, se dela foram os índios desalojados em virtude de renitente esbulho praticado por não índios. Acerca desta questão, o laudo pericial explica exatamente como os silvícolas foram desalojados do local onde viviam. (fl.1100):

Page 308: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

307

Ministro Teori Zavascki

“Como indicamos nos itens 2.1 e 2.2, e depois nos itens 4.1 e 4.2 deste laudo, o processo de colonização da região da bacia do Aquidauana se intensifica especialmente depois do término da Guerra do Paraguai. Na região em questão, existiam diversos aldeamentos indígenas, como Ipegue na planície e o Piranhinha nos morros, como são registrados nos documentos já citados, pelo menos desde 1865-66. A partir de 1892 inicia-se um processo de colonização conduzido por um grupo de coro-néis (apesar de que antes da aquisição de terras por esse grupo, já exis-tiam posseiros na região, como é o caso de João Dias Cordeiro) por meio da constituição vila de Aquidauana e de propriedades rurais e urbanas. Pelos documentos localizados, a partir de 1895 em diante inicia-se um processo de titulação em terras localizadas entre o Córrego João Dias, o Morro do Amparo e o Aquidauana que se choca com as terras de ocu-pação indígena em diversos pontos. Isso caracteriza um choque entre o poder local e a economia agropecuária e a sociedade Terena. Esse choque de interesses sobre as terras e os recursos ambientais está registrado nos diversos documentos analisados e citados no laudo, e resultará na titula-ção das terras para o município em 1928 e depois na criação da Colônia XV de Agosto em 1959, incidentes na área depois identificada como indí-gena. Assim, consolida-se o processo ocupação nos territórios em ques-tão. Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu ocupação indígena (no sentido de uso para habitação) até o ano de 1953, quando em meio ao processo de demarcação houve a expulsão dos índios da área, mas a ocupação (como uso de recursos naturais e ambien-tais) permanece até os dias de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra.” (grifei). Além disso, o MM. Juiz sentenciante constatou na inspeção judicial que,

a partir do ano de 1953, os índios, não por vontade própria, ficaram impedidos de utilizar as terras da área litigiosa. Confira-se o seguinte trecho da r. sentença:

“Por ocasião da inspeção que realizei na área em litígio consta-tei que a Fazenda Santa Bárbara tem divisa bem definida com as terras indígenas. Além da divisa natural, representada pelo paredão da Serra de Amambaí, tornando difícil o acesso entre as glebas, existem cercas em todo o perímetro da fazenda. Essas cercas remontam à época que antece-deu a passagem do agrimensor Camilo Boni (1953).” - (fls. 2417) Diante disso, restando comprovado, nos autos, o renitente esbulho pra-

ticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na PET 3388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal.

Ademais, não vislumbro como afastar as conclusões do laudo oficial, considerando que nem mesmo os argumentos que foram deduzidos pelo assis-tente técnico do autor conseguiram desconstituir a conclusão a que chegou o perito judicial, de reconhecida idoneidade e competência. (fl. 2831/2832)

O que se tem nessa argumentação, bem se percebe, é a constatação de que, no passado, as terras questionadas foram efetivamente ocupadas pelos índios, fato que é indiscutível. Todavia, renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessó-rio que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório

Page 309: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

308

Ministro Teori Zavascki

temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.

Também não pode servir como comprovação de “esbulho renitente” a sustentação desenvolvida no voto vista proferido no julgamento do acórdão recorrido, no sentido de que os índios Terena pleitearam junto a órgãos públi-cos, desde o começo do Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propó-sito, (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o reque-rimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbu-lho possessório atual. Nesse aspecto, cumpre registrar o que atestou o voto ven-cido do aresto impugnado:

Desde a desocupação na década de 1950, o grupo tribal Terenas não rei-vindica direta ou indiretamente a área. A tolerância que se sucedeu ao esbulho praticado pelos membros da sociedade nacional comprometeu o liame entre a fazenda e os usos, costumes, tradições da comunidade e originou uma situação fática que veio a ser legitimada pela Constituição Federal de 1988 (fl. 2914)

Dessa forma, sendo incontroverso que as últimas ocupações indígenas na Fazenda Santa Bárbara ocorreram em 1953 e não se constatando, nas décadas seguintes, situação de disputa possessória, fática ou judicializada, ou de outra espécie de inconformismo que pudesse caracterizar a presença de não índios como efetivo “esbulho renitente”, a conclusão que se impõe é a de que o indis-pensável requisito do marco temporal da ocupação indígena, fixado por esta Corte no julgamento da Pet 3.388 não foi cumprido no presente caso.

6. Diante do exposto, dou provimento ao agravo regimental e conheço do agravo para dar provimento ao recurso extraordinário, julgando procedente o pedido. Ficam invertidos os ônus de sucumbência. É o voto.

Page 310: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

309

Ministro Teori Zavascki

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.650 — DF

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Teori Zavascki: 1. Trata-se de ação direta de inconstitu-cionalidade proposta pelo Conselho Federal da OAB contra dispositivos das Leis 9.096/95 e 9.504/97 que dispõem sobre financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais. Mais especificamente, o que se pede é (a) a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto do arts. 31, 38, III, e 39, caput e § 5º, da Lei 9.096/95 e do art. 24 da Lei 9.504/97, e a declaração de incons-titucionalidade do art. 81, caput e § 1º, da Lei 9.504/97, com efeitos ex nunc, no que dispõem sobre a autorização a doações efetuadas por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos; e (b) a declaração de inconstitucio-nalidade sem pronúncia de nulidade do art. 23, § 1º, I e II, da Lei 9.504/97, no que diz respeito aos limites das doações realizadas por pessoas naturais e jurí-dicas, bem assim quanto a aportes de recursos próprios dos candidatos, com a manutenção de sua eficácia por 24 meses.

O fundamento central do pedido é o de que, nos termos como atualmente regulado o financiamento das campanhas eleitorais — que autoriza contribui-ções financeiras de pessoas jurídicas e estabelece, para doações privadas, limi-tes proporcionais ao faturamento ou aos ganhos dos doadores —, enseja uma nefasta influência do poder econômico no resultado dos pleitos, com ofensa aos princípios democrático (arts. 1º, caput e parágrafo único, 14, caput, e 60, § 4º, II), republicano (art. 1º, caput) e da igualdade (arts. 5º e 14).

2. A questão do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais é, na atualidade, um dos temas centrais da agenda política, não só no Brasil, mas em muitos outros países e regiões do mundo, conforme reconhece a inicial e atestam os especialistas (a propósito, o excelente estudo do Diretor Regional do IDEA — Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral — ZOVATTO, Daniel. Financiamento dos partidos e campanhas elei-torais na América Latina: uma análise comparada. Opinião Pública, Campinas, vol. XI, n. 2, out. 2005, p. 287-336). A centralidade da questão decorre, por um lado, da importância que tem para a preservação do princípio democrático e da legitimidade da escolha dos representantes políticos, e, por outro, da sua extrema complexidade, que se manifesta sobretudo pela enorme dificuldade para se chegar até mesmo a consensos mínimos sobre os problemas que envolve. É que as relações do poder econômico com a área política despertam um con-flito de valores que tracionam em sentidos opostos. Se é certo afirmar — e esse é o aspecto salientado na presente demanda — que o poder econômico pode interferir negativamente no sistema democrático, favorecendo a corrupção eleitoral e outras formas de abuso, também é certo que não se pode imaginar um sistema democrático de qualidade sem partidos políticos fortes e atuantes,

Page 311: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

310

Ministro Teori Zavascki

especialmente em campanhas eleitorais, o que, evidentemente, pressupõe a dis-ponibilidade de recursos financeiros expressivos. E, sob esse ângulo, os recur-sos financeiros contribuem positivamente para a existência do que se poderia chamar de democracia sustentável, com partidos políticos em condições de viabilizar o sadio proselitismo político, a difusão de doutrinas e de ideários, de propostas administrativas e assim por diante. Como lembra Zovatto, “embora a democracia não tenha preço, ela tem um custo de funcionamento que é preciso pagar” (cit., p. 289).

Eis aí, pois, o grande paradoxo: o dinheiro pode fazer muito mal à demo-cracia, mas ele, na devida medida, é indispensável ao exercício e à manutenção de um regime democrático. Onde está o equilíbrio, como conter os excessos, como direcionar o fluxo dos recursos apenas para o bem da democracia evi-tando corrupção e conluio, essas são algumas das perguntas cujas respostas são incessantemente buscadas, no Brasil e em muitos outros países, por especialistas e legisladores. Por isso mesmo é que se diz, à luz da experiência de direito com-parado, que esse é “um tema condenado à sucessão de distintas reformas legais. Daí a importância de levar em conta seu caráter flutuante e conjuntural, pois a adoção de uma solução (...) costuma engendrar efeitos não buscados que devem ser novamente corrigidos mediante outra reforma legal. Não por acaso, ela é chamada de ‘legislação interminável’ na Alemanha, país que vem dando [ao tema] atenção destacada nos últimos 50 anos” (Zovatto, cit., p. 329/330).

Não há dúvida que, nesse contexto, é de importância fundamental o estabelecimento de um adequado marco normativo. Mas, somente ele não é suficiente para coibir as más relações entre política e dinheiro. Há, sobretudo, a questão da conduta. É preciso que as normas sejam efetivamente cumpridas e a punição seja efetivamente aplicada, se for o caso. Talvez aqui, mais do que na pre-cariedade do marco normativo, esteja a fonte principal dos abusos do poder eco-nômico e da corrupção política: no desrespeito das normas e na impunidade dos responsáveis. É o que atestam os especialistas e confirma a experiência, aqui e em outros países: ZOVATTO, cit., p. 319; KANAAN, Alice. Financiamento público, privado e misto frente à reforma política eleitoral que propõe o financiamento público exclusivo. In: RAMOS, André de Carvalho (coord.). Temas de direito eleitoral no século XXI. Brasília: Escola Superior do Ministério Público, 2012. p. 308; SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. Financiamento de campanha eleitoral — entre o público e o privado. In: RAMOS, André de Carvalho (coord.). Temas de direito Eleitoral no século XXI, Brasília: Escola Superior do Ministério Público, 2012, p. 266; FLEISCHER, David, BOHN, Simone Rodrigues da Silva (coord.); e WHITAKER, Francisco (colaborador). A fiscalização das eleições. In: SPECK, Bruno Wilhelm (org.). Caminhos da transparência, 2001; D’ALMEIDA, Noely Manfredini, Financiamento político de campanhas e partidos: a experiên-cia mundial sobre a prestação de contas. Paraná Eleitoral, n. 057, 2005; SPECK,

Page 312: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

311

Ministro Teori Zavascki

Bruno Wilhelm. O financiamento das campanhas eleitorais. In: AVRITZER, Leonardo; e ANASTASIA, Fátima (orgs.). Reforma política no Brasil, 2006; CAGGIANO, Monica Herman S. Corrupção e financiamento de campanhas eleitorais. Fórum Administrativo — FA, ano 1, n. 10, dez 2001; FERREIRA, Lara Mariana. O financiamento de partidos políticos e de campanhas eleitorais no contexto da reforma política brasileira. Estudos Eleitorais, v. 6, n. 1, jan./abr. 2011; VILLAR, João Heliofar de Jesus. Corrupção: o ovo da serpente. Folha de São Paulo, opinião, 4-1-2010); NICOLAU, Jairo. Para reformar o financiamento de campanhas no Brasil. Democracia Viva, n. 37, dez./2007).

Portanto, a primeira realidade que se deve ter presente é que o finan-ciamento de partidos e de campanhas eleitorais é contingência ineliminável em nosso sistema democrático e que, para evitar que ele produza, ou continue produzindo, efeitos negativos indesejáveis e perversos, não há fórmulas simples, nem soluções prontas. Trata-se, ao contrário, de questão tormentosa, no plano social e político em primeiro lugar e no plano jurídico como consequência.

3. A segunda constatação — essa no estrito domínio normativo e, portanto, mais sensível ao juízo a ser feito na presente ação — é a de que a Constituição Federal não traz disciplina específica a respeito da matéria. Essa constatação resulta claramente estampada na própria petição inicial, que, para sustentar a inconstitucionalidade dos preceitos normativos atacados, invocou ofensa a prin-cípios constitucionais de conteúdo marcadamente aberto e indeterminado: o princípio democrático, o princípio republicano, o princípio da igualdade.

Há, na Constituição, apenas duas referências à influência do poder eco-nômico em seara eleitoral, ambas em parágrafos do art. 14, inserido em capítulo que trata dos direitos políticos. Eis o que dispõem os parágrafos:

Art. 14. (...) § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade

e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econô-mico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

§ 10. O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.

O que essas normas visam a combater não é, propriamente, o concurso do poder econômico em campanhas eleitorais, até porque, como já afirmado, não se pode promover campanhas sem suporte financeiro. O que a Constituição combate é a influência econômica abusiva, ou seja, a que compromete a “nor-malidade e legitimidade das eleições” (§ 9º). É o abuso, e não o uso, que enseja a perda do mandato eletivo (§ 10).

Page 313: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

312

Ministro Teori Zavascki

Não havendo, além das indicadas, outras disposições constitucionais a respeito, passa a ser dever e prerrogativa típica do legislador infraconstitucio-nal a importante e espinhosa empreitada de formatar a disciplina normativa das fontes de financiamento dos partidos e das campanhas, em moldes a coibir abusos e a preservar a normalidade dos pleitos eleitorais. Ao Judiciário, por sua vez, fica reservado, nesse plano normativo, o papel de guardião da Constituição, cabendo-lhe o controle da legitimidade constitucional das soluções apresenta-das pelo legislador.

Considerando o já referido caráter flutuante e conjuntural dessa pro-blemática, a exigir continuada atenção reformadora para aperfeiçoamento do sistema, é importante que o Supremo Tribunal Federal tenha o cuidado de não extrair das raras disposições da Constituição sobre abuso do poder econômico ou, o que seria mais grave, da amplitude semântica e da plurissignificação dos princípios democrático, republicano e da igualdade, interpretações volunta-ristas que imponham gessos artificiais e permanentes às alternativas que ela, Constituição, oferece ao legislador encarregado de promover ajustes norma-tivos ao sistema de financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Refiro-me, com essa observação, ao financiamento privado e, mais especificamente, às contribuições de pessoas jurídicas, que, conforme procura-rei demonstrar, não podem ser considerados como absoluta e manifestamente incompatíveis com a Constituição, a ponto de impedir, agora e para sempre (enquanto mantido o atual regime constitucional), possam elas ser autorizadas, ainda que limitadamente, pelo legislador ordinário.

4. No caso, o que está em questão não é saber se o modelo normativo brasileiro é conveniente, ou não, se é adequado, ou não, ou mesmo se é eficiente ou não, se representa ou não a melhor forma de enfrentar as mazelas produzi-das pela interferência do dinheiro na seara política. O que está em questão é a legitimidade constitucional das normas indicadas na petição inicial, editadas para dar viabilidade e legitimidade ao aporte de recursos privados aos partidos políticos e às campanhas eleitorais. Pois bem, embora reconhecendo a inadiável necessidade de alteração do atual estado das coisas, em que campeiam práticas ilegítimas de arrecadação de recursos, de excessos de gastos e de corrupção política, nem por isso se pode concluir que as contribuições financeiras, só por serem de pessoas jurídicas, encontram óbice direto e frontal na Constituição.

Afirma-se, como argumento central da inconstitucionalidade, que as pessoas jurídicas “não exercem cidadania”, pois não têm aptidão para votar. É, com o devido respeito, um argumento do qual não se pode extrair a radical conclusão de que a Constituição proíbe, terminantemente, o aporte de recursos a partidos políticos. A Constituição não faz, nem implicitamente, essa relação necessária entre capacidade de votar e habilitação para contribuir, até porque há também muitas pessoas naturais sem habilitação para votar e nem por isso

Page 314: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

313

Ministro Teori Zavascki

estão proibidas de contribuir financeiramente para partidos e campanhas. É que o voto é apenas uma das variadas formas de participar da vida em sociedade e de influir para que a escolha de representantes políticos recaia sobre os mais eficientes e mais qualificados. As pessoas jurídicas, embora não votem, embora sejam entidades artificiais do ponto de vista material, ainda assim fazem parte da nossa realidade social, na qual desempenham papel importante e indispensá-vel, inclusive como agentes econômicos, produtores de bens e serviços, gerado-res de empregos e de oportunidades de realização aos cidadãos. Mesmo quando visam a lucro, são entidades que, a rigor, não têm um fim em si mesmas: ao fim e ao cabo, as entidades de existência formal só existem para, direta ou indireta-mente, atender e satisfazer interesses e privilegiar valores das pessoas naturais que por trás delas invariavelmente gravitam e das quais funcionam como ins-trumentos jurídicos de atuação. Bem por isso há quem sustenta, por exemplo, que “em uma comparação internacional, a vedação do financiamento por entida-des de classe e sindicatos [que também são pessoas jurídicas e não votam], her-dada da ditadura militar no Brasil, poderia ser considerada anacrônica” porque inibe, em boa medida, que o conflito entre capital e trabalho se projete na repre-sentação política e no sistema partidário (SPECK, Bruno Wilhelm. O finan-ciamento de campanhas eleitorais. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (orgs.). Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006).

Diz-se, por outro lado, que pessoas jurídicas só contribuem por interesse. Não se contesta esse fato. Todavia, é exatamente isso o que ocorre também com as pessoas naturais: suas contribuições não podem ser consideradas desinte-ressadas. Nem num caso, nem no outro, entretanto, há de se afirmar que os interesses a que visam as contribuições para partidos ou campanhas políticas sejam, invariavelmente, interesses ilegítimos. Não se mostra assim, por exemplo, o interesse de pessoas jurídicas em ver eleitos candidatos favoráveis a impulsio-nar certas reformas legislativas de natureza econômica, ou tributária, ou traba-lhista, ou em ver priorizadas políticas públicas na área de infraestrutura, ou de expansão de empregos, ou de industrialização ou de desburocratização. É claro que há também interesses escusos movendo doações de pessoas jurídicas, mas seria igualmente ingênuo afirmar que os interesses que movem pessoas naturais a contribuir para campanhas sejam, sempre, interesses legítimos. A realidade está repleta de exemplos em sentido contrário, alguns até da mais alta gravidade, como é o caso de candidaturas sustentadas por organizações criminosas.

Portanto, longe de negar a existência, em muitos casos, de interesses condenáveis nas contribuições feitas a candidatos e partidos, o que se afirma é que não se pode ver nesse fato, isoladamente considerado, um fundamento sufi-ciente para a conclusão radical de que toda e qualquer contribuição de pessoas jurídicas é inconstitucional. Como demonstrado, sob o aspecto da motivação que impulsiona as contribuições, as mesmas razões que determinariam uma

Page 315: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

314

Ministro Teori Zavascki

proibição constitucional às pessoas jurídicas se aplicariam, igualmente, as pes-soas naturais, a significar que, por esse ângulo, apenas o financiamento exclusi-vamente público seria compatível com a Constituição, tese que a própria inicial se encarrega de afastar.

Na verdade, olhada a questão pelo prisma do interesse que move os doa-dores, o fator decisivo para aferir a legitimidade acaba se transferindo, mais uma vez, do marco normativo para o marco comportamental: tanto as doações de pessoas jurídicas, quanto às de pessoas naturais serão incompatíveis com a Constituição se abusivas. As más práticas, os excessos, a corrupção política, não podem ser simplesmente debitadas às contribuições feitas nos limites autorizados por lei, mas àquelas provindas da ilegalidade. Em outras palavras: é preciso ter tico descumprimento.

5. A história do direito brasileiro dá testemunho claro a esse respeito. Como se sabe, o legislador brasileiro optou, em certa época, por proibir pes-soas jurídicas de contribuir para partidos políticos e campanhas eleitorais. Era assim na vigência da Lei Orgânica dos Partidos Políticos editada em 1971 (Lei 5.682/71, art. 91, IV). Nem por isso, todavia, deixaram de existir na época os mesmos (ou até maiores) abusos, gastos excessivos e corrupção eleitoral que agora se atribuem às normas impugnadas na presente ação direta. Na verdade, a abertura que permitiu doações por parte de pessoas jurídicas, em níveis limi-tados e acompanhados por sistema de controle, como hoje está consagrado nas normas aqui atacadas, resultou de uma opção legislativa explicitamente conce-bida como resposta às imoderações, fraudes e descaminhos verificados quando vigorava a proibição que aqui se busca reimplantar, mazelas que vieram à tona durante as investigações de Comissão Parlamentar de Inquérito — CPI desenca-deada no governo do então presidente Fernando Collor de Mello.

Na ocasião, firmou-se o consenso de que a proibição pura em simples do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas seria uma alternativa hipó-crita para minorar a natural e inevitável insinuação do poder econômico sobre as eleições. A admissão de doações privadas, acompanhada do estabelecimento de meios de controle mais efetivos, foi a aposta que acabou sendo adotada, como explica Lara Marina Ferreira:

“Os escândalos de corrupção que envolveram a campanha e o governo do presidente Fernando Collor de Mello acenderam as discussões sobre o sistema de financiamento de campanhas políticas no Brasil. No centro das investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que levou ao impeachment do pri-meiro presidente da República eleito após o regime militar estavam as atividades de seu tesoureiro de campanha, as doações ilegais e o tráfico de influência entre financiadores e governo. O relatório da CPI traz um capítulo que analisa o tema, bem como propostas destinadas a regulamentar a arrecadação e a fiscalização desses recursos financeiros.

Page 316: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

315

Ministro Teori Zavascki

No décimo capítulo do relatório final da CPI, intitulado Dos fatores que possibilitam esquemas do tipo PC (Congresso Nacional, 1992, p. 303), o primeiro fator elencado é o financiamento de campanhas eleitorais. O relatório destaca, já de início, que “as quantias gastas nas campanhas eleitorais têm cifras assombro-sas” (Congresso Nacional, 1992, p. 303) e que esse fenômeno está inserido dentro de um contexto mundial, na medida em que as duas últimas décadas do século XX foram marcadas pelo crescente aumento de gastos nas campanhas eleitorais.

Para fazer frente a esses gastos, os candidatos lançavam mão de recursos de fontes privadas, apesar de proibidas pela Lei n. 5.682/1971, fato que levaria ao discurso corrente de que a legislação brasileira seria “hipócrita”, “irreal e excessi-vamente rigorosa” (Congresso Nacional, 1992, p. 304). Como fundamento princi-pal dessas críticas, estava a necessidade de legalização das doações privadas, que contribuíram para a moralização e a transparência das contas apresentadas.

O relatório defende, entretanto, que a mera legalização dos recursos pri-vados não seria capaz de resolver o problema, pois ainda que contribuísse para a veracidade das informações, não bastaria para coibir o abuso do poder econômico em campanhas eleitorais. A possibilidade de doações privadas deveria vir acom-panhada de intensa regulamentação que evitasse a distorção do poder político em poder econômico, na qual o primeiro se apresenta como mera fachada do segundo.

(...) Como conclusão, o relatório apresenta proposta de lei para adoção de um

sistema de financiamento misto de campanhas eleitorais, com o aporte de recur-sos públicos e de recursos privados.

No que toca ao financiamento privado, o relatório da CPI defende sua implantação com a adoção de parâmetros realistas e de controle severos. Para tanto, indica a necessidade de limitações para os gastos e de determinação de tetos para as doações e a vedação de financiamento por empresas vinculadas ao Estado por contratos de fornecimento, prestação de obras ou serviços, refor-çando mais uma vez a tese de que este constitui um ponto central do problema.

Quanto ao financiamento público, o relatório indica a necessidade de maior repasse de recursos aos partidos políticos e candidatos, contribuindo para diminuir a “irrealidade” da legislação eleitoral da época, ao mesmo tempo em que dificultaria a influência do poder econômico no cenário político.

As proposições do relatório final da CPI foram fundamentais para a edição das leis temporárias n. 8.713/1993 e 9.100/1995 que regeram, respectiva-mente, as eleições de 1994 e de 1996, tendo adotado o sistema de financiamento misto de partidos políticos e de campanhas eleitorais. São frequentes os estudos que indicam a relação entre o esquema PC e a adoção do financiamento misto, com a inclusão do financiamento privado.

A mesma sistemática foi mantida pelas leis n. 9.096/95 — Lei dos Partidos Políticos — e 9.504/97 — Lei das Eleições. Esses dois diplomas normativos de natureza permanente e aplicáveis a todas as eleições desde então estabelece-ram as regras para o sistema misto de financiamento de partidos e de eleições no Brasil. (FERREIRA, Lara Marina. O financiamento de partidos políticos e de campanhas eleitorais no contexto da reforma política brasileira. Estudos Eleitorais, v. 6, n. 1, jan./abr. 2011, Tribunal Superior Eleitoral).

Presente essa realidade, mostra-se uma alternativa pouco afinada com a nossa experiência histórica imaginar que a corrupção eleitoral e o abuso do

Page 317: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

316

Ministro Teori Zavascki

poder econômico sejam produto do atual regime normativo e que isso seria razão ou pretexto suficiente para declará-lo inconstitucional, propiciando assim a volta ao regime proibitivo anterior. Nesse ponto, tem toda razão e atualidade o voto do Min. Sepúlveda Pertence, proferido na ADI 1.076 (DJ de 7-12-2000), a respeito do financiamento privado de campanhas eleitorais no Brasil:

“9. Dispensa comentários o rotundo fracasso dessa tentativa ingênua de expungir o financiamento das campanhas eleitorais do dinheiro da empresa pri-vada: além da ineficácia notória, a vedação gerou o efeito perverso do acumpli-ciamento generalizado dos atores da vida política com a prática das contribuições empresariais clandestinas, fruto, na melhor das hipóteses, da sonegação fiscal.

10. Assim como ocorrera na América, sob o estrépito de Watergate, era previsível que, também no Brasil, os escândalos dos últimos anos, universali-zando a consciência da sua hipocrisia, sepultariam o velho modelo proibitivo.

11. Não é que seja desejável que empresas de finalidade lucrativa custeiem a disputa do poder político. Mas é inevitável que o façam. Desse modo, a alter-nativa real não é permitir ou proibir simplesmente. É proibir nominalmente, fingindo ignorar a inoperância fatal da vedação utópica, ou render-se à realidade inevitável da interferência do poder econômico nas campanhas eleitorais, a fim de tentar discipliná-la, limitá-la e fazê-la transparente.”

Foi justamente no rumo dessa segunda alternativa, ou seja, com essa deli-berada finalidade de tentar disciplinar, limitar e dar transparência às contribui-ções de pessoas jurídicas que o legislador editou os preceitos normativos objeto de ataque na presente ação. Não nos iludamos, portanto, e insisto no ponto: o problema da abusiva interferência do poder econômico na política e nas campa-nhas eleitorais — que é uma realidade e que precisa ser combatida — não está no marco normativo, mas no seu sistemático descumprimento. Não é a norma, e sim o seu descumprimento, que propicia fenômenos sobejamente conhecidos da nossa história política, dos tipos eufemisticamente chamados, em tempos recentes, de “recursos não contabilizados” (AP 470), mas que, em todo o tempo, se conhece popularmente como contribuições de “caixa dois” e que, no passado, deu origem às malsinadas “sobras de campanha” (CPI do governo Collor de Mello). A solução, consequentemente, não é eliminar a norma, mas estabelecer e aplicar mecanismos de controle e de sanções que imponham a sua efetiva observância. Já se disse, com inteira razão:

“Se a corrupção é um mal de raiz, é rede que atinge o interior do sistema de financiamento dos partidos, é possível afirmar que a alteração do modelo de financiamento, por si só, estaria longe de inibir ingressos ilegais e ilícitos ou os acordos espúrios que comprometem a atividade pública. E a afirmação decorre de uma conclusão muito simples: o problema não está no modelo do financia-mento, quer público, quer privado, quer misto, mas, sim, na forma de controle eleitoral e na garantia de eficácia e efetividade das punições aos infratores” (KANAAN, Alice. Financiamento público, privado e misto frente à reforma polí-tica eleitoral que propõe o financiamento público exclusivo, cit., p. 308).

Page 318: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

317

Ministro Teori Zavascki

6. Argumenta-se com o elevado custo das campanhas eleitorais, cada vez maior. É um fato real, verificável não somente no Brasil, mas em outros países, de toda a América e da Europa, e devido, em grande medida, ao moderno “pro-cesso revolucionário dos Meios de Comunicação”, produzindo o fenômeno do homo videns de que fala o cientista político italiano Giovanni Sartori: “o vídeo está transformando o homo sapiens produzido pela cultura escrita em um homo videns no qual a palavra vem sendo destronada pela imagem. Tudo se torna visualizado” (SARTORI, Giovanni. Homo videns. Televisão e pós-pensamento, Bauru/SP: EDUSC, 2001. p. 7-8), o que determina um papel decisivo e diri-gente  — e de alto custo — dos meios eletrônicos de comunicação, e da tele-visão de um modo particular, nas campanhas eleitorais (Zovatto, cit., p. 312). Também no Brasil esse fenômeno se faz presente, eis que, conforme noticiado nos autos, grande parte dos gastos das campanhas correspondem à produção e veiculação de programas e propaganda televisivos.

Aliás, isso mostra outro paradoxo: ao mesmo tempo em que se aponta, com justificada preocupação, para os malefícios dos custos excessivos das campanhas, registra-se, por outro lado, como importante avanço democrático a oportunidade propiciada pela lei eleitoral de acesso de candidatos e partidos políticos aos cobi-çadíssimos espaços gratuitos em rádio e televisão, cuja efetiva utilização supõe, entretanto, altíssimos gastos, os mais elevados de toda a campanha!

Paradoxos à parte, convém deixar claro que também esse fato real (o alto custo das campanhas), não pode, por si só, ser invocado como fundamento para um juízo de procedência da presente ação direta. Não há parâmetros normativos que permitam esse juízo, pois nem as normas impugnadas, nem a Constituição tratam da matéria. O que se proíbe, na Constituição, é o abuso do poder econô-mico, cláusula que, todavia, não está necessariamente relacionada com o custo das atividades partidárias. E se esse custo for abusivo, a inconstitucionalidade não estará no preceito normativo, mas nas práticas políticas ilegítimas, a signi-ficar que a procedência ou não da ação não terá, necessariamente, do ponto de vista jurídico, o efeito de eliminar ou limitar aqueles custos.

Portanto, o antídoto para os gastos excessivos de campanha eleitoral não é declarar a inconstitucionalidade das fontes de financiamento, cuja elimina-ção formal provavelmente seria imediatamente substituída por suplementação informal e ilegítima, como mostram os exemplos históricos. A solução mais plausível será a imposição de limites de gastos, acompanhada de instrumentos institucionais de controle e de aplicação de sanções, em casos de excessos. E a definição dos limites adequados é questão que não encontra resposta imediata nas normas constitucionais. Cumpre à lei dispor a respeito, como, aliás, está previsto no art. 17-A da Lei 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300/2006, a saber:

Page 319: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

318

Ministro Teori Zavascki

“Art. 17-A. A cada eleição caberá à lei, observadas as peculiaridades locais, fixar até o dia 10 de junho de cada ano eleitoral o limite dos gastos de campanha para os cargos em disputa; não sendo editada lei até a data estabe-lecida, caberá a cada partido político fixar o limite de gastos, comunicando à Justiça Eleitoral, que dará a essas informações ampla publicidade.”

Se os limites já pudessem ser deduzidos a partir da aplicação direta de normas constitucionais, seria supérflua a primeira parte desse dispositivo e certamente inconstitucional a sua segunda parte, o que não está em causa nesse momento. Assim, mais que buscar a intervenção do Supremo Tribunal Federal para prover normativamente sobre fixação de limites de gastos de campanha — matéria que escapa ao âmbito da jurisdição constitucional — será mais com-patível com o princípio democrático e da separação dos Poderes que as forças sociais e suas entidades organizadas façam ver ao Poder Legislativo a impor-tância transcendental e decisiva para a democracia do cumprimento do dever que lhe impôs a norma, em sua primeira parte, suprindo esse evidente déficit normativo. Eventual demora ou omissão do legislador no exercício das funções institucionais que lhe são próprias, como é o caso, somente autorizará a sua substituição — provisória e temporária — pelo Poder Judiciário nas hipóteses e segundo os mecanismos previstos na Constituição, ou seja, por ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º) ou por mandado de injun-ção (CF, art. 5º, LXXI). O senso de responsabilidade do Poder Legislativo haverá de evitar, com a presteza possível, que seja necessário caminhar por essa via extrema, da qual, entretanto, certamente não se desviará o Supremo Tribunal Federal, se e quando a tanto provocado.

7. Relativamente às doações feitas por pessoas naturais — que a peti-ção inicial reconhece, em princípio, como legítimas —, a demanda questiona a constitucionalidade da norma que fixa o critério para apuração dos limites máximos permitidos, por ofensa ao princípio da igualdade. Com idêntico fun-damento, imputa-se a inconstitucionalidade da ausência de limite para o aporte de recursos próprios dos candidatos, o que favoreceria os candidatos mais ricos. Relativamente às doações privadas, sustenta-se que “o principal limite instituído, baseado em percentual dos rendimentos obtidos no ano anterior, é, ao mesmo tempo, muito leniente em relação aos ricos, e injustificadamente rigoroso em relação às pessoas menos abastadas” (p. 9 da inicial). “É verdade”, diz-se mais adiante, “que, num sistema que admite o financiamento privado das campanhas, os mais pobres já são naturalmente prejudicados no seu poder político, pois, em regra, não possuem os recursos necessários para realizar doações, em prejuízo da própria subsistência. Mas o legislador, além do limite fático, impôs uma ina-ceitável discriminação jurídica, pois proibiu um indivíduo mais pobre de doar a mesma importância que o mais abastado, mesmo que dispuser de recursos” (p. 15). Propõe a demandante, para superar essa desigualdade, o estabelecimento

Page 320: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

319

Ministro Teori Zavascki

de um “diálogo interinstitucional entre o STF e o Congresso Nacional, em que o STF pronunciaria a inconstitucionalidade do critério, bem como da ausência de limites para uso de recursos próprios pelos candidatos em campanha, mas não retiraria imediatamente do mundo jurídico as normas em questão (...). Haveria o retardamento da eficácia invalidatória da Corte por 24 meses, e o Congresso Nacional (...) seria exortado a estabelecer, no prazo de 18 meses, um novo limite para doações (...) além de instituir limite, também uniforme, para uso de recur-sos próprios em campanhas pelos candidatos”, e, “caso o Congresso Nacional não disciplinasse a questão no referido prazo, caberia ao TSE fazê-lo provisoria-mente, até o advento da nova legislação de regência” (p. 10).

Cumpre desde logo registrar que o “diálogo interinstitucional” proposto constituiria, na verdade, apenas um monólogo unidirecional: o STF “exorta-ria” o Congresso a legislar em determinado sentido, num certo prazo, sob pena de, não o fazendo, ficar essa incumbência transferida ao Tribunal Superior Eleitoral. É, como se percebe, uma proposta inovadora, estranha e, no meu entender, incompatível com os modelos constitucionais de solução de omis-são ou insuficiência da atividade legislativa, especialmente no âmbito de ação direta de inconstitucionalidade. Mesmo nas hipóteses especiais de procedência de ação de mandado de injunção ou de inconstitucionalidade por omissão, não haveria base constitucional para o Judiciário avançar sobre atribuições típicas do Poder Legislativo, nos moldes pretendidos, especialmente para delegá-las ao Tribunal Superior Eleitoral.

E a hipótese é, realmente, de déficit normativo. Relativamente ao aporte de recursos próprios, o texto normativo atacado (§ 1º do art. 23 da Lei 9.504/97) prevê que as doações e contribuições ficam limitadas:

“I – no caso de pessoa física, a dez por cento dos rendimentos brutos aufe-ridos no ano anterior à eleição;

II – no caso em que o candidato utilize recursos próprios, ao valor máximo de gastos estabelecido pelo seu partido, na forma desta Lei.”

O que se busca, na demanda, é substituir essas disposições por outras, que melhor atendam ao princípio da igualdade. Considerando não ser viável, pelo menos em ação direta de inconstitucionalidade, que o Supremo Tribunal Federal produza, desde logo, uma norma substitutiva, a alternativa de simples-mente declarar a inconstitucionalidade do critério hoje existente — que, ainda que imperfeitamente, prevê um limite para o aporte de recursos — significaria eliminar esse limite e, consequentemente, aprofundar o nível de desigualdade.

Abstraída essa questão instrumental e formal, e sem negar o mérito de iniciativas tendentes a reduzir as desigualdades de forças, derivadas de razões econômicas, entre doadores e entre candidatos, a grande dificuldade que se tem, em situações assim, é a que decorre dos dados da realidade: é no plano fático e

Page 321: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

320

Ministro Teori Zavascki

material que as pessoas são desiguais em sua capacidade de fazer doações finan-ceiras e essa desigualdade é insuscetível de eliminação mediante simples atuação no plano formal, por provimentos jurisdicionais ou normativos. E, como lembra Zagrebelsky, “la realidad, en esa parte que no depende de nosotros y se resiste a todas nuestras concepciones e convicciones acerca de lo que debería ser y no es, esa que llamamos la ‘dura realidad’, no puede ser ignorada sob pena de convertir em fútiles nuestros pensamientos” (ZAGREBELSKY, Gustavo. La lei y su justicia — Três capítulos de justicia constitucional. Madrid: Editorial Trota, 2014. p. 13). Portanto, a não ser que se proíba toda e qualquer doação por parte de pessoas naturais (hipótese em que a igualação entre ricos e pobres se daria pela submissão de todos a uma proibição universal e absoluta), qualquer que seja o critério ou o nível de permissão de doações não eliminará, jamais, essa desigualdade no plano material. Sempre haverá pessoas — e talvez elas formem a grande maioria da nossa sociedade — que estarão em situação de desvantagem, porque desprovidas de recursos para fazer qualquer doação a partidos ou campanhas eleitorais, seja qual seja o valor permitido. Assim, o declarado propósito da presente demanda — de assegurar aos mais pobres o direito de fazer contribuições para partidos e cam-panhas em valores iguais aos permitidos às pessoas mais ricas —, além de soar como defesa de uma situação um tanto exótica no plano fenomênico, não teria jamais o condão de eliminar ou mesmo de reduzir significativamente, no plano da realidade, a situação de vantagem das pessoas com mais recursos.

8. Aliás, relativamente ao princípio da isonomia no âmbito de compe-tições eleitorais, muito mais importante que o estabelecimento de critérios de igualação entre os doadores deve ser a preocupação de preservar a igualdade de armas entre os principais atores da disputa, que são os candidatos e os partidos políticos. A equidade na competição é, com efeito, um princípio fundamental da democracia multipartidária. Olhada a questão por esse prisma, seria ingênuo supor que as interferências desequilibradoras entre candidatos e partidos com-petidores se reduzam apenas às doações financeiras angariadas em época de disputa eleitoral. É preciso considerar, por exemplo, o altíssimo cacife político ostentado pelos partidos ocupantes dos postos de governo, nas diferentes ins-tâncias federativas, especialmente quando candidatos a reeleições, que, muito antes e independentemente do período de campanha, situam-se na privilegiada condição de assumir ou distribuir espaços de poder, de formar alianças, de pro-mover nomeações para cargos de visibilidade eleitoral, que permitem ao titular a tomada de decisões sobre distribuição de verbas a estados ou municípios, ou a celebração de convênios, ou a priorização de obras e serviços públicos, sem falar na promoção das campanhas publicitárias institucionais, ditas de prestação de contas, mas com olhos voltados para as urnas. É evidente, portanto, que o exer-cício dos postos de poder já confere ao seu titular e ao respectivo partido uma natural e significativa vantagem estratégica no plano da disputa eleitoral. Essa

Page 322: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

321

Ministro Teori Zavascki

vantagem será ampliada ainda mais se o exercício do poder político extrapolar os limites da ética e da legitimidade jurídica, mormente com práticas ilegítimas de indução de doações financeiras.

Portanto, quando se examina a constitucionalidade das fontes de finan-ciamento, como essa relacionada às doações por pessoas jurídicas, é preciso ter cuidado para não aprofundar a desigualdade das condições de disputa eleitoral, evitando criar situações que confiram aos ocupantes do poder posições ainda mais privilegiadas do que já ostentam em relação aos seus opositores políticos.

9. Em suma, não há como desconhecer que, no Brasil, já passou da hora de prover medidas no sentido de alterar esse crônico estado das coisas, em que campeiam práticas ilegítimas de arrecadação de recursos, de excessos de gas-tos e de corrupção política. Todavia, mostra-se uma alternativa pouco afinada com a nossa experiência histórica imaginar que a corrupção eleitoral e o abuso do poder econômico sejam produto do atual regime normativo e que isso seria razão ou pretexto suficiente para declará-lo inconstitucional, propiciando assim a volta ao regime anterior, em que se proibia o aporte de recursos por pessoa jurídica. Só por messianismo judicial se poderia afirmar que, declarando a inconstitucionalidade da norma que autoriza doações por pessoas jurídicas e, assim, retornar ao regime anterior, se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. É ilusão imaginar que isso possa ocorrer, e seria extremamente desgastante à própria imagem do Poder Judiciário alimentar na sociedade, cansada de testemunhar práticas ilegítimas, uma ilusão que não tardará em se transformar em nova desilusão.

Por outro lado, o antídoto para os gastos excessivos de campanha eleitoral não é declarar a inconstitucionalidade das fontes de financiamento, cuja elimi-nação formal provavelmente seria imediatamente substituída por suplementação informal e ilegítima, como também mostram os exemplos históricos. A solução mais plausível será a criação de limites de gastos, acompanhada de instrumentos institucionais de controle e de aplicação de sanções, em casos de excessos. E a definição dos limites adequados é questão que não encontra resposta imediata nas normas constitucionais. Cumpre à lei dispor a respeito, como, aliás, está previsto no art. 17-A da Lei 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300/2006.

Nesse domínio, assim como em relação aos limites de aportes financeiros de pessoas naturais ou de recursos próprios dos candidatos, o que há, na ver-dade, é um déficit normativo que, conforme demonstrado, não pode ser suprido no âmbito da presente ação.

É evidente, repita-se, que o marco normativo deve ser aperfeiçoado, mas não será a destruição do modelo existente, com o consequente restabelecimento de modelo anterior, que levará a esse aperfeiçoamento. A experiência comparada demonstra, no que toca às fontes de financiamento de partidos e campanhas, que

Page 323: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

322

Ministro Teori Zavascki

o sensível e complexo empreendimento normativo está inserido necessariamente em contexto mais amplo e mais profundo de reforma política, especialmente do sistema eleitoral, empreendimento que, por elementar imposição do sistema constitucional de democracia representativa, é do Poder Legislativo.

Isso não significa que o Poder Judiciário esteja de braços atados no com-bate à corrupção eleitoral e ao abuso do poder econômico. Muito pelo contrário, considerando, conforme reiteradamente enfatizado ao longo deste voto, que a causa principal das mazelas decorrentes da indevida intromissão do poder econômico nas questões eleitorais não está na inconstitucionalidade do marco normativo e, sim, no seu sistemático descumprimento, cabe ao Judiciário, nota-damente pelo braço da Justiça Eleitoral, zelar pela efetividade do modelo exis-tente e, se for o caso, reprimir as condutas ilegítimas, aplicando, sem perda do cargo e a inelegibilidade, a partidos e candidatos que se valerem abusivamente do poder econômico nos pleitos eleitorais.

É indispensável, sim, que o Legislativo cumpra sua parte, e todas as forças sociais devem ser mobilizadas para sensibilizá-lo da urgência no atendimento desse dever constitucional. Mas não há dúvida que é também importante que essas mesmas forças sociais, as entidades organizadas, os órgãos de fiscalização, o Ministério Público, empreendam um continuado esforço coletivo destinado a impor a mudança de comportamento político, para minimamente ajustá-lo às normas já existentes. É preciso, sobretudo, que os abusos do poder econômico e a corrupção política tenham severa resposta repressiva por parte do Estado, sob pena de tornar ineficaz, não só o modelo atual, mas qualquer outro que venha a substituí-lo no futuro.

10. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido. É o voto.

MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.394 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. A presente ação direta submete uma vez mais ao crivo deste Plenário tema relativo à arrecadação de recursos financeiros por partidos políticos e por candidatos a cargos eletivos, matéria de inconteste importância para a dinâmica das democracias contemporâneas.

Tal como acontece em praticamente todas as instâncias da vida coletiva nas sociedades de mercado, a presença do dinheiro na política é inevitável. Mas, por mais natural que seja, ela inspira cuidados constantes. Afinal, quando

Page 324: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

323

Ministro Teori Zavascki

encontra comodidade suficiente para radicalizar sua persuasão na forma do assé-dio, o dinheiro se torna uma ameaça insidiosa ao funcionamento republicano da política, colocando em risco de solapamento duas características elementares do sistema de democracia representativa: a igualdade de chances na disputa pelo poder e a autenticidade da representação popular. Sabedora da relevância desses valores, a Constituição Federal firmou com eles um compromisso solene, a ser formalizado, em termos abstratos, num arranjo legislativo apto a evitar a apro-priação da política pela lógica voraz dos interesses econômicos (art. 14, § 9º), e passado a limpo, periodicamente, pelo trabalho da Justiça Eleitoral, mediante o julgamento da regularidade das contas partidárias e de campanha (art. 17, III).

No plano legislativo, a regulamentação do financiamento de campanhas admite combinações normativas bem variadas. Há desde modelos calcados em bases estritamente públicas até aqueles radicados puramente em contribuições privadas. Mas todos eles são montados a partir de estratégias normativas que partem de critérios mais ou menos iguais, mediante a fixação (a) das fontes de captação vedadas e (b) dos limites máximos de arrecadação. Pelo menos por enquanto, a legislação brasileira dá suporte a um sistema de financiamento de base mista. Além de reconhecer a todos os partidos — por direito constitucional (art. 17, § 3º) — o acesso a recursos públicos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão, a legislação permite a arrecadação de receitas privadas, desde que provenientes do próprio candidato, de pessoas físicas ou de outros candidatos e partidos.

Até há pouco tempo, como se sabe, não era assim. O financiamento por meio de doações de pessoas jurídicas também era admitido. Porém, no recente julgamento da ADI 4.650, este Supremo Tribunal Federal foi instado a declarar se os limites traçados nas duas leis brasileiras que tratam do assunto — a Lei 9.096/95 (lei dos partidos) e a Lei 9.504/97 (lei das eleições) — seriam suficien-tes para fomentar um sistema político minimamente igualitário e republicano. A resposta da Corte foi incisiva: em decisão por maioria, o Plenário conside-rou que a permissividade com as doações de pessoas jurídicas, na forma como arquitetada pela legislação vigente, era problemática do ponto de vista da repre-sentação política e, por isso, seria inválida. O Tribunal também reprovou os limites de quantidade estabelecidos nas duas leis para todos os tipos de doações privadas, fossem elas feitas pelos candidatos a si mesmos (as chamadas auto-doações), por pessoas jurídicas ou por pessoas físicas, por considerar que elas gerariam iniquidade.

Em função da abrangência do pedido então formulado, a Corte se pronun-ciou apenas sobre esses dois pontos, relativos à legitimidade dos moderadores de origem e de quantidade estabelecidos para a captação de recursos de fontes pri-vadas. Não houve, na ocasião, questionamentos a respeito dos meios de controle estabelecidos na legislação para o cumprimento dos limites nela desenhados.

Page 325: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

324

Ministro Teori Zavascki

2. Aqui, a impugnação tem por objeto justamente esta fase subsequente do modelo de financiamento político, referente aos instrumentos de controle das contas dos partidos e dos candidatos. A norma impugnada pela requerente, constante do art. 2º da Lei 13.165/15, acresceu o § 12 ao art. 28 da Lei 9.504/97, verbalizando regra de escrituração contábil que tem a seguinte literalidade:

Art. 28. (...) § 12. Os valores transferidos pelos partidos políticos oriundos de doações

serão registrados na prestação de contas dos candidatos como transferência dos partidos e, na prestação de contas dos partidos, como transferência aos candida-tos, sem individualização dos doadores. (NR)

A Lei 13.165/15 positivou a mais recente das “minirreformas eleitorais” levadas a cabo nos últimos anos pelo Congresso Nacional. Desde que as doa-ções privadas passaram a ser novamente permitidas no contexto legislativo brasileiro  — o que ocorreu a partir das eleições de 1994, sob a égide da Lei 8.713/93 — muitas foram as inovações introduzidas com a finalidade de tornar mais eficiente a fiscalização da arrecadação e dos gastos de partidos e candi-datos. Antes dessa Lei, pelo menos outros três diplomas — as Leis 11.300/06, 12.034/09 e 12.891/13 — veicularam mudanças relevantes no tocante à arreca-dação, aos gastos e ao processo de prestação de contas eleitorais.

Entre outras novidades, essas leis (a) obrigaram instituições financeiras a identificar o CPF/CNPJ dos doadores nos extratos bancários (art. 22, § 1º, inciso II, da Lei 9.504/97); (b) estabeleceram que o uso de recursos financeiros estranhos à conta específica para pagamento de gastos de campanha implica a desaprovação das contas, podendo resultar, se comprovado abuso, até na cassação do diploma (art. 22, § 3º, da Lei 9.504/97); (c) exigiram que as doações a candidatos e partidos fossem feitas mediante recibo (art. 23, § 2º, da Lei 9.504/97); (d) discriminaram os meios de transferência admitidos para a realização de doações, sempre enfati-zando a necessidade de identificação do doador (art. 23, § 4º, da Lei 9.504/97); (e) ampliaram o rol de fontes de financiamento vedadas (art. 24 da Lei 9.504/97); (f) definiram quais os gastos eleitorais estão sujeitos a registro e aos limites fixados em lei (art. 39, § 5º, da Lei 9.096/95; e art. 26 da Lei 9.504/97); (g) instituíram a obrigação de divulgação na internet de relatórios com os recursos recebidos e os gastos realizados, com identificação dos doadores e respectivos valores na presta-ção de contas final (art. 28, § 4º, da Lei 9.504/97); (h) identificaram bens e doações que estariam dispensadas de registro na prestação de contas (art. 28, § 6º, da Lei 9.504/97); e (i) estabeleceram novas regras para apuração, processamento e julga-mento das contas (art. 34, § 2º, da Lei 9.096/95; e arts. 30 e 30-A da Lei 9.504/97).

Ao lado da adoção, pela Justiça Eleitoral, do Sistema de Prestação de Contas Eletrônico (SPCE), essas mudanças permitiram um monitoramento mais completo do fluxo de movimentações financeiras das contas específicas de

Page 326: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

325

Ministro Teori Zavascki

campanha de partidos e candidatos. Ponto-chave desta evolução legislativa está no cuidado com o registro transparente das entradas e saídas de recursos doados por particulares, mediante a exigência de emissão de recibos, extratos bancários e a identificação nominal dos responsáveis e dos beneficiados pelas doações. Esses documentos e informações são cruciais para que os técnicos da Justiça Eleitoral possam proceder ao confronto entre as doações eleitorais recebidas, os valores lançados nos extratos bancários e os recibos firmados pelos prestadores de serviços contratados para atuar nas campanhas. Somente por meio deste cru-zamento de dados é que se faz possível esclarecer, por exemplo, se as doações são oriundas de fontes tidas pela lei como ilícitas ou se excederam o teto estabelecido.

Embora essas leis tenham propiciado avanços no controle da arrecadação e dos gastos eleitorais, elas evidentemente não solveram todas as inconsistências do sistema. Mas, ainda que não tenham sido tão satisfatórios como se poderia esperar, os resultados práticos dessas reformas foram úteis pelo menos para revelar outras fragilidades do modelo, que acabaram sendo aproveitadas para o encobrimento de possíveis irregularidades no financiamento de campanhas do conhecimento da sociedade e da Justiça Eleitoral. Trata-se de capítulo natural na crônica civilizatória de qualquer sociedade: para cada aprimoramento do sistema de controle social, a astúcia adaptativa do ilícito produz uma resposta correspondente. Isto é singularmente verdadeiro na seara eleitoral, em que a aplicação da legislação reclama constante supervisão por parte das instâncias estatais e da sociedade.

O que se verificou foi mais uma prova da aptidão que o dinheiro possui de se fazer clandestino. A partir da vigência da Lei 11.300/06, as doações a can-didatos e a comitês financeiros passaram a se submeter a regras mais rígidas de escrituração, coisa que não era exigida para doações feitas por meio dos partidos políticos. Aliás, até a superveniência da Lei 12.034/09, que inseriu um § 5º no art. 39 Lei 9.096/95, os recursos repassados por partidos políticos a candida-tos em período eleitoral nem mesmo se sujeitavam aos limites previstos na Lei 9.504/97. A permissividade com esse tipo de operação causou uma sensível alte-ração no perfil das doações particulares. Boa parcela dos repasses a candidatos passou a ser feita por intermédio dos partidos políticos, numa triangulação que encobria a identificação dos doadores originários e que, por isso mesmo, rece-beu a alcunha de “doação oculta”.

O fenômeno não passou incógnito aos especialistas no tema, que deram testemunho acadêmico desta migração já nas eleições municipais de 2008:

“(...) o mencionado cerco ao caixa dois e a maior contabilização de gastos e arrecadação, sem excluir a influência de alguns incrementos da Lei n. 11.300/2006 no campo das obrigações administrativas e contábeis de partidos e candidatos, devem-se muito mais ao fator psicológico advindo da pressão social, principal-mente por intermédio da mídia, e do aumento da atuação do órgão de controle.

Page 327: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

326

Ministro Teori Zavascki

A moeda de troca da criação desse cenário foi o exaustivamente noticiado aumento das doações ocultas, mediante o expediente, já tradicional nas eleições norte-americanas, de utilizar o partido político como intermediário no repasse de recursos a campanhas de determinados candidatos. De fato, ao contribuir por meio do partido, o doador fica livre de ter seu nome na relação de contri-buintes apresentada à Justiça Eleitoral pelo candidato ou pelo comitê financeiro da campanha; em seu lugar aparece apenas o nome do partido. De tal forma, o nome do doador só vem a público na prestação de contas da sigla partidária, realizada anualmente em abril. A utilização de tal modelo impede a investigação acerca da obediência aos limites de doação para pessoas físicas e jurídicas, bem como a identificação da vinculação do doador a determinado candidato.

Impressiona o aumento de tal expediente nas eleições municipais de 2008 em relação às de 2004. Conforme levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, em 2004, na capital paulista, as doações em nome de partidos e candidatos ficaram em apenas 9,28% da arrecadação declarada por comitês e candidatos; já em 2008, 53% das doações foram feitas em nome dos partidos. O fenômeno teve repercussão nacional, sendo utilizado por pelo menos 17 das 26 campanhas vitoriosas nas capitais. (...) (LORENCINI, Bruno César. O financiamento das campanhas eleitorais municipais em 2008. In: CAGGIANO, Monica Herman S. (org.). Comportamento eleitoral. Barueri/SP: Minha editora; Centro de estudos políticos e sociais, 2010. p. 111-112).

O diagnóstico dessa tendência de incremento do número de “doações ocultas” levou o Tribunal Superior Eleitoral a debater uma solução para atenuar o problema. Ela veio a ser encontrada pouco antes das eleições de 2014, e foi for-malizada nos termos do art. 26, § 3º, da Resolução 23.406/14, que passou a exigir que as doações entre partidos, comitês e candidatos fossem acompanhadas do registro do doador primitivo:

“Art. 26. As doações entre partidos políticos, comitês financeiros e candi-datos deverão ser realizadas mediante recibo eleitoral e não estarão sujeitas aos limites impostos nos incisos I e II do art. 25.

(...) § 3º As doações referidas no caput devem identificar o CPF ou o CNPJ do

doador originário, devendo ser emitido o respectivo recibo eleitoral para cada doação.”

A determinação do Tribunal Superior Eleitoral esclareceu que todos os recursos recebidos a título de doação, inclusive aqueles repassados por inter-médio de partidos, comitês ou outros candidatos, deveriam identificar os dados do responsável originário pelo depósito. Nada mais fez do que proclamar que o regime de registro contábil das doações de origem privada era um só, devendo ser aplicado tanto para doações diretas a candidatos como para aquelas realiza-das de modo indireto.

Todavia, na contramão do que havia sido estabelecido para as eleições de 2014, o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.165/15, aqui impugnada, no que adicionou o § 12 ao art. 28 da Lei 9.504/97, eliminando o registro individualizado

Page 328: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

327

Ministro Teori Zavascki

dos doadores nas transferências realizadas por partidos em benefício dos candi-datos. Por essa nova regra, as doações serão designadas tão somente pelas rubricas “transferências dos partidos” ou “transferências aos candidatos”, conforme o lan-çamento se dê, respectivamente, nas contas de candidatos ou partidos.

Na leitura da entidade requerente, este dispositivo é inconstitucional, porque “viola o princípio da transparência e o princípio da moralidade, e favo-rece, ademais, a corrupção, dificultando o rastreamento das doações eleitorais”, e por isso deve ser cautelarmente suspenso.

3. Não há como recusar plausibilidade ao argumento. Embora existam inúmeras controvérsias a respeito de qual o modelo de financiamento mais apropriado para afastar a influência predatória do poder econômico sobre as eleições — como ficou mais do que claro com as discussões que se estabelece-ram quando do julgamento da ADI 4.650 — um aspecto do debate parece livre de maiores disceptações: há necessidade de dar maior efetividade ao sistema de controle de arrecadação de recursos por partidos e candidatos.

No voto por mim proferido neste precedente fiz questão de frisar isso, que as desavenças experimentadas no cenário político brasileiro se devem muito mais às falhas de aplicação do modelo vigente do que à sua arquitetura norma-tiva propriamente dita. Peço vênia para transcrever trecho do que eu então pon-derava, e que agora reitero:

“(...) Não há dúvida que, nesse contexto, é de importância fundamental o

estabelecimento de um adequado marco normativo. Mas, somente ele não é suficiente para coibir as más relações entre política e dinheiro. Há, sobretudo, a questão da conduta. É preciso que as normas sejam efetivamente cumpridas e a punição seja efetivamente aplicada, se for o caso. Talvez aqui, mais do que na precariedade do marco normativo, esteja a fonte principal dos abusos do poder econômico e da corrupção política: no desrespeito das normas e na impunidade dos responsáveis.

(...) não há como desconhecer que, no Brasil, já passou da hora de prover medidas no sentido de alterar esse crônico estado das coisas, em que campeiam práticas ilegítimas de arrecadação de recursos, de excessos de gastos e de cor-rupção política. Todavia, mostra-se uma alternativa pouco afinada com a nossa experiência histórica imaginar que a corrupção eleitoral e o abuso do poder econômico sejam produto do atual regime normativo e que isso seria razão ou pretexto suficiente para declará-lo inconstitucional, propiciando assim a volta ao regime anterior, em que se proibia o aporte de recursos por pessoa jurídica. Só por messianismo judicial se poderia afirmar que, declarando a inconstitucio-nalidade da norma que autoriza doações por pessoas jurídicas e, assim, retornar ao regime anterior, se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. É ilusão imaginar que isso possa ocorrer, e seria extremamente desgastante à própria imagem do Poder Judiciário alimen-tar na sociedade, cansada de testemunhar práticas ilegítimas, uma ilusão que não tardará em se transformar em nova desilusão.

Page 329: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

328

Ministro Teori Zavascki

Por outro lado, o antídoto para os gastos excessivos de campanha elei-toral não é declarar a inconstitucionalidade das fontes de financiamento, cuja eliminação formal provavelmente seria imediatamente substituída por suple-mentação informal e ilegítima, como também mostram os exemplos históricos. A solução mais plausível será a criação de limites de gastos, acompanhada de instrumentos institucionais de controle e de aplicação de sanções, em casos de excessos. E a definição dos limites adequados é questão que não encontra resposta imediata nas normas constitucionais. Cumpre à lei dispor a respeito, como, aliás, está previsto no art. 17-A da Lei 9.504/97, introduzido pela Lei 11.300/2006.

Nesse domínio, assim como em relação aos limites de aportes financeiros de pessoas naturais ou de recursos próprios dos candidatos, o que há, na ver-dade, é um déficit normativo que, conforme demonstrado, não pode ser suprido no âmbito da presente ação.

É evidente, repita-se, que o marco normativo deve ser aperfeiçoado, mas não será a destruição do modelo existente, com o consequente restabelecimento de modelo anterior, que levará a esse aperfeiçoamento. A experiência comparada demonstra, no que toca às fontes de financiamento de partidos e campanhas, que o sensível e complexo empreendimento normativo está inserido necessariamente em contexto mais amplo e mais profundo de reforma política, especialmente do sistema eleitoral, empreendimento que, por elementar imposição do sistema constitucional de democracia representativa, é do Poder Legislativo.

Isso não significa que o Poder Judiciário esteja de braços atados no com-bate à corrupção eleitoral e ao abuso do poder econômico. Muito pelo contrário, considerando, conforme reiteradamente enfatizado ao longo deste voto, que a causa principal das mazelas decorrentes da indevida intromissão do poder econômico nas questões eleitorais não está na inconstitucionalidade do marco normativo e, sim, no seu sistemático descumprimento, cabe ao Judiciário, notadamente pelo braço da Justiça Eleitoral, zelar pela efetividade do modelo existente e, se for o caso, reprimir as condutas ilegítimas, aplicando, sem ter-giversações, as consequências previstas na Constituição e nas leis, inclusive a perda do cargo e a inelegibilidade, a partidos e candidatos que se valerem abusi-vamente do poder econômico nos pleitos eleitorais.

É indispensável, sim, que o Legislativo cumpra sua parte, e todas as forças sociais devem ser mobilizadas para sensibilizá-lo da urgência no atendimento desse dever constitucional. Mas não há dúvida que é também importante que essas mesmas forças sociais, as entidades organizadas, os órgãos de fiscalização, o Ministério Público, empreendam um continuado esforço coletivo destinado a impor a mudança de comportamento político, para minimamente ajustá-lo às normas já existentes. É preciso, sobretudo, que os abusos do poder econômico e a corrupção política tenham severa resposta repressiva por parte do Estado, sob pena de tornar ineficaz, não só o modelo atual, mas qualquer outro que venha a substituí-lo no futuro.”

Para alcançar a efetividade esperada, é indispensável imprimir transparên-cia às contas eleitorais. Sem as informações necessárias, dentre elas a identificação dos particulares que contribuíram originariamente para legendas e candida-tos, o processo de prestação de contas perde sua capacidade de documentar “a real movimentação financeira, os dispêndios e recursos aplicados nas campanhas

Page 330: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

329

Ministro Teori Zavascki

eleitorais” (art. 34, caput, da Lei 9.096/95), e se obstrui o cumprimento, pela Justiça Eleitoral, da relevantíssima competência constitucional (art. 17, III, da CF) de fis-calizar se o desenvolvimento da atividade político-partidária realmente assegura “a autenticidade do sistema representativo” (art. 1º, caput, da Lei 9.096/95).

A identificação fidedigna dos particulares responsáveis pelos aportes financeiros é informação essencial para que se possa constatar se as doações procedem, de fato, de fontes lícitas e se observaram os limites de valor previstos no art. 23 da Lei 9.504/97, como observa Denise Schlickmann, em comentário à Resolução 23.406/14, do TSE:

“O objetivo da inclusão é aferir, efetivamente, a fonte das doações que financiam as campanhas eleitorais, seus doadores originários, o que permite — além de conhecer as verdadeiras fontes de financiamento das campanhas — afe-rir o cumprimento das disposições legais que exigem a observância das fontes lícitas em campanha eleitoral e os limites fixados pela mesma Lei das Eleições. Para tanto, é necessária a emissão de recibo eleitoral para cada doador originá-rio, de forma a permitir, quando da doação ao beneficiário final, a identificação de todos os doadores que compuseram a origem do valor doado.

Com essa providência — inovadora e de efetivo cumprimento das dis-posições legais, quer pelos doadores de campanha eleitoral, quer pela Justiça Eleitoral, que tem o dever de aferir sua regularidade — o processo eleito-ral resta fortalecido e mais transparente, permitindo à sociedade conhecer quem são, efetivamente, os financiadores das campanhas eleitorais no Brasil.” (SCHLICKMANN, Denise Goulart. Financiamento de campanhas eleitorais. 7. ed. Curitiba: Juruá, 2014. p. 136)

Portanto, ao sonegar o conhecimento de uma informação relevante à Justiça Eleitoral, o conteúdo do § 12 do art. 28 da Lei 9.504/97, aqui atacado, já aparenta ser acintosamente contraditório com o preceito do art. 17, III, da Constituição Federal, pois, quando menos, ele retira da jurisdição eleitoral meios para exercer de forma realista o controle a posteriori das contas de par-tidos e candidatos. Somente isso já é substancioso o bastante para tornar a tese subscrita na inicial digna de receptividade por parte desse Tribunal.

4. Mas a impropriedade do preceito avulta para muito além isso. O retrocesso que ele representa é bem maior do que o já significativo desfalque instrumental no processo de prestação de contas. Na verdade, ele enseja o ames-quinhamento das condições ideais para a fruição de uma experiência eleitoral verdadeiramente democrática.

Realmente, no modelo representativo praticado no Brasil e na maioria das democracias ocidentais, os agentes eleitos possuem independência para o exercício do mandato, não se vinculando, nas suas atividades políticas, ao cumprimento de instruções daqueles que os elegeram e, a rigor, nem mesmo às próprias promessas feitas em campanha. Não se adota, portanto, a disciplina do mandato imperativo, em que a representação pode ser revogada pelos eleitores,

Page 331: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

330

Ministro Teori Zavascki

mas um modelo de responsabilidade política retrospectiva, em que as ações daqueles que foram escolhidos pelo sufrágio popular são julgadas somente ao final do mandato, quando se expõem novamente à aprovação das urnas.

Se é certo que os mandatários políticos devem desfrutar de independência para que possam cumprir o múnus público da representação — e a Constituição Federal garante isso, embora não explicitamente — em contrapartida exige--se deles um senso de responsabilidade cívica que vai além da manutenção do decoro específico do cargo em que está investido, contemplando a observância de outros deveres inerentes ao exercício de toda e qualquer função pública, den-tre os quais o de dar satisfações (“informações-respostas”) à sociedade pelos atos praticados em seu nome.

Como assentado em ciência política, esse mecanismo de informações--respostas é indispensável para garantir a realização de um efetivo controle social sobre a política e do financiamento eleitoral, como observou Vitor de Moraes Peixoto nesta síntese:

Para a análise que aqui se propõe, os efeitos sobre a primeira esfera (a democrática) são o ponto central. Faz-se, contudo, necessária uma flexibilização do conceito de accountability, pois, considerar-se-á não apenas o controle sobre as ações ou omissões ilícitas de agentes (ou agências), mas também o controle e produção de informações acerca dos mandatários e dos pleiteantes. Nesse que-sito, as agências estatais responsáveis pela “accountability horizontal” poderiam cumprir um papel para além de sua capacidade punitiva, qual seja, a de produzir “informações-respostas” necessárias para a efetivação da “accountability verti-cal”. Por accountability vertical entende-se a capacidade do cidadão em contro-lar seu representante e, obviamente, as eleições são o seu principal instrumento.

Dotar o sistema de financiamento com recursos que ensejam maior answerability (capacidade de produzir “informações-respostas” acerca das ações dos mandatários, como das pretensões dos candidatos, por exemplo) seria uma forma de prevenir possíveis futuras punições.

Como afirmaram Cheibub e Przeworski (1997, p. 52), “A responsabili-dade política é um mecanismo retrospectivo, no sentido de que as ações dos governantes são julgadas a posteriori, em termos dos efeitos que causam”. Por se consumarem, necessariamente, a posteriori, muitas destas ações produzem consequências custosas para sociedade (mesmo com a responsabilização dos agentes), que por outros caminhos poderiam ter sido evitadas caso houvesse ins-tituições que dotassem o sistema com mais “informações-respostas”. Em outras palavras, answerability é um importante insumo para a accountability vertical (Mainwaring, 2003), no entanto, a antecipação daquela pode até mesmo evitar situações desagradáveis em que esta seja necessária no seu sentido negativo.

O ponto central que aqui se defende é que a revelação de informações sobre os doadores e quantias doadas não interessa somente ao controle que as agências fiscalizadoras exercem a posteriori (após as eleições). Estas informações podem ser cruciais para os próprios eleitores no momento da tomada de decisão do voto. A identificação dos financiadores das campanhas durante o período eleitoral incrementaria o rol de “sinais” disponível aos eleitores, antecipando

Page 332: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

331

Ministro Teori Zavascki

até mesmo prováveis punições que seriam somente possíveis quatro anos mais tarde. Em resumo: se as informações estiverem disponíveis aos eleitores durante a campanha, poderão atuar como os “sinais” (simple cues) que substituem a informação completa e conferem maior previsibilidade ao sistema. (PEIXOTO, Vitor de Moraes. Financiamento de campanhas: o Brasil em perspectiva compa-rada. Perspectivas, São Paulo, v. 35, jan./jun. 2009, p. 102)

As informações sobre as doações de particulares a candidatos e a partidos não interessam, pois, apenas às instâncias estatais responsáveis pelo controle da regularidade das contas de campanha, mas à sociedade como um todo. E esses dados possuem valor não apenas após a realização das eleições, na forma de um diagnóstico final da arrecadação e dos gastos realizados, mas sobretudo antes disso, quando os cidadãos ainda podem alterar a sua opção de voto. A divulga-ção nesse momento é essencial para habilitar o eleitor a fazer uma prognose mais realista da confiabilidade das promessas manifestadas em campanha. Afinal, o conhecimento dos nomes dos doadores ilumina conexões políticas facilmente subtraídas do público nos discursos de campanha, denunciando a maior ou menor propensão dos candidatos e partidos a abandonar suas convicções ideo-lógicas em posturas de pragmatismo político questionáveis, como o fisiologismo, que, se conhecidas de antemão, poderiam sofrer a rejeição do eleitorado.

É necessário garantir ao eleitor a possibilidade de fazer esse juízo antes do momento da escolha nas urnas. Foi por isso que a própria Lei 13.165/15 conferiu a seguinte redação ao § 4º do art. 28 da Lei das Eleições, obrigando a divulgação, durante a campanha eleitoral, dos recursos recebidos por partidos, coligações e candidatos (os relatórios parciais, de que falavam as redações anteriores desse mesmo dispositivo):

Art. 28. A prestação de contas será feita: (...) § 4º Os partidos políticos, as coligações e os candidatos são obrigados,

durante as campanhas eleitorais, a divulgar em sítio criado pela Justiça Eleitoral para esse fim na rede mundial de computadores (internet): (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015)

I – os recursos em dinheiro recebidos para financiamento de sua campa-nha eleitoral, em até 72 (setenta e duas) horas de seu recebimento; (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015)

II – no dia 15 de setembro, relatório discriminando as transferências do Fundo Partidário, os recursos em dinheiro e os estimáveis em dinheiro recebi-dos, bem como os gastos realizados. (Redação dada pela Lei n 13.165, de 2015)

(...)§ 7º As informações sobre os recursos recebidos a que se refere o § 4º

deverão ser divulgadas com a indicação dos nomes, do CPF ou CNPJ dos doado-res e dos respectivos valores doados. (Incluído pela Lei n. 13.165, de 2015)

O esclarecimento público dessa realidade traz vantagens evidentes para a democracia brasileira. Num primeiro plano, qualifica o exercício da cidadania,

Page 333: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

332

Ministro Teori Zavascki

permitindo uma decisão de voto melhor informada, já que confere ao eleitor um elemento a mais para avaliar a seriedade das propostas de campanha. A divulgação de informações sobre a origem dos recursos recebidos por parti-dos também capacita a sociedade civil, inclusive aqueles que concorrem entre si na disputa eleitoral, a cooperar com as instâncias estatais na verificação da legitimidade do processo eleitoral, fortalecendo, assim, o controle social sobre a atividade político-partidária. Por fim, o acesso a esses dados ainda propicia o aperfeiçoamento da própria política legislativa de combate à corrupção eleito-ral, ajudando a denunciar as fragilidades do modelo e a inspirar propostas de correção futuras.

A ADI 4.650, a audiência pública realizada a seu propósito pelo Min. Luiz Fux e os debates que ela produziu nos meios de informação são exemplos categóricos disso. Sem as informações hoje conhecidas a respeito dos maiores doadores de campanhas no Brasil, a ação direta talvez não tivesse tido o mesmo destino. Talvez não tivesse sido nem mesmo ajuizada.

5. A busca pela “verdade eleitoral”, tanto antes como após as eleições, depende, portanto, de transparência. Este conceito é mais do que um subprin-cípio ou uma figura parcelar do princípio da publicidade. Instrumento sine qua non para o acesso ao direito fundamental à informação, a transparência cons-titui verdadeira condição da realização da democracia material, uma política pública de governança exigível de toda e qualquer instância da administração pública brasileira, nos termos da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), mas que se impõe, de modo especialmente intenso, à regulamentação das elei-ções no país, por força da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003 e internalizada definitivamente ao ordenamento nacional, com força de lei ordinária, pelo Decreto Presidencial 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

O item 3 do artigo 7º determina o seguinte:

3. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financia-mento de partidos políticos.

A mensagem normativa do ordenamento brasileiro em favor da trans-parência é tão contundente que transcende a governança pública, alcançando também as pessoas jurídicas que interagem com a Administração Pública brasi-leira, entre eles as associações de pessoas, como indica a Lei 12.846/13 ao carac-terizar como lesivos à administração pública nacional ou estrangeira inclusive os seguintes atos:

Page 334: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

333

Ministro Teori Zavascki

Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídi-cas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

(...) III – comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica

para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

Embora não seja estritamente aplicável à seara eleitoral, este dispositivo obvia a perplexidade que a norma impugnada na presente ação direta provoca, pois o que ela permite é justamente que doadores de campanha ocultem ou dis-simulem seus interesses em prejuízo do processo eleitoral. Ao determinar que as doações feitas a candidatos por intermédio de partidos sejam registradas sem a identificação dos doadores originários, a norma institui uma metodologia con-tábil diversionista, estabelecendo uma verdadeira “cortina de fumaça” sobre as declarações de campanha e positivando um controle de fantasia. Pior, premia o comportamento elusivo dos participantes do processo eleitoral e dos responsáveis pela administração dos gastos de campanha, reverenciando o patrocínio eleitoral dissimulado. Isto sem dúvida alguma atenta contra todo um bloco de princípios constitucionais que estão na medula do sistema democrático de representação popular, como o princípio republicano, o da moralidade e o da publicidade.

6. Não há qualquer justificativa razoável que milite em favor da ocultação contábil dos doadores originários. Não custa lembrar que, além das doações de particulares ou de partidos, a legislação eleitoral permite o aporte às cam-panhas eleitorais (art. 44, III, da Lei 9.096/95) de um percentual dos valores recebidos pelos partidos políticos do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos ou somente Fundo Partidário. Mas, diante da natureza pública destes recursos, a Lei dos Partidos Políticos exige a discriminação deta-lhada da sua aplicação (art. 44, § 1º, da Lei 9.096/95), inclusive pela identificação dos destinatários, quando da apresentação do balanço:

Art. 33. Os balanços devem conter, entre outros, os seguintes itens: I – discriminação dos valores e destinação dos recursos oriundos do

fundo partidário; II – origem e valor das contribuições e doações; III – despesas de caráter eleitoral, com a especificação e comprovação dos

gastos com programas no rádio e televisão, comitês, propaganda, publicações, comícios, e demais atividades de campanha;

IV – discriminação detalhada das receitas e despesas.

Mutatis mutandis, o que se exige em relação às doações feitas por parti-culares a partidos é o mesmo: que se identifique o seu destinatário final, para fins de cumprimento dos demais limites e vedações da Lei 9.504/97. Daí por que

Page 335: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

334

Ministro Teori Zavascki

não procede aquilo que foi sustentado nas informações prestadas pelo Senado Federal, de que o § 12 do art. 28 da Lei 9.504/97 teria objetivado a mera simpli-ficação das contas eleitorais. Como visto, o registro dos doadores originários segue a mesma intuição que já prevalece quanto a outras transferências finan-ceiras dos partidos políticos, e nunca houve quem dissesse que isso impediu quem quer que fosse de prestar contas à Justiça Eleitoral.

Esta, aliás, também parece ser a razão pela qual a Justiça Eleitoral, em boa hora, se adiantou em produzir uma regulamentação (o art. 26, § 3º, da Resolução 23.406/14) que esclarecia a necessidade de declinação do nome dos doadores originários, nos casos de transferências entre partidos, candidatos e comitês. Por tudo o que se mostrou aqui, fica claro que a Resolução apenas incorporou uma linguagem de transparência que, além de já presente em outras passagens da própria legislação eleitoral, é assente em diferentes documentos normativos de nosso ordenamento, pelo que não há que se cogitar de abuso de função regulamentar.

Por derradeiro, é equivocado pensar que a divulgação dos nomes daque-les que contribuem com candidatos por intermédio de partidos possa configu-rar afronta aos direitos de privacidade e de expressão dos doadores, ou mesmo que a publicização da transferência produza efeitos inibitórios relevantes sobre a participação política destes últimos. Como já se disse, essas informações são relevantes para a sociedade como todo. Ademais, a legislação brasileira oferece outras possibilidades de apoiamento não financeiro além do voto, que não estão sujeitas a contabilização, dentre as quais as seguintes:

“Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimá-veis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei. (Redação dada pela Lei 12.034, de 2009):

(...) § 7º O limite previsto no § 1º não se aplica a doações estimáveis em

dinheiro relativas à utilização de bens móveis ou imóveis de propriedade do doa-dor, desde que o valor estimado não ultrapasse R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). (Redação dada pela Lei 13.165, de 2015)

(...)Art. 27. Qualquer eleitor poderá realizar gastos, em apoio a candidato de

sua preferência, até a quantia equivalente a um mil UFIR, não sujeitos a contabi-lização, desde que não reembolsados.”

E, como bem lembrado pelo Procurador-Geral da República em seu parecer, nem mesmo a Suprema Corte americana considerou que a liberdade de expressão pudesse constituir objeção relevante à divulgação dos nomes dos doadores de campanha:

“No conhecido julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos conhe-cido como Citizens United vs. Federal Communications Comission, o tema da

Page 336: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

335

Ministro Teori Zavascki

divulgação (disclosure) de doadores em campanhas e atos de cunho eleitoral foi abordado. Considerou-se ali até outro ângulo, não abordado desta ação: o de que a obrigatoriedade de revelação dos doadores de candidatos poderia pôr em risco o direito à liberdade de expressão, por gerar risco de retaliações e ameaças contra aqueles. O argumento foi rejeitado, com o fundamento de que o dever de transparência pode causar ônus à habilidade de o cidadão expressar-se, mas não impõe limites indevidos a atividades eleitorais nem proíbe ninguém de se expressar. Ademais, esse dever estaria justificado por um interesse público sufi-cientemente importante, ou seja, o de fornecer ao eleitorado informação sobre as fontes de gastos eleitorais e permitir-lhe decisões informadas no espaço público.”

Por tudo o que se vem de expor, é inevitável a conclusão de que a parte final do § 12 do art. 38 da Lei 9.504/97, acrescentado pela Lei 13.165/15, suprime transparência do processo eleitoral, frustrando o exercício adequado das fun-ções constitucionais da Justiça Eleitoral e impedindo que o eleitor exerça, com pleno esclarecimento, seu direito de escolha dos representantes políticos, o que atenta contra a arquitetura republicana e a inspiração democrática que a Constituição Federal imprimiu ao Estado brasileiro.

Estes motivos são mais do que suficientes para dar respaldo à plausibi-lidade do que sustentado na inicial e — ao lado da proximidade do ciclo elei-toral de 2016, bem assim da necessidade de prover maior segurança jurídica à regulamentação do sufrágio pelo Tribunal Superior Eleitoral (art. 105 da Lei 9.504/97) — caracterizam situação de prioridade excepcional que autorizam o Supremo Tribunal Federal a deferir a cautelar nos termos em que ela foi pedida.

7. Pelo exposto, acolho o pedido de cautelar deduzido na inicial para sus-pender, até o julgamento final desta ação, a eficácia da expressão “sem individu-alização dos doadores”, constante da parte final do § 12 do art. 28 da Lei federal 9.504/97, acrescentado pela Lei 13.165/15.

Dispensável enfatizar que a presente medida cautelar alcança doações relativas às eleições de 2016, sendo impertinente a invocação do princípio da anualidade eleitoral de que trata o art. 16 da Constituição. De qualquer modo, para afastar qualquer dúvida a respeito, proponho, com base no § 1º do art. 11 da Lei 9.868/99, que se confira à decisão eficácia ex tunc.

É o voto.

Page 337: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

336

Ministro Teori Zavascki

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 580.252 — MS

VOTO

O Sr. Ministro Teori Zavascki (Relator): 1. Registre-se, inicialmente, que não há, aqui, qualquer controvérsia a respeito dos fatos da causa, nem quanto à configuração do dano moral, cuja existência é reconhecida. O próprio acórdão recorrido deixa expresso que “é notório que a situação do sistema penitenciário sul-mato-grossense tem lesado direitos fundamentais seus, quanto à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica” (fl. 11). Realmente, em todos os atos decisórios do processo, sem exceção, está reconhecida a absoluta pre-cariedade das condições carcerárias do estabelecimento penal de Corumbá/MS. O voto vencedor proferido na apelação registrou que “no caso dos autos, é público e notório que a Vigilância Sanitária do Município de Corumbá-MS, em diligência, ocorrida no ano de 2003, constatou que efetivamente há superlotação, além de outros inúmeros problemas de higiene, havendo, outrossim, até o risco de transmissão de doenças, tendo determinado a adoção de providência para sanar tais deficiências” (fl. 332 dos apensos). O acórdão dos infringentes, por sua vez, salientou que “(...) são notórias as condições precárias dos estabelecimentos penitenciários do país, nos quais, em sua grande maioria, não têm o mínimo de higiene ou salubridade, passam pelo problema da superlotação e da falta de agentes, que consequentemente, trazem danos aos presos” (fl. 405 dos apensos). A realidade também está traduzida em documento encaminhado aos autos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Ofício 3.679/2004-DEPEN/GAB, fls. 247/248 dos apensos) e, ainda, em ato do próprio Governador do Estado de Mato Grosso, o Decreto “E” n. 41, de 18 de maio de 2006, publicado no Diário Oficial 6.731, de 19 de maio de 2006.

Portanto, repita-se, os fatos da causa são incontroversos: o recorrente, assim como os outros detentos do presídio de Corumbá/MS, cumprem pena privativa de liberdade em condições não só juridicamente ilegítimas (porque não atendem às mínimas condições de exigências impostas pelo sistema nor-mativo), mas também humanamente ultrajantes, porque desrespeitosas a um padrão mínimo de dignidade. Também não se discute que, nessas condições, o encarceramento impõe ao detendo um dano moral, cuja configuração é, nessas circunstâncias, até mesmo presumida.

Sendo incontroversos os fatos da causa e a ocorrência do dano, a questão jurídica desenvolvida no presente recurso ficou restrita à sua indenizabilidade, ou seja, à existência ou não da obrigação do Estado de ressarcir os danos morais verificados nas circunstâncias enunciadas. É nesses limites e sob esse enfoque que o recurso extraordinário deve ser examinado.

Page 338: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

337

Ministro Teori Zavascki

2. O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato dos agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37, § 6º, da Constituição, disposição normativa autoaplicá-vel, não sujeita a intermediação legislativa ou administrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo à indenização. Ocorrendo o dano e estabele-cido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado, caso em que os recursos financeiros para a satisfação do dever de indenizar, objeto da condenação, serão providos, se for o caso, na forma do artigo 100 da Constituição.

3. Sendo assim, e considerando que, no caso, a configuração do dano é matéria incontroversa, não há como acolher os argumentos que invocam, para negar o dever estatal de indenizar, o “princípio da reserva do possível”, nessa dimensão reducionista de significar a insuficiência de recursos financeiros. Faz sentido considerar tal princípio em situações em que a concretização de certos direitos constitucionais fundamentais a prestações, nomeadamente os de natu-reza social, dependem da adoção e da execução de políticas públicas sujeitas à intermediação legislativa ou à intervenção das autoridades administrativas. Em tais casos, pode-se afirmar que o direito subjetivo individual a determinada prestação, que tem como contrapartida o dever jurídico estatal de satisfazê-la, fica submetido, entre outros, ao pressuposto indispensável da reserva do pos-sível, em cujo âmbito se insere a capacidade financeira do Estado de prestar o mesmo benefício, em condições igualitárias, em favor de todos os indivíduos que estiverem em iguais condições.

Mas não é disso que aqui se cuida. Aqui, a matéria jurídica se situa no âmbito da responsabilidade civil do Estado de responder pelos danos causados por ação ou omissão de seus agentes, nos termos previstos no art. 37, § 6º, da Constituição. Conforme antes afirmado, trata-se de preceito normativo autoa-plicável, não sujeito a intermediação legislativa ou a providência administrativa de qualquer espécie. Ocorrendo o dano e estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado.

4. Não há dúvida de que o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto ali permanecerem detidas. E é dever do Estado mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir os danos que daí decorrerem. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, deixou assentada a responsabilidade objetiva do Estado pela integridade física e psíquica daqueles que estão sob sua custódia. No ARE 662.563 AgR/GO, DJE de 2-4-2012, o Min. Gilmar Mendes, relator, afirmou em seu voto que “(…) a jurisprudência dominante desta Corte que se firmou no sen-tido de que a negligência estatal no cumprimento do dever de guarda e vigilância

Page 339: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

338

Ministro Teori Zavascki

dos detentos configura ato omissivo a dar ensejo à responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que, na condição de garante, tem o dever de zelar pela integri-dade física dos custodiados (...)”. Esse dever de proteção, assentou a Segunda Turma, abrange, inclusive, o de protegê-los contra eles próprios, impedindo que causem danos uns aos outros ou a si mesmos (RE 466.322 AgR/MT, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJE de 27-4-2007). No mesmo sentido: RE 272.839, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 8-4-2005).

5. Não se nega que a eliminação ou, pelo menos, a redução de violações à integridade e à dignidade da pessoa dos presos dependem da adoção de polí-ticas públicas sérias e voltadas especificamente à obtenção de tais resultados. Disso não decorre, porém, que as violações causadoras de danos pessoais, mesmo morais, aos detentos, ainda ocorrentes, devam ser mantidas impunes ou não passíveis de indenização, ainda mais nas circunstâncias fáticas descritas na presente causa, em que o próprio acórdão recorrido admite que “é notório que a situação do sistema penitenciário sul-mato-grossense tem lesado direitos fundamentais seus, quanto à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica” (fl. 11). Porque juridicamente bem diferenciadas e inconfundíveis, merecem tratamento diferenciado as seguintes situações: uma, a de instituir políticas públicas de melhoria das condições carcerárias, que aqui não está em discussão; e a outra, juridicamente bem distinta, a do dever do Estado de inde-nizar danos individuais — seja de natureza material, seja de natureza moral — causados a detentos. É dessa última que aqui se trata. A obrigação de ressarcir danos, que é imposta pelas leis civis a qualquer pessoa que os cause (Código Civil, arts. 186 e 927), é também do Estado, que, mais que decorrer da norma civil (Código Civil, art. 43), tem previsão em superior norma específica, o art. 37, § 6º, dispositivo autoaplicável, não sujeito a intermediação legislativa ou admi-nistrativa para assegurar o correspondente direito subjetivo.

6. É evidente, pois, que as violações a direitos fundamentais causadoras de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários não podem ser sim-plesmente relevadas ao argumento de que a indenização não tem o alcance para eliminar o grave problema prisional globalmente considerado, que depende da definição e da implantação de políticas públicas específicas, providências de atribuição legislativa e administrativa, não de provimentos judiciais. Esse argu-mento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuação da desumana situação que se constata em presídios como o de que trata a presente demanda. Ainda que se admita não haver direito subjetivo individual de deduzir em juízo pretensões que visem a obrigar o Estado a formular e implantar política pública determi-nada, inclusive em relação à questão carcerária, certamente não se pode negar ao indivíduo encarcerado o direito de obter, inclusive judicialmente, pelo menos o atendimento de prestações inerentes ao que se denomina mínimo existencial, assim consideradas aquelas prestações que, à luz das normas constitucionais,

Page 340: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

339

Ministro Teori Zavascki

podem ser desde logo identificadas como necessariamente presentes qualquer que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida. E ninguém pode duvidar de que, em qualquer circunstância, jamais se poderia excluir das obri-gações estatais em matéria carcerária a de indenizar danos individuais de qual-quer natureza causados por ação ou omissão do Estado a quem está, por seu comando, submetido a encarceramento.

7. Não custa recordar que a garantia mínima de segurança pessoal, física e psíquica, dos detentos, constitui dever estatal que possui amplo lastro não ape-nas no ordenamento nacional (Constituição Federal, art. 5º, XLVII, “e”; XLVIII; XLIX; Lei 7.210/84 (LEP), arts. 10; 11; 12; 40; 85; 87; 88; Lei 9.455/97 — crime de tortura; Lei 12.874/13 — Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), como também em fontes normativas internacionais adotadas pelo Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, arts. 2; 7; 10; e 14; Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, arts. 5º; 11; 25; Princípios e Boas Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas — Resolução 01/08, aprovada em 13 de março de 2008, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Convenção da ONU contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; e Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros — adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes, de 1955). Sob esse aspecto, pode-se afirmar, como o fez Fernanda Mathias de Souza Garcia em notável estudo doutrinário a respeito, que, “no que tange ao direito do presidiário à saúde, ao bem estar, à proteção, à vida, cabe reconhecer um verda-deiro direito público positivo e individual a prestações materiais, deduzidos dire-tamente da Constituição (...)” (GARCIA, Fernanda Mathias de Souza. O dever de indenização e a superlotação carcerária no Brasil. Temas Contemporâneos do Direito — Homenagem ao Bicentenário do Supremo Tribunal Federal. obra coletiva, Luiz Guerra (coord.), Brasília: Guerra Editora, 2011. p. 201).

A despeito do alto grau de positivação jurídica, a efetivação desse direito básico ainda constitui um desafio mundial inacabado, cuja superação é especial-mente deficitária em muitos países de desenvolvimento tardio, como nas nações da América Latina em geral e no Brasil em especial, uma das cinco nações com maior população carcerária no mundo. Não por outra razão, o Brasil, nos últi-mos 10 anos, foi seguidamente notificado pela Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH) para tomar medidas emergenciais em relação a pelo menos três presídios específicos, por conta de suas condições intoleráveis (Urso Branco, em Porto Velho/RO; Pedrinhas/MA; e Presídio Central, em Porto Alegre/RS). É significativa, ainda, a menção a excerto do Relatório Final produzido em 2009 por Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, no qual se conclui que “a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sis-tema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins,

Page 341: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

340

Ministro Teori Zavascki

rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário” (fl. 247).

São evidentemente atuais, nesse sentido, as palavras de Heleno Fragoso:

“12. Embora as leis digam que tem de ser preservada a dignidade humana dos presos, em nossas prisões as condições de vida são intoleráveis. Aos defeitos comuns em todas as prisões, acrescentam-se, nas nossas, a superlotação, a ocio-sidade e a promiscuidade. Os presos não têm direitos. A prisão reflete, em ultima análise, condições estruturais da sociedade, que a mantém, como realidade violenta e totalizante e que dela se serve. A prisão também cumpre uma função ideológica importante, como expressão do castigo, no esquema da repressão, formando falsamente a imagem do criminoso. Sabemos hoje muito bem que não é possível, através da prisão, alcançar a ressocialização ou a readaptação social do condenado.

(...) 14. Os direitos humanos estão interligados. Não é possível suprimir os

direitos civis e políticos, para realizar os direitos econômicos, sociais e cul-turais, ao contrário do que têm afirmado os ditadores. Do mesmo modo, só com reformas sociais importantes, que acabem com a miséria e proporcionem melhor nível de vida, será possível estabelecer regimes de liberdade. Os povos do Terceiro Mundo já compreenderam que o crescimento econômico, por si só, não resolve o problema da pobreza, antes o agrava, como o exemplo do Brasil demonstrou tão bem, quando se adota um modelo de desenvolvimento que só beneficia os que possuem. Daí o crescimento da criminalidade, que se procura inutilmente combater endurecendo o sistema repressivo e desrespeitando, cada vez mais, os direitos humanos.

(...) 16. A realização dos direitos humanos na justiça criminal está, pois,

em função de um problema essencialmente político. É preciso compreender que aqui está o fundo da questão. Esses direitos só serão observados na jus-tiça criminal de uma sociedade autenticamente democrática, onde se afirme como valor fundamental, verdadeiramente, o respeito à dignidade da pessoa humana, na luta permanente do povo contra a opressão, pela liberdade, pela justiça e pela paz” (FRAGOSO, Heleno. Boletim 150, maio de 2005, Instituto Brasileiro de ciências criminais. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/boletim_sumario/179-150-Maio-2005).

8. Não se pode deixar de reconhecer — pelo contrário, é preciso que isso seja também enfatizado — que a indigência carcerária representa apenas uma parte — importante, mas uma parte apenas — de um todo maior, que é o sis-tema de segurança pública oferecido pelo Estado brasileiro. É sabido que a dis-funcionalidade desse sistema percorre todos os seus níveis, e dele se constata, claramente: (a) baixa eficiência das ações de polícia preventiva; (b) ínfimo per-centual de elucidação de crimes violentos; (c) demora na formação da culpa pelo aparelho de persecução penal; (d) desumanização no cumprimento da pena; e (e) recidiva do comportamento criminoso. Segundo relatório divulgado em abril

Page 342: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

341

Ministro Teori Zavascki

de 2014 pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime — UNODC (http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/GSH2013/2014 GLOBAL HOMICIDE BOOK web.pdf), durante o ano de 2012, o Brasil conta-bilizou 50.108 homicídios em seu território (25,1 homicídios para cada 100 mil habitantes), o que representou cerca de 11% de todos os assassinatos cometidos no planeta no mesmo período. O dado, alarmante por si só, fica ainda mais perturbador quando analisado conjuntamente com as estatísticas reunidas pelo Conselho Nacional do Ministério Público em 2012 (http://www.cnmp.mp.br/ portal/images/stories/Enasp/relatorio enasp_FINAL.pdf) que estimam em algo em torno de 5% o número de inquéritos que resultam na elucidação da autoria de homicídios. E, como todos sabemos, desses, apenas uma parcela irrisória resulta em condenação judicial.

9. Há, ademais, o lado ainda mais sombrio: as vítimas de crimes violentos, ou seus herdeiros, além de ultrajados pela ação de criminosos que raramente serão submetidos às penalidades da lei, ficam muitas vezes desamparadas de qualquer compensação ou ressarcimento dos prejuízos morais e materiais que a violência lhes infligiu. Tem-se, aqui, o fenômeno da vitimização secundária, ainda não aplacado pelo legislador ordinário, que até hoje não regulamentou o art. 245 da Constituição, segundo o qual “A lei disporá sobre as hipóteses e condi-ções em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”. 10. Embora sejam de suma importância todas as questões relacionadas

ao sistema de segurança pública e aos direitos que devem ser assegurados às vítimas de crimes e aos seus herdeiros, cumpre renovar a observação de que a presente demanda diz respeito apenas a uma parte restrita dessa problemática: a da lesão à pessoa do detento. A reparabilidade civil a que fazem jus pelos danos que venham a sofrer em função das ilegais e desumanas condições de encarce-ramento a que se acham submetidos não fica comprometida nem limitada pelo deficiente funcionamento dos demais elos do sistema de segurança pública. Havendo a transgressão dos limites normativos de aplicação da pena, deve o Poder Judiciário agir para restabelecer prontamente a ordem jurídica, inclusive por meio da tutela repressiva de natureza cível. A responsabilidade do Judiciário não se esgota no controle do processo penal, nem tampouco na fiscalização administrativa das condições dos estabelecimentos penitenciários, mas alcança, igualmente, o aspecto civil decorrente de eventuais violações aos direitos de per-sonalidade dos detentos. Essa tutela chega a ser explicitamente garantida pela Constituição Federal em caso de erro judiciário (art. 5º, LXXV), e compreende, naturalmente, outras dimensões de violações aos direitos humanos dos custo-diados. Caracterizada a atitude opressiva do Estado, a ocorrência do dano mate-rial ou moral e o nexo causal, deve ser imposta a condenação correspondente. A

Page 343: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

342

Ministro Teori Zavascki

criação de subterfúgios teóricos (tais como a separação dos Poderes, a reserva do possível e a natureza coletiva dos danos sofridos) para afastar a responsabilidade estatal pelas calamitosas condições da carceragem de Corumbá/MS, afronta não apenas o sentido do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, como determina o esvaziamento das inúmeras cláusulas constitucionais e convencionais antes citadas, transformando o seu descumprimento reiterado em mero e inconse-quente ato de fatalidade, o que não pode ser tolerado.

Convém enfatizar que a invocação seletiva de razões de estado para negar, especificamente a determinada categoria de sujeitos, o direito à integri-dade física e moral, não é compatível com o sentido e o alcance do princípio da jurisdição, já que, acolhidas essas razões, estar-se-ia recusando aos detentos os mecanismos de reparação judicial dos danos sofridos, deixando-os a descoberto de qualquer proteção estatal, numa condição de vulnerabilidade juridicamente desastrosa. Trata-se de uma dupla negativa, do direito e da jurisdição. Não pode a decisão judicial, que é o subproduto mais decantado da experiência jurídica, desfavorecer sistematicamente a um determinado grupo de sujeitos, sob pena de comprometer a sua própria legitimidade.

11. Em suma, a tese de repercussão geral que proponho seja afirmada é a seguinte: considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema norma-tivo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, compro-vadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.

12. Diante do exposto, conheço do recurso extraordinário e a ele dou provimento, para restabelecer o juízo condenatório nos termos e nos limites do acórdão proferido no julgamento da apelação. É o voto. Publicado sem revisão.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 643.978 — SE

VOTO

O Sr. Ministro Alexandre de Moraes (Relator): Inicialmente, registre-se que o Juízo de origem não atuou, na hipótese, em desacordo com o previsto no art. 97 da CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O TRF da 5ª Região, na esteira do voto vencedor, apontou o seguinte, nos embargos infringentes (e-STJ, fl. 292, vol. 3):

(...)

Page 344: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

343

Ministro Teori Zavascki

O parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 7.347/85, na redação da MP nº 2.180-35/2001, deve ser lido de conformidade com a Constituição (confira--se o RE 472482/RS), não havendo necessidade de arguição de incidente de inconstitucionalidade. Ao vedar o ajuizamento de ação civil pública, no tocante a pretensões relacionadas com o FGTS, o dispositivo buscou apenas evitar a vulgarização da ação coletiva, especialmente pelo seu não manejo para fins de simples movimentação ou discussão hipóteses de saque de contas fundiárias, ao sabor de interesses individualizados. In casu, o que está em discussão é a pró-pria sistemática de um fundo público (não pretensões diluídas), de dimensões humanas e financeiras grandiosas, que concretiza um direito fundamental, viabilizando-se a propositura da ação civil pública.

Não se pode concluir que o decisum atacado obstou a incidência da norma infraconstitucional insculpida no parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/1985 (instituída pela MP 2.180-35/2001), ou que foi declarada a sua inconstitucionali-dade, ainda que implicitamente.

Efetivamente, o órgão a quo restringiu-se a considerar viável, no caso con-creto, a atuação do Ministério Público por intermédio da ação civil pública, por se tratar de hipótese não vedada pelo indigitado preceito legal, expediente que prescinde da instauração do incidente contido no art. 97 da CARTA MAGNA.

Citem-se os seguintes precedentes, ilustrativos do entendimento desta Suprema Corte:

AGR AVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA À SÚMULA VINCULANTE Nº 10. ACÓRDÃO PROFERIDO EM JULGAMENTO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO QUE CONFIRMA MEDIDA ACAUTELATÓRIA DE PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE. IRRADIAÇÃO DE NORMA CONSTITUCIONAL QUE NÃO SE CONFUNDE COM JUÍZO DE INCONSTITUCIONALIDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA À CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO QUANDO SE TRATA DE DECISÃO DE NATUREZA PRECÁRIA. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A mera interpretação de preceitos constitucionais, sem nega-tiva de vigência a qualquer diploma normativo, não tem o condão de represen-tar ofensa à cláusula de reserva de plenário e, por conseguinte, ao enunciando da Súmula Vinculante nº 10. 2. In casu, a decisão reclamada, proferida em sede liminar, não se fundamentou na declaração de inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, mas na interpretação dos fatos à luz da Constituição da República. 3. A Súmula Vinculante 10 se aplica apenas a situações em que haja declaração final de inconstitucionalidade de norma, não abarcando as decisões interlocutórias. Precedentes: Rcl 21.723 ED-AgR, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 15-9-2015; Rcl 17.288 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 26-8-2014. 4. Agravo interno despro-vido. Rcl 25.294 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJE de 8-6-2017.

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SAT/RAT. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DA CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – Para haver violação da cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97

Page 345: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

344

Ministro Teori Zavascki

da Constituição e na Súmula Vinculante 10 do STF, por órgão fracionário de Tribunal, é preciso que haja uma declaração explícita de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, ou implícita, no caso de afastamento da norma com base em fundamento constitucional. II – Acórdão recorrido efe-tuou o controle da legalidade do Decreto 6.042/2007. Não ocorrência de violação da cláusula de reserva de plenário. III – Agravo regimental a que se nega pro-vimento. ARE 959.178 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJE de 15-3-2017.

E o entendimento formado no AI 472.897 AgR (Segunda Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 26-10-2007) não abriga a postulação recursal, pois se cuidou de situação distinta no supracitado precedente. Naquela oportu-nidade, a violação à cláusula constitucional da reserva do plenário por ato de órgão fracionário do respectivo tribunal emergiu do afastamento da aplicação de norma infraconstitucional com fundamento em critério oriundo, essencial-mente, da CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Ademais, o PLENÁRIO desta SUPREMA CORTE firmou entendimento no sentido de que o enunciado da SV 10 não é ignorado na hipótese em que há resolução de litígio fundada na aplicação da norma infraconstitucional, con-forme exegese dela extraída, expediente habitual na atividade judicante. Nesse sentido:

RESERVA DE PLENÁRIO. VERBETE VINCULANTE Nº 10 DA SÚMULA DO SUPREMO. INCONSTITUCIONALIDADE VERSUS INTERPRETAÇÃO DE NORMA LEGAL. O Verbete Vinculante nº 10 da Súmula do Supremo não alcança situações jurídicas em que o órgão julga-dor tenha dirimido conflito de interesses a partir de interpretação de norma legal. Rcl 10.865 AgR, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, DJE de 31-3-2014.

Por sua vez, em se tratando da controvérsia a respeito da legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública cujo objeto seja preten-são relacionada ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), consigno, desde logo, que o Parquet detém competência e legitimidade constitucional para provocar o Poder Judiciário pela via da ação civil pública na presente situação, por ser, também, o paladino dos excepcionais interesses individuais homogê-neos de elevada robustez social. Destaco, em sede doutrinária, a lição do sau-doso Min. TEORI ZAVASCKI:

“(...) É, pois, o art. 127 da CF — que atribui ao Ministério Público a incum-bência de promover a defesa dos interesses sociais e que tem a força normativa específica de conferir legitimação para atuar extrajudicialmente e também para demandar em juízo — que oferece base constitucional para responder às inda-gações antes formuladas. É certo que os interesses sociais, assim entendidos aqueles cuja tutela é importante para preservar a organização e o funcionamento da sociedade e para atender suas necessidades de bem-estar e desenvolvimento,

Page 346: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

345

Ministro Teori Zavascki

não se confundem com os interesses das entidades públicas nem, simplesmente, com o conjunto de interesses de pessoas ou de grupos, mesmo quando tenham origem comum. Entretanto, há interesses individuais, que quando considerados em seu conjunto, passam a ter significado ampliado, de resultado maior que a simples soma das posições individuais, e cuja lesão compromete valores comu-nitários privilegiados pelo ordenamento jurídico. Tais interesses individuais, visualizados nesta dimensão coletiva, constituem interesses sociais para cuja defesa o Ministério Público está constitucionalmente legitimado.

Não cabe ao Ministério Público, portanto, bater-se em defesa de todos e quaisquer direitos ou interesses individuais, ainda que, por terem origem comum, possam ser classificados como homogêneos. Interesses individuais homogêneos não são, necessariamente, interesses sociais. Todavia, quando tais interesses individuais homogêneos, mais que a soma de situações particulares, possam ser qualificados como de interesse comunitário, nos termos acima enun-ciados, não há dúvida que o Ministério Público estará legitimado a atuar, porque nessas circunstâncias estará atuando em defesa de interesses sociais.

A identificação dessa espécie de interesse social compete tanto ao legisla-dor (como ocorreu, v.g. nas Leis 8.078/90, 7.913/89 e 6.024/74), como ao próprio Ministério Público, caso a caso, mediante o preenchimento valorativo da cláu-sula constitucional à vista de situações concretas e à luz dos valores e princípios consagrados no sistema jurídico, tudo sujeito ao crivo do Poder Judiciário, a quem caberá a palavra final sobre a adequada legitimação.

A atuação do Ministério Público em juízo, em defesa dos citados inte-resses, dar-se-á em forma de substituição processual e será pautada pelo trato impessoal e coletivo dos direitos lesados, visando, portanto, a sentença de cará-ter genérico. Não é compatível com essa forma de atuação a execução específica da sentença, em representação do próprio lesado, nos moldes previstos no art. 98 do Código de Defesa do Consumidor, nem as providências antecipatórias ou cautelares com a mesma finalidade. Quanto ao procedimento, à falta de previ-são legal específica, a defesa dos interesses sociais será promovida mediante a utilização de procedimento analogicamente adequado, inclusive o previsto no Título III da Lei 8.078/90, ou, em último caso, do procedimento comum, ordi-nário ou sumário.” (in: Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela cole-tiva de direitos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. pp. 223-224)

Essas diretrizes doutrinárias guiaram o PLENÁRIO do STF no julga-mento do RE 631.111, sob o rito da repercussão geral, em que se cuidava da con-trovérsia acerca da legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública objetivando tutelar os direitos de pessoas titulares do seguro DPVAT — Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre. Reproduzo os seguintes tópicos de sua ementa:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS (DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO DPVAT. AFIRMAÇÃO

Page 347: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

346

Ministro Teori Zavascki

DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindivi-duais, indivisíveis e sem titular determinado, sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por inicia-tiva dos órgãos e entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III).

(...)4. O art. 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público, entre

outras, a incumbência de defender “interesses sociais”. Não se pode estabelecer sinonímia entre interesses sociais e interesses de entidades públicas, já que em relação a estes há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministeriais (CF, art. 129, IX). Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio, excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualiza-dos em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comuni-dade. Nessa perspectiva, a lesão desses interesses individuais acaba não apenas atingindo a esfera jurídica dos titulares do direito individualmente considera-dos, mas também comprometendo bens, institutos ou valores jurídicos superio-res, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas. Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no art. 127 da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos.

(...)8. Recurso extraordinário a que se dá provimento. RE 631.111, Rel. Min.

TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, DJE de 30-10-2014.

No voto condutor do supracitado julgado, o eminente Ministro TEORI ZAVASCKI trouxe à tona as distintas interpretações que esta SUPREMA CORTE detinha-se a respeito da legitimação constitucional conferida pela MAGNA CARTA de 1988 ao MP, nos termos do seu art. 127.

Aduziu-se que, no RE 163.231 (Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 29-6-2001), foi adotado posicionamento conferindo alargada legitimação minis-terial, facultando ao órgão a defesa de modo irrestrito de quaisquer dos direitos homogêneos, devido à autoaplicabilidade do aludido dispositivo constitucio-nal, “o que não é compatível com os princípios e os valores que a Constituição buscou privilegiar quando elencou o conjunto de atribuições institucionais do órgão ministerial”.

Essa exegese foi revista no RE 195.056-1 (PLENO, DJ de 14-11-2003), inclusive pelo Ministro MAURÍCIO CORRÊA. Encampou-se, na oportunidade, tese restritiva acerca da legitimação ativa do Ministério Público, que somente

Page 348: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

347

Ministro Teori Zavascki

poderia atuar na tutela dos direitos individuais homogêneos, nas hipóteses con-tidas na legislação ordinária, o que traria o inconveniente de inibir a atuação do MP em “hipóteses concretas, não previstas pelo legislador ordinário, em que a tutela de direitos individuais se mostra indispensável ao resguardo de relevantes interesses da própria sociedade ou de segmentos importantes dela”, grifou.

Uma terceira linha hermenêutica, defendida à época pelo Ilustre Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE (RE 195.056-1, DJ de 14-11-2003), partindo-se do “pressuposto de que o art. 127 da CF é autossuficiente, completo, apto a, desde logo, irradiar todos os efeitos”, de maneira que o “próprio Ministério Público, independentemente de lei específica, pode, no exercício de suas funções insti-tucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos homogêneos compro-mete também interesses sociais. É seu dever, nesses casos, assumir a legitimação ativa e promover as medidas cabíveis para a devida tutela jurisdicional”.

Acentue-se que o PLENÁRIO desta SUPREMA CORTE, no RE 576.155 (Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJE de 1º-2-2011), já se debruçou sobre a questão entreposta pela MP 2.180-35/2001 no parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/1985. Foi reconhecida, então, a legitimidade ministerial para pro-por ação civil pública, a fim de anular acordo (Termo de Acordo de Regime Especial — TARE) de natureza tributária, firmado entre determinada empresa e o Distrito Federal. Veja-se sua ementa:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. TERMO DE ACORDO DE REGIME ESPECIAL — TARE. POSSÍVEL LESÃO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LIMITAÇÃO À ATUAÇÃO DO PARQUET. INADMISSIBILIDADE. AFRONTA AO ART. 129, III, DA CF. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. I – O TARE não diz respeito apenas a interesses individuais, mas alcança interesses metaindividuais, pois o ajuste pode, em tese, ser lesivo ao patrimônio público. II – A Constituição Federal estabeleceu, no art. 129, III, que é função institucio-nal do Ministério Público, dentre outras, “promover o inquérito e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Precedentes. III – O Parquet tem legitimi-dade para propor ação civil pública com o objetivo de anular Termo de Acordo de Regime Especial — TARE, em face da legitimação ad causam que o texto constitucional lhe confere para defender o erário. IV – Não se aplica à hipótese o parágrafo único do artigo 1º da Lei 7.347/1985. V – Recurso extraordinário pro-vido para que o TJ/DF decida a questão de fundo proposta na ação civil pública conforme entender.

Convém abrir parênteses ao seguinte caso. No ARE 694.294 (Rel. Min. LUIZ FUX), foi reafirmada, no âmbito da sistemática da repercussão geral, a jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no sentido de reconhecer a ilegitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública na defesa

Page 349: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

348

Ministro Teori Zavascki

dos contribuintes com vistas a debater a constitucionalidade ou a legalidade da cobrança da taxa de iluminação pública . Eis sua ementa:

DIR EITO CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO INTERPOSTA EM FACE DE SENTENÇA PROFERIDA EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA QUE DISCUTE MATÉRIA TRIBUTÁRIA (DIREITO DOS CONTRIBUINTES À RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS A TÍTULO DE TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA SUPOSTAMENTE INCONSTITUCIONAL). ILEGITIMIDADE ATIVA «AD CAUSAM” DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA, EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEDUZIR PRETENSÃO RELATIVA À MATÉRIA TRIBUTÁRIA. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ARE 694.294 RG, Rel. Min. LUIZ FUX, DJE de 17-5-2013.

Entretanto, deve-se assinalar as importantes reticências apontadas pelo Relator, Min. LUIZ FUX, ao manifestar-se sobre a repercussão geral intrínseca à causa:

“(...) a questão debatida no presente recurso extraordinário não se con-funde com a decidida no RE nº 576.155/DF, de relatoria do Em. Ministro Ricardo Lewandowsky, DJE 1º/8-2008, no qual se discutia a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública visando a anulação de acordo realizado entre contribuinte e poder público para pagamento de dívida tributária.”

Do panorama jurisprudencial do STF deflui-se ser inafastável a legitimi-dade do Ministério Público para ajuizar a correspondente ação civil pública cuja demanda intenta o resguardo de direitos individuais homogêneos cuja ampli-tude possua expressiva envergadura social.

In casu, tem-se que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região concluiu, pautado na premissa de que o direito em questão guarda forte conotação social, que o Ministério Público Federal detém legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública em face da Caixa Econômica Federal, uma vez que se litiga sobre o modelo organizacional dispensado ao FGTS, especialmente no que se refere à unificação das contas fundiárias dos trabalhadores. Colacionam-se os argu-mentos do Juízo de origem em prol do desate:

a) seja em vista do regime legal a que submetido fundo público de pou-pança compulsória, cujos recursos, de titularidade dos empregados, se des-tinam, outrossim, a programas de habitação popular, saneamento básico e infraestrutura urbana, b) seja pela dimensão do FGTS (são, segundo registros de final de 2006, mais de 500 milhões de contas, com arrecadação de mais de R36.500.000 mil), c) seja, sobretudo, porque o FGTS é direito social, inscrito no inciso III, do art. 7, da CF/88, constituindo-se, segundo entendimento pacífico, direito fundamental (e-STJ, fl. 291).

Irreparável o entendimento externado pelo tribunal a quo, que, precisa-mente, grifou o dever de leitura do parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/1985,

Page 350: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

349

Ministro Teori Zavascki

com a redação da MP 2.180-35/2001, em absoluta conformidade com a CARTA MAGNA, pois “o dispositivo buscou apenas evitar a vulgarização da ação cole-tiva, especialmente pelo seu manejo incorreto para fins e simples movimentação ou discussão nas hipóteses de saque de contas fundiárias ao sabor de interesses individualizados” (eSTJ, fl. 292, vol. 3).

O comando inserto no sobredito dispositivo da Lei 7.347/1985 não cons-titui obstáculo à atuação do Ministério Público em contextos fático-jurídicos revestidos de interesses sociais qualificados, ainda que sua natureza seja de direitos divisíveis, disponíveis e com titulares determinados ou determináveis, já que, prima facie, a legitimidade ministerial, em tais situações, emana direta-mente do art. 127 da CARTA MAGNA.

Citem-se, entre outros, os seguintes direitos individuais homogêneos que, quando devidamente sopesados, atraíram a atuação do Ministério Público para atuar em sua defesa, tendo, portanto, sua legitimidade referendada por esta CORTE: o valor de mensalidades escolares (RE 163.231/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CÔRREA, Tribunal Pleno, julgado em 26-2-1997, DJ de 29-6-2001), os contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação (AI 637.853 AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJE de 17-9-2012), os contra-tos de leasing (AI 606.235 AgR/DF, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJE de 22-6-2012), os interesses previdenciários de trabalhadores rurais (RE 475.010 AgR/RS, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 29-9-2011), a aquisição de imóveis em loteamentos irregulares (RE 328.910 AgR/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJE de 30-9-2011) e as diferenças de correção monetária em contas vinculadas ao FGTS (RE 514.023 AgR/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJE de 5-2-2010).

E interesse social de idêntico quilate se vislumbra nas pretensões “que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados” (parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/1985).

Logo, não merece reparos o acórdão recorrido.Diante do exposto, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDI-

NÁRIO. É como voto. Proponho a seguinte tese de repercussão geral: o Ministério Público tem

legitimidade para a propositura de ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao FGTS.

Page 351: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

350

Ministro Teori Zavascki

LISTA DE CASOS

Camargo vs. Banco do Brasil(RE 596.663/RJ, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-9-2014, P, DJE de 25-11-2014)

Castelo Branco vs. União, MPF e FUNAI(ARE 803.462 AgRg/MS, rel. min. Teori Zavascki, j. 9-12-2014, 2ª T, DJE de 11-2-2015)

CEF vs. MPF(RE 643.978/SE, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 9-10-2019, P, DJE de 24-10-2019)

CNJ vs. Santos(ACO 1.680 AgR/AL, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-9-2014, P, DJE de 28-11-2014)

Conselho Federal da OAB vs. Congresso Nacional e Presidente da República(ADI 4.650/DF, rel. min. Luiz Fux, voto-vista do min. Teori Zavascki, j. 17-9-2015, P, DJE de 23-2-2016)

Conselho Federal da OAB vs. Congresso Nacional e Presidente da República(ADI 5.394 MC/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 12-11-2015, P, DJE de 9-11-2016)

Conselho Federal da OAB vs. Presidente da República(ADI 2.418/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 4-5-2016, P, DJE de 16-11-2016)

Dantas vs. STJ(HC 126.292/SP, rel. min. Teori Zavascki, j. 17-2-2016, P, DJE de 16-5-2016)

INSS vs. Pagel(ARE 868.457 RG/SC, rel. min. Teori Zavascki, j. 16-4-2015, P, DJE de 27-4-2015)

Mensalão(AP 470 AgR-vigésimo sexto/MG, rel. min. Joaquim Barbosa, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 18-9-2013, P, DJE de 14-2-2014)

Page 352: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

351

Ministro Teori Zavascki

Mesa do Congresso vs. Lucciola(MS 31.816 MC-AgR/DF, rel. min. Luiz Fux, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 27-2-2013, P, DJE de 10-5-2013)

Monteiro vs. Ministério Público do Rio de Janeiro(RE 405.386/RJ, rel. min. Teori Zavascki, j. 26-2-2013, 2ª T, DJE de 25-3-2013)

MPF vs. Marítima Seguros S.A.(RE 631.111/GO, rel. min. Teori Zavascki, j. 7-8-2014, P, DJE de 29-10-2014)

ONU vs. Ormond(RE 578.543/MT, rel. min. Ellen Gracie, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 15-5-2013, P, DJE de 4-8-2015)

Padilha vs. MPF(Pet 3.240 AgR/DF, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 10-5- 2018, P, DJE de 21-8-2018)

Pessoa vs. STJ(HC 127.186/PR, rel. min. Teori Zavascki, j. 28-4-2015, 2ª T, DJE de 31-7-2015)

PGR vs. Delcídio do Amaral(AC 4.039/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 25-11-2015, 2ª T, DJE de 13-5-2016)

PGR vs. Eduardo Cunha (AC 4.070/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 5-5-2016, P, DJE de 21-10-2016)

Rio Grande do Norte vs. Araújo(RE 608.482/RN, rel. min. Teori Zavascki, j. 7-8-2014, P, DJE de 29-10-2014)

Rollemberg vs. Câmara dos Deputados(MS 32.033/DF, rel. min. Gilmar Mendes, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, j. 20-6-2013, P, DJE de 18-2-2014)

Page 353: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

352

Ministro Teori Zavascki

Silva vs. União e Mato Grosso do Sul(RE 580.252/MS, rel. min. Teori Zavascki, rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, j. 16-2-2017, P, DJE de 11-9-2017)

Tuiuti vs. Vieira(ARE 835.833 RG/RS, rel. min. Teori Zavascki, j. 19-3-2015, P, DJE de 26-3-2015)

União vs. Faria(RE 587.371/DF, rel. min. Teori Zavascki, j. 14-11-2013, P, DJE de 23-6-2014)

União vs. Luz(RE 669.069/MG, rel. min. Teori Zavascki, j. 3-2-2016, P, DJE de 28-4-2016)

União vs. Onofre Machado Filho(ARE 850.960 AgR/SC, rel. min. Teori Zavascki, j. 24-3-2015, 2ª T, DJE de 10-4-2015)

Yanasse vs. CEF(RE 730.462/SP, rel. min. Teori Zavascki, j. 28-5-2015, P, DJE de 8-9-2015)

Page 354: Memória Jurisprudencial Ministro Teori Zavascki

353

Ministro Teori Zavascki

ÍNDICE NUMÉRICO

HC 126.292/SP Rel. min. Teori Zavascki ........................... 157MS 32.033/DF Rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki ............. 167RE 730.462/SP Rel. min. Teori Zavascki ........................... 175ADI 2.418/DF Rel. min. Teori Zavascki ........................... 181MS 31.816 MC-AgR/DF Rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki ............. 191 RE 578.543/MT Rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki .............200ACO 1.680 AgR/AL Rel. min. Teori Zavascki ...........................202Pet 3.240 AgR/DF Rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso ..........208HC 127.186/PR Rel. min. Teori Zavascki ...........................222RE 596.663/RJ Rel. min. Teori Zavascki ...........................234AP 470 AgR-vigésimo sexto/MG Rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso ..........242RE 631.111/GO Rel. min. Teori Zavascki ........................... 251ARE 850.960 AgR/SC Rel. min. Teori Zavascki ........................... 270ARE 868.457 RG/SC Rel. min. Teori Zavascki ........................... 278ARE 835.833 RG/RS Rel. min. Teori Zavascki ...........................282RE 608.482/RN Rel. min. Teori Zavascki ........................... 285RE 587.371/DF Rel. min. Teori Zavascki ........................... 292RE 405.386/RJ Rel. min. Teori Zavascki .......................... 296RE 669.069/MG Rel. min. Teori Zavascki ...........................304ARE 803.462 AgRg/MS Rel. min. Teori Zavascki ...........................309ADI 4.650/DF Rel. min. Luiz Fux ..................................... 316ADI 5.394 MC/DF Rel. min. Teori Zavascki ........................... 329RE 580.252/MS Rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes ...........343RE 643.978/SE Rel. min. Alexandre de Moraes ...............349