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Brasília • ano 34 • nº 134abril/junho – 1997

Revista deInformaçãoLegislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORES

Senador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835-xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (061) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (061) 311-4258. E-Mail: [email protected]

Diretor: Raimundo Pontes Cunha NetoREVISÃO DE ORIGINAIS

Angelina Almeida Silva, João E. Belém, Joel P. da Costa e Wellington de A. MoreiraREVISÃO DE PROVAS

Alessandra da Silva Moreira, Eloisa N. de Moura Silva, Helena M. V. Silva e Maria deLourdes Lima Rosa

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Marcia Fernandes da Cruz Machado e Paulo Henrique Ferreira NunesIMPRESSÃO

Secretaria Especial de Editoração e PublicaçõesCAPA

Paulo Cervinho e Cícero Bezerra

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - -Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 1964– .v.Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº 11-

33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretariade Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte destapublicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.Pídese canje.On demande l´échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.Wir bitten um Austausch.

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 34 · nº 134 · abril/junho · 1997

Considerações sobre o tráfico de armas em razão doadvento da Lei nº 9.437, de 1997. 5

Rogério Soares do Nascimento

O Poder Executivo e o Poder Legislativo no controlede constitucionalidade 11

Gilmar Ferreira Mendes

José Carlos de Magalhães Reconhecimento e execução de laudos arbitrais estran-geiros 41

Juridicidade dos sorteios eletrônicos pela TV a partir deligações telefônicas usando o prefixo 0900 51

Álvaro Melo Filho

Segurança jurídica stricto sensu e legalidade dosatos administrativos: convalidação do ato nulopela imputação do valor de segurança jurídicaem concreto à junção da boa-fé e do lapsotemporal 59

Márcio Nunes Aranha

O processo de acupação e de desenvolvimento daAmazônia: a implementação de políticas públi-cas e seus efeitos sobre o meio ambiente 75

José Matias Pereira

O direito como instrumento catalisador do desen-volvimento das relações econômicas entre aFrança e o Brasil 87

Arnoldo Wald

Da impossibilidade jurídica de exploração da ativida-de de capitalização por entes estatais 95

Elaine de Almeida PassosLoureiro e Peter dePaula Pires

Inocêncio Mártires Coelho A criação judicial do direito em face do cânone herme-nêutico da autonomia do objeto e do princípio cons-titucional da separação dos poderes 99

Angela Cristina Pelicioli

Fábio Maria De-Mattia

A Fazenda Pública e a antecipação da tutela 107

Droit de suite ou direito de seqüência das obras in-telectuais 117

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Marçal Justen Filho Propostas de alteração do Anteprojeto de nova Leide Licitações 123

O conteúdo do saneamento do processo em Portugale no direito brasileiro anterior e vigente. 137

Eduardo Talamini

Alvaro Lazzarini Sanções administrativas ambientais 165

Jorge Rubem Folena de Oliveira O Estado empresário. O fim de uma era 297

Decisões vinculantes 175Ivan Lira de Carvalho

Direito concreto? A criança e o adolescente na Ca-pital Federal 275

José Rossini Campos do CoutoCorrêa

O interrogatório a distância: um novo tipo de cerimôniadegradante 269

René Ariel Dotti

A eficácia ex nunc da naturalização e a extradição debrasileiro 263

Ricardo Perlingeiro Mendes daSilva

A estabilidade no serviço público em face da propostado governo “FHC” de “flexibilizá-la” 185

Erasto Villa-Verde Filho

A execução das obrigações de dar, fazer e não fazer nodireito brasileiro e no direito comparado 201

Dilvanir José da Costa

Informação e participação: instrumentos necessáriospara a implementação do Direito ambiental 213

Paulo Affonso Leme Machado

Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil 219Gladston Mamede

Ivo Dantas Direito Comparado com Ciência 231

Planos econômicos, direito adquirido e FGTS 251Teori Albino Zavascki

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1. IntroduçãoA recente aprovação de lei criminalizando

o porte de armas levou aos meios de comu-nicação de massa um tema que não é novo evem sendo cada vez mais debatido. Sempre quese dirige o foco da atenção ao aumentoprogressivo da criminalidade, vem à tona oproblema do tráfico de armas. O comércio ilegalde armas e acessórios destinados a combate,tais como explosivos, munições, coletes à provade balas e silenciosos, destaca-se, entre asmuitas formas de “tráfico”, pela antigüidadeda sua prática, sem dúvida, mas também, eprincipalmente, pelo seu efeito multiplicadorda violência.

No entanto, um comportamento que agridea sociedade tão ostensivamente foi, por muitotempo, negligenciado na legislação penalbrasileira. O interesse de armar jagunços deoutrora, os seguranças de hoje, levou à tole-rância das elites com o mercado da morte.Assim, a posse e o comércio de armasnacionais, à margem da lei, eram usualmentetratados como simples contravenção, e acompra e venda de armas estrangeiras,apenas como contrabando.

A inovação trazida pela Lei nº 9.437/97,porém, não esgota a questão. O comércio ilegalde armas, reconhecido como um dos principaisproblemas de segurança pública no país, mereceuma reflexão mais detida.

Considerações sobre o tráfico de armasem razão do advento da Lei nº 9.437, de1997

ROGÉRIO SOARES DO NASCIMENTO

Rogério Soares do Nascimento é Mestre emDireito pela PUC/RJ, Professor da UniversidadeEstácio de Sá – RJ e Procurador da República noRio de Janeiro.

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Criminalidade mercantil. 3.Inovações da Lei nº 9.437/97. 4. Competência. 5.Crime contra a segurança nacional.

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Revista de Informação Legislativa6

2. Criminalidade mercantilA criminalidade mercantil1 – aqui signifi-

cando qualquer atividade comercial conside-rada socialmente lesiva ou perigosa e, por isso,reprimida com sanções penais – nasceu com ocomércio. É milenar. Na sua essência, trata-sede um fato econômico, porém, com reflexos nocampo criminal. Se existe demanda, se hámercado, alguém terá a ousadia de oferecer oproduto, mesmo violando as leis.

A satisfação de necessidades pela troca, basedessa espécie de crime, permite infinitaspossibilidades de realização, o que faz árdua atarefa de preveni-los e reprimi-los. Além disso,os delitos mercantis sempre envolvem umgrande número de agentes: as pessoas quefazem circular as mercadorias ilícitas. E, comotoda atividade econômica, costuma serdesenvolvida em moldes empresariais. Não ésó; essa espécie de criminalidade, como regra,é organizada2 e, a exemplo do capital que asustenta, desconhece fronteiras geopolíticas.

Por outro lado, também não se pode deixarde chamar atenção para o fato de que o crimede mercado, independentemente da sua raizeconômica, muitas vezes está associado àviolência: seja na disputa entre rivais e nasustentação dos impérios clandestinos; seja emconseqüência da própria mercadoria fornecida,como é o caso do comércio de entorpecentes e,em particular, do tráfico de armas, tema destasreflexões.

Algumas das características mais evidentesda macrodelinqüência deste fim de milênio: a

globalização do crime organizado e aassociação das redes voltadas para a práticade delitos econômicos com a criminalidadeviolenta tradicional exprimem-se de formaacentuada na ação das quadrilhas detraficantes de armas. Esses laços acabam porfazer multiplicar esse comércio da agressi-vidade, tornando-o banal.

A banalização, por sua vez, leva a que qual-quer pessoa tenha acesso fácil a armasmodernas, inclusive armamento militar comgrande poder de destruição. Com isso, o arsenalbélico das quadrilhas urbanas no Brasil(traficantes de drogas e seqüestradores, emespecial) já se revela uma ameaça à sobrevi-vência do Estado Democrático de Direito. Eisaí, também, um dos principais fatores da proli-feração de incidentes com vítimas de balasperdidas3, um foco permanente de intranqüi-lidade, obra de uma espécie de terrorismocasual, despido de motivação política direta,mas político nas suas conseqüências.

3. Inovações da Lei nº 9.437/97Centrando o foco da análise nos aspectos

jurídico-criminais do problema, pode-se partirda situação mais elementar, a posse ilegal dearmas, cada vez mais corriqueira, à medida quea espiral da violência no campo e nas cidadesvai assumindo contornos dramáticos de uma“guerra civil” implícita e dispersa.

Agora a situação está prevista no artigo 10da nova lei4. Circulam entre nós, sem embaraço,de forma ameaçadora, armas e mais armas,algumas automáticas ou semi-automáticas; e,aquele que as detém, fabrica, compra e vende,aluga, transporta ou empresta sem autorizaçãoe, fora de qualquer controle do poder público,comete crime punido com pena de um a doisanos de detenção, quando a arma é de usopermitido, ou de dois a quatro anos de reclusão,quando a arma é de uso restrito ou proibido,

1 Conforme doutrina alemã, o direito penaleconômico trata das infrações penais que afrontama ação interventora e reguladora do estado naeconomia; ameaça ou lesa bens jurídicos supra-individuais ou sociais; ou ataca bens jurídicos novosde expressão patrimonial, sem exclusão dos delitospatrimoniais clássicos; abordando, portanto, desdecrimes tributários e financeiros, até crimes patri-moniais comuns ou cometidos no exercício de umaatividade econômica. Entre estes últimosdestacam-se os delitos mercantis.

2 Neste estudo, crime organizado exprime aassociação estável entre dois ou mais grupos mobi-lizados para a prática de ilícitos, onde cada sociedadepreserva sua autonomia, tanto operacional quantode propósitos, dividindo tarefas predeterminadas, apartir de estratégias comuns, as quais prevêemmecanismos de reprodução da própria engrenagemdelituosa, conforme sustentado no trabalho “Ainvestigação do crime organizado no cenário dacomunicação em redes informatizadas”, escrito emconjunto com a Dra. Silvana Batini César Góes.

3 O número de incidentes registrando vítimasde balas perdidas, muitas crianças e algumas vítimasfatais, no Rio de Janeiro, vem crescendo assustado-ramente e tem merecido amplo espaço na imprensa.Matéria publicada na edição do Jornal do Brasil,de 14/7/96, computava 102 atingidos, em umretrospecto de dois anos e meio.

4 Antes uma tal conduta caracterizava meracontravenção, sujeitando o indivíduo à prisãosimples de 15 dias a seis meses ou multa. Art. 19 daLCP.

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cabendo à União regulamentar as hipóteses depermissão, restrição e proibição do uso5.

Também incide na pena mais grave o agenteque oculta os sinais de identificação da arma,possui, detém, fabrica ou usa explosivos, semautorização, e todo aquele que cometer um doscrimes previstos na Lei nº 9.437/97 depois dejá ter sido condenado por tráfico de drogas. Poroutro lado, a lei recém-aprovada equipara aocrime de porte ilegal a omissão das cautelasnecessárias a impedir o acesso de crianças ouadolescentes a armas de fogo; o emprego dearma de brinquedo no cometimento de outroscrimes e o disparo em local habitado ou público.

Ao lado do tipo múltiplo que está previstono caput do artigo 10 e das figuras equiparadasdo parágrafo primeiro, encontram-se, nosparágrafos e incisos seguintes, formas quali-ficadas (suprimir marca, alterar características,manusear explosivos) e até um efeito penal dereincidência específica, incluído, em meio àscondutas criminosas, por deslize de técnicalegislativa. Por fim, a circunstância do agentede qualquer dos crimes previstos no artigo antesmencionado ser servidor público é causa doaumento das penas, na metade6.

A questão, porém, não se esgota aí. Quandoas armas são estrangeiras e foram introduzidasilegalmente no território nacional, o quadro secomplica. Está configurado contrabando7. Olegislador preocupou-se em esclarecer que asnovas hipóteses de incriminação não eximemda pena por contrabando ou descaminho,quando cabível, mas o fez sem apuro de estilo.Além do mais, adquirir, receber ou ocultarproduto de crime configura receptação. Essecomportamento, difundido e aparentemente

pouco relevante, já era criminoso, quando adisponibilidade sobre a arma, munição ou outroartefato bélico dava seqüência a um ingressoclandestino.

Como se pode perceber, o exato enquadra-mento legal da situação antes descrita leva ànecessidade de solucionar o aparente conflitoestabelecido entre os crimes de contrabando ede receptação, (artigos 334 e 180, do CódigoPenal, respectivamente), e os tipos introduzidospela nova lei, o que não é motivo de preocupação.

As alíneas acrescidas ao artigo 334 e odisposto no artigo 180 tratam de diferentesformas de receptação, ligadas por uma relaçãode gênero e espécie8. A receptação especial doartigo que incrimina o contrabando e o desca-minho só ocorre quando se observa, nocomportamento do agente, um especial fim deagir: intuito de comércio. Fora dessa hipótesesingular, não há nenhum fundamento paranegar vigência e aplicação ao artigo que tratada receptação comum.

As novas figuras, por seu lado, consti-tuem-se modalidades especiais de crime contraa paz pública, que se consumam pela simplesposse da arma, não autorizada, independen-temente da procedência, do modo pelo qual foiadquirida ou da finalidade a qual se destinava.A aplicação do princípio da especialidade bastapara afastar a incidência da receptação, comumou especial, nas hipóteses de aquisição, posseilícita, guarda ou revenda de armas, indepen-dentemente de qualquer indagação sobre os finsdo agente. Sempre que se estiver tratando dearmas e outros artefatos bélicos, aplica-se a Leinº 9.437/97: quando de mercadoria de outranatureza, impende apenas verificar a origemdo bem: se nacional, é caso da receptaçãocomum; se estrangeira, é caso de contrabandoou descaminho.

4. CompetênciaUm outro aspecto interessante, neste cotejo

de tipos penais, vem a ser o da competência.

5 Enquanto não for aprovado um novo regula-mento, permanece válido o Decreto nº 55.649, de28/01/65 (conhecido como R-105), que, no seu art.160, já classificava armas, acessórios, petrechos emunições em de “uso proibido” ou “uso permitido”,considerando de uso proibido aquelas vedadas a civisem geral ou pessoas despidas de munus publicus,mais exatamente equipamento bélico equivalente ousuperior ao usado pelas Forças Armadas no Brasilou estrangeiras.

6 Outras, entre as condutas tornadas crime pelanova lei, também eram hipótese de contravenção.Art. 18 e parágrafos do art. 19.

7 Note-se que a importação de armas é possíveldesde que precedida de autorização do órgãocontrolador, na esfera do Ministério do Exército. Odesrespeito a essa condição equivale à proibi-ção, caracterizando contrabando e não simplesdescaminho.

8 Decisão do STJ em Conflito de Competência.Acórdão publicado no DJ de 15/8/94, a despeito depautada em voto sucinto, toca na questão in verbis:“A posse de arma de importação proibida caracterizaa figura do art. 334, § 1º, d, do Código Penal, abran-gente da receptação dolosa de mercadoria contra-bandeada ou descaminhada. Há uma relação degênero para espécie entre as figuras dos arts. 180 e334, § 1º, letra d, do CP. Conflito conhecido paradeclarar-se a competência da Justiça Federal.

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Revista de Informação Legislativa8

Quando se está diante daquele que foiresponsável direta ou indiretamente pelaentrada de armas ou munições estrangeiras nopaís, de forma clandestina, não resta dúvida.Há contrabando, crime de competência daJustiça Federal, uma vez que presente interessedireto da União, responsável pelo “controlealfandegário”. Nas hipóteses de receptaçãoespecial, que, como foi dito, já não se aplicaquando o produto do contrabando é arma oumunição, também não há dúvida. A competênciapara processar e julgar é da Justiça Federal.No entanto, ainda persiste alguma perplexidadequando configurada a receptação comum.

Ora, o art. 180 do CP incrimina a receptaçãodolosa própria na modalidade de aquisição,crime material que se consuma com o ingressona disponibilidade da coisa. Trata-se de delitopluriofensivo que tutela, por decorrência lógica,o mesmo bem jurídico tutelado pelo tipo incri-minador infringido no crime antecedente ,quase sempre, mas não necessariamente, opatrimônio. Cabe notar que a norma do artigo180 não visa tutelar o domínio da res obtidailicitamente; procura, isto sim, evitar que seconsolide um proveito calcado em injusto.

Não obstante, há divergências quanto aosefeitos da natural autonomia da receptação,relativamente ao crime anterior, no tocante àdefinição da competência. Com este fundamentoe também porque impossível, no caso concretoque estava sob exame, processar em conjuntorelativamente ao contrabando antecedente, oTRF da 2ª Região entendeu por afirmarcompetente à Justiça Estadual9. A orientaçãomajoritária no STJ, porém, aponta para acompetência da Justiça Federal, afirmando serapenas relativa a autonomia da receptação10.

Parece acertada a orientação da mais altacorte federal, pois a autonomia do crime dereceptação, que ninguém contesta e diz respeitotanto ao crime antecedente quanto a eventuaiscrimes que vierem a ser cometidos com o usodo produto receptado, sejam eles quais forem,é de procedimento. Não há razão para condi-cionar a persecução de um ao esclarecimentodo outro, nem se estabelece conexão entre asações decorrentes de cada conduta.

Contudo, vale registrar que alguns julgadosvinham afirmando existir conexão entre otráfico de drogas e a receptação de armacontrabandeada quando a apreensão se dá nummesmo momento, prevalecendo, nessa hipótese,a competência da Justiça Federal, na forma daSúmula 122 do STJ, a qual, reproduzindo aantiga Súmula 52 do extinto TFR, assimorienta:

“compete à Justiça Federal o processo ejulgamento unificado dos crimes conexosda competência federal e estadual, nãose aplicando a regra do art. 78, II, a, doCódigo de Processo Penal”.

A discussão não é bizantina. As JustiçasFederal e Estaduais possuem estrutura e perfilde atuação diferentes, sendo comum propostasde ampliação da competência federal emmatéria penal, ao argumento de que federalizarsignifica dar maior eficiência à persecução, oque é falso. A estrutura do Judiciário dos estadosé muito maior e, portanto, os processos quecorrem na Justiça Estadual são até maiscéleres11.

Com o novo tratamento dado ao tema, asolução é mais simples. Insista-se, os crimesdescritos na Lei nº 9.437/97 visam à tutela dapaz pública; portanto, na ausência de interessefederal por proteger, nada justifica o seuprocesso e julgamento senão pela JustiçaEstadual, melhor aparelhada e mais afeita àmatéria. Ademais, a atividade de políciaadministrativa, que permanece a cargo da

9 Recurso Criminal nº 94.02.19041-4/RJ “I- Aapreensão de armas e munições, inclusive de origemestrangeira e privativa das forças armadas. II-Denúncia com base nos arts. 180, 29 e 71 do CPBnão é suficiente para firmar a competência da JustiçaFederal. III- Competência da Justiça Estadual, porausência de elementos para a persecução criminalrelativa ao art. 334 do CPB e por ser a receptaçãodelito de conteúdo autônomo. IV- Recurso impro-vido.”

10 Conflito de Competência nº 15.165 (reg. 95/0048309-2) “COMPETÊNCIA. CONTRABANDOE RECEPTAÇÃO DE ARMAS ESTRANGEIRAS.- Em face da existência de anterior delito de contra-bando, da competência da Justiça Federal, competea esta julgar e processar delito de receptação da armacontrabandeada que, na espécie, é delito deautonomia relativa. - Conflito conhecido.” Rel. Min.William Patterson. Julg. 19/10/95.

11 A propósito, merece registro um alentadoestudo comparativo da estrutura do judiciário noEstado do Rio de Janeiro, na esfera criminal, queintegra decisão proferida pelo Exmo. Sr. Juiz FederalDr. Willian Douglas Resinente dos Santos, na AçãoPenal nº 95.0033156-0, onde se observa quenenhuma das 44 Varas Criminais na Capital doEstado do Rio de Janeiro, aqui incluídas as VarasRegionais, possuía, em março de 1995, mais de 400ações penais em andamento, enquanto as 3 VarasFederais especializadas em matéria criminalpossuíam uma média de 1.400 ações em curso.

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União, nada altera com relação à objetividadejurídica dos tipos penais recém-introduzidos.

5. Crime contra a segurança nacionalPor último, e a despeito da inovação

legislativa, não se pode deixar de reconhecerque, em determinadas situações, o tráfico dearmas ainda consuma crime contra a segurançanacional, na forma do disposto no artigo 12 eparágrafo da Lei nº 7.170, de 14/12/83, punidocom pena de 3 a 10 anos de reclusão. Paraenfrentar o conflito aparente de normas que asuperposição dos tipos descritos na Lei deSegurança Nacional com os demais que foramobjeto de comentário sugere, é necessárioexplicitar a objetividade jurídica das condutasincriminadas. É preciso indagar a respeito dequal bem jurídico posto sob tutela é violado poreste ou aquele comportamento. Isso com oauxílio dos artigos 1º e 2º da citada LSN.

Os dois primeiros artigos da Lei nº 7.170/83 indicam os valores protegidos pela norma,que coincidem, como não poderia deixar de ser,com o elenco de princípios fundamentais doEstado: a integridade territorial e a soberanianacional; assim como o regime representativoe democrático, a Federação e o Estado deDireito, e a própria pessoa dos Chefes dosPoderes da União. Quando esta é a motivaçãodo agente ou, independentemente desta, quandoestes valores encontram-se objetivamenteameaçados de lesão, não importa se a condutalesiva ou perigosa corresponde também a outrasfiguras penais, estará em cheque a segurançanacional12.

O caput do art. 12 da LSN descreve hipóteseque coincide com aquelas do art. 334 do CP. Aimportação desautorizada de armamento oumunição pode configurar apenas contrabando.O parágrafo único do mesmo art. 12 descrevecondutas semelhantes às descritas na Lei nº

9.437/97. Todavia, por vezes a internação, ofabrico, a comercialização, a posse ou a manu-tenção de armamento em depósito põem emrisco aqueles valores supremos, afetando asegurança nacional. Para verificar quaiscircunstâncias objetivas fazem presente tal riscoou lesão, o intérprete deve cercar-se de critériosigualmente objetivos, tais como: a quantidade,a espécie, a destinação do armamento e asituação histórica concreta no momento docrime.

Não se pode fugir da defesa do EstadoDemocrático por constrangimentos teóricos oupreconceitos. Vinte anos de regime militarlevaram a associar a segurança nacional a umamatriz teórica de viés autoritário. Entretanto,o aplicador do direito não está vinculado aosentido original do texto legislativo. Cabe aointérprete, dentro da concepção cujas basesforam lançadas ainda no século passado porSalielles13, revelar o sentido atual da lei, quenão se confunde com as intenções do legislador.A lei deve ser aplicada segundo o senso dejustiça contemporâneo ao momento da suaatuação; o direito deve ser atualizado segundoa finalidade social da norma e as novasexigências do bem comum.

O Supremo Tribunal Federal cuidou deapontar as linhas básicas a partir das quais sepode delimitar o conceito de SegurançaNacional, sem subjetivismo. No RE nº 62.739,colhe-se, em voto do Ministro AliomarBaleeiro, relator, a seguinte lição:

“o conceito de segurança nacional não éindefinido e vago, nem aberto àquelediscricionarismo do Presidente ou doCongresso. Segurança nacional envolvetoda a matéria pertinente à defesa daintegridade do território, independência,sobrevivência e paz do país, suas ins-tituições e valores materiais e moraiscontra ameaças externas ou internas,sejam elas atuais ou imediatas ou ain-da em estado potencial próximo ouremoto”.

Noutro julgado digno de lembrança, oMinistro Luiz Gallotti observava que talconceito “não é imutável e, sim, varia no tempo

12 Há uma certa linha de interpretação do artigo2º da LSN, segundo a qual só estaria caracterizadaa lesão nas hipóteses de explícita motivação políticapor parte do agente, interpretação que parecesubordinar o inciso II ao inciso I, deixando a soluçãodos conflitos envolta em densa névoa subjetiva.Trata-se, a nosso sentir, daquilo que com propriedadefoi chamado de “interpretação retrospectiva”, peloeminente jurista José Carlos Barbosa Moreira;procura-se interpretar o texto da LSN negandoqualquer inovação relativamente às malsinadasnormas do longo período de exceção pelo qual passouo Brasil.

13 Raymond Salielles, no Préface do Méthoded’interprétation et sources en droit privé positif deFrançois Geny, cunhou a síntese do método histórico-evolutivo de interpretação do direito: “Par le Codecivil, mais au-delà du Code civil”.

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Revista de Informação Legislativa10

e no espaço”14. A noção de segurança nacionalvaria de significado de acordo com o momentoem que se insere; logo, no quadro vigente deEstado Democrático Constitucional, possuideterminações diferentes daquelas que a inspi-ravam no regime militar.

Conforme se disse ao início destas notas, otráfico de armas abastece hoje com armamentosofisticado a criminalidade organizada, nota-damente aquela entrincheirada nas favelas eperiferias das grandes metrópoles. O crescentee lucrativo mercado das drogas, mantido comcrueldade, pela força das armas, desafia asautoridades públicas e ameaça, hoje, indis-tintamente a todos, de qualquer meio econô-mico e social, governantes e governados. Já nãose está, muitas vezes (especialmente, mas nãoexclusivamente, na cidade do Rio de Janeiro),diante de uma simples questão de segurançapública15.

Quadrilhas armadas com poder de fogosuperior ao da polícia, estabelecidas em basesterritoriais delimitadas, exercem um verdadeiropoder político marginal, subjugando seussúditos involuntários pelo terror e pela sedução.Foram criados guetos, zonas de exclusão nãoraro guarnecidas por barricadas, nas quais opoder legitimamente constituído está impedidode entrar.

Na medida em que se reconhece o territórioenquanto base física sobre a qual o Estadoexerce poder de império, não há como deixarde reconhecer que a integridade desse território

se encontra ameaçada com a manutenção destesespaços onde desponta um estado paralelo, comnormas próprias e exclusivas, que, aliás, emnada lembra o regime democrático.

O próprio monopólio do uso da força,essência do conceito de soberania, vê-se desa-fiado pelas “forças armadas” do crime. Nestequadro trágico e infelizmente real, o Estadopassa a não dispor de meios para garantir avigência do ordenamento jurídico sobre comu-nidades inteiras que rendem obediência a umpoder distinto e despótico. Essas pessoas sãoobrigadas a cerrar portas de seus comércios,guardar silêncio, acobertar bandidos, ocultararmas e drogas nas suas moradias, ceder seusfilhos ao exército marginal. Populações inteirasse vêem destituídas de atributos básicos dacidadania e das liberdades públicas. Privadasda intimidade, da liberdade de ir e vir, dasegurança, do Direito, enfim.

Assim, a atividade voltada para manutençãodo poderio bélico do crime organizado,inúmeras vezes em patamares superiores ao dasforças legais, em certas situações, que só podemser aferidas diante de cada caso concreto, repi-ta-se, mesmo despida de motivação políticaconsciente, é política nas suas conseqüências.Ameaça e fere, lesionando de modo indelévela soberania nacional, o Estado Democrático deDireito e a integridade territorial, valores queexigem uma proteção mais eficaz do que aquelaque resultaria da aplicação pura e simples dalei penal comum ou da Lei nº 9.437/97.

14 Voto proferido no RE nº 72.486, DJ 29/6/72,p. 4328.

15 Não se nega a notável distinção entre segu-rança pública e segurança nacional exposta comhabitual rigor por Heleno Cláudio Fragoso, em seuJurisprudência Criminal, quando diz: “Quando sefala em segurança nacional, nas leis que definemcrimes contra o Estado e a ordem política e social,cogita-se de um bem jurídico que se refere ao estadode segurança política e social do país, em sua estru-tura jurídica, ou seja, em sua estrutura constitucional.Não se cogita de todo e qualquer fato que atentecontra interesses sociais, a ordem e a segurançapública. Segurança nacional, em suma, a segurançado Estado em sua estrutura jurídica, ou seja, é aausência de perigos e riscos em relação à estruturajurídica e social do Estado, na forma em que aConstituição estabelece.” (p. 37) Apenas se estásustentando que, em situações excepcionais eespecíficas, a conduta que atinge a segurança públicatambém afeta a segurança nacional.

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I- IntroduçãoO tema relativo ao papel do Legislativo e

do Executivo no controle de constitucionalidadesuscita um número elevado de indagações.Evidentemente, essas questões passam pelopróprio controle de legitimidade dos atosnormativos no âmbito dos Poderes Executivo eLegislativo, envolvendo até mesmo a atuação

O Poder Executivo e o Poder Legislativono controle de constitucionalidade

GILMAR FERREIRA MENDES

Gilmar Ferreira Mendes é Procurador da Repú-blica; Professor Adjunto da Universidade de Brasília– UnB; Mestre em Direito pela Universidade deBrasília – UnB; Doutor em Direito pela Universi-dade de Münster – República Federal da Alemanha– RFA.

SUMÁRIO

I- Introdução. II- Poder Executivo e PoderLegislativo no controle direto da legitimidade dosatos normativos. 1. Considerações preliminares. 2.O poder de veto sob o argumento da inconstitucio-nalidade do projeto de lei. 3. A sustação de atos dedelegação e dos atos regulamentares pelo PoderLegislativo. 4. A “correção” de decisões judiciaispelo Poder Legislativo. 5. Controle de constitucio-nalidade direto e a inexecução da lei pelo Executivo.6. Sobre a possibilidade de anulação da lei incons-titucional pelo Poder Legislativo. III- O Executivoe o Legislativo no controle abstrato de normas: aação direta de inconstitucionalidade ou de consti-tucionalidade de lei ou ato normativo. 1. Conside-rações preliminares. 2. Direito de propositura deação direta pelo Governador do Estado e pela Mesada Assembléia Legislativa: relação de pertinência.3. O direito de veto do Presidente da República e doGovernador do Estado e o exercício do direito depropositura. 4. Direito de propositura do Governadordo Distrito Federal e da Câmara Legislativa doDistrito Federal. 5. O Executivo e o Legislativo naação declaratória de constitucionalidade. a)Considerações preliminares. b) Ação declaratória:requisitos de admissibilidade. 6. Ação declaratóriade constitucionalidade no âmbito estadual. IV- OExecutivo e o Legislativo no controle incidental denormas. 1. Introdução. 2. O controle de constitu-cionalidade e a ação civil pública. 3. Incidente deinconstitucionalidade.

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de órgãos superiores desses Poderes no controledireto de constitucionalidade.

Assim, tanto o exercício do poder de vetopor parte do Chefe do Executivo, quanto ocontrole de constitucionalidade exercido pelosórgãos legislativos situam-se no contexto desseesforço de controle de constitucionalidade dosatos normativos pelos Poderes Executivo eLegislativo.

Outra questão de relevo nesse contextorefere-se à possibilidade ou não de o Executivodeixar de cumprir decisão legislativa comfundamento em uma alegada inconstituciona-lidade.

A controvérsia, que, sob o regime constitu-cional anterior, ganhou alguma densidadedoutrinária e jurisprudencial, perdeu, certamente,muito do seu significado prático em face danova disciplina conferida à ação direta deinconstitucionalidade. A outorga do direito parapropor a ação direta aos Chefes do Executivofederal e estadual retira, senão a legitimidadedesse tipo de conduta, pelo menos, na maioriados casos, a motivação para a adoção dessaconduta de quase desforço no âmbito do Estadode Direito.

Não se pode perder de vista, outrossim, queo controle de constitucionalidade acaba por servisto pelo Executivo e pelo Legislativo comoóbice ou estorvo na realização de dadas polí-ticas. A decisão judicial que afirma a inconsti-tucionalidade de uma decisão legislativa traduz-se, não raras vezes, em obstáculo definitivo àconsecução de determinados objetivos, elimi-nando uma ou algumas possíveis soluçõesalvitradas.

Nesse sentido, pode-se dizer que o chamado“legislador negativo” converte-se em legisladorpositivo, na medida que ele se mostra capaz dedelimitar ou restringir as alternativas políticasa serem utilizadas. O Legislativo ou o Executivopoderão adotar todas as alternativas políticaspossíveis, dentre aquelas consideradas legítimaspelos órgãos judiciários.

Mencione-se, a propósito, que, desde aentrada em vigor da Constituição de 1988 atéos dias atuais (agosto de 1996), o SupremoTribunal Federal deferiu cerca de 600 liminarespara suspender a eficácia de atos normativosestaduais ou federais no âmbito da ação diretade inconstitucionalidade. Muitas dessasdecisões ainda não foram confirmadas peloSupremo Tribunal (cerca de 508), restando aeficácia normativa da disposição suspensa com

base tão-somente na decisão cautelar (videtabelas no Apêndice).

Evidentemente, a simples instauração decontrovérsia sobre a legitimidade ou não de umadeterminada decisão legislativa já se mostraapta a produzir uma ampla insegurançajurídica, podendo dar ensejo ao adiamento daimplementação de determinadas decisões legis-lativas.

É nesse contexto que surge também anecessidade de que se desenvolva um instru-mento que assegure ao Legislativo e ao Execu-tivo a possibilidade de provocar o Judiciário,não para provocar uma declaração de inconsti-tucionalidade, mas, ao revés, para afirmar, demaneira definitiva, a legitimidade de uma dadalei.

A Emenda Constitucional nº 3, de 1993,veio, ainda que parcialmente, colmatar a lacunaidentificada, permitindo que, em caso de dúvidaou controvérsia sobre a legitimidade de umalei federal, pudessem o Presidente da República,a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa doSenado Federal ou, ainda, o Procurador-Geralda República provocar o Supremo Tribunal como objetivo de colher, com eficácia contra todose efeito vinculante, uma declaração de consti-tucionalidade de ato normativo.

É verdade que, em face do texto constitu-cional federal, não há espaço para discussãosobre a possibilidade de se utilizar ação diretade constitucionalidade perante o SupremoTribunal Federal com o objetivo de ver afirmadaa legitimidade de direito estadual.

A questão que remanesce refere-se à possi-bilidade de o Estado-membro instituir a açãodeclaratória de constitucionalidade para aaferição de legitimidade do direito estadual oumunicipal em face da Constituição estadual.

Outra questão sensível, na qual Legislativoe Executivo estão necessariamente envolvidos,diz respeito ao controle de constitucionalidadeda omissão. Embora o constituinte brasileirotenha tratado o controle de constitucionalidadeda ação e o controle de constitucionalidade daomissão como instrumentos distintos, não édifícil concluir que esses institutos estão maispróximos do que uma análise superficialpoderia indicar1.

Assinale-se, por último, que o modeloconstitucional fez ressurgir, entre nós, sistema

Notas de Rodapé ao final do texto.

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de controle de legitimidade dos atos regula-mentares que deverá ser exercido pelo CongressoNacional (ou pelas Assembléias Legislativas, sefor o caso, no plano estadual – CF, art. 49, V).

Antes de contemplarmos cada uma dasquestões enunciadas, afigura-se-nos conve-niente, senão necessário, assentar que o textoconstitucional de 1988 introduziu uma mudançaradical no nosso sistema de controle de consti-tucionalidade.

A ampla legitimação conferida ao controleabstrato, com a inevitável possibilidade de sesubmeter qualquer questão constitucional aoSupremo Tribunal Federal, operou uma mudançasubstancial – ainda que não desejada – nomodelo de controle de constitucionalidade atéentão vigente no Brasil.

O monopólio de ação outorgado ao Procu-rador-Geral da República no sistema de 1967/69 não provocou uma alteração profunda nomodelo incidente ou difuso. Este continuoupredominante, integrando-se a representaçãode inconstitucionalidade a ele como umelemento ancilar, que contribuía muito poucopara diferençiá-lo dos demais sistemas “difu-sos” ou “incidentes” de controle de constitu-cionalidade.

A Constituição de 1988 reduziu o signifi-cado do controle de constitucionalidade inci-dental ou difuso ao ampliar, de forma marcante,a legitimação para propositura da ação diretade inconstitucionalidade (CF, art. 103), permi-tindo que, praticamente, todas as controvérsiasconstitucionais relevantes sejam submetidas aoSupremo Tribunal Federal mediante processode controle abstrato de normas.

Convém assinalar que, tal como já obser-vado por Anschütz ainda no regime de Weimar,toda vez que se outorga a um Tribunal especialatribuição para decidir questões constitucionais,limita-se, explícita ou implicitamente, a com-petência da jurisdição ordinária para apreciartais controvérsias2.

Portanto, parece quase intuitivo que, aoampliar, de forma significativa, o círculo deentes e órgãos legitimados a provocar oSupremo Tribunal Federal no processo decontrole abstrato de normas, acabou o consti-tuinte por restringir, de maneira radical, aamplitude do controle difuso de constitucio-nalidade.

Assim, se se cogitava, no período anteriora 1988, de um modelo misto de controle deconstitucionalidade, é certo que o forte acentoresidia, ainda, no amplo e dominante sistema

difuso de controle. O controle direto continuavaa ser algo acidental e episódico dentro dosistema difuso.

Ressalte-se que essa alteração não se operoude forma ainda profunda porque o SupremoTribunal manteve a orientação anterior, queconsiderava inadmissível o ajuizamento de açãodireta contra direito pré-constitucional em faceda nova Constituição.

A ampla legitimação, a presteza e celeridadedesse modelo processual, dotado inclusive dapossibilidade de se suspender imediatamente aeficácia do ato normativo questionado,mediante pedido de cautelar, fazem com queas grandes questões constitucionais sejamsolvidas, na sua maioria, mediante a utilizaçãoda ação direta, típico instrumento do controleconcentrado.

A particular conformação do processo decontrole abstrato de normas confere-lhe,também, novo significado como instrumentofederativo, permitindo a aferição da constitu-cionalidade das leis federais mediante requeri-mento de um Governador de Estado e a aferiçãoda constitucionalidade das leis estaduaismediante requerimento do Presidente daRepública.

A propositura da ação pelos partidos polí-ticos com representação no Congresso Nacionalconcretiza, por outro lado, a idéia de defesa dasminorias, uma vez que se assegura até às fraçõesparlamentares menos representativas a possibi-lidade de argüir a inconstitucionalidade de lei.

A outorga do direito de propositura da açãodireta de inconstitucionalidade aos partidospolíticos com representação no CongressoNacional realiza, de forma radical, a idéia,exposta inicialmente por Kelsen, da utilizaçãoda jurisdição constitucional, especialmente docontrole abstrato de normas, para a defesa dasminorias3.

Tal como afirmado, a Constituição de 1988pretendeu preservar o chamado sistema mistode controle de constitucionalidade, combinandoelementos do sistema difuso com aqueloutrosdo modelo concentrado de controle de normas.Todavia, a ampliação do direito de propositurafez com que se reduzisse o significado do siste-ma difuso de controle em geral. Quase todas asquestões fundamentais sobre controle deconstitucionalidade são veiculadas em açãodireta de inconstitucionalidade.

A amplitude do direito de propositura fazcom que até mesmo pleitos tipicamente indivi-

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duais sejam submetidos ao Supremo TribunalFederal mediante ação direta de inconstitucio-nalidade. Assim, o processo abstrato de normascumpre entre nós uma dupla função: ele atuatanto como instrumento de defesa da ordemobjetiva, quanto como instrumento de defesade posições subjetivas4.

Finalmente, ressalte-se que a Constituiçãode 1988 resolveu a controvérsia sobre a possi-bilidade de se instaurar o controle abstrato denormas municipais, autorizando expressamenteo constituinte estadual a instituir a represen-tação de inconstitucionalidade perante oTribunal de Justiça, tendo como parâmetro decontrole o direito constitucional estadual (CF,art. 125, § 2º). Subsiste, portanto, a impossibi-lidade de se submeter o direito municipal a umcontrole direto em face da Constituição Federal.

II- Poder Executivo e Poder Legislativo nocontrole direto da legitimidade dos atos

normativos

1. Considerações preliminares

Executivo e Legislativo têm um papelmarcante em algumas questões relacionadascom o controle de legitimidade dos atos doPoder Público:

(1) o exercício do poder de veto com funda-mento na inconstitucionalidade da lei, típicaatribuição do Executivo, entre nós;

(2) a possibilidade de suspensão de atosnormativos que exorbitem dos limites estabe-lecidos em lei (art. 49, V);

(3) a correção de decisões judiciais peloPoder Legislativo;

(4) a possibilidade de anulação de atosnormativos pelo Legislativo;

(5) a possibilidade de que o Executivo senegue a aplicar a lei com fundamento no argu-mento da inconstitucionalidade;

(6) a possibilidade de que se declare a nuli-dade de lei mediante ato de natureza legislativa.

2. O poder de veto sob o argumento dainconstitucionalidade do projeto de lei

É fácil ver que o veto de um projeto de lei,sob o argumento da inconstitucionalidade,outorga ao Executivo uma faculdade de enormesignificado num sistema constitucional que,

como visto, privilegia o controle judicial deconstitucionalidade das leis.

Não são raros os autores que identificamaqui configuração de um modelo preventivo decontrole de constitucionalidade.

É verdade que esse poder há de ser exercidocum grano salis, não se confundindo com aque-loutro, que autoriza o Chefe do Executivo anegar a sanção a projetos de lei manifestamentecontrários ao interesse público.

Evidentemente, a vinculação de todos osórgãos públicos à Constituição não permite queo Chefe do Poder Público se valha do veto comfundamento na inconstitucionalidade com amesma liberdade com que poderá utilizar o vetocom base no interesse público.

Dir-se-á, porém, que eventual utilizaçãoabusiva do veto com fundamento na supostainconstitucionalidade da proposição poderia sersempre reparada, pois estaria sujeita a apre-ciação e, portanto, ao controle do organismoparlamentar competente.

Essa resposta é evidentemente insatisfa-tória, porque admite que um órgão públicoinvoque eventual inconstitucionalidade semque esteja exatamente convencido da suaprocedência. Isso relativiza, de formainaceitável, a vinculação dos Poderes Públi-cos à Constituição. Por outro lado, pareceinequívoco que a apreciação do veto pelaCasa Legislativa não se inspira exatamenteem razões de legitimidade. A ausência demaioria qualificada fundada em razõesmeramente políticas implicará a manuten-ção do veto, ainda que lastreado em umarazão de inconstitucionalidade absolutamentedespropositada.

A indagação que subsiste diz respeito àpossibilidade de que se pudesse judicializar aquestão constitucional, tendo em vista a aferiçãoda legitimidade ou não do fundamento invocado.

Em um sistema de rígida vinculação à Cons-tituição, parece plausível admitir, pelo menos,que a maioria que garantiu a aprovação da leideveria ter a possibilidade de instaurar talcontrovérsia. Quanto ao instrumento processualadequado, deve-se mencionar que o SupremoTribunal Federal tem admitido a utilização domandado de segurança em situações típicas deconflito entre órgãos5.

Assim, esse controle político de legitimi-dade6 também estaria submetido ao controlejudicial.

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3. A sustação de atos de delegação e dos atosregulamentares pelo Poder Legislativo

O art. 49, V, da Constituição de 1988 resta-beleceu, parcialmente, na ordem constitucionalbrasileira, instituto que havia sido introduzidoentre nós na Constituição de 1934 (CF, art. 91,II), autorizando o Congresso Nacional a sustaros atos legislativos que ultrapassem os limitesda delegação outorgada (lei delegada) ou os atosnormativos que exorbitem do poder regulamentarou dos limites de delegação legislativa.

Trata-se de fórmula excepcional no sistemaconstitucional brasileiro, que, por isso mesmo,há de merecer uma interpretação estrita.

Nas suas anotações à Constituição de 1934,observou Pontes de Miranda a propósito:

“...o inciso II do art. 91 constituiatribuição importantíssima. É a primeiravez que adotamos exame dos regulamentossem o caso concreto, exame da lei em simesma, em sua existência (...). A Cons-tituição brasileira vai além, posto que sóse exerça o poder de exame depois deemitidos. Um pouco função de Alta Corteconstitucional, como preconizamos em1932.

O poder do Senado Federal, no casodo inciso II, é total e definitivo. Poderefugar parte ou todo o regulamento. Éum intérprete da Constituição e das leis,a respeito de regulamentos do PoderExecutivo”7.

Evidentemente, essa competência excep-cional – um autêntico controle político de legi-timidade – é suscetível de contraste na viajudicial.

O próprio Supremo Tribunal Federal tementendido ser admissível a ação direta deinconstitucionalidade contra resolução de órgãolegislativo que suste a eficácia de ato regula-mentar. Nesse sentido, registre-se que aquelaCorte já acolheu ação direta proposta com oobjetivo de impugnar a legitimidade de DecretoLegislativo estadual que suspendeu os efeitosde ato do Poder Executivo sem a observânciados limites estabelecidos no art. 49, V, daConstituição8.

Deve-se registrar que, salvo melhor juízo,esse instituto não se mostra apto a propiciarum efetivo instrumento de controle contraabusos perpetrados pelo Executivo no exercíciodo Poder Regulamentar. Já a dificuldade decolher maiorias nas Casas Parlamentares para

lograr uma decisão clara sobre a legitimidadedo ato normativo questionado demonstra ainsuficiência desse instituto como instrumentode aferição de legitimidade do ato normativo.Por isso, ninguém poderá, em sã consciência,sustentar que a falta de uma decisão da CasaLegislativa sobre a observância ou não peloPoder Executivo dos limites do Poder Regula-mentar corresponderia a uma decisão deimprocedência.

A importância que assume o regulamento naordem jurídica parece sugerir a necessidade deque, ao lado desse instrumento, desenvolva-seforma mais expedita de controle de legitimidadedos atos regulamentares.

Kelsen já havia assinalado que qualquerofensa contra o direito ordinário configurariauma ofensa indireta contra a própria Consti-tuição, desde que esta contivesse o princípioda legalidade da Administração9. Não obstante,enquanto a inconstitucionalidade direta poderiaser aferida pela via abstrata, a inconstituciona-lidade indireta somente poderia ser examinadadentro de um sistema de controle da legalidade.Com a diferenciação entre a inconstitucionali-dade direta e indireta, esforçava-se Kelsen parasuperar as dificuldades práticas decorrentes daampliação desse conceito de inconstitucionali-dade10. Reconhecia-se, porém, a dificuldade dese traçar uma linha precisa entre a inconstitu-cionalidade direta e indireta11.

Sem fazer qualquer distinção entre incons-titucionalidade direta e indireta, a doutrinabrasileira enfatiza que qualquer regulamentoque deixe de observar os limites estabelecidosem lei é inconstitucional.

A Constituição de 1988, tal como já fizeraa Constituição de 1967/1969 (art. 153, § 2º, c/c 81, III), consagra, no art. 5º, II, os princípiosda supremacia da lei e da reserva legal comoelementos fundamentais do Estado de Direito,exigindo que o poder regulamentar do Execu-tivo seja exercido apenas para fiel execução dalei (CF, art. 84, IV).

Disso resulta diretamente, pelo menos noque concerne aos direitos individuais, que ailegalidade de um regulamento equivale a umainconstitucionalidade, porque a legalidade dasnormas secundárias expressa princípio doDireito Constitucional objetivo12 (“Ninguémestá obrigado a fazer ou deixar de fazer algumacoisa senão em virtude de lei” – CF, art. 5º, II).

Entendimento contrário levaria a umacompleta ruptura com a necessária vinculaçãoda administração à Constituição, uma vez que

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ela poderia editar qualquer ato regulamentar,ainda que em contradição com os direitos indi-viduais, sem observância do princípio dareserva legal13. Nesse caso, tal como já ressal-tado por Papier, a legalidade da restriçãoconfigura condição de sua constitucionalidade.A contrariedade à lei representa sempre umcaso de ofensa a direito individual14.

É certo que a inexistência de um sistemade controle judicial que permita aferir a legiti-midade da atividade regulamentar pode levara uma desvalorização do postulado da supre-macia da lei e da reserva legal15. Outrossim, afalta de controle judicial, nesses casos, podeflexibilizar excessivamente o princípio dadivisão dos poderes, afetando, assim, umadecisão fundamental do constituinte (Consti-tuição, art. 2º).

Por outro lado, a proximidade – às vezes, aquase confusão – entre a questão constitucionale a questão legal na relação entre lei e regula-mento não recomenda que a competência paraconhecer dessa questão seja deferida a umaoutra Corte de Justiça, como já se cogitou entrenós, uma vez que, muito possivelmente,surgiriam conflitos de interpretação pratica-mente insolúveis.

Assim, poder-se-ia cogitar da criação deinstituto especial, nos moldes estabelecidos peloart. 139 da Constituição austríaca, conferindotambém o controle abstrato da legitimidade dosatos regulamentares ao Supremo TribunalFederal, mediante iniciativa de órgãos do PoderLegislativo (eventualmente, as Mesas daCâmara e do Senado Federal) e do Procurador-Geral da República16.

4. A “correção” de decisões judiciais peloPoder Legislativo

Na Constituição de 1937, criou-se a possi-bilidade de se suspender, mediante ato legisla-tivo, decisão judicial que declarasse inconsti-tucionalidade do ato normativo. Isso deveriaocorrer por meio de uma resolução do Parla-mento Nacional, aprovada por uma maioriaqualificada de dois terços dos votos (art. 96).Esse instituto deveria cumprir dupla função:confirmar a validade da lei e cassar a decisãojudicial questionada17. A lei confirmadaganhava, assim, a força de uma Emenda Cons-titucional18.

A necessidade desse instituto foi justifica-da com o caráter pretensamente antidemocrá-tico da jurisdição, o que acabava por permitira utilização do controle de normas como

instrumento aristocrático de preservação dopoder ou como expressão de um PoderModerador19.

Deveria ser criada, sobretudo em virtude daabertura das normas constitucionais, umainstância especial, que estivesse em condiçõesde corrigir eventuais desvios da Constituição20.A faculdade confiada ao Parlamento desuspender decisões judiciais acabou por serexercida diretamente pelo ditador mediante aedição de decretos-leis (Constituição de 1937,art. 180)21. Confirmada a constitucionalidadeda lei, passava o Supremo Tribunal Federal areconhecer ipso jure a sua validade22.

Embora a doutrina não tenha logradoexplicitar a origem ou a fonte de inspiração ime-diata desse instituto, é certo que ele não estavaprevisto, nem implicitamente, na Constituiçãopolonesa de 23 de abril de 1935, uma vez queesse texto sequer previa o controle de constitu-cionalidade. Parece mais correto concluir queesse instituto possui referência na própriaexperiência constitucional norte-americana. Éo que se lê na seguinte passagem da obra deKarl Loewenstein sobre o direito constitucionalamericano, especialmente sobre a prática dacorreção de decisões judiciais mediante atolegislativo ou até mesmo mediante emendaconstitucional:

“Um outro mecanismo de limitaçãodo poder da Corte Suprema assenta-sena possibilidade de nulificação dosefeitos da decisão mediante lei de carátercorretivo (korrigierendes Gesetz). Trata-se apenas de casos em que o Congressomanifesta divergência com interpretaçãoconferida à norma pela Corte Suprema.Esse mecanismo não se aplica às hipó-teses de declaração de inconstitucionali-dade de índole formal ou material.Nesses casos, apenas uma reforma cons-titucional pode mostrar-se apta a solvero conflito, como já ocorreu após a decla-ração de inconstitucionalidade da lei deimposto de renda (Bundeseinkommens-teuer) (Pollock v. Farmers’ Loan &Trust. Co., 158 U.S. 601, 1898) atravésda promulgação da XVI Emenda (1913).Esses casos são raros, uma vez que oCongresso apenas consegue utilizar-sedo poder de emenda contra decisão daSuprema Corte em hipóteses de inequí-voco relevo. A correção de decisõesjudiciais mediante lei superveniente é,

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todavia, freqüente, podendo-se falar deum permanente jogo de xadrez entreCongresso e Suprema Corte, no qualaquele logra dar sempre o xeque mate”(LOEWENSTEIN. Verfassungsrecht undverfassungspraxis der vereinigtenstaaten. 1959. p. 429).

De fato, a Emenda XVI à ConstituiçãoAmericana foi conseqüência direta da decisãoda Suprema Corte no caso Pollock v. Farmers’Loan & Trust Co., 157 U. S., 429 (1895); 158U. S. 601 (1895), como anotado por EdwardCorwin:

“A ratificação desta emenda foiconseqüência direta da decisão de 1895,pela qual uma Corte Suprema muitodividida julgou inconstitucional a tenta-tiva do Congresso, do ano anterior, detributar uniformemente os rendimentosem todo os Estados Unidos. Um impostode renda derivado da propriedade,declarou a Corte, era ‘imposto indireto’que o Congresso, de acordo com ostermos do Artigo I, Secção 2, cláusula 3,e Secção 9, cláusula 4, só podia lançarobedecendo à regra da proporcionalidade,segundo a população” (CORWIN,Edward S. A Constituição Norte-Ame-ricana. Rio de Janeiro, 1986. p. 336).

Contudo, como bem observa Loewenstein,não se cuidou propriamente de “rejeição” dadecisão da Corte Suprema (o que representariaa supressão da independência do Poder Judici-ário), mas de posterior reforma constitucional,resguardando-se íntegra a decisão da CorteSuprema.

Em verdade, a exigência de Emenda Cons-titucional apontada por Loewenstein para quea Suprema Corte, em decisão posterior, venhaa fixar entendimento diverso, configurando-senovo precedente, subsiste até nossos dias.

Em 1989, relativamente ao caso Texas v.Johnson, no qual se apreciava o episódio dequeima da bandeira nacional, deu-se a tentativade nulificação da decisão da Corte Supremapela edição de lei pelo Congresso. Posterior-mente, o próprio diploma congressual veio aser declarado inconstitucional pela SupremaCorte. Empreendeu-se então o oferecimento deEmenda Constitucional – sem que se lograsseaprovação – como possibilidade única de vir asuperar-se a orientação da Corte. Ilustra o fatoa seguinte passagem de Akhil Reed Amar:

“...Quando anunciada, a decisão foi

recebida por uma tempestade de protes-tos, incluindo-se uma lei do Congressoelaborada para evitar, senão esvaziar, seuconteúdo. Quando a Corte fulminou taldiploma pela mesma maioria de 5 a 4(sem que qualquer dos originariamentevencidos tencionasse retificar seu votoem nome do stare decisis), líderes doCongresso propuseram uma emendaconstitucional para desautorizar a Cortee não obtiveram mais de trinta e quatrovotos dos necessários dois terços daCâmara e nove votos no Senado.”23.

Assinale-se que a questão poderia assumiroutros contornos nos Estados Unidos se a Cons-tituição americana contivesse disposição comforça de cláusula pétrea, pois, nesse caso, even-tual revisão, nessa parte, acabaria por marcaruma ruptura da própria ordem constitucional.Embora a Constituição americana contenhacláusula que impõe a representação paritáriados Estados no Senado Federal (art. 5º), nadaobsta, segundo o entendimento dominante, aeliminação desse preceito24.

De qualquer forma, pode-se afirmar, comrelativa segurança, que não só toda fundamen-tação doutrinária, mas também a própriaconformação conferida ao instituto previsto noart. 96, parágrafo único, da Constituição de1934 parecem indicar que a sua origem histó-rica reside mesmo na prática político-jurídicanorte-americana.

É de se observar, porém, que, como assina-lado, diferentemente da práxis desenvolvida nosEstados Unidos, a fórmula consagrada pelaCarta de 1937 não apenas permitia a constitu-cionalização de normas consideradas até entãoinconstitucionais, como também ensejava acassação da declaração de inconstitucionalidadeproferida pelo Supremo Tribunal Federal.

A possibilidade de alteração do textoconstitucional para permitir que determinadaconduta ou norma, considerada inconstitu-cional, passasse a ser compatível com a Cons-tituição não apresenta maiores novidades. Acassação da decisão judicial com eficáciaretroativa e a preservação da lei inconstitucionaloutorgam ao modelo de 1937 uma configuraçãopeculiar e, provavelmente, sem paradigma nodireito comparado.

Feitas essas considerações, caberia indagarse instituto semelhante ao concebido peloconstituinte de 1937 – ainda que não idêntico –poderia ser introduzido entre nós medianteproposta de Emenda de Revisão. Mais precisa-

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mente, deve-se contemplar a possibilidade dese superar o núcleo de cláusulas imantadas coma garantia da imutabilidade mediante decisãodo legislador constituinte, ainda que a delibe-ração seja tomada por uma maioria qualificada.

Parece que, diante de um modelo constitu-cional que consagra as chamadas “garantias deeternidade”, tal fórmula não poderia jamais serestabelecida.

5. Controle de constitucionalidade direto e ainexecução da lei pelo Executivo

Um dos temas mais tormentosos no âmbitoda discussão sobre a atuação do Executivo nocontrole de constitucionalidade refere-se,certamente, à possibilidade de que, sob o argu-mento da inconstitucionalidade, negue-se aAdministração a dar cumprimento a uma dadadecisão legislativa.

Pode-se afirmar que, até o advento consti-tucional da Emenda Constitucional nº 16, de1965, que introduziu o controle abstrato denormas no nosso sistema, era plenamentemajoritária a posição que sustentava a legiti-midade da recusa à aplicação da lei consideradainconstitucional25.

Na vigência da Constituição de 1967/69,firmou o Supremo Tribunal Federal entendi-mento no sentido de que seria constitucionaldecreto de Chefe de Poder Executivo estadualque determinasse aos órgãos a ele subordinadosque se abstivessem da prática de atos queimplicassem a execução de dispositivos legaisvetados por falta de iniciativa exclusiva doPoder Executivo26.

Tal como anotou o Supremo TribunalFederal, cuidava-se de hipótese inequívoca deinconstitucionalidade e que, por isso, não sebaseava em inconformismo de um Poder emface do outro. Ao contrário, a Corte vislumbrouaqui uma situação de autodefesa de prerrogativaque a Constituição conferia ao Executivo paramelhor atender ao interesse público27.

Tal como demonstra Ruy Carlos de BarrosMonteiro em minucioso estudo28, a questãosobre eventual descumprimento de lei consi-derada inconstitucional pelo Poder Executivodeu ensejo a intensa controvérsia doutrinária ejurisprudencial.

É certo que a questão perdeu muito do seuapelo em face da Constituição de 1988, queoutorgou aos órgãos do Executivo, no planoestadual e federal, o direito de instaurar o

controle abstrato de normas. A possibilidadede se requerer liminar que suspende imediata-mente o diploma questionado reforça aindamais esse entendimento. Portanto, a justifica-tiva que embasava aquela orientação de enfren-tamento ou de quase desforço perdeu razão deser na maioria dos casos.

Assinale-se, porém, que, ao apreciar açãodireta de inconstitucionalidade, já sob o impérioda Constituição de 1988, teve o SupremoTribunal Federal a oportunidade de enfatizarque

“os Poderes Executivo e Legislativo, porsua Chefia – e isso mesmo tem sidoquestionado com o alargamento da legi-timação ativa na ação direta de inconsti-tucionalidade –, podem tão-só deter-minar aos seus órgãos subordinados quedeixem de aplicar administrativamenteas leis ou atos com força de lei queconsiderem inconstitucionais”29.

Se se entender – como parece razoável –que o Executivo, pelo menos no plano estaduale federal, não mais pode negar-se a cumpriruma lei com base no argumento de inconstitucio-nalidade, subsistem ainda algumas questões quepoderiam legitimar uma conduta de repúdio.

Como o controle abstrato de normas nãoabrange as leis pré-constitucionais30, não seriarazoável que o Executivo se visse compelido aaplicar a lei que considerasse incompatível comnova ordem constitucional, se não dispusessede outra possibilidade de provocar um pronun-ciamento jurisdicional sobre a matéria.

Da mesma forma, no plano do Município,inexiste a possibilidade de se provocar, de formadireta, um pronunciamento definitivo doSupremo Tribunal Federal sobre a incompati-bilidade entre lei municipal e a ConstituiçãoFederal. Também aqui, seguindo a orientaçãofixada pelo Supremo Tribunal, poder-se-iaadmitir que a autoridade administrativa negasseaplicação ao direito municipal sob o argumentoda inconstitucionalidade.

Outra questão igualmente relevante dizrespeito à possibilidade de o Executivo negar-sea implementar determinada vantagem concedidapelo legislador a servidores sob o argumento defalta de previsão na Lei de Diretrizes Orçamen-tárias ou de falta de previsão orçamentária.

O Supremo Tribunal Federal entende que afalta de autorização específica não implicanulidade da lei concessiva da vantagem, impe-dindo, porém, a sua execução.

Nesse sentido, convém registrar passagem

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de voto do eminente Ministro Ilmar Galvão naADIn nº 1.292:

“É, portanto, inegável que, segundoo regime instituído pelo art. 169 da CF,não basta a existência de recursos orça-mentários para autorizar o pagamento devantagem funcional, sendo, ao revés, atoafrontoso ao princípio da moralidadeadministrativa e suscetível de constituirgrave irregularidade, que pode chegar àsraias do ilícito penal, o pagamento dedespesa dessa natureza que não tenhasido objeto de autorização específica nalei de diretrizes orçamentárias”31.

Essa decisão autoriza o Executivo a negaraplicação à lei concessiva de vantagem nãoprevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias ena Lei Orçamentária.

6. Sobre a possibilidade de anulação da leiinconstitucional pelo Poder Legislativo

Tendo em vista o argumento da nulidadeda lei inconstitucional, poder-se-ia indagar seao Legislativo seria legítimo declarar a nulidadede uma dada lei por considerá-la incompatívelcom a Constituição.

Apreciando a questão suscitada por MedidaProvisória que anulava ato normativo anterior,fixou o Supremo Tribunal Federal o entendi-mento de que a declaração de inconstituciona-lidade não poderá ser levada a efeito mediantea utilização de ato normativo. Nesse sentido,convém registrar a seguinte passagem do votoemitido pelo eminente Ministro Moreira Alves:

“Em nosso sistema jurídico, não seadmite declaração de inconstitucionali-dade de lei ou de ato normativo com forçade lei por lei ou por ato normativo comforça de lei posteriores. O controle deconstitucionalidade da lei ou dos atosnormativos é da competência exclusivado Poder Judiciário. Os Poderes Execu-tivo e Legislativo, por sua Chefia – e issomesmo tem sido questionado com o alar-gamento da legitimação ativa na açãodireta de inconstitucionalidade –, podemtão-só determinar aos seus órgãos subor-dinados que deixem de aplicar adminis-trativamente as leis ou atos com força delei que considerem inconstitucionais”32.

A decisão deixou evidente que a pretensãoanulatória manifestada em ato normativo haveriade ser interpretada como ato de ab-rogação dadisposição considerada inconstitucional33.

III- O Executivo e o Legislativo no controleabstrato de normas: a ação direta de

inconstitucionalidade ou de constituciona-lidade de lei ou ato normativo

1. Considerações preliminares

A Constituição de 1988 conferiu direito depropositura de ação direta de inconstituciona-lidade perante o Supremo Tribunal Federal aoPresidente da República, à Mesa da Câmarados Deputados e à Mesa do Senado Federal, noplano da União, assegurando a legitimação paraagir ao Governador do Estado e à Mesa daAssembléia Legislativa, no plano do Estado-membro.

Ao contrário de algumas Constituiçõesmodernas, o Texto de 1988 não assegurouexpressamente o direito de propositura a umaminoria qualificada. Isso não significa, porém,que a Constituição de 1988 recusou proteçãoàs minorias parlamentares. Ao revés, ao seoutorgar o direito de propositura aos partidospolíticos com representação no CongressoNacional, acabou-se por se assegurar umaradical proteção às chamadas “minorias parla-mentares”, permitindo que até mesmo aquelescom apenas um representante em uma dasCasas do Congresso Nacional estejam legiti-mados a instaurar a ação direta de inconstitucio-nalidade.

O legislador constituinte, ao introduzir aação direta de constitucionalidade, foi, todavia,mais restritivo, concedendo o direito de propo-situra tão-somente ao Presidente da República,à Mesa da Câmara, à Mesa do Senado e aoProcurador-Geral da República.

Como assinalado, resta indagar, ainda, seo constituinte estadual estaria implicitamenteautorizado a instituir a ação declaratória deconstitucionalidade no plano estadual.

2. Direito de propositura de ação direta peloGovernador do Estado e pela Mesa da

Assembléia Legislativa: relação de pertinência

A jurisprudência do Supremo TribunalFederal tem identificado a necessidade de queo Governador de um Estado que impugna atonormativo de outro demonstre a relevância, istoé, a relação de pertinência da pretensãoformulada da pretendida declaração de incons-titucionalidade da lei34.

Essa questão foi discutida na Alemanha sob

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o império da Constituição de Weimar, verifi-cando-se uma controvérsia doutrinária sobrea admissibilidade ou não de uma ação pro-posta pelo Estado da Baviera contra a lei daTuríngia35.

Entendimento semelhante vem sendoadotado em relação ao direito de proposituradas Mesas das Assembléias Legislativas36.

A falta de autorização constitucional paraque o legislador estabeleça outras limitaçõesao direito de propositura suscita dúvida sobrea correção do entendimento esposado peloSupremo Tribunal Federal.

Pareceria mais ortodoxo, pois, tendo emvista a natureza objetiva do processo de controleabstrato de normas, que, na espécie, fosseadmitida a ação direta independentemente dequalquer juízo sobre a configuração ou não deuma relação de pertinência.

3. O direito de veto do Presidente daRepública e do Governador do Estado e o

exercício do direito de proposituraSe o Presidente da República ou o Gover-

nador do Estado não exercer o poder de veto,nos termos do art. 66, da Constituição, é de seindagar se poderia, posteriormente, argüir ainconstitucionalidade da lei perante o SupremoTribunal Federal.

Pode acontecer que a existência de dúvidaou controvérsia sobre a constitucionalidade dalei impeça ou dificulte a sua aplicação, sobre-tudo no modelo do controle de constitucionali-dade vigente no Brasil, em que qualquer juizou tribunal está autorizado a deixar de aplicara lei ao caso concreto se esta for consideradainconstitucional. Nesse caso, não poderia sernegado ao Presidente da República o direito depropor a ação com o propósito de ver confir-mada a constitucionalidade da lei37.

Não está, todavia, aqui respondida a ques-tão sobre a possibilidade de o Presidente daRepública propor a ação direta com o propósi-to de ver declarada a inconstitucionalidade deuma lei federal.

A Constituição não fornece base para limi-tação do direito de propositura. Por outro lado,não paira dúvida de que, ao assegurar umaamplíssima legitimação, o constituinte buscouevitar, também, que se estabelecessem limita-ções a esse direito.

Tal como já ressaltado, os titulares do direitode propositura atuam no processo de controleabstrato de normas no interesse da comuni-

dade38 ou, se quisermos adotar a formulação deFriesenhahn39, atuam como autênticos advo-gados da Constituição.

É de acentuar-se, ainda, que, se o Chefe doPoder Executivo sanciona, por equívoco ouinadvertência, projeto de lei juridicamenteviciado, não está ele compelido a persistir noerro, sob pena de, em homenagem a umasuposta coerência, agravar o desrespeito à Cons-tituição.

Nesse sentido, já assinalara Miranda Lima,em conhecido Parecer no qual advogava odescumprimento da lei inconstitucional peloExecutivo, à falta de outro meio menos gravoso,que

“o Poder Executivo, que deve conferir oProjeto com a Constituição, cooperandocom o Legislativo no zelo de sua sobera-nia, se o sanciona por inadvertido de quea ela afronta, adiante, alertado do seuerro, no cumprimento de seu dever cons-titucional de a manter e defender, há debuscar corrigi-lo, e, se outro meio nãoencontrar para tanto, senão a recusa ema aplicar, deixará de lhe dar aplicação”40.

O modelo de ampla legitimação consagradono art. 103 da Constituição de 1988 dificilmentese deixa compatibilizar com o recurso a essamedida de quase desforço concernente aodescumprimento pelo Executivo da lei consi-derada inconstitucional.

Se o Presidente da República – ou, eventual-mente, o Governador do Estado – está legitimadoa propor a ação direta de inconstitucionalidadeperante o Supremo Tribunal Federal, inclusivecom pedido de medida cautelar, não se afiguralegítimo que deixe de utilizar essa faculdadeordinária para valer-se de recurso excepcional,somente concebido e tolerado, à época, pelaimpossibilidade de um desate imediato eescorreito da controvérsia41.

Todavia, é inegável que, muitas vezes, umjuízo seguro sobre a inconstitucionalidade dalei pode vir a se formar somente após a suapromulgação, o que legitima a propositura daação, ainda que o Chefe do Poder Executivotenha sancionado o projeto de lei aprovadopelas Casas Legislativas.

Eventual sanção da lei questionada não devecolocar óbice à admissibilidade da ação diretaproposta pelo Chefe do Executivo, mormentese se demonstrar que não era manifesta, aotempo da sanção, a ilegitimidade suscitada.

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Daí parecer-nos equivocada a orientaçãoesposada pelo Supremo Tribunal Federal naADIn nº 807, segundo a qual,

“quando (...) o ato normativo impugnadoem sede de fiscalização abstrata tiveremanado também do Chefe do PoderExecutivo – a lei, sendo ato estatalsubjetivamente complexo, emerge daconjugação das vontades autônomas doLegislativo e do Executivo – e estefigurar, em conseqüência, no pólopassivo da relação processual, tornar-se-ájuridicamente impossível o seu ingressoem condição subjetiva diversa daquelaque já ostenta no processo”42.

4. Direito de propositura do Governador doDistrito Federal e da Câmara Legislativa do

Distrito FederalA Constituição não contemplou expressa-

mente o direito de propositura da ação diretade inconstitucionalidade pelo Governador doDistrito Federal.

Embora o status do Distrito Federal no textoconstitucional de 1988 seja fundamentalmentediverso dos modelos fixados nas Constituiçõesanteriores, não se pode afirmar, de formaapodítica, que a sua situação jurídica é equiva-lente à de um Estado-membro. Não seria lícitosustentar, porém, que se estaria diante demodelos tão diversos que, no caso, menos doque uma omissão, haveria um exemplo desilêncio eloqüente, que obstaria à extensão dodireito de propositura aos órgãos do DistritoFederal.

Assinale-se que se afigura decisivo para odesate da questão a disciplina contida no art.32 da Constituição, que outorga ao DistritoFederal poder de auto-organização, atribui-lheas competências legislativas dos Estados eMunicípios e define regras para a eleição deGovernador, Vice-Governador e DeputadosDistritais, que em nada diferem do sistemaconsagrado para os Estados-Membros.

Dessarte, para os efeitos exclusivos dosistema de controle de constitucionalidade, asposições jurídicas do Governador e da CâmaraLegislativa do Distrito Federal em nada diferemdas situações jurídicas dos Governadores deEstado e das Assembléias Legislativas.

O eventual interesse na preservação daautonomia de suas unidades contra eventualintromissão por parte do legislador federal éem tudo semelhante. Também o interesse

genérico na defesa das atribuições específicasdos Poderes Executivo e Legislativo é idêntico.

Portanto, ainda que se possam identificardessemelhanças significativas entre o Estado-Membro e o Distrito Federal e, por isso, tambémentre os seus órgãos executivos e legislativos,é lícito concluir que, para os fins do controlede constitucionalidade abstrato, as suas posiçõesjurídicas são, fundamentalmente, idênticas.

Não haveria razão, assim, para deixar dereconhecer o direito de propositura da açãodireta de inconstitucionalidade ao Governadordo Distrito Federal e à Mesa da Câmara Legis-lativa, a despeito do silêncio do texto constitu-cional.

O direito de propositura do Governador doDistrito Federal foi contemplado expressamentepelo Supremo Tribunal Federal na ADIn nº645, reconhecendo-se a sua legitimidade ativa“por via de interpretação compreensiva do textodo art. 103, V, da CF/88, c/c o art. 32, § 1º, damesma Carta”43.

5. O Executivo e o Legislativo na açãodeclaratória de constitucionalidade

a) Considerações preliminares

A Emenda Constitucional nº 3, de 1993,introduziu em nosso sistema a ação declaratóriade constitucionalidade de lei ou ato normativofederal, assegurando o direito de proposituraao Presidente da República, à Mesa da Câmarae à Mesa do Senado Federal, bem como aoProcurador-Geral. Restou excluída do âmbitoda ação declaratória a legislação estadual.

A Lei Fundamental de Bonn outorgou aoBundesverfassungsgericht competência paraexaminar, no controle abstrato de normas, acompatibilidade entre o direito federal e a LeiFundamental ou entre o direito estadual e a LeiFundamental ou outras disposições do direitofederal (art. 93, I, 2), no caso de existência dedúvida (Zweifel) ou controvérsia (Meinungs-verschiedenheit).

De um lado, esse processo revela-seadequado instrumento de defesa da Consti-tuição, permitindo eliminar do ordenamentojurídico as leis inconstitucionais (função dedefesa )44. De outro, o controle abstrato denormas contribui para a segurança jurídicaquando infirma a existência de inconstitucio-nalidade, espancando dúvidas sobre a higidezda situação jurídica (segurança jurídica)45.

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Deve-se ressaltar que, em virtude da escolhados órgãos legitimados, a instauração docontrole abstrato de normas dá-se, normal-mente, em caso de conflito entre a maioriagovernamental e a oposição parlamentar. Talcircunstância permite que esta se valha do seudireito de instaurar o controle abstrato ou queo faça por meio do Governo de um dos Estadospor ela controlado46.

Dessa forma, pode o próprio Governo con-tribuir para uma maior clareza e segurançajurídica, conforme, de resto, demonstramalguns exemplos da jurisprudência da CorteConstitucional Alemã47.

Assim, cumpre a ação declaratória deconstitucionalidade a função de afastar a inse-gurança jurídica decorrente de pronuncia-mentos judiciais contraditórios. O mesmofenômeno se constata entre nós com a adoçãoda Ação Declaratória de Constitucionalidadepela Emenda nº 3, de 1993.

b) Ação declaratória: requisitos de admissibi-lidade

Ao contrário da proposta contida naEmenda Roberto Campos, que outorgava odireito de propositura da ação direta de consti-tucionalidade a todos os entes legitimados parapropor a ação direta de inconstitucionalidade,a Emenda nº 3, de 1993, acabou por deferiresse direito apenas ao Presidente da República,à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmarados Deputados e ao Procurador-Geral daRepública (art. 103, § 4º).

Ao lado do direito de propositura, há de secogitar aqui, também, de uma legitimação paraagir in concreto, tal como consagrada no direitoalemão, que se relaciona com a existência deum estado de incerteza, gerado por dúvidas oucontrovérsias sobre a legitimidade da lei. Háde se configurar, portanto, situação hábil aafetar a presunção de constitucionalidade, queé apanágio da lei.

Embora o texto constitucional não tenhacontemplado expressamente esse pressuposto,é certo que ele é inerente às ações declaratórias,mormente às ações declaratórias de conteúdopositivo.

Assim, não se afigura admissível a propo-situra de ação direta de constitucionalidade, senão houver controvérsia ou dúvida relevantequanto à legitimidade da norma.

Evidentemente, são múltiplas as formas demanifestação desse estado de incerteza quanto

à legitimidade da norma.A insegurança poderá resultar de pronun-

ciamentos contraditórios da jurisdição ordináriasobre a constitucionalidade de determinadadisposição.

Se a jurisdição ordinária, por meio de dife-rentes órgãos, passar a afirmar a inconstitucio-nalidade de determinada lei, poderão os órgãoslegitimados, se estiverem convencidos de suaconstitucionalidade, provocar o SupremoTribunal Federal para que ponha termo àcontrovérsia instaurada.

Da mesma forma, pronunciamentos contra-ditórios de órgãos jurisdicionais diversos sobrea legitimidade da norma poderão criar o estadode incerteza imprescindível para a instauraçãoda ação declaratória de constitucionalidade.

Embora as decisões judiciais sejam provo-cadas ou mesmo estimuladas pelo debatedoutrinário, é certo que simples controvérsiadoutrinária não se afigura suficiente para obje-tivar o estado de incerteza apto a legitimar apropositura da ação, uma vez que, por si só,ela não obsta à plena aplicação da lei.

Assim, não configurada dúvida ou contro-vérsia relevante sobre a legitimidade da norma,o Supremo Tribunal Federal não deveráconhecer da ação proposta.

É certo, pois, que somente a configuraçãode um estado de incerteza poderá legitimar –concretamente – a instauração do controleabstrato de normas na sua acepção positiva.

Ao julgar a Ação Declaratória de Constitu-cionalidade nº 1, firmou o Supremo TribunalFederal entendimento no sentido de que referidaação somente poderia ser proposta em caso deexistência de firme controvérsia judicial sobrea legitimidade da lei federal48.

6. Ação declaratória de constitucionalidadeno âmbito estadual

Em face do silêncio do texto constitucional,na versão da Emenda nº 3, de 1993, restariaindagar se os Estados-membros poderiaminstituir a ação declaratória de constitucionali-dade no âmbito da unidade federada com obje-tivo de afirmar a legitimidade de atos norma-tivos estaduais e municipais em face daConstituição estadual.

A imprecisão da fórmula adotada naEmenda nº 16, de 1965 – representação contrainconstitucionalidade de lei ou ato de naturezanormativa, federal ou estadual, encaminhadapelo Procurador-Geral –, não consegue

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esconder o propósito inequívoco do legisladorconstituinte, que era o de permitir, “desde logo,a definição da controvérsia constitucional sobreleis novas”.

Não se pretendia, pois, que o Procurador-Geral instaurasse o processo de controleabstrato com o propósito exclusivo de verdeclarada a inconstitucionalidade da lei, atéporque ele poderia não tomar parte nacontrovérsia constitucional ou, se dela partici-passe, estar entre aqueles que consideravamválida a lei.

Não se fazia mister, portanto, que o Procu-rador-Geral estivesse convencido da inconsti-tucionalidade da norma. Era suficiente orequisito objetivo relativo à existência de “con-trovérsia constitucional”. Daí ter o constituinteutilizado a fórmula equívoca – representaçãocontra a inconstitucionalidade da lei, encami-nhada pelo Procurador-Geral da República –que explicitava, pelo menos, que a dúvida ou aeventual convicção sobre a inconstituciona-lidade não precisava ser por ele perfilhada.

Se correta essa orientação, parece legítimoadmitir que o Procurador-Geral da Repúblicatanto poderia instaurar o controle abstrato denormas, com o objetivo precípuo de ver decla-rada a inconstitucionalidade da lei ou ato nor-mativo (ação declaratória de inconstituciona-lidade ou representação de inconstitucionali-dade), como poderia postular, expressa ou ta-citamente, a declaração de constitucionalidadeda norma questionada (ação declaratória deconstitucionalidade).

A cláusula sofreu pequena alteração naConstituição de 1967 e de 1967/69 (represen-tação do Procurador-Geral da República, porinconstitucionalidade de lei ou ato normativofederal ou estadual – CF 1967, art. 115, I, “l”;CF 1967/69, art. 119, I, “l”).

O Regimento Interno do Supremo TribunalFederal, na versão de 197049, consagrou expres-samente essa idéia:

“Art. 174.§ 1º Provocado por autoridade ou por

terceiro para exercitar a iniciativa pre-vista neste artigo, o Procurador-Geral,entendendo improcedente a fundamen-tação da súplica, poderá encaminhá-lacom parecer contrário”.

Essa disposição, que, como visto, consoli-dava posição tradicional no Tribunal, permitia

ao titular da ação encaminhar a postulação quelhe fora dirigida por terceiros, manifestando-se,porém, em sentido contrário.

Não é preciso maior esforço de argumen-tação para demonstrar que, do ponto de vistadogmático, nada mais fez o Regimento Internodo que positivar, no plano processual, a orien-tação que balizara a instituição da representaçãode inconstitucionalidade (controle abstrato)entre nós.

Ela se destinava não apenas a eliminar alei declarada inconstitucional da ordem jurídica(pedido de declaração de inconstitucionali-dade), mas também a elidir controvérsias quese instaurassem sobre a legitimidade de deter-minada norma (pedido de declaração deconstitucionalidade).

Assim, se o Procurador-Geral encaminhavasúplica ou representação de autoridade ou deterceiro, com parecer contrário, estava simples-mente a postular uma declaração (positiva) deconstitucionalidade. O pedido de representação,formulado por terceiro e encaminhado aoSupremo, materializava, apenas, a existênciada “controvérsia constitucional” apta a funda-mentar uma “necessidade pública de controle”.

Essa cláusula foi alterada, passando oRegimento Interno a conter as seguintesdisposições:

“Art. 169. O Procurador-Geral daRepública poderá submeter ao Tribunal,mediante representação, o exame de leiou ato normativo federal ou estadual,para que seja declarada a sua inconstitu-cionalidade.

§ 1º Proposta a representação, nãose admitirá desistência, ainda que afinalo Procurador-Geral se manifeste pela suaimprocedência”.

Parece legítimo supor que essa modificaçãonão alterou, substancialmente, a idéia básicaque norteava a aplicação desse instituto. Se otitular da iniciativa manifestava-se, afinal, pelaconstitucionalidade da norma impugnada, éporque estava a defender a declaração deconstitucionalidade.

Na prática, continuou o Procurador-Gerala oferecer representações de inconstituciona-lidade, ressaltando a relevância da questão emanifestando-se, afinal, muitas vezes, em favorda constitucionalidade da norma.

A falta de maior desenvolvimento doutri-nário e a própria balbúrdia conceitual instau-

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rada em torno da representação interventiva50

– confusão essa que contaminou os estudos donovo instituto – não permitiram que essas idéiasfossem formuladas com a necessária clareza.

A própria disposição regimental é equívoca,pois, se interpretada literalmente, reduziria opapel do titular da iniciativa, o Procurador-Geral da República, ao de um despachanteautorizado, que poderia encaminhar os pleitosque lhe fossem dirigidos, ainda que com parecercontrário.

Assinale-se, porém, que a idéia subjacentea essa fórmula imperfeita, concepção que já haviapresidido a própria elaboração da EmendaConstitucional nº 16, era a de que o Procurador-Geral da República poderia instaurar o controleabstrato de normas quando surgissem “contro-vérsias constitucionais”.

Ser-lhe-ia legítimo, pois, tanto pedir adeclaração de inconstitucionalidade, comoadvogar a pronúncia de uma declaração deconstitucionalidade. A “controvérsia constitu-cional” ou a dúvida fundada sobre a constitu-cionalidade da norma representava, assim, umpressuposto processual implícito do controleabstrato de normas (pressuposto objetivo), quelegitimava a instauração do controle abstratode normas, seja com o escopo de ver declaradaa inconstitucionalidade da norma, seja com opropósito de ver afirmada a sua constituciona-lidade.

Daí ter o saudoso Victor Nunes Leal obser-vado, em palestra proferida na ConferênciaNacional da OAB de 1978 (Curitiba), que, “emcaso de representação com parecer contrário, oque se tem, na realidade, sendo privativa ainiciativa do Procurador-Geral, é uma repre-sentação de constitucionalidade”51.

A propósito, acrescentou, ainda, o notáveljurisconsulto:

“Relembro, aliás, que o ilustre Pro-fessor Haroldo Valladão, quando Procu-rador-Geral da República52, sugeriu aosignatário (não sei se chegou a registrá-lopor escrito) a conveniência de deixarexpressa no Regimento a representaçãodestinada a afirmar a constitucionalidade,para solver dúvidas, ainda que não hou-vesse pedido formal de terceiros nosentido da inconstitucionalidade”53.

Sem dúvida, a disciplina específica do temano Regimento Interno do Supremo TribunalFederal serviria à segurança jurídica, na medida

em que afastaria, de uma vez por todas, ascontrovérsias que marcaram o tema no direitoconstitucional brasileiro.

Assinale-se que o registro dessas assertivasconstantes de manifestação autorizada de VictorNunes demonstra também que, ao contrário doque afirmado por alguns autores, o instituto daação declaratória de constitucionalidade nãorepresenta um novum sequer para a doutrinaconstitucional pátria.

Entendida a representação de inconstitu-cionalidade como instituto de conteúdo dúpliceou de caráter ambivalente, mediante o qual oProcurador-Geral da República tanto poderiapostular a declaração de inconstitucionalidadeda norma, como defender a declaração de suaconstitucionalidade, afigurar-se-ia legítimosustentar, com maior ênfase e razoabilidade, atese relativa à obrigatoriedade de o Procurador-Geral submeter a questão constitucional aoSupremo Tribunal Federal, quando isso lhefosse solicitado.

A controvérsia instaurada em torno darecusa do Procurador-Geral da República deencaminhar ao Supremo Tribunal Federalrepresentação de inconstitucionalidade contrao Decreto-Lei 1.077, de 1970, que instituiu acensura prévia sobre livros e periódicos54, nãoserviu – infelizmente – para realçar esse outrolado da representação de inconstitucionalidade55.

De qualquer sorte, todos aqueles quesustentaram a obrigatoriedade de o Procurador-Geral da República submeter a representaçãoao Supremo Tribunal Federal, ainda quandoestivesse convencido da constitucionalidade danorma56, somente podem ter partido da idéiade que, nesse caso, o Chefe do MinistérioPúblico deveria, necessária e inevitavelmente,formular uma ação declaratória – positiva – deconstitucionalidade.

Na Representação 1.092, relativa à consti-tucionalidade do instituto da reclamação,contido no Regimento Interno do antigoTribunal Federal de Recursos, viu-se o Procu-rador-Geral da República, que instaurou oprocesso de controle abstrato de normas e semanifestou, no mérito, pela improcedência dopedido, na contingência de ter de opor embargosinfringentes da decisão proferida, que julgavaprocedente a ação proposta, declarando incons-titucional a norma impugnada57.

O Supremo Tribunal Federal considerouadmissíveis os embargos pelos fundamentoscontidos no voto do eminente Relator, Ministro

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Néri da Silveira:“Se os embargos constituem um

recurso e este é meio de provocar, namesma ou na superior instância, areforma ou a modificação de umasentença desfavorável, seria, em princí-pio, de entender que, procedente a ação,ao autor não caberia opor-se ao resultado,que pleiteou vestibularmente. Porque nãosucumbente, não estaria legitimado arecorrer.

Sucede, porém, que, na ação diretade inconstitucionalidade de lei ou atonormativo federal ou estadual, por suanatureza, enquanto instrumento especialde controle jurisdicional de constitucio-nalidade, não é, desde logo, de invocaros princípios regentes da teoria doprocesso civil, senão na medida que osconsagrou o Regimento do STF, onde seregula a representação de competênciaoriginária e exclusiva desta Corte (Cons-tituição, art. 119, I, letra l). Assim, já setornou assente o descabimento daassistência no processo de representaçãopara a declaração de inconstitucionali-dade de lei ou ato normativo federal ouestadual ou para interpretação de lei(Representações nº 1.161-5-GO, 1.155-1-DF e 972-DF). Por igual, não se afirmaimpedimento de membro da Corte parao julgamento da ação direta de inconsti-tucionalidade ou de interpretação de leiou ato normativo federal (Sessão de13-9-1983). Ao Procurador-Geral daRepública, a quem a Constituição reser-va, com exclusividade, aforar a ação, nãose lhe reconhece, todavia, a faculdade dedesistir da representação. Instrumentopor via do qual se exerce função políticado Judiciário, no controle dos atos dosoutros Poderes, e dele próprio, o proce-dimento de ação direta se reveste deespecialidade com sua destinação. Ojulgamento, na representação, refere-seà lei ou ato normativo, em tese, e a deci-são que os tem como inconstitucionaisencerra, em si mesma, o efeito de excluir-lhes a eficácia erga omnes, dispensada,assim, qualquer posterior manifestaçãodo Senado Federal para suspender a exe-cução da lei ou ato normativo, tidos comoinválidos, a teor do art. 42, VII, daConstituição. De outra parte, está noparágrafo único do art. 169 do Regimento

Interno do STF que o Procurador-Geralda República, inobstante autor da açãodireta, pode, em sua manifestação final,pedir a improcedência da representação,tal como na espécie aconteceu (fls. 141/151). Pontes de Miranda, de referênciaà posição do Chefe do Ministério PúblicoFederal, diante da norma do art. 119, I,letra l, da Constituição, observa: ‘Alegitimidade ativa, que tem o Procurador-Geral da República, estende-se à oposi-ção de embargos de nulidade ou infrin-gentes do julgado ou dos embargosdeclaratórios. É órgão da União: não sóa representa, representa-a, como órgãoque é’ (Comentários à Constituição de1967, com a Emenda nº 1, de 1969. 2.ed. t. 2, p. 11). Em face da especialidadedo processo da ação direta de inconsti-tucionalidade, compreendo que o Procu-rador-Geral pode, inobstante julgadaprocedente a representação, notadamente,se pedir em sua manifestação final aimprocedência da demanda constitu-cional, interpor embargos infringentes aoacórdão do STF”58.

Ora, ao admitir o cabimento dos embargosinfringentes opostos pelo Procurador-Geral daRepública contra decisão que acolheu represen-tação de inconstitucionalidade de sua própriainiciativa, o Supremo Tribunal Federal contri-buiu para realçar esse caráter ambivalente darepresentação de inconstitucionalidade, reco-nhecendo implicitamente, pelo menos, que aotitular da ação era legítimo tanto postular adeclaração de inconstitucionalidade da lei, sedisso estivesse convencido, como pedir adeclaração de sua constitucionalidade, se, nãoobstante convencido de sua constitucionalidade,houvesse dúvidas ou controvérsias sobre sualegitimidade que reclamassem um pronuncia-mento definitivo do Supremo Tribunal Federal.

É verdade que a Corte restringiu significa-tivamente essa orientação no acórdão de 8 desetembro de 1988. O Procurador-Geral daRepública encaminhou ao Tribunal petiçãoformulada por grupo de parlamentares quesustentava a inconstitucionalidade de determi-nadas disposições da Lei de Informática (Leinº 7.232, de 29 de outubro de 1984). O Tribunalconsiderou inepta a representação, entendendoque, como a Constituição previa uma ação deinconstitucionalidade, não poderia o titular daação demonstrar, de maneira insofismável, queperseguia outros desideratos59.

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Embora o Supremo Tribunal Federal tenhaconsiderado inadmissível a representação naqual o Procurador-Geral da República afirma,de plano, a constitucionalidade da norma, écerto que essa orientação, calcada numa inter-pretação literal do texto constitucional, nãoparece condizente, tal como demonstrado, coma natureza do instituto e com a sua práxis desdea sua adoção pela Emenda nº 16, de 1965.

Todavia, a Corte continuou a admitir asrepresentações e, mesmo após o advento daConstituição de 1988, as ações diretas deinconstitucionalidade nas quais o Procurador-Geral limitava-se a ressaltar a relevância daquestão constitucional, pronunciando-se, afinal,pela sua improcedência60.

Em substância, era indiferente, tal comopercebido por Victor Nunes, que o Procurador-Geral sustentasse, desde logo, a constituciona-lidade da norma, ou que encaminhasse o pedidopara, posteriormente, manifestar-se pela suaimprocedência.

Essa análise demonstra claramente que, adespeito da utilização do termo representaçãode inconstitucionalidade, o controle abstratode normas foi concebido e desenvolvido comoprocesso de natureza dúplice ou ambivalente.

Portanto, não parece subsistir dúvida de quea ação declaratória de constitucionalidade tema mesma natureza da ação direta de inconsti-tucionalidade, podendo-se afirmar até queaquela nada mais é do que uma ADIN com sinaltrocado61.

Se se entender – o que parece absolutamentecorreto do prisma dogmático – que a própriarepresentação de inconstitucionalidade contém,em si mesma, a ação declaratória de constitu-cionalidade, poder-se-á sustentar, de formaplausível, que, independentemente de qualquerautorização expressa do legislador constituintefederal, estão os Estados-membros legitimadosa instituir a ação declaratória de constitucio-nalidade.

IV- O Executivo e o Legislativo no controleincidental de normas

1. Introdução

Não se pode deixar de registrar, ainda, osignificado para órgãos do Executivo docontrole incidental de normas.

Ao contrário do que se verifica no sistema

americano de controle de constitucionalidade,a ordem jurídica brasileira não outorga umaposição privilegiada aos órgãos da adminis-tração ou da legislatura no processo incidentalde controle de constitucionalidade62. Se aquestão envolver apenas pessoas privadas, nãoterá o Poder Público oportunidade de procederà defesa do ato questionado.

É verdade, todavia, que, desde 1934, vem-seexigindo que a decisão afirmadora da incons-titucionalidade de uma dada lei ou ato norma-tivo seja proferida pela maioria absoluta dosmembros do Tribunal. A partir de 1977, passou-se a admitir que tal decisão fosse proferidatambém pela maioria absoluta do órgão especialda Corte de Justiça (CF 1988, art. 97).

Nos últimos tempos, enceta-se discussãosobre a legitimidade de se utilizar a ação civilpública como instrumento de controle de consti-tucionalidade de leis federais, estaduais oumunicipais.

A discussão não é desprovida de sentido,até porque a decisão que, nesse processo, afirmaa inconstitucionalidade de uma dada lei acabapor ser dotada de eficácia geral. Assim, muitasvezes a decisão proferida na ação civil públicapelo juízo monocrático provocará o esvazia-mento do significado normativo de uma dispo-sição. É lícito, pois, indagar sobre a legitimi-dade da utilização da ação civil pública comoinstrumento de controle de normas.

2. O controle de constitucionalidadee a ação civil pública

Como se sabe, no Brasil, a Lei nº 7.347, de24 de julho de 1985, consagrou a ação civilpública como instrumento de defesa doschamados “interesses difusos e coletivos”. Nostermos da própria lei especial, a ação civilpública poderá ter por objeto a condenação ouo cumprimento de obrigação de fazer ou de nãofazer. É, portanto, amplíssimo o objeto da açãocivil pública na ordem jurídica brasileira,estando a sua utilização condicionada, funda-mentalmente, apenas à própria definição doconceito jurídico indeterminado relativo aos“interesses difusos e coletivos”.

Esse objeto extremamente amplo tem ense-jado a utilização da ação civil pública comoinstrumento de controle de constitucionalidade.A despeito do embaraço que não raras vezesprovoca, o tema não tem merecido reflexão maisacurada no âmbito da nossa DogmáticaConstitucional.

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A pergunta básica que se pretende intro-duzir é a seguinte: é legítima a utilização daação civil pública na ordem jurídica brasileirapara obter a declaração de inconstitucionali-dade de lei ou ato normativo? Evidentemente,essa questão sugere desdobramentos: em facedas próprias especificidades processuais quecaracterizam a ação civil pública, poder-se-iaainda cogitar de um controle meramente inci-dental ou concreto de constitucionalidade cujaeficácia restaria limitada às partes envolvidasna controvérsia? Ou, de fato, estamos diantede um processo especialíssimo, de característicanotoriamente objetiva, isto é, sem partes, noqual o requerente atua na defesa genérica dointeresse público?

Não há dúvida de que as respostas a essasquestões dependem de algumas reflexões sobreo próprio modelo brasileiro de controle de consti-tucionalidade. O sistema adotado no Brasil, deinspiração americana, limitava-se, inicialmente,a um controle incidental ou concreto. A questãoconstitucional haveria de ser considerada noâmbito de um caso ou de uma controvérsiaconcreta entre as partes. A adoção da repre-sentação interventiva a partir, efetivamente, de1946 ensejou o desenvolvimento do controleabstrato, consagrado pela Emenda Constitu-cional nº 16, de 1965, e mantido pelo TextoConstitucional de 1967/69.

Como visto, a Constituição de 1988 redu-ziu o significado do controle de constituciona-lidade incidental ou difuso ao ampliar, de formamarcante, a legitimação para propositura daação direta de inconstitucionalidade (CF, art.103), permitindo que, praticamente, todas ascontrovérsias constitucionais relevantes sejamsubmetidas ao Supremo Tribunal Federalmediante processo de controle abstrato denormas.

A propósito, vale registrar pronunciamentodo Ministro Moreira Alves no RE nº 91.740-RS:

“Com efeito, o controle da inconsti-tucionalidade das leis, em tese, aindaquando deferido – como sucede no Brasil– ao Poder Judiciário, não é, ao contráriodo que ocorre com o controle incidentertantum (que, por isso mesmo, foi admi-tido nos Estados Unidos da América doNorte, independentemente de texto cons-titucional que o consagrasse expressa-mente), ínsito à atribuição jurisdicional(aplicar a lei válida e vigente ao casoconcreto submetido ao Judiciário), masato de natureza eminentemente política,

uma vez que, por ele, julga-se, direta-mente e em abstrato, a validade de atodos outros Poderes do Estado (o Legis-lativo e o Executivo), em face dospreceitos constitucionais a que todos osPoderes devem guardar obediência. Porisso mesmo, Willoughby (The SupremeCourt of the United States. Baltimore :J. Hopkins, 1890. p. 36) faz esta adver-tência:

‘Todo ato do Poder Legislativo épresumidamente válido. Sua constitu-cionalidade somente pode ser testada setrazida diante da Corte em caso concreto.A Corte nunca vai de encontro à lei, nemantecipa, em juízo sobre sua constitu-cionalidade, a execução que lhe dará. ACorte é trazida para a arena políticaindependentemente de sua vontade. Elajulga a lei somente porque é obrigada ajulgar o caso.’

“Por isso mesmo, o controle de consti-tucionalidade in abstracto (principal-mente em países em que, como o nosso,admite-se, sem restrições, o incidentertantum) é de natureza excepcional, e sóse permite nos casos expressamenteprevistos pela própria Constituição,como consectário, aliás, do princípio daharmonia e independência dos Poderesdo Estado. Não há que se falar, portanto,nesse terreno, de omissão da Consti-tuição Federal que possa ser preenchida– principalmente quando se trata, comono caso, de meio de controle para apreservação da obediência dela – pornorma supletiva de Constituição Estadual.Se nem o Supremo Tribunal Federal podejulgar da constitucionalidade, ou não, emtese, de lei ou ato normativo municipaldiante da Constituição Federal, comoadmitir-se que as Constituições Estaduais,sob o pretexto de omissão daquela, dêemesse poder, de natureza, como disse,eminentemente política, aos Tribunais deJustiça locais e, portanto, ao próprioSupremo Tribunal Federal, por via indi-reta, em grau de recurso extraordinário?

“Ocorre, pois, no caso, impossibilidadejurídica que reconheço de ofício”63.

Ressalte-se que, na apreciação da questão,destacou-se a singularidade desses tipos deprocesso consistente na necessária eficácia ergaomnes do pronunciamento da Corte que profere

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a declaração de inconstitucionalidade.A ela assim se referiu o Ministro Moreira

Alves:“(...) se fosse possível aos Tribunais deJustiça dos Estados o julgamento derepresentações dessa natureza, comrelação a leis municipais em conflito coma Constituição Federal, poderia ocorrera seguinte situação esdrúxula. É daíndole dessa representação – e isso hojeé matéria pacífica nesta Corte – que ela,transitando em julgado, tem eficácia ergaomnes, independentemente da partici-pação do Senado Federal, o que só seexige para a declaração incidentertantum. O que implica dizer que, se tran-sitasse em julgado a decisão nela profe-rida por Tribunal de Justiça, esta CorteSuprema estaria vinculada à decla-ração de inconstitucionalidade deTribunal que lhe é inferior, mesmo noscasos concretos futuros que lhe che-gassem por via de recurso extraor-dinário. O absurdo da conseqüência,que é da índole do instrumento,demonstra o absurdo da premissa”64.

Também o Ministro Leitão de Abreu delase ocupou, como se vê na seguinte passagemde seu voto:

“Gostaria de deduzir, com o desen-volvimento que o alto relevo dessaquestão constitucional comportaria, asrazões que, a meu sentir, militariam afavor da tese perfilhada pelo acórdãorecorrido, se superáveis, em relação aopresente caso, todos os óbices que selevantam acerca do cabimento da repre-sentação proposta perante o Tribunallocal, para a declaração de inconstitu-cionalidade da lei municipal, de que nahipótese se trata, por incompatibilidadecom a Constituição Federal. Não acheimeios jurídicos, todavia, que me habili-tassem a vencer o obstáculo, levantadopelo Ministro Moreira Alves, no que dizrespeito à situação que se criaria no casode se declarar, pelo Tribunal de Justiça,inconstitucionalidade de lei municipal,por denotar conflito com a Carta Federal,sem que dessa decisão se manifesterecurso extraordinário. Transitada emjulgado decisão dessa natureza, ficaria,na verdade, o Supremo Tribunal vincu-lado à declaração de inconstituciona-

lidade pronunciada pelo Tribunal deJustiça e, por via de conseqüência,impossibilitado de julgar casos concretosfuturos que, em recursos extraordinários,trouxessem-se à sua apreciação. Comoessa conseqüência, que seria inelutável,afigura-se-me, também, inadmissível,não há senão concluir, a meu ver,malgrado a elegante construção jurídicado Tribunal paulista, pela inconstitucio-nalidade das expressões ‘inconstitucio-nalidade’ do artigo 54, I, e, da Consti-tuição do Estado de São Paulo. Conhe-cendo, pois, do recurso, dou-lhe provi-mento para que a inconstitucionalidadeassim fique pronunciada”65.

Em outras palavras, reconheceu-se que adecisão de Corte estadual que declarasse ainconstitucionalidade de lei municipal em faceda Constituição Federal, com eficácia ergaomnes, poderia, de forma absurda, vincular opróprio Supremo Tribunal Federal.

Assim, a característica fundamental do con-trole concreto ou incidental de normas pareceser o seu desenvolvimento inicial no curso deum processo, no qual a questão constitucionalconfigura “antecedente lógico e necessário àdeclaração judicial que há de versar sobre aexistência ou inexistência de relação jurídica”66.

De qualquer sorte, impende salientar que,a partir de 1934, vem a ordem constitucionalbrasileira emprestando tratamento especial aocontrole incidental de constitucionalidade.

Como se sabe, a Constituição de 1934consagrou a competência do Senado Federalpara suspender a execução de qualquer lei ouato declarado inconstitucional pelo SupremoTribunal (art. 91, IV, c/c o art. 96). E, no art.179, condicionou a declaração de inconstitu-cionalidade pelos tribunais ao sufrágio damaioria absoluta.

Tais modificações são reveladoras de umanítida diferenciação no âmbito do controledifuso de constitucionalidade. Embora preser-vasse a competência do juiz singular paraapreciar a questão constitucional, o constituinteestabelecia pressupostos para a declaração deinconstitucionalidade das leis pelos tribunais.

Subordinou-se a eficácia erga omnes dadecisão do Supremo Tribunal que declarasse ainconstitucionalidade da lei ou ato à resoluçãodo Senado Federal (art. 91, IV).

Não obstante, o sistema de declaração deinconstitucionalidade por todos os juízes e

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tribunais, exigida, no caso destes, a observânciado quorum especial, e a suspensão pelo SenadoFederal do ato declarado inconstitucional, peloSupremo Tribunal, foram incorporados pelaConstituição de 1946 (arts. 101, III, b e c, 200e 64), pela Constituição de 1967/1969 (arts.119, III, a, b, c, 116, e 42, VII) e pela Consti-tuição de 1988 (arts. 97 e 52, X).

O controle de constitucionalidade concretoou incidental, tal como desenvolvido no Direitobrasileiro, é exercido por qualquer órgão judi-cial, no curso de processo de sua competên-cia67. A decisão, “que não é feita sobre o objetoprincipal da lide, mas sim sobre questão prévia,indispensável ao julgamento do mérito”68, temo condão, apenas, de afastar a incidência danorma viciada.

Daí recorrer-se à suspensão de execução,pelo Senado, de leis ou decretos declaradosinconstitucionais pelo Supremo TribunalFederal (CF 1967/1969, art. 42, VII)69.

Essa colocação parece explicitar a naturezasingular da atribuição deferida ao SenadoFederal. A suspensão constitui ato político queretira a lei do ordenamento jurídico, de formadefinitiva e com efeitos retroativos. É o queressalta, igualmente, o Supremo TribunalFederal, ao enfatizar que “a suspensão davigência da lei por inconstitucionalidade tornasem efeito todos os atos praticados sob o impérioda lei inconstitucional”70.

Ora, é fácil ver, pois, que, no âmbito dasistemática adotada pela ordem constitucionalbrasileira, ao contrário da decisão proferida nocontrole direto ou concentrado, que, por suaprópria natureza, é dotada de eficácia geral, adecisão manifestada no controle difuso ouincidental há de ter eficácia limitada às partesenvolvidas na controvérsia. Eventual extensãoda eficácia da decisão do Supremo TribunalFederal há de depender sempre do pronuncia-mento do Senado Federal.

De todas essas digressões resulta ser inad-missível a criação de processos destinados aaferir a legitimidade de normas de formaabstrata ou com eficácia geral pelo legisladorordinário ou pelo constituinte estadual.

Em face das características especiais queornam a ação civil pública, seria lícito indagarsobre a sua adequação para o controle deconstitucionalidade das leis na modalidade decontrole incidental ou concreto. Em outrostermos, seria possível que o juiz, ao apreciarpedido formulado em ação civil pública, afas-tasse topicamente a incidência ou a aplicação

de uma dada norma federal ou estadual em faceda Constituição Federal? Qual seria a eficáciadessa decisão?

É fácil ver, desde logo, que a ação civilpública não se confunde, pela própria forma enatureza, com os processos cognominados de“processos subjetivos”.

A parte ativa nesse processo não atua nadefesa de interesses próprios, mas procuradefender um interesse público devidamentecaracterizado. Assim sendo, afigura-se difícil,senão impossível, sustentar-se que a decisãoque, eventualmente, afastasse a incidência deuma lei considerada inconstitucional, em açãocivil, teria efeito limitado às partes processual-mente legitimadas.

É que, como já enunciado, a ação civilpública aproxima-se muito de um típicoprocesso sem partes ou de um processo objetivo,no qual a parte autora atua não na defesa desituações subjetivas, agindo, fundamental-mente, com escopo de garantir a tutela dointeresse público71.

Não foi por outra razão que o legislador, aodisciplinar a eficácia da decisão proferida naação civil, viu-se compelido a estabelecer que“a sentença civil fará coisa julgada ergaomnes”.

Isso significa que, se utilizada com opropósito de proceder ao controle de constitu-cionalidade, a decisão que, em ação civilpública, afastar a incidência de dada norma poreventual incompatibilidade com a ordem cons-titucional acabará por ter eficácia semelhanteà das ações diretas de inconstitucionalidade,isto é, eficácia geral e irrestrita.

Já o entendimento esposado pelo SupremoTribunal Federal no sentido de que essa espéciede controle genérico da constitucionalidade dasleis constituiria um afazer político de determi-nadas Cortes realça a impossibilidade de utili-zação da ação civil pública com esse escopo.Em verdade, ainda que se pudesse acrescentaralgum outro desiderato adicional a uma açãocivil pública destinada a afastar a incidênciade dada norma infraconstitucional, é certo queo seu objetivo precípuo haveria de ser aimpugnação direta e frontal da legitimidade deato normativo. Não se trataria de discussãosobre aplicação de lei a caso concreto, porquede caso concreto não se cuida. Ao revés, aprópria parte autora ou requerente legitima-senão em razão da necessidade de proteção deum interesse específico, mas exatamente de um

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interesse genérico amplíssimo, de um interessepúblico. Ter-se-ia, pois, uma decisão (direta)sobre a legitimidade da norma.

Deve-se acrescentar, ademais, que o julga-mento desse tipo de questão pela jurisdiçãoordinária de primeiro grau suscita um outroproblema, igualmente grave, no âmbito dasistemática de controle de constitucionalidadeadotada no Brasil. Diferentemente da decisãoincidenter tantum proferida nos casos concre-tos, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal,cuja eficácia fica adstrita às partes do processo,a decisão sobre a constitucionalidade da leiproferida pelo juiz de primeiro grau haveria deser dotada de eficácia geral e abstrata. Nempoderia ser diferente: como as partes na açãocivil pública atuam não na defesa de interessejurídico específico, mas, propriamente, na pro-teção do interesse público, qualquer pretensãono sentido de limitar a eficácia das decisõesproferidas nesses processos apenas às partesformais do processo redundaria na sua completanulificação.

Em outros termos, admitida a utilização daação civil pública como instrumento adequadode controle de constitucionalidade, tem-se, ipsojure, a outorga à jurisdição ordinária deprimeiro grau de poderes que a Constituiçãonão assegura sequer ao Supremo TribunalFederal. É que, como visto, a decisão sobre aconstitucionalidade da lei proferida pelaExcelsa Corte no caso concreto tem, necessáriae inevitavelmente, eficácia inter partes, depen-dendo a sua extensão da decisão do SenadoFederal.

Ainda que se desenvolvam esforços nosentido de formular pretensão diversa, toda vezque, na ação civil, ficar evidente que a medidaou providência que se pretende questionar é aprópria lei ou ato normativo, restará inequívocoque se trata mesmo é de uma impugnação diretade lei.

Nessas condições, para não se chegar a umresultado que subverta todo o sistema decontrole de constitucionalidade adotado noBrasil, tem-se de admitir a inidoneidade com-pleta da ação civil pública como instrumentode controle de constitucionalidade, seja porqueela acabaria por instaurar um controle direto eabstrato no plano da jurisdição de primeirograu, seja porque a decisão haveria de ter,necessariamente, eficácia transcendente daspartes formais.

É verdade que o tema ora abordado ainda

não foi objeto de apreciação direta peloSupremo Tribunal Federal. É certo, porém, que,tal como enunciado, essas conclusões parecemencontrar respaldo pleno na jurisprudência daCorte Suprema. A par de outras decisões jámencionadas, afigura-se digno de referênciaacórdão recém-publicado, no qual o SupremoTribunal Federal acolheu Reclamação que lhefoi submetida pelo Procurador-Geral da Repú-blica, determinando o arquivamento de açõesajuizadas na 2ª e 3ª Varas da Fazenda Públicada Comarca de São Paulo, por entender carac-terizada a usurpação de competência doSupremo Tribunal Federal, uma vez que apretensão nelas veiculada não visava ao julga-mento de uma relação jurídica concreta, masao da validade de lei em tese72.

A propósito, mencione-se a seguinte pas-sagem do voto do eminente Relator, MinistroFrancisco Rezek:

“A leitura do acervo aqui produzidofaz ver que o objeto precípuo das açõesem curso da 2ª e 3ª Varas da FazendaPública da comarca de São Paulo é, aindaque de forma dissimulada, a declaraçãode inconstitucionalidade da lei estadualem face da Carta da República. Asrequerentes, ao proporem a providênciacautelar, preparatória da ação principal,deixam claro que esta visa a ‘... decretara ilegalidade da medida...’ (fls. 34).Ocorre que a ‘medida’ tida por ilegal é aprópria lei. E o juízo de inconstituciona-lidade da lei só se produz como incidenteno processo comum – controle difuso –ou como escopo precípuo do processodeclaratório de inconstitucionalidade dalei em tese – controle concentrado”73.

Essa orientação da Suprema Corte reforçaa idéia desenvolvida de que eventual esforçodissimulatório por parte do requerente da açãocivil pública haverá de restar ainda mais evi-dente, porquanto, diversamente da situaçãomanifesta no precedente referido, o autor aquipede tutela genérica do interesse público,devendo, por isso, a decisão proferida ter efi-cácia erga omnes. Assim, eventual pronúnciade inconstitucionalidade da lei levada a efeitopelo juízo monocrático terá força idêntica à dadecisão proferida pelo Supremo TribunalFederal no controle direto de inconstitucio-nalidade.

As especificidades desse modelo de controle,o seu caráter excepcional, o restrito deferimento

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dessa prerrogativa (no que se refere à aferiçãode constitucionalidade de lei ou ato normativoestadual ou federal em face da ConstituiçãoFederal) apenas ao Supremo, a legitimação res-trita para provocação do Supremo – somenteos órgãos e entes referidos no art. 103 da Cons-tituição estão autorizados a instaurar o processode controle –, a dimensão política inegáveldessa modalidade, tudo leva a infirmar apossibilidade de que se proceda ao controle delegitimidade de lei ou ato normativo federal ouestadual em face da Constituição no âmbito daação civil pública.

3. Incidente de inconstitucionalidade

Na Revisão Constitucional de 1994, afigu-rou-se acertado introduzir o incidente deinconstitucionalidade, que permitiria fosseapreciada diretamente pelo Supremo TribunalFederal controvérsia sobre a constitucionali-dade de lei ou ato normativo federal, estadualou municipal, inclusive os atos anteriores àConstituição, a pedido do Procurador-Geral daRepública, do Advogado-Geral da União, doProcurador-Geral de Justiça e do Procurador-Geral do Estado, sempre que houvesse perigode lesão à segurança jurídica, à ordem ou àsfinanças públicas. A Suprema Corte poderia,acolhendo incidente de inconstitucionalidade,determinar a suspensão de processo em cursoperante qualquer juízo ou tribunal para proferirdecisão exclusivamente sobre a questão federalsuscitada.

Referido instituto destinava-se a completaro complexo sistema de controle de constitu-cionalidade brasileiro, permitindo que oSupremo Tribunal Federal pudesse dirimir,desde logo, controvérsia que, do contrário,daria ensejo certamente a um sem-número dedemandas, com prejuízos para as partes e paraa própria segurança jurídica.

Assim, mediante provocação de qualifi-cados atores do processo judicial, a CorteSuprema fica autorizada a suspender osprocessos em curso e proferir decisão exclusi-vamente sobre a questão constitucional.

Ressalte-se de imediato que, a despeito daaparente novidade, técnica semelhante já seadota entre nós desde 1934, com a chamadacisão funcional da competência, que permitiaque, no julgamento da inconstitucionalidade denorma perante Tribunais, o Plenário ou o ÓrgãoEspecial julgasse a inconstitucionalidade ou aconstitucionalidade da norma, cabendo aoórgão fracionário decidir a espécie à vista do

que restar assentado no julgamento da questãoconstitucional.

Sem dúvida, o incidente ensejaria a sepa-ração da questão para o seu julgamento, nãopelo Pleno do Tribunal ou por seu Órgão Espe-cial, mas, diretamente, pelo Supremo TribunalFederal.

Daí o inevitável símile com a técnicaconsagrada nos modelos de controle concen-trado de normas, que determina seja a questãosubmetida diretamente à Corte Constitucionaltoda vez que a norma for relevante para ojulgamento do caso concreto e o juiz ou tribunalconsiderá-la inconstitucional (cf., v.g., Consti-tuição austríaca, art. 140, (1); Lei Fundamentalde Bonn, art. 100, I, e Lei orgânica da CorteConstitucional, §§ 13, nº 11 e 80 s.).

Todavia, as diferenças são evidentes.Ao contrário do que ocorre nos modelos

concentrados de controle de constitucionalida-de, nos quais a Corte Constitucional detém omonopólio da decisão sobre a constituciona-lidade ou a inconstitucionalidade da lei, oincidente de inconstitucionalidade não altera,em seus fundamentos, o sistema difuso decontrole de constitucionalidade introduzidoentre nós pela Constituição de 1891. Juízes etribunais continuam a decidir também a questãoconstitucional, tal como faziam anteriormente,cumprindo ao Supremo Tribunal Federal,enquanto guardião da Constituição, a unifor-mização da interpretação do Texto Magnomediante o julgamento de recursos extraordi-nários contra decisões judiciais de única ouúltima instância.

Convém assinalar que somente em casosexcepcionais, de relevante interesse público,poderia a Corte Suprema acolher o incidentede inconstitucionalidade, para proferir decisãoexclusivamente sobre a questão constitucional.

O novo instituto serviria para antecipar asdecisões sobre controvérsias constitucionaisrelevantes, evitando que elas venham a ter umdesfecho definitivo após longos anos, quandomuitas situações já se consolidaram ao arrepioda “interpretação autêntica” do SupremoTribunal Federal.

A experiência histórica recente demonstraque, muitas vezes, temas polêmicos acabamsendo decididos de maneira açodada por juízese tribunais ordinários, que optam por declarara inconstitucionalidade de normas, reconhe-cidas, posteriormente, como legítimas peloSupremo Tribunal Federal.

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Revista de Informação Legislativa32

A adoção do incidente de inconstituciona-lidade propiciaria ao Supremo Tribunal Federala oportunidade de conhecer das questões antesmesmo que se consolidassem orientações ouinterpretações outras, de difícil superação oudesfazimento.

O incidente de inconstitucionalidadeproposto oferece solução adequada para a difícilquestão do controle de constitucionalidade dalei municipal em face da Constituição Federal.Os embaraços que se colocam à utilização daação direta de inconstitucionalidade contra alei municipal perante o Supremo TribunalFederal, até mesmo pela impossibilidade de seapreciar o grande número de atos normativoscomunais, poderão ser afastados com a intro-dução desse instituto, que permitirá ao SupremoTribunal Federal conhecer das questõesconstitucionais mais relevantes provocadas poratos normativos municipais.

A eficácia erga omnes e o efeito vinculantedas decisões proferidas pelo Supremo TribunalFederal nesses processos hão de fornecer adiretriz segura para o juízo sobre a legitimidadeou a ilegitimidade de atos de teor idêntico,editados pelas diversas entidades comunais.

Essa solução é superior, sem dúvida, àalternativa oferecida, que consistiria no reco-nhecimento da competência dos Tribunais deJustiça para apreciar, em ação direta de incons-titucionalidade, a legitimidade de leis ou atosnormativos municipais em face da ConstituiçãoFederal. Além de ensejar múltiplas e variadasinterpretações, essa solução acabaria poragravar a crise do Supremo Tribunal Federal,com a multiplicação de recursos extraordináriosinterpostos contra as decisões proferidas pelasdiferentes Cortes estaduais.

Outra virtude inegável do instituto residena possibilidade de sua utilização para solvercontrovérsia relevante sobre a legitimidade dodireito ordinário pré-constitucional em face danova Constituição.

Aprovado o referido instituto, passaria oordenamento jurídico a dispor de um instru-mento ágil e célere para dirimir, de forma defi-nitiva e com eficácia geral, as controvérsiasrelacionadas com o direito anterior à Consti-tuição que, por ora, somente podem ser veicu-ladas mediante a utilização do recurso extraor-dinário, cuja decisão tem eficácia limitada àspartes envolvidas no processo.

ANEXO I

ANO PROCESSOS ANO PROCESSOS ANO PROCESSOS

1966 22 1977 20 1988* 202

1967 31 1978 29 1989 160

1968 01 1979 15 1990 254

1969 26 1980 40 1991 236

1970 15 1981 42 1992 166

1971 23 1982 37 1993 162

1972 20 1983 26 1994 197

1973 17 1984 55 1995 211

1974 – 1985 70 1996** 113

1975 18 1986 81

1976 24 1987 114

* a estatística considera as Rps e as ADINs* * até agosto de 1996

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 33

TotalParcial

ANEXO II

REQUERENTES 1988* 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996*

Presidente da República – – – – – – – – – –

Mesa do Senado Federal – – – – – – – – – –

Mesa da Câmara dos Deputados – – – – – – – – – –

Governador de Estado 2 60 102 56 49 45 32 62 18 426

Procurador-Geral da República 191 22 62 67 64 46 68 49 7 382

Conselho Federal da Ordem dosAdvogados do Brasil 1 4 9 3 3 6 3 6 7 38

Partido Político 2 12 30 37 25 13 29 44 33 227

Confederação Sind. ou Ent. deClasse de Âmbito Nacional 6 54 50 64 23 50 66 47 43 403

Mesa da Assembléia Legislativa – 3 1 7 4 1 1 3 22 22

Outros – 5 – 2 1 1 1 4 18 18

TOTAL GERAL 202 160 254 236 166 162 197 211 113 1516

* a estatística considera as Rps e as ADINs* * até agosto de 1996

ANEXO III

Período: outubro/88 – agosto/96Universo da pesquisa: 1507 ADIns

Número de ADIns

Pedidos de Liminar 975

Não conhecidas/sem pedido de liminar 532

Número Total 1507

Deferidos Indeferidos Não apreciados

Pedidos de Liminar 594 355 26

ADIns com Liminar Julgadas definitivamente Confirmadas 63

deferida*

Pendentes

Não confirmadas 20 Total 83

– 508

* Após a concessão da liminar, 3 (três) ADIns não foram conhecidas.

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Notas de Rodapé1 MENDES, Gilmar Ferreira. A doutrina cons-

titucional e o controle de constitucionalidade comogarantia da cidadania. Cadernos de Direito Tribu-tário e Finanças Públicas, v. 1, n. 3, p. 21-43, abr./jun. 1993.

2 ANSCHÜTZ, Gerhard. Verhandlungen des 34.juristentags. Berlim, 1927. v. 2, p. 208.

3 KELSEN, Hans. Entwicklung der staatsgeri-chtsbarkeit. VVDStRL 5 (1929), p. 30.

4 HÄBERLE, Peter. Verfassungsgerichtsbarkeit.Darmstadt, 1976. p. 1, Grundprobleme der verfas-sungsgerichtsbarkeit.

5 MS nº 20.257. Relator: Ministro MoreiraAlves. Revista Trimestral de Jurisprudência, n. 99,p. 1031-1041.

6 FERRAZ, Anna Cãndida da Cunha. Conflitoentre Poderes. São Paulo, 1994. p. 204.

7 Comentários à Constituição da República dosEstados Unidos do Brasil. t. 1, p. 770-771.

8 ADIn 748. Relator: Ministro Celso de Mello.Diário da Justiça, 6 nov. 1992. p. 20.105.

9 KELSEN, Hans. Wesen und entwicklung derstaatsgerichtsbarkeit, VVDStRL 5 (1929), p. 41.

10 Como observado por Ipsen (Rechtsfolgen derVerfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, p.147), o ponto central do problema residia, paraKelsen, na diferenciação entre a competência dajurisdição constitucional e da jurisdição adminis-trativa.

11 KELSEN, op cit. p. 39.12 ATALIBA, Geraldo. Poder Regulamentar do

Executivo. Revista de Direito Público, n. 57-58, p.197-198.

13 No direito alemão, ERICHSEN. Staatsrechtund verfassungsgerichtsbarkeit. v. 1, p. 20.

14 PAPIER, Hans-Jürgen. “Bundesverfassungs-gericht und Grundgesetz. v. 1, p. 432-434 : Spezi-fisches verfassungsrecht” und “einfaches recht” alsargumentationsformel des bundesverfassungsgerichts.

15 MELLO, O. A. Bandeira de. Princípios geraisde direito administrativo. v. 1, p. 314-316; ATALIBA,Geraldo. Poder regulamentar do Executivo. Revistade Direito Público, n. 57-58, p. 196; LIMA, RuyCirne. Princípios de Direito Administrativo. p. 37;MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituiçãode 1967, com a Emenda nº 1, de 1969. v. 3, p. 312-314; sobre a questão no direito tedesco, STERN,Staatsrecht der Bundesrepublik, v. 1, p. 85-87.

16 Proposta de emenda revisional do DeputadoAdroaldo Streck (Proposta nº 3.342), que recomen-dava também a supressão do art. 49, X (competênciado Congresso Nacional para sustar atos do PoderExecutivo que exorbitem do poder regulamentar oudos limites de delegação legislativa).

17 NUNES, José de Castro. Teoria e Prática doPoder Judiciário. Rio de Janeiro, 1943. p. 593.

18 BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitu-cional. p. 63.

19 CAMPOS, Francisco. Diretrizes Constitucio-nais do novo Estado brasileiro. Revista Forense, v.73, n. 415/417, p. 229, jan./mar. 1938. Cf., a seguintepassagem, verbis:

“Não me parece essencial ao Poder Judi-ciário a prerrogativa de declarar a inconsti-tucionalidade das leis ou de recusar-lhes aexecução com fundamento na sua incompa-tibilidade com a carta constitucional. Para quese pudesse considerar como essencial essaprerrogativa, seria indispensável que sem elanão se pudesse conceber a existência doPoder Judiciário.

“Ora, tal prerrogativa não é um atributoque se encontre reconhecido universalmenteao Poder Judiciário. Ao contrário, é um atri-buto do Poder Judiciário do tipo americano,e mesmo nos Estados Unidos seriamentecombatido com os melhores fundamentos.

“A constituição americana é, como sesabe, obra de um pequeno número de grandeslegistas. A supremacia do Poder Judiciário,mediante a prerrogativa que lhe foi atribuídade guarda suprema da Constituição, foi umarranjo ou uma construção imaginada porlegistas.

“Os legistas são, por natureza, conserva-dores, e a perspectiva de mudanças, inova-ções ou experiências sempre os intimida. Osinteresses criados constituem o centro dassuas preocupações. Nos arranjos ou nascombinações dos mecanismos de governo, deprocesso ou de justiça, o que domina o seuespírito não é o lado dinâmico, liberal ouprogressista, mas o estático, o das garantiasque assegurem a permanência do status quo,a duração do adquirido, a estabilidade dassituações consolidadas, a conservação dosinteresses criados. O mundo dos legistas nãoé o do futuro, mas o do passado, o mundodos arquétipos ou das fórmulas em que secristalizou a experiência do passado.

“Os legistas que formularam a teoria daConstituição americana não constituíamexceção aos caracteres que definem, em todoo mundo, a família dos legistas. A implan-tação de instituições eminentemente dinâ-micas, como são as instituições democráticas,despertou no seu espírito o temor de que elasviessem a constituir fonte de desassossegoou de mudanças na ordem de cousas estabe-lecida. Cumpria tutelar os poderes de origempopular, sujeitos às injunções da opiniãopública, criando um super poder, de caráter

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permanente e sem nenhuma dependênciapara com os movimentos de opinião, demaneira que os órgãos representativos nãofossem compelidos pelas pressões popularesa entrar no caminho das inovações ou dasreivindicações democráticas, que sempre sefazem, como é natural, à custa dos interessescriados. Ora, os juízes, não só pela formaçãoespecial do seu espírito, como pela situaçãoprivilegiada que lhe era assegurada na Cons-tituição, tenderiam, naturalmente, a mantera ordem de cousas estabelecida, procurando,de boa-fé, interpretar a Constituição nosentido da concepção do mundo próprio à suafamília espiritual, isto é, de acordo com oprincípio, que informa toda filosofia conser-vadora, de que a ordem de cousas vigentesem um dado momento é a ordem natural eeterna.

“O mecanismo de controle judicial,inventado pelos legistas americanos, corres-pondia, inteiramente, aos motivos, cons-cientes ou obscuros, que os inspiravam. Ocaráter dinâmico das instituições democrá-ticas se achava coarctado por uma poderosaforça de inibição, tanto mais poderosa quantoidealizada por uma hábil propaganda, queconseguiu criar no público a convicção de quea peça teria por função proteger o povo contraos abusos do poder.

“A verdade, porém, é que o mecanismode controle judicial da constitucionalidadedas leis tinha por fim exclusivo a proteçãodos interesses criados ou da ordem de cousasestabelecida contra as veleidades de inicia-tiva dos poderes representativos no sentidode favorecer as aspirações populares ou dealterar, na direção democrática, as relaçõesde poder existentes no País ao tempo dapromulgação da Constituição.

“A ideologia conservadora encontrou,assim, no Poder Judiciário, o instrumentodestinado a moderar ou inibir os ímpetosdemocráticos da Nação. A Constituiçãopassava, por um processo metafísico, aincorporar a filosofia dos juízes. Essa filoso-fia, que se confundia com a Constituição,tornava-se, assim, filosofia obrigatória noPaís. Só era constitucional a concepção domundo dos juízes, os seus pontos de vistapreconcebidos em relação à sociedade, aosdireitos individuais e aos interesses da Nação.Por este artifício, a política de uma demo-cracia, a qual, como toda política democrática,é eminentemente ativa e dinâmica, era trans-ferida dos órgãos de delegação popular paraum cenáculo de notáveis, que uma série deprerrogativas e de privilégios tornavaindependente, senão impermeável às mudan-ças operadas no sentimento público ou na

concepção da vida dos seus contemporâneos.“Completando o processo, seguramente

ingênuo e de boa-fé, de dissimulação do papelconferido ao Poder Judiciário, a teoriaprocurou atenuar a sua importância, decla-rando que o julgamento dos tribunais pres-supõe uma provocação e um litígio, isto é, queo supremo intérprete da Constituição não tema faculdade de interpretá-la em abstrato. Comoobserva, porém, LORD BIRKENHEAD,quando o tribunal, decidindo um litígio,declara a lei inconstitucional, o que eledecide, em última análise, é o caso da lei,privando-a de toda autoridade.

“Ora, a Constituição tem por conteúdoos grandes poderes do governo destinados aserem exercidos para grandes fins públicos.Atribuir a um Tribunal a faculdade dedeclarar o que é constitucional é, de modoindireto, atribuir-lhe o poder de formular nostermos que lhe parecerem mais convenientesou adequados à própria Constituição. Trata-se, no caso, de confiar a um órgão que se nãoorigina do povo, e que não se encontra sujeitoà sua opinião, o mais eminente dos poderes,porque, precisamente, o poder que define osgrande poderes do governo e os grandes finspúblicos a que se destina o governo. Ocontrole judicial da constitucionalidade dasleis é, sem dúvida nenhuma, um processodestinado a transferir do povo para o PoderJudiciário o controle do governo, controletanto mais obscuro quanto insusceptível deinteligibilidade pública, graças à aparelhagemtécnica e dialética que o torna inacessível àcompreensão comum. A supremacia do judi-ciário não é, pois, como procura fazer acre-ditar uma ingênua doutrina que atribui aométodo jurídico um caráter puramente lógicoe objetivo, uma supremacia aparente. É, aocontrário, uma supremacia política, porquea função de interpretar, que redunda na deformular a Constituição, é a mais alta ou amais eminente das funções políticas.

“O controle judicial da constitucionali-dade das leis, ao invés de constituir umaproteção do povo, era um expediente sabia-mente engenhado para o fim de impedir oumoderar as reivindicações populares, oucolocar sob o controle dos interesses criadosou da filosofia conservadora dos beneficiáriosda ordem estabelecida a evolução das insti-tuições democráticas, privando-as das virtua-lidades dinâmicas que lhes são inerentes.

“É, como se vê, uma sobrevivência doPoder Moderador da monarquia, um resíduomonárquico que se enquistou nas instituiçõesdemocráticas com o fim de embaraçar os seusmovimentos naturalmente orientados nosentido das inovações, das experiências e de

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uma concepção criadora e liberal da vida,exatamente o oposto da filosofia própria aosinteresses criados, que postulam a conser-vação, a permanência, a continuidade, aduração das situações adquiridas.

“A propósito da idealização de que ocontrole judicial foi objeto nos EstadosUnidos, ALLEN SMITH, falecido Professorde ciência política na Universidade deWashington, escreve no seu livro póstumoThe growth and decadence of constitutionalgovernment:

‘Não há, provavelmente, outro exemplo,em toda a história da evolução constitucio-nal, em que a opinião haja sido tão iludidaquanto à verdadeira natureza de um arranjoou de um artifício político. A razão ostensivade atribuir o poder de veto aos tribunais eraa de prover um meio de tornar efetivas aslimitações constitucionais; o objetivo real era,porém, o de concentrar o poder político naSuprema Corte dos Estados Unidos, e,mediante a função que lhe era conferida deinterpretação final, transformar a constituiçãono baluarte do conservantismo.’

“Eis aí como, em instituições democrá-ticas, o povo, ao invés de controlar, passa aser controlado por um poder em cujaformação não participou e cujos processos decontrole, duplamente dissimulados, porqueexercidos sob as modestas aparências de umlitígio de direito comum e envolvidos em umatécnica somente acessível a especialistas,escapam ao registro crítico da opiniãopopular.

“A modificação introduzida pela Cons-tituição de 10 de novembro teve por fimrepor na Nação o controle do governo, sub-metendo-o ao juízo do povo, ao qual deveficar livre a opção quando se tratar de pôrem movimento o mecanismo constitucionalno sentido de serem realizados os grandesfins de governo, fins de ordem pública e geral,em relação aos quais o pronunciamento defi-nitivo não pode deixar de caber ao povo. É apassagem do governo dos cenáculos para ogoverno do povo.

“A faculdade de interpretar final econclusivamente a Constituição, só se justi-ficaria atribuí-la em regime democrático aoPoder Judiciário se o método jurídico fossede natureza puramente lógica ou dedutiva. Afunção judiciária seria, então, puramentelógica ou dedutiva. A função judiciária seria,então, puramente passiva, a interpretaçãolimitando-se apenas a tornar explícito oconteúdo da lei.

“Tais postulados são, porém, hipótesescontrárias à realidade. Nem o método jurídicoé puramente lógico, nem o pensamento jurí-dico puramente objetivo. A interpretação, por

sua vez, longe de ser passiva e neutra, é umprocesso de criação ou de elaboração ativa.Quando a lei a ser interpretada é a Consti-tuição, a generalidade, a amplitude, acompreensão da matéria abre um vasto campoà contribuição do intérprete que, emboraanimado da maior boa-fé, não pode deixarde verter em termos da sua filosofia pessoalou da sua concepção da vida problemas domaior interesse vital para todo o mundo e emtorno de cuja expressão, por mais precisa queseja, não pode deixar de existir um halo deindeterminação propício às opções dotemperamento, do caráter ou da vontade.

Nestas condições, atribuir a supremaciaao Judiciário é atribuí-la à filosofia dos juízes.Em se tratando de interesses nacionais, dosgrandes poderes do governo e dos grandesfins públicos a que o governo se destina, é,certamente, mais democrático, senão maisacertado, preferir à filosofia e à opção dosjuízes a opção e a filosofia da Nação”.

20 Ibidem.21 Cf., a propósito, Decreto-Lei nº 1.564, de

5-9-1939, com o seguinte teor:

“Decreto-Lei nº 1.564, de 5 de setembrode 1939

Confirma os textos de lei, decretados pelaUnião, que sujeitaram ao imposto de rendaos vencimentos pagos pelos cofres públicosestaduais e municipais.

O Presidente da República, usando daatribuição que lhe confere o artigo 180 daConstituição, e para os efeitos do artigo 96,parágrafo,

Considerando que o Supremo TribunalFederal declarou a inconstitucionalidade daincidência do imposto de renda, decretadopela União no uso de sua competência priva-tiva, sobre os vencimentos pagos pelos cofrespúblicos estaduais e municipais;

Considerando que essa decisão judiciárianão consulta o interesse nacional e o princípioda divisão eqüitativa de ônus no imposto,

Decreta:Artigo único. São confirmados os

textos de lei, decretados pela União, quesujeitaram ao imposto de renda os venci-mentos pagos pelos cofres públicos esta-duais e municipais; ficando sem efeito asdecisões do Supremo Tribunal Federal ede quaisquer outros tribunais e juízes quetenham declarado a inconstitucionalidadedesses mesmos textos.

Rio de Janeiro, 5 de setembro de 1939,118º da Independência e 51º da República.

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Getulio VargasFrancisco CamposA. de Souza Costa”

22 É interessante, a propósito, registrar voto doMinistro Carlos Maximiliano, quando se discutiu,no Mandado de Segurança nº 623, a eficácia dadecisão confirmatória baixada pelo Presidente daRepública em relação às questões ainda não apre-ciadas pelo Supremo Tribunal Federal:

“A Constituição de 1891 incorporou oBrasil ao sistema democrático americano – odo governo de leis em vez de governo dehomens; entre nós, como nos Estados Unidose na República Argentina, a cúpula do regimeachava-se na Côrte Suprema; por isso, osgrandes presidentes da terra de Jefferson, nascerimônias solenes, davam a frente aos juízesdo pretório excelso, em republicana e belís-sima homenagem à soberania da Justiça. Ostribunais reviam e anulavam, aliás comdiscreta reserva, as leis e atos contrários aoespírito do código fundamental.

“O Chile constituía notória exceção,porque se inclinara para a onipotência parla-mentar, à francesa, porém evoluiu no sentidogeneralizado no continente: naquela repú-blica, a reforma constitucional de 1925investiu o Judiciário da prerrogativa outor-gada pelo estatuto norte-americano, ‘o maisperfeito do mundo’, segundo o conceito deBarbalho dos Andes, o hábil comentador donovo código básico, o professor Guerra, mortotragicamente em Valparaiso na semana emque eu visitava aquela encantadora cidade deveraneio.

“Notável coincidência, no mesmo ano de1925, famoso aresto do Tribunal Supremo daAlemanha (Reichsgericht), em 4 de novem-bro, proclamou a autoridade da magistraturapara declarar inválidos, por inconstitucionais,diplomas legislativos; assim foi decidido,apesar de não haver, na Constituição deWeimar, preceito expresso a tal respeito.Manifestou-se na terra de Frederico, à seme-lhança do que ocorrera, sobre o mesmoassunto, na pátria de Washington, a açãocriadora da jurisprudência.

“O estatuto brasileiro de 1937, no art. 96,transferiu, em tal esfera, a supremacia aoLegislativo, quando provocado pelo Presidente:julgada inconstitucional uma lei, posteriordecreto atua e prevalece como vitoriososembargos infringentes ao aresto supremo. Detal prerrogativa do Parlamento usou o Sr.Presidente da República, escudado no art.180 da Constituição, a propósito da incidên-cia de imposto federal sobre os proventos defuncionários locais, porque, sobrepondo a leia interesse ou rivalidade individual ou declasse, os membros do pretório mais altohaviam declarado os serviços, e, conseqüen-

temente, os servidores dos Estados, isentosde tributos que eles, Ministros togados,pagam, na média de cinco contos de réisanuais, sem recalcitrar nem discutir.

“Qual a diretriz futura a predominar nospretórios, em face da resolução presidencial?Não posso recorrer ao apoio precioso doDireito Comparado; porque a providênciaconstitucional brasileira, consistente emreformar sentenças por meio de decretos, nãoencontra similar ou paradigma em paísnenhum do orbe terráqueo. Recorro a outrafonte: os precedentes, em casos análogos.Vigorante o sistema generalizado na América,embora o Judiciário apenas decidisse emespécie e a sentença final só obrigasse nocaso em apreço, Presidente e Congresso, emobediência ao princípio da harmonia dospoderes, dali por diante se abstinham de agirou deliberar contra as conclusões do arestosupremo. Pela mesma razão, agora, atribuídaà Legislatura a antiga preeminência da Côrteexcelsa, esta não mais conhecerá de igualinconstitucionalidade. Seria, aliás, irrisórioestar a proferir acórdãos platônicos, arestospor lei destituídos de exeqüibilidade. Preva-lecerá, no alto pretório, o inelutável, emboramurmurando os seus membros o ‘e pur simuove’, de Galileu. Em conclusão: pelomenos no meu conceito, o desagradável inci-dente, para o qual confluíram, durante umaquinzena, as vistas sobressaltadas dos juristasnacionais, está definitivamente encerrado.

“No tocante à hipótese em apreço, eujulgo prejudicados os dois recursos; porqueo Decreto-lei nº 1.564, de 5 de setembro de1939, posterior à sentença concessiva domandado de segurança, explicitamente atornou sem efeito” (RF nº 82, p. 298 (300)).

23 The case of the misssing amendments : R. A.V. v. City of St. Paul. Harvard Law Review, v. 106n.1, p.124, nov. 1992.

24 LOEWENSTEIN. Teoría de la Constitución.Traducción y estudio sobre la obra por AlfredoGallego Anabitarte. 2. ed. Barcelona : Ariel, 1976.p. 190.

25 MAXIMILIANO, Carlos. Comentários àConstituição de 1891. Porto Alegre, 1929. n. 226,p. 311; REALE, Miguel. Revogação e anulamentodo Ato Administrativo. Rio, 1968. p. 47; CAVAL-CANTI, Themistocles Brandão. Arquivamento deRepresentação por inconstitucionalidade da lei.Revista de Direito Público, n. 16, p. 169; PEREIRA,Caio Mário da Silva. Parecer D-24 do Consultor-Geral da República. Diário Oficial da União, 22jun. 1965; LIMA, L. C. Miranda. Parecer. Revistade Direito Administrativo n. 81, p. 466. Ver tambémas decisões do Supremo Tribunal : RMS nº 4.211.Relator Ministro Cândido Motta Filho. RevistaTrimestral de Jurisprudência, n. 2, p. 386-7; RMS

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Revista de Informação Legislativa38

nº 5.860, Relator: Ministro Vilas Boas. Acórdãopublicado em audiência de 23 fev. 1959; Rp nº 512.Relator: Ministro Pedro Chaves. Revista de DireitoAdministrativo, n. 76, p. 308-9, 1964; RE nº 55.718-SP, Relator: Ministro Hermes Lima. Revista Trimes-tral de Jurisprudência, n. 32, p. 143-47; RMS nº14.557. Relator: Ministro Cândido Motta Filho.Revista Trimestral de Jurisprudência , n. 33, p.330-8; RMS nº 13.950, Relator: Ministro AmaralSantos. Revista de Direito Administrativo, n. 97, p.116-120, 1969.

26 Rp nº 980. Relator: Ministro Moreira Alves.Revista Trimestral de Jurisprudência, n. 96, p. 496.

27 Ibidem.28 O argumento de inconstitucionalidade e o

repúdio da Lei pelo Poder Executivo. RevistaForense, v. 79, n. 284 p. 101, out./dez. 1983.

29 ADIn nº 221. Relator: Ministro Moreira Alves.Diário da Justiça, 22 out. 1993.

30 ADIn nº 2. Relator: Ministro Paulo Brossard.Diário da Justiça, 12 fev. 1992.

31 ADIn nº 1.292. Relator: Ministro Ilmar Galvão.Diário da Justiça, 15 set. 1995.

32 ADIn nº 221. Relator: Ministro Moreira Alves,Diário da Justiça, 22 out. 1993.

33 ADIn nº 221. Relator: Ministro Moreira Alves.Diário da Justiça, 22 out. 1993.

34 ADIn nº 902. Relator: Ministro Marco Aurélio.Diário da Justiça, 22 abr. 1994, p. 8946.

35 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Die abstraktenormenkontrolle vor dem bundesverfassungsgerichtund vor dem Supremo Tribunal Federal. Berlim,1991, p. 85.

36 ADIn nº 1.096. Relator: Ministro Celso deMello. Diário da Justiça, 22 set. 1995.

37 Sobre a problemática no Direito alemão:ZEIDLER, K. Gedanken zum fernseh- urteil desbundesverfassungsgerichts. AöR 86, 1961, p. 361(380-381).

38 Sobre a problemática: Söhn, Die abstrakteNormenkontrolle.: Bundesverfassungsgericht undGrundgesetz. v. 1, p. 292-306; STEPHAN. DasRechtsschutzbedürfnis. 1967, p. 147; GOESSL.Organstreitigkeiten innerhalb des Bundes. p. 173 e219.

39 FRIESENHAHN. Verfassungsgerichtsbarkeit.Jura, 1986. p. 505-509.

40 LIMA, op. cit.41 MONTEIRO, op. cit.42 ADIn nº 807. Relator: Ministro Celso de

Mello. Diário da Justiça, 11 jun. 1993 Registre-seque, na espécie, após ter sancionado o projeto delei, o Governador do Estado Rio Grande do Sulapresentou pedido de ingresso na causa, na quali-

dade de litisconsorte ativo do Procurador-Geral daRepública, autor originário da impugnação.

43 ADIn nº 645-2. Relator: Ministro IlmarGalvão. Diário da Justiça, p. 1693. 21 fev. 1992;ver também, ADIn nº 665. Relator: Ministro OctavioGallotti. Diário da Justiça, p. 5376. 24 abr. 1992.

44 BVerfGE 1, 184.45 BVerfGE 1.396, 413.46 Cf., principalmente, as ações movidas pelo

Partido Social-Democrata contra a política exteriordo Governo Adenauer: 1.396 (Serviço militarobrigatório e Comunidade Européia de Defesa –Wehrpflicht, EVG); 4.157 ( Estatuto do Sarre – Saar-Statut); as ações movidas pelo Estado de Hessecontra o sistema de financiamento dos partidospolíticos (Parteienfinanzierung) (8, 51; 20, 56) econtra a disciplina do Estado de Necessidade (30,1); as ações dos Senados de Bremen e Hamburgo edo Governo da Renânia do Norte-Vestfália contra alei que disciplinava a recusa à prestação do serviçomilitar (Kriegsdienstverweigerungs-Neuordnungs-gesetz – KDVNG) (69, 1); as ações dos cristãos-democratas (CDU/CSU) contra a lei que descrimi-nalizava o aborto (Fristenlösung) (39, 1) e contra areforma da lei sobre o serviço militar obrigatório(Wehrpflichtnovelle) (48, 127); a ação do Governoda Baviera contra o Tratado Fundamental entre asduas Alemanhas (Grundvertrag) (36, 1); a ação dogoverno da Baixa-Saxônia contra o § 10, b, da Leide Imposto de Renda (Einkommensteuergesetz) de5-12-77 (53, 63); a ação dos cristãos-democratas(CDU-CSU) contra o § 2, I, da Lei de Orçamento1981 (BVerfGE 79, 311); Ver, também, BRYDE,Brunn-Otto, Verfassungsentwicklung : stabilität unddynamik im verfassungsrecht der bundesrepublikdeutschland. 1980.

47 BVerfGE 2, 307; BVerfGE 6, 104; BVerfGE12, 205, 217; Cf. também BVerfGE 2, 143, 158.

48 ADEC nº 1. Relator: Ministro Moreira Alves.Diário da Justiça, 16 jun. 1995.

49 Diário da Justiça, 4 set. 1970. p. 3.971.50 BUZAID, Alfredo. Da ação direta de decla-

ração de inconstitucionalidade no Direito brasileiro.São Paulo : Saraiva, 1958, p. 107; MOREIRA,Barbosa. As Partes na ação declaratória de incons-titucionalidade. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara, n. 13, p. 67, 75-76; CAVALCANTI, Themístocles. Do controle. p.115.

51 LEAL, Victor Nunes. Representação deInconstitucionalidade perante o Supremo TribunalFederal : um aspecto inexplorado. Revista de DireitoPúblico, v. 13 n. 53-54 p. 25 jan./jun. 1980.

52 O Professor Haroldo Valladão exerceu o cargode Procurador-Geral da República no período de19-4-67 a 13-11-67.

53 LEAL, op. cit. p. 25, 33.

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54 Reclamação nº 849, Relator: Ministro AdalícioNogueira. Revista Trimestral de Jurisprudência, 59,p. 333.

55 Registros da discussão travada no ConselhoFederal da Ordem dos Advogados do Brasil, emmarço de 1971. Arquivos do Ministério da Justiça,n. 118, p. 23, 1971.

56 MARINHO, Josaphat. Inconstitucionalidadede lei : representação ao STF. Revista de DireitoPúblico, 12, p. 150; PEREIRA, Caio Mário da Silva.Voto proferido no Conselho Federal da OAB.Arquivos do Ministério da Justiça, n. 118, p. 25;CAVALCANTI, Themístocles. Arquivamento derepresentação por inconstitucionalidade da lei.Revista de Direito Público, n. 16, p. 169; CARDOSO,Adaucto Lucio. Voto na Reclamação. n. 850. RevistaTrimestral de Jurisprudência , n. 50, p. 347-8;BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional.1982. p. 69.

57 Embargos na Representação nº 1.092. Rela-tor: Ministro Néri da Silveira, Revista Trimestralde Jurisprudência, n. 117, p. 921.

58 Embargos na Representação nº 1.092. Rela-tor: Ministro Néri da Silveira. Revista Trimestralde Jurisprudência, n. 117, p. 921, 944-945.

59 Rp nº 1349. Relator: Ministro Aldir Passarinho.Revista Trimestral de Jurisprudência, n. 129, p. 41.

60 Dentre outras, ADIN nº 716-5. Relator:Ministro Marco Aurélio. Diário da Justiça, 29 abr.1992, p. 5.606.

61 MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Declaratóriade Constitucionalidade : a inovação da Emenda nº3, de 1993. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva,MENDES, Gilmar Ferreira (org.). Ação Declaratóriade Constitucionalidade. São Paulo, 1994. p. 56.

62 KELSEN, Hans. Il controllo di constituzio-

nalitá delle leggi: La Giustizia Costituzionale, Milão,1981. p. 295, 306.

63 RE 91.740-RS. Relator: Ministro Xavier deAlbuquerque. Revista Trimestral de Jurisprudência.v. 93, n. 1, p. 161-2.

64 Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 103,n. 3, p. 1.115.

65 RE 92.169-SP. Relator: Ministro CunhaPeixoto. Revista Trimestral de Jurisprudência, v.103, n. 3, p. 1.116-17.

66 BUZAID, Alfredo. “Juicio de amparo” emandado de segurança : contrastes e confrontos.Revista de Direito Processual Civil. São Paulo. v.5, p. 30-78, jan./jun. 1962, Cf., também, ZAGRE-BELSKY, La giustizia costituzionale. Bologna :Mulino, 1979. p. 84.

67 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. Ocontrole jurisdicional da constitucionalidade dasleis. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1968. p. 36-7e 46.

68 BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitu-cional. 5. ed. atual. São Paulo : Saraiva, 1982, cit.,p. 59; BUZAID, op. cit. p. 69.

69 O ordenamento constitucional de 1988manteve inalterada essa orientação (CF 1988, art.52, X).

70 RMS 17.976. Relator: Ministro AmaralSantos. Revista de Direito Administrativo, n. 105,p. 111, 113.

71 KOCH, Harald. Prozessführung im öffentli-chen Interesse. Frankfurt am Main, 1983. p. 1.

72 Reclamação nº 434. Relator: MinistroFrancisco Rezek. Diário da Justiça, 09 dez. 1994.

73 Ibidem.

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Reconhecimento e execução de laudosarbitrais estrangeiros

JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES

José Carlos de Magalhães é Advogado, Profes-sor Associado da Faculdade de Direito da USP,Mestre em Direito pela Yale University, Doutor emDireito pela USP, Livre Docente (USP).

SUMÁRIO

1. Do cumprimento do laudo arbitral. 2. Cará-ter privado do laudo arbitral. 3. Homologação dasentença judicial estrangeira. 4. Sentença judicialestrangeira e laudo arbitral privado. 5. Da compe-tência constitucional do Supremo Tribunal Federal.6. Da arbitragem estrangeira e arbitragem interna-cional. 7. Da citação postal no processo arbitral.

1. Do cumprimento do laudo arbitralAo proferir o laudo arbitral, o árbitro ter-

mina sua função, esgotando a jurisdição quelhe foi conferida pelas partes pela convençãoarbitral. Tal como na sentença judicial, em queo juiz, ao proferi-la, esgota sua competênciapara intervir no processo, o árbitro, com o lau-do, perde a jurisdição, não mais podendo atuarno processo arbitral, já findo, salvo, como o juizno processo judicial, em embargos de declara-ção, para esclarecimento da própria sentença.

Terminada a arbitragem, resta o seu cum-primento pela parte vencida, voluntariamente,tal como ocorre também com o processo judi-cial, em que o vencido normalmente atende aodisposto na condenação, sem compelir o ven-cedor a iniciar o processo de execução.

Há, como se percebe, similitude entre osdois sistemas de solução de controvérsias. Emambos, o litígio termina com o pronunciamen-to do terceiro, o juiz, no processo judicial, e oárbitro, no procedimento arbitral. Com a sen-tença ou com o laudo arbitral, a controvérsiaencontra-se dirimida, devendo a parte vencidacumprir o que foi decidido, estando fixada suaresponsabilidade ou resolvido o litígio sobre odireito anteriormente controvertido.

O não-cumprimento espontâneo da decisão

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Revista de Informação Legislativa42

faz nascer outra controvérsia, com a pretensãodo vencedor de dar-lhe efetividade e a resis-tência do vencido em acatá-la. Nesse caso, dá-se a intervenção do Estado, em virtude da ins-tauração, pelo vencedor, do processo de execu-ção. Não havendo resistência do vencido e,portanto, o cumprimento voluntário da deci-são, não há execução coativa e, por conseguinte,prescinde-se da provocação do Estado.

Assim, o fato de uma decisão provir de ár-bitro ou do juiz não modifica o quadro da exe-cução, pois, em ambos os casos, havendo resis-tência do vencido, há necessidade da instaura-ção de processo judicial de execução.

A execução da sentença judiciária proces-sa-se nos mesmos autos em que foi proferida,com a citação do vencido para cumprir o julga-do ou apresentar embargos à execução, na in-feliz formulação da lei processual brasileira,que transforma o exeqüente em réu. Já a exe-cução do laudo arbitral requer a instauração deum processo de execução, fundado no laudoarbitral, ao qual a Lei nº 9.307/96 atribuiu osmesmos efeitos da sentença judicial (art.31).

Essa lei, ao disciplinar inteiramente a arbi-tragem no Brasil, inclui o laudo arbitral, comevidente impropriedade, entre os títulos exe-cutivos judiciais, ao alterar a redação do incisoIII do art. 584 do CPC.

Ora, o laudo arbitral não é um título execu-tivo judicial, mas extrajudicial, pois proferidopor árbitro, pessoa privada não-integrante doPoder Judiciário, nem a ele equiparado ou equi-parável. O fato de se conferir ao laudo arbitralos mesmos efeitos da sentença judicial não otorna judicial, pois não provém do Poder Judi-ciário. Da mesma forma, ao conferir à transa-ção os efeitos de coisa julgada, o art. 1.030 doCódigo Civil não a transforma em sentençajudicial. Note-se que todos os demais títulosexecutivos judiciais previstos no art. 584 doCódigo de Processo Civil são sentenças judici-ais, condenatórias (incisos I e II), homologató-rias (incisos III e IV) e constitutivas ou homo-logatórias (inciso V), todas, portanto, provin-das do Poder Judiciário, não se justificando aconfusão ora estabelecida. Aliás, a lei, ao in-vés de denominar a decisão arbitral de laudoarbitral, observando, dessa forma, a tradiçãojurídica brasileira sobre o tema, prefere sen-tença arbitral, à semelhança do que se faz naFrança e na Suíça.

Essa confusão é grave, porque desconside-ra o fato de que a arbitragem é meio privado de

solução de controvérsias, com afastamento daintervenção do Estado, ou, como reconheciaPontes de Miranda, que na arbitragem há a re-núncia à processualidade estatal1. De fato, nemtodo o litígio é composto mediante a interven-ção compulsória do Estado. Na transação, sãoas partes que, diretamente, resolvem suas pen-dências, mediante concessões mútuas, mesmoque o litígio já esteja submetido ao Judiciário.Com a transação, as partes põem fim à lide,terminando-a, mas não ao processo judicial jáiniciado e que, para terminar, depende de umasentença. Daí por que o juiz homologa-a, sim-plesmente – ou seja, torna oficial o ato privadodas partes –, pondo fim ao processo, com a sen-tença homologatória, mas não ao litígio, poiseste já terminou com a transação concertada di-retamente pelas partes e sobre a qual o juiz nãopode interferir, salvo para verificar se versa so-bre direitos patrimoniais de caráter privado, comoprevisto no art. 1.035 do Código Civil.

O mesmo ocorre com o laudo arbitral, queé ato privado, decorrente da vontade das par-tes, sem interferência do Judiciário. A execu-ção compulsória do laudo arbitral, como cor-retamente pretendido pela lei, não implica anecessidade de equipará-la à sentença judicial,que não é. Os títulos executivos extrajudiciaistambém autorizam a execução compulsória,sem possuir o caráter de sentença ou de ato deautoridade pública. A esse propósito, o incisoVII do art. 585 do Código de Processo Civil jáprevia, como título executivo extrajudicial, “to-dos os demais títulos a que, por disposição ex-pressa, a lei atribuir força executiva”.

Como o art. 31 da Lei nº 9.307/96 declaraque o laudo arbitral “constitui título executi-vo”, a alteração introduzida no art. 584, III, doCPC, feita pelo art. 41 da lei, incluindo-o entreos títulos executivos judiciais, foi tecnicamen-te incorreta e desnecessária para os efeitos pre-tendidos. Se a lei, no art. 31, já declara que olaudo arbitral constitui título executivo, a suaexecução, como título executivo extrajudicial,está autorizada pelo já referido art. 585, VII,do CPC.

2. Caráter privado do laudo arbitralNão é demais sublinhar que a jurisdição do

árbitro provém das partes, sendo, portanto, pri-vada, em contraste com a jurisdição do juiz,

1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de DireitoPrivado. v. 26, parágrafo 3.181, p. 325.

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 43

uma controvérsia sobre esse mesmo contrato.Tanto o laudo como o contrato são instrumen-tos que decorrem de uma relação privada quetem por objeto um direito de caráter patrimo-nial privado e, assim, disponível.

3. Homologação da sentença judicialestrangeira

A homologação de sentença judicial estran-geira justifica-se por se tratar de ato de Estadoque se pretende seja executado e cumprido emterritório de outro. É um ato oficial emitido porautoridade pública, o Poder Judiciário estran-geiro, que a autoridade pública do país ondedeve ser cumprido pode ou não admitir, depen-dendo de convenções internacionais, de reci-procidade, ou da lei. O Brasil poderia deixarde reconhecer uma sentença judicial estrangeirase, por exemplo, o país de onde proveio nãoreconhecer sentenças judiciais brasileiras, umavez que tal reconhecimento se inclui no qua-dro da colaboração judiciária entre os Estados.Ou reconhecê-la em razão de tratado firmadocom o país de onde proveio. Trata-se, sempre,de ato de autoridade pública, como é o caso dasentença judicial, cujos efeitos devem-se pro-duzir no território subordinado à jurisdição deoutro Estado. É comum, corriqueiro até, a re-cusa de homologação de sentença judicial es-trangeira em virtude de não-observância de al-gum requisito da lei brasileira, ou que o Supre-mo Tribunal Federal considere ofensivo à or-dem pública brasileira, aos bons costumes ou àsoberania nacional. Em outras palavras, o atooficial estrangeiro somente será executado ecumprido no território brasileiro se a autorida-de brasileira competente o admitir. Por isso queo art. 181 da Constituição Federal, para evitara aplicação extraterritorial de atos judiciais ouadministrativos estrangeiros no território bra-sileiro, dispôs:

“O atendimento de requisição de do-cumento ou informação de natureza co-mercial, feita por autoridade administra-tiva ou judiciária estrangeira, a pessoafísica ou jurídica residente ou domicili-ada no País dependerá de autorização doPoder competente”.

Note-se que o preceito refere-se apenas aato de autoridade administrativa ou judiciáriaestrangeira, e o árbitro não se enquadra nessadefinição, pois é pessoa que age em cumpri-mento a contrato de natureza privada.

que advém da Constituição e, assim, da comu-nidade nacional. Daí por que não se pode con-fundir laudo arbitral com sentença judicial,como ato oficial do Estado para dirimir umademanda.

Essa confusão da lei reflete-se no tratamentoque conferiu ao laudo arbitral produzido noexterior, qualificando-o como estrangeiro. Par-tindo do pressuposto de que o laudo se equipa-ra à sentença judicial, com a alteração que in-troduziu no art. 584, III, do CPC, a lei condici-ona o reconhecimento do laudo arbitral feitoem outro país à sua prévia homologação peloSupremo Tribunal Federal.

Se o laudo arbitral é ato privado, decorrenteda vontade das partes, destinado a dirimir con-trovérsia sobre relação contratual de naturezapatrimonial – e, portanto, de caráter disponí-vel –, não há intervenção de autoridade públi-ca estrangeira que justifique sua prévia aceita-ção pelo órgão judiciário brasileiro2. Os con-tratos celebrados no exterior e exeqüíveis noBrasil não necessitam ser apresentados a qual-quer poder público do país para serem reco-nhecidos ou para que sua execução ou cumpri-mento pela parte aqui domiciliada seja autori-zado. Em caso de controvérsia sobre tais con-tratos, o juiz somente verificará, como fariatambém em relação aos contratos celebradosno Brasil, se não contrariam os bons costumes,a ordem pública brasileira e a soberania nacio-nal, como prevê o art. 17 da Lei de Introduçãoao Código Civil3. E não há diferença da natu-reza privada entre um contrato privado cele-brado no exterior e um laudo arbitral, elabora-do também no exterior, por árbitro que resolva

2 A esse propósito, é oportuna a decisão da Cor-te de Justiça das Comunidades Européias, que, ten-do competência para dispor sobre questões de inter-pretação do Tratado de Roma apresentadas por Es-tados-membros, decidiu que não possuía competên-cia para decidir sobre atividades de um tribunal ar-bitral, que possui caráter privado. Segundo essadecisão, proferida no caso Nordsee, de 23 de marçode 1982, apesar da similitude da arbitragem com oprocesso judicial, essa característica não era sufici-ente para conferir ao árbitro a estatura de uma juris-dição estatal, tratando-se sempre de jurisdição pri-vada e, portanto, despida de autoridade pública.Sobre o assunto, vide JARROSSON, Charles. Lanotion d’arbitrage. Paris : LGDJ, 1987.

3 Diz o art. 17 da LICC: “As leis, atos e senten-ças de outro país, bem como quaisquer declaraçõesde vontade, não terão eficácia no Brasil, quandoofenderem a soberania nacional, a ordem pública eos bons costumes.”

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Revista de Informação Legislativa44

4. Sentença judicial estrangeirae laudo arbitral privado

Não é o caso do laudo arbitral, ato privado,proferido por pessoa ou pessoas naturais, des-pidas de qualquer autoridade pública e não atu-ando em nome de qualquer país. A sua execu-ção, no Brasil, tem o mesmo caráter do cum-primento de contrato internacional firmado forado país e aqui cumprido, não se cogitando desubmetê-lo à prévia apreciação do Judiciário.Em caso de descumprimento, a parte interes-sada poderá ingressar com ação judicial, casoem que, e somente nesse caso, o Poder Judiciá-rio, como faria com qualquer contrato, mesmonacional, examinará sua adequação a princípi-os jurídicos do país.

Apesar dessas considerações, a Lei nº 9.307/96, equivocadamente, subordina o reconheci-mento e execução do laudo arbitral produzidono exterior à prévia homologação pelo Supre-mo Tribunal Federal. Tendo em vista, contu-do, que o laudo arbitral constitui ato privado eque a competência constitucional daquela Cortese refere a homologação de sentenças judiciaisestrangeiras – e não atos de natureza privada –,a norma deve ser interpretada em caráter res-tritivo e de acordo com as características pró-prias da arbitragem e do laudo arbitral.

Assim, uma interpretação possível é a deque, embora a lei não distinga, o art. 35 da leiestar-se-ia se referindo ao laudo arbitral pro-veniente da arbitragem forçada, admitida emalguns sistemas jurídicos, para certas hipóte-ses, como ocorria no Brasil, para os litígiosentre comerciantes, regulados pelo CódigoComercial, antes de sua derrogação4. Na Fran-ça, a arbitragem forçada era prevista em lei paracontrovérsias sobre determinadas matérias, in-clusive as relativas a matérias reguladas pelodireito do trabalho5. Da mesma forma, a legis-lação trabalhista de Honduras prevê a arbitra-gem obrigatória nos conflitos coletivos nos ser-viços públicos, com a participação de um

representante do Ministério do Trabalho e As-sistência Social, como presidente do tribunal,um representante dos trabalhadores e outro dosempregadores6. A arbitragem forçada não cons-titui propriamente arbitragem, mas mecanis-mo disfarçado para o exercício da jurisdiçãoestatal, com adoção da sistemática da arbitra-gem. Mas não é arbitragem, que pressupõe acor-do de vontades livremente manifestado pelaspartes, e não imposto pela lei.

5. Da competência constitucional doSupremo Tribunal Federal

Essa interpretação permitiria superar outradúvida que a redação do referido art. 35 ense-ja: pode a lei ordinária ampliar a já tão desne-cessariamente ampla competência do SupremoTribunal Federal estabelecida pela Constitui-ção Federal?

Essa competência é definida no art. 102,que a divide em originária, nos casos do incisoI, em grau de recurso ordinário, de que trata oinciso II, e em grau de recurso extraordinário,para as hipóteses do inciso III. O art. 35 da Leinº 9.307/96 inclui nova hipótese de competên-cia originária, ao dizer que,

“para ser reconhecida ou executada noBrasil, a sentença arbitral estrangeiraestá sujeita, unicamente, à homologaçãodo Supremo Tribunal Federal”.

Essa inclusão equivaleria à emenda à Cons-tituição, cujo rito, estabelecido no art. 60, ob-viamente não foi observado.

Estando a competência do Supremo Tribu-nal Federal fixada na Constituição, parece evi-dente que qualquer modificação, supressão ouampliação dessa competência implica alterar odispositivo constitucional, o que exige a tra-mitação prevista no já mencionado art. 60. Omesmo pode-se dizer da competência do Supe-rior Tribunal de Justiça (art. 105) e dos Tribu-nais Regionais Federais e Juízes Federais.

Tanto isso é verdade que, ao dispor sobre acompetência do Tribunal Superior do Traba-lho, a Constituição estabeleceu, no parágrafo3º do art. 112, que “a lei disporá sobre a com-petência do Tribunal Superior do Trabalho”,

4 A Lei nº 1.350, de 14 de setembro de 1866,revogou os dispositivos do Regulamento 737, de1850, que estabeleciam a arbitragem obrigatóriaentre comerciantes. Aquele Regulamento previa que,não querendo as Partes louvarem-se em árbitros, oJuiz de Direito do Comércio deprecaria ao Tribunaldo Comércio para a nomeação dos árbitros.

5 Conforme FOUCHARD, Philippe. L’arbitragecommercial internacional. Paris : Dalloz, 1965. p.9 e ROBERT, Jean. Traité de l’arbitrage civil e co-mercial. 3. ed. Paris, 1961. t. 1, n. 6.

6 Conforme CÁCERES CASTELLANOS, Ed-gardo. El arbitraje en la legislación laboral hondu-reña. In: Arbitraje comercial y laboral en AmericanCentral. Coord. por Alexjandro M. Garro. Transna-tional Juris Publications, 1990. p. 473.

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modificando a sistemática adotada quanto aosoutros tribunais superiores já referidos. Seguin-do a mesma tônica, o art. 121 dispõe que: “Leicomplementar disporá sobre a organização ecompetência dos Tribunais, dos juízes de di-reito e das Juntas Eleitorais”. O mesmo crité-rio foi usado para definir a competência dostribunais e juízes militares, como se vê do pa-rágrafo único ao art. 124: “A lei disporá sobrea organização, o funcionamento e a competên-cia da Justiça Militar”. Finalmente, ao tratarda competência dos tribunais estaduais, a Cons-tituição, observando o princípio federativo queinforma a organização do Estado brasileiro,remeteu a matéria às Constituições estaduais.

O simples fato de a Constituição deixar cla-ro que, em determinados casos, a competênciaserá fixada por lei, deixando de prever normasimilar para o Supremo Tribunal Federal, Su-perior Tribunal de Justiça, Tribunais Regio-nais Federais e para os juízes federais, reve-la que o Constituinte quis estabelecer com-petência fixa e determinada para aquelasCortes, somente modificável por meio deemenda constitucional.

Nem se diga que a norma do art. 35 da Leinº 9.307/96, ao exigir a homologação do laudoarbitral estrangeiro pelo Supremo TribunalFederal, estaria suportada pela norma da alí-nea h do art.102 da Constituição, pois esta dis-põe que compete àquela Corte, originariamente,

“a homologação das sentenças estrangei-ras e a concessão do exequatur às cartasrogatórias, que podem ser conferidas peloregimento interno a seu Presidente”.

A sentença estrangeira a que se refere o dis-positivo constitucional significa, como nãopoderia deixar de ser, sentença judicial estran-geira, provinda de Estado estrangeiro e, por-tanto, dotada de caráter oficial, ou, como dizFragistas, a que representa um ersatz7. O lau-do arbitral, não obstante a nomenclatura utili-zada pela Lei nº 9.307/96, não é sentença judi-cial, e o artifício utilizado de assim denominá-lo não lhe altera o caráter de ato privado, des-provido de autoridade pública, a justificar aintervenção do Supremo Tribunal Federal, játão sobrecarregado de processos, que lhe im-pedem o cumprimento de sua missão maior, ade interpretar a Constituição.

6. Da arbitragem estrangeira earbitragem internacional

Outro ponto da Lei nº 9.307/96 que mereceexame é o parágrafo único do art. 34, que con-sidera estrangeiro o laudo arbitral produzidofora do território nacional. O local onde foiproferido o laudo, assim, caracteriza-lhe a na-cionalidade. A lei desconsidera, para esse efei-to, a norma aplicável ao processo arbitral ouao mérito do litígio. Se o laudo arbitral obser-var fielmente a lei brasileira, seja no que tocaao processo, seja quanto ao mérito, e se as par-tes forem domiciliadas no Brasil, mas, por con-veniência, localizarem a sede do juízo arbitralem outro país, o laudo será estrangeiro, a des-peito da observância da lei brasileira. A arbi-tragem é regida pelo Direito brasileiro, mas,por ser o laudo proferido no exterior, será es-trangeira e, assim, sujeita à homologação doSupremo Tribunal Federal.

Mais ainda, diz a lei que, para ser reconhe-cido ou executado no Brasil, o laudo arbitralemitido em outro país depende de homologa-ção do Supremo Tribunal Federal, não preven-do a homologação judicial do laudo proferidono Brasil. Parece difícil explicar a diversidadede tratamento, em função do local onde o lau-do foi produzido, considerando-se que, emambos os casos, trata-se de ato de natureza pri-vada. Se o vencido submeter-se voluntariamen-te à decisão arbitral “estrangeira”, poderá fazê-lo, ou será necessária a prévia homologação dolaudo? Para ser reconhecida ou executada noBrasil, diz a lei, a sentença arbitral deve serhomologada pelo Supremo Tribunal Federal,daí podendo-se concluir que não poderá sercumprida voluntariamente pela parte vencidasem essa homologação. Isso pode parecer ab-surdo, mas é o que dispõe a lei. Se a parte ven-cida tiver de remeter recursos ao exterior paracumprir uma decisão arbitral proferida fora doPaís, estará impedida de fazê-lo, pois o BancoCentral do Brasil poderá exigir a homologa-ção como condição para autorizar a remessa.Da mesma forma, as autoridades do impostode renda poderão não aceitar a contabilizaçãode uma despesa dedutível, para cálculo doimposto de renda, se a decisão, em cumprimen-to da qual o pagamento foi feito, não estiverhomologada. O pagamento poderia ser consi-derado mera liberalidade, e não o cumprimen-to de uma prestação exigível, em virtude de umadecisão arbitral exeqüível no Brasil. Em ou-tras palavras, o cumprimento espontâneo do

7 FRAGISTAS. Arbitrage étranger et arbitrageinternational en droit privé. Revue Critique de DroitInternational Privé, p. 1, 1960.

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laudo arbitral produzido no exterior, de que ovencido domiciliado ou sediado no Brasil po-derá ter interesse, até mesmo para manter in-tacta sua credibilidade e reputação, fica afetadopela desnecessária exigência.

O que se percebe é que, embora a lei, noplano interno, tenha dado um enorme passo aoestabelecer a compulsoriedade do cumprimen-to da cláusula arbitral, deixando para trás oentendimento jurisprudencial de que a cláusu-la arbitral regula apenas uma obrigação de fa-zer, no plano internacional não apresentouqualquer inovação, antes piorou o tratamentoanteriormente dado.

De fato, o art. 1.098 do Código de ProcessoCivil, antes de ser revogado pela Lei nº 9.307/96, dispunha:

“Art. 1.098 – É competente para ahomologação do laudo arbitral o juiz aque originariamente tocar o julgamentoda causa”8.

O art. 88 do CPC, por sua vez, disciplina acompetência internacional do juiz brasileiro,prevendo essa competência quando o réu fordomiciliado no Brasil (nº I), quando aqui devaser cumprida a obrigação (nº II) ou a ação seoriginar de fato ocorrido ou de ato praticadono país (nº III). Portanto, se o laudo deve sercumprido no Brasil, verificando-se a hipótesedo inciso II do art. 88, independentemente deestarem presentes as dos demais incisos, a com-

petência para a homologação será do juiz bra-sileiro9.

A Lei nº 9.307/96, passando a impor a ho-mologação pelo Supremo Tribunal Federal,além de suscitar as dúvidas já apontadas, op-tou por considerar estrangeira toda arbitragemem que o laudo seja proferido fora do territórionacional (parágrafo único do art. 34), deixan-do de distingui-la da arbitragem internacional.

É certo que nem sempre é fácil distinguir aarbitragem estrangeira da arbitragem interna-cional. A primeira resolve um litígio subordi-nado inteiramente a uma ordem jurídica naci-onal determinada, em que todos os elementosda relação jurídica controvertida estão sujeitosa essa ordem jurídica. Um contrato regido pelalei inglesa que tenha como partes pessoas do-miciliadas na Inglaterra e como objeto bem oudireito também situado naquele país é um con-trato nacional, subordinado a uma lei nacio-nal, e a arbitragem que dirimir a controvérsiadele oriunda é também nacional e, assim, es-trangeira para outros países. Já a arbitrageminternacional soluciona controvérsia de cará-ter internacional, seja porque as partes possu-am domicílio em diferentes países, seja porqueo objeto do contrato se situe em outra ordemjurídica, seja, ainda, porque o pagamento devatransitar de um país para outro. Em outras pa-lavras, a relação jurídica controvertida envol-ve mais de uma ordem jurídica nacional, em-bora possa ser regida por uma lei nacional.Assim, um contrato celebrado no Brasil, regi-do pela lei brasileira, mas tendo como partespessoas domiciliadas em países diversos, outendo por objeto direito ou bem situado em outropaís, não é um contrato nacional, mas interna-cional e pode ter tratamento jurídico diverso10.A esse propósito, o acórdão do Superior Tribu-nal de Justiça sobre cláusula arbitral em con-trato internacional firmado no Brasil, conside-rando-a de execução compulsória, a despeito

8 A aplicação desse dispositivo a laudos proferi-dos no Brasil ou no exterior é sustentada pela dou-trina brasileira que examinou o assunto, destacan-do-se, dentre outros, BAPTISTA, Luiz Olavo. Doscontratos internacionais : uma visão teórica e prá-tica. Saraiva, 1994. p. 114 e MERCADANTE, Ara-minta de Azevedo. Contribuição ao estudo da arbi-tragem internacional : a Convenção Arbitral. Dis-sertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da USP,sob orientação do Prof. Vicente Marotta Rangel. Videtambém, MAGALHÃES, José Carlos de. Arbitra-gem comercial. Freitas Bastos, 1986. p. 102: Daexecução do laudo arbitral. Vide também STREN-GER, Irineu. Dos contratos internacionais do co-mércio. Revista dos Tribunais, p. 213-217, em queo ilustre Professor enumera diversos julgados doSupremo Tribunal Federal, anteriores à edição dovigente Código de Processo Civil, exigindo a préviahomologação do laudo arbitral feito no exterior, porautoridade judiciária local, como condição para oreconhecimento do laudo. As demais decisões men-cionadas pelo Autor, de período posterior à entradaem vigor do CPC, condicionam a homologação aoatendimento de princípios de ordem pública brasi-leira, dentre os quais a citação válida.

9 Há uma interpretação equivocada, por vezesmanifestada em trabalhos doutrinários, de que o lau-do produzido no exterior deveria ser necessariamentesubmetido à prévia homologação pelo juiz local,impondo-se, assim, uma dupla homologação. Entre-tanto, essa interpretação não estava suportada emqualquer dispositivo legal brasileiro e contrariava anorma do art. 1.098 do CPC, agora revogado, nãoobstante observasse o tratamento da jurisprudênciado Supremo Tribunal Federal anterior ao Código,de 1973.

10 Sobre o assunto , vide BAPTISTA, op. cit. eFOUCHARD, op. cit. p. 20. STENGER, op. cit.

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de a lei brasileira então vigente exigir o com-promisso para a instituição do juízo arbitral,fornece exemplo ilustrativo. Como o contratofoi firmado por partes sujeitas à Convenção deGenebra sobre arbitragem, embora esta tivessese processado no Brasil estaria sujeita às nor-mas da Convenção, e não da lei brasileira. Des-sa forma, o fato de a arbitragem ter sido reali-zada no Brasil não significou que fosse umaarbitragem “nacional”, pois se destinava a so-lucionar controvérsia de caráter internacional,e, assim, a arbitragem era internacional11.

Essa distinção foi adotada pelo decreto de12 de maio de 1981, da França, que introduziu16 artigos no Novo Código de Processo Civil(arts. 1.492 a 1.507), qualificando como inter-nacional a arbitragem que interessa ao comér-cio internacional, mesmo que se desenrole nopaís. Estabeleceu critérios diversos para regera arbitragem interna e a internacional, impon-do formalidades maiores para a primeira, dis-pensadas para a segunda, que tem por objetomatéria de comercio internacional12. Acolheu,dessa forma, a mesma orientação adotada pelaConvenção Européia sobre Arbitragem Inter-nacional, firmada em Genebra, de 1961, cujoartigo primeiro dispõe:

“A presente Convenção se aplica:a) às convenções de arbitragens con-

cluídas para resolver litígios nascidos ouque podem surgir de operações de comér-cio internacional entre pessoas físicas oujurídicas que tenham, no momento daconclusão da convenção, sua residênciahabitual ou sua sede em Estados contra-tantes diferentes;

b) aos procedimentos e às sentençasarbitrais fundadas nas convenções obje-to do parágrafo 1, a) deste artigo.”

O Protocolo Relativo a Cláusulas de Arbi-tragem de Genebra, de 1923, do qual o Brasilfaz parte e cujas disposições estão em vigor nopaís, pela promulgação do Decreto 21.187, de22 de março de 1932, também distingue a ar-bitragem interna da internacional, tomandocomo base não a residência habitual das partescontratantes, mas a jurisdição dos Estados aque estão submetidas:

“1 – Cada um dos Estados contratan-tes reconhece a validade, entre partessubmetidas respectivamente à jurisdiçãode Estados contratantes diferentes, docompromisso ou da cláusula compromis-sória pela qual as partes num contratose obrigam, em matéria comercial ou emqualquer outra suscetível de ser resolvi-da por meio de arbitragem por compro-misso, a submeter, no todo ou em parte,as divergências que possam resultar detal contrato a uma arbitragem, ainda queesta arbitragem deva verificar-se numpaís diferente daquele a cuja jurisdiçãoestá sujeita qualquer das partes no con-trato”

Mesmo a arbitragem realizada no territó-rio do Estado onde se pretende executar o lau-do arbitral é considerada internacional se umadas partes estiver subordinada à jurisdição deoutro país, também subscritor do Protocolo,como se verifica da cláusula 3ª:

“3 – Cada Estado contratante se com-promete a garantir a execução, pelas suasautoridades e de conformidade com asdisposições de sua legislação nacional,das sentenças arbitrais proferidas no seuterritório, em virtude dos artigos prece-dentes”.

A lei modelo da CNUDCI (Comissão dasNações Unidas para o Direito do Comércio In-ternacional), aprovada em 21 de junho de 1985,também define a arbitragem internacional, as-sim a qualificando se as partes na convençãode arbitragem tiverem o seu estabelecimentoem Estados diferentes, ou o lugar da arbitra-gem ou o local onde deva ser executada partesubstancial das obrigações estiver situado forado Estado no qual as partes têm o seu estabele-cimento (art. 1º, nº 3).

Essa distinção entre arbitragem interna einternacional não é isenta de críticas, como asformuladas por Charles Jarrosson, que enten-de que o fato de a relação jurídica possuir umcomponente internacional não altera o concei-to da arbitragem, restringindo-se a influir noseu regime jurídico; a noção da arbitragem en-globaria indiferentemente a arbitragem inter-na e a internacional13. A distinção, contudo,justifica-se, pois a ordem pública nacional e ainternacional estão sujeitas a princípios nemsempre coincidentes, tendo-se conferido à au-tonomia da vontade amplitude cada vez maior.

11 Superior Tribunal de Justiça. R. Esp. nº 616 -RJ, 24 de abril de 1990.

12 DERAINS, Yves. Droit et pratique del’arbitrage International en France, Feduci, 1984.p. 1-10. 13 JARROSSON, op. cit. p. 22-23.

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A lei brasileira ignorou a distinção, prefe-rindo ater-se ao conceito de arbitragem estran-geira, assim considerando a que foi proferidafora do território nacional. E, coerentemente,exige que o laudo observe a lei do país onde foiproferido, estabelecendo, como um dos funda-mentos para a recusa da homologação, a anu-lação do laudo ou sua suspensão por órgão ju-dicial desse país (art. 38, nº VI). Essa exigên-cia poderá implicar a necessidade prática dadupla homologação, obrigando o vencedor ase antecipar à eventual oposição do vencido erequerer a homologação da decisão pelo juizdo local onde foi prolatada, como forma decomprovar o cumprimento da lei do país. A leibrasileira, pois, condiciona o reconhecimentoe execução do laudo à observância da lei es-trangeira, mesmo que nenhum efeito venha ater a decisão no local onde foi proferida, poisdestinada a ser executada no Brasil .

É evidente que, se o laudo não contrariar aordem pública internacional ou a ordem públi-ca brasileira, não haveria que se impedir suaexecução, no Brasil, ainda que contrarie a leido Estado onde foi proferida, pois a decisão,não se destinando a ser executada nesse país,nele nenhuma repercussão teria. A norma doart. 39 fornece a indicação segura sobre o as-sunto, ao dispor que

“será denegada a homologação para o re-conhecimento ou execução da sentençaarbitral estrangeira, se o Supremo Tri-bunal Federal constatar que: I - segundoa lei brasileira, o objeto do litígio não ésuscetível de ser resolvido por arbitra-gem; e II - a decisão ofende a ordem pú-blica nacional”.

Se o laudo deve ser executado no Brasil,devem prevalecer os princípios que norteiam aarbitragem no país, entre os quais o da arbitra-bilidade dos litígios – os que resolvem contro-vérsias de caráter patrimonial – e a não-ofensada ordem pública nacional, qualquer que sejao conteúdo que se dê a esse conceito.

Quanto à observância da lei do local onde olaudo foi proferido, há que se registrar recentedesenvolvimento inovador em julgamento daDistrict Court for the District of Columbia, dosEstados Unidos, que revela a intenção de pre-servar a arbitragem, sobretudo a que resolvelitígio entre empresa estrangeira e o Estado. Aempresa americana Chromalloy Aeroservies(CAS) instituiu um procedimento arbitral con-tra o Egito, relativo à controvérsia sobre o cum-primento de contrato entre eles celebrado. A

lei aplicável era a do Egito, sendo Cairo o lo-cal da arbitragem. O laudo proferido foi anula-do pelo Judiciário egípcio, sob o fundamentode que os árbitros teriam errado ao aplicar a leicivil do Egito. Não obstante a anulação, a em-presa americana requereu o reconhecimento eexecução do laudo, perante a Corte americana,com base na Convenção sobre Reconhecimen-to e Execução de Laudos Arbitrais Estrangei-ros, de Nova Iorque, e na própria lei dos Esta-dos Unidos (Federal Arbitration Act). A juízade primeiro grau reconheceu que a Convençãode Nova Iorque permite que o reconhecimentoe execução do laudo arbitral sejam recusados,se este foi anulado ou rescindido pela autori-dade competente do país onde foi prolatado.Como o laudo foi proferido no Egito, com apli-cação da lei egípcia, o juiz poderia deixar dereconhecê-lo. Todavia, considerou a Juíza quea própria Convenção, no art. VII, admite a pro-teção da parte interessada, ao esclarecer que

“a Convenção não prejudicará qualquerparte interessada de qualquer direito quepossa ter para dar eficácia a um laudoarbitral na forma e na extensão permiti-da pela lei ou tratados do país onde tallaudo seja invocado como fundamento”14.

Ante a possibilidade de dar efetividade aolaudo, com base na lei local, a Corte aplicou oFederal Arbitration Act, cujo art. 10º veda oreconhecimento de laudos arbitrais somente emalguns casos, tais como corrupção, fraude, par-cialidade, má conduta ou excesso de poder dosárbitros, nada dispondo sobre a não-observân-cia da lei do local onde foi proferido. Por isso,concluiu que

“o artigo V (da Convenção de Nova Ior-que) estabelece uma permissão padrão,sob a qual esta Corte pode recusar exe-cutar um laudo. O artigo VII, por outrolado, determina que esta Corte deve con-siderar a Convenção sob a lei aplicáveldos Estados Unidos.”

Sendo assim, concluiu que o laudo era vá-lido de acordo com a lei americana, razão pelaqual reconheceu-o15.

14 DELAUME, Georges. Nota sobre United Sta-tes : District Court for the District of Columbia Or-der and Opinion in the matter or the arbitration ofcertain controversies between Chromalloy Aeroser-vices and the Arab Republic of Egipt. InternationalLegal Materials, v. 35, n. 6, nov. 1996.

15 I.L.M. op. cit.

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Essa sentença, sujeita ainda a recurso, ino-va para dar preferência à lei do país onde olaudo será executado, ainda que nulo no paísonde foi proferido. E tem certa lógica, pois, sea decisão não tem efetividade no país de ondeproveio, destinando-se a produzir efeitos noterritório de outro, são as normas deste outroque devem ser tomadas em consideração. Se oEstado pode não reconhecer uma decisão vali-damente proferida em outro país, por contrari-ar princípios de sua ordem pública, por que ocontrário não seria admitido, ou seja, reconhe-cer laudo não-admitido pelas leis do país ondefoi produzido? Esse raciocínio dá ênfase aocaráter privado do laudo e procura dar efetivi-dade à autonomia da vontade das partes.

Como quer que seja, a lei brasileira ora edi-tada mantém o princípio de que, se o laudo fordeclarado nulo pelos tribunais do país onde foielaborado, também no Brasil não será reconhe-cido, mesmo que não ofenda a lei brasileira. Éo que se depreende dos incisos II e VI do art.38 da Lei nº 9.307/96. Daí que, se a lei do lo-cal da arbitragem exige o compromisso escri-to, ou impõe certas formalidades não-atendi-das, e, mesmo assim, for produzido o laudo, alei brasileira não permite a sua homologação.Esse tratamento, como se vê, repete o conferi-do pelo art. 2º do Protocolo de Genebra, de1922, segundo o qual

“o processo da arbitragem, incluindo-sea constituição do tribunal arbitral, seráregulado pela vontade das partes e pelalei do país em cujo território se efetuar.”

Note-se, no entanto, que a Convenção refe-re-se apenas ao processo de arbitragem, nãofazendo referência à lei material que discipli-na a relação jurídica controvertida. Já a Con-venção Inter-Americana sobre ArbitragemComercial Internacional, concluída em 30 dejaneiro de 1975, aprovada no Brasil pelo De-creto Legislativo nº 90, de 6 de junho de 1995,e posta em vigor por decreto do Executivo, ado-ta o mesmo critério da lei brasileira ao estabe-lecer que poderão ser denegados o reconheci-mento e a execução da sentença se a parte inte-ressada provar que o acordo de arbitragem

“não é válido perante a lei a que as par-tes o tenham submetido, ou, se nada ti-ver sido indicado a esse respeito, em vir-tude da lei do país em que tenha sidoproferida a sentença” (art. 5º).

7. Da citação postal no processo arbitralPor fim, merece destaque a norma do pará-

grafo único do art. 39, que não considera ofen-sa à ordem pública brasileira a efetivação dacitação da parte residente ou domiciliada noBrasil nos moldes da convenção de arbitragemou da lei processual do país onde se realizou aarbitragem, ainda que por via postal, com pro-va inequívoca de recebimento, desde que asse-gurado à parte interessada tempo hábil para oexercício do direito de defesa.

Há aqui uma consideração a fazer. O pro-cedimento arbitral não se confunde com o pro-cesso judicial e pode prever sistemas de comu-nicação, ou meios de instituição do juízo arbi-tral, diversos dos judiciais. Aliás, o art. 19 daLei nº 9.307/96 não estabelece a citação comoato que dá início à arbitragem e, sim, a aceita-ção da nomeação do árbitro ou dos árbitros. Éa convenção arbitral que, via de regra, estabe-lece a forma de comunicação para a instalaçãodo juízo arbitral, tratando-se sempre de meiocontratualmente acordado.

Já “a citação – diz o art. 213 do CPC – éo ato pelo qual se chama a juízo o réu ou ointeressado, a fim de se defender.” É, por-tanto, ato judicial, provindo da autoridadejudiciária, para chamar o réu ao processo, oque não é o caso da arbitragem. Pode ocor-rer que a convenção arbitral seja omissaquanto à forma de instituição da arbitrageme, nesse caso, aplica-se o meio previsto pelalei do local onde ela se processa, ou o esta-belecido pelo árbitro, se a convenção arbi-tral o permitir.

Tendo em vista que a jurisprudência doSupremo Tribunal Federal tem deixado de ho-mologar sentenças judiciais estrangeiras homo-logatórias de laudos arbitrais em que a partedomiciliada no Brasil foi citada por via postal,para o processo de homologação perante o ju-diciário estrangeiro, a norma, ao que parece,procurou eliminar esse óbice, deixando de con-siderar essa forma de citação judicial comoatentatória à ordem pública brasileira.

Sendo assim, permite assegurar maior fle-xibilidade ao processo de reconhecimento desentenças judiciais estrangeiras, pois contémpreceito que elimina o poder de interpretaçãodo Supremo Tribunal Federal, no que concer-ne à qualificação como atentatória à ordempública brasileira a citação por via postal, emprocesso iniciado no exterior. Como o parágrafo

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refere-se à citação – meio judicial de comuni-cação da instauração de um processo judicial enão arbitral –, é lícito concluir que, emboracontido em lei específica sobre arbitragem, con-tém esclarecimento genérico sobre a matéria,ao não considerar como ofensiva à ordem pú-blica brasileira a citação por via postal, desdeque assegurado o direito de defesa em tempohábil, atendendo, dessa forma, à garantia esta-belecida no inciso LV do art. 5º da Constitui-ção Federal.

Como é sabido, tem sido orientação tradi-cional do Supremo Tribunal Federal não ad-mitir a citação de pessoa domiciliada no Brasilsenão por meio de carta rogatória, não reco-nhecendo outra forma de citação, seja por meiode declaração juramentada (o affidavit do com-mon law), seja por via consular ou postal, con-siderando tais formas ofensivas à ordem públi-ca brasileira. E é compreensível esse entendi-mento, pois estaria o país estrangeiro fazendovaler no país ato oficial de autoridade judiciá-ria sem a chancela oficial do Brasil, o que so-mente seria admissível se houvesse tratado in-ternacional disciplinando o assunto entre ospaíses.

Ao deixar de considerar ofensa à ordempública a citação por via postal determinadapor autoridade pública estrangeira, o Brasil dápasso importante no quadro da colaboração ju-diciária internacional, sobretudo em momentohistórico deste fim de século, em que a abertu-ra generalizada dos mercados nacionais, coma busca de investimentos estrangeiros e a cria-ção de blocos econômicos, sucede ao fim daguerra fria e ao desmantelamento da União So-viética, com o surgimento de novos Estados doleste europeu, ansiosos por tais investimentos.

Ademais, a admissão da citação por viapostal determinada por autoridade judiciáriasem jurisdição no local onde deve ser cumpri-da já constituiu praxe no processo civil brasi-leiro. De fato, o art. 222 do Código de Proces-so Civil, em sua redação nova, autoriza a cita-ção postal, suprimindo a aplicação restrita acomerciantes e industriais, e ampliando-a paraatingir não-empresários16. Sendo o Brasil umarepública federativa e determinando a Consti-tuição Federal que os Estados organizarão sua

Justiça e que a competência dos tribunais serádefinida na Constituição do Estado (art. 125),a jurisdição dos juízes estaduais está limitadaao território do Estado que os nomearam. En-quanto os juízes federais e do trabalho possu-em jurisdição nacional, pois estabelecida pelaConstituição Federal, embora com competên-cia para praticar atos em determinado territó-rio, a dos juízes estaduais, por provir da Cons-tituição do Estado-membro da Federação, estálimitada ao território desse Estado. Fora deste,não possuem jurisdição alguma, como é doprincípio federativo. Daí por que a citação de-terminada por um juiz de um Estado-membroa pessoa domiciliada ou residente em outro devaser feita por carta precatória, como tradicio-nalmente observado, antes de se admitir a cita-ção postal, novidade introduzida pelo CPC, de1973, inicialmente restrita apenas a réus co-merciantes ou industriais com domicílio noBrasil. A referência do art. 222 do CPC à cita-ção “para qualquer comarca do país” e não àcomarca do juiz, como limite do poder de ex-pedir citação por via postal, levou ao entendi-mento de que, se o réu possuir domicílio noBrasil, o juiz está autorizado a citá-lo por viapostal, mesmo que domiciliado em outra co-marca ou outro Estado, deixando de conside-rar o princípio federativo das ordens jurídicasestaduais, mas acolhendo a cooperação judici-ária entre os Estados-membros. De fato, ju-risprudência firmou-se para admitir a citaçãopor via postal de réu domiciliado em outro Es-tado, dando, portanto, ênfase a essa coopera-ção judiciária.

O raciocínio para admitir a citação postaldeterminada por autoridade judiciária de outropaís é o mesmo: o da colaboração judiciária,desde que, é evidente, fique assegurado o ple-no direito de defesa, o que requer prazo razoá-vel para o seu exercício.

16 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reformado Código de Processo Civil. Malheiros, 1995. p.85; MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Códigode Processo Civil. Atualizados por Sérgio Bermudes.Forense, 1996. p. 271.

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Juridicidade dos sorteios eletrônicospela TV a partir de ligações telefônicasusando o prefixo 0900

SUMÁRIO

ÁLVARO MELO FILHO

Álvaro Melo Filho é Advogado e Professor deDireito.

1. Introdução. 2. Da legislação vigente. 3. Dasolução jurídica.

1. IntroduçãoConsulta-nos a TELETV acerca da juridi-

cidade dos concursos de prognósticos por meiode sorteios eletrônicos que estão sendo realiza-dos pelas emissoras de televisão, a partir deligações com utilização do prefixo 0900.

Esclarece a Consulente que o sistema postoatualmente em prática em tais sorteios eletrô-nicos obedece às seguintes etapas:

a. Prefeituras Municipais editam leis quedisciplinam, na sua área territorial de compe-tência e atuação, a efetivação de concursos deprognósticos e, mediante contratos de delega-ção, autorizam empresas a materializar e ope-racionalizar os sorteios eletrônicos;

b. programas específicos de TV formulamperguntas dirigidas ao público, contemplandotemas atuais ou controvertidos, em que as res-postas afirmativas ou negativas dos telespecta-dores efetivam-se por meio de discagem tele-fônica para o número A (afirmativa) ou B (ne-gativa), antecedida sempre do prefixo 0900;

c. três reais (R$ 3,00) é o custo fixo de cadaligação debitada, automaticamente, na contatelefônica dos concorrentes-telespectadores, nosmesmos moldes como ocorre com as ligaçõesdo sistema DDI e DDD bilhetada na conta te-lefônica do assinante;

d. a TELETV, utilizando Centrais de Pro-cessamento de Chamadas – nominadas de Pla-taformas Digitais – instaladas em várias Cen-trais-Trânsito da Embratel, registra e identifi-

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ca, por meio de computadores, o número tele-fônico chamador, a data, a hora, o minuto e osegundo da ligação, bem como a opinião ouopção do participante em face do telefone re-cebedor A ou B escolhido;

e. as ligações dos concorrentes de todo opaís são transformadas em dados, armazena-dos e compactados numa central de operações,localizada em São Paulo, possibilitando a reali-zação de sorteio, em computadores do sistema,por meio de software especialmente desenvolvidopara concurso de prognóstico da espécie;

f. este sistema de sorteio realizado ao finalde determinado prazo (semana, quinzena, etc.)é inviolável, sem margem de erro, em que osoftware aciona um comando gerador aleató-rio (randômico) de números e tanto o softwarebásico do sorteio quanto os procedimentos naemissora de TV são auditados por empresas deauditoria independente, garantindo lisura etransparência ao processo, até porque os dadose resultados do sorteio são exibidos instanta-neamente na programação da TV, com imedi-ata e rápida publicização dos ganhadores dosprêmios;

g. da arrecadação bruta proveniente das li-gações telefônicas dos telespectadores-partici-pantes são deduzidos os custos e despesas comprêmios, tributos, custos de telefonia, publici-dade e operação do sistema, chegando-se, en-tão, a um resultado líquido (lucro) da promo-ção, que é destinado in totum à Prefeitura Mu-nicipal respectiva.

Diante do modelo descrito, indaga-nos aConsulente que providências deveria adotarpara ajustar-se à legislação vigente e atender àexigência do Ministério da Justiça, a quem com-pete a regulamentação, fiscalização, controle eautorização desses concursos de prognósticos,de induvidosa licitude, conquanto previstos eassegurados pelo próprio texto constitucional(art. 195, III, da Constituição Federal).

2.Da legislação vigenteA matéria sub examine está prevista no art.

4º da Lei nº 5.768/71 com a redação que lhefoi dada pelo art. 1º da Lei nº 5.864/72, verbis:

“Art. 4º Nenhuma pessoa física oujurídica poderá distribuir ou prometerdistribuir prêmios mediante sorteios,vale-brindes, concursos ou operaçõesassemelhadas, fora dos casos e condiçõesprevistos nesta Lei, exceto quando tais

operações tiverem origem em sorteiosorganizados por instituições declaradasde utilidade pública, em virtude de lei, eque se dediquem exclusivamente a ati-vidades filantrópicas, com o fim de ob-ter recursos adicionais necessários àmanutenção ou custeio da obra social aque se dedicam.

§ 1º Compete ao Ministério da Fa-zenda promover a regulamentação, a fis-calização e controle das autorizaçõesdadas em caráter excepcional nos termosdeste artigo, que ficarão basicamentesujeitas às seguintes exigências:

a) comprovação de que a requerentesatisfaz as condições especificadas nestaLei, no que couber, inclusive quanto àperfeita regularidade de sua situaçãocomo pessoa jurídica de direito civil;

b) indicação precisa da destinaçãodos recursos a obter através da mencio-nada autorização;

c) prova de que a propriedade dosbens a sortear se tenha originado de do-ação de terceiros, devidamente formali-zada;

d) realização de um único sorteio porano, exclusivamente com base nos resul-tados das extrações da Loteria Federal,somente admitida uma única transferên-cia de data, por autorização do Ministé-rio da Fazenda e por motivo de forçamaior.

§ 2º Sempre que for comprovado odesvirtuamento da aplicação dos recur-sos oriundos dos sorteios excepcional-mente autorizados neste artigo, bemcomo o descumprimento das normas bai-xadas para sua execução, será cassada adeclaração de utilidade pública da infra-tora, sem prejuízo das penalidades doartigo 13 desta Lei.

§ 3º Será também considerada des-virtuamento da aplicação dos recursosobtidos pela forma excepcional previstaneste artigo a interveniência de tercei-ros, pessoas físicas ou jurídicas, que dequalquer forma venham a participar dosresultados da promoção.”

Antes de iniciar o trabalho de interpreta-ção do ditame citado, traz-se à colação a ad-vertência do insuperável Ferrara, para quem

“alguns intérpretes tentam colocar,

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na lei, o que na lei escrito não está, deacordo com as suas preferências, ou delasuprimir aquilo que não lhes agrada,transfigurando-se mais em legislador doque em hermeneutas” (Interpretação eaplicação das leis. 2. ed. Coimbra, 1963.p. 129).

Demais disso, como lembra Celso AntônioBandeira de Mello, ao intérprete descabeinserir, na regra de direito, o próprio juízo –por mais sensato que seja – sobre a finalidadeque “conviria” fosse por ela perseguida. Porisso mesmo, é intolerável “forçar a exegese” eimpor teses pelas quais o intérprete se apaixo-nou, vislumbrando idéias existentes apenas nopróprio cérebro ou no sentir individual marca-do por ojerizas, preconceitos, interesses ou de-sejos projetados pela visão subjetiva, crenças evalores pessoais do intérprete. Em suma, sãoesses os balizamentos dentro dos quais o intér-prete e aplicador da lei há de exercitar sua cri-atividade e seu senso do razoável, procurandoafeiçoar a norma à realidade, e que permitemque ele busque uma solução jurídica e justa,entre as alternativas que o ordenamento lheabriu.

Na busca do sentido e alcance do citado art.4º da Lei nº 5.768/71, deflui-se que:

a. trata-se de hipótese configurada comoexceção à distribuição gratuita de prêmios dis-ciplinada nos arts. 1º, 2º, 3º, 5º e 6º da Lei nº5.768/71;

b. o art. 4º prevê e permite a distribuiçãoonerosa de prêmios mediante sorteios jungi-dos às seguintes exigências:

I. finalidade de angariar recursospara a manutenção ou custeio de obrasocial de instituições declaradas de uti-lidade pública que se dediquem exclusi-vamente às atividades filantrópicas;

II. comprovação, pelas entidades fi-lantrópicas, de sua regularidade comopessoa jurídica, assim como explicitaçãodo destino ou aplicação dos recursos quevier a auferir com os sorteios;

III. demonstração, pelas entidadesfilantrópicas, da condição de proprietá-rias dos bens a sortear cuja origem te-nha sido, cogentemente, resultante daformal e efetiva doação ou promessa ir-revogável de doação de terceiros;

IV. autorização, em caráter excepcio-nal, obtida junto ao Ministério da Justi-

ça, a quem foi transferida a competênciaantes atribuída ao Ministério da Fazen-da (art. 18, V, b, da Medida Provisórianº 1.302, de 9-2-96, reeditada e vigendosob o nº 1.498-23, de 31-10-96);

V. vedação a que terceiros – sejampessoas físicas ou jurídicas – venham aparticipar dos resultados líquidos da pro-moção, hipótese tipificada como desvir-tuamento, resultante nas sanções previs-tas no art. 13 da Lei nº 5.768/71, comredação dada pela Lei nº 7.691, de 15-12-88.

É de clareza solar que a sistemática dosatuais concursos de prognósticos mediante sor-teios eletrônicos realizados pelas emissoras deTV, em que os concorrentes participam efeti-vando ligações telefônicas para o prefixo 0900,refoge, inteiramente, ao molde insculpido novigente art. 4º da Lei nº 5.768/71. Com efeito,quando da elaboração do diploma legal referi-do, há quase 15 anos, era incogitável a exis-tência desta tipologia de sorteio lastreado emnova tecnologia, por mais visão prospectiva quetivesse o legislador, daí a dissintonia entre apraxis e lei vigorante.

3. Da solução jurídicaDiante dessa exegese ou reflexão hermenêu-

tica, infere-se a inarredável e urgente necessi-dade de operacionalizarem-se alterações demodo a ajustar os sorteios eletrônicos às exi-gências legais, única maneira de outorgar-lhesa almejada juridicidade. Com isso, elidir-se-áqualquer possibilidade de apenações cumula-tivas tais como: cassação da autorização, proi-bição de realizar concurso de prognóstico poraté dois (2) anos e multa de até cem por cento(100%) do valor do bem ofertado como prê-mio, sanções essas consignadas no art. 13 daLei nº 5.768/71, com a redação proveniente daLei nº 7.691/88.

Nesse contexto, à luz dos requisitos legaisconstantes do art. 4º da Lei nº 5.768/71, suge-re-se que a consulente adote as seguintes mu-tações na sistemática de realização de tais con-cursos prognósticos com sorteios eletrônicos:

a. os concursos de prognósticos mediantesorteios eletrônicos, como atividade lícita eaberta à iniciativa privada, devem ser organi-zados, tão apenas, por instituições filantrópi-cas declaradas de utilidade pública em virtudede lei federal, sendo injurídica e ilegal a par-

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ticipação de Prefeituras Municipais que sequerdesfrutam de competência, seja para editar nor-mas sobre tais concursos, seja para beneficia-rem-se dos resultados da promoção;

b. as entidades filantrópicas que compro-vem sua regularidade jurídica e demonstremque os recursos auferidos nos sorteios eletrôni-cos serão rigorosamente aplicados e destina-dos à manutenção e custeio de suas obras sociaisestão aptas a firmar contratos ou convênios coma Consulente para operacionalizar esses con-cursos de prognósticos, até porque não dispõemde know-how e capacidade tecnológica paraconcretizá-los;

c. os prêmios ofertados aos concorrentes-telespectadores devem ser de propriedade das

entidades filantrópicas, impondo-se que suaaquisição tenha sido originada de doações oupromessa irrevogável de doação de terceiros,obrigatoriamente formalizada perante o regis-tro público;

d. a prévia e exigível autorização do Mi-nistério da Justiça restringir-se-á a um únicosorteio anual para cada entidade filantrópica,democratizando e socializando os benefícios emprol de plúrimos entes com finalidades estrita-mente sociais, exigência que poderá ser satis-feita com o rodízio anual das entidades benefi-ciárias;

e. como a lei impõe e determina que o sor-teio seja realizado “com base nos resultados dasextrações da Loteria Federal”, poder-se-áutilizar a seguinte fórmula:

Total de ligações registradas X nº sorteado na Loteria Federal = Y

Exemplo:– Foram registradas 183.208 ligações

durante a semana.– O número escolhido a recair sobre o sor-

teado como 1º prêmio da Loteria Federal naquinzena ou semana anterior foi 43.951.

– 183.208 X 0,43951 = 80.521– Assim, a ligação registrada com o nº

80.521, na ordem seqüencial de participaçãodos concorrentes, será a vencedora, e, no pro-cessamento de identificação, saber-se-á, instan-taneamente, o número do telefone, dia, mês,ano, hora, minuto e segundo da ligação, bemcomo a opção escolhida pelo telespectadorpremiado.

Desse modo, estará atendida in totum a exi-gência legal que atrela o sorteio ao resultadoda extração da Loteria Federal, sem compro-meter ou inviabilizar o sistema posto em práti-ca pela Consulente com absoluto sucesso e semqualquer reclamação dos telespectadores-concor-rentes. Por sinal, jamais se levantou qualquersuspeita sobre a lisura do processamento com-putadorizado, conquanto, além de feito por in-termédio de equipamento da Embratel, escoimaqualquer possibilidade de fraude ou distorção dosresultados, em razão da fiscalização permanentede empresas de auditoria independentes;

f. a proibição de que terceiros – pessoas fí-sicas ou jurídicas – venham a participar dosresultados da promoção está adstrita ao resul-tado líquido (lucro) obtido pela entidade filan-trópica. Vale dizer, despesas com publicidade(mídia, produção, cachês, etc), com operação eadministração dos sorteios eletrônicos, com oscustos de telefonia, com os tributos e encargossociais a serem recolhidos não configuram, demodo algum, “participação nos resultados”. Ouseja, qualquer entendimento em sentido con-trário afronta os princípios da razoabilidade eda proporcionalidade, além de corresponder aum enriquecimento sem causa por parte do entefilantrópico. Por isso mesmo, a vedação do art.4º, § 3º, da Lei nº 5.768/71 circunscreve-se àreceita ou renda líquida da promoção que háde ser destinada exclusivamente à entidade fi-lantrópica beneficiária;

g. impende, outrossim, sinalar a imperiosanecessidade de recolherem-se todas as obriga-ções tributárias e contribuições sociais inciden-tes sobre concursos de prognósticos, especial-mente imposto de renda (20% sobre o valordos bens premiados), ISS, Finsocial, Cofis eoutras que venham a incidir por força de lei, oque propiciará um efetivo incremento das re-ceitas tributárias da União;

Y = nº registrado no computador correspondente à ordem seqüencial dasligações efetivadas para o respectivo concurso de prognóstico.

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h. por derradeiro, a par de destinar-se aoFundo Penitenciário Nacional três por cento(3%) do montante arrecadado em cada concur-so de prognóstico (art. 2º da Lei Complemen-tar nº 79, de 7-1-94), bem como um por cento(1%) da arrecadação bruta para o Fundo Naci-onal da Cultura (art. 5º, VIII, da Lei nº 8.313,de 23-12-91, com redação dada pelo art. 1º daLei nº 9.312, de 5-11-96). Seria oportuno quecada entidade filantrópica beneficiária repas-sasse, pelo menos, 0,5% (meio por cento) doresultado líquido auferido para o FNDC, cria-do pela Lei nº 8.069, de 13-7-90.

Sem prejuízo das sugestões elencadas, quegarantirão à Consulente a continuidade e juri-dicidade dos concursos de prognósticos que seestão materializando por meio da TV, cumpreaduzir que o assunto, por sua relevância e gran-de alcance econômico-social, está a merecerregulamentação por Portaria do Ministro deEstado da Justiça, objetivando colmatar a la-cuna detectada, posto que nem o Decreto nº70.951, de 9-8-72 (que regulamentou a Lei nº5.768/71) nem a recente Portaria nº 628, de16-10-96, do Ministro da Justiça contemplamou disciplinam a distribuição onerosa de prê-mios mediante sorteios, concursos de prognós-ticos ou operações assemelhadas.

Em outras palavras, o vazio regulamentar,in casu, decorre do fato de os referidos norma-tivos infralegais restringirem-se tão-somente àdistribuição gratuita de prêmios, a título depropaganda, a ser efetivada mediante sorteio,deixando a latere a distribuição onerosa de prê-mios, hoje tão difundida e massificada, na eradas telecomunicações, por força da combina-ção da televisão, telefone e sistema de compu-tação para a operacionalização de concursos deprognósticos com o uso de tecnologia própriado mundo digital.

Ressalte-se, por outro lado, a visão dilarga-da do legislador quando vinculou a entidadefilantrópica a esses concursos de prognósticos,de modo a propiciar-lhe e muni-la de recursosfinanceiros. Só assim tais entes poderão con-cretizar sua missão social, de dimensão ímpar,pois, não raro, atuam como elemento de inte-gração social, como agente do processo educa-cional, como mecanismo auxiliar à política desaúde e como veículo de promoção social dolazer. Extrai-se , daí, o alto significado sócio-econômico de tais concursos de prognósticoscuja sustação, agora, traria prejuízos irrepará-veis a milhares de brasileiros excluídos e mar-ginalizados, que têm seu sofrimento abranda-

do pela atuação das entidades filantrópicas deinduvidosa finalidade social. Remarque-se,aqui, que o aporte de novos recursos para asentidades filantrópicas, fazendo uso do concur-so de prognóstico mediante o ágil e transpa-rente sorteio eletrônico, tornar-se-á um instru-mento de modernização e produtividade efici-ente e harmônico com suas finalidades sociais.

De qualquer modo, não se venha argüir quea Portaria Ministerial/MF nº 85, de 12 de abrilde 1973, e a Instrução Normativa nº 037, de26 de junho de 1979, da Secretaria da ReceitaFederal contêm algumas normas que devem serobservadas no tocante aos sorteios feitos porentidades filantrópicas. Com efeito, tais nor-mativos ficaram despojados da mais mínimaeficácia jurídica, conquanto:

a. o disciplinamento do assunto é hoje ma-téria privativa do Ministério da Justiça, e, comose trata de ditames emanados do Ministério daFazenda, sem ratificação ou convalidação peloMinistério da Justiça, estes são insusceptíveisde produzir quaisquer efeitos jurídicos;

b. mesmo admitindo-se, ad argumentan-dum, que a Portaria MF nº 85/73 e a InstruçãoNormativa nº 037/79 da SRF continuassem vi-gendo, muitas de suas regras extravasam e exor-bitam a competência atribuída no § 1º, art. 4º,da Lei nº 5.768/71, pois ampliam, injuridica-mente, seu raio de ação na regulamentação,quando, na Administração Pública, só é per-mitido fazer o que a lei autoriza ou consente.Assim, várias restrições constantes destes nor-mativos infralegais contemplam matéria estra-nha ao ato legislativo objeto da regulamenta-ção, incluindo acréscimos ao que, virtualmen-te, já se continha na estatuição legal. Incumbedestacar, nesse passo, que as normas de natu-reza regulamentar, além de nada acrescenta-rem, pois isto é de todo modo defeso, tambémnada restringem ou suprimem do que se con-tinha nas possibilidades resultantes da dicçãodo art. 4º da Lei nº 5768/71.

Vale dizer, nem favor nem restrição que jánão se contenham previamente na lei regulamen-tada podem ser agregados pelo regulamento.

A propósito, os efeitos jurídicos de tais nor-mativos esboroam-se diante da lição de CelsoAntônio Bandeira de Mello:

“Assim, toda a dependência e subor-dinação do regulamento à lei, bem comoos limites em que se há de conter, mani-festam-se revigoradamente no caso deinstruções, portarias, resoluções, regi-

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mentos ou normas quejandas. Desaten-dê-las implica inconstitucionalidade. Aregra geral contida no art. 68 da CartaMagna, da qual é procedente inferir adelegação ostensiva ou disfarçada depoderes legislativos ao Executivo, inci-de e com maior evidência quando a de-legação se faz em prol de entidades ouórgãos administrativos sediados em po-sição jurídica inferior à do Presidente eque vão se manifestar, portanto, medi-ante atos de qualificação menor” (Cursode Direito Administrativo. 8. ed. SãoPaulo : Malheiros, 1996. p. 207-208).

Se a Lei nº 5.768/71 não previu algumasrestrições e limitações impostas pelas citadasPortaria nº 85/73 e Instrução Normartiva nº37/79, e se não desenhou, mesmo em traçosmuito largos, um esquema abstrato para o ato,então a Administração não pode agir nem re-gulamentar. Daí o dizer de Michel Stassino-poulos que a Administração, além de não po-der atuar contra legem ou praeter legem, sópode agir secundum legem (Traité des ActesAdministratifs. Athènes : Lib. Sírey, 1954. p.69). Ou, como preleciona Pontes de Mirandacom sua inquestionável autoridade, “sempreque no regulamento se insere o que se afasta,para mais ou para menos, da lei, é nulo, porser contrária à lei, a regra jurídica que se ten-tou embutir no sistema” (Comentários à Cons-tituição de 1967, com a Emenda 1/69. 2. ed. t.3, p. 316 e 317). Em síntese, os regulamentossão insusceptíveis de criar obrigações novas,sendo apenas aptos a desenvolver as existentesna lei.

Assim, evidenciado à saciedade e de modoabundante que os regulamentos – in casu, Por-taria e Instrução Normativa – destinam-se àexecução da Lei nº 5.768/71, e que, ao excede-rem disposições legais a que teriam de prestardócil obséquio, são nulos em tudo o que as con-trariou ou excedeu. Demais disso, como aver-ba Jellinek, “os regulamentos de execução nãopodem estabelecer novos preceitos jurídicos.Eles se limitam tão-somente a dispor quanto àexecução de obrigações já criadas para os indi-víduos em lei anterior” (Gesetz und Verord-nung, p. 379). Nessa linha de raciocínio, a in-juridicidade desses regulamentos infralegaisavulta, com mais vigor, quando tolhem a ab-sorção das mudanças advindas do progressocientífico e tecnológico, quando a realidadeimpõe níveis diversos no grau das exigênciasadministrativas adequadas para cumprir o es-

copo da Lei nº 5.768/71, no seu art. 4º, semsacrificar outros interesses por ele confortadose assegurados.

Ex-positis, infere-se dessa análise jurídicaque:

a. o assunto presentemente está jungido tãoapenas ao art. 4º da Lei nº 5.768/71, com reda-ção que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei nº 5.864/72;

b. a Portaria MF nº 85/73 e a InstruçãoNormativa SRF nº 37/79, além de malferireme extravasarem à Lei regulamentada, perderama eficácia jurídica, independentemente de re-vogação formal, desde quando a competênciado Ministério da Fazenda foi expressa e indu-vidosamente transferida e atribuida ao Minis-tério da Justiça (art. 18, V, b da Medida Provi-sória nº 1.302, de 9-2-96, reeditada e vigendosob o nº 1.498-23, de 31-10-96);

c. com poderes legais e privativos para re-gulamentar, controlar e fiscalizar a matéria, oMinistério da Justiça pode editar Portaria, nahipótese de julgar necessária a regulamenta-ção, condensando as diretrizes sugeridas nestetrabalho;

d. os sorteios deverão ser realizados combase nos resultados de extração da Loteria Fe-deral, facultado à instituição beneficiária darespectiva autorização adotar tecnologias emétodos eletrônicos para inscrição e participa-ção de concorrentes, de comprovada e eficien-te garantia, exigindo-se, nessa hipótese, a pre-sença obrigatória de empresas de auditoria ex-terna que assegurem a transparência e lisurados sorteios e da sistemática postos em prática;

e. exigir-se-á da instituição filantrópica be-neficiária da autorização para a realização desorteio a apresentação da seguinte documenta-ção comprobatória de atendimento às exigên-cias legais:

I. cópia de seus atos constitutivos edas alterações, comprovando que a re-querente se constituiu no País e tem per-sonalidade jurídica, não remunera seusdiretores, sócios ou irmãos, não lhes pro-picia vantagens ou benefícios, nem lhesdistribui parcela do seu patrimônio oude suas rendas, a qualquer título;

II. cópia do decreto do Poder Execu-tivo Federal que a declara de utilidadepública;

III. prova de que a requerente estáem pleno gozo da condição de institui-

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ção de utilidade pública, mediante do-cumento hábil comprobatório da apre-sentação à Secretaria dos Direitos deCidadania e Justiça do MJ do relatório aque se reporta o art. 1º do Decreto nº60.931, de 4 de julho de 1967. Não ha-vendo transcorrido tempo suficiente paratornar obrigatória a apresentação de talrelatório, não será exigido o referidodocumento probatório;

IV. cópia do último Certificado Pro-visório de Entidade de Fins Filantrópi-cos, fornecido pelo Conselho Nacionalde Assistência Social, do Ministério daPrevidência e Assistência Social;

V. escritura pública ou instrumentoparticular de doação ou de promessa irre-vogável de doação do bem a ser sorteado;

VI. compromisso de que os recursosauferidos mediante a realização do sor-teio serão destinados ao atendimento dedespesas com serviços gratuitos ou combenfeitorias utilizadas na prestação des-ses serviços, deduzidas as despesas legaise administrativas vinculadas ao sorteio;

VII. declaração, firmada pelo respon-sável legal da entidade, de que os recur-sos auferidos por ela, decorrentes de do-ações e verbas públicas recebidas, sãointegralmente aplicados no País e quepelo menos 50% da receita líquida quelhe couber no sorteio serão destinadosao atendimento exclusivo das despesascom serviços gratuitos, estando o signa-tário sujeito às cominações legais e ad-ministrativas em caso de falsidade dedeclaração;

f. permitir-se-á o pagamento das seguintesdespesas legais e administrativas vinculadas aossorteios, sujeitas a comprovação e fiscalizaçãoem qualquer tempo:

I. despesas com publicidade, mídia eprodução do sorteio;

II. despesas com operação e adminis-tração do sorteio pela pessoa jurídicacontratada ou conveniada para essatarefa;

III. pagamento do imposto de rendana fonte incidente sobre prêmios a se-rem sorteados (art. 63 da Lei nº 8.981,de 20 de janeiro de 1995, com a redaçãodada pelo art. 1º da Lei nº 9.065, de 20de junho de 1995, objeto de retificaçãopublicada no Diário Oficial da União de3 de julho de 1995);

IV. custos de telefonia e taxas cor-respondentes;

V. 3% para o Fundo PenitenciárioNacional (art. 2º da Lei Complementarnº 79, de 7-1-94);

VI. 1% para o Fundo Nacional daCultura (art. 5º, VIII, da Lei nº 8.313,de 23-12-91, com a redação dada peloart. 1º da Lei nº 9.312, de 5-11-93);

g. a legalidade e constitucionalidade dossorteios eletrônicos de prognósticos ocorrerátão logo a Consulente atenda, in totum e semdesvirtuamentos, às exigências insculpidas noart. 4º da Lei nº 5.768/71, bem como às dire-trizes consignadas neste trabalho, elidindoqualquer possibilidade de apenações ou susta-ção de sorteios onerosos promovidos por insti-tuições filantrópicas, declaradas, por lei, deutilidade pública.

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1. Enquadramento e delimitaçãodo objeto de análise

O tema da segurança jurídica revela-se,indubitavelmente, como um dos temas de maiorpersistência na preocupação dos juristas, poisestá intimamente ligado à própria justificaçãoda existência do ordenamento jurídico 1 eafirma-se como um dos pólos da discussãoinfindável entre jusnaturalismo2 e juspositi-vismo3, ou, em uma sua conformação maiselaborada, entre o pluralismo4 e o estatalismodas fontes do direito. A determinação ou inde-terminação do direito, a previsibilidade ouimprevisibilidade das decisões judiciais5, amutabilidade ou imutabilidade do conteúdojurídico, enfim, a identificação ou não de umaconformação delimitadora e diretiva daevolução do direito, dizem respeito diretamenteà questão que une os homens na máxima deimplicação recíproca entre o direito e a própriasociedade no intento de se institucionalizarseu sentimento de conservação, ínsito a suanatureza 6.

Segurança jurídica stricto sensu elegalidade dos atos administrativosConvalidação do ato nulo pela imputação do valor desegurança jurídica em concreto à junção da boa-fé e do lapsotemporal

MÁRCIO NUNES ARANHA

Márcio Nunes Aranha é Mestrando da Univer-sidade de Brasília e Advogado.

SUMÁRIO

1. Enquadramento e delimitação do objetode análise. 2. Ponderações prévias. 2.1. Evoluçãoe involução do direito segundo Del Vecchio. 2.2.A complexidade do sistema de decisões em NiklasLuhmann. 2.3. Síntese. 3. Justificação da vali-dade especial do ato pelo transcurso de tempo.3.1. Abordagens doutrinárias. 3.1.1. A prescriçãosocial e a continuidade histórica de Burke. 3.1.2.Espírito objetivante e ineditismo da liberdade deReale. 3.1.3. Proteção da confiança: boa-fé e lapsode tempo. 3.2. Análise jurisprudencial e concreta.4. Conclusão.

Notas ao final do texto.

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O fator último provocador do embate dasteorias jurídicas mais recentes está na tentativade orientação dos sistemas jurídicos vigentes auma compatibilização entre uma segurançajurídica necessária e uma maleabilidade sufi-ciente do sistema que possibilite o acompanha-mento da evolução social. O esforço está emestabelecer-se um sistema jurídico que, emboraharmonicamente diretivo, não encerre em sium túmulo valorativo imutável. Eis a constantedas tendências do pensamento jurídico contem-porâneo.

A segurança jurídica desponta assim, emsua dimensão mais abrangente, como o efeitodelimitador na evolução jurídica7. Afigura-seideal que conforma um dos temas mais rele-vantes do pensamento jurídico contemporâneo,a começar pela polêmica dos conceitos deconstituição real e de força normativa, emLassale e Hesse8, na preocupação constante emrealçar a dimensão normativa da constituiçãopara salvaguardá-la de arbitrariedades, alémde toda a tendência evolutiva da conceituaçãodo direito constitucional como algo mais abran-gente que a constituição escrita, dando margemao chamado sistema constitucional9, que revelasempre a preocupação em ampliar-se o campode análise do jurídico, de conformidade com oreal, mas sem perder de vista uma diretiva desegurança.

O ideal da segurança jurídica, contudo, nãose resume à sua enunciação mais estendida deelemento fundador da discussão sobre a natu-reza do direito em si, mas, pelo contrário,somente revela estar apto à contribuiçãoconcreta na experiência palpável quando daanálise de seus corolários, que mais seaproximam da realidade do convívio.

Não se configura, pois, como intento desteestudo o esmiuçar todas as dimensões, oumesmo, a dimensão mais alargada da segurançajurídica, já que isso significaria, no mínimo,uma síntese de toda a história recente do direito.O propósito deste trabalho é muito maishumilde: a elucidação de um aspecto da segu-rança jurídica que se vê, ainda hoje, um poucoobscurecido pela luminosidade dos temas, seussemelhantes, que haurem significação nomesmo postulado geral daquela dimensão maisampla do ideal de segurança jurídica. Assim, oaparente esquecimento do aspecto da segurançajurídica ora examinado justifica-se pelo mesmofator causador de seu obscurantismo, o que nadamais faz que sobrelevar sua importância.

Pretende-se, dessa forma, com este estudo,

esmiuçar tão-somente um aspecto do tema dasegurança jurídica, qual seja, o de implicaçãode validade jurídica às situações concretasfrente à constatação de uma certa persistênciatemporal destas.

2. Ponderações préviasTema de relevo, que se preordena à análise

específica da segurança jurídica frente aos fatosimpregnados de valor temporal, diz respeito àconsideração da própria evolução do direito,pelas sucessivas transformações, diga-se depassagem, necessárias10, operadas diretamentepela via legislativa. Tal importância é indicadapela análise da relação que possa existir entreas modificações dos textos legais, incessante-mente visualizadas, e a pertinência destas comuma expectativa de melhoramento do sistemajurídico como um todo, de valorização dospostulados morais básicos de uma sociedade,ou, ainda, de real correspondência entre umimpulso legislativo democraticamente susten-tado e a modificação legal concretamenteimplementada. Por outras palavras, devem serestabelecidas as verdadeiras relações entre asconstantes transformações dos diplomas legaise os dogmas de perfectibilidade crescente dodireito e de correspondência de tais transfor-mações com o ideal democrático. Obviamente,não se está a pôr de lado o fator de mutabilidadedo direito por força das transformações sociaise de decisões institucionais, mas somente asalientar e delimitar ainda mais o objeto depesquisa, direcionando-o àquelas ingerênciasnomogenéticas do sistema jurídico.

2.1. Evolução e involução do direitosegundo Del Vecchio

Abordando os conceitos de evolução einvolução do direito, Del Vecchio, em uma obraprimorosa de título sugestivo sobre o tema11,revela a impropriedade da idéia de avanço paraexpressar as modificações pontuais do direito.Em princípio, não se pode afirmar a correlaçãoentre as transformações do sistema jurídico euma sua evolução, a não ser que esta últimaseja tomada no seu significado mais amplo decontinuidade de um processo ou de mera trans-formação. Tais significados, contudo, nãodenotam qualquer utilidade para o signoquestionado da evolução12. Esta condiz melhorcom a idéia de progresso, atingida por umaderivação detalhadora de sentido, que Del

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Vecchio retira de Rickert13. Mas se este é overdadeiro sentido do termo, deve-se inserir novocabulário jurídico a questão do retrocesso ouinvolução14 do sistema. Se o desenvolvimentodo direito, sob todas as suas matizes, poderefletir, por um lado, uma fase de harmoniosae elevada cultura, por outro, às vezes revelauma de cega e violenta barbárie15. Disso extrai-se que a comumente aceita perfectibilidadecrescente do direito não é isenta de incursõesmenos nobres, muito pelo contrário, é um fatode sua própria existência16. Para a distinção dosmomentos de avanços e recuos na transfor-mação do direito, é imprescindível a referênciaa critérios de valores17, como forma de traduziro sentimento de justiça que sobrevive no serhumano a despeito dessas constatações. O valorda segurança jurídica18, no sentido em que oraé analisado, refere-se a um tal aspecto externoao jogo dos progressos e retrocessos pontuaisdo direito e, portanto, revela algo que trans-cende a tal determinismo da natureza dascoisas. É, por assim dizer, um qualificativodiferencial do homem na correnteza naturalunificadora dos seres; é algo de essencial que odestaca do rumo natural das coisas e coloca-oem posição diferenciada em seu meio. Revela,enfim, a virtude de atenuar os contrastes danatureza, que faz do homem único, a elafazendo frente para amenizar e conformar arealidade. Pensa sobre a natureza cíclica dosistema de avanços e retrocessos e, enten-dendo-a, esforça-se por criar mecanismos idô-neos a enfraquecer seus efeitos perniciosos eaptos a catalisar suas contribuições positivas,pois mesmo os progressos, se não foremtolhidos de seus excessos, ocasionam, nãopoucas vezes, uma maior violência no seu fatalretrocesso. A segurança jurídica, assim, traduza superação das contingências de momento. Orespeito às situações constituídas insere-se nessecontexto, ou, ainda, é uma manifestaçãoconcreta e palpável do comportamento própriodo homem, até aqui narrado.

“Il regresso, o l’involuzione, non saràmai l’ultima parola, fino a che esisteràuno spirito umano, capace per sua naturadell’infinito”19.

2.2. A complexidade do sistemade decisões em Niklas Luhmann

Um segundo tópico diz respeito à corres-pondência entre as decisões políticas e orespeito ao ideal democrático, como base do

Estado de Direito. Niklas Luhmann trata dotema realçando a questão do processo parla-mentar, que se não pode identificar com o órgãode decisão, nem tampouco com um conjuntode normas, mas sim com um sistema especialde comportamento, cujo escopo direciona-se àelaboração de uma lei e ao alcance de suavigência, e que é direcionado por um métodoespecial de legislação20. Isso aponta para aconstatação de que o processo legislativoencerra, em si, um sistema21, e é a diferenciaçãodo sistema global em exercício constante dossistemas isolados de processo, que justificam apossibilidade de normalização dos conflitos.Nesse âmbito, entra em cena o princípio damaioria, que, incorporado ao sistema global,traduz-se no princípio da constância de repe-tição do poder e qualifica o poder pela suadistribuição no sistema a despeito de suamensuração. Desta posição central do princípioda constância de repetição do poder no processolegislativo, o processo de eleição políticadesponta como artifício que promove adiferença entre a medida do poder e sua cons-tância22: é a base estrutural do sistema. Há umareconstrução constante do poder. Dessa forma,o ponto sensível de interesse descansa sobre asvicissitudes da correlação entre a representati-vidade e o poder político real. A incongruênciaentre os princípios da constância de repetiçãodo poder e da maioria existe por força da grandecomplexidade do material em jogo. Essacomplexidade faz dos processos legislativosalgo diverso dos processos jurídicos, pois lhesafasta a característica inerente a estes últimos,qual seja, a de tratarem de decisões progra-madas. A diferença induz a uma análise dire-cionada aos sistemas isolados, aos problemasespecíficos do sistema político, os quais sãopautados por decisões não-programadas masprogramáveis. As balizas do sistema sãoconstantemente reconstruídas pela própriadinâmica de sistemas, em meio a uma comple-xidade muito elevada, que obriga o processolegislativo a compadecer-se de estruturassimplificativas23. Tais estruturas simplificativasou meios de redução de complexidade dosistema trazem consigo, além da possibilidadede orientação do sistema legislativo, mediantea limitação do universo relacional24, também oafastamento do caminho do ideal. Dito afasta-mento melhor é visualizado quando se fazmenção a outro mecanismo simplificativo, qualseja, o de confiança na informação, já adaptada

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e comprimida, de diversos setores25, masprincipalmente da administração. Diz-seprincipalmente da administração pois aeventualidade de manipulação das informaçõespor parte desta haure sua gravidade na consta-tação do esmagamento do princípio maior daseparação harmônica dos poderes. A dependên-cia de processos cognitivos alheios sujeita oideal democrático – de correspondência darepresentatividade e de suas manifestaçõesconcretas – à confiabilidade das fontes,porquanto estas afiguram-se como fatoresessenciais de redução de complexidade. Maiorimportância tem a análise da participação daadministração no processo legislativo, quandose atenta para as estratégias de minimizaçãodos riscos deste processo, principalmente notocante à restrição da variabilidade deprojetos26. E restrição de posicionamentos sobreum assunto significa, em um ambiente decomplexidade elevada, delimitação prévia dopróprio leque de decisões27. A alienação da fontereal de poder consiste em fator não só consta-tável, como também funcional, do sistema28;logo, o fosso entre a vontade democrática e asíntese institucional alarga-se por demandainterna do sistema legislativo. A legitimidadeafasta-se, por força da própria complexidadedo sistema, do consenso real e mesmo oprincípio da maioria reflete, não uma forma delegitimação, mas uma solução de compro-misso29. Com base nisso, as teorias clássicas dedemocracia viram-se obrigadas a direcionar suaatenção à proteção do indivíduo, ou à minoria,por meio dos direitos subjetivos30, além demedidas de proteção contra a maioria.

2.3. Síntese

A conclusão desta abordagem está em quese deve entender a transformação ou a novidadenão necessariamente como uma evolução oualgo essencialmente bom, mas sim como umcaminhar, que, embora se possa dizer que, noglobal, implica uma melhoria do sistema, noincidental, ou seja, nas mudanças pontuais,indica somente uma fase de processo legislativo.O processo legislativo trata o direito comovariável e, por isso, demanda freios decontenção dos efeitos de suas modificações. Asegurança jurídica é, sem sombra de dúvida, omais expressivo destes, na sua acepção deexpressão da liberdade do ser na necessáriaconsciência das conseqüências de seus atos31.Os riscos do poder devem ser temperados coma totalidade de sentido do ordenamento jurídicoe os seus valores transcendentes32.

3. Justificação da validade especial do atopelo transcurso de tempo

3.1. Abordagens doutrinárias

3.1.1. A PRESCRIÇÃO SOCIAL

E A CONTINUIDADE HISTÓRICA DE BURKE

Pode-se identificar em Burke33 o focomoderno das preocupações relativas à segu-rança jurídica, sob seu aspecto de salvaguardadas situações perpetuadas no tempo, o que fezmediante a introdução dos conceitos de pres-crição social e continuidade histórica emdefesa do bem maior da convivência socialcontra as paixões momentâneas e efêmeras depolíticas governamentais utilitaristas. Burkedetinha, como princípio norteador de sua obra,a necessária ponderação que sempre deve estarpresente nos momentos de transformação deum sistema, para que se não destrua, junta-mente com o afã de progresso, valores básicose transcendentes34. O principal valor, que lutacontra a demolição pura e simples do que seinstitucionalizou em determinada época, é o dasegurança jurídica, como, também, os seuscorolários fundamentais, pois o que está pordetrás da tomada de decisão de quem defendea segurança é um posicionamento não frenteao próprio valor maior, mas frente a outrosvalores, como o respeito às instituições e acrença de que elas detêm não só uma qualidadede essência, mas também de eficácia: são suasinfluências difusas que as perpetuam e queoneram sua supressão. A segurança exprime alimitação do poder, que em verdade é de cadaum; a intervenção para contenção de abusos; averdadeira democracia, que quer dizer: não sepode, mesmo com o bem da maioria, justificarou transigir com a desgraça de núcleos essen-ciais de direitos de uma minoria. Há um valorque se preordena a todos os outros, e esse valoré o da dignidade humana. Deve-se alcançar aevolução sem pisotear este princípio, e uma desuas expressões concretas está exatamente nasegurança que se deve dar a cada indivíduo demanter-se em uma dada situação, pois tal justaexpectativa o fez incorporar um direito, que nãopode ser súdito de mudanças radicais, mas antesrepresentar a sabedoria de uma sua preservaçãorazoável. Toda mudança deve estar enquadradaem um ambiente de salvaguarda de excessos35.O ambiente de que se fala é proporcionado pelasegurança jurídica em sua dimensão fornece-dora de sobrevida àquilo que se consagrou no

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tempo, para que os efeitos perversos da incons-tância e versatilidade do sistema jurídico, bemcomo a prevalência absoluta dos juízos deconveniência36, sejam suprimidos, muitoembora não se intente, obviamente, atacar aversatilidade em si, mas, como já se fez ver,somente os efeitos caracterizados como perni-ciosos da mesma.

3.1.2. ESPÍRITO OBJETIVANTE E INEDITISMO

DA LIBERDADE DE REALE

Miguel Reale fornece uma visão doutrináriade máximo interesse para este estudo. O autoré adepto de uma concepção que intitula dehistoricismo aberto, mitigadora da idéiahistoricista fechada, de redução de tudo àsdeterminantes históricas, historicismo abertoaquele caracterizado pela valorização de umfator decisivo, que chama de ineditismo daliberdade. A partir dessa postura, Realeidentifica, como elemento fundamental àanálise da segurança jurídica, o fato da objeti-vação histórica. Há uma dialética de polaridadeou complementaridade, que governa a evoluçãohistórica: de um lado, o espírito objetivante,de validez da realidade jurídica; e de outro, oineditismo da liberdade, como componente deinovação criativa do homem à sua própriaevolução. A toda participação ativa do homemna conformação do meio jurídico tem de estarpresente a ponderação destes dois aspectos, deaquisição de validez pela realidade jurídica eabertura à participação da liberdade e síntesehumanas37. Logo, a inovação está delimitadapelo peso histórico implicador de validade, oque se aproxima muito das idéias expostas dopensamento de Burke, mas a delimitaçãodisputa lugar, claramente, com o seu contrapesohistórico de liberdade humana, e nisso Realeesclarece o caráter dialético da realidadehistórica38 dos avanços e retrocessos do direito,pois tão pernicioso quanto a consideraçãoabsoluta do poder de reforma é a de umasegurança imutável, já que esta afigura-se, porsi mesma, um fator de insegurança.

Esclarece o autor a possibilidade de conva-lidação de atos administrativos eivados de víciode nulidade que não firam legítimos interessesde terceiros ou do Estado, quando da inexis-tência de dolo. A essa convalidação, Realeatribui a nomenclatura de sanatória excep-cional do nulo, a transparecer a possibilidadede que o restabelecimento da ordem legal estritaceda, em certos casos, a uma exigência do

interesse público39, que traz a questão da nuli-dade dos atos administrativos para uma searamenos rígida de apreciação40. Segue o autordiferenciando a sanatória legal daquela exigidapelo ordenamento como um todo e indicando amaior amplitude de aplicação daquele instru-mento ao direito público, que carece das limi-tações precisas próprias do direito privado41,mas antes as tem mitigadas por força dapreeminência do interesse público42. A contri-buição inovadora de Reale, contudo, refere-sea ter o autor divisado duas hipóteses de inci-dência das considerações até aqui apontadas.São elas: a convalidação ou sanatória do atonulo e anulável; e a perda pela Administraçãodo benefício da declaração unilateral de nuli-dade (le béneficie du préalable). A sanatóriado inválido decorre da consideração de que aperpetuação de um fato no tempo, desde que seexclua a existência de dolo, ou quando afloremvalores éticos a serem protegidos43, gera umaconfiança legítima no espírito dos particulares,que justifica sua proteção jurídica44. A limitaçãodo poder da Administração em agir, por forçaprópria, declarando unilateralmente a nulidadede um certo ato, por sua vez, diz respeito ànecessidade da participação, ou não, do Judi-ciário para que a modificação da situaçãoconstituída possa ser operada. O ato deve serpreservado de decisões imprevistas e tardias45,e, para tanto, Frederico Marques, citado porReale, encontra no princípio do due process oflaw sua justificativa. A invalidade originaldo ato desfigura-se, preenchida a condiçãode boa-fé, com o transcorrer do tempo46.

3.1.3. Proteção da confiança:boa-fé e lapso de tempo

Almiro do Couto e Silva introduz elementosnovos na discussão principalmente ao identi-ficar, na dimensão formal do Estado de Direito,a proteção da boa-fé ou da confiança (Vertrau-ensschutz), que traz, em si, a imperiosa neces-sidade de se resguardarem os particulares dosrumos tomados pelo Poder Público, a produ-zirem perturbações no estado de coisas sedi-mentado em face de um direcionamentopersistente do mesmo Poder47. Os princípios dalegalidade e da segurança jurídica podem,muitas vezes, indicar uma duplicidade desoluções contraditórias, mas tal contradição émera aparência, porquanto a aplicação doúltimo está perfeitamente inserida na confor-mação sistêmica da legalidade, como prin-cípio48. Há um perigo interno do sistema

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jurídico no respeito absoluto de seus princípios,que, no tocante à aplicação desmedida doprincípio da legalidade, geraria o desprezo poroutro valor básico do ordenamento, qual seja,o da confiança dos particulares na possibilidadede o Estado proporcionar-lhes um ambiente deestabilidade. Aqui está uma passagem do autorde claridade solar:

“A invariável aplicação do princípioda legalidade da Administração Públicadeixaria os administrados, em numero-síssimas situações, atônitos, intranqüilose até mesmo indignados pela conduta doEstado, se a este fosse dado, sempre,invalidar seus próprios atos – qualPenélope, fazendo e desmanchando suateia, para tornar a fazê-la e tornar adesmanchá-la – sob o argumento de teradotado uma nova interpretação e dehaver finalmente percebido, após otranscurso de certo lapso de tempo, queeles eram ilegais, não podendo, portanto,como atos nulos, dar causa a qualquerconseqüência jurídica para os desti-natários.

Só há relativamente pouco tempo éque passou a considerar-se que o princí-pio da legalidade da AdministraçãoPública, até então tido como incontras-tável, encontrava limites na sua aplica-ção, precisamente porque se mostravaindispensável resguardar, em certashipóteses, como interesse públicoprevalecente, a confiança dos indivíduosem que os atos do Poder Público, quelhes dizem respeito e outorgam vanta-gens, são atos regulares, praticados coma observância das leis.” – grifos nossos.49

Desse modo, os limites de modificação doato administrativo encontram-se não só nosdireitos subjetivos que eventualmente delederivem, como também no interesse públicoem se proteger a boa-fé e a confiança (Treuund Glaube) dos administrados, princípiostraduzidos na crença de que o Poder Públicoprima por emanar atos regulares. Tal entendi-mento já é encontrado em autores alemães doinício deste século, como Fritz Fleiner e WalterJellinek, além de outros mais recentes, comoOtto Bachof, segundo o qual o respeito à boa-fé e à segurança jurídica determinam a incon-teste validade do ato ilegal qualificado pelaprolongada e complacente inação do PoderPúblico50. Almiro do Couto e Silva ainda revelaque o entendimento do tema na Alemanha desce

já a níveis mais específicos de sofisticação, porexemplo, no que se refere aos atos administra-tivos expressados em prestações em dinheiro,“que se exauram de uma só vez ou que apre-sentam caráter duradouro, como os de índolesocial, subvenções, pensões ou proventos deaposentadoria”51, tidos por absolutamenteprotegidos de anulação.

Mas não é somente no direito alemão quesão encontradas expressões desses entendi-mentos de respeito ao ato consagrado pelotempo. Na França, explica aquele autor, desde1923, com o affaire Dame Cachet, depoisreafirmado por outros casos, entende-se deestipular um prazo, de dois meses, dentro doqual há a possibilidade de anulação do atoadministrativo, quando de tais atos nãosurgissem direitos subjetivos, caso em que arevogação não caberia em absoluto. Em termosgerais, assim também é visto no sistema jurí-dico da Grécia, com a inclusão dos requisitosdo razoável lapso de tempo e da boa-fé, emesmo na Itália, embora de forma menossegura, tem-se o posicionamento da doutrinaorientada no sentido até aqui exposto52.

A aplicação dessas idéias ao panoramajurídico brasileiro aponta para a declaraçãoperemptória de que “os atos administrativosinválidos, nulos ou anuláveis sanam sempre quesobre eles cair uma camada razoável de tempo,com a tolerância da Administração Pública”,ou ainda, sob outras palavras, “os atos inválidospraticados pela Administração Pública, quandopermanecem por largo tempo, com a tolerânciado Poder Público, dando causa a situaçõesperfeitamente consolidadas, beneficiandoparticulares que estão em boa-fé, convalidam,convalescem ou sanam”53. Expressão concretadesse entendimento pode ser visualizada naintensa preocupação com o chamado funcio-nário de fato54. Se assim o é no campo estrita-mente da relação da administração pública como seu administrado, pelas mesmas razões oprincípio deve ser aplicado na eventualidadede tolerância pelos demais poderes do Estado,frente ao ordenamento jurídico como um todo.Constatada a orientação constante dos poderesconstituídos para a consideração da legalidadede um ato administrativo, e ocorrida a mudançade entendimento sobre ele, necessariamente,preenchidas as condições de lapso temporal eboa-fé, é inegável a perpetuação dos efeitosatribuídos ao tempo decorrido e conseqüenteencouraçamento daquele ato enobrecido por suaperpetuação. Sua validade acresce-se de umplus, que lhe dá uma proteção qualificada.

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3.2. Análise jurisprudencial e concreta

As considerações doutrinárias até aquiexpostas não existem somente no campo dasabstrações, mas, antes, vêem-se tocadas, aindaque levemente, pelo aparelho judicial, estedotado da importantíssima função de estabili-zação de expectativas em bases racionais55. Aimportância da análise detida do tema está nalenta e escassa evolução do seu tratamentodoutrinário no Brasil, refletida na também lentae não menos escassa evolução jurisprudencialna mais alta Corte do país.

O Supremo Tribunal Federal via-se, atémeados da década de 60, infenso aos influxosdo pensamento jurídico moderno de mitigaçãona aplicação do princípio da legalidade, comose pode notar nas súmulas 346 e 47356, das quaisnão se extrai qualquer exceção à anulação deatos inválidos por ilegais, ou seja, qualquerobstáculo à plena aplicação do princípio dalegalidade, à exceção da clássica proteção aodireito adquirido.

Na década de 60, mais precisamente nosanos de 1965 e 1966, quatro decisões doSupremo Tribunal Federal57, julgadas peloPleno, Primeira e Terceira Turmas daquelacasa, revelaram o posicionamento, favorável àtratada convalidação do ato nulo, de nomescomo os dos ministros Evandro Lins e Silva,Hermes Lima, Victor Nunes, Prado Kelly,Oswaldo Trigueiro, Luiz Gallotti e Lafayettede Andrada. Tais processos apontaram para uminício, ainda que incipiente, de consideraçõessobre a questão da convalidação ou manutençãodo ato viciado de ilegalidade por força de suapersistência temporal, mas ainda apoiados emuma força ou responsabilidade ocasionada pormedidas liminares, que serviriam de títulojurídico para imprimir consistência ao tempotranscorrido58.

Contudo, foi o recurso extraordinário nº85.179/RJ59, de lavra do então presidente doSTF, Bilac Pinto60, o marco com que a CorteConstitucional se aproximou de uma maiorelaboração sobre a questão do juízo de ponde-ração necessário entre os princípios da legali-dade do ato administrativo e da segurançajurídica stricto sensu. Deixou-se de lado umajá ultrapassada autoridade da liminar e deu-sevalor essencial à inércia da AdministraçãoPública a justificar a sanatória do ato inquina-do de vício de ilegalidade e dando-lhe prece-dência tal a levar ao não-conhecimento doreferido recurso.

No caso de anulação pela própria adminis-tração, a questão parece não mais comportarqualquer controvérsia, havendo, inclusive, umprojeto de lei, de tramitação recente, que esta-belece o prazo de decadência de cinco anos paraargüição de invalidade de um ato da adminis-tração do qual decorra algum efeito favorávelao seu destinatário, findo o qual impõe-se aconvalidação do ato. Erige, ainda, a segurançajurídica como princípio norteador da Adminis-tração Pública e veda a aplicação retroativa denova interpretação61.

Quanto à anulação decretada pela vialegislativa, é evidente que os mesmos princípiosque se aplicam a obstaculizar a máquina admi-nistrativa também se impõem, com maior rigor,à proteção do caso concreto pela via jurisdi-cional. A questão que ainda pode suscitaralguma dúvida está relacionada à ilegalidadesuperveniente do ato, que pode ser respondidana inexistência de solução à pergunta seguinte:se o ato originariamente viciado sobrevive, porque haveria de ter um tratamento inferiorizadoaquele que ainda gozou de um período, cujapersistência temporal é ainda mais qualificadapela legalidade manifesta? Foi nessa linha deraciocínio que o Tribunal de Contas da União,em súmula sua62 e, mais recentemente, emdecisão referente à questão da acumulação devencimentos de cargo efetivo com proventos deaposentadoria63, deu valor aos critérios inter-pretativos anteriores para salvaguardar casosque teriam sobre si a ameaça de nulidade pelasimples modificação do entendimento predo-minante sobre determinado tema. E, nestasituação específica, a justificação se amplia,pois, em casos de mudança de entendimento,muitas vezes, a legalidade embasadora do atoe potencializadora da justificativa ou força dasituação constituída tem por co-partícipes outro,ou os outros entes do Estado.

4. ConclusãoAs ponderações até aqui externadas estão

diretamente relacionadas com um tema que dizrespeito à questão da vivência do direito, àpreocupação que ocupa lugar de relevo nasdiscussões sobre o abuso da legalidade, de umlado, e os imperativos de justiça, de outro. Emoutras palavras, reflete a tentativa constante darealização de um juízo de ponderação entredois princípios basilares do sistema jurídico, asaber, o princípio da segurança jurídica e o dalegalidade. Não se referiu, entretanto, à

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conceituação ampla dos mesmos, mas somenteàquela relativa ao sentimento intrínseco a todoser humano, que decorre diretamente do senti-mento de autoconservação do homem, de poderpautar sua conduta com base em disposiçõesnormativas diretivas, sentimento esse que tevecomo auge o processo de Codificação dosséculos XVIII e XIX, originário, em suaessência primeira justificadora, de um jusna-turalismo racionalista, que lutava por um direitonão-dúbio, certo e seguro, contrário ao direitodisseminado em fontes de qualificação jurídicade então. Essa concepção ampla de segurançajurídica é anterior e não entra em choque, pelocontrário, coaduna-se com o princípio da lega-lidade.

A concepção de segurança jurídica expressano presente estudo é reflexo de um seu aspectomais restrito de garantia da boa-fé ou confiançado particular frente aos atos emanados do PoderPúblico, o que os alemães, desde há muitotempo, chamavam Treu und Glaube (lealdadee confiança). A necessidade da manutençãodessa confiança do administrado na legalidadedos atos emanados pelo Poder Público fornecea importância de um aspecto da segurançajurídica evidenciado na preservação de um ato,mesmo que originalmente viciado de ilegali-dade, preservação essa em respeito à inérciadaquele Poder.

Surge, então, um segundo elemento, que,somado à boa-fé, impõe a convalidação do atonulo, qual seja, o do transcurso razoável detempo. Já dizia Bobbio que o tempo sana asferidas da história, e é com base nisso que asegurança jurídica, a despeito da legalidadeestrita, triunfa para salvaguardar os atos admi-nistrativos eivados de vícios, vícios essesoriginais ou adquiridos posteriormente, e quese consolidaram em uma sua perpetuaçãotemporal pacífica.

Preenchidas as condições de boa-fé doparticular e do razoável transcurso de tempo,torna-se imperativa a preservação do atoadministrativo para salvaguarda da segurançajurídica. Intenta-se, pois, um esforço, nuncademais, de relembrar que, no direito, a apli-cação rígida de um princípio, muitas vezes, levaa injustiças, e que, nos casos de complacênci,ado Poder Público, ou mesmo de entendimentoseu modificado, há outro princípio a ser levadoem conta para que não persista a injustiça emnome de uma pretensa legalidade. Tal princípioé a manifestação concreta da segurança jurídica,razão fundamental do direito, que, sem

desprezo do perigo de supervalorização da auto-afirmação64, detém seu significado em preser-var, manter, salvar, dar sobrevida àquilo quese perpetuou no tempo pelo simples fato deste,auxiliado pela inexigibilidade de comportamentodiverso – boa-fé –, galgar posição digna deproteção jurídica. O problema tem sua signifi-cação mais profunda nas questões de MauriceHauriou:

“Mas será que o poder de desfazi-mento ou de anulação poderá exercer-seindefinidamente e em qualquer época?Será que jamais as situações criadas pordecisões desse gênero se tornarão está-veis? Quantos perigos para a segurançadas relações sociais encerram essaspossibilidades indefinidas de revogação(....)?”65.

É pensando nessas questões angustiantesque vale a pena debruçar-se, com maior cuidadoe respeito, sobre as situações de fato que,evoluindo com o sistema jurídico, integraramsua própria razão de ser.

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Notas de rodapé

1 A análise da teoria do ordenamento jurídicocomo uma inovação do juspositivismo e a Codifi-cação como seu elemento possibilitador tem emBobbio uma excelente abordagem, nos seus livrosO Positivismo Jurídico e Teoria do OrdenamentoJurídico. Cf. BOBBIO, Norberto. O positivismojurídico. São Paulo : Ícone, 1995. p.53-62, 109-127,197-210 : Lições de Filosofia do Direito. Compiladaspelo Dr. Nello Morra; Tradução de Márcio Pugliesi,Edson Bini e Carlos E. Rodrigues; Idem. Teoria doordenamento jurídico. Tradução de Maria CelesteCordeiro Leite dos Santos. 7. ed. Brasília : Ed.Universidade de Brasília, 1996. Tradução de : Teoriadell’ordinamento giuridico. A conexão entre ostemas da segurança jurídica e do ordenamento jurí-dico completa-se pela explícita postura dos juristasdos séculos anteriores à Codificação, que concor-davam unanimemente na necessidade de se resta-belecer uma ordem que tornasse possível às pessoasdimensionarem seus comportamentos de acordo comum direito certo. Clamava-se por um ambiente desegurança jurídica, como bem demonstra Savigny,mesmo opondo-se à Codificação, muito emboraassim tenha feito por força das condições peculiaresde desagregação dos principados da Alemanha deentão e em face do iminente fracionamento da naçãocaso a codificação, que envolvia somente algunsdeles, se concretizasse. Savigny, pois, com a autori-dade do maior crítico da Codificação na Alemanha,demonstra o ponto comum orientador de teorias queprimavam por fornecer um aparato mais perfeito àsingerências de arbitrariedade (leia-se: insegurança).Um trecho esclarecedor de seu posicionamento: “Encuanto al fin, estamos de acuerdo [ele e os fautososda Codificação]: queremos la fundación de underecho no dudoso, seguro contra las usurpaciones

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de la arbitrariedad y los asaltos de la injusticia;este derecho ha de ser común para toda la nación yhan de concentrarse en él todos los esfuerzos cientí-ficos. Para este fin desean ellos un Código, con elcual sólo una mitad de Alemania alcanzaría laanhelada unidad, mientras la otra mitad quedaríaaún más separada. Por mi parte, veo el verdaderomedio una organización progresiva de la ciencia delDerecho, la cual puede ser común a toda la nación”grifos nossos. (SAVIGNY, Friedrich Karl von. Dela vocación de nuestro siglo para la legislación yla ciencia del derecho. Traducción de Adolfo Posada.Buenos Aires : Atalaya, 1946. p.171). Logo, adespeito das diferenças de opinião quanto à neces-sidade ou não da Codificação, que hoje já é integradaao pensamento jurídico, sobrevivia a tentativa deorientação do sistema jurídico à conformação de umasegurança jurídica mais palpável.

2 Uma análise precisa das correntes jusnatura-listas tem-se no livro de um catedrático da Univer-sidade de Valência: cf. GRAU, Jose Corts. Curso deDerecho Natural. Madrid : Ed. Nacional, 1953.Quanto ao embate das correntes jusnaturalistas ejuspositivistas, há um estudo completo de inegávelclaridade: cf. BOBBIO, Norberto. Giusnaturalismoe positivismo giuridico. 2. ed. Milano : Ed. diComunità, 1972. Finalmente, para uma análiseprecisa e sucinta dos jusnaturalismos de nossostempos e de suas características fundamentais: cf.RECASENS SICHES, Luis. Iusnaturalismosactuales comparados. Madrid : Universidad deMadrid, 1970. Curso ministrado na Faculdade deDireito da Universidade de Madrid, dezembro de1969.

3 A exposição da evolução histórica e do método,teorias e ideologia juspositivistas encontra-se emuma obra de Bobbio, de clareza de exposiçãoinegável: cf. BOBBIO, op. cit.

4 O tema do pluralismo das fontes do direito temna polêmica entre Thon e Rudolf von Ihering, sobrea “exclusividade estatal do direito”, um marcohistórico e é trazido à discussão ativa, em sede deteoria geral do direito, por Santi Romano. Cf.ROMANO, Santi. El ordenamiento jurídico.Traducción de Sebastián Martin-Retortillo &Lorenzo Martin-Retortillo. Madrid : Instituto deEstudios Políticos, 1963. 2ª parte. Tradução de :L’ordinamento giuridico. Assim, salienta Thon, empassagem que aqui se traduz: “Isto conduz ao terceiroe mais importante ponto. A divergência de opiniõesneste ponto é tão grande, que se pode aqui somentechamar a ela a atenção, mas não a expor minuciosa-mente. Ihering enxerga a essência do direito nacoação (p. 318). E, sendo o Estado ‘o único titulardo poder coativo da sociedade’, ele passa a serconsiderado como ‘a única fonte de direito’ (p.316,317). (....) (§) Pelo contrário, cada norma, que sejaconsiderada por uma sociedade humana comoobrigatória pelo comportamento recíproco dosconsociados, aparenta, antes de tudo, para mim, uma

norma jurídica e o Estado, por conseguinte, não é oúnico criador do direito”. THON, August. Rechts-norm und subjektives Recht : Untersuchungen zurallgemeinen Rechtslehre. Neudruck der AusgabeWeimar. Stuttgart : Scientia Verlag AALEN, 1964.p. 10-11.

5 Sobre a constatação da ausência de parâmetrosseguros de orientação ou de previsão das decisõesconstitucionais, especificamente da Corte Constitu-cional norte-americana, mas extensível facilmenteao nosso sistema como um todo: cf. CARTER, LiefH. Derecho constitucional contemporáneo : laSuprema Corte y el arte de la política. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1985. Tradução de : Contemporaryconstitutional lawmaking. Também, sobre apolêmica entre interpretativismo e não-interpretati-vismo na doutrina norte-americana, como centradano ideal de segurança jurídica: cf. WECHSLER,Herbert. Principles, politics, and fundamental law :selected essays. Cambridge : Harvard University,1961 : Towards Neutral Principles of ConstitutionalLaw.

6 Vide, a propósito, o trecho transcrito nestetrabalho (nota 17) a respeito do indicativo de DelVecchio para a determinação dos valores próprios àdistinção, na transformação do direito, entre aevolução e a involução do mesmo.

7 A importância de tal delimitação da evoluçãojurídica revela-se na eleição do ponto central dosistema autopoiético como sendo a conjugação entrea transformação do sistema jurídico e sua limitação.Revela a eterna tentativa de se compatibilizaremmobilidade do sistema jurídico e segurança ouprevisibilidade da mesma. Cf. TEUBNER, Gunther.O direito como sistema autopoiético. Tradução deJosé Engrácia Antunes. Lisboa : Fundação CalousteGulbenkian, 1993. Especialmente p.112 e seg.Tradução de: Recht als autopoietisches System.

8 A vontade de Constituição de que fala KonradHesse tem como um de seus pilares a necessidade ea constatação do valor de uma ordem normativainquebrantável, o que implica necessariamente aconfiguração do ideal de segurança jurídica. HESSE,Konrad. A força normativa da Constituição.Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre :S.A. Fabris, 1991 : especialmente p. 19. Traduçãode : Die normative kraft der verfassung. LASSALE,Ferdinand. A essência da Constituição. Traduçãode Walter Stönner. 2. ed. Rio de Janeiro : Liber Juris,1988. Tradução de: Über die verfassung.

9 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Cons-titucional. 4. ed. São Paulo : Malheiros, 1993. p.75-119.

10 Sobre a natureza necessariamente mutável dodireito: “Advirta-se também que, como já foi notadopelos pensadores antigos e melhor demonstrado pelaciência moderna, a variabilidade do direito positivoé uma conseqüência necessária da sua conexão comoutros fatos sociais. Impossível é estudar o direitopositivo de certo povo, em certo momento, prescin-

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dindo de atender às condições de vida; a gênese e aduração de cada instituto jurídico estão vinculadasa determinadas condições. Se estas se modificam,terá o direito positivo de se modificar também. Este,por conseguinte, não é apenas mutável, mas neces-sariamente mutável: acha-se sujeito à lei da relati-vidade histórica.” grifos nossos. (DEL VECCHIO,Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Traduçãode António José Brandão. Coimbra : A. Amado,1959. p. 53).

11 Idem. Evoluzione ed involuzione nel diritto.3. ed. Roma : Studium Urbis, 1945.

12 Nesse sentido, salienta Del Vecchio: “Maquesti due significati sembrano, in realtà, troppovaghi e indeterminati, e restano propriamente fuoridel concetto di evoluzione, che significa qualche cosadi più, per esempio, dell’ ‘eterno divenire’ diEraclito” (Ibidem, p. 10).

13 Eis o raciocínio então apresentado: “Noiconcepiamo uno svolgimento ovvero un processo diformazione, solo quando intendiamo le diverse partiche si succedono come costituenti un sol tutto (terzoconcetto del Rickert). Ma l’unità del processo, inrelazione al tutto, implica una direzione verso unfine (quarto concetto). In relazione al fine si costi-tuisce allora una scala di valori, vale a dire unapprezzamento dei differenti stadi (quinto concetto,che però, secondo il Rickert, oltrepassa già il compitopuramente scientifico della storia). La serie ascen-dente dei valori, che si succedono necessariamentenel tempo, dà luogo all’idea del progresso (sestoconcetto)” (Ibidem).

14 Ibidem, p. 17-21 e 29.15 Ibidem, p. 24, onde se encontra esta passagem

esclarecedora: “il diritto accompagna sempre enecessariamente così l’ascendere dello spirito, comeil sua decadere, nelle sue manifestazioni sociali.Tutte le aspirazioni, tutte le concezioni, tutte lepassioni umane, in quanto dotate di una certa storicaconsistenza, si sono fatte valere nella forma deldiritto; e poichè non è dubbio che, quantunque inguise diverse, i medesimi sentimenti e le medesimepassioni risorgono di continuo nella psiche umana,è sempre possibile (come di fatto vediamo) ilformarsi di leggi corrispondenti ai più vari statidell’animo, compresi quelli che si considerano proprie caratteristici di età sorpassate”.

16 Corroborando com a idéia de que não se podefalar de um progresso uniforme e constante dodireito, acena Del Vecchio, com o seguinte esclare-cimento: “Presso ogni popolo, inoltre, e in ciascunodegl’istituti che ne compongono il sistema regola-tore, i movimenti di sviluppo o di evoluzione sialternano con altri di regresso o di involuzione; ciòche complica ancora, e confonde in modo pressochèinestricabile, le linee del quadro che dovrebberappresentare in modo unitario la vita del genereumano. Parlare, in queste condizioni, genericamentedi progresso, come se questo esprimesse una realtà

costante e uniforme, è talmente in contrasto concertissimi dati dell’esperienza, da ben meritare lenumerose critiche di moderni studiosi, non che ladolorosa ironia del Leopardi nel famoso passo dellaGinestra” (DEL VECCHIO, Giorgio. op. cit., p. 41-42).

17 Ibidem, p.53-58. À página 54: “(....) il criteriosupremo dei valori giuridici, come di quelli morali,deve cercarsi e trovarsi nella stessa natura umana,universalmente considerata. In essa hanno radicequelle esigenze fondamentali ed inabolibili, che aldiritto spetta di armonizzare.” grifos nossos.

18 Para uma defesa autorizada da segurançajurídica como valor: PEREZ LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica. Barcelona :Ariel, 1991. p.68-107.

19 DEL VECCHIO. op.cit., p.63: tradução: “oretrocesso ou a involução jamais serão a últimapalavra, enquanto existir um espírito humano, capaz,por sua natureza, do infinito”.

20 LUHMANN, Niklas. Legitimação peloprocedimento. Tradução de Maria da ConceiçãoCôrte-Real. Brasília : Ed. Universidade de Brasília,1980. p.146. Tradução de : Legitimation durchVerfahren.

21 A este respeito, transcreve-se a seguintepassagem esclarecedora: “Cada vez que se altera osistema relacional estrito do processo, muda-se otema, apresentam-se novos documentos, outros seconvertem em oradores proeminentes ou adquiremuma relevância de fundo, reagrupam-se adversáriosou partidários, torna-se relevante uma outra históriaprévia e a retórica tem de ser adaptada a um outropúblico. Cada processo legislativo constitui umsistema em si.” (Ibidem).

22 Ibidem, p. 147.23 A função exercida por tais estruturas simpli-

ficativas está na criação da possibilidade de umasíntese em meio a um mar de relações, que, levadastodas em conta, procrastinariam o processo legisla-tivo além do limite temporal tolerável. Assim, paraLuhmann, aquelas estruturas simplificativas figuramcomo meios de redução de complexidade do sistema,que servem “especificamente para reduzir a indefi-nição e a falta de clareza duma situação de decisãoextremamente rica em relações, de tal forma que setornem possíveis expectativas complementares euma orientação adequada dos participantes. Osmodelos de debate interminável, ou da concorrênciaindependente do representante único do povo,refletem a complexidade da sua situação, mas nãomostram qual a forma de a dominar. Isto é realiza-do por inúmeros mecanismos auxiliares, necessáriosao funcionamento, mas de caráter acessório, ou atémesmo divergente, comparado com os objetivosoficiais da instituição. Apresentam-se comoexemplo: a separação entre concorrência e coope-ração; a personalização informal das relações detrabalho; a confiança nas apresentações; “a recepção

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de informações reduzidas do meio exterior; estraté-gias minimizantes de burocracia; a troca entresituações públicas e não-públicas; e a importânciado poder executivo e das comissões.” – grifos nossos(Ibidem, p. 152).

24 Exemplo de estrutura simplificativa queexpressa limitações da conduta dos inseridos nosistema está no que Luhmann chama de sistemasinformais de contato, os quais se traduzem nas “boasrelações pessoais, relações de confiança ou descon-fiança, diferenças de ponto de vista e força de irra-diação de personalidades isoladas” (Ibidem, p. 153).

25 Entre aqueles setores, estão: autoridadespartidárias locais; consórcios de interesses; a própriaciência; os conhecimentos ocasionais; a imprensa.(Ibidem, p. 154).

26 Aqui se encontra uma questão de grande atua-lidade no nosso sistema e diz respeito à utilizaçãodos chamados pacotes, por parte do Poder Executivo.Já na década de 60, Luhmann tinha perfeita noçãoda importância destes. A utilização de tais pacotesamplia, ainda mais, a capacidade diretiva da políticapelo órgão administrativo. “A eliminação prematurade alternativas no estado de pré-expectativas dumprojeto de lei serve a um objetivo semelhante[estratégia burocrática de minimização dos riscosde um processo legislativo]. Juntar diversos projetosde lei num “pacote” constitui uma estratégia nova ede grande futuro, que restringe a variabilidade deprojetos.” (Ibidem, p. 154-155).

27 Nesse sentido, esta passagem fundamental:“As sessões públicas plenárias do parlamentoconservam inteiramente uma função essencial,embora as decisões próprias se afastem delas. Essafunção não reside na transmissão da verdade, massim na apresentação do conflito político com a ajudade argumentos e motivos da decisão, com os quaisse identificam posições políticas controversas.”– grifos nossos (Ibidem).

28 “Ignorância e apatia são, todavia, as condiçõesprévias mais importantes para um intercâmbiodespercebido dos parágrafos, para a variabilidadedo direito e, nessa medida, funcional para o sistema”(Ibidem, p. 156).

29 Ibidem, p. 159.30 A estabilidade dos direitos subjetivos perma-

nece, nos manuais de direito, como adstrita aos temasdo direito adquirido e do ato jurídico perfeito porforça da concretização histórica e da delimitação deseus conceitos. Mas tais institutos jurídicos hauremsua existência como condições específicas do valormaior da segurança jurídica. “Uma importantecondição da segurança jurídica está na relativacerteza que os indivíduos têm de que as relaçõesrealizadas sob o império de uma norma devemperdurar ainda quando tal norma seja substituída”(SILVA, José Afonso de. Curso de direito constitu-cional positivo. 9. ed. São Paulo : Malheiros, 1993.p. 378).

31 Para Luhmann, a importância da segurançajurídica está na própria identificação das funçõesque o direito cumpre na sociedade: “Con respecto ala sociedad como un todo, el derecho cumplefunciones comprensivas de generalización y estabi-lización de expectativas de conducta” (LUHMANN,Niklas. Sistema juridico y dogmatica juridica.Traducción de Ignacio de Otto Pardo. Madrid :Centro de Estudios Constitucionales, 1983. p.45.Tradução de : Rechtssystem und Rechtsdogmatik)pois, do contrário, transportar-se-ia para o ilícitoquem estivesse de acordo com o lícito e para o lícitoquem antes encontrava-se no ilícito.

32 A preordenância de valores fundantes doordenamento jurídico a conformar as decisõespolíticas tem uma abordagem precisa por MiguelReale: “Essencial é reconhecer, por outro lado, que,se a experiência jurídica não prescinde do poder, oshomens se tornam cada vez mais conscientes dosriscos que ele comporta, sendo legítimo o sistemade precauções tendente a evitar abusos e desvios deautoridade. Uma das principais formas de segurocontra os desmandos do poder consiste em nãoacolher as suas opções normativas como atosisolados, mas sim como elos ou momentos, cujosignificado é inseparável do sentido geral do orde-namento. Não raro esse enquadramento normativobasta, por si só, para aparar arestas vivas, neutralizarexcessos, acomodar gritantes irregularidades, coma recondução do preceito excepcional ao leito normaldas soluções normativas regulares, graças ao finolavor da exegese construtiva e sistemática. Aoreceber-se, pois, o dogma legal, não como umconteúdo ordenado e rígido, mas como um sentidode ação que objetivamente deve ser valorado econcretamente experienciado, pode-se dizer que opoder queda, de certa forma, envolvido pela normaque ele acaba de positivar: no instante mesmo emque, graças à interferência do poder, dá-se a objeti-vação de uma regra de direito, esta se insere nocontexto normativo já vigente, subordinando-se auma totalidade de sentido que a transcende”(REALE, Miguel. O Direito como experiência :introdução à epistemologia jurídica. São Paulo :Saraiva, 1968. p.134).

33 O que caracteriza e valoriza a contribuição deEdmund Burke, filósofo inglês do final do séculoXVIII, está na percepção amadurecida dos aconte-cimentos históricos de sua época, que indicavam atendência ao desprezo das contribuições passadasquando da ruptura de um sistema qualquer. Há, emBurke, sempre algo de transcendente às transfor-mações específicas dos povos, que deve ser identi-ficado nas instituições consagradas e mantido porforça de uma prudência em sua atualização. Aevolução somente faz jus ao nome quando a ela nãose agrega o qualificativo de abrupta. As transfor-mações são melhor assimiladas se se concretizaremde forma lenta e progressiva. (BURKE, Edmund.Edmund Burke : selected works. New York : ModernLibrary, 1960. Também: STANLIS, Peter J. Edmund

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Burke and the Natural Law. New York : Vail-BallouPress, 1958.)

34 Edmund Burke, ao rebater o sentimento derenovação exacerbada dos revolucionários franceses,demonstra o cerne das preocupações que orientamuma necessária prudência na atividade modificativade um estado de coisas: “Your literary men, and yourpoliticians, and so do the whole clan of theenlightened among us, essentially differ in thesepoints. They have no respect for the wisdom ofothers; but they pay it off by a very full measure ofconfidence in their own. With them it is a sufficientmotive to destroy an old scheme of things, becauseit is an old one. As to the new, they are in no sort offear with regard to the duration of a building run upin haste; because duration is no object to those whothink little or nothing has been done before theirtime, and who place all their hopes in discovery.They conceive, very systematically, that all thingswhich give perpetuity are mischevous, and thereforethey are at inexpiable war with all establishments.They think that government may vary like modes ofdress, and with as little ill effect: that there needsno principle of attachment, except a sense of presentconveniency, to any constitution of the state.” – grifosnossos. (BURKE, op. cit. p. 397-398).

35 Entender quão delicado é o tema da transfor-mação é um dos esforços primeiros de Burke, em suapolêmica com os filósofos franceses revolucionários.Na seguinte passagem, o autor sintetiza bem este ideal,que diz respeito diretamente ao valor fundamental dadignidade humana: “If circumspection and caution area part of wisdom, when we work only upon inanimatematter, surely they become a part of duty too, whenthe subject of our demolition and construction isnot brick and timber, but sentient beings, by thesudden alteration of whose state, condition, andhabits, multitudes may be rendered miserable.”– grifos nossos. (Ibidem, p. 412-413).

36 Considerando os reflexos das transformaçõesque afetam a esfera individual, Burke chama aatenção para o efeito devastador da ausência deproteção daquela frente às opções políticas: “Themoment you abate anything from the full rights ofmen, each to govern himself, and suffer any artificial,positive limitation upon those rights, from thatmoment the whole organization of governmentbecomes a consideration of convenience” (Ibidem,p. 371).

37 Transcreve-se o trecho pertinente: “Desse fato[de objetivação histórica] resulta que, quando ohomem tipifica determinadas formas de conduta econcretiza aspirações e interesses em determinadoinstituto jurídico, há sempre dois aspectos aexaminar: um objetivo, relacionado com a validezadquirida pela ‘realidade jurídica’ em si (o que ex-plica o caráter eminente e coercitivo, ou a pressãosocial das estruturas normativas), e um outrosubjetivo, pertinente à situação dos homens que seinserem no âmbito da referida objetividade, conser-

vando e buscando salvaguardar o seu ser próprio,isto é, a sua irrenunciável capacidade de liberdadee de síntese.”: texto contido no prefácio do livro deTheophilo Cavalcanti Filho, intitulado O problemada segurança no direito, na página 4, citado nabibliografia final.

38 Sobre a complementariedade ou polaridade,que orienta a evolução histórica, vide: REALE,Miguel. Pluralismo e liberdade. São Paulo : Saraiva,1963. Especialmente p. 220 e seg.

39 Idem. Revogação e anulamento do ato admi-nistrativo. Rio de Janeiro : Forense, 1980. p. 68.

40 Conforme o trecho seguinte: “A idéia derecorrer à doutrina civilista da ‘prescrição aquisitiva’[referente à prescrição aquisitiva de direitos subje-tivos de que fala Dupeyroux] é engenhosa, masrevela ainda certo apego a critérios privatísticos,sendo preferível reconhecer, pura e simplesmente,que o problema da sanatória ou convalidação dosatos nulos se coloca em termos menos rígidos natela do Direito Administrativo, não por desamor oumenosprezo à lei, mas por ser impossível desco-nhecer o valor adquirido por certas situações defato constituídas sem dolo, mas eivadas de infra-ções legais a seu tempo não percebidas ou decre-tadas.” – grifos nossos. (Ibidem, p. 69).

41 “Às vezes é a própria lei que prevê a sanatóriado ato radicalmente nulo pelo simples decurso dotempo. No Direito Privado, consoante o art. 148 doCódigo Civil, só o ato anulável pode ser ratificadopelas partes, salvo direito de terceiro: (....). Aexigência de conservação do valores no mundo doDireito, mediante a conversão ou a sanatória, tem,pois, limites mais restritos no Direito Privado”.(Ibidem, p. 68).

42 “O disposto no art. 208 [do Código Civil, queestabelece um prazo de prescrição da pretensão dedeclaração da nulidade do casamento nulo] refere-se,por sinal, a aspecto que merece mais cuidadosa aná-lise, que é o do decurso de certo tempo a partir doato eivado de nulidade. (§) Se, no campo do DireitoPrivado, o visceralmente nulo jamais pode ser sanadoou produzir efeitos válidos, na esfera do DireitoAdministrativo a questão se põe com menosrigorismo formal, em virtude da preeminência dointeresse público.” (Ibidem).

43 Ibidem, p. 70.44 Reale vai buscar na jurisprudência do sistema

do contencioso administrativo francês a justificaçãode seu posicionamento: “A solução do Conselho deEstado consiste, em suma, em admitir, de um lado,que nenhum direito subjetivo pode, em princípio,nascer de uma decisão irregular da Administração,mas, de outro lado, que o decurso de certo tempocria uma confiança legítima no espírito dos particu-lares e transforma uma situação de fato em situaçãojurídica, em direito subjetivo. Haveria, desse modo,uma espécie de prescrição aquisitiva de um direito

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subjetivo à manutenção do ato.” (DUPEYROUX apudREALE, p. 69). Remete-se, aqui, à nota 61, p. 19.

45 Uma decisão é tida por tardia “quando a inérciada Administração já permitiu se constituíssemsituações de fato revestidas de forte aparência delegalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos aconvicção de sua legitimidade” (REALE, op. cit.,p. 71).

46 A delimitação do prazo para a determinaçãoda sanatória, ou prescrição histórica, não pode serabstratamente precisada, carecendo da análise dassituações concretas e de suas vicissitudes. “Problemaconexo é saber-se que se deverá entender por prazorazoável, no silêncio da lei própria, mas a questãonão me parece possa ser resolvida em abstrato. Asolução dependerá das peculiaridades de cada caso,das circunstâncias condicionadoras do ato irregulare de seu reexame (....)” (p. 72). “(....) parece-meperigosa qualquer rígida fixação de prazo. Trata-se,com efeito, de matéria que se deve conter dentrodos critérios da prudência e da eqüidade, que devemnortear as decisões da autoridade administrativa eas da Justiça” (Ibidem, p. 73).

47 Transcreve-se o trecho esclarecedor: “A essesdois últimos elementos ou princípios – legalidadeda Administração Pública e proteção da confiançaou da boa-fé dos administrados – ligam-se, respec-tivamente, a presunção ou aparência de legalidadeque têm os atos administrativos e a necessidade deque sejam os particulares defendidos, em determi-nadas circunstâncias, contra a fria e mecânica apli-cação da lei, com o conseqüente anulamento deprovidências do Poder Público que geraram bene-fícios e vantagens, há muito incorporados ao patri-mônio dos administrados.” (SILVA, Almiro do Coutoe. Princípios da legalidade da administração públicae da segurança jurídica no Estado de Direitocontemporâneo. Revista de Direito Público, n. 84,p. 46. out./dez. 1987).

48 Almiro do Couto e Silva explica, a esterespeito, que se corre “o risco de agir [em certassituações] injustamente ao cuidar de fazer justiça.Nisso não há nada de paradoxal. A tolerada perma-nência do injusto ou do ilegal pode dar causa asituações que, por arraigadas e consolidadas, seriainíquo desconstituir, só pela lembrança ou pelainvocação da injustiça ou da ilegalidade originária.(....). Na verdade, quando se diz que em deter-minadas circunstâncias a segurança jurídica devepreponderar sobre a justiça, o que se está afirmando,a rigor, é que o princípio da segurança jurídicapassou a exprimir, naquele caso, diante das pecu-liaridades da situação concreta, a justiça material.”(Ibidem, p. 47).

49 Ibidem.50 Ibidem, p. 55, em que transcreve um trecho

elucidador de Walter Jellinek divisando, na condutade revogação de uma situação, que se compadecede vício originário uma atitude contrária à boa-fé,

por estar o Poder Público a se valer de uma irregu-laridade longamente tolerada.

51 Ibidem, p. 56.52 Almiro Couto e Silva cita trechos significativos

de Umberto Fragola e Aldo Sanulli: “na falta de umprevalente interesse público, ainda atual, é melhormanter vivo um ato irregular do que anulá-lo,desconsiderando, sem razões plausíveis, situaçõesconsolidadas no tempo, interesses particulares e, porvezes, o próprio interesse público”. (FRAGOLA,apud SILVA, p. 57); “(....) na aplicação do princípioda necessidade de certeza das situações jurídicas,admite-se – seja na doutrina, seja na jurispru-dência – que não são mais anuláveis os atos que,embora inválidos, hajam irradiado incontestada-mente os seus efeitos por um período de tempoadequadamente longo, o que é de ponderar-se casoa caso e em correlação com o interesse público”.(SANDULLI, apud SILVA).

53 SILVA, op. cit., p. 60-61.54 Sobre a questão do funcionário de fato, vide:

CABRAL, Armando Henrique Dias. Naturezajurídica do vínculo do funcionário de fato. RPGE11(31), Porto Alegre, 1981, p. 87-98; BARROSJÚNIOR, Carlos S. de. Teoria jurídica do funcionáriode fato. Revista de Direito Administrativo. Rio deJaneiro, v.100, p. 51-58. abr./jun., 1970; CRUZ, J.Santos. O juiz na teoria do funcionário de fato.Revista de Processo, v.47, p. 227-238, 1987; JEZE,Gaston. Principios generales del Derecho Adminis-trativo. Buenos Aires : Depalma, 1949. p. 137.

55 Aulis Aarnio aponta a diretiva orientadora docomportamento dos tribunais como aquela idônea apossibilitar ao indivíduo uma organização de suavida frente à previsilidade dos acontecimentos. Eiso trecho pertinente: “(....) los tribunales tienen quecomportarse de manera tal que los ciudadanospuedan planificar su propia actividad sobre basesracionales” (AARNIO, Aulis. Lo racional comorazonable. Madrid: Centro de Estudios Constitu-cionales, 1991. p. 26).

56 Súmula 346: “A Administração Pública podedeclarar a nulidade de seus próprios atos”; Súmula473: “A administração pode anular seus própriosatos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais,porque deles não se originam direitos, ou revogá-los,por motivo de conveniência ou oportunidade,respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, emtodos os casos, a apreciação judicial”.

57 São elas, em ordem cronológica: Recursoordinário em mandado de segurança nº 14.040/BA –Relator Ministro Evandro Lins e Silva, Recorrente:Divaldo Passos Rodrigues, Recorrida: UniãoFederal, Sessão Plenária de 13 de abril de 1965;Recurso extraordinário nº 55.476/RJ – RelatorMinistro Evandro Lins e Silva, Recorrente: UniãoFederal, Recorrido: Mário Braune, Sessão Plenáriade 3 de junho de 1965; Recurso em mandado desegurança nº 13.807/GB – Relator para o acórdão:

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Ministro Prado Kelly, Recorrente: Regina HeloisaFernandes Granha, Recorrida: União Federal,Terceira Turma, em 3 de março de 1966 (RTJ 37/248); Recurso em mandado de segurança nº 17.144/GB – Relator: Ministro A. C. Lafayette de Andrada,Recorrente: Afonso Ferrucio Veloso e outros,Recorrida: Universidade do Brasil, Primeira Turma,em 10 de outubro de 1966 (RTJ 45/589).

58 O entendimento de ser a medida liminar algoque transcendesse a própria decisão de mérito, e que,assim, pudesse ser justificativa, por si só, à manu-tenção de uma situação ilegal, significava inverteros termos da operação lógica. É a situação de fatodotada de caracteres especiais que induz à convali-dação do ato nulo. A propósito, prova da fatalsucumbência do argumento fulcrado somente sobrea autoridade da concessão de liminar está no trata-mento, ainda que incidental, do tema no recursoextraordinário nº 29.122, de 28 de novembro de1955, relatado por Nelson Hungria, e respectivosembargos, de 7 de janeiro de 1959. Não é e nãopode ser a liminar a que dá valor ao tempo transcor-rido, mas ela tem o condão, entretanto, de evidenciara legitimidade e corretude do lapso concretamenteverificado. Afigura-se, pois, elemento que inverte oônus da prova, prescindindo da perquirição sobre apresença de dolo na procrastinação temporal. Elaserve, assim, como prova prévia, mas não determina,por si só, um elemento anterior à necessária manu-tenção da situação consolidada. Esta última hauresua força da sua própria constatação fática, que,associada ao elemento de boa-fé – que não tem porpressuposto essencial uma anterior liminarconcedida –, obriga a incidência da proteção dasegurança jurídica pela simples constatação de umainércia institucional. A referência dos acórdãoscitados neste mesmo parágrafo à força da liminaranteriormente concedida não é o argumento últimode peso, pois há algo de maior valor por detrás dosposicionamentos particulares: este algo é a segurançajurídica em sentido estrito.

59 Texto integral contido na Revista Trimestralde Jurisprudência, n. 83, p. 921-924.

60 Note-se que, embora a ementa do acórdãoreferido estivesse indicando a liminar como fatordecisivo no posicionamento de manutenção dasituação de fato consolidada, a leitura mais atentado conteúdo do acórdão esclarece a diferençaessencial entre o RE 85.179/RJ e as decisões doSupremo anteriores a esta, que trataram de questõessemelhantes. Além disso, atente-se que o fato abor-dado por aquele recurso extraordinário detinha aparticularidade de que a Administração Públicaprolongara por demais a aplicação de uma decisãojudicial de anulação de um concurso público, masesta particularidade não teve outra influência senãoa de facilitar a comprovação da inércia do PoderPúblico, fato este bastante para implicar validade a

estados de fatos consolidados pelo tempo. Logo, ainércia especial da Administração Pública no leadingcase sobre o assunto da convalidação do ato nulo émeramente acidental, podendo-se, tranqüilamenteafirmar sua pertinência para casos semelhantes derazoável transcurso de tempo in albis, independen-temente da existência de decisões judiciais de refe-rência aos fatos em causa.

61 Está-se a referir ao projeto de lei enviado peloExecutivo ao Congresso Nacional, mediante aMensagem nº 1.002, de 22 de oububro de 1996, queregula o processo administrativo no âmbito daAdministração Pública Federal, em que forampartícipes de sua elaboração: Caio Tácito (coorde-nação); Odete Medauar; Maria Silvia Zanella diPietro; Inocêncio Mártires Coelho; Diogo deFigueiredo Moreira Neto; Almiro do Couto e Silva;José Carlos Barbosa Moreira; Adilson de AbreuDallari; José Joaquim Calmon de Passos; PauloEduardo Garrido Modesto; e Carmem Lúcia AntunesRocha. “Art. 2º. A Administração Pública obede-cerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,finalidade, motivação, razoabilidade, proporciona-lidade, moralidade, ampla defesa, contraditório,segurança jurídica , impessoalidade e interessepúblico. Parágrafo único. Nos processos adminis-trativos serão observados, entre outros, os critériosde: (....) n) interpretação da norma administrativada forma que melhor garanta o atendimento do fimpúblico a que se dirige, vedada aplicação retroativade nova interpretação” . “Art.54. O direito daAdministração de anular os atos administrativos deque decorram efeitos favoráveis para os destinatáriosdecai em cinco anos, contados da data em que forampraticados, salvo comprovada má-fé. §1º. No casode efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de deca-dência contar-se-á da percepção do primeiropagamento” .

62 Trata-se da Súmula nº 105, com o seguinteteor: “A modificação da jurisprudência não alcançaaquelas situações constituídas à luz do critériointerpretativo anterior”.

63 Refere-se à Decisão plenária nº 819/96,tomada no dia 12 de dezembro de 1996, referenteao Processo nº TC-007.925/96-4, onde se externouuma resposta de caráter normativo, entendendo-seque a MP nº 1.522/96 e o Decreto nº 2.027/96, quea acompanha, somente se aplicam aos casos deservidores aposentados, reservistas ou reformados,que tenham empossado no novo cargo após otrânsito em julgado da decisão do STF no recursoextraordinário nº 163.204-6, de abril de 1996.Resguardaram-se, pois, as situações de fato jáconsolidadas sob o império da interpretação anterior.

64 CAVALCANTI, Theophilo. O problema dasegurança no direito. São Paulo : Revista dosTribunais, 1964. p. 51-62: especialmente p. 56, § 2º.

65 HAURIOU, apud SILVA, op. cit., p. 56).

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O processo de ocupação e dedesenvolvimento da AmazôniaA implementação de políticas públicas e seus efeitossobre o meio ambiente

JOSÉ MATIAS PEREIRA

SUMÁRIO

1. Introdução. A visão do ambiente macroeco-nômico. 2. Formulação e implementação de políticaspúblicas no Brasil. Ambiente institucional e consti-tucional. 3. Estudo de casos: os Projetos Integradosde Colonização e o Programa de Incentivos Fiscaispara a Amazônia. 4. Políticas públicas e o desem-penho dos projetos incentivados na Amazônia. 5.Conclusão.

1. Introdução. A visão do ambientemacroeconômico

Observadas sob determinados aspectos, astendências globais indicam que existem distor-ções relacionadas ao desenvolvimento e ao meioambiente no presente que irão se agravar nofuturo. Isso pode ser mensurado pelo cresci-mento da população mundial, pela sobrecargados sistemas de destinação final de resíduos,pelo mau uso dos recursos naturais, com aconseqüente poluição do ar, das águas e dossolos, com reflexos negativos nos sistemas decirculação atmosférica e mudança de clima.

Percebe-se, assim, que o declínio ambientale econômico está se acelerando e pode ser quan-tificado pela parcela significativa da humani-dade que não consegue sequer suprir suasnecessidades básicas. E, apesar dessas indica-ções, o modelo de crescimento econômicomundial, no qual o Brasil está inserido, poucose preocupa com o uso mais eficiente dosrecursos, que o levaria a se orientar para umprocesso de desenvolvimento sustentável.

Esse modelo de crescimento econômicodistorcido (que vem sendo implementado nasúltimas décadas) necessita ser repensado, tendoem vista as provas empíricas que alguns países

José Matias Pereira é economista e advogado.Ex-Técnico de Planejamento e Pesquisa do Institutode Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Professordo Departamento de Administração da Universidadede Brasília – UnB.

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do Hemisfério Norte fornecem, no sentido deque estão ingressando numa fase de cresci-mento não-econômico em decorrência da uti-lização de políticas econômicas agressivas, quese impõem com um efeito devastador emrelação ao meio ambiente.

A necessidade de uma melhor compatibili-zação entre os investimentos produtivos quegeram empregos, renda e divisas, e que sãoorientados sem restrições, sob a argumentaçãode que não podem ser adiados em função daqualidade ambiental, fica, assim, cada vez maisevidente e demonstra que é preciso estes seremrevisados. É sobre esses antecedentes e asalternativas de mudança do modelo de desen-volvimento atual (considerando-se o seu baixograu de sustentabilidade, em que as economiasestão sendo projetadas para prazos cada vezmenores) que se tratará a seguir.

A depressão que se abateu sobre a econo-mia norte-americana em 1929 (e que durouquase toda a década seguinte), provocandoefeitos perversos sobre a economia mundial,criou as condições básicas para que viesse àtona a teoria de John Maynard Keynes, quepermitiu a compreensão da política fiscal deequilíbrio, que teria como conseqüência umarevisão geral de todas as ciências econômicas,na qual se assentam as regras da política fiscalcontemporânea.

Delineadas inicialmente na “Teoria daMoeda”, de 1930, a qual sustentava que adepressão resulta de que as inversões nãoaplicam o volume total das poupanças, asteorias de Keynes foram desenvolvidas na“Teoria Geral do Emprego, do Juro e daMoeda”, de 1936. Contrariando a maioria dosestudiosos que o antecederam, Keynes susten-tou que não havia antagonismo entre consumoe investimentos. Visto que o produto nacionalbruto divide-se numa parte que é consumida enoutra que é poupada e alimenta os investi-mentos, rompe-se o equilíbrio econômico se osempresários não investem tudo quanto éeconomizado (provocando, assim, uma inter-rupção do pleno emprego dos fatores deprodução se o consumo não se estender àquelaparte que foi economizada). Em síntese, o fluxodo consumo deve receber sempre uma quanti-dade de recursos, sob pena de reduzir-se a rendanacional e o pleno emprego.

Assim, defendeu Keynes o entendimento deque o fomento dos investimentos aumentaria ademanda agregada e proporcionaria pleno

emprego, ou seja, que esses investimentossignificam crescimento e maior capacidadeprodutiva no futuro. Nesse sentido, sedimentoua convicção de que isso é benéfico, conside-rando que o crescimento nos faz mais ricos e,dessa forma, diminui nossas angústias eincertezas sobre o futuro, estimula-nos aconsumir e a investir mais, aumenta a confiança,a demanda total e o emprego.

Faz-se necessário reconhecer a importânciada contribuição da teoria keynesiana, desen-volvida durante a década de 30, orientada paraexplicar e resolver o problema das depressões,da teoria monetarista, da década de 60, comoproposta de solução para o problema inflacio-nário, da teoria do lado da oferta, da década de80, voltada para resolver os problemas econô-micos por intermédio de cortes nos impostos,bem como dos esforços desenvolvidos peloseconomistas, na fase atual, sobre a eficácia dapolítica econômica e o interesse renovado pelocrescimento.

O que se torna necessário questionar,porém, é a forma de comportamento dosmercados atuais, a sua estrutura de produção ede exportação, baseada na produção primáriados recursos naturais, incluindo, nessas, osprocessos de transformações mínimas. É aausência de planos de desenvolvimento susten-tável (onde se presume um crescimento limpoe eqüitativo) que levem em consideração anecessidade de se contabilizar o consumo derecursos naturais, a degradação ambiental e aperda de características dos ecossistemas(denominadas custos de externalidades). Porisso, faz-se necessário que os custos das“externalidades” sejam quantificados (dentrodas limitações econômicas possíveis) e conta-bilizados nos custos dos negócios, em decor-rência das agressões causadas pelos agenteseconômicos ao meio ambiente (pelos diversostipos de resíduos poluentes que esses empreen-dimentos tendem a liberar).

Diante da convicção de que os investi-mentos produtivos, que criam empregos e esti-mulam as exportações, possuem prioridadesirrestritas (inclusive sobre os efeitos que tendema causar no meio ambiente), o mundo não temconhecido outra solução que não seja a defesade mais crescimento econômico. Surge, porém,nesse contexto, uma preocupante indagação:quais os limites ambientais e sociais do cresci-mento econômico? Os custos marginais, deri-vados dos sacrifícios ambientais e sociais,poderiam ser maiores que o valor em termos

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de vantagens e benefícios com a produção. Naverdade, começa a ficar evidente para a humani-dade que essas perdas estariam conduzindo-nospara um crescimento não-econômico.

À existência de indícios convincentes,conforme observado anteriormente, de quealguns países do mundo desenvolvido começama atravessar esse limiar, ingressando, portanto,numa fase de crescimento antieconômico , a novapergunta que surge é se existem alternativas pararesolver-se o problema da pobreza que não sejampor meio do crescimento econômico.

Em tese, a resposta seria afirmativa casofosse possível promover-se uma redistribuiçãoda riqueza, um efetivo controle populacional eum aumento da produtividade dos recursosnaturais. Levando-se em consideração as difi-culdades políticas relacionadas aos doisprimeiros fatores (e que terão de ser enfrentadasglobalmente nas próximas décadas), crê-se queo progresso econômico da humanidade estará,nas próximas décadas, na dependência doaumento da produtividade dos recursos natu-rais, que terá de ser feito num contexto de umaeconomia estável, dentro de um ambiente dedesenvolvimento econômico limpo e eqüitativo,que faz parte da natureza do desenvolvimentosustentável.

Dessa forma, pode-se afirmar que o modelode crescimento econômico em vigência nomundo, que prioriza as variáveis macroeconô-micas, no curto prazo, estimulando a produçãoe as exportações sem garantir a proteção ambi-ental, está provocando impactos negativosirreversíveis sobre o meio ambiente, tanto noscentros urbanos como nas áreas rurais, nota-damente nos países em desenvolvimento, comoé o caso do Brasil.

A tendência de que os investimentos se con-centrem nas áreas mais ricas e as regiões maispobres fiquem abandonadas é cada vez maisevidente. A criação de mercados para popula-ções com padrões de consumo sofisticados tendea demandar mais recursos naturais, que por suavez provocam mais poluição ambiental. Issopode ser comprovado quando se verifica apolarização e a distância entre os países ricos eos países pobres. Com um Produto InternoBruto (PIB) mundial de US$ 23 trilhões em1993, US$ 18 trilhões correspondem aos paísesdesenvolvidos e os restantes US$ 5 trilhões sãoproduzidos nos países em desenvolvimento,muito embora estes últimos tenham quase 80%(oitenta por cento) da população da terra.

O desafio, portanto, é alterar essa realidade.

O enfrentamento do problema passa pela formacomo vem sendo orientada a política ambiental,tanto nos países desenvolvidos como nos paísesem desenvolvimento. Os enfoques de políticaambiental devem responder aos problemas desobrevivência e de qualidade de vida, dandoprioridade a mudanças que se traduzam emgeração de emprego e de exportações, e quepermitam reservar excedentes locais para umdesenvolvimento mais equilibrado.

E, para que nessas políticas econômicassejam incorporados os cálculos de custos e be-nefícios ambientais, é importante que paísescomo o Brasil (que muito tem a perder, caso seperpetue o atual modelo) invistam, de maneiraefetiva, na consolidação de um sistema, envol-vendo o governo, o setor privado, bem como asinstituições de pesquisa e ensino do País, comvistas a alterar a base de produção econômicae, por conseqüência, o atual modelo de ocupa-ção e de desenvolvimento da Amazônia.

2. Formulação e implementação depolíticas públicas no Brasil. Ambiente

institucional e constitucionalÉ importante registrar que as políticas

públicas (idealizadas como o nexo entre o pen-samento e a ação) estão diretamente relaciona-das com as questões de liberdade e igualdade,controle democrático do Estado em ação e coma distribuição de renda e das riquezas. Isso temque ver com o direito à satisfação de necessi-dades básicas, como emprego, educação, mora-dia, saúde, terra, meio ambiente, entre outras.

Deve-se registrar que a formação do Esta-do brasileiro tem, na sua base de constituiçãode políticas públicas, características instituci-onais de autoritarismo e elitismo. Isso tem-serevelado indesejável para a sociedade como umtodo. Nesse sentido, a evolução do processodemocrático tem permitido que a sociedadecomece a exigir seus direitos substantivos, oque irá permitir ao país alcançar um sistemainstitucional mais democrático e justo, nota-damente no que se refere à necessidade de trans-formações estruturais que venham a diminuiras desigualdades e as injustiças na distribuiçãode riquezas, de rendas e de poder.

Feitas essas considerações, torna-se neces-sário destacar, em relação ao estudo daspolíticas públicas no Brasil, que as mesmaspodem ser subdivididas nas seguintes fases:

a) Formação de Assuntos Públicos e de

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Políticas Públicas, que deve ser entendida comoa fase em que as questões públicas surgem eformam correntes de opinião ao seu redor. Issocontribui para a formação da agenda política,composta de questões que merecem políticasdefinidas;

b) Formulação de Políticas Públicas, que serefere ao processo de elaboração de políticasno Executivo, no Legislativo e em outras ins-tituições públicas, sob os pontos-de-vista daracionalidade econômica, da racionalidade polí-tico-sistêmica ou da formulação responsável;

c) Processo Decisório, que está interligadacom a anterior, porém com delimitaçõespróprias, em que atuam os grupos de pressão,exercendo influência sobre os decisores, emqualquer das instâncias mencionadas;

d) Implementação das Políticas, que serefere ao processo de execução das políticasresultantes dos processos de formulação edecisão em políticas públicas, inter-relacionandoas políticas, os programas, as administraçõespúblicas e os grupos sociais envolvidos ou quesofrem a ação governamental ou os problemassociais;

e) Avaliação de Políticas. Nessa fase,consideram-se quais os padrões distributivosdas políticas resultantes, isto é, quem recebe oquê, quando e como, e que diferença fez comrelação à situação anterior à implementação.Analisam-se os efeitos pretendidos e as conse-qüências indesejáveis, bem como quais osimpactos mais gerais na sociedade, naeconomia e na política.

Constata-se, assim, que existem diferentesformas de entrada de assuntos na formação daagenda pública. A primeira forma de entradade questões políticas dá-se pela resposta a crises,de cunho imediatista, com vistas a minimizaros efeitos de intempéries, secas, poluiçãoambiental, entre outros. São ações de caráterpaliativo, que têm como componentes apenasos aspectos administrativo-financeiros.

A segunda forma é por intermédio doprocesso político, em que os grupos interes-sados, em contato com autoridades comolegisladores, ministros, governadores, prefeitose secretários (de Estados ou municipais), tomama iniciativa de levantar questões nas quaispodem visualizar algum ganho político pela“resolução” satisfatória de algum problemaligado à sua pasta ou aos grupos ou segmentossociais que o apoiaram na eleição ou na nome-ação. Essa entrada toma forma mais definida à

medida que os problemas se agravam erequerem algum tipo de “solução”.

A terceira forma de entrada dos assuntospúblicos na agenda política refere-se à série deeventos seqüenciados no Executivo, Legislativoou no Judiciário. Esse é um processo lento quetende a envolver a atividade de pesquisa naidentificação e definição dos problemas econô-micos e sociais, com a participação de váriosgrupos.

A quarta forma refere-se à antecipação dosproblemas e conflitos latentes no âmbito dosassuntos públicos. Essa maneira faz com queas políticas públicas tornem-se pró-ativas, ouseja, antecipatórias na resolução de questõesessenciais para a sociedade.

É importante observar que políticas gover-namentais estão envolvidas com a racionalida-de e com a diferença (efeitos) que elas provocamna sociedade. Nesse sentido, temos os seguintesmodelos: o da racionalidade econômica, parao qual a racionalidade das políticas públicas ea da economia de mercado são iguais; o daracionalidade político-sistêmica, em que osatores, no jogo do poder do processo de formu-lação, interagem e chegam a um acordo políticoque permite, além do exercício do pluralismo,o funcionamento do sistema político semmudanças básicas; e o modelo da formulaçãoresponsável de políticas públicas, que busca,nas justificativas morais, os critérios para oprocesso de sua formulação.

Nesse sentido, “política”, no caso do modelode formulação responsável das políticaspúblicas, deve ser entendida como um proces-so que envolve e privilegia a questão moral. Aprimeira tarefa do estudo de políticas públicasé resgatar a razão da visão instrumental econceituá-la como algo que leva à compreensãodos problemas sociais, e, dessa forma, permitirque os analistas tenham a visão desses proble-mas e formulem políticas públicas com basenos valores de igualdade, liberdade, solidarie-dade e democracia, entendida esta comoresponsabilidade comunitária.

Assim, pode-se afirmar que as instituiçõesresponsáveis pela formulação de políticaspermanecem abertas à discussão e à deliberaçãopúblicas, ao contrário dos modelos anteriores,em que as preferências são apresentadas porgrupos de pressão e esquemas burocráticos emtorno de políticas específicas. A compreensão dasdistinções entre os modelos analisados faz-senecessária para o entendimento das questõesque serão apresentadas a seguir, que dizem

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respeito ao processo de ocupação e desenvolvi-mento da Amazônia.

Constata-se que, nas formações sociaisliberal-democrático-capitalistas, o processodecisório é produto do livre jogo de influênciase de poder entre grupos de pressão organizados,que defendem interesses individuais declaradospublicamente. Quanto maior o alcance dapressão sobre os decisores, mais provável é quea decisão seja favorável ao grupo que a exerce.Em formações sociais socialistas de planeja-mento centralizado, como ainda é o caso dealguns países socialistas, o processo decisórioé realizado pela elite do Estado, também parteintegrante do sistema político-partidário, quefiltra e estabelece o interesse público.

O caso brasileiro, no entanto, não se adaptaa nenhum desses dois casos clássicos. Nessesentido, é oportuno citar Luiz Pedone (Formu-lação, implementação e avaliação de políticaspúblicas. Funcep, 1986), que observa:

“Na verdade o processo decisóriobrasileiro, em especial o do período doregime militar instalado no país após1964, reflete a centralização decisória emaltos escalões governamentais. Assim,conselhos e órgãos deliberativos coletivossão arenas decisórias. Para chegar aestas arenas decisórias é precisopercorrer um longo caminho de con-frontação e negociação entre grupos,num sistema organizado, modificado,controlado e arbitrado pelo Estado”.

O Estado brasileiro, após 1964, orientou-separa a promoção do desenvolvimento e aacumulação capitalista, a modernização dasinstituições econômico-financeiras e a indus-trialização. Esse processo decisório, no sistemapolítico brasileiro, envolve diferentes segmentosda elite empresarial, nacional e estrangeira, aalta tecnoburocracia estatal e alguns segmentosda sociedade cooptados. Essa constanteinteração é marcada ora por avanços de algunsdesses setores, ora por outros, segundo apresença mais forte do grupo hegemônico domomento. Na verdade, em poucas ocasiões deformulação e decisão em políticas, a sociedadeé chamada a participar de decisões que, emúltima análise, vão afetá-la.

Nas questões que dizem respeito ao processode ocupação e desenvolvimento da Amazônia(notadamente no período autoritário implan-tado no país após 1964), as decisões, no âmbitoda esfera do Estado, propiciaram o surgimentode políticas públicas definidas com base em

critérios e normas desconhecidas pela maioriada sociedade, direcionadas para atender inte-resses imediatos e modificadas ao sabor dasconveniências dos grupos influentes por elasbeneficiados. É sobre essa forma de formular eimplementar políticas públicas que se tratará aseguir, com estudos de casos que dizem respeitoaos esforços feitos pelo Estado, notadamente apartir do começo da década de 70, para conduzire disciplinar o assentamento de camponeses naregião, e, posteriormente, ao programa deincentivos fiscais para a Amazônia, voltadopara a implementação de grandes empreendi-mentos agropecuários ou agroindustriais naAmazônia Legal.

3. Estudo de casos: os Projetos Integradosde Colonização e o Programa de Incentivos

Fiscais para a AmazôniaÉ por intermédio da implementação do

Programa de Integração Nacional (PIN) que oEstado brasileiro dá início aos esforços nosentido de conduzir e disciplinar o assentamentode camponeses na Amazônia. Esse programase propunha a fixar, na Amazônia, parte doexcedente populacional do Nordeste, usandoterras devolutas da região recém-transferidasao governo federal. Em 1970, foram criadostrês Projetos Integrados de Colonização (PIC)em áreas cortadas pelas rodovias Transama-zônica e Cuiabá-Santarém.

As ações do INCRA, nessa fase, também sefizeram presentes em outros Projetos Integradosde Colonização, na sua maioria em Rondônia.As reconhecidas dificuldades apresentadaspelos projetos da Transamazônica e o novoentusiasmo oficial pela concepção da grandeempresa incentivada fizeram com que fossediminuindo o interesse pela colonização-modelo. Entretanto, fatores de expulsão(decorrentes do processo de modernização daagricultura do Sul do País) e a disponibilidadede terras em partes da Amazônia Legal deramorigem a fluxos crescentes de migrantes paraáreas de fronteiras. Com isso, o governo foiforçado a continuar atuando na colonização,agora com o objetivo de atenuar os problemasgerados com uma crescente imigração espon-tânea, oriundas da Região Sul do Brasil.

Uma parcela significativa desses fluxosmigratórios se direcionou para a região, nota-damente para Rondônia, onde o controlegovernamental sobre as terras era quase total,o que permitia continuar assentando migrantes

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em projetos de colonização pública ou deassentamento rápido.

Conforme se constata nos dados dos relató-rios do INCRA, o então Território e atualmenteEstado de Rondônia foi a unidade da Federaçãocom maior concentração de projetos de coloni-zação e de assentamento rápido. Em 1986, elesocupavam 80% da área total dos projetos decolonização e 88,1% da área dos projetos deassentamento rápido da área em exame. Emseguida vem Mato Grosso, com 14,8% da áreatotal da colonização e com 11,4% da área comprojetos de assentamento rápido. Os outrosEstados da região tiveram participação poucosignificativa.

O Projeto Integrado de Colonização de OuroPreto, por exemplo, criado em áreas de pólosférteis de Rondônia, foi um projeto-modelo.Com 512.585ha, estava previsto o assentamentode 5.162 famílias em lotes de 100ha (emmédia), a metade dos quais poderia ser explo-rada, devendo o resto ficar como reservaflorestal. Criou-se infra-estrutura básica, esta-beleceram-se esquemas de assistência técnicae fundou-se cooperativa. Os assentamentosseriam efetuados com ampla assistência,orientação e acompanhamento

Ao mesmo tempo em que outros projetoscomeçaram a ser implantados, teve início umprocesso de corrida por terra, por parte de novaslevas de migrantes, atraídos pela veiculação denotícias sobre a disponibilidade de terras férteisem Rondônia. Com isso, tornou-se impossívelimplantar os projetos de colonização da formacomo foram concebidos inicialmente. O estágioseguinte foi, em decorrência da impossibilidadede atendimento da demanda por terras naregião, de invasões de áreas fora dos projetosde colonização oficiais, o que forçou o INCRAa criar projetos de assentamento rápido, objeti-vando regularizar as ocupações. A assistênciaaos migrantes, que mesmo nos projetos oficiaisfoi se tornando precária, nos projetos de assen-tamento rápido era inexistente. Tem-se, assim,uma rápida visão das razões que permitiram aocupação descontrolada naquela área, comefeitos perversos sobre o meio ambiente daregião, especialmente no que se refere à devas-tação florestal e à exaustão do solo.

Pode-se afirmar que o Estado de Rondôniaainda se apresenta como área de frente desubsistência, beneficiado pela melhoria dascondições de escoamento da produção, com aimplantação, no Estado, de esquema de comprada produção. Por outro lado, com o esgotamento

da disponibilidade de terras mais acessíveis noCentro-Oeste, aquele Estado vem-se tornando,também, área de expansão de frentes comer-ciais. Essas alterações no perfil de Rondôniaestão modificando a estrutura fundiária razoa-velmente igualitária ali implementada pelapolítica de distribuição de terras públicas. Outrovetor que vem agravando a situação ambientalem Rondônia é representado pela exploraçãode garimpo.

Numa perspectiva geopolítica, a questão dasegurança, em relação à Amazônia, sempre foicolocada em primeiro plano pelo regime militarque se instalou no País após 1964, tendo comopano de fundo o imenso vazio existente, a atraira atenção e a cobiça de alguns países desenvol-vidos pelas riquezas que abrigava. A colonizaçãoocorrida na década de 70 foi vista como uminstrumento fundamental dessa ação na Região.Havendo excedentes populacionais em outrasáreas do País, notadamente no Nordeste e no Sul,a colonização apresentou-se como saída políticapara a solução desse problema.

Nesse sentido, deve-se registrar que oprocesso de ocupação exigia a execução deações de desbravamento na Amazônia, processoesse que seria realizado pela construção derodovias, sendo as mais importantes a Transa-mazônica e a Perimetral Norte. Não se podedesconsiderar que esse programa era de inte-resse das grandes empresas construtoras doPaís, reconhecidamente um segmento influenteno âmbito do poder instalado em Brasília.

Ao mesmo tempo em que essas ações eramdesenvolvidas, têm início, também, nesseperíodo, fortes pressões de grupos influentesnacionais, interessados na captação de incen-tivos fiscais (decorrentes da especulação deterras, que veio a substituir a especulaçãofinanceira, com a quebra da bolsa de valoresem 1971). Isso provocou uma forte valorizaçãodas terras, elevando o interesse pelo programade incentivos fiscais da Amazônia, e cresceumuito a aprovação, por esse programa, degrandes projetos agropecuários ou agroindus-triais. Fica, assim, explicado o afastamento, porparte do governo, do processo de colonizaçãopública, em meados da década de 70, passando,dessa forma, a orientar os seus esforços de ocu-pação da Amazônia com base na implemen-tação de grandes empreendimentos agrope-cuários ou agroindustriais. No começo dadécada de 80, a colonização (que ainda se apre-sentava como uma alternativa de ocupação decertas áreas da região) tinha deixado de ser

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considerada importante na estratégia do governono processo de ocupação da Amazônia.

Registre-se que o sistema de incentivosfiscais estabelecido pelo Decreto-Lei nº 1.376/74 objetiva direcionar investimentos às regiõese setores incentivados, mediante o abatimentode até 25% do Imposto de Renda devido porempresas do País para aplicação em empreen-dimentos nessas regiões ou setores. Essas apli-cações podem ser feitas por meio de um fundode investimento (projetos comuns) ou direta-mente em projetos próprios. Para poderemaplicar em projetos próprios, as pessoasjurídicas ou grupos de empresas coligadasdevem deter, isolada ou conjuntamente, pelomenos 51% do capital votante da sociedadetitular do projeto beneficiário do incentivo. Nocaso da Amazônia, a Superintendência deDesenvolvimento da Amazônia – SUDAM é aresponsável pela administração dos incentivos,e o Banco da Amazônia – BASA é o operadordo Fundo de Investimentos da Amazônia –FINAM. A área beneficiada pelos incentivosfiscais do FINAM abrange toda a região acimado paralelo 13, definida como Amazônia Legal.

Assumem, assim, os incentivos fiscais opapel principal nessa nova investida, com vistasa atenderem os interesses especulativos dosgrupos econômicos com forte influência juntoao poder central. Ressalte-se que o programade incentivos fiscais orientados para a regiãoteve como objetivo declarado o de incorporar aAmazônia à economia nacional. Assim, osincentivos fiscais funcionaram como indutor doprocesso acelerado e indesejável de ocupaçãode terras da Amazônia Legal.

A partir da constatação dos enormesproblemas gerados por esses grandes investi-mentos orientados para a Amazônia Legal,começa o governo a ter a percepção de que nãoera essa a solução para que a região se trans-formasse em uma significativa fonte deprodutos agropecuários. Isso arrefece o entusi-asmo oficial e leva a uma redução sensível doritmo de aprovação de novos projetos para aregião. O grande Projeto Jari (concebido peloempresário norte-americano Daniel Ludwig),que acabou sendo transferido para um consórciode empresários nacionais, graças à ajuda oficial,pode ser destacado como o melhor exemplodessa realidade. Assim, entra em decadência oprograma de incentivos fiscais para os empre-endimentos agropecuários e agroindustriais naAmazônia.

O programa de incentivos foi sendo desa-

celerado gradativamente, e, embora de formamuito incipiente, essa forma de ocupação edesenvolvimento da Amazônia foi sendo ques-tionada dentro do próprio governo, por setoresespecíficos da sociedade e por organizaçõesnão-governamentais, notadamente devido aosdanos causados ao meio ambiente da região.Registre-se que o sistema permanece ativado,com restrições, e esses tipos de projetos, a partirde pressões políticas, eventualmente aindarecebem incentivos fiscais.

4. Políticas públicas e o desempenho dosprojetos incentivados na Amazônia

Pode-se constatar que a valorização de terrase a captação de recursos livres predominavamna decisão de grupos empresariais no sentidode apresentarem projetos à Superintendênciade Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM,na qual a preocupação com o retorno dos in-vestimentos não aparecia como uma questãorelevante. Na verdade, o programa de incen-tivos fiscais provocou, conforme observadoanteriormente, uma enorme expansão de frentesespeculativas na Amazônia.

A esse respeito, é oportuno citar CharlesCurt Mueller (em Políticas Governamentais ea Expansão Recente da Agropecuária noCentro-Oeste):

“Um dos efeitos negativos do progra-ma de incentivos fiscais da AmazôniaLegal foi o forte impulso que deu àexpansão de frentes especulativas. Avalorização de terras e a captação derecursos livres predominavam na decisãode grupos empresariais de apresentarprojetos à Sudam, tendo os retornosprodutivos dos investimentos importân-cia secundária. Assim, a despeito dasdificuldades que muitos desses projetosforam apresentando, a demanda por terrascausada por eles permaneceu elevada esurgiram ou se ampliaram conflitos nasáreas da Amazônia em que frentes espe-culativas se superpunham a frentes desubsistência (a área do GETAT, porexemplo).”

Deve-se observar também que, em grandeparte, esses projetos incentivados não foramconcluídos. O fraco desempenho dos projetosimplantados na região caracteriza a política deincentivos fiscais mais como um instrumentode doação de recurso do que de desenvolvi-mento. Isso pode ser verificado nos relatórios

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da SUDAM e confirmado no trabalho de autoriade José G. Gasques e Clando Yokomizo – “Ava-liação dos incentivos fiscais da Amazônia”, emAgricultura e políticas públicas, no qual fo-ram desenvolvidos esforços no sentido de ava-liarem-se os incentivos fiscais na Amazônia,no período de 1967 a 1985, e que, entre outrosaspectos, constatou o seguinte:

a) No período compreendido pela avalia-ção, constatou-se que existiam 947 projetosincentivados pelo FINAM, sendo que, dessetotal, 621 eram agropecuários e agroindustriaise 326 nos demais setores. Dos projetosaprovados, apenas 166 foram consideradosimplantados (sendo 94 agropecuários e agroin-dustriais e 72 industriais e de serviços básicos).Os restantes estavam em implantação. Preocu-pou-se a referida avaliação com os projetosagropecuários ou agroindustriais. Foi canali-zado, por intermédio do FINAM, nesse período,um montante superior a US$ 500 milhões;destes, 71% foram para projetos em implanta-ção, 25% para os implantados e 4% paraprojetos cancelados. Os Estados do Pará e MatoGrosso concentravam 71,3% dos projetos.

b) Como resultado da avaliação, verifica-se,entre outras conclusões, que os principaisbenefícios dos incentivos fiscais na Amazôniaforam a criação de alguma infra-estruturaregional e geração de conhecimentos, quepoderão ser internalizados pela economia daregião. Os projetos incentivados pouco contri-buíram para aumentar o produto regional. Suaprodução e venda, naquela ocasião, represen-tavam 15,7% do que fora previsto. Mesmo osprojetos com 15 ou 16 anos de implantação têmsido extremamente ineficientes. Em 94 projetosagropecuários e agroindustriais implantados,apenas 3 têm apresentado alguma rentabilidade.Os demais não apresentam receitas. A concen-tração de benefícios a empresários que fizeramdos incentivos fiscais um negócio especulativoe instrumento para garantir a posse da terra e afreqüência de mudanças de controle acionáriomostram haver um comércio de projetos incen-tivados. Isso vem ocorrendo mesmo entre osprojetos novos; os incentivos fiscais pouco têmcontribuído para a fixação da populaçãoregional e há forte concentração de projetos comincentivos fiscais e da iniciativa privada emárea de floresta semi-úmida e na hiléia amazô-nica. Está ocorrendo, a uma taxa de substituiçãoelevada, a retirada de formações florestais ricasem madeira e fauna por projetos de baixosníveis de produtividade e tecnologia.

c) Em síntese, conclui a avaliação alertandoque, pelas evidências apresentadas, não háargumento que justifique a permanência dosincentivos fiscais na forma como têm sidoutilizados. Os recursos devem ser preservadoscomo instrumentos de desenvolvimentoregional, porém o sistema de opções deveriaser extinto. Os projetos de recursos própriospoderiam ser mantidos com condicionantes.Nesse sentido, propõem os seus autores que osrecursos deveriam ser aplicados em prioridadesclaramente definidas, maximizando a contri-buição para o desenvolvimento econômico esocial e não degradando o meio ambiente. Háestudos a esse respeito, que poderão contribuirpara definições dessa natureza.

Assim, o modelo de ocupação e desenvol-vimento da Amazônia (que se encontra esgo-tado), iniciado com os projetos integrados decolonização, posteriormente transferidos parao sistema de incentivos fiscais, propiciou osurgimento de enormes distorções, traduzidaspelos prejuízos econômicos, sociais e ambi-entais (na sua maioria irreparáveis) na Ama-zônia. Os efeitos dessas distorções indicam anecessidade de serem repensadas as políticaspúblicas orientadas, no futuro, para a região.

Na verdade, constata-se que os projetosincentivados da Amazônia Legal mostraram-semais aptos a propiciar a concentração fundiáriae de renda, o desperdício e o desvio de recursose os conflitos de terras do que produção, renda,impostos e empregos. Propiciaram, também,notadamente, impactos indesejáveis ao meioambiente, especialmente pelo desmatamentodescontrolado que fomentaram.

Esse fenômeno descrito vem sendo consta-tado, há algum tempo, por especialistas na área(vide C. C. Mueller, 1983). Nesse contexto,torna-se necessário que sua avaliação não serestrinja aos aspectos da racionalidade do pro-cesso de decisão de políticas públicas. Ele vaimais além, e entra no âmbito da dimensão dopoder.

Nesse sentido, é oportuno destacar aconstatação de Mueller (1990), ao se referir àgênese da estratégia amazônica, instituída apartir do início da década de 70 pelo regimemilitar, da qual a política de incentivos fiscaisfoi peça fundamental:

“Merece ênfase o complexo de forçasque se armou em torno dela. Cumpre,também, destacar sua eficiência namanutenção das características básicasda política, a despeito de seu evidente

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fracasso e das mudanças políticas pelasquais o Brasil passou mais recentemente.Conforme ressaltado, no entorno dapolítica de incentivos fiscais formou-seuma poderosa coalização de setores:dentro da “corte”, ela inclui organismosregionais do tipo da Sudam e do Bancoda Amazônia, cujo poder – para não dizersobrevivência – respalda-se na política;em setores “externos” influentes parti-cipam organizações do tipo da Associa-ção de Empresários da Amazônia (sedi-ada em São Paulo), bem como lobbiesregionais e dos estados da região.”

Essa aglutinação de forças conseguiu, comextrema competência, criar uma espécie de“dogma” no sentido da necessidade de semanter o esquema de incentivos fiscais no Paísa qualquer preço. Isso tem sido possível com oengajamento de setores políticos influentes daregião, com assento no Congresso Nacional,de grupos empresariais influentes (na suamaioria sediados em São Paulo) e dos veículosde comunicação da região, que incutiram naconsciência da sociedade regional que eventuaismudanças teriam como objetivo enfraquecer oprocesso de desenvolvimento da Amazônia.Assim, as propostas de reformulação de incen-tivos fiscais acabam esbarrando nesses obstá-culos, que se apresentam quase intransponíveis.

5. ConclusãoNão se apresenta como uma tarefa fácil,

portanto, intervir e propor modificações nasatuais políticas públicas orientadas para esti-mular o processo de ocupação e desenvolvimentoda Amazônia. Pelo contrário, as políticas deterras públicas tiveram um efeito bastantediverso do concebido na sua versão original, ea política de incentivos fiscais provocou espe-culação fundiária e não desenvolvimento agro-pecuário ou agroindustrial. Constata-se queforam despendidos enormes recursos paraatingir resultados não-satisfatórios para a regiãoe a sociedade. Esses desvios permitiram a trans-ferência de recursos e patrimônio a indivíduose grupos influentes, com efeitos poucos signi-ficativos sobre o desenvolvimento econômicoe social da maior parcela da população da área.

Essas políticas públicas, conforme observadoanteriormente, formuladas a partir de estraté-gias agrícolas e de desenvolvimento regionalespecíficas e implementadas, administradas emodificadas no contexto do processo decisó-

rio, não contaram apenas com a atuação dasorganizações governamentais responsáveispelas estratégias e políticas. A participação degrupos influentes que interagem com o regimena defesa de seus interesses foi decisiva paradeformar, provocar inércia e tornar irracionaisessas políticas.

Verifica-se que algumas dessas políticas, porpressões internas, especialmente em decor-rência das crises econômicas e fiscais do País,enfraqueceram ou mesmo desapareceram.Outras, por sua vez, permanecem em vigor,respaldadas pelas estruturas de apoio organi-zadas, com sustentação em grupos influentes,que se localizam nos poderes Legislativo e Exe-cutivo, bem como no meio empresarial.

Partindo-se desse entendimento, passa-se ater uma visão clara de como se estrutura osistema de políticas públicas que orientaram,e, em boa parte, ainda orientam (por intermé-dio da inércia ou da irracionalidade dogoverno), o processo de ocupação e desenvol-vimento da região. Isso permite inferir quepropostas de alterações do modelo atual devem,necessariamente, levar em consideração adimensão do poder existente no sistema atual.Isso evitará a criação de falsas expectativas, quetenderão a ser frustradas no futuro, no que dizrespeito à ocupação e ao desenvolvimento daAmazônia.

Torna-se necessário, portanto, diante dessarealidade, tecer alguns comentários e sugeriralgumas medidas para o enfrentamento dosproblemas assinalados.

a) A definição de políticas públicas para aocupação e desenvolvimento da Amazôniapassa necessariamente pela redefinição do papeldo Estado e de seus organismos envolvidosnessa tarefa, notadamente a SUDAM, o BASA,a SUFRAMA, o IBAMA, o INPA, o INCRA, aEMBRAPA e as universidades da região.

b) A agenda de discussão de políticaspúblicas deve incluir, de forma explícita (comparticipação da sociedade e das organizaçõesnão-governamentais), as questões relacionadasàs políticas ambientais – leis e decisões –formuladas para solucionar os conflitos explí-citos ou latentes que envolvem o modelo de ocu-pação e desenvolvimento da região. Busca-se,assim, permitir que sejam alcançadas as metasalmejadas em comum, considerando-se que apolítica ambiental lida com valores e interessesintensamente opostos, e que só podem seralcançados pela coletividade como um todo.

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c) Nas avaliações feitas sobre os incentivosfiscais na Amazônia, constata-se que a maiorparte dos danos ambientais causados à região éextremamente difícil de ser enfrentada pelosistema político, considerando-se que osimpactos negativos, em geral, ou são diluídospela imensidão da área ou aparecem anos apóster ocorrido a devastação ou a ação poluidora.Por isso, torna-se recomendável a introduçãode critérios mais rígidos nos procedimentos deanálise, acompanhamento e avaliação dosprojetos a serem implantados ou em fase deimplantação na Amazônia Legal, com ou semincentivos fiscais, especialmente os que sereferem à exploração de madeiras, minérios,pesca e agropecuária.

d) É importante também se desdogmati-zarem os argumentos utilizados pelos gruposde sustentação política que defendem os “inte-resses” da região, de forma a neutralizarem-seou reduzirem-se as suas ações no encaminha-mento das formulações de políticas públicasrelacionadas à ocupação e ao desenvolvimentoda região (com vistas a abandonarem o enfoqueimediatista), na qual são secundados pelosgrupos empresariais influentes, que estãovoltados para a obtenção de vantagens especu-lativas e lucros. É necessário ressaltar queambos os segmentos (político e empresarial)são julgados por seu desempenho ao lidaremcom problemas imediatos; isso leva à consoli-dação de uma tendência no sentido de que setomem medidas que apresentem resultadoimediato, e que, na sua maioria, vão de encontroaos interesses ambientais, econômicos e sociaisda região e do país.

e) Outra questão importante, no processode ocupação e desenvolvimento da Amazônia,e que por decorrência reflete-se nos problemasambientais da área (reconhecidamente difíceisde serem avaliados), é a necessidade de quesejam adotadas ações concretas no campofundiário, entre elas a redistribuição de terras,com vistas a atenuarem-se ou evitarem-se osconflitos em algumas áreas críticas, como é ocaso do Mato Grosso e do sul do Pará. Deve-seexaminar, ainda, a possibilidade da criação deterritórios federais nas grandes áreas vazias erazoavelmente preservadas, como é o caso daHiléia Amazonense e das áreas de fronteirasao norte da região. As distorções geradas noprocesso de ocupação da Amazônia já demons-traram que o problema ambiental da região épreocupante e exige que o governo assuma umapostura pró-ativa, que os empresários não visem

apenas à especulação e ao lucro e que as insti-tuições de pesquisas e ensino se envolvam deforma concreta, em sintonia com as organi-zações não-governamentais que atuam na área,buscando alternativas científicas, tecnológicas,econômicas, educacionais, culturais e ambien-tais que garantam a ocupação e o desenvolvi-mento sustentável para a região.

f) Assim, fica claro que a questão da ocu-pação e desenvolvimento da Amazônia,conforme retratado no capítulo inicial destetrabalho, passa pela formulação responsável depolíticas públicas. Dessa forma, a solução doprocesso de ocupação e desenvolvimentodaquela região terá de contar com a participaçãoefetiva da sociedade, que deverá ser mobilizadae envolvida nessa tarefa árdua, com vistas aquestionar se as políticas públicas de ocupaçãoe desenvolvimento implementadas na Amazôniasão defensáveis e se os critérios adotados atéentão, na formulação dessas políticas, sãoaceitos e considerados desejáveis. O importante,nesse sentido, é agregar, no encaminhamentodessa questão, variáveis éticas e dimensões deresponsabilidade na formulação de políticaspúblicas para a Amazônia.

g) A adoção de medidas ambientaiscorretas, em sintonia com o conceito de desen-volvimento sustentável e com a Agenda 21(documento aprovado durante a Conferênciapara o Meio Ambiente e Desenvolvimento –ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, estabe-lecendo um plano internacional de ações aserem desenvolvidas pelos países signatáriosem todas as áreas relacionadas com o desen-volvimento sustentável do Planeta), indica quea maioria dos países desenvolvidos começam aperceber que é mais importante prevenir osefeitos perversos de uma atividade econômicano começo, quando é planejada, do que depoisde aparecerem os prejuízos. Mas uma consci-entização da necessidade dessa postura indicamaior entendimento e preocupação moral doque a anterior atitude, generalizada, que seconcentrava somente no crescimento econômico,especialmente para geração de empregos eprodução de bens e serviços.

É nesse sentido (considerando-se a impor-tância e a complexidade da questão ambiental)que o Brasil deverá, necessariamente, encami-nhar-se. Não deve ser desconsiderado, nessecontexto, que o crescimento econômico quebeneficie a maioria do povo é vital para aproteção do ambiente, e isso somente serápossível com a busca de um equilíbrio entre

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atividade econômica e uma proteção ao meioambiente na Amazônia. Esse é o desafio que seapresenta para a sociedade brasileira nopresente e que terá de ser resolvido por meiodo encaminhamento adequado na formulaçãoe implementação de políticas públicas paraorientar, no futuro próximo, o processo deocupação e de desenvolvimento da Amazônia.

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1. Direito e desenvolvimentoNos seus aspectos mais modernos, vincu-

lados à globalização da economia e à colabo-ração pluridisciplinar no campo das ciênciassociais, o direito adquiriu novos aspectos que,por sua vez, ensejaram especializações próprias,de acordo com as finalidades almejadas. Assim,aos poucos, destacam-se novos ramos do direito,entre os quais o direito econômico, o direito dodesenvolvimento e, mais recentemente, o direitoda engenharia financeira, com as respectivasvertentes nacionais e internacionais.1

É, pois, absolutamente correto vislumbrarna ciência jurídica não mais um quadronormativo estático, que regula as relações jurí-dicas, mas sim um verdadeiro instrumentodinâmico que transforma a realidade. Enquanto,no passado, o legislador costumava acom-panhar os fatos, deixar que as práticas fossemsedimentadas para, em seguida, se necessário,nelas intervir, dando-lhes a necessária norma-tização, atualmente o direito, muitas vezes,precede os fatos e cria o contexto dentro do qual

ARNOLDO WALD

SUMÁRIO

1. Direito e desenvolvimento. 2. A influência dodireito francês no Brasil. 3. O desconhecimento dodireito brasileiro na França. 4. O Acordo Franco-Brasileiro de Promoção e Proteção Recíproca dosInvestimentos. 5. Sugestões complementares econclusões.

O direito como instrumento catalisadordo desenvolvimento das relaçõeseconômicas entre a França e o Brasil

Arnoldo Wald é Advogado em São Paulo,Professor Catedrático da Universidade do Estado doRio de Janeiro e Presidente do Grupo Brasileiro daAssociation Henri Capitant para a Cultura JurídicaFrancesa.

1 WALD, Arnoldo. Direito do Desenvolvimento.Revista dos Tribunais, v. 383, p. 7-18; WALD,Arnoldo, MORAES, Luiza Rangel de, WALD,Alexandre de Mendonça. O Direito de parceira. SãoPaulo : Revista dos Tribunais, 1996. p. 22;BERTREL, J. P., JEANTIN, M. Droit de l’ingénieriefinancière. Paris : Litec, 1990.

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a vida econômica passará a se desenvolver. Nãose trata mais, simplesmente, de estabelecernormas de conduta e de composição de conflitospara situações atuais, mas, também, de esti-mular, incentivar e prever relações jurídicasainda inexistentes ou pouco relevantes. Evita-se,assim, a chamada “revolta dos fatos contra odireito”2, dando-se, ao mesmo tempo, uma novadimensão às normas jurídicas. Ao lado dotempo de vigência das regras de direito e doespaço em que vigoram, analisa-se, atualmente,o ritmo da evolução jurídica e sua compatibili-dade com as transformações sofridas pela socie-dade, numa fase na qual a evolução tecnológicae as mudanças decorrentes ocorrem na veloci-dade das progressões geométricas. É o quedenominamos o direito em terceira dimensão.

Reconhece-se, já há longo tempo, que o quefica das grandes revoluções é a legislação delasdecorrente3, mas, na segunda metade do séculoXX, verificamos que numerosas revoluçõesestão sendo feitas, pacificamente, pelo direito,como ocorre com a criação dos grandes blocoseconômicos do nosso tempo: a União Européia,o NAFTA e o MERCOSUL. Mesmo no planointerno, pretende-se utilizar a legislação comfinalidades pedagógicas e incentivadoras,oferecendo, assim, o legislador, novos quadrospara a economia e, até, uma nova escala devalores. Foi o que aconteceu, em certo sentido,com algumas das disposições programáticas daConstituição de 1988, com a legislação brasi-leira referente às sociedades anônimas e aomercado de capitais e com as disposições que,na maioria dos países, pretendem restabelecero domínio da ética nas relações comerciais,reconhecendo que a função básica do direitoconsiste em submeter a economia às regrasmorais.

Justifica-se, assim, dentro de um programamais amplo, verificar qual o papel que o direito,

a doutrina e a prática jurídicas podem exercerna reaproximação dos povos, especialmente nocaso da França e do Brasil, quando existemingredientes fecundos e de relativamente fácilmanejo para alcançar tal finalidade, na medidaem que já há uma ampla tradição histórica, maisdo que centenária, de vinculação cultural entreos dois países no setor.

Na realidade, a área jurídica se encontra nalinha divisória entre a economia e a cultura,abrangendo ambas e nelas repercutindo.Deve-se, todavia, considerar que, de fato,embora em dimensões distintas, as relaçõesentre os países, no plano cultural e econômico,têm, entre si, uma certa vinculação. Durantealgum tempo, as relações entre a França e oBrasil perderam uma parte de sua substânciano campo da economia, mantendo, todavia, oseu relacionamento cultural, mas, em seguida,a relativa redução das atividades negociais entreos dois países acabou tendo, também, reper-cussões indiretas nos seus vínculos culturais.

A importância de utilizar o direito comocatalisador das relações econômicas se justificatanto mais no momento em que se reconhece anecessidade de mudança de algumas estruturasda sociedade, que exigem uma profunda refor-mulação do direito. Já tivemos o ensejo deassinalar a importância crescente, no mundointeiro, mas especificamente no Brasil e naFrança, das diversas formas de parcerias e dejoint venture, de tal modo que a própria línguafrancesa consagrou a palavra partenariat, que,no passado, não costumava constar do PetitLarousse. Atualmente, reconhece-se que seevolui para o que Alain Peyrefitte denomina“a sociedade de confiança”4, enquanto FrancisFukuyama, após ter falado no fim da história,a ressuscita para um mundo no qual deveráprevalecer esta mesma confiança, como virtudesocial e instrumento de criação da prosperidade.5

Ora, no mundo da confiança, do respeito àpalavra dada e à boa-fé, do equilíbrio nasrelações entre as partes, da constante adaptaçãoeqüitativa dos contratos às novas circunstânciasem que vivemos, o direito tem, evidentemente,um importante papel a exercer na aproximaçãoe convivência dos povos e dos negóciosinternacionais.

2 Gaston Morin escreveu a esse respeito livrocujo título se tornou clássico; La révolte des faitscontre le code. Paris : Sirey, 1945. A matéria foiobjeto de numerosas obras, especialmente na décadade 1950, destacando-se, entre outras, as de GeorgesRipert e René Savatier.

3 Escreve a esse respeito Georges Ripert:“La pensée des philosophes du XVIIIe siècle

aurait été vaine si de robustes praticiens, constituantset législateurs, n’avaient refait l’État et rédigé descodes. L’oeuvre du juriste est la seule qui demeurequand le tumulte des révolutions est apaisé”. Aspectsjuridiques du capitalisme moderne. Paris : LibrairieGénerale de Droit et de Jurisprudence, 1946. p. 342.

4 PEYREFITTE, Alain. La société de confiance.Paris : Editions Odile Jacob, 1995.

5 FUKUYAMA, Francis. Trust : the social virtues& the creation of prosperity. New York : The FreePress, 1995.

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2. A influência do direito francês no BrasilNão se deve cogitar do futuro sem uma visão

histórica e uma análise das influências exer-cidas no passado e que repercutem no presente.Quando se cogita, pois, das relações jurídicasentre a França e o Brasil, cabe destacar, desdelogo, a imensa influência exercida pelo direitofrancês sobre a legislação, a doutrina e a juris-prudência brasileiras e, ao mesmo tempo, aocontrário, a relativa ausência de dadosacessíveis sobre a nossa legislação que estejamdisponíveis tanto para os empresários comopara os advogados e juristas franceses.

Durante muitos anos, o modelo jurídicofrancês exerceu uma influência preponderantesobre o direito brasileiro, especialmente nocampo do direito privado. Embora o nossodireito tivesse as suas originalidades e peculia-ridades e tivesse sofrido a influência de outrospaíses, como Portugal, pela nossa tradição, aAlemanha, em direito civil, a Itália, em direitopenal e processual, e os Estados Unidos, nodireito constitucional, não há dúvida que apresença preponderante foi, durante muitotempo, e podemos dizer que continua sendo atéhoje, a dos juristas franceses.

Na realidade, essa influência se exerceubasicamente sob dois aspectos. De um lado,adotamos as idéias liberais e os conceitos daRevolução Francesa que acabaram sendoconsolidados não só na Declaração dos Direitosdo Homem, mas também no Código Napoleãoe na moral cristã que nos foram transmitidospelas legislações européias lideradas pelaFrança. Em segundo lugar, a técnica de inter-pretação do direito, que permitiu a sobrevi-vência do Código Napoleão por quase doisséculos, a admissão de premissas como a racio-nalidade e o aspecto eqüitativo da lei, adogmática sedimentada pelos grandes tratadis-tas e o profundo senso social altamente criativodos juízes, do Ministério Público e dos advo-gados e doutrinadores franceses impregnaramo direito brasileiro.

Acresce que até, muitas vezes, legislaçõese doutrinas de outros países foram divulgadosno Brasil pelos autores franceses, como ocorreuem relação ao Código Civil Alemão, que entrouem vigor em 1-1-1900 (o BGB), que é geral-mente citado, nos tribunais brasileiros, na suatradução francesa com comentários de juristascomo Saleilles e outros, em publicação oficialeditada em Paris.

Na realidade, o Brasil, como o Estado de

Louisiana, apresenta, no plano jurídico, umaforma de cross fertilization entre influênciaseuropéias e norte-americanas, que se fazemsentir com densidade nos tribunais superiores,cujos acórdãos refletem, muitas vezes, a dou-trina e a jurisprudência de países estrangeiros.6

Já tivemos, assim, o ensejo de dizer que, emcerto sentido, o jurista e o advogado brasileirosfaziam estudos de direito comparado, pornecessidade e quase inconscientemente, domesmo modo que M. Jourdain, na peça deMolière, fala em prosa e verso sem sabê-lo.7

Acresce que a influência do direito estran-geiro e especialmente do direito francês é detal ordem que, em determinados casos, ostribunais fazem com que as suas teses preva-leçam mesmo quando a solução escrita dodireito brasileiro é diferente, como tem sidosalientado em debates do Supremo TribunalFederal e conforme crítica feita pela doutrina.8

Embora tenhamos, na maioria das nossasobras jurídicas, numerosas referências aodireito estrangeiro, ainda falta, todavia, noBrasil, o estudo sistemático do direito compa-rado. Não obstante ser lecionado eventualmenteem algumas faculdades, nas cadeiras demestrado e doutorado, não existem, em nossopaís, entidades que sistematizem tais ensina-mentos, como os institutos e sociedades dedireito comparado, que se desenvolveram naFrança e no resto do mundo, tendo ampliadoconsideravelmente a sua presença e as suasatividades nos últimos anos.

Cabe, outrossim, salientar que o inter-câmbio recente entre juristas, magistrados,advogados e estudiosos do direito em geral dosdois países tem sido relativamente poucointenso e dependente de esforços individuais,que não mais contam com os suficientes apoiospúblicos ou privados, ao contrário do que acon-tecia no passado. Tal fato se explica, mas nãose justifica, tanto por interesses políticos dosdois países que, até recentemente, não privile-giaram as suas relações mútuas e recíprocas,como também pelo fato esdrúxulo de não se

6 DAVID, René. Traité Elémentaire de DroitComparé. p. 243.

7 WALD, Arnoldo. Circulation du modèlejuridique français. Paris : Litec, 1994. p. 127 : Brésil.Journées Franco-Italiennes de l’Association HenriCapitant, 1993.

8 MIRANDA, Pontes de. Tratado de DireitoPrivado. v. 43, § 4.699, p. 147-148 e julgamento daADIn nº 493, pelo Supremo Tribunal Federal.Revista dos Tribunais, v. 690, p. 176.

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considerar o direito, para fins burocráticos, nemcomo ciência, nem como arte, e tampouco comoatividade negocial. Houve, no caso, condenávelretrocesso, que se deve corrigir, de ambos oslados, recuperando-se o tempo perdido.

Finalmente, o sentido que se deve dar àcultura jurídica francesa não é mais o mesmoque tinha, para o Brasil, no fim do séculopassado. No momento em que todas aslegislações estão procurando novos caminhose se pretende construir uma legislação do futuro,que permita a harmonização de direito, quiçáa sua uniformização, o valor que tem e deve tera difusão do direito francês não significa aimposição de suas técnicas e soluções a outrospaíses, mas constitui uma base para o estabeleci-mento de uma verdadeira parceria entre juristasdo velho e do novo mundo, para permitir acirculação e o aprimoramento dos modelos, aosquais aludia o professor Rodolfo Sacco.9

3. O desconhecimento do direitobrasileiro na França

Se o direito francês é conhecido, citado ecomentado no Brasil, ao contrário, devemosreconhecer a existência do mais completodesconhecimento do direito brasileiro naFrança, onde até a legislação dos paísesafricanos é muito mais divulgada do que anossa.

Embora se reconheça, na França, a impor-tância econômica e cultural do Brasil, que temmerecido um certo número de estudos fora docampo jurídico (especialmente em sociologia),o direito brasileiro praticamente é muito poucoconhecido, tanto nas faculdades como nospretórios, e a sua presença é inclusive reduzidanos próprios centros de direito comparado.10

Avalia-se em cerca de uma dezena os livrosjurídicos dos autores brasileiros ou referentesao direito brasileiro publicados na França, nãoultrapassando uma centena os artigos erelatórios apresentados nos congressos, dosquais cerca de trinta têm decorrido dostrabalhos do Grupo Brasileiro da Association

Henri Capitant que, há quarenta anos, temdivulgado a nossa legislação no exterior, parti-cularmente para os juristas de língua francesa.Entre tais relatórios, destacam-se os deMinistros do Supremo Tribunal Federal e doSuperior Tribunal de Justiça, de desembarga-dores e professores das várias faculdades do paíse de diversos advogados. Embora alguns juristasbrasileiros tenham ensinado nas faculdadesfrancesas, a nossa bibliografia jurídica emfrancês continua sendo muito restrita, dificul-tando, assim, o acesso de advogados estran-geiros ao nosso direito. Não se trata aliás deum fenômeno especificamente francês, pois omesmo se repete em outros países, como osEstados Unidos e a Inglaterra, tornando-se maisagudo ainda em relação a nações que, emboratenham grandes investimentos no Brasil, têmformações culturais distintas das nossas, comoa Alemanha e o Japão.

Trata-se de área de atividade na qual umtrabalho sério pode ser realizado, com relati-vamente poucos recursos e mediante umaparceria entre a área pública (Ministério dasRelações Exteriores, Ministério da Justiça) e ainiciativa privada, mobilizando-se as universi-dades, as entidades profissionais de advogados(Ordem, Institutos, Associações), as Confede-rações e Federações do Comércio e da Indústria,as Câmaras de Comércio e Associações Comer-ciais e as editoras de livros jurídicos. Basta dizerque, no momento, as dificuldades burocráticasestão impedindo de fato a realização de convê-nios interuniversitários entre o Brasil e a Françae que o movimento de bolsistas na área jurídicaé praticamente inexistente, quando se trata deinstrumentos fecundos de aproximação entreas novas gerações de ambos os países. Por muitotempo, as restrições ao funcionamento deprofessores estrangeiros no Brasil e a falta deverbas universitárias para este fim fizeram,aliás, com que se interrompesse o movimentosalutar de cross fertilization, que trouxe aoBrasil professores do nível de FernandBraudel11, Charles Morazé, Georges Dumas,Jacques Lambert, Claude Lévi-Strauss, PierreMonbeig e tantos outros, dificultando, outrossim,de acordo com o princípio da reciprocidade, apresença de mestres brasileiros nas faculdades

9 SACCO, Rodolfo. Rapport de synthèse. p. 13-14, nota 7.

10 Basta dizer que o último trabalho sério esistemático de análise do direito brasileiro feito peladoutrina francesa data dos trabalhos de René David,na década de 1950, quando publicou o seu tratadode direito comparado e deu um curso que abrangeuo estudo do direito do nosso país.

11 O eminente geógrafo Fernand Braudel consi-derou que a sua experiência ficou muito enriquecidacom a sua viagem ao Brasil em 1935, tendo chegadoa afirmar: “C’est au Brésil que je suis devenuintelligent”. (Ap. DAIX, Pierre. Braudel. Paris :Flammarion, 1995. p. 109).

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francesas, embora tais convites tenham sido eestejam sendo mantidos, necessitando todaviade maior continuidade, organização e siste-matização.

No particular, dentro da idéia da criação decomissões especiais para as relações comdeterminados países, faria sentido que tambémhouvesse subcomissões especialmente encarre-gadas de tratar da colaboração entre universi-dades e organizações profissionais dos doispaíses em setores específicos, como é o caso dodireito.

Há, aliás, nesse campo, uma resistênciacorporativa e burocrática do lado brasileiro queé inexplicável. Basta lembrar que, há cerca devinte anos, o Barreau de Paris acertou, emprincípio, com a nossa OAB um acordo quepermitiria a advocacia reciprocamente deadvogados franceses no Brasil e de advogadosbrasileiros na França. Esse acordo, que foiobjeto de um protocolo, pareceu-nos altamentehonroso para a advocacia brasileira, mas, apósa aprovação, em tese, do Conselho Federal daOAB, foi bloqueado pelo Ministério da Edu-cação, impedindo assim uma maior colaboraçãoentre os advogados dos dois países. A França eespecialmente o Barreau de Paris foram maisgenerosos, superando o princípio da reciproci-dade, para admitir, em determinados casos, ainscrição de advogados brasileiros, por enten-derem que tinham notório saber jurídico, o quenão seria permitido, na hipótese inversa, àsSeções da OAB no Brasil. Mas, no particular,a tradição francesa reconhece a autonomia doBarreau que “est maître chez soi”.

No momento em que acabamos de fazeruma reforma constitucional para superar umprotecionismo ultrapassado e integrar o paísno mundo da globalização, seria hora de, semexcessiva generalização e com os resguardosnecessários, extrairmos todas as conseqüências,na legislação ordinária e no campo regula-mentar, da decisão constitucional, do mesmomodo que, quando, no passado, decidiu-seequiparar os brasileiros naturalizados aos natos,ressalvadas as exceções constitucionais, foirevista a legislação ordinária para este fim.

Na realidade, trata-se de complementar aabertura econômica do país pela abertura jurí-dica, a abertura de direito pela abertura de fato,ensejando um novo tipo de relacionamentoentre os dois países, que pressupõe um maiorconhecimento mútuo do direito e da legislaçãovigente em cada um deles.

Ao lado dos princípios e idéias gerais járeferidas, há alguns instrumentos jurídicos quemerecem uma atenção especial, dentro doslimites nos quais criam novas garantias para ocapital estrangeiro, mas podem depender, emparte, de complementação legislativa ou deratificação pelo Congresso Nacional.

Um desses instrumentos é o acordo entre oBrasil e a França referente à promoção eproteção recíproca de investimentos que, emseguida, analisaremos de modo sumário.

4. O Acordo Franco-Brasileiro dePromoção e Proteção Recíproca dos

InvestimentosO acordo franco-brasileiro, firmado em

21-3-1995, que sucedeu a outros assinados peloBrasil, em termos diferentes, com os EstadosUnidos e é contemporâneo de convençõesanálogas firmadas com a Inglaterra e a Suíça,representa, pela sua existência e pelo seuconteúdo, uma mudança de posição do Brasilem relação ao investidor estrangeiro.

Pode-se dizer, até, que esses vários tratadosfirmados nos últimos anos são a demonstraçãode ter o país superado o clima de desconfiançaem relação ao capital estrangeiro, que existiadesde a Carta de 1937, desaparecendo umaespécie de muro de Berlim, que dava um trata-mento discriminado ao capital estrangeiro,sendo substituído por um crédito de confiança,que deflui do próprio título do acordo quandose refere à “promoção e proteção recíproca dosinvestimentos estrangeiros” (e não à proteçãodo Brasil contra os investimentos estrangeiros).

Por outro lado, além do seu caráter simbó-lico, o acordo dá garantias reais contra os riscospolíticos, inclusive no caso de desapropriação,e estabelece uma sistemática um tanto compli-cada, mas, de qualquer modo, relevante emrelação à arbitragem.

Cabe salientar que o mencionado acordo foiseguido de troca de correspondência de caráterinterpretativo, em relação ao seu art. 4º, na qualambos os Estados prometeram fazer o melhoresforço no sentido de aplicar, nos seus respec-tivos países, no tocante às licitações referentesaos contratos de fornecimento de bens eserviços, não a simples cláusula da nação maisfavorecida, que constava do acordo, mas deassegurar a concessão às pessoas jurídicas e físicascom nacionalidade do outro país do mesmotratamento assegurado aos seus nacionais.

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Cabe, inicialmente, examinar se o mencio-nado acordo já está em vigor ou se depende deratificação do Congresso Nacional, nos precisostermos do art. 49, I, da Constituição Federal.

Entendemos, salvo melhor juízo, que nãose trata, no caso, de acordo internacional queacarrete “encargos ou compromissos gravososao patrimônio nacional” (art. 49, I, daConstituição), razão pela qual não haveria, emtese, necessidade de ratificação pelo Congressopor não haver ônus em relação ao país, enten-dido o mesmo como sendo exclusiva ou princi-palmente de caráter patrimonial, atendendo-seà terminologia utilizada pelo legislador cons-tituinte. Por outro lado, considerando-se quealgumas cláusulas do acordo impõem mudançaslegislativas, a sua ratificação teria a vantagemde ensejar, de modo inequívoco, a modificaçãolegislativa decorrente, que não poderia decorrerde simples ato do Executivo. Assim, o acordo,se não ratificado, deveria ser encarado comosimples obrigação assumida pelo Poder Exe-cutivo de propor modificações legislativas, nosentido de integrar, na ordem jurídica interna,as regras dele decorrentes.

De qualquer modo, considerando-se queo pior, no caso, é a insegurança jurídica,impõe-se a definição adequada dos termosnos quais o acordo deverá ser interpretadoalternativamente:

a) como vigente em todos os seus termos,desde a sua assinatura;

b) como pendente de condição suspensiva,que seria a ratificação do Congresso Nacional;

c) como compromisso do Poder Executivono sentido de propor ao Congresso as medidaslegislativas que decorrem do acordo.

Cabe ao Ministério das Relações Exteriorese, eventualmente, à Advocacia Geral da Uniãodecidir a esse respeito. Assim, conforme o caso,o acordo deverá ser remetido ao CongressoNacional para que seja ratificado ou o PoderExecutivo tomará as providências para baixarmedidas provisórias ou encaminhar projetos deleis ao Congresso Nacional, para que o acordonão fique sendo letra morta.

Por outro lado, o acordo, como os demaisassinados com outros países, exige, para quese mantenha a coerência da ordem jurídica,outras providências, tanto no tocante à arbi-tragem como à eventual indenização nas desa-propriações.

Para que o sistema jurídico mantenha a suaracionalidade e coerência e se evitem tanto osprivilégios dos nacionais, em relação aosestrangeiros, quanto os destes em relaçãoàqueles, o Brasil precisa, com urgência,ratificar as demais convenções internacio-nais referentes à arbitragem e transformarem lei o projeto já aprovado no CongressoNacional referente à arbitragem interna.Caso contrário, o direito de utilizar a arbi-tragem, previsto no acordo, transformar-se-áem privilégio descabido somente aplicávelem alguns casos e discrepando do sistemalegislativo como um todo.

Ora, é evidente tratar-se de norma geral,pois, considerando a demora do julgamentofinal das ações judiciais, tanto na França quantono Brasil, impõe-se que as divergências, tantocomerciais quanto administrativas, possam serdirimidas mais rapidamente por árbitros,encontrando-se, outrossim, quando o devedoré uma pessoa jurídica de direito público, meioshábeis de execução imediata do débito acrescidodos juros de mercado, como está aliás previstono acordo franco-brasileiro.

O problema se agrava no Brasil, tanto emvirtude do anacrônico e injusto sistema depagamentos dos débitos públicos por preca-tórios, como em virtude da importantedefasagem, que ainda existe, entre os juros domercado e os juros legais, representando,muitas vezes, os primeiros o dobro dossegundos.

As novas normas constitucionais e o acordofranco-brasileiro impõem também uma revisãode uma série de normas legislativas e adminis-trativas para excluir a discriminação em relaçãoao capital estrangeiro, que ainda encontramosna legislação sobre licitação e concessões e eminúmeros outros diplomas legais e regula-mentares.

Embora se tenha entendido acertadamen-te que a reforma constitucional é auto-executável, não exigindo que houvesse, noplano infraconstitucional, novos diplomaspara operar as modificações legislativas ouregulamentares de modo explícito e impor-tando a Reforma Constitucional, por si só,na revogação ou derrogação dos textos quesão com ela incompatíveis, parece-nos quecabe ao Poder Executivo consolidar as alte-rações decorrentes a fim de evitar dúvidas eambigüidades e restabelecer, na matéria, amais completa segurança jurídica.

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5. Sugestões complementares e conclusõesSe existem importantes empresas francesas

no Brasil e há até a presença eventual de algumascompanhias brasileiras na França, com intensomovimento comercial entre os dois países, sãopoucas as joint ventures existentes entre gruposfranceses e brasileiros e é nelas que, em geral,opera-se o milagre da multiplicação dos pães,juntando-se o capital financeiro e o social, oknow-how e a mão-de-obra especializada, apresença de acionistas e de empresários tantodo velho como do novo mundo.

Algumas medidas podem incentivar acriação desse tipo de joint venture além dosacordos de acionistas que, no direito brasileiro,têm dado bons frutos, estabelecendo umequilíbrio entre os interesses em conflito. Poder-se-ia cogitar, por exemplo, de empresas bina-cionais franco-brasileiras, do mesmo modo queforam criadas as binacionais argentino-brasi-leiras, com um estatuto próprio que se inspirariado exemplo já citado e do acordo franco-brasileiro.

No mercado de capitais, várias medidaspoderiam ser tomadas para intensificar asrelações entre as Bolsas de Paris e de São Paulo,tanto no tocante aos valores mobiliários quantoem relação às operações de mercadoria e defuturo. No momento no qual, na Europa, háluta para ocupar um melhor lugar no rankingdas praças financeiras, destacando-se a de Paris,acordos de cooperação com a América do Sul– e em particular o MERCOSUL – poderiampermitir o lançamento e a negociação de ações,opções e contratos brasileiros na França econseqüentemente na Europa e de valoreseuropeus nas bolsas brasileiras, seguindo-se oexemplo dos acordos já existentes entre o Brasile a Argentina, que permitiram o lançamento,em nosso país, das ações da empresa YPF(Yacimentos Petroliferos Fiscales)

Ainda dentro dessa linha, caberia reco-nhecer a caducidade das nossas disposiçõeslegais que impediam o lançamento, no mercadobrasileiro, de ações sem direito de voto por partede empresas sediadas no país, mas cujo controlepertencesse a empresas estrangeiras. Trata-sede disposição que, há longo tempo, já conside-rávamos superada12 e que certamente deixoude vigorar após a recente reforma constitu-

cional, tendo efeitos absolutamente absurdos.Basta dizer que, como se afirma na imprensa,se uma empresa como a EDF – Electricité deFrance viesse a assumir o controle da LIGHT,por ocasião de sua privatização, não mais serialícita a emissão de novas ações preferenciaissem voto da mencionada sociedade brasileira.No campo das concessões, nas quais se contacom o capital estrangeiro, a interpretação quemantém restrições à emissão de ações semdireito de voto por empresas controladas porestrangeiros trará as maiores dificuldades paraque se alcancem as metas do projeto governa-mental.13

Outros projetos e idéias hão de se desen-volver mediante um contato contínuo e fértilentre estudiosos, comerciantes, industriais ediplomatas dos dois países, pois estamosincontestavelmente na era da “incerteza” (deGalbraith) ou da “descontinuidade” (deDrucker), na qual impera a necessidade decriatividade, flexibilização 14 e colaboraçãoconstrutiva entre os povos. Se o pós-capitalismose caracteriza pela importância crescente dadanão mais aos equipamentos, nem mesmo aosrecursos financeiros e à força de trabalho, masao saber,15 aos recursos humanos, ao managemente ao chamado capital humano ou social dasempresas, há um trabalho de cooperação e deparceria que há de ser feito, no mais alto nível,mas com espírito democrático e aberto.

13 A respeito da importância do capital estran-geiro na política governamental de concessões parao desenvolvimento da infra-estrutura, consulte-seCARDOSO, Fernando Henrique. Mãos à obra :Brasil-Proposta de Governo. Brasília : 1994. p. 12.

14 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7. ed.Paris : LGDJ, 1992. passim.

15 DRUCKER, Peter F. Post-capitalistic society.New York : Harper Business, p. 19 e 181.

12 WALD, Arnoldo. Estudos e pareceres deDireito Comercial. São Paulo : Revista dosTribunais, 1972. p. 111-119: Emissão de açõespreferenciais por empresa estrangeira sediada noBrasil.

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ELAINE DE ALMEIDA PASSOS LOUREIRO E PETER DE

PAULA PIRES

Da impossibilidade jurídica de exploraçãoda atividade de capitalização por entesestatais

Projeto de Lei Complementar regulamentandoo artigo 192, inciso II, da Constituição, apresentadopara permitir funcionamento de sociedade decapitalização controlada por pessoa jurídica dedireito público, empresa pública ou sociedade deeconomia mista. Impossibilidade diante da ordemconstitucional, que consagra a livre iniciativa paraa exploração direta de atividade lucrativa, somentesendo permitida a atuação estatal nas hipótesesexpressamente previstas pela Constituição e para,a teor do artigo 173, caput, atender a imperativode segurança nacional ou a relevante interessecoletivo, conforme devidamente definidos em leicomplementar.

O presente trabalho corresponde a respostaà consulta feita pelo Senhor Hélio Portocarrero,Diretor da SUSEP, para análise jurídica doProjeto de Lei Complementar nº 112, de 1996,do Sr. Ildemar Kussler, Deputado do PSDB-RO, o qual dispõe sobre concessão de autoriza-ção para funcionamento das sociedades decapitalização controladas, direta ou indireta-mente, por pessoa jurídica de direito público,empresa pública ou sociedade de economiamista, pelo que se pretende afastar a proibiçãoque se pensou constar unicamente da ResoluçãoCNSP (Conselho Nacional de Seguros Priva-dos) nº 15-91, artigo 13.

A ordem constitucional vigente, instauradaem 5 de outubro de 1988, tem por fundamento,entre outros, os valores da livre iniciativa,conforme consagrado no artigo 1º, inciso IV,da Lex Mater. O artigo 173 deste diploma,seguindo a orientação principiológica traçadano artigo 1º, expressa vedação aos entes polí-ticos e às pessoas por eles instituídas ou manti-das, no sentido de que os mesmos não devem

Elaine de Almeida Passos Loureiro e Peter dePaula Pires são Procuradores da Superintendênciade Seguros Privados – SUSEP.

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explorar diretamente a atividade econômica, anão ser para atender imperativo de segurançanacional ou relevante interesse coletivo,conforme definidos em lei complementar,previamente instituída.

Com efeito, enquanto aos particulares cabeprimordialmente a exploração direta de ativi-dade econômica, ao Estado cabe a prestação deserviços públicos. Vale lembrar que

“a noção de serviço público há de secompor necessariamente de dois elemen-tos: (a) um deles, que é seu substratomaterial, consistente na prestação deutilidade ou comodidade fruível direta-mente pelos administrados; o outro, (b)traço formal indispensável, que lhe dájustamente caráter de noção jurídica,consistente em um específico regime dedireito público, isto é, numa ‘unidadenormativa’”1.

Faz-se mister uma breve digressão acercado significado da expressão “atividade econô-mica em sentido estrito”. Como ensina ErosRoberto Grau,

“pretende o capital reservar para suaexploração, como atividade econômicaem sentido estrito, todas as matérias quepossam ser, imediata ou potencialmente,objeto de profícua especulação lucrativa”.

Assevera ainda o autor que“‘domínio econômico’ é precisamente ocampo da atividade econômica emsentido estrito, área alheia à esferapública, de titularidade (domínio) dosetor privado. Relembre-se que o serviçopúblico está para o setor público assimcomo a atividade econômica (em sentidoestrito) está para o setor privado” 2.

O texto em análise deve ser observado sobo prisma do disposto pelo artigo 173, caput, daConstituição em vigor, que determina que oEstado só explorará a atividade econômicaquando a mesma for considerada necessáriapara a manutenção dos imperativos da segu-rança nacional ou de relevante interessepúblico, devendo tais expressões ser definidasem lei.

A própria Constituição, em seu artigo 174,

define a forma de atuação do Estado em relaçãoà atividade econômica, como agente normativo,regulador, fiscalizador, incentivador e plane-jador. Portanto, da justaposição dos doisdispositivos, conclui-se que somente a título deexceção é permitido ao Estado explorar direta-mente a atividade econômica. A mais autori-zada doutrina, em uníssono, repudia a explo-ração econômica pelo Estado quando em desa-cordo com a ordem constitucional vigente:

“O objeto da sociedade de economiamista tanto pode ser um serviço públicoou de utilidade pública como uma ativi-dade econômica empresarial. Quando forserviço público ou de utilidade pública,sua liberdade operacional é ampla eirrestrita; quando for atividade econô-mica, fica limitada aos preceitos consti-tucionais da subsidiariedade e da não-competitividade com a iniciativa privada,sujeitando-se às normas aplicáveis àsempresas congêneres particulares e aoregime tributário comum, pois é deverdo Estado dar preferência, estímulo eapoio à iniciativa privada para o desem-penho da atividade econômica (CF, art.173 e §§). Entretanto, a realidade vemdemonstrando que as empresas estataisestão sendo criadas com desrespeito aosmandamentos constitucionais, invadindoa área reservada ao empresariado parti-cular e fazendo-lhe aberta concorrênciadesleal. Urge que se ponha um paradeiroa essa conduta inconstitucional e preju-dicial à economia privada”. 3

“Qualquer ‘exploração direta de ati-vidade econômica pelo Estado’ é incons-titucional, salvo se for o caso de prestaçãode serviço público para a qual a unidadepolítica seja constitucionalmente compe-tente, ou para o desempenho de atividadedefinida em lei como necessária a impe-rativos de segurança nacional ou a rele-vante interesse coletivo.

“Acresce que as exigências constitu-cionais que podem caracterizar a excepcio-nalidade da atividade empresarial doEstado – segurança nacional e interessecoletivo – não devem apenas estar invo-cadas como efetivamente existirem. Nãohá discricionariedade legislativa para

1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Cursode Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo :Malheiros, 1994. p. 350.

2 A ordem econômica na Constituição de 1988 :interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo : Revistados Tribunais, 1991. p. 144 e 162.

3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-trativo Brasileiro. 18. ed. São Paulo : Malheiros,1993. p. 333.

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inventar hipóteses de segurança nacionalou de relevante interesse coletivo, mas,tão-somente, para identificá-las quandode fato existam.

“O Poder Judiciário, por sua vez, templena sindicância sobre a materialidadedessas condições, agora mais que nasCartas anteriores, em face da linguagemrestrita do art. 173, que faz a intervençãoeconômica não só dependente de leiespecífica como a configura como umaexceção.

“A rigorosa aplicação desse disposi-tivo obriga a União, os Estados, o DistritoFederal e os Municípios a reverem, umpor um, os fundamentos jurídicos de suasrespectivas empresas estatais e, por certo,encontrarão muitas delas concorrendoinconstitucionalmente em atividadeseconômicas reservadas ao setor privado”4.

Vale ressaltar que a norma do art. 173 éprincípio geral da atividade econômica,conforme se verifica no Capítulo I – DosPrincípios Gerais da Atividade Econômica doTítulo VII – Da Ordem Econômica e Financeirada Constituição, dentro do qual se insere, sendoaplicável, portanto, a todas as situações quecorrespondam à referida atividade. Além disso,trata-se indubitavelmente de norma proibitivarelativamente à exploração direta pelo Estadode atividade lucrativa, que faz valer seus efeitosindependentemente de qualquer integraçãoinfraconstitucional. Nesse sentido, valerecordar a lição do saudoso Meirelles Teixeira,doutrinando que

“ainda de acordo com a doutrina clássicanorte-americana, preceitos constitucio-nais existem auto-aplicáveis pela suaprópria natureza, e, quanto a estes,nenhuma dúvida poderá existir para ointérprete, nem necessidade, portanto,daquele cuidadoso exame do texto cons-titucional a que, via de regra, dever-se-áproceder em cada caso, segundo os prin-cípios já expostos. (...)

“Relativamente às proibições e veda-ções constitucionais (‘prohibitory provi-sions’, ‘prohibitive and restrictiveprovisions’,‘prohibitions’, na linguagemdos autores da linguagem americana), eiscomo o grande Rui lhes justificava o

caráter auto-executório:‘É que a norma proibitiva encerra em

si mesma quanto se há mister, para quedesde logo se torne obrigatória a proibi-ção, embora a sanção contra o ato, que aviolar, ainda não esteja definida. Se umaconstituição proíbe formalmente deter-minados atos, a prática de qualquer delestransgride, ipso facto, o preceito consti-tucional; porquanto a interdição, comointerdição, na medida traçada pelos seustermos, é cabal quanto à obrigação, que,juridicamente, estabelece erga omnes, deser respeitada’. (...)

“É evidente que as proibições ouvedações constitucionais, consistindotão-somente em obstar-se certa práticaou procedimento, não necessitam deautoridade, órgão, normas ou processosespeciais para adquirirem vigência, istoé, para se tornarem efetivas, respeitadas.Todo dispositivo constitucional que vede,que proíba alguma coisa é, pois, auto-aplicável, independendo, portanto, de leicomplementar que o regule”.5

O ramo de capitalização é uma atividadetipicamente econômica, conforme reconhece aprópria Constituição, ao inseri-la no artigo 192,inciso II, sob o capítulo que trata do SistemaFinanceiro Nacional, devendo ser analisada,sistematicamente, à luz do disposto no art. 173.Dessa forma, a exploração de tal atividade, aocontrário do pretendido pelo projeto em exame,está constitucionalmente destinada à iniciativaprivada, somente sendo facultada a intervençãodo Estado, diretamente ou por meio de pessoaspor ele instituídas ou mantidas, quando houverprévia lei específica caracterizando devida-mente a capitalização como essencial à segu-rança nacional ou ao interesse coletivo, na linhaexposta nos itens anteriores deste parecer.

Sob o prisma constitucional, portanto, otexto em análise fica prejudicado, uma vezobservado que se destina a criar permissivo paraque pessoas jurídicas instituídas ou mantidaspelo poder público possam explorar a capitali-zação, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 261-67, a nosso ver recepcionado como LeiComplementar para os efeitos do disposto noartigo 192, inciso II, da Constituição, que

4 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Cursode Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro :Forense, 1996. p. 368.

5 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de DireitoConstitucional. Rio de Janeiro : Forense, 1991. p.309-310.

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dispõe, in verbis:“Art. 192. O sistema financeiro

nacional, estruturado de forma a promo-ver o desenvolvimento equilibrado doPaís e a servir aos interesses da coletivi-dade, será regulado em lei comple-mentar, que disporá, inclusive, sobre:

(omissis)II- autorização e funcionamento dos

estabelecimentos de seguro, resseguro,previdência e capitalização, bem comodo órgão oficial fiscalizador” (redaçãona forma da Emenda Constitucional n º13-96).

Foi mencionado o fato de a norma proibitivater sido inserida em uma Resolução do CNSP ehouve questionamento acerca da necessidadeda edição de lei complementar para revogá-la.Parece-nos demonstrado que a proibiçãodecorre de norma constitucional, tendo o CNSPse limitado a reproduzir a vedação de formamais explícita. Como já indicado, a revogaçãodo artigo 13, da Resolução CNSP nº 15-91 éinócua, pois permanecerá intangível a limitaçãofeita pela Constituição em vigor.

Logo, o Projeto de Lei Complementar oraapresentado para análise não é meio hábilpara autorizar pessoa jurídica de direitopúblico, sociedade de economia mista ouempresa pública a operarem no mercado decapitalização.

Bibliografia

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucio-nal. 6. ed. São Paulo : Malheiros, 1996.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Cons-tituição de 1988 : interpretação e crítica. 2. ed.São Paulo : Revista dos Tribunais, 1991.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito AdministrativoBrasileiro. 18. ed. São Paulo : Malheiros, 1993.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso deDireito Administrativo . 5. ed. São Paulo :Malheiros, 1994.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso deDireito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro :Forense, 1996

TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de DireitoConstitucional. Rio de Janeiro : Forense, 1991.

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1. O cânone hermenêuticoda autonomia do objeto

A análise fenomenológica do conhecimento,levada a efeito, entre outros, por JohannesHessen e Manuel García Morente1, cujos ensi-namentos aqui reproduzimos, propõe-se adescrever o evento cognitivo tal como ele seapresenta em sua estrutura geral, abstraídosquaisquer vínculos com a realidade, a histori-cidade e a existencialidade, desprezando,inclusive, a discussão em torno da possibilidadedo conhecimento.

Graças a essa espécie de redução eidética2

– que intenta colocar entre parênteses o objetoconhecimento para poder captar-lhe a essênciado modo como ela se manifesta na experiênciacognitiva – é possível afirmar-se que aquilo aque chamamos conhecimento apresenta-secomo um fenômeno de natureza relacional,mais precisamente como uma relação dupla ouuma correlação ontognosiológica, na qual seencontram frente à frente o sujeito e o objetodo conhecimento.

A criação judicial do direito em face docânone hermenêutico da autonomia doobjeto e do princípio constitucional daseparação dos poderes

INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO

Inocêncio Mártires Coelho é Professor Titularda Faculdade de Direito da UnB.

SUMÁRIO

1. O cânone hermenêutico da autonomia doobjeto. 2. A questão da autonomia do objeto noâmbito das ciências do espírito. 3. A criação judicialdo direito em face do cânone hermenêutico daautonomia do objeto e do princípio constitucionalda separação dos poderes. 4. Conclusão.

1 Teoria do conhecimento. 7. ed. Coimbra : A.Amado, 1976; Lecciones preliminares de filosofia.6. ed. Buenos Aires : Losada, 1957.

2 FERRATER MORA, José. Dicionário deFilosofia. Madrid : Alianza, 1986. p. 901-902 :Eidético; redução eidética.

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No âmbito dessa relação, embora comple-mentarmente imbricados, o sujeito e o objetopossuem funções distintas e inconfundíveis,pois, enquanto ao sujeito pensante ou sujeitocognoscente compete apreender o objeto – oque ele faz saindo de sua esfera e ingressandona esfera própria do objeto – a este correspondea função de ser conhecido ou apreendido pelosujeito, ao qual transfere as suas propriedades.

Como, por outro lado, aquelas propriedadesnão são apreendidas diretamente pelo sujeito,mas captadas por meio da imagem ou dopensamento que nele se forma acerca do objeto,pode-se dizer que, sob esse ponto de vista, “oconhecimento do objeto não é igual ao objetodo conhecimento”3.

Tendo em vista que, nessa relação ontog-nosiológica, seus elementos constitutivos seimplicam e se exigem reciprocamente, mesmopreservada a sua necessária autonomia, épossível afirmar-se que eles só são o que sãoenquanto o são um para o outro. Mais precisa-mente – nas palavras de García Morente – “loque el objeto es, no lo es en sí y por sí, sino entanto en cuanto es objeto de un sujeto. Lo queel sujeto es, tampoco lo es como un ser absoluto,en sí y por sí, sino en tanto en cuanto es sujetodestinado a conocer un objeto”4.

No mesmo sentido, respeitada, obviamente,a diferença radical que singulariza, em tudo omais, a teoria marxista do conhecimento, HenriLefebvre assinala que, em termos filosóficos, osujeito e o objeto atuam e reagem continua-mente, em perpétua interação, e que essainteração é de natureza dialética porque, noâmbito do processo gnosiológico, embora sejamopostos, aqueles elementos são partes de ummesmo todo, tal como se integram numadiscussão ou num diálogo os seus diversosparticipantes.5

Em razão dessa necessária correlação, queos torna inseparáveis, podemos dizer que, aténo plano conceitual, sujeito e objeto sãocongenitamente complementares e interdepen-dentes, tal como o são outros pares de conceitoscorrelatos, do tipo direita/esquerda, acima/abaixo, que se implicam e se exigem recipro-camente no momento mesmo em que sãoformulados.

Apesar dessa similitude, no entanto, umadiferença essencial particulariza a relaçãoontognosiológica em face das outras relaçõesconceituais que lhe são afins. É que, no âmbitoda relação subjetivo-objetiva, sendo intrínsecasou inerentes aos seus elementos constitutivos,as posições e/ou funções correspondentes aosujeito e ao objeto são, também, mutuamenteinconversíveis.

O mesmo, porém, não se verifica nasrelações desempenhadas por aqueles outrospares de conceitos correlatos, cujas funções,sendo-lhes externas e contingentes, podem sertrocadas mutuamente, desde que, para tanto,invertamos as posições atribuídas aos elementosda relação.

Com efeito, se permutarmos as posições quedois objetos ocupam no espaço, deslocando-osda direita para a esquerda ou de cima parabaixo, essa alteração implicará a troca dasfunções que eles desempenhavam anteriormente.A esquerda se converterá em direita quando adireita se converter em esquerda; o que estavaabaixo passará para cima quando o que seencontrava em cima se deslocar para baixo.

Isso ocorre, precisamente, porque, nãosendo da essência de tais objetos assumir ousinalizar posições no espaço, podemos jogarcom eles ou deslocá-los de um ponto para outro,sem que esse jogo ou esse deslocamento desna-ture tais objetos ou inviabilize as suas relaçõesmútuas.

No âmbito da relação ontognosiológica, noentanto, isso não pode ocorrer, porque ao sujeitoincumbe, necessária e exclusivamente, a tarefade conhecer, ao mesmo tempo em que ao objeto,também de forma necessária e exclusiva, estáafeta a função de ser conhecido.

Noutras palavras, como o sujeito é sempreo sujeito e o objeto é sempre o objeto – e um sóé o que é enquanto o é para o outro –, qualquermudança nas suas posições relativas, mesmoque se tratasse de uma alteração simplesmenteimaginária, implicaria a eliminação do próprioconhecimento.

Assim, ainda quando nos ensimesmamos enos fazemos objeto das nossas reflexões,mesmo nessa particularíssima relação ontog-nosiológica, não se confundem o eu pensante eo eu pensado, permanecendo irredutíveis enecessariamente separados, o primeiro enquantosujeito, o segundo enquanto objeto do conhe-cimento. É que o dualismo sujeito-objeto,convém insistir à exaustão, pertence à essên-cia do conhecimento, funcionando como

3 GARAUDY, Roger. Para conhecer o pensa-mento de Hegel. Porto Alegre : L & PM, 1983. p. 47.

4 MORENTE, op. cit., p. 273.5 Lógica formal, lógica dialética. Madrid : Siglo

XXI de España, 1970. p.55-101.

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verdadeira condição de possibilidade de todoevento cognitivo.

Tendo em conta, por outro lado, que, apesarda autonomia e da irredutibilidade dos elementosda relação ontognosiológica, o sujeito é sempredeterminado pelo objeto – mais precisamente,pela imagem do objeto que se forma em suaconsciência cognoscente –, em razão dessaprevalência do elemento objetivo, costuma-sedefinir o fenômeno do conhecimento como umadeterminação do sujeito pelo objeto.

Por isso, também se afirma que, no processognosiológico, o sujeito se conduz receptivamenteem face do objeto, muito embora essa recepti-vidade não signifique nem passividade nemsubordinação do sujeito perante o objeto. Issoporque, ao fim e ao cabo, o conhecimentoconstitui uma atividade espontaneamentedesenvolvida pelo sujeito, uma tarefa que eledesempenha para apreender o objeto, vale dizer,para dominar cognitivamente a realidade.

Noutras palavras, é saindo de sua esfera etrabalhando o objeto que o sujeito constrói oconhecimento e o traduz em linguagem. Nessaperspectiva, portanto, afigura-se equívocofalarmos em passividade do sujeito, como se,no processo do conhecimento, ele permanecessecontemplativo ou inerte diante do objeto, apenasregistrando sinais recebidos de fora da suaconsciência.

Afinal de contas, sem a criação do objeto,ainda que apenas enquanto objeto do conheci-mento – objeto que não é um ser em si e por si,mas uma entidade puramente lógica , que osujeito põe diante de si para ser conhecido –,não surge o fenômeno ou o evento a quechamamos conhecimento. Também sob esseponto de vista, portanto, pode-se dizer que osujeito é o senhor do conhecimento.6

A despeito de preservar, por essa forma, asua autonomia e atuar com espontaneidade noâmbito da relação cognitiva, impõe-se salientarque, mesmo assim, desde o início e definiti-vamente, o sujeito é determinado pelo objeto, pelasimples razão de que o conhecimento, sempre enecessariamente, é o conhecimento do objeto, dealgo externo e alheio, que está fora do sujeito,que se lhe opõe e para ele permanece um outro ,mesmo depois de ser apreendido pela consciência.

Em razão disso, o objeto transcende osujeito, em face do qual se mantém autônomoe independente, assertiva que é válida paraqualquer objeto do conhecimento, inclusivepara os objetos ditos ideais, que nem pelo fatode serem puros entes de razão perdem aquelatranscendência epistemológica em face dosujeito que lhes dá existência.

Destarte, a autonomia do objeto perante osujeito cognoscente é um dado a priori ou, comosalientado anteriormente, verdadeira condiçãode possibilidade do conhecimento, que se nosapresenta como a apreensão das propriedadesdo objeto pelo sujeito, descrição fenomenoló-gica essa que é válida tanto para o conheci-mento que se obtém entre as ciências naturais,quanto no âmbito das chamadas ciênciashumanas ou ciências do espírito.

2. A questão da autonomia do objeto noâmbito das ciências do espírito

Entre as ciências naturais, rigorosamente,como todos sabemos, a questão da autonomiado objeto sequer se coloca, pela evidência deque, nesse terreno, o sujeito do conhecimentonão pode criar nem consumir o objeto das suasinvestigações.

Externos, estranhos, de todo alheios aocientista, os fenômenos naturais não se prestama contaminações subjetivas, menos por virtudedo sujeito que pela impropriedade do objeto.

Desencantada pelo esclarecimento (Au-fklärung) – como diriam Adorno e Horkheimer7

–, a natureza há muito vem sendo estudada coma objetividade e o distanciamento necessáriosà racionalidade do seu conhecimento, o quetorna dispensáveis, até certo ponto, quaisquerpreocupações com a chamada neutralidadecientífica dos pesquisadores, apesar das respei-táveis opiniões em contrário daqueles que, vezpor outra, põem-se a denunciar os pecadosideológicos dos cientistas alienados, que serecusam aos engajamentos políticos exigidospelas circunstâncias.8

6 Sobre a importância do fator subjetivo noprocesso do conhecimento, ver SCHAFF, Adam.História e verdade. São Paulo : Martins Fontes,1987. Cap. 1, p. 65-98: A relação cognitiva, oprocesso do conhecimento, a verdade.

7 Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro :Zahar, 1986. p. 19.

8 Roberto Lyra Filho, por exemplo, denuncia omito da neutralidade científica, porque, a seu ver,sequer as ciências exatas ou naturais escapam dovínculo entre a atividade científica e a práxis social;mas tem o cuidado de esclarecer que essa posturacrítica não significa sua inscrição entre os bitoladosdefensores de uma ciência proletária, tal como aesboçou a teoria stalinista. (Desordem e processo.Porto Alegre : S. A. Fabris, 1986. p. 271).

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No âmbito da cultura, no entanto, porqueos estudiosos trabalham com formas significa-tivas, com a conduta e as criações do homem,numa palavra, com realidades que não seexplicam, antes se compreendem9, aquelaspreocupações de objetividade sempre se fizerampresentes, notadamente porque, nessa regiãoôntica, toda descoberta de sentido envolve ouexige, necessariamente, uma atribuição desentido.

Por isso, também, e diversamente do queocorre no âmbito das ciências naturais, nodomínio das ciências do espírito são imprecisosos limites entre sujeito e objeto, em que pese anecessidade epistemológica de que os dois pólosda relação ontognosiológica se mantenhamseparados e independentes, como condição depossibilidade do evento cognitivo.

Nesse terreno – obviamente com algumexagero –, talvez se pudesse dizer que a regraé a indefinição daqueles limites epistemoló-gicos, pela convicção generalizada, emboraacrítica, de que, sem a participação criadorado sujeito, restará comprometida ou pelo menosempobrecida a apreensão do objeto.

Daí o prestígio daqueles que, em nome daliberdade de interpretação – e a pretexto deestarem a condenar métodos e critérios que,aprioristicamente, eles mesmos desqualificamcomo impróprios ou inadequados para compre-ensão das coisas do espírito –, propugnam pelaabolição de quaisquer parâmetros de controle,que, afinal, permitiriam separar o joio do trigo,estremar o falso conhecimento do conhecimentoverdadeiro.

Nesse clima, em que praticamente tudo épermitido, em que se admite até mesmo apossibilidade de uma desordem fecunda10, soadescabida, para não dizer disparatada, a idéiade se trabalhar com critérios de verdade,porque o sujeito cognoscente não precisaassumir compromissos com a racionalidade doafazer hermenêutico, nem está obrigado aprestar contas do resultado do seu labor inter-pretativo.

Apesar ou a despeito desse panorama delicença epistemológica, não foram poucos osque se preocuparam com a necessidade desinalizar os caminhos da atividade hermenêu-tica, em busca da objetividade e da controlabi-lidade do trabalho interpretativo, movimentoque encontrou adeptos importantes tanto noâmbito das ciências do espírito, em geral,quanto nos domínios da hermenêutica jurídica,em particular. Neste terreno, aliás, aquelanecessidade se mostrou ainda mais premente,porque, afora os que defendiam a liberdade deinterpretação, surgiram também os pregadoresda livre criação do direito.11

Nesse contexto, deve-se a Emilio Betti amelhor formulação do que ele sugeriu fossedenominado o cânone da autonomia hermenêu-tica ou da imanência do critério hermenêutico,uma regra epistemológica que, sem desprezaro momento ou o fator subjetivo da interpretação,pudesse impedir que os críticos da objetividademergulhassem a hermenêutica num pântano derelatividade.12

Consoante esse paradigma – segundo o qualsensus non est inferendus, sed efferendus –,cumpre ao intérprete procurar extrair o signi-ficado inerente às formas representativas, aoinvés de tentar atribuir-lhes, ab extra e de modoarbitrário ou sub-reptício, sentidos outros, quelhes são estranhos e nem de longe coincidemcom aquilo que imaginaram os autores daquelasobjetivações do espírito.13

Essa é a lição que se recolhe na monumentalTeoria Generale della Interpretazione, sobfórmula que Emilio Betti considera uma versãomoderna e mais incisiva do velho cânone damens dicentis:

“In verità, se le forme rappresen-tative che costituiscono l’oggettodell’interpretazione, sono essenzial-mente oggettivazioni di una spiritualitàche vi si è calata, è chiaro che esse

9 Sobre a diferença entre esses atos gnosioló-gicos, na linha de Dilthey, ver FERRATER MORA,op. cit., p. 545-548 e 1102-1104: Compreensão eexplicação.

10 Umberto Eco utiliza-se da expressão desordemem sentido positivo, como deixa entrever o adjetivocom que a qualifica, ao mesmo tempo em que repudiaa desordem desprovida de positividade, aqueladesordem cega e incurável, que representa a derrotade toda possibilidade ordenadora. Obra aberta. SãoPaulo : Perspectiva, 1991. p. 23.

11 KANTOROWICZ, Hermann. La Ciencia delDerecho. Buenos Aires : Losada, 1949. p. 323-371:A luta pela Ciência do Direito

12 PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa :Edições 70, 1986. p. 56 e 64-65.

13 A propósito, embora feita em contexto umtanto diverso, registre-se esta instigante chamadade Umberto Eco: “entre a intenção do autor e opropósito do intérprete, existe a intenção do texto”.Interpretação e superinterpretação. São Paulo :Martins Fontes, 1993.

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debbono essere intese secondo quellospirito che in esse si è oggettivato,secondo quel pensiero que in esse si èreso riconoscibile, non già secondo unospirito e un pensiero diversi, e neppuresecondo un significato che alla nudaforma può venire attribuito, quando sefaccia astrazione dalla funzione rappre-sentativa cui essa serve rispetto a quellospirito e aquel pensiero”. (...)

“Contro ogni arbitrio soggettivo, ilcanone in parola impone di rispettarel’oggetto nel suo peculiare modo diessere, ed esige che sia misurato col suostesso metro.”14

3. A criação judicial do direito em face docânone hermenêutico da autonomia doobjeto e do princípio constitucional da

separação dos poderesAplicado ao plano específico da hermenêu-

tica jurídica, o cânone da autonomia do objetoimpediria que os aplicadores do direito atri-buíssem às normas sentido estranho, alheio oudiverso daquele que nelas se contém, pois, se ofizessem, estariam a criar, ainda que por viainterpretativa, preceitos outros, de todo distintosdaqueles que deveriam simplesmente inter-pretar.15

Como essa postura hermenêutica implicariaeliminar o dualismo sujeito-objeto e, conse-qüentemente, o próprio conhecimento enquantocorrelação ontognosiológica, não se afiguraexcessivo dizermos que – pelo menos de umponto de vista estritamente epistemológico – anorma criada pelo intérprete substituiria anorma objeto da interpretação e o juiz que aeditasse mataria o legislador.

Do ponto de vista jurídico-político, ademais,essa criatividade constituiria ofensa ao princípioda separação dos poderes, segundo o qual, noEstado de Direito, a criação da lei ou de normascom força de lei, como expressão da vontadegeral, é atividade própria dos órgãos de repre-sentação política, a tanto legitimados em

eleições livres e periódicas. Aos demaispoderes, executivo e legislativo, respectiva-mente, mas sempre sub lege, cabe gerir a coisapública e resolver as contendas entre oscidadãos ou entre estes e o Estado.

Desrespeitada a separação dos poderes,cujas funções se distinguem, precisamente, emface da lei, tem-se por comprometida, objeti-vamente, a legitimidade de qualquer sistemapolítico, pelo menos segundo os padrões dosredatores da Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão, em cujo texto foi inseridoo célebre artigo 16 – “Toute societé danslaquelle la garantie des droits n’est pasassurée, ni la séparation des pouvoirs déter-minée, n’a point de constitution” – com oobjetivo de recusar, ideologicamente, a digni-dade de Estado constitucional às comunidadespolíticas que não observassem aquele dogma.

Densificando esse princípio – uma formaque virou substância no processo de construção/aprimoramento do Estado de Direito –,Montesquieu chegou a dizer que não existirialiberdade política onde se misturassem asfunções próprias de cada órgão da soberaniaestatal:

“La liberté politique, dans uncitoyen, est cette tranquillité d’esprit quiprovient de l’opinion que chacun a desa sûreté; et, pour qu’on ait cette liberté,il faut que le gouvernement soit tel qu’un citoyen ne puisse pas craindre unautre citoyen.

“Lorsque dans la même personne oudans le même corps de magistrature lapuissance législative est réunie à la puis-sance exécutrice, il n’y a point de liberté,parcequ’on peut craindre que le mêmemonarque ou le même sénat ne fasse delois tyranniques pour les exécuter tyran-niquement.

“Il n’y a point encore de liberté si lapuissance de juger n’est pas séparéede la puissance législative et de l’exé-cutrice. Si elle étoit jointe à la puissancelégislative, le pouvoir sur la vie et laliberté des citoyens seroit arbitraire; carle juge seroit législateur. Si elle étoitjointe à la puissance exécutrice, le jugepourroit avoir la force d’un oppresseur.

“Tout seroit perdu se le même homme,ou le même corps des principaux, ou desnobles, ou du peuple, exerçoient ces troispouvoirs: celui de faire les lois, celuid’exécuter les résolutions publiques, et

14 Teoria generale della interpretazione. Milano :Giuffrè, 1990. v. 1, p. 305-306; Interpretación de laley y de los actos jurídicos. Madrid : Revista deDerecho Privado, 1975. p. 32-33.

15 Interpretação constitucional. Porto Alegre :S. A. Fabris, 1997. p. 39.

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celui de juger les crimes ou les différendsdes particuliers”.16

Diante desse dogma, que, no essencial,jamais encontrou opositores de monta, pelomenos nas sociedades democráticas, comoexplicarmos o fato de que a criação judicial dodireito sempre encontrou adeptos de granderespeitabilidade, em todos os quadrantes domundo jurídico? Como enfrentrar essa reali-dade, principalmente nos dias atuais, em que ochamado ativismo judicial, com o apoio deexpressivos setores da opinião pública, vemminando as resistências dos seus últimosadversários?

A propósito dessas e de muitas outras in-dagações formuláveis em torno do tema, acredi-tamos existirem algumas colocações básicas quepoderiam contribuir para racionalizar aqueledebate ou, pelo menos, reduzir-lhe a emotividade.

Por outras palavras, acreditamos que esseobjetivo poderia ser alcançado se lográssemosdesideologizar17 ou, pelo menos, despolitizara polêmica em torno da criação judicial dodireito. Nessa direção, seria saudável, porexemplo, rejeitarmos a postura fundamentalistados que não admitem sequer discutir o assunto,dominados pela crença de que o ativismojudicial é de todo incompatível com o regimedemocrático, no qual quem não tem votos nãotem legitimidade para emitir comandos comforça de lei.18

Essa tese, de consistência aparente, poderiaser enfrentada com o argumento de que osjuízes, embora não possuam legitimidade deorigem para produzir normas jurídicas19, de

certa maneira têm-na adquirida com aaprovação social do seu comportamento.20

Aceito esse ponto de partida, e admitidasalgumas conclusões formuladas anteriormente,consideramos que seria possível discutir comserenidade o problema da criação judicial dodireito à luz das seguintes proposições:

1. aquilo a que chamamos conhecimento éo fenômeno que consiste na apreensão do objetopelo sujeito, não do objeto propriamente dito,em si e por si – porque este transcende, neces-sariamente, o sujeito –, mas do objeto enquantoobjeto do conhecimento;

2. o objeto do conhecimento, portanto, éuma criação do sujeito, que nele põe ou supõedeterminadas condições para que possa serpercebido, como, por exemplo, formas deespaço e tempo, que não pertencem às coisasem si mesmas, mas apenas enquanto são coisaspara o sujeito;

3. nessa perspectiva, não tem sentido cogi-tar-se de um conhecimento das coisas em simesmas, mas apenas de um conhecimento defenômenos, isto é, de coisas já recobertas poraquelas formas, que são condições de possibi-lidade de todo conhecimento;21

4. em virtude da função constitutiva e trans-formadora , que o sujeito desempenha pordireito próprio no âmbito da relação ontogno-siológica, o conhecimento do objeto – dequalquer objeto – não é igual ao objeto doconhecimento;

5. o conhecimento dos objetos culturaistambém não coincide com o objeto desseconhecimento, conclusão que se impõe,digamos, com maior segurança na medida emque tais objetos, sendo realidades significativasou objetivações do espírito , exigem maiorcriatividade do sujeito para se revelarem emtoda a sua plenitude;

16 Oeuvres complètes de Montesquieu. Paris :Chez Lefèvre, 1859. p. 189-191: De l’esprit des lois.

17 A discussão da proposta será bloqueada, deplano, se lhe opusermos o argumento de que éformulada de uma perspectiva igualmente ideoló-gica, pois não existe lugar não-ideológico nas soci-edades políticas (RICOEUR, Paul. Interpretação eideologias. 3. ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves,1988); mas poderá mostrar-se fecunda se lheatribuirmos, pelo menos, uma função heurística.(VILLORO, Luis. El concepto de ideología y otrosensayos. México, 1985).

18 Cf., sobre essa questão, os estudos específicosconstantes da obra coletiva Legitimidade e legiti-mação da justiça constitucional. Coimbra : CoimbraEd., 1995.

19 Entre tais normas não se compreendem,evidentemente, as normas individuais, de Kelsen,as normas de decisão, de Ehrlich, nem tampouco asnormas do caso, de Fickentscher.

20 PRIETO SANCHÍS, Luís. Ideologia e inter-pretación jurídica. Madrid : Tecnos, 1993. p.117.

21 Essa afirmativa, assim como a primeiraproposição, situa-se no âmbito do idealismo trans-cendental, pois a teoria materialista do conhecimentorejeita esse conformismo epistemológico e postulaa possibilidade de conhecermos a realidade, aunidade do fenômeno e da essência. Daí, porexemplo, as palavras de Karel Kosik, fazendo ecoaos ensinamentos do pai fundador: “o esforço diretopara descobrir a estrutura da coisa e ‘a coisa em si’constitui, desde tempos imemoriais, e constituirásempre, tarefa precípua da filosofia”. Dialética doconcreto. 4. ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1976.p. 12-13.

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6. como o direito participa do mundo dacultura, o conhecimento das normas jurídicasestá submetido a todas as vicissitudes quesingularizam o processo gnosiológico dascoisas do espírito, o que se constitui um motivoadicional para não se exigir mais objetividadeaos sujeitos da interpretação;

7. a criatividade judicial, ao invés de serum defeito, do qual há de se livrar o aplicadordo direito, constitui uma qualidade essencial,que o intérprete deve desenvolver racionalmente;

8. a interpretação criadora é uma atividadelegítima, que o juiz desempenha naturalmenteno curso do processo de aplicação do direito, enão um procedimento espúrio, que deva sercoibido porque supostamente situado à margemda lei;

9. toda compreensão depende da pré-compreensão do intérprete, a qual funciona,para a primeira, como condição de possibili-dade do seu desenvolvimento;

10. a compreensão de qualquer preceitojurídico depende da pré-compreensão do intér-prete sobre a coisa ou o referente fundamentala que chamamos Direito, e que o legisladorprocura nos comunicar por meio dos enunciadosnormativos22;

11. toda norma só vigora na interpretaçãoque lhe atribui o aplicador legitimado a dizer odireito;

12. o legislador não é o autor material dalei, por virtude de cuja autoridade ela foipromulgada, mas aquele por cuja autoridadeela continua em vigor23;

13. o silêncio desse legislador ideal, quepode desautorizar qualquer interpretação dodireito, mas se abstém de fazê-lo, conferelegitimidade à compreensão normativa dejuízes e tribunais;

14. a vontade do legislador não é um atovoluntário, completamente produzido nomomento em que dá origem à lei, mas umaenergia que a regenera de modo contínuo, comose estivesse a produzi-la numa gestaçãoinfinita24;

15. a interpretação jurídica não consiste empensar de novo o que já foi pensado, mas emsaber pensar até ao fim aquilo que já começoua ser pensado por outro;25

16. o sentido jurídico, sendo externo àsnormas, em certa medida, embora não possacontrariar de todo o seu enunciado, exige acriatividade do intérprete para se revelarcompletamente;

17. sem o trabalho de mediação e deconcretização, que se impõe ao intérprete-apli-cador do direito, este não realiza o ideal dejustiça que consiste em dar a cada um o que éseu;

18. à luz do conhecimento histórico, pode-sedizer que a experiência do absolutismo e adesconfiança nos magistrados do rei foram ascausas determinantes da dogmatização ou doendurecimento do princípio da separação dospoderes;

19. a consolidação do Estado de Direito, emcujo âmbito tem-se mostrado eficaz o sistemade freios e contrapesos, afigura-se como razãosuficiente para a aposentadoria daquela camisa-de-força.

Ao fim e ao cabo, se essas pílulas de tran-qüilizante epistemológico não forem suficientespara acalmar os adversários da criação judicialdo direito, mesmo assim eles poderão ficarsossegados, pois, se algum poder ainda se faztemido e, por isso, deve ser controlado, esse é opoder do monarca despótico, que assustavaMontesquieu, e não o do juiz democrático, quedesfrutava da confiança de Hamilton.

4. ConclusãoAdotada essa postura aberta – avançada

talvez fosse o termo mais apropriado paradefini-la –, impõe-se reconhecer, à guisa deconclusão, que o paradigma da separação dospoderes, pelo menos em sua configuraçãoinicial, há muito tempo entrou em crise e issoaconteceu, precisamente, porque foi ultrapas-sada a conjuntura jurídico-política em queviveram Locke e Montesquieu, os seus geniaisformuladores.

Superada essa fase da sua evolução histó-rica – fase dialeticamente absorvida e conser-vada (Aufhebung) pelas etapas seguintes, quedela dependem para o seu próprio desenvolvi-mento –, cumpre repensar o paradigma da

22 MACHADO, J. Baptista. Introdução do direitoe ao discurso legitimador. Coimbra : Almedina,1989. p. 205-218; nosso Constituição : conceito,objeto e elementos. Revista de Informação Legisla-tiva. n. 116, p. 5-20, out./dez.1992.

23 HOBBES, Thomas. Léviathan. Paris : Sirey,1971. p. 283-284.

24 RADBRUCH, Gustavo. Filosofia do direito.Coimbra : A. Amado, 1961. v. 1, p. 275. 25 Ibidem, p. 274.

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separação dos poderes em perspectiva tempo-ralmente adequada.

Noutras palavras, impõe-se reinterpretar ovelho dogma para adaptá-lo às exigências domoderno Estado de Direito, que, sem deixar deser liberal, tornou-se igualmente social edemocrático, não apenas pela ação legislativados Parlamentos ou pelo intervencionismo igua-litarista do Poder Executivo, mas também pela

atuação política do Judiciário, sobretudo dasCortes Constitucionais, mais e mais compro-metidas com o alargamento da cidadania e arealização dos direitos fundamentais26.

À luz dessas reflexões, se não estivermosequivocados, é possível afirmar-se que asobrevivência da separação dos poderes,enquanto princípio, dependerá de sua adequaçãoàs mudanças impostas pela práxis constitucional.

26 Entre outros, CAMPOS, Francisco. DireitoConstitucional. Rio de Janeiro : Forense, 1942. p.339-354; DJORDJEVIC, J. et al. O papel do Execu-tivo no Estado moderno. Belo Horizonte : RevistaBrasileira de Estudos Políticos, 1959; BURDEAU,Georges. O Poder Executivo na França. Belo Hori-zonte, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1961;PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes comodoutrina e princípio constitucional. Coimbra :Coimbra Ed., 1989; CAPPELLETTI, Mauro. Juízeslegisladores? Porto Alegre : S. A. Fabris, 1993;BRITO, José de Sousa et al. Legitimidade e legiti-mação da justiça constitucional. Coimbra : CoimbraEd., 1995; MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdiçãoconstitucional. São Paulo : Saraiva, 1996; COELHO,Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional.Porto Alegre : S. A. Fabris, 1997; HÄBERLE, Peter.A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre :S. A. Fabris. (no prelo).

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A Fazenda Pública e a antecipação datutela

ANGELA CRISTINA PELICIOLI

SUMÁRIO

1. Introdução. 1.1. O princípio do duplo graude jurisdição. 1.2. A inexecutibilidade da antecipa-ção da tutela contra a Fazenda Pública. 1.3. A in-viabilidade da aplicação do art. 100 da CF frenteao instituto da antecipação da tutela. 1.3.1. A me-dida cautelar dita “satisfativa” contra a FazendaPública e a sua inviabilidade perante a expediçãodo precatório. 2. Conclusões.

Angela Cristina Pelicioli é Procuradora doEstado de Santa Catarina.

1. IntroduçãoA Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994,

que introduziu, no Código de Processo Civil,em seu art. 273, a antecipação da tutela, trouxeà luz uma significante modificação no proces-so de conhecimento.

Ocorre que não podemos crer que a anteci-pação da tutela tenha como apanágio a soluçãode todos os problemas que o Judiciário enfren-ta, atualmente, em função das críticas que vemsofrendo pela demora na prestação jurisdicio-nal. Essa problemática sempre existiu, e não ésó em nosso País que isso ocorre, tanto que aantecipação da tutela adveio do direito italianoque, também, sentia a necessidade de modifi-cações em seu sistema processual civil para umamaior rapidez na solução dos conflitos de inte-resses encaminhados ao Judiciário.

Não obstante a antecipação da tutela serinstituto que deverá amenizar essa situação sefor aplicado com a cautela e precaução dos nos-sos juízes, dentro dos limites especificados pelalei, verificamos que não poderá ser aplicadoem determinadas situações, como, por exem-plo, quando a Fazenda Pública for ré no pro-cesso em que seja requerida a antecipação datutela.

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Isso porque haveria a infringência ao dis-posto nos arts. 475, II, e 588, II e III, do Códi-go de Processo Civil, e aos arts. 100 e 165, §5º, da Constituição Federal.

Além do aspecto do tipo de ação em quecabe a antecipação da tutela, verificamos que amesma não pode ser concedida pelo juiz con-tra a Fazenda Pública, por possuir procedimen-to judicial completamente diverso dos proce-dimentos aplicados nas ações contra particula-res. Ratifica tal fato a aplicação, em favor daFazenda Pública, do princípio do duplo graude jurisdição necessário, da inexecutibilidadeda sentença sem que esta seja confirmada peloórgão superior e do procedimento de pagamentode referidas ações, mediante os precatórios.

Analisaremos, agora, essas situações dife-renciadas e seus aspectos favoráveis à tese doincabimento da antecipação da tutela contra aFazenda Pública.

1.1. O princípio do duplo grau de jurisdição

A primeira questão que devemos versar éacerca da infringência ao princípio do duplograu de jurisdição necessário, ensejador do re-curso ex officio, no caso de concessão da tutelaantecipada contra as pessoas de direito público.

Para que a questão fique esclarecida, ne-cessário conceituar o duplo grau de jurisdição.O mestre Moacyr Amaral Santos1 realiza essatarefa como ninguém, quando define que

“o princípio do duplo grau de jurisdição,consagrado na Revolução Francesa, con-siste em admitir-se, como regra, o co-nhecimento e decisão das causas por doisórgãos jurisdicionais sucessivamente, osegundo de grau hierarquicamente supe-rior ao primeiro.”

Continua o mestre:“A possibilidade do reexame reco-

menda ao juiz inferior maior cuidado naelaboração da sentença e o estímulo aoaprimoramento de suas aptidões funcio-nais, como título para sua ascensão nosquadros da magistratura. O órgão de grausuperior, pela sua experiência, acha-semais habilitado para reexaminar a causae apreciar a sentença anterior, a qual, porsua vez, funciona como elemento e freio ànova decisão que se vier a proferir.”

O art. 475 do Código de Processo Civil fazuma ressalva ao duplo grau de jurisdição,determinando que:

“Está sujeito ao duplo grau de juris-dição, não produzindo efeito senão depoisde confirmada pelo tribunal, a sentença:I - que anular o casamento; II - proferidacontra União, o Estado e o Município;III - que julgar improcedente a execuçãode dívida ativa da Fazenda Pública (art.585, VI). Parágrafo único. Nos casos pre-vistos neste artigo, o juiz ordenará a re-messa dos autos ao tribunal, haja ou nãoapelação voluntária da parte vencida; nãoo fazendo, poderá o presidente do tribu-nal avocá-los.” (grifo nosso)

Nesse contexto, o duplo grau de jurisdiçãoé direito inerente da parte, que poderá, volun-tariamente ou não, recorrer ao órgão hierar-quicamente superior para que seja reformada asentença proferida pelo juiz a quo. Ocorre que,no caso em que uma das partes é a FazendaPública federal, estadual e municipal, esse di-reito passa a ser um dever, qual seja, o da re-corribilidade das sentenças de ofício, em virtu-de de que a sentença, nesse caso, não transitaem julgado até a sua revisão pelo órgão superi-or. É o que consagra a jurisprudência, ipsislitteris:

“(...) a decisão monocrática proferidacontra a Fazenda Pública só terá eficá-cia e poderá produzir os efeitos da resjudicata depois de reexaminada a causapelo tribunal competente de segundograu. Estando incluída no princípio obri-gatório do duplo grau de jurisdição, asentença que, acolhendo argüição pres-cricional de execução de dívida ativa,proclama extinto o processo sem julga-mento do mérito deve ser remetida aotribunal de justiça para efeito de reexa-me obrigatório – inclusão do reexamenecessário na autuação”2.

A Fazenda Pública possui algumas garan-tias constitucionais e processuais para que sejaassegurado o interesse público, que são a basedo princípio da igualdade, e, como ensina Sea-bra Fagundes3, o legislador,

1 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas deProcesso Civil. 15. ed. Saraiva, 1995. v. 3, p. 83-84.

2 TJPR. 3ª Cível, 1ª Câmara Cível. Decisão unâ-nime. Ap. cível nº 37225. Relator: DesembargadorOto Sponholz. JUIZ, n. 7, jan./mar. 1997.

3 FAGUNDES, Seabra. O princípio constitucio-nal da igualdade perante a lei e o Poder Legislativo.RT, n. 253, p.3.

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“ao elaborar a lei, deve reger, com iguaisdisposições – os mesmos ônus e as mes-mas vantagens –, situações idênticas e,reciprocamente, distinguir, na repartiçãode encargos e benefícios, as situações quesejam entre si distintas, de sorte a aqui-nhoá-las ou gravá-las em proporção àssuas diversidades.”

O tratamento concedido à Fazenda Públicaé desigual no processo civil, pois deve preser-var o interesse e os bens públicos, não violan-do, como muitos afirmam, o princípio da igual-dade, vez que, como define João Mangabeira4,o princípio da igualdade consiste na

“igualdade em considerar desigualmentecondições desiguais de modo a abrandar,tanto quanto possível, pelo direito, asdiferenças sociais e por ele promover aharmonia social, pelo equilíbrio dos in-teresses e da sorte de classes.”

São asseguradas algumas garantias à Fa-zenda Pública em razão de diferenças intrínse-cas entre ela e os particulares, para o melhordesempenho de sua função, sendo que umadessas garantias é o princípio do duplo grau dejurisdição necessário, ou recurso de ofício.

Acresça-se a isso que as sentenças em re-curso de ofício não poderão ser reformadas inpejus contra a Fazenda Pública, justamente emfunção do interesse público e para não infrin-gir o disposto nos arts. 475, II, e 5125, ambosdo diploma processual.

As decisões dos tribunais refletem o susomencionado:

“Processual civil, reexame necessá-rio ou remessa oficial. Limites. CPC,arts. 475, II, e 512. Aplicação. I - O ree-xame necessário, previsto no art. 475 doCPC, não pode ser feito em prejuízo daentidade de direito público dele benefi-ciária. II - Aumentar, de ofício, o per-centual da verba advocatícia, em desfa-vor da parte beneficiária do reexame ne-cessário, implica ofensa ao princípio queveda a reformatio in pejus. III - Caracte-rização, no caso, de violação dos artigos475, II, e 512 do CPC e de dissídios pre-

torianos. IV - Recurso Especial conhe-cido e provido”6.

“Processual civil. Ação cautelar. Ho-norários. Cabimento. Violação ao prin-cípio da non reformatio in pejus. Súmu-la nº 45 do STJ. I - Consoante jurispru-dência predominante nesta corte, ‘sãodevidos honorários de advogado em açãocautelar contenciosa, pelo sucumbente’(Resp. ns. 30096/MG, 20407/RJ, 12554/MG). II - O instituto de remessa ex offi-cio consulta precipuamente o interessedo estado ou da pessoa jurídica de direi-to público interno, quando sucumbente,para que a lide seja reavaliada por umcolegiado e expurgadas imprecisões ouexcessos danosos ao interesse público. III- Fere a proibição de reformatio in pejusa decisão que, na remessa de ofício, agra-va a condenação impingida a autarquiafederal, sabendo-se que o duplo grau dejurisdição só a ela aproveita. IV - Se aparte vencedora no primeiro grau de ju-risdição deixou de recorrer, conclui-seque se conformou, in totum, com o jul-gamento, não se lhe podendo beneficiarmediante um recurso cujo interesse a tu-telar não é o seu. V - Súmula de nº 45-STJ. VI - Recurso provido, por unani-midade”7.

Demonstrado está que a Fazenda Pública étratada desigualmente frente aos particulares,para a resguarda do interesse público.

No que concerne à antecipação da tutelacontra a Fazenda Pública, não poderia ser di-ferente. Senão, vejamos.

O ato judicial que concede ou denega a an-tecipação da tutela é decisão interlocutória,conforme determina o art. 162 do CPC8, vezque, embora seus efeitos antecipem a senten-

4 MANGABEIRA, João. Em torno da Constitui-ção, p. 261. In: CRETELLA JÚNIOR, J. Comentá-rios à Constituição Brasileira de 1988. 3. ed. Riode Janeiro : Forense, 1992. v. 1, p. 179.

5 “Art. 512. O julgamento proferido pelo tribu-nal substituirá a sentença ou a decisão recorrida noque tiver sido objeto de recurso”.

6 STJ. 2ª turma. Decisão unânime. Resp. nº14093-SP. Relator: Ministro Antonio de Pádua Ri-beiro. DJ, p. 16522, 18 nov. 1991.

7 Idem. Resp. nº 34296-SP. Relator: MinistroDemócrito Reinaldo. DJ, p. 12866, 28 jun. 1993.

8“Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sen-tenças, decisões interlocutórias e despachos.

§ 1º Sentença é ato pelo qual o juiz põe termoao processo, decidindo ou não o mérito da causa.

§ 2º Decisão interlocutória é o ato pelo qual ojuiz, no curso do processo, resolve questão incidental.

§ 3º São despachos todos os demais atos do juizpraticados no processo, de ofício ou a requerimentoda parte, a cujo respeito a lei não estabelece outraforma.”

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ça, o processo não termina; há a resolução dequestão incidental, continuando o processo atéa prolação da sentença, no momento próprio.

Portanto, incompatível a antecipação datutela com o princípio do duplo grau de juris-dição necessário, especificado pelo art. 475, II,do diploma processual, posto que, com a con-cessão da antecipação da tutela, esta antecipa-rá os efeitos da sentença, ou seja, a determina-ção executiva ou mandamental do pedido àparte requerente será concedida mediante de-cisão do Poder Judiciário antes do momentopróprio, que seria a sentença. Assim, a anteci-pação da tutela será resolvida por meio de umadecisão interlocutória, que poderá sim ser agra-vada, mas não surtirá qualquer efeito, isso por-que, se a sentença, que é o mais, não surte efei-tos quando prolatada contra a Fazenda Públicaenquanto não confirmada pelo órgão superior,não pode uma simples decisão interlocutóriaassim fazê-lo9.

O Tribunal de Justiça do Estado do Espíri-to Santo, em decisões recentes de 6-5-96, nasSuspensões de Liminares nos 100950014926,100950015071,100950015063, 100950015048e 100950015014, tendo como relator o Des.Antonio José Miguel Feu Rosa10, decidiu que:

“A natureza jurídica da antecipaçãoda tutela é de decisão de mérito proviso-riamente exeqüível, colidindo com o art.475 do Código de Processo Civil, quedetermina o reexame necessário das de-cisões proferidas contra as pessoas dedireito público”.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina11,no mesmo diapasão, entendeu ser concedidoefeito suspensivo ao agravo de instrumento in-terposto pelo Estado de Santa Catarina contradecisão de concessão de antecipação de tutela,pelas seguintes razões de direito, in verbis:

“Analisando-se o presente recurso,mesmo que perfunctoriamente, resta evi-denciada a ilegalidade na antecipação detutela contra pessoa de direito público,alvo do despacho aqui detonado, sob

pena ultrapassar-se a proteção legal elen-cada no art. 475, II, do CPC. É sabidoque mesmo as sentenças proferidas con-tra a União, Estado e Município estãosujeitas ao duplo grau de jurisdição, pro-duzindo efeito somente após confirma-ção do órgão judiciário hierarquicamen-te superior, não cabendo, portanto, pro-mover tal efeito em julgamento provisó-rio, sujeito a revogação, através do insti-tuto jurídico da tutela antecipada. Ade-mais, percebe-se que o digno Togado, aoprolatar o despacho objurgado, ultrapas-sou os limites estabelecidos em lei, im-primindo-lhe caráter de execução de sen-tença. Nesse sentido é o entendimentodo insigne Antonio Raphael Silva Sal-vador, na obra Da Ação Monitória e daTutela Jurisdicional Antecipada, p. 56,Ed. Malheiros, 1995: ‘Entendemos im-possível a tutela antecipada concedida afavor de autor contra a União, o Estadoe o Município, pois aí haveria, obrigato-riamente, pedido de reexame necessáriose a concessão fosse em sentença final, oque mostra que não é possível, então, atutela antecipada, que burlaria a prote-ção legal prevista no art. 475, II, do Có-digo de Processo Civil.’ Assim, diantedas razões expostas, confiro efeito sus-pensivo ao agravo.”

No caso da antecipação da tutela ser conce-dida, juntamente com a sentença, caberá, tam-bém aqui, evidentemente, a regra do art. 475,II, do Código Processual Civil, não podendoser efetivada, na prática, a antecipação da tute-la pelas mesmas razões, vez que o recurso deofício, existindo ou não recurso voluntário daFazenda Pública, terá efeito devolutivo e sus-pensivo, conforme a regra do recurso de apela-ção (art. 520, CPC)12.

1.2. A inexecutibilidade da antecipação datutela contra a Fazenda Pública

A execução contra a Fazenda Pública é re-gulada em conformidade com o disposto no art.730 do Código de Processo Civil, que dispõe:

“Na execução por quantia certa con-tra a Fazenda Pública, citar-se-á a deve-dora para opor embargos em 10 (dez)dias; se esta não os opuser, no prazo le-

9 CONTE, Francesco. A Fazenda Pública e aantecipação jurisdicional da tutela. RT, v. 84, n. 718,p. 20, ago. 1995.

10 JUIS n. 8, jan./mar. 1997.11 Agravo de Instrumento nº 96004297-0. Esta-

do de Santa Catarina, Indústrias Novacki S/A e ou-tra. Relator: Desembargador Trindade dos Santos.DJ-SC, 26 jun. 1996.

12 “Art. 520. A apelação será recebida em seuefeito devolutivo e suspensivo.”

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gal, observar-se-ão as seguintes regras:I - o juiz requisitará o pagamento porintermédio do presidente do tribunalcompetente; II - far-se-á o pagamento naordem de apresentação do precatório e àconta do respectivo crédito”.

O aspecto fundamental para que o procedi-mento de execução contra a Fazenda Públicaseja diverso daquele utilizado contra os parti-culares é o de que os bens públicos são, em re-gra, impenhoráveis e não sujeitos a oneração.

A impenhorabilidade e a sua não-oneraçãoestão estritamente ligados, pois, como ensinao saudoso administrativista Hely Lopes Meire-lles13,

“desde que a Constituição da Repúblicaretirou a possibilidade de penhora debens da Fazenda Pública federal, esta-dual e municipal, retirou, também, apossibilidade de oneração de tais bens,uma vez que a execução de toda garan-tia real principia pela penhora, na açãoexecutiva correspondente, para a subse-qüente satisfação da dívida, mediantepraceamento ou adjudicação do bemdado em garantia”.

E mais adiante assevera:“A nosso ver, a proibição constituci-

onal abrange todo e qualquer bem daFazenda Pública, móveis, imóveis, ren-das e direitos creditórios, isentando-osde penhora. Não importa, por igual, ofim a que se destine a garantia real. Des-de que os bens públicos são insuscetí-veis de penhora, consectário legal daexecução para a satisfação do créditoobjeto da garantia real, ressalta a impos-sibilidade de se constituir penhor ou hi-poteca sobre os mesmos.”

Como vimos anteriormente, a antecipaçãoda tutela é uma decisão interlocutória com efeitode decisão de mérito, pois antecipa o pedido daparte, que seria concedido somente ao final,com a sentença.

Nesse contexto, a decisão da antecipaçãoda tutela, se concedida contra a Fazenda Públi-ca, não poderá ser executável, posto que indis-pensável o trânsito em julgado da sentença14 paraa realização da execução.

Não se aplica à Fazenda Pública a execução

provisória, pois, conforme reiteradas decisõesjurisprudenciais15, ocorre a falta de decisão comforça de res judicata e a execução contra a Fa-zenda Pública é sempre definitiva, a não serque parte da sentença tenha transitado em jul-gado e a outra parte esteja pendente de recur-so; neste caso, poderá haver a execução provi-sória daquela parte da sentença que já se con-verteu em título executivo judicial.

O art. 730 do Código Processual atende àsparticularidades de um processo executivo emque não possa haver penhora de bens, sobre osquais recaia atividade “juris-satisfativa” que lheé própria16.

A antecipação de tutela prevista no art. 273do Código de Processo Civil, § 3º, determinaque: “A execução da tutela antecipada obser-vará, no que couber, o disposto nos incisos II eIII do art. 588”.

O art. 588, inc. II e III, trata da execuçãoprovisória quando define:

“A execução provisória da sentençafar-se-á do mesmo modo que a definiti-va, observados os seguintes princípios: I- corre por conta e responsabilidade docredor, que prestará caução, obrigando-se a reparar os danos causados ao deve-dor; II - não abrange os atos que impor-tem alienação de domínio, nem permi-te, sem caução idônea, o levantamentode depósito em dinheiro; III - fica semefeito, sobrevindo sentença que modifi-que ou anule a que foi objeto da execu-ção, restituindo-se as coisas no estadoanterior”(grifo nosso).

Como verificamos do texto do art. 273, §3º, a execução provisória será utilizada na an-tecipação da tutela, “no que couber”, o que nãoé o caso da execução contra a Fazenda Pública,por não se adequar a esse sistema.

A execução provisória, portanto, é incom-

13 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-trativo brasileiro. 18. ed. Malheiros, 1993. p. 451.

14 SANTOS, op. cit. p. 277.

15 TJPR. 4ª Câmara Cível. Ap. Cível nº 67403.Relator: Desembargador Wilson Reback. 4 de mar-ço de 1996; Idem. 1ª Câmara Cível. Provimento doagravo. Agr. Instr. nº 68135. Relator: Desembarga-dor Oto Sponholz. 15 de abril de 1996; TARGS. 9ªCâmara Cível. Negado provimento unânime. AGInº 194015293. Relator: Desembargador AntonioGuilherme Tanger Jardin. 13 de setembro de 1994.JUIS, n. 7, jan./mar. 1997.

16 TJPR. 1º Grupo de Câmaras Cíveis. Conces-são da ordem em definitivo. MS nº 67815. Relator:Desembargador Oto Sponholz. 15 de abril de 1996.JUIS, n. 7, jan./mar. 1997.

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patível com o disposto no art. 730 do Códigode Processo Civil, vez que, como já decidiu oantigo Tribunal Regional Federal, sob a vigên-cia da Constituição de 1967, em seu art. 117,que possuía a mesma redação do atual art. 100da Constituição Federal,

“o art. 730 deverá ser interpretado emharmonia com o art. 117, da Constitui-ção, que estabelece que a execução con-tra a Fazenda Pública, através de preca-tório, pressupõe, sempre, sentença con-denatória passada em julgado. Destarte,dito artigo há de ser interpretado assim:a) os embargos ali mencionados devemser tidos como contestação, com incidên-cia da regra do art. 188 do CPC; b) setais embargos não forem opostos, deve-rá o juiz proferir sentença, requisitando-se o pagamento, por intermédio do pre-sidente do Tribunal, após o trânsito emjulgado da sentença, que estará sujeita,inclusive, ao duplo grau de jurisdição,se proferida contra a União, o Estado eo Município - CPC, art. 475, II”17 (grifonosso).

O disposto no art. 730 do diploma proces-sual civil, portanto, só tem aplicação no casode execução contra a Fazenda Pública fundadaem título judicial – sentença18, o que não é ocaso da antecipação da tutela, como já com-provamos, vez que é uma decisão interlocutória.

1.3. A inviabilidade da aplicação do art.100da CF frente ao instituto da

antecipação da tutela

O precatório tem origem na palavra preca-torius e significa a

“carta expedida pelos juízes da execu-ção de sentença, em que a Fazenda Pú-blica for condenada a certo pagamento,ao presidente do Tribunal, a fim de que,por seu intermédio, autorizem-se e se

expeçam as necessárias ordens de paga-mento às respectivas repartições paga-doras, especificadamente, contra a Fa-zenda Pública, para que esta pague”19.

O professor Milton Flaks20 ensina que oprecatório estava disciplinado nas Ordenaçõesdo Reino e, com a Proclamação da República,foi incorporado ao nosso ordenamento peloDecreto nº 3.084/1898. E dispõe que,

“tal como disciplinado na legislação or-dinária, até 1934 o precatório não ga-rantia o pagamento ao credor da Fazen-da Pública, visto que este ficava na de-pendência da boa vontade do Executivo,para efetivá-lo, e do Legislador, paraabrir o crédito correspondente”.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho21 dá-nosconta que foi com a Constituição de 1934 queo precatório foi instituído como regra para ga-rantia dos credores da Fazenda Pública.

Como já afirmado, os bens públicos nãopodem ser onerados; conseqüentemente, sãoimpenhoráveis; a partir daí, a forma pela qualserão executadas as sentenças judiciárias con-tra a Fazenda Pública sempre será mediante oprocedimento especificado no art. 730 e 731do Código de Processo Civil, qual seja, o paga-mento por meio de requisição judicial, na or-dem de apresentação do precatório e à contado respectivo crédito. Isso tudo se julgadosimprocedentes os embargos interpostos pelaFazenda Pública, ou no caso de não serem pro-postos tais embargos.

A Constituição Federal, em seu art. 100,determina que :

“À exceção dos créditos de naturezaalimentícia, os pagamentos devidos pelaFazenda Federal, Estadual ou Munici-pal, em virtude de sentença judiciária,far-se-ão exclusivamente na ordem cro-nológica de apresentação dos precató-rios e à conta dos créditos respectivos,proibida a designação de casos ou de

17 TRF. 6ª Turma. Ac. Apel. 112.799-SP. Rela-tor: Ministro Carlos Velloso. 25 de junho de 1986.RTFR, n. 156, p. 189; Idem. Apel. 114.618 - PR.Relator: Ministro Carlos M. Velloso. 8 de setembrode 1986. RTFR, n. 147, p. 139. In: PAULA, Alexan-dre de. Código de Processo Civil anotado. 6. ed.Revista dos Tribunais, 1994. v. 3, p. 2899.

18 TRF. 4ª Turma, Ac. Rem. ex officio nº114.423-SP. Relator: Ministro Antônio de PáduaRibeiro. 5 de novembro de 1986. RTFR, n. 147,p.189. In: PAULA, op. cit.

19 SILVA, op. cit. v. 3, p. 416.20 FLAKS, Milton. Precatório Judiciário na

Constituição de 1988. RP, n. 58, p. 85, apud voto doJuiz Nelson Gomes da Silva no MS nº 95.01.24093-2/DF - Pleno do TRF - 1ª Região. In: A Constitui-ção na visão dos Tribunais. Tribunal Regional Fe-deral da 1ª Região, Gabinete da Revista, Saraiva,1997. v. 2, p. 728.

21 FERREIRA FILLHO, Manoel Gonçalves.Comentários à Constituição Federal, v. 2, p. 213.In: A Constituição na visão dos Tribunais, p. 728.

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pessoas nas dotações orçamentárias e noscréditos adicionais abertos para este fim”(grifo nosso).

Para expedição do precatório, é preciso o(s)nome(s) da(s) parte(s) e a quantia líquida e certaa ser paga, sendo também indispensável, paraformação do processo do precatório, a cópiaautenticada da sentença e do acórdão que a te-nha confirmado, a certidão da conta da liqui-dação da sentença, se for o caso, e demais docu-mentos que entenderem necessários, como, porexemplo, a cópia da homologação do cálculo.

Firma-se, assim, que indispensável a sen-tença judiciária, ou seja, a sentença transitadaem julgado, para a consecução do precatório.E, como a antecipação da tutela concedida, li-minarmente ou durante o transcurso do pro-cesso, será realizada mediante decisão interlo-cutória, assim não poderá ser processada a ex-pedição do precatório, por faltar-lhe requisitoessencial, qual seja, a sentença transitada emjulgado. Dizer-se que a antecipação da tutelacontra a Fazenda Pública deverá ser cumpridanum prazo exíguo de horas é contrário à siste-mática da execução contra as pessoas jurídicasde direito público, sendo tal decisão absoluta-mente inconstitucional.

As decisões jurisprudenciais ratificam essasituação quando determinam que

“o ordenamento jurídico constitucionalem vigor dita, em seu artigo 100, o pon-to elementar da matéria, sustentando-seno pressuposto lege lata da inviabilida-de da execução provisória contra a Fa-zenda Pública, pois, para a expedição doprecatório requisitório, essencial o trân-sito em julgado da condenação do órgãodo poder público”22.

A tradução lógica é a de que“a execução contra a Fazenda Pública so-mente pode fundar-se em título judicial.O detentor de título extrajudicial deve pro-por ação de conhecimento para obtençãodo título judicial e posterior execução”23.

O Tribunal Regional Federal, em decisão

recente, definiu que, no caso de execução con-tra a Fazenda Pública, por título extrajudicial,cabe o procedimento do artigo 730 do CPC,tendo no entanto que, “para compatilizar-secom a exigência constitucional, para pagamen-to via precatório (art. 100 da CF), desafia pro-lação de sentença”24. Essa decisão é inovadorano sentido de que diz ser possível a execuçãocontra a Fazenda Pública de título extrajudici-al, mas traz à luz sempre a necessidade da pro-lação de sentença para converter o título extra-judicial em judicial, viabilizando, assim, o pa-gamento de dívida contra as pessoas jurídicasde direito público.

Até mesmo no que se refere aos créditos denatureza alimentar, existem reiteradas decisõesdos Tribunais no sentido de que há a necessi-dade de expedição de precatórios25.

O próprio Supremo Tribunal Federal já temdecido, inúmeras vezes, que nem os créditosde natureza alimentícia, referidos no art. 100da CF, estão isentos de serem objeto de preca-tórios, por entender, na figura de seu ilustreMinistro Sydney Sanches, que

“os créditos de natureza alimentícia, alireferidos, também devem ser objeto de pre-catórios, para efeito de inclusão no orça-mento das entidades (devedoras) de direi-to público, submetendo-se, porém, taiscréditos a ordem cronológica específica,não à ordem geral dos demais créditos”26.

22 Agr. Instr. nº 68135, op. cit.23 TACivSP. Primeiro. 8ª Câmara. Ac. unânime.

Reex. nec. 365.405. Relator: Juiz Raphael Salva-dor. 24 de fevereiro de 1987. RT, n. 619, p. 120;TFR. 4ª Turma. Ac. Ap. nº 118.965-GO. Relator:Ministro Antônio de Pádua Ribeiro. DJ, 27 ago.1987; Adcoas, n. 118.148, 1988; Rem. ex officio nº114.423-SP, op. cit.

24 TRF. 1ª Região. 4ª Turma. Decisão. Ag. nº96.01.02966-4/MG. Relator: Juíza Eliana Calmon.6 de março de 1996. DJ-2, p. 21.922, 8 abr. 1996.

25 Idem. 2ª Região. 2ª Turma. Decisão. Ac. nº95.02.01701/RJ. Relator: Juiz Alberto Nogueira. 14de junho de 1995. DJ-2, p. 56.020, 31 ago. 1995;STJ. 5ª Turma. Decisão por unanimidade. ROMSnº 2436-SP. Relator: Ministro Jesus Costa Lima. DJ,p. 10882, 9 de maio de 1994; STF. ADIn nº 675/DF; Idem. ADIn nº 47. Relator: Ministro Gallotti.22 de outubro de 1992.

26 STF. 1ª Turma. RE nº 1536641-SP. INSS eSebastião Machado Bezerra. Relator: Ministro Syd-ney Sanches. DJ, p. 24918, 18 ago. 1995; no mes-mo sentido, idem. RE nº 171452-SP. INSS e MartinPassoni Paiva. Relator: Ministro Sydney Sanches;idem. RE nº 169575-SP. INSS e Francisco OsmarSilva Carvalho. Relator: Ministro Sydney Sanches;idem. RE nº 165134-SP. INSS e Valdecírio TelesVeras. Relator: Ministro Sydney Sanches. JUIS, n.8, abr./jun. 1997; idem. RE nº 168607-SP. INSS eNelson Joaquim. Relator: Ministro Sepulveda Per-tence. DJ, p. 26047, 25 ago. 1995; idem. RE nº173238-SP. Relator: Ministro Moreira Alves. DJ,p. 40407, 24 nov. 1995.

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Assim, se os créditos de natureza alimen-tar sujeitam-se à ordem cronológica dos preca-tórios, e, para expedição deste, indispensável asentença judiciária, que é o mais, não se podepermitir a antecipação da tutela contra aFazenda Pública, que é realizada mediante de-cisão interlocutória, que é o menos.

Outro critério exigível para expedição doprecatório é o de que o valor seja líquido e cer-to. Isso ocorre para que seja incluída no orça-mento a verba necessária ao pagamento dos seusdébitos, não sendo possível a fixação de crité-rios para obtenção de valores variáveis no fu-turo27. As dotações orçamentárias e os créditosabertos serão consignados ao Poder Judiciário,recolhendo-se as importâncias respectivas àrepartição competente, cabendo ao Presidentedo Tribunal que proferir a decisão exeqüendadeterminar o pagamento (art. 100, § 2º, da CF).

Todas as receitas e despesas referentes aoPoder Público deverão obedecer às disposiçõesestabelecidas por lei orçamentária (art. 165, §5º, da CF).

O orçamento público é formado por váriosprincípios básicos, sendo que um deles confi-gura exatamente a situação que estamos vis-lumbrando, ou seja, o princípio da universali-dade em que “deverão ser incluídos no orça-mento os aspectos do programa de cada órgão,principalmente aqueles que envolvam qualquertransação financeira”28.

O princípio da universalidade apresenta trêsvantagens:

a) conhecer a priori todas as receitas e des-pesas do governo e dar prévia autorização paraa respectiva arrecadação e realização; b) impe-dir ao Executivo a realização de qualquer ope-ração de receita ou despesa sem prévia autori-zação parlamentar; c) conhecer o exato volu-me global das despesas projetadas pelo gover-no, a fim de autorizar a cobrança dos tributosestritamente necessários para atendê-las”29.

Todas as despesas, incluídas as judiciais,contra a Fazenda Pública deverão estar con-signadas em lei orçamentária anual; por issoque o prazo para apresentação da lista dos pre-catórios ao Presidente do Tribunal far-se-á atéo dia 1º de julho, data em que serão atualiza-dos seus valores, fazendo-se o pagamento até ofinal do exercício seguinte (art. 100, § 1 º, da CF).

As situações narradas comprovam de pla-no não ser possível a antecipação da tutela con-tra a Fazenda Pública, por absoluta incompati-bilidade entre o procedimento para a execuçãocontra as pessoas de direito público e a expedi-ção do precatório, que necessitam de uma sen-tença transitada em julgado, pois somente nelaé que se terá a certeza do valor que deverá serpago pela Administração Pública.

1.3.1. A medida cautelar dita “satisfativa”contra a Fazenda Pública e a sua inviabilidade

perante a expedição do precatórioAntes de adentrarmos nessa questão, neces-

sária uma explicação.Como, no direito brasileiro, inexistia o ins-

tituto da antecipação da tutela, a medida cau-telar era utilizada, por alguns, como meio parasuprir tal deficiência, dando um caráter satis-fativo inexistente a esta, que é somente asse-guratória de um direito que será pleiteado emoutra ação. Portanto, dava-se a algumas medi-das cautelares, equivocadamente, caráter satis-fativo, o que não pode acontecer, porque, se amedida cautelar for “satisfativa”, será desca-racterizada a sua natureza jurídica, vez que asua finalidade é a de proporcionar segurançapara o resultado útil do processo principal, di-ferentemente da tutela antecipatória, que é aantecipação dos efeitos da sentença antes domomento próprio, que seria quando da prola-ção da sentença.

A jurisprudência já faz essa distinção em de-cisões recentes dos Tribunais. Senão, vejamos:

“Processo cautelar - Liminar - Antecipaçãoda tutela. O processo cautelar não se presta paraa antecipação da eficácia do provimento juris-dicional que será objeto da futura ação princi-pal, vale dizer, o processo cautelar é inadequa-do para a antecipação da tutela. O processocautelar tem por finalidade precípua assegurar

27 Idem. 2ª Turma. Ac. unânime. RE nº 117.825-SP. Relator: Ministro Aldir Passarinho. 25 de no-vembro de 1988. RTJ, n. 128, p. 936; STJ. 1ª Tur-ma. Ac. unânime. Rec. Esp. nº 1.376-SP. Relator:Ministro José Delgado. 22 de novembro de 1989.JSTJ-TRFs, n. 6, p. 183, RT, n. 652, p. 179; TJMG.4ª Câmara. Ac. unânime. Agr. nº 20.433-4. Relator:Desembargador Capanema de Almeida. DJMG, 6jun. 1989, Adcoas, n. 126.411, 1990.

28 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Cons-titucional Positivo. 11. ed. Malheiros, 1996. p. 676.

29 SILVA, Sebastião de Sant’ Anna e. Os princí-pios orçamentários, p. 14, apud SILVA, José Afonso

da. Orçamento-programa no Brasil, p. 147. In: FER-REIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários àConstituição, v. 3, p. 144, publ. A Constituição navisão dos Tribunais, op. cit. p. 1177.

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o resultado útil do processo principal, este queserá de conhecimento ou de execução. O pro-cesso cautelar, portanto, não é substitutivo nemsucedâneo do processo de conhecimento ou doprocesso de execução. Estes realizam a preten-são material do demandante; aquele asseguraa eficácia do seu resultado. Assim, o objetivodo processo cautelar, como a sua denominaçãoo revela, é proporcionar cautela para o resulta-do do processo principal, cautela esta que nãose confunde com a tutela. Agravo de instru-mento desprovido”30.

Outra situação que devemos levar em con-ta para a não-concessão de medida cautelar ditacomo “satisfativa” contra a Fazenda Pública,além da regra geral, é a de que a cautelar nãotem força de antecipar a sentença, e, em sendoconcedida a medida cautelar “satisfativa”, ha-verá a execução provisória em sede de liminar,o que não pode ocorrer quando a Fazenda Pú-blica for ré no processo por inexistir senten-ça31, pois a liminar da cautelar, como sabemos,é decisão interlocutória.

Somado a esses argumentos, existe outropreponderante, qual seja, o de que é inviável aconcessão dessa medida cautelar “satisfativa”contra a Fazenda Pública, sendo inaplicável oinstituto ao regime do precatório, uma vez queas sentenças judiciais contra a Fazenda Públi-ca estão sujeitas32 a esse regime, utilizando-se,nessa situação, as mesmas razões declinadasno item 1.3. de nosso trabalho.

2. ConclusõesAdmitir-se a antecipação da tutela contra a

Fazenda Pública, federal, estadual e munici-pal, seria mais uma vez deixá-la sujeita a per-das irreparáveis, descumprindo-se o princípiodo duplo grau de jurisdição, o preceito de quenão pode existir execução contra a FazendaPública sem título executivo, e, o mais grave,estar-se-ia admitindo que, mediante uma deci-são interlocutória, concessiva de tutela anteci-pada, o autor de um processo de conhecimentoinfringisse o preceito do precatório estabeleci-do no art. 100 da CF e, conseqüentemente, alei orçamentária anual, de iniciativa do Exe-cutivo, que deverá estabelecer todos os seusgastos com antecedência (art. 165, § 5º, da CF).

Esperamos ter restado induvidoso que aconcessão de antecipação de tutela contra aFazenda Pública é medida ilegal e abusiva porferir princípios e preceitos estabelecidos na leiprocessual e na Carta Magna de 1988.

No mesmo diapasão, é incabível a conces-são da referida medida cautelar “satisfativa”contra a Fazenda Pública, por não poder-seconfundir processo cautelar com antecipaçãode tutela, posto que a tutela cautelar asseguraum direito que será ou não reconhecido no pro-cesso principal, assegura a pretensão requeri-da pela parte, enquanto a antecipação da tute-la, ou tutela antecipada, satisfaz de imediatoos efeitos da sentença, não necessitando de umprocesso principal.

30 TJPR. 1ª Câmara Cível. Decisão por unani-midade negando prov. agravo. Agr. Intr. nº 6983.Relator: Desembargador Pacheco Rocha. 1º de ju-lho de 1996. JUIS, n. 8, abr./jun. 1997; no mesmosentido: idem. Agr. Instr. nº 62887. Relator: Desem-bargador Pacheco Rocha. 5 de fevereiro de 1996.JUIS, n. 8, abr./jun. 1997.

31“Agravo - ICMS - Revenda de automovéis -Substituição tributária - Credenciamento - Medidacautelar inominada - Restituição - Deferimento deliminar. A decisão do juiz singular, no caso, signifi-ca tutela jurisdicional satisfativa e definitiva, ou seja,execução provisória da sentença ainda não prolata-da - Inviabilidade - Agravo provido. Decisão: unâ-nime.” (Idem. 2ª Câmara Cível. Agr. Instr. nº 72372.Relator: Desembargador Angelo Zattar. 20 de maiode 1996. JUIS, n. 7, jan./mar. 1997.)

32 “Medida cautelar - Compensação - AIR comICMS - inadmissibilidade - precatório - sujeição.(..) 4. a postulação da agravante ainda encontra óbi-ce no sistema de pagamentos a que se sujeita a Fa-zenda Pública quanto a débitos reconhecidos emjuízo, segundo prevê a Constituição Federal, in

verbis: ‘à exceção dos casos de natureza alimentí-cia, os pagamentos devidos pela Fazenda federal,estadual ou municipal, em virtude de sentença judi-cial, far-se-ão exclusivamente em ordem cronológi-ca de apresentação dos precatórios e à conta doscréditos respectivos, proibida a designação de ca-sos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e noscréditos adicionais abertos para este fim’”. TJSP.13ª Câmara Cível. Ac. unânime. Ag. 240.672-2/4.Irmãos Caio S/A Comercial e Algodoeira e Fazendado Estado. Relator: Desembargador Correia Lima.24 de maio de 1994.

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Droit de suite ou direito de seqüência dasobras intelectuais

Fábio Maria De-Mattia é Professor Titular doDepartamento de Direito Civil da Faculdade deDireito da Universidade de São Paulo – área deDireito Agrário –, Professor de Direito Civil e deDireito Agrário.

1. Importância do tema. 2. Conceito. 3. Naturezajurídica. 4. Abrangência, objeto ou obras sujeitasao droit de suite. 5. Beneficiários. 6. Duração. 7.Porcentagem. 8. A gestão, a cobrança, a necessidadedas sociedades de titulares.

SUMÁRIO

FÁBIO MARIA DE-MATTIA

1. Importância do temaO direito de seqüência sobre as obras inte-

lectuais é um tema de alta relevância porquenão é justo que o autor ou seus herdeiros fiquemcompulsoriamente alheios quando da transfe-rência de uma obra de arte, de um manuscrito,de direito sobre obra intelectual objeto deanterior cessão.

Conforme informação de Ricardo AntequeraParilli, o instituto foi adotado em 30 a 40 países.

Os autores vendem as obras de arte, porexemplo, por um preço baixo e não é justo,equânime que da valorização econômica daobra, do bem apenas os proprietários venhama se beneficiar.

É justo que, após a transferência do direito,mantenha-se ainda um vínculo entre o autor ea sua obra, porque este vínculo será o únicoremanescente de direito pecuniário a favorecero autor ou seus herdeiros, sucessores, lega-tários ou instituições que sejam investidas detal direito.

Javier Gutierrez Vincén explica:“Com isso, estas criações de intelecto

humano promovem um valor tal que temdado a um fenômeno conhecido comoplus-valia, que, pelas vendas sucessivas,transformaram a obra em objeto deespeculações.” (La gestión de los

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derechos de autor en las obras plásticas.In: CONGRESO IBEROAMERICANODE PROPIEDAD INTELECTUAL, 1.Anais... t. 1., p. 249-250).

Considero que o que se quer é dar ao autoro direito de participação nessa valorização, poisas obras intelectuais nada mais são do que aemanação da própria personalidade do seucriador. (Estudos de Direito de Autor. SãoPaulo : Saraiva, 1975. p. 91).

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima apontaque a:

“principal característica do direito deseqüência, para os países integrantes daConvenção de Berna, é a sua flexibili-dade. Assim como a duração, os titularese as obras que são protegidas variam detextura de país para país, a porcentagemincidente também não é a mesma naslegislações que o adotam” (Droit de Sui-te. São Paulo, 1994, p. 40).

A importância do instituto se revela por terHubert Roger-Vasselin apresentado tese naUniversidade de Paris II, em 1975, sob o título:Le droit de suite après la mort de l’artiste, com404 páginas.

Anteriormente, J. L. Duchemin, em 1948,escreveu obra sob o título Le droit de suite desartistes, com 322 páginas, publicado em Paris,por Thuillies, Recueil Sirey, Editions Ramgal.

Há trabalhos de Wilhelm Nordemann,Wladimir Duchemin, Robert Rie, Paul Katzen-berger.

2. ConceitoPara Carlos Alberto Bittar, é:

“um reflexo patrimonial do direitoautoral reconhecido ao criador de obraintelectual, que o vincula perenemente,sob essa participação, à circulação daobra no mercado de arte” (Direito deAutor. Rio de Janeiro : Forense, 1991.p. 54).

E acrescenta:“Outrossim, na alienação de obra de

arte ou de manuscrito, sendo originais,ou de direitos patrimoniais sobre obraintelectual, o autor tem direito, irrenun-ciável e inalienável, de participar namais-valia que, em favor do vendedor, aeles advier, em cada nova alienação (art.39), ressalvada a resultante de simplesdesvalorização da moeda, ou a limitação

do preço a valor inferior a cinco vezes omínimo previsto (§ 2º).” (Ibidem, p. 53).

3. Natureza jurídicaCarlos Alberto Bittar, com propriedade,

considera-o:“direito de textura híbrida porque,tratado, entre nós, como direito pecu-niário, possui duas característicaspróprias do direito moral: a inalienabi-lidade e a irrenunciabilidade” (Ibidem,p. 54).

Tenho sustentado que:“o direito de seqüência é um direitoconexo ao direito de autor, conexo nosentido de ligado, dependente a eleporque da mesma natureza jurídica” (op.cit. p. 97).

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima seposiciona:

“O melhor argumento para definir operfil jurídico da fattispecie em apreço éo mesmo utilizado para defender anatureza jurídica do direito de autor, istoé, como um direito sui generis.” (op. cit.p. 36)

Adoto a posição de direito de autor suigeneris, direito de textura híbrida. Esta últimaclassificação, “porque, tratado, entre nós, comodireito pecuniário, possui, conforme foi ditolinhas acima, caracteres próprios do direito mo-ral: a inalienabilidade e a irrenunciabilidade”,como ensina Carlos Alberto Bittar (op.cit.p. 54).

José de Oliveira Ascensão enquadra-o comodireito patrimonial:

“autoriza o autor a sacar um provento,não sem defendê-lo em aspectos pessoais”.(Direito de Autor e Direitos Conexos.Coimbra : Coimbra Ed. 1992. p. 349)

A Lei portuguesa o cuida no artigo 54, nocapítulo da transmissão e oneração do conteúdopatrimonial do direito de autor.

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima, seguindoa posição de Carlos Alberto Bittar, afirma:

“é fácil concluir que, assim como odireito de autor é integrado por prerro-gativas de ordem moral e patrimonial, odroit de suite também o é”. (p. 36)

A Convenção de Berna, artigo 14, prevê oinstituto.

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O caráter de direito moral de autor consisteno fato de a Lei nº 5.988, no artigo 39, deter-minar a inalienabilidade e irrenunciabilidadede tal direito, com o escopo de permitir tão-somente ao autor e seus sucessores o seuexercício.

É fácil compreender que o adquirente deuma obra de arte plástica, de um manuscritoou de determinado direito de autor que permitesua reprodução, representação ou execução, seinexistisse a proibição legal, só negociaria coma renúncia de tal direito ou com a transferênciado mesmo. Ex.: editor cessionário de direitode autor sobre obra literária, obra musical, peçateatral, adquirente de obra plástica, direitosobre negativo de fotografia, projeto arqui-tetônico, etc.

4. Objeto ou abrangência ou obrassujeitas ao droit de suite

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima aponta aexistência de dois sistemas segundo a lição doautorizado Ricardo Antequera Parilli:

1º) com alcance amplo;2º) com alcance restrito.Como exemplos do sistema restritivo, temos

as “orientações traçadas” pela Convenção deBerna, Alemanha, Bélgica e França.

A Convenção de Berna insere, no âmbitodo direito de seqüência, somente as obras dearte originais e os manuscritos originais deescritores e compositores. Na versão da Revisãode Paris, a 24 de julho de 1971, o artigo 14 terdispõe:

“1) Pelo que respeita às obras de arteoriginais e aos manuscritos originais deescritores e compositores, o autor – ou,após a sua morte, as pessoas ou institui-ções a que a legislação nacional derlegitimidade para tal – goza de um direitoinalienável de se beneficiar das operaçõesde venda de que a obra for objeto depoisda primeira cessão praticada pelo autor.

2) A proteção prevista na alínea suprasó é exigível em cada país da União se alegislação nacional do autor admitir essaproteção e na medida em que o permitaa legislação do país em que essa proteçãoé reclamada.

3) As modalidades e as taxas depercepção são determinadas por cadalegislação nacional.”

Sobre a Lei Francesa, Henri Desbois ensinaque as expressões “obras gráficas” e “plásticas”abrangem as obras literárias, musicais,pinturas, esculturas, trabalhos arquitetônicos edesenhos. Em seguida, o autor abre debate sobreos manuscritos de trabalhos musicais ouliterários, quando conclui que os manuscritospodem ser incluídos na categoria das obrasgráficas. (Droit d’ Auteur, nº 303, p. 394)

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima, que indicao sistema de amplo alcance, como o nosso,aponta que diversas obras são tuteladas pelodireito de seqüência.

A Lei número 5.988, no artigo 39, dispõe:“O autor que aliena obra de arte ou

manuscrito, sendo originais ou direitospatrimoniais sobre obra intelectual, temdireito irrenunciável e inalienável aparticipar na mais-valia que a eles advier,em benefício do vendedor, quandonovamente alienados.”

O CNDA – Conselho Nacional de DireitoAutoral, nos limites de sua competência,procurou regulamentar o conteúdo do artigo 39,que era letra morta na novel lei.

Para tanto, o Presidente José Carlos CostaNetto, tendo presente processo gerado porconsulta formulada por pessoa que se diziabeneficiária quanto ao droit de suite deixadopelo artista Emiliano Di Cavalcanti, decidiuconstituir comissão para estudar a regulamen-tação do referido artigo 39.

A comissão foi constituída por Fábio MariaDe-Mattia, conselheiro presidente, e pelosconselheiros Henri Mario Francis Jensen eCláudio de Souza Amaral.

Essa comissão apresentou projetos de reso-lução que geraram as Resoluções números 22,de 9 de janeiro de 1981, e 27, de 9 de dezembrode 1981.

A primeira (Resolução CNDA nº 22), soba denominação “Regulamenta o exercício dodireito de seqüência”, previsto no art. 39 eparágrafos da Lei nº 5.988, de 14 de dezembrode 1973, e a segunda (Resolução CNDA nº 27),sob o título “Complementa as disposições daResolução CNDA nº 22, de 9 de janeiro de1981, sobre direito de seqüência”, indicam oconteúdo do que é o direito de seqüência, sendoa de número 27 datada de 9 de dezembro de1981.

A Resolução nº 22 alcança obras de arte,manuscrito e os direitos patrimoniais sobre obraintelectual.

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Diante da falta de possibilidade de aplicardiretamente o artigo 39, o CNDA, medianteresoluções, procurou apontar o conteúdo doinstituto.

O art. 1º da Resolução CNDA nº 22, de8-1-1981, dispõe:

“O autor que alienar obra de arte oumanuscrito, sendo originais, ou direitospatrimoniais sobre obra intelectual, temdireito a participar da mais-valia que aelas advier, em benefício do vendedor,quando novamente alienados.”

O parágrafo único dispõe:“Para os efeitos da presente Reso-

lução, entende-se por:1) Obras de arte – as criações exte-

riorizadas sob a forma de:a) pintura, desenho, escultura,

gravura, litogravura, xilografia, pirogra-vura ou qualquer outro processo;

b) tapeçaria quando assinada e exe-cutada com base em desenho original;

c) plantas, esboços e maquetes arqui-tetônicos;

d) as manifestações de arte aplicadae quaisquer outras expressões artísticasprotegidas no campo das artes plásticas.

2) Manuscrito – o original, dopróprio punho, ou datilografado, comemendas manuscritas do autor, ou aindaas provas impressas do livro com corri-gendas por ele feitas a mão.”

A Resolução nº 27, de 9 de dezembro de1981, dispôs sobre as reproduções feitas e assi-nadas pelo autor:

“Nos termos do art. 9º da Lei nº5.988/73, às reproduções feitas e assi-nadas pelo autor é assegurada a mesmaproteção do original.”

“§ 1º - No caso das expressões de artemultiplicável, os efeitos desta Resoluçãoaplicar-se-ão apenas sobre as cópiasassinadas, numeradas ou codificadas eautenticadas pelo autor ou seus her-deiros.”

Lamentavelmente, o funcionamento dodroit de suite foi impossibilitado pela revogaçãodas Resoluções números 22 e 27 mediante aResolução nº 49, de 25 de fevereiro de 1987,publicada no Diário Oficial da União, Seção I,página 3.178, caracterizando retrocesso emmatéria que tem recebido, ultimamente, inte-

resse internacional na consolidação do instituto.A Lei de Direito Autoral, no artigo 39,

caput, inclui, na incidência do dispositivo, osdireitos patrimoniais sobre obra intelectual.

Quanto aos manuscritos, além dos propria-mente ditos, o corpus mechanicum datilogra-fado, com pequenas anotações, é uma obraprotegida. (De-Mattia, op. cit. p. 101).

E perguntou-se: se o criador da obraintelectual, sabendo da possibilidade deconseguir recursos por meio da feitura devários originais, executar vários exemplares,seriam obras protegidas? Os autores têmentendido que sim.

Então, se os autores fazem dois, três ouquatro originais, entregam um para o editor eficam com os outros dois ou três, a família, apóssucessivas vendas desses originais, poderá terdireito a uma plus-valia.

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima demonstraque o droit de suite:

“não deve incidir somente quando a obrafor objeto de venda e compra, mas emtodas as alienações onde houver valori-zação da obra.”

Um problema prático que se propõe é se odireito de seqüência deveria incidir tão-somentenas vendas em leilões ou por marchands.

Jóse de Oliveira Ascensão aponta talsituação para as obras de arte e assevera:

“Nomeadamente, em relação às obrasde arte, restringem freqüentemente àsalienações em que intervém comercianteou leiloeiro.” (p. 322).

Para este autor:“Portanto, é só ao titular originário que

cabe beneficiar do direito de seqüência.”O Professor Antonio Chaves informa que,

diferentemente da lei brasileira e da Convençãode Berna, a lei espanhola, no artigo 24 (Lei nº22, de 11 de novembro de 1987), seguindo oexemplo dos textos equatoriano, chileno eperuano, não alude aos manuscritos dos escri-tores e compositores.

O direito de seqüência não alcança as artesaplicadas.

O droit de suite não alcança as obrasarquitetônicas na observação de RicardoAntequera Parilli.

Wlademir Duchemin, em trabalho intitu-lado Suggestions en vue d’une amélioration dela protection des photographies dans la

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Communauté Européenne. RIDA, v. 105, p. 11,afirma:

“Mas em todos países que o insti-tuíram (França, Bélgica, Itália, Alema-nha Federal e Luxemburgo), excluírama fotografia do campo de aplicação dodireito de seqüência.”

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima demonstraque o droit de suite:

“não deve incidir somente quando a obrafor objeto de venda e compra, mas emtodas as alienações onde houver valori-zação da obra.” (op. cit. Trabalho apre-sentado no curso de pós-graduação daFaculdade de Direito da Universidade deSão Paulo).

5. Beneficiários

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima apontaexistirem três sistemas (Ibidem, p. 39):

a) Aquele que beneficia somente os autores(adotado na Espanha – art. 24 da Lei nº 22, de11 de novembro de 1987) (LIMA apudGUTIERREZ VINCÉN, p. 253).

b) Aquele em que são titulares os autores eseus sucessores – art. 39 combinado com oart. 42 e seus parágrafos da Lei nº 5.988/73(De-Mattia, op. cit., p. 99). Com relação aosbeneficiários, o instituto objetiva, primeira-mente, garantir uma situação econômica parao autor da obra intelectual. No caso de suainexistência, falta, deverá beneficiar os seusherdeiros ou legatários; ou seus sucessores.

c) Aquele em que são beneficiários osautores, seus sucessores e, caso o autor nãotenha sucessores, a titularidade do direito departicipação é transmitida para uma instituição.

A transferência da titularidade do direitode seqüência a uma instituição está prevista pelaConvenção de Berna (art. 14 ter).

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima, na nota28 de seu trabalho, refere-se a Paolo Greco ePaolo Vercellone, art. 150 da Lei italiana, aodeterminar que, em não se instituindo sucessor,ou, caso já se tenha passado o período previstoem seu benefício, o droit de suite passará abeneficiar o Ente Nazionale per l’ assistenzaper i pittori e gli scultori – órgão que cuida daassistência e da previdência dos autores,pintores, cenógrafos, etc.

6. DuraçãoÉfren Paulo Porfírio de Sá Lima examina

de maneira irretocável o tema da duração dodroit de suite na página 40 de seu excelenteestudo.

A duração do direito de participação variade país para país.

Entretanto, seguindo-se a orientação unio-nista, o direito de seqüela deverá durar por todaa vida do autor e pelo lapso de tempo posmortem que a legislação de cada país fixar.

Entre nós, perdura durante toda a vida doautor (art. 42, caput); os filhos, os pais, ou ocônjuge gozarão vitaliciamente do direito deseqüência se lhes for transmitido por sucessãomortis causa (art. 42, § 1º); e os demais suces-sores gozarão desse direito por um período desessenta anos, a contar do primeiro dia dejaneiro do ano subseqüente ao do falecimentodo autor, (§ 2º do artigo 42).

7. PorcentagemÉfren Paulo Porfírio de Sá Lima aponta que

as legislações podem ser divididas, quanto aopercentual de incidência, em duas largasclasses. A primeira, quanto à exigência demais-valia da obra. A segunda, quanto à vari-ação da porcentagem. Ou seja, optou-se poruma porcentagem sobre o valor da alienação,quanto ao nosso sistema (op. cit., p. 41).

Alguns sistemas prevêem a incidência dodroit de suite sobre todas as vendas, indepen-dentemente do problema da plus-valia. Outrossistemas entendem que a incidência só deva sedar no caso de incidência da plus-valia (nossoestudo já citado, p. 104).

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima aponta,quanto à exigência da mais-valia ou não, a exis-tência de dois grupos de legislações:

– um em que as porcentagens que corres-pondem ao autor só serão aplicadas se houvermais-valia (exemplo: o da lei brasileira – art.39 da Lei 5.588/73).

A respeito do art. 39 da nossa Lei de Direitode Autor, ressalte-se que estipula 20% (vintepor cento) sobre o aumento do preço que deverábeneficiar o autor ou seus herdeiros. Essaporcentagem está fixada de maneira realista.

– outro em que, para a incidência dopercentual em benefício do autor (ou a quem alei der legitimidade para tal), não há necessi-dade de ocorrer a plus-valia (verbi gratia: o

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sistema franco-belga). (LIMA, op. cit. p. 41).Quanto a este segundo grupo, as modalidades

podem ser:a) o percentual de incidência é fixo

(exemplo: o sistema alemão prevê uma porcen-tagem fixa de 5% sobre o valor total da trans-ferência da obra);

b) a porcentagem incidente é variável(exemplo: o da lei belga, cujo percentual variade 2 a 6%, dependendo do valor da venda).

O mesmo quanto ao sistema italiano: de 2a 10%.

Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima entendeser essa uma boa solução para os casos em quea obra seja alienada a título gratuito, depois daprimeira cessão praticada pelo autor.

O importante é frisar que, para evitar quemuitos Estados deixassem de subscrever aConvenção de Berna nas suas sucessivas revi-sões, entendeu-se que a Convenção não deveriater interferência alguma na fixação da porcen-tagem. Isso caberá à legislação nacional, que,a seu bel-prazer, fixará aquilo que bementender. Veja-se o art. 14 ter, nº 3:

“As modalidades e as taxas de

percepção são determinadas por cada le-gislação nacional.”

8. A gestão, a cobrança, a necessidadedas sociedades de titulares

Na França, há duas sociedades organizadaspara tal fim; na Alemanha e Bélgica, apenasuma.

No Brasil, o mesmo não ocorre; sem o queo instituto nunca funcionará. O estatuto dasociedade francesa pode ser aproveitado paratal fim.

Por ocasião das Resoluções 22 e 27, entre-guei a artistas do Rio de Janeiro e de São Paulo– da ABAP – Associação Brasileira de ArtistasPlásticos – cópia do referido estatuto.

É fundamental criar uma sociedade dostitulares de direitos e, no caso de marchands eleiloeiros, ficariam responsáveis para depositaro montante devido junto à sociedade.

Tem-se comprovado que, diante da dificul-dade em efetuar a cobrança, algumas legislaçõesestão circunscrevendo o instituto às alienaçõesem leilões e por meio de marchands.

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A divulgação do Anteprojeto de Lei deLicitações foi acompanhada da abertura deprazo para sugestões dos interessados. Todosos que militam em atividades relacionadas como tema têm propostas visando à melhoria doatual sistema. Mas aqueles que se dedicam aoestudo teórico da matéria têm o dever de cola-borar com a iniciativa governamental. Esse omotivo da elaboração deste documento. Assugestões aqui apresentadas foram orientadaspela preocupação de eliminar os principaisdefeitos da Lei nº 8.666, mas sem adotarsoluções já reprovadas pela experiêncianacional.

A sugestão de maior impacto relaciona-secom o procedimento da licitação. Sugere-se aeliminação da dissociação entre as fases dehabilitação e de julgamento das propostas.Documentos de habilitação e propostas seriamapresentados em um único invólucro. Haveriauma classificação provisória das propostas esomente se passaria à análise dos documentosde habilitação do licitante classificado emprimeiro lugar. Afinal, dar-se-ia a classificaçãodefinitiva. Com isso, estariam reduzidas asdelongas, inclusive no tocante a recursos edemandas judiciais.

Outra sugestão relaciona-se com a ediçãode regulamentos próprios das entidades daAdministração indireta. Propõe-se um sistemaque permita o controle acerca das regras queserão adotadas, inclusive com ampliação dapublicidade acerca do regulamento. No tocanteàs hipóteses de dispensa de licitação, o sistemaseria mais flexível do que o atual, mas não tãoindeterminado como previsto no Anteprojeto.

O terceiro ponto sensível da presenteproposta reside na determinação da correção

Marçal Justen Filho é Professor Titular daUniversidade Federal do Paraná.

MARÇAL JUSTEN FILHO

Propostas de alteração do Anteprojeto denova Lei de Licitações

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Revista de Informação Legislativa124

de defeitos secundários ou irrelevantes, inclu-sive com juntada de novos documentos.

Enfim, há inúmeras modificações de menorrelevância. No entanto, é fundamental ter emvista que grande parte dos problemas das lici-tações deriva de equívocos na elaboração doEdital. Não terá qualquer utilidade a “flexibi-lização” da Lei se os editais continuaremprevendo que “qualquer defeito ou contrarie-dade acarretará a desclassificação da proposta,sem direito a qualquer protesto por parte dolicitante”.

Em suma, é necessário mudar a mentalidadeno nível legislativo, mas também a propósitoda aplicação de seus dispositivos.

Propostas de alteração do AnteprojetoArt. 5º, § 4º - nova redação

“Os valores fixados para a União constituemos limites para a dispensa de licitação, a coletade preços e a concorrência no âmbito dosEstados, do Distrito Federal, dos Municípios edas demais entidades controladas direta ouindiretamente pelo Poder Público.”

Justificativa:

De modo genérico, o Anteprojeto sempreutiliza a fórmula “demais entidades controladasdireta ou indiretamente pelo Poder Público”, oque evita dúvida acerca de situações específicas(fundações etc.). No entanto, a redação doAnteprojeto, nesse § 4º do art. 5º, restringiu-sea aludir a “empresas públicas e sociedades deeconomia mista”. Isso poderia propiciar dúvidaacerca da vontade legislativa.

Art. 6º - nova redação

“É inexigível a licitação quando houverinviabilidade de competição, admitindo-se adispensa em situações excepcionais, desde queprevistas em lei.

“§ 1º A lei poderá dispensar de licitação ascontratações realizadas por empresas públicas,sociedades de economia mista e outrasentidades controladas direta ou indiretamentepelo Poder Público, desde que observadoscumulativamente os seguintes requisitos:

“I - tratar-se de contratação relacionada comatividades desenvolvidas sob o permissivo doart. 173 e seu § 1º da Constituição Federal;

“II - tratar-se de contratação não relacionada

com bens ou investimentos destinados a figurarno ativo permanente da entidade pública,segundo as regras da Lei nº 6.404/76;

“III - submeter-se a contratação a procedi-mento disciplinado em regulamento, que asse-gure a seleção da melhor proposta possível,segundo o princípio da isonomia.

§ 2º Para os fins do parágrafo anterior, asentidades ali referidas deverão editar regula-mentos com regras precisas e definidas acercadas cautelas a serem adotadas em contrataçõesdiretas, segundo o disposto no art. 48 e seuparágrafo único.”

Justificativa:

Não é constitucional, em face da regraexplícita do art. 37, inc. XXI, a previsão dedispensa de licitação sem lei específica. Nemhaveria cabimento de admitir que regulamentodisciplinasse amplamente as hipóteses dedispensa, sob pena de delegação de competêncialegislativa (o que não se admite em nossosistema constitucional). Por outro lado, háenorme risco em remeter, pura e simplesmente,à escolha das entidades da Administraçãoindireta a disciplina do tema. Então, é neces-sário estabelecer alguma disciplina que permitao controle de toda a sociedade sobre a soluçãoque será adotada.

Estabelece-se, por isso, que somente seráadmissível a dispensa de licitação ampliadapara as entidades governamentais que atuamno âmbito da atividade econômica em sentidoestrito. Ademais, isso somente se aplicariaàs atividades propriamente operacionais, quenão envolvessem imobilização de bens etc.Impõe-se o dever de respeitar princípiosconstitucionais básicos e de estabelecer-seprocedimento, mesmo informal, de verificaçãoda regularidade da operação. Por fim, remete-seà disciplina mais rigorosa proposta para adoçãode regulamentos.

Substituição dos §§ 1º a 3ºdo art. 8º por um parágrafo único

“A escolha do tipo de licitação deverá serjustificada em face das peculiaridades dacontratação, de modo motivado, podendoqualquer cidadão impugnar a escolha adotada,nos termos do art. 17, § 1º.”

Justificativa:A seleção do tipo de licitação somente pode

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ocorrer em face da situação concreta. É impos-sível adotar solução padronizada e abrangente,de modo apriorístico. Por outro lado, é neces-sário que a escolha seja motivada e sujeita afiscalização, para evitar desvios.

Art. 10 - nova redação

“A alienação, cessão ou locação de bens daAdministração Pública, bem como a concessãoou permissão de serviços públicos obedecerãoa normas próprias estabelecidas em lei.

“Parágrafo único. Quando a alienação,cessão ou locação de bens for praticada porentidades controladas direta ou indiretamentepelo Poder Público, serão aplicáveis asprevisões do art. 6º e seus parágrafos.”

Justificativa:

Surge, novamente, a questão do regula-mento. Para evitar inconstitucionalidade, assimcomo suprimir o risco de liberação limitada,propõe-se aplicação da mesma solução geral jásugerida anteriormente.

Art. 17 - nova redação para o § 4º eintrodução de um § 5º

“§ 4º As limitações previstas nos parágrafos1º e 2º deste artigo não se aplicarão quando ovício configurar nulidade absoluta e insanável,a qual deverá ser pronunciada de ofício ouprovocação de qualquer pessoa, a qualquertempo.

“§ 5º A conduta, inclusive omissiva, eivadade má-fé, praticada no curso da licitação porqualquer cidadão ou licitante acarretará suaresponsabilização por perdas e danos, inclusivena hipótese de ausência de impugnação naprimeira oportunidade possível.”

Justificativa:A Administração está obrigada a pronunciar

o vício insanável dos próprios atos. Portanto, aausência de impugnação do particular nãotransforma ato defeituoso em válido. O que épossível é responsabilizar o licitante que deixoude apontar o defeito, reservando-se para fazê-losomente quando derrotado. A má-fé do licitantedeve ser punida, mas nunca às custas da trans-formação de ato nulo em válido. Por outro lado,a representação ao Ministério Público semprepoderá (deverá) ocorrer, e a previsão do dispo-sitivo desempenha mera função intimidativa,para atemorizar os licitantes.

Art. 19 - nova redação

“A autoridade competente para a aprovaçãodo procedimento somente poderá revogar alicitação por razões de interesse público decor-rente de fato superveniente devidamentecomprovado, pertinente e suficiente para justi-ficar tal conduta, devendo anulá-la por ilegali-dade, de ofício ou por provocação de terceiros,mediante parecer escrito e devidamente funda-mentado, exceto quando o vício puder sersanado, o que deverá ser imediatamente reali-zado.”

Justificativa:

Uma das grandes inovações da Lei nº 8.666foi restringir a faculdade de revogação delicitações e restringir, drasticamente, o quevulgarmente se denominava de “pedágio”.Tratava-se de prática altamente reprovável,consistente em subordinar a aprovação doprocedimento a vantagens indevidas. Subordi-nando a revogação apenas à ocorrência deeventos posteriores ao início da licitação, ficavadificultada a realização desses desvios. OAnteprojeto propõe o retorno ao estado de coisasanterior, o que apenas pode trazer prejuízos aointeresse público. Daí a sugestão de manter-seo atual sistema.

Há outro acréscimo, consistente no deverde sanar vícios superáveis. Há casos em que odefeito não é suficiente para acarretar a nuli-dade da licitação. A solução, nessas hipóteses,é promover o saneamento dos defeitos.

Art. 26, inc. II - nova redação

“- serviço - atividade destinada a obterdeterminada utilidade de interesse para aAdministração, que não se configure como obrae que se aperfeiçoe em obrigação de fazer,compreendendo:”

Justificativa:

A definição contida no Anteprojeto paraserviço é totalmente precária. Não se identifica“serviço” como obtenção de “utilidade”. Afinal,a obra e a compra também se constituem viaspara obtenção de utilidades de interesse para aAdministração. Depois, a utilidade da definiçãoreside em distinguir os casos de serviço em facedos de obra e de compra. Sugere-se que oconceito de serviço seja encontrado porexclusão em face do de obra: será serviço aquiloque não se configure como obra. A definição

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do inc. I sobre obra é suficiente para tanto. Poroutro lado, a referência à obrigação de fazerpermite distinguir a compra, que é uma obri-gação de dar.

Art. 26, inc. II, al.“d” -suprimir o dispositivo

Justificativa:

O Anteprojeto incorre em três defeitostécnicos. O primeiro é supor que “interme-diação” se refere apenas à prestação de serviçosde terceiros ou “atividades”. Ora, todo comer-ciante é um intermediário. Realiza interme-diação aquele que compra um produto pararevendê-lo. O segundo é reservar o “serviço deintermediação” para “empresa”. Apesar detodas as disputas jurídicas acerca do que sejauma “empresa”, é inquestionável que pessoasque não se constituem “empresa” podem,perfeitamente, realizar serviços de intermediação.Assim, um representante comercial (pessoafísica), sem qualquer estrutura empresarial,pode prestar serviço de intermediação. Por fim,não há cabimento em restringir os serviços deintermediação apenas para atividades prestadaspor “pessoa jurídica”. Ora, inúmeras pessoasfísicas podem ser representadas por meio deintermediários. Logo, a melhor solução ésuprimir de uma vez o dispositivo.

Art. 26, inc. IV - nova redação

“- contrato - todo e qualquer ajuste entreentidades da Administração Pública e particu-lares em que haja acordo de vontades paraformação do vínculo e estipulação de obrigações.”

Justificativa:

O Anteprojeto reiterou equívoco tradicionalna legislação pátria. Trata-se de supor que todocontrato produz obrigações “recíprocas”. Issonão é verdade. Assim, se a Administraçãopromover uma doação, haverá contrato, masnão existirão obrigações recíprocas. Daí asugestão de supressão do vocábulo “recíprocas”,que consta do final do dispositivo.

Art. 48 - supressão da expressão “públicas”utilizada a propósito de “fundações”

Justificativa:

A legislação e a doutrina conseguiramsuperar o problema das “fundações públicas”,que foi objeto de longas discussões no passado.Chega-se a reconhecer a possibilidade de

fundações privadas, mantidas com recursospúblicos. Até a Constituição Federal proscreveua expressão “fundação pública”. No corpo doAnteprojeto, não há outras alusões a isso. Noentanto, o art. 48 adotou a fórmula – supõe-seque por descuido.

Art. 48 - nova redaçãopara o parágrafo único

“Parágrafo único. A lei poderá autorizar asempresas públicas, sociedades de economiamista e demais entidades controladas direta ouindiretamente pelo Poder Público a adotarnormas próprias acerca de licitação e contra-tação, mediante regulamento, observadasobrigatoriamente as seguintes cautelas:

“I - o projeto de regulamento deverá serobjeto de publicação na imprensa comum, paraconhecimento e sugestões de qualquer pessoa;

“II - após a publicação e a análise dassugestões, deverá ser promovida audiênciapública para debates e informações, da qualpoderá participar qualquer pessoa;

“III - o regulamento, após aprovado, deveráser publicado na imprensa oficial e encontrar-seà disposição de qualquer pessoa;

“IV - qualquer pessoa poderá requerer àentidade que editou o regulamento, à autoridadesuperior da Administração direta ou ao Tribunalde Contas a revisão das regras nele contidas,apontando defeitos ou inconveniências.”

Art. 53 - nova redação - corrigira referência ao art. 64

Justificativa:

Na redação do Anteprojeto, há referênciaao art. 63, o que não apresenta maior sentido.Supõe-se que a intenção era aludir ao art. 64,que trata de parcelamento do objeto licitado.

Art. 57, § 1º - nova redação

“O sistema de registro de preços será regu-lamentado por decreto, no prazo de noventadias, atendidas as peculiaridades locais, obser-vadas as seguintes condições:”

Justificativa:

Sugere-se a fixação de prazo para ediçãodo regulamento para o sistema de registro depreços. É que esse instrumento é extremamenteútil e chega a ser indispensável para algunssetores da Administração Pública. No entanto,

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a União nunca o regulamentou, nem mesmo àépoca do Decreto-Lei nº 2.300. Isso conduziuo TCU ao entendimento da não auto-aplicabi-lidade do dispositivo. O estabelecimento doprazo destina-se a evitar que essa situaçãopermaneça com idêntico perfil.

Art. 64, parágrafo único - nova redaçãocomo § 1º e acréscimo de § 2º

“§ 1º O parcelamento de que trata este artigoensejará a dispensa de licitação por valor apenasquando o somatório das parcelas não ultrapassaro limite estabelecido no inciso I do art. 68.

“§ 2º Não se caracterizará como parcela-mento a pluralidade de contratações de objetosimilar, desde que não previsível de antemão ederivada de circunstâncias ocorridas sucessi-vamente no tempo.”

Justificativa:

Em primeiro lugar, a redação contida noAnteprojeto é obscura e dificulta o entendimento,em virtude de adotar negações cumulativas.Como existem três negações, é possível eliminarduas e manter uma só. Sugere-se a introduçãode um parágrafo segundo para solucionarproblemas práticos muito relevantes da ativi-dade administrativa, relacionados com anecessidade superveniente de realizar contra-tação similar a outra.

Art. 67 - nova redação

“O prazo mínimo, contado da data daprimeira publicação até a do recebimento daspropostas, será fixado pela Administração emfunção das peculiaridades do contrato, medi-ante decisão motivada e sob as penas da lei,após consulta a órgão de classe.

“Parágrafo único. Nos casos de contrataçõesmais simples, o prazo não será inferior a cincodias e, no de contratações mais complexas, nãoserá menor do que trinta dias.”

Justificativa:

A tentativa de estabelecer o tabelamento dosprazos será sempre destinada ao insucesso. Essasolução é sempre formalista e destituída derazoabilidade. É muito melhor que a Adminis-tração estabeleça o prazo, de acordo com ascircunstâncias. Sugere-se, também, a préviaconsulta a órgão de classe, acerca da conveni-ência do prazo mínimo. Por fim, estabelece-seregra geral acerca de prazos mínimos, paraevitar despropósitos.

Art. 68, inc. III - nova redação

“- nos casos de emergência ou calamidadepública, quando caracterizada urgência de aten-dimento de situação que possa ocasionar pre-juízo ou comprometer a segurança de pessoas,obras, serviços, equipamentos e outros bens,públicos ou particulares, e somente para os bense serviços necessários ao atendimento dasituação emergencial ou calamitosa;”

Justificativa:

O Anteprojeto adotou redação menos clarae precisa, acerca do conteúdo das situações queautorizariam a contratação direta, em situaçõesemergenciais. Daí o interesse de estabelecer,na esteira da atual legislação, disciplina maisminuciosa.

Art. 68, inc. IV - suprimir sua existência

Justificativa:A previsão do inc. IV é bastante problemá-

tica. Em princípio, a situação já estaria contidano inc. III. É que a doutrina costuma identificaros conceitos de caso fortuito e de força maior.É quase impossível estabelecer distinções. Noentanto, o caso fortuito poderia produzir acontratação direta quando se configurasse umasituação emergencial. Logo, não há necessidadealguma da regra do inc. IV, cuja existência pro-duzirá, tão-somente, dúvidas e discussões.

Art. 68, inc. V - nova redação

“ - quando houver possibilidade de compro-metimento da segurança nacional, a juízo doPresidente da República, após ouvido oConselho de Defesa Nacional;”

Justificativa:Uma das conquistas do processo de redemo-

cratização nacional foi a redução da discriciona-riedade atribuída ao Executivo sob fundamentode “interesse da segurança nacional”. Até é pos-sível que tenha havido algum exagero na antipa-tia despertada pela expressão “segurança nacio-nal”. Isso tudo não justifica, porém, o renasci-mento de poderes autoritários, exercitados uni-lateralmente pelo Presidente da República. Asegurança nacional tem de ser tutelada, mas den-tro de um sistema democrático. Daí a sugestãode que as contratações que ponham em risco essasegurança nacional sejam decididas pelo Presi-dente, mas após ouvido o órgão previsto consti-tucionalmente para funcionar como garantia depreservação das instituições democráticas.

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Art. 68, inc. IX - nova redação

“IX - para aquisição de bens produzidos ouserviços prestados pela Administração, desdeque o preço contratado seja o menor do mercado,assegurada a licitação em caso de empate;”

Justificativa:

A indisponibilidade do interesse públicoimpede que a Administração realize contratosque não sejam os mais vantajosos. Não háfundamento constitucional para desembolsosuperior ao necessário para uma certa contra-tação. Nem mesmo seria possível justificar essadecisão por conta de o desembolso ser realizadoem benefício de outra entidade administrativa.Por outro lado, o art. 173 da CF/88 obriga oEstado a competir em absoluta igualdade decondições com os particulares, quando intervirno domínio econômico na modalidade de exer-cício direto de atividade econômica em sentidoestrito.

O Anteprojeto pretende não apenas manterregra da Lei nº 8.666 que já era inconstitucio-nal. Quer ampliar ilimitadamente a permissãode contratação direta. Vai-se além, inclusive,da previsão do Decreto-Lei nº 2.300. Isso éinconstitucional, ofende o interesse público eretrata, exclusivamente, o interesse corporativode evitar competição com agentes econômicosmais eficientes.

Daí a solução proposta, em que a possibili-dade de contratação direta com outro enteintegrante da Administração seja admitida, masobservado o princípio do menor preço. Frise-se,porém, que o ideal seria a supressão de regradessa ordem. Quando muito, seria o caso demanter a regra constante do inc. XVI do art.25 da atual Lei nº 8.666.

Art. 68, inc. XV - modificar redação

“- quando, observado o parágrafo único doart. 94, persistir a situação de as propostas apre-sentadas consignarem preços manifestamenteinexeqüíveis ou superiores ao limite fixado noedital ou praticado no mercado, desde que acontratação se faça nas condições originaisprevistas no edital e pelo menor preço demercado.”

Justificativa:

A Administração deverá desclassificar todasas propostas quando o preço for superior ao demercado (respeitada a previsão do art. 94,parágrafo único), haja ou não previsão de limite

máximo no edital. Segundo o Anteprojeto,porém, a contratação direta apenas poderiaocorrer se o edital contivesse regra acerca delimite máximo de propostas. Ou seja, nosilêncio do edital, a Administração teria depromover nova licitação. Sugere-se redação quepermita à Administração, constatando preçosmais vantajosos no mercado, promover nãoapenas a desclassificação, mas a contrataçãoefetiva com dispensa de licitação.

Art. 68, inc. XVI - modificar redação

“ - na contratação de remanescente de obra,serviço ou fornecimento, em conseqüência derescisão contratual, desde que atendida a ordemde classificação na licitação que originou ocontrato e mantidas as condições ofertadas peloadjudicatário original;”

Justificativa:

O Anteprojeto enfoca questão extremamenterelevante, atinente às conseqüências do inadim-plemento do licitante selecionado comovencedor. Porém, estabelece solução indefen-sável. Trata-se de assegurar a contratação deoutro licitante, segundo a ordem de classifi-cação, mas em condições totalmente indefi-nidas. Tal como está redigido o Anteprojeto,supõe-se que seria possível contratar o segundoclassificado em condições distintas da propostaque apresentou, desde que os preços fossem demercado. Produz-se, inclusive, uma contradiçãocom a regra do art. 109, § 2º, que determinaque a recusa do adjudicatário em assinar ocontrato autoriza contratação do segundoclassificado, mas para executar a propostavencedora. Ora, se a recusa do adjudicatárioem assinar o contrato caracteriza inadimple-mento, qual regra deveria ser aplicada: a doart. 109, § 2º, ou a do art. 68, inc. XVI? Depois,a solução proposta no inc. XVI, com a redaçãodo Anteprojeto, é extremamente perigosa. Podedar margem a inúmeras manobras, destinadasa manter a aparência de moralidade, mas real-mente visando a objetivos muito distintos.Portanto, a única alternativa adequada éremeter o segundo classificado a executar aproposta selecionada como vencedora.

Art. 68, inc. XIX - suprimir sua existência

Justificativa:

A hipótese do inc. XIX já está prevista noinc. V. Não se pode estabelecer distinção entre

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segurança nacional e segurança patrimonial.Aliás, isso demonstra tendência à ampliaçãode conceitos relacionados com a “segurança”do Estado, sempre acarretando a redução daqualidade democrática do exercício do poder.

Art. 70, inc. II - nova redação

“- ato constitutivo, estatuto ou contratosocial em vigor, devidamente registrado, e,quando for o caso, documento probatório daeleição de seus administradores;”

Justificativa:

A redação do Anteprojeto é, em termostécnicos, muito inferior à atual. Apenas paraevidenciar, utiliza o vocábulo “alterações”relativamente aos “atos constitutivos”. Mas nãohá referência a alterações relativamente a esta-tuto ou contrato social. Ora, tecnicamente,poderia interpretar-se que “ato constitutivo”relaciona-se a sociedades civis; estatuto tempertinência com sociedade anônima; contratosocial é o documento apropriado para outrassociedades comerciais (e civis com formacomercial). Mas, é óbvio que as alterações doestatuto ou contrato social deverão ser apresen-tadas também.

Por outro lado, o Anteprojeto introduzexigência incompatível com a estrutura dodireito societário brasileiro. Trata-se daprevisão de que o objeto social seja compatívelcom o objeto da licitação. Essa regra demonstradesconhecimento das teorias adotadas peloDireito Civil e Comercial acerca de objeto sociale de personalidade jurídica. Em termos simples,deve-se esclarecer que não se adota entre nósnem a teoria do ultra vires nem a da especiali-dade. Essas duas teorias pretendem limitar aatuação válida das pessoas jurídicas aos limitesde seu objeto social. No Brasil, a personalidadejurídica atribuída às pessoas jurídicas é ilimi-tada, o que significa que elas podem atuarmesmo fora ou além de seu objeto social, semqualquer vício. A definição do objeto social temuma única e específica importância: determinara responsabilidade pessoal dos administradores,em face dos sócios, por atos que extravasem oslimites dos poderes recebidos.

Poderia contrapor-se que, atuando fora deseu objeto social, a pessoa jurídica não teriaqualificação ou experiência suficiente. Mas essaé outra questão, a ser apurada no item atinenteà qualificação técnica. Se uma empresa atuahá muito tempo fora de seu objeto, possuindo

grande experiência e atestados suficientes paraparticipar da licitação, seria um contra-sensoimpedir seu acesso sob o simples e formalistaargumento de que o objeto social não é compa-tível com o objeto licitado.

Art. 70 - introdução de parágrafo único

“As licitantes estrangeiras que não funcio-nem no País deverão indicar representante legalno Brasil, com poderes expressos para recebercitação e responder administrativa e judicial-mente.”

Justificativa:

Trata-se apenas de reposicionamento dedispositivo. A regra é perfeitamente pertinente,mas constou, no Anteprojeto, como parágrafo5º do art. 73, que dispõe sobre qualificaçãoeconômico-financeira. Mas sua natureza serelaciona com a capacitação jurídica.

Art. 71, inc. II - suprimir, renumerandoos incisos subseqüentes

Justificativa:

A licitação passou a ser uma espécie deinstrumento indireto de cobrança de tributos.Até se pode imaginar que, dentro de determi-nada órbita federativa, haja algum sentido emverificar a regularidade fiscal. Mas não hásentido em a União subordinar a participaçãoem licitação a que o sujeito esteja cadastradofrente a Estados, Distrito Federal ou Municípios.Não se vislumbra qual a necessidade ou bene-fício que seria extraível dessa exigência.

Art. 71, inc. III - nova redação

“ - prova da regularidade de recolhimentodos tributos federais;”

Justificativa:

Trata-se da mesma questão apontada rela-tivamente ao inc. II, até porque produz-se umasituação sem qualquer lógica ou possibilidadede solução. O Anteprojeto pretende a certidãoda regularidade fiscal relativamente ao entefederativo frente ao qual o licitante mantém suasede. Suponha-se, porém, que o licitante seencontre em situação de irregularidade em facede outro ente federativo. Isso é extremamenteprovável, em licitações de maior porte. Restasaber qual a solução a adotar. Se a regularidadefiscal frente a outros entes federativos é indis-

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pensável, então qualquer dívida deveráacarretar a inabilitação. Se, porém, é possívelcontratar alguém que tenha dívidas frente aoutros entes federativos, então não há qualquerrazoabilidade em manter a exigência nostermos previstos no Anteprojeto.

Art. 72, inc. II - nova redação

“ - indicação das instalações, do aparelha-mento, do pessoal técnico e da titularidade detecnologia ou de autorização adequados para ocumprimento do contrato, tendo em vista asexigências mínimas e indispensáveis, previstasno edital;”

Justificativa:

A sugestão destina-se a esclarecer que aindicação deverá atender à previsão do edital,que estará autorizado a introduzir exigênciasmínimas acerca das condições subjetivas paraexecução do contrato.

Art. 72, § 1º, al. “b” - nova redação

“capacitação técnico-operacional da empresa:por meio de certidões ou atestados de obras ouserviços, que demonstrem compatibilidade coma especificação do objeto da licitação e com acomplexidade tecnológica e operacional equi-valente ou superior, sendo admitido o somatóriode até cinco certidões ou atestados e vedada alimitação de tempo ou de época ou, ainda,quanto a locais específicos, ou quaisquer outrasexigências não previstas nesta Lei, que inibama participação na licitação.”

Justificativa:

Trata-se apenas de tornar mais clara aredação e evitar interpretações esdrúxulas, quetêm ocorrido com grande freqüência na ativi-dade prática. O problema fundamental daredação do Anteprojeto é a expressão “limitadasessas a cinco”, a propósito de certidões e ates-tados. Tal como redigido o Anteprojeto, seriapossível a Administração afirmar que estariaautorizada a exigência de experiência cincovezes superior à complexidade do objeto licitado.Ou seja, seriam exigidas cinco certidões deobras ou serviços equivalentes ao licitado. Issoinfringe claramente o espírito do dispositivo,que pretende autorizar o somatório de até cincocertidões que, no conjunto, sejam equivalentesao objeto licitado. Daí a sugestão de novaredação, visando a tornar menos problemáticaa interpretação do dispositivo.

Art. 72 - introduzir um § 6º

“No caso de obras, serviços e compras degrande vulto, de alta complexidade técnica,poderá a Administração exigir dos licitantes ametodologia de execução, cuja avaliação, paraefeito de sua aceitação ou não, antecederásempre a análise dos preços e será efetuadaexclusivamente por critérios objetivos.”

Justificativa:

O Anteprojeto eliminou a autorização paraexigência de metodologia de execução. Essaomissão é até surpreendente, eis que a regraera já tradicional no direito positivo, sendolargamente utilizada pela Administração, comresultados muito positivos. Se a motivação dasupressão foi a ampliação da utilização de lici-tação de melhor técnica e de técnica e preço,isso demonstra o profundo equívoco na redaçãoda Lei. A metodologia de execução não temqualquer relação com licitação de tipo detécnica. Trata-se, exclusivamente, de verificarse a proposta corresponde à necessidade daAdministração, sem que se atribua uma maiorvaloração em face da questão técnica. Por isso,sugere-se a manutenção da atual sistemática,ainda que o dispositivo possa reputar-se malcolocado.

Art. 74 - nova redação

“Os documentos necessários à habilitaçãopoderão ser apresentados em original ou empublicação na imprensa oficial, por qualquerprocesso de cópia autenticada em cartóriocompetente ou por servidor da Administração,e, quando se tratar de licitante estrangeira,deverá ser autenticada em seus respectivosconsulados e, se for o caso, traduzida portradutor juramentado.”

Justificativa:

O Anteprojeto pretende dispensar a possi-bilidade de tradução de documentos estran-geiros, o que é totalmente incompatível com asistemática jurídica secular do Brasil. Obser-ve-se que a ausência de tradução produziriaefeitos extremamente maléficos, inclusive parafins de controle. A única exceção seria licitanteoriundo de país onde a língua oficial seja oportuguês.

Art. 74 - introduzir um § 3º“As licitantes estrangeiras deverão com-

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Justificativa:

Em face da sistemática de coleta de preçosadotada pelo Anteprojeto, é imprescindíveldeterminar regras acerca do procedimento parao cadastramento. Se não houver prazos-limite,surgirá o risco de a Administração permanecerinerte durante longo tempo, impedindo oparticular de participar de coletas de preço. Issoo obrigaria a recorrer ao Poder Judiciário, comtodas as derivações daí decorrentes.

Art. 80 - introduzir um § 3º“O prazo de validade do certificado de

registro cadastral será de, no máximo, um ano,o que não dispensa o inscrito no cadastro depromover todas as atualizações pertinentes enecessárias em função de exigências legais.”

Justificativa:

Em princípio, até se poderá imaginar que oregistro cadastral deverá estar permanentementeatualizado. Porém, o próprio Anteprojeto aludea prazo de validade do registro cadastral.

Art. 82, inc. XI, al. “d” - nova redação

“exigência de seguros, nos casos de anteci-pação parcial de pagamento em favor docontratado, a qual poderá ocorrer nas hipótesesde contratações de grande vulto, desde que ocusto do seguro não seja repassado para aAdministração.”

Justificativa:

O Anteprojeto repetiu dispositivo da Lei nº8.666, cuja interpretação tem sido objeto degrande controvérsia. Deve-se lembrar que, naredação aprovada pelo Congresso Nacional, oprojeto que originou a Lei nº 8.666 previa apossibilidade de pagamentos antecipados aocontratado – tal como se passa em todos ospaíses do mundo, em contratos de grande valor.Houve, porém, veto presidencial a esses dispo-sitivos e remanesceu a previsão em um incisoacerca de “seguros”, que não tinha muitosentido. Daí a sugestão para autorizar-seprevisão do edital acerca de pagamento anteci-pado. Explica-se o motivo: é que os contratosde grande vulto exigem inversões muitoelevadas. Se não houver antecipação de paga-mento por parte do Poder Público, o particularterá de recorrer ao sistema financeiro, encare-cendo o custo de sua proposta. Logo, acabarávencedor o licitante titular de grande poder

provar, tanto quanto possível e na medida dasregras jurídicas a que se subordinam, o atendi-mento às exigências de habilitação, mediantea apresentação de documentos equivalentes, osquais deverão comprovar inclusive o preenchi-mento dos requisitos de qualificação técnica eeconômico-financeira.”

Justificativa:

O Anteprojeto deixou de prever regra acercada situação dos licitantes estrangeiros em facedos requisitos de habilitação. Isso poderia criarimpasses, especialmente diante de questõestécnicas e econômico-financeiras. Daí a neces-sidade de introduzir disciplina específica,seguindo a orientação prevalente frente aoDireito atual.

Art. 78 - corrigir defeito de remissão

“Ao requerer inscrição no cadastro, ouatualização deste, o interessado fornecerá adocumentação necessária à satisfação dasexigências dos arts. 70 a 73, cujas cópias farãoparte de processo administrativo próprio.”

Justificativa:

No Anteprojeto, consta referência aos arts.73 e 76, o que parece ser óbvio equívoco.

Art. 80 - introduzir um § 1º

“O registro cadastral deverá estar perma-nentemente aberto aos interessados.”

Justificativa:

O Anteprojeto não previu essa regra, o quedá oportunidade a desvios conhecidos nopassado. Era conhecida a prática de estabelecerperíodos, mais ou menos exíguos, para ocadastramento. Aqueles que não fizessem ocadastro naquela oportunidade teriam deaguardar o ano seguinte. Desse modo, oscadastrados produziam uma espécie de carteldisfarçado. Essa questão é extremamente grave,pois o Anteprojeto suprimiu a possibilidade denão-cadastrados participarem de licitações namodalidade da coleta de preços.

Art. 80 - introduzir um § 2º

“Deverá ser regulamentado o procedimentopara cadastramento, inclusive com previsão deprazos máximos para decisão da autoridadecompetente acerca dos pedidos dos interes-sados.”

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econômico. O Estado arcará com o custo, comosempre, dessas circunstâncias. Por isso, é usual,no direito comparado, a previsão de antecipaçãode pagamento ao contratado, para ampliar ouniverso de licitantes e reduzir os custos doEstado.

Art. 82, inc. XIV - nova redação

“ - as condições, prazos e limites parasuprimento de defeitos nos documentos epropostas apresentados pelos licitantes, assimcomo outras indicações específicas ou peculiaresà licitação.”

Justificativa:

A sugestão se orienta a permitir o supri-mento de defeitos meramente formais ou dedimensão secundária. Aliás, essa prática já sevem difundindo na atividade administrativa.Inúmeros editais contêm critérios de correçãode propostas, inclusive em questões muitorelevantes. Com a adoção de regra explícitaacerca da matéria, seria possível a generalizaçãoda solução.

Art. 83 e seus parágrafos - suprimir

Justificativa:

O art. 83 e seus parágrafos são uma merarepetição literal do art. 17. Assim, e conside-rando o disposto nesse como norma geral, nãohá necessidade de sua reiteração.

Art. 85, incisos - nova redação:

“I - abertura dos envelopes contendo adocumentação relativa à habilitação e aspropostas;

“II - verificação da conformidade e compa-tibilidade de cada proposta com os requisitosdo edital e, conforme o caso, com os preçoscorrentes no mercado ou fixados pela Admi-nistração ou por órgão oficial competente ouainda com os constantes de registro de preços,quando houver, promovendo-se a correção dosdefeitos supríveis e a desclassificação daspropostas insanáveis ou incompatíveis;

“III - julgamento e classificação provisóriadas propostas;

“IV - verificação da conformidade ecompatibilidade da documentação relativa àhabilitação apresentada pelo licitante classifi-cado provisoriamente como vencedor, promo-vendo-se a correção dos defeitos supríveis, com

a eliminação do licitante que tenha incorridoem vício insanável ou não seja titular dosrequisitos exigidos, hipótese em que se passaráà verificação da documentação do licitanteclassificado provisoriamente em segundo lugare assim, sucessivamente, até a apuração delicitante que preencha os requisitos necessáriosà habilitação;

“V - julgamento e classificação definitivadas propostas;

“VI - deliberação da autoridade competentequanto à homologação e adjudicação do objetoda licitação.”

Justificativa:Sugere-se a eliminação da distinção entre

as fases de habilitação e de julgamento daspropostas, unificando-se a análise em umaúnica oportunidade, ainda que com etapaslogicamente distintas. Isso evitará a necessi-dade de grandes delongas com exame de docu-mentos de licitantes cuja proposta não seráaceita. Serão examinados os documentos apenasdo licitante cuja proposta se exterioriza comovantajosa e conforme com o interesse público.Haverá enorme redução dos trabalhos daComissão e evitar-se-ão as delongas com osrecursos cabíveis contra o julgamento da fasede habilitação. Observe-se que essa sistemáticaé adotada por inúmeros organismos interna-cionais e já vem sendo praticada, em algumasoportunidades, entre nós.

Art. 85, § 3º - nova redação

“Incumbe à comissão ou à autoridadesuperior, de ofício ou mediante requerimentodos interessados, promover as diligênciasnecessárias a esclarecer ou complementar ainstrução do processo, nos termos previstos noedital, admitindo-se a inclusão posterior dedocumentos ou informações, desde quecomprovada sua existência à época da apresen-tação da proposta, e possibilitando-se a correçãode erros ou defeitos irrelevantes, que não afetema essência da competição.”

Justificativa:

A sugestão se relaciona com a intenção dereduzir o formalismo do procedimento licita-tório. Destina-se a evitar que defeitos irrele-vantes ou esquecimento quanto ao cumprimentode certas exigências secundárias acarrete adesclassificação de propostas muito vantajosas.Também é oportuno insistir que, nas licitaçõesde grande complexidade, é inevitável a previsão

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de regras dessa ordem, o que vem ocorrendona vida prática. O primeiro grande obstáculopara aplicação dessa regra é o princípio damoralidade. Por isso, a sugestão é tornar obri-gatória a correção dos defeitos, evitando remeterà discricionariedade da Comissão a escolhaacerca dessa solução. Outra questão se relacionacom a vedação a modificações substanciais naspropostas, para evitar ofensa ao princípio dacompetitividade.

Art. 85, § 4º - suprimir

Justificativa:

O dispositivo apenas faz sentido em vistada distinção entre fase de habilitação e dejulgamento de propostas.

Art. 85, § 6º - nova redação

“A desclassificação das propostas ou ina-bilitação do licitante poderá ocorrer aqualquer tempo, desde que fundada em fatossupervenientes ou só conhecidos após ojulgamento.”

Justificativa:

A sugestão destina-se a adequar a questãoà estrutura proposta para o procedimento delicitação.

Art. 86, caput, e §§ 1º e 2º - suprimir, comreclassificação dos demais parágrafos

Justificativa:

Os dispositivos apontados são mera repe-tição do art. 18.

Art. 86, § 5º - suprimir

Justificativa:

A sugestão destina-se a adequar a questãoà estrutura proposta para o procedimento delicitação.

Art. 87, §§ 1º a 4º - suprimir

Justificativa:

Os dispositivos apontados são mera repe-tição do art. 8º.

Art. 87, § 5º - nova redação“É vedada a utilização de outros tipos de

licitação que não os previstos nesta Lei e nãose admitirá, sequer, a combinação de critérios

de julgamento em desacordo com as regraslegais.”

Justificativa:

Trata-se de adequar a redação do parágrafo,em caso de supressão dos que o antecediam.

Art. 88, nova redação para os incs. I e II eacréscimo de um inc. III

“I - serão avaliadas e classificadas aspropostas técnicas de acordo com os critériospertinentes e adequados ao objeto licitado,definidos no edital, sendo desclassificadasaquelas que não atingirem a pontuação técnicamínima, ressalvados os defeitos supríveis;

“II - em seguida, proceder-se-á ao examedas propostas de preço, sendo desclassificadasas inexeqüíveis ou desconformes com o edital,ressalvados os defeitos supríveis, conside-rando-se vencedora, provisoriamente, aproposta de melhor técnica;

“III - após, passar-se-á ao exame dos docu-mentos de habilitação do licitante cuja propostafoi classificada provisoriamente como vence-dora, aplicando-se, no que couber, a disciplinacontida nos incs. IV e V do art. 85.”

Justificativa:Adequa-se o procedimento previsto no

Anteprojeto à supressão das fases autônomasde habilitação e julgamento.

Art. 88, parágrafo único, nova redação paraas als. “a” e “b” e introdução de uma al. “c”

“a) uma vez classificadas provisoriamenteas propostas técnicas, proceder-se-á à análisedas propostas de preço e à sua classificaçãoprovisória, passando-se à negociação do valorcom a proponente tecnicamente melhor classi-ficada, tendo como limite de aceitação aproposta de menor preço;

“b) no caso de impasse na negociação deque trata a alínea anterior, procedimento idên-tico será adotado, sucessivamente, com asdemais proponentes, pela ordem de classi-ficação, até a consecução de acordo;

“c) após, passar-se-á ao exame dos docu-mentos de habilitação do licitante cuja propostafoi classificada provisoriamente como vence-dora, aplicando-se, no que couber, a disciplinacontida nos incs. IV e V do art. 85.”

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Justificativa:

Aplica-se a justificativa exposta a propósitoda alteração dos incs. do mesmo art. 88.Observe-se que a complexidade do procedimentopoderá inviabilizar sua utilização. Aliás,destaque-se que a Administração nunca utili-zou a licitação de “melhor técnica”, previstana Lei nº 8.666 com procedimento similar aoconstante desse Anteprojeto para a licitação de“técnica e preço”. O motivo residiu na dificul-dade de autorizar essa “negociação”, que pareceincompatível com o princípio da objetividade.

Art. 89 - nova redação e supressão doparágrafo único

“A autoridade administrativa deverájustificar, nas etapas anteriores à elaboração doedital, o tipo de licitação escolhido, devendopromover a correção de sua escolha, quandoevidenciado o equívoco.”

Justificativa:

O Anteprojeto adotou solução extremamenteformalista, pretendendo impor à Administraçãoa escolha de um tipo determinado de licitaçãopara determinadas hipóteses. É impossívelestabelecer escolha antecipada do tipo de lici-tação mais adequado. Somente em face dascircunstâncias concretas é que a AdministraçãoPública poderá escolher a solução mais conve-niente. Tal como redigido o dispositivo, haveriainúmeros problemas para a Administração,similarmente ao que se passa em face da Lei nº8.666. É que o atual diploma adotou soluçãoequivalente, estabelecendo a regra da adoçãoobrigatória da licitação de menor preço. Ainconveniência é a mesma, ainda que a soluçãoseja diversa.

Art. 92 e seus §§ - suprimir

Justificativa:

A redação é idêntica à do art. 19. A previsãodo § 3º do art. 92 pode ser inferida por inter-pretação sistemática.

Art. 94 - introdução de um § 2º, transfor-mando-se o único em § 1º:

“Defeitos irrelevantes, que não se rela-cionem com a essência do objeto licitado, oucontidos dentro de percentuais delimitados noedital poderão ser corrigidos, de ofício ou arequerimento das partes, desde que não sejam

tão grosseiros que evidenciem ausência deconhecimento necessário à execução do futurocontrato.”

Justificativa:

A regra sugerida se relaciona com o objetivode reduzir o formalismo na disciplina da lici-tação. Aplica-se, inclusive, o princípio dorepúdio ao erro grosseiro, muito utilizado nodireito processual nas hipóteses de correção dedefeitos formais.

Art. 98 e seu parágrafo único - suprimir

Justificativa:

Trata-se de reiteração do disposto no art. 21.

Art. 99, caput, incisos e parágrafo único -suprimir

Justificativa:

Trata-se de reiteração do disposto no art. 22.

Art. 100, nova redação para o § 2º esupressão do § 3º

“A garantia a que se refere o parágrafoanterior será de até quinze por cento do valordo contrato, exceto no caso do § 2º do art. 74,que será integral, sujeita sempre à atualizaçãodo valor.”

Justificativa:

O § 3º prevê duas regras, em que se ampliao valor da garantia. A ampliação é negativa,em face da redução da competitividade. Emcontratos de grande vulto, a dimensão dagarantia a ser prestada pode inviabilizar aparticipação. Observe-se, ademais, que o custoda garantia será sempre incorporado à propostado licitante. Vale dizer, quem arcará com o custodessa garantia será sempre o Poder Público.Portanto, muito mais razoável seria o Estadopromover, diretamente, o seguro correspondenteaos riscos assumidos. Qualquer outra alterna-tiva resultará em que somente participarãolicitantes de maior poder econômico, querepassarão o custo da garantia para o Estado.Daí a sugestão de que se mantenham apenasos limites previstos no § 2º do Anteprojeto, oque já representa elevação bastante sensível emrelação à disciplina atual.

Por outro lado, parece ter ocorrido equívocona remissão contida no Anteprojeto. A indi-cação deve ser ao § 2º do art. 74.

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Art. 109, § 3º - nova redação

“Decorrido o prazo previsto no edital paravalidade das propostas, sem convocação para acontratação, ficam as licitantes liberadas doscompromissos assumidos.”

Justificativa:

O Anteprojeto ampliou o prazo de validadedas propostas, fixando-o em 90 dias. Aindaassim, a solução é problemática, pois há hipó-teses onde esse prazo é insuficiente paraconclusão do procedimento licitatório. Aliás,já na vigência da Lei nº 8.666, a maioria dadoutrina entendeu que essa regra era supletiva,sendo inviável estabelecer um prazo padroni-zado, aplicável a todas as hipóteses.

Art. 110, inc. II, al. “d” - corrigir o vocábulo“álea”, indevidamente grafado como “área”

Art. 110, § 3º - nova redação

“No caso de supressão de obras, bens ouserviços, a Administração deverá arcar com osprejuízos sofridos pelo contratado, desde queregularmente comprovados.”

Justificativa:

O Anteprojeto pretendeu reduzir aindamais os deveres da Administração em facede redução do objeto contratado. Segundo aregra literal prevista no Anteprojeto, oscustos de transporte de materiais, porexemplo, não seriam indenizáveis, o que éabsurdo. Enfim, tratava-se de regra incom-patível com o sistema constitucional, queredundaria em demanda judicial, em que oEstado acabaria fatalmente derrotado. Logoe considerando que a Lei não é feita parabeneficiar a Administração Pública, mas paradistribuir justiça, não é admissível adotar regratal como consta do Anteprojeto.

Art. 130, inc. II, nova redação para a al.“a”, supressão da al. “b” e renumeração das

subseqüentes“julgamento definitivo das propostas, inclu-

sive no tocante a habilitação ou inabilitação delicitante;”

Justificativa:

Visa-se adequar a sistemática de recursos à

proposta de nova estrutura procedimental paralicitação.

Art. 130, §§ 1º e 2º - suprimir

Justificativa:

Trata-se de mera reiteração do que jáconstou nos arts. 17, § 2º, e 83.

Art. 130, § 4º - nova redação

“O recurso previsto na alínea “a” do incisoII deste artigo terá efeito suspensivo, podendoa autoridade competente, motivadamente epresentes razões de interesse público, atribuireficácia suspensiva ao recurso em outras hipó-teses.”

Justificativa:

A sugestão decorre da alteração da estruturaprocedimental da licitação e aproveita paramelhorar a redação do dispositivo.

Art. 130, § 9º - suprimir

Justificativa:

Trata-se de mera reiteração do disposto nosarts. 17, § 4º, e 83, § 4º.

Art. 130, § 2º - nova redação

“Na pré-qualificação, serão observadas asexigências previstas para concorrência,relativamente à convocação dos interessadose à análise da documentação, tendo o proce-dimento por objeto avaliar especificamentea idoneidade do licitante e, se for o caso eem momento posterior, a metodologia deexecução proposta.”

Justificativa:

Uma vez mais, busca-se compatibilizar asistemática do Anteprojeto à proposta de alte-ração do procedimento.

Art. 138, parágrafo único - suprimir

Justificativa:

Considerando a proposta de nova redaçãopara o art. 48, bastaria a remissão contida nocaput do art. 138 para impor a observância deprocedimentos de publicidade.

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O conteúdo do saneamento do processoem Portugal e no direito brasileiroanterior e vigente

Eduardo Talamini é Advogado em Curitiba, Pro-fessor da Escola da Advocacia (OAB/PR-IAP), CA-EDI e IBEJ, Mestrando na Faculdade de Direito daUSP.

EDUARDO TALAMINI

SUMÁRIO

I - Introdução. II - Panorama geral do “sanea-mento” nos três regimes comparados – A termino-logia – Os contornos da fase saneadora. III - Osaneamento do processo no direito português. III.1- Mecanismos anteriores à criação do “despachosaneador”. III.2 - O “despacho saneador” portu-guês. IV - O saneamento do processo no direito bra-sileiro anterior a 1939. V - O “despacho sanea-dor” no Código de Processo Civil brasileiro de1939. VI - O conteúdo do saneamento no processocivil brasileiro atual. VII - A reforma de 1994. VIII- Consideração final.

I - Introdução1. A existência de necessidades idênticas

ou semelhantes em diversas sociedades e épo-cas faz com que em cada uma delas sejam esta-belecidos instrumentos jurídicos com funçõessimilares – sem que haja necessária relação deinfluência, de inspiração entre uns e outros.Então, e sob o ponto de vista da história e dacomparação jurídica, em distintas épocas e lo-cais, sempre haverá semelhantes institutos vol-tados para o mesmo fim, sem que um preciseter advindo do outro. Para que se possa consta-tar efetiva inter-relação entre esses institutosparecidos, mais do que a função de cada um(eventualmente igual diante da semelhança denecessidades), importa examinar sua estrutu-ra. É da constatação de marcantes traços dehomogeneidade quanto a esta que se poderáqualificar um instituto como derivado de ou-tro. Essa advertência, aliás, tem sido reitera-damente destacada por J. Rogério Cruz e Tuc-ci, em exposições acerca da história do proces-so. E é algo que se há de ter em mente não só

NOTAS AO FINAL DO TEXTO.

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Revista de Informação Legislativa138

quando se analisam os instrumentos jurídicosmais diretamente ligados às instituições políti-co-econômico-sociais (tais como o casamento,a compra e venda, a propriedade). Igualmenteno que tange a técnicas e princípios internosaos mecanismos jurídicos esse fenômeno é veri-ficável.

É o que se dá com as chamadas técnicas do“saneamento do processo”. Podem ser locali-zados inúmeros expedientes, em sistemas pro-cessuais atuais ou de outros tempos, com mai-or ou menor similitude quanto à finalidade: adivisão do processo civil romano em duas fa-ses (in iure e in iudicio); o poder que o pretordetinha de conceder ou denegar a actio; os pro-nunciamentos praeparatoria iudicii no proces-so medieval; a audiência preliminar austríaca(die erste Tagsatzung); o summons for directi-on no processo inglês; o pre trial conference(ou pre trial procedure) norte-americano; o“modelo de Stuttgart” alemão; o Código-tipopara a Ibero-América – e assim por diante. Emsuma, não são poucos os sistemas processuaismodernos que reservam uma fase às funções“saneadora em sentido estrito”, “esclarecedo-ra”, “instrutória” e “abreviadora” do processo1.

2. Não há como se afirmar que qualquerdesses outros mecanismos constitua a origemdo “despacho saneador” previsto no Código deProcesso Civil brasileiro de 1939 (nem do jul-gamento conforme o estado do processo, doCódigo de 1973). Trata-se de instituto criadodiretamente pelo direito português. As estru-turas e ligações históricas evidenciam a origi-nalidade da criação portuguesa e a indicamcomo matriz do “saneamento” brasileiro – ain-da que não se exclua alguma mediata interfe-rência de outros institutos, tanto na formaçãodo “despacho saneador” português quanto emsuas derivações no processo brasileiro2.

II - Panorama geral do “saneamento” nostrês regimes comparados – A terminologia

– Os contornos da fase saneadora3. No Código de Processo Civil português e

no brasileiro de 1939, a expressão “despachosaneador” é utilizada não apenas para desig-nar a decisão que tem por saneado o processoou a que determina suprimento de irregulari-dades. Mais do que isso, sob o título do “des-pacho saneador”, pode haver mesmo a extin-ção do processo (quanto aos motivos e limitespara tanto – seja visto adiante). Enfim, “des-

pacho saneador”, naqueles dois diplomas, de-signa globalmente a atividade concentrada de-senvolvida pelo juiz a fim de verificar, em dadomomento, se o processo precisa ir adiante – eas conseqüências a serem adotadas conformeesse juízo seja positivo ou negativo.

Já o Código brasileiro de 1973 reservou otítulo “Do Saneamento do Processo” (Seção III,Capítulo V, Título VIII, Livro I) para discipli-nar as providências que serão adotadas pelo juizquando ainda não é o caso de se extinguir oprocesso (ou seja, quando o juízo acima men-cionado é negativo) – proferindo-se então de-cisão interlocutória, que encaminha o feito adi-ante. Essa seção, na versão original do Códi-go, também recebera a denominação “Do Des-pacho Saneador”. O título, contudo, foi substi-tuído antes mesmo de o diploma entrar em vi-gor (Lei nº 5.925/73). Àquele leque maior deprovimentos possíveis encartados antes sob arubrica do “despacho saneador” o Código de73 reservou o termo “julgamento conforme oestado do processo” (capítulo, no diploma, doqual o “saneamento” é uma das seções). Ain-da, parte do que se faria por ocasião do “sane-ador” está disciplinada no capítulo imediata-mente antecedente, o “Das Providências Preli-minares”.

Daí que, para a comparação com o “despa-cho saneador” português e do direito brasileiroanterior, não se toma em conta apenas a seção“Do Saneamento do Processo” do Código de73, mas sim a disciplina global do “julgamen-to conforme o estado do processo” e algum dospontos constantes das “providências prelimi-nares”. Aliás, e conquanto outras críticas pos-sam ser feitas ao termo empregado em Portu-gal e no direito brasileiro anterior (v. a seguir),há, em certo sentido, mais acerto nele do quena terminologia atual do diploma processualcivil brasileiro.

Fase “saneadora”, precisamente, não é ape-nas aquela prevista no art. 331 do Código bra-sileiro em vigor. No momento ali previsto, maisnada se saneia: só se declara saneado. Verda-deiros saneamento e ajuste do processo já co-meçam a se dar com as providências prelimi-nares (arts. 323 a 328), quando: ouve-se o au-tor sobre defesas materiais indiretas e proces-suais; determina-se o suprimento de irregula-ridades e nulidades sanáveis; eventualmente,mediante demanda incidental, amplia-se o ob-jeto do processo para abranger declaração acer-ca de questão prejudicial; verifica-se se ocor-reu o efeito principal da revelia. “Saneamento

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em sentido estrito” (enquanto extirpação dosdefeitos corrigíveis) está previsto precisamen-te na parte final do art. 227 e precede lógica ecronologicamente as providências previstas nocapítulo do “julgamento conforme o estado doprocesso”.

De mais a mais, também as hipóteses pre-vistas nos arts. 329 e 330 (extinção do proces-so, sem ou com julgamento do mérito) inte-gram a atividade concentrada de saneamentoem sentido amplo. De algum modo, podem sertidas como a “contraface” da declaração de sa-neamento prevista no art. 331. Põem-se trêscaminhos para o julgador: ou, diante de defei-tos insuperáveis, dá fim ao processo sem jul-gar o mérito; ou, não sendo assim, julga desdelogo o mérito, posto que dispensável instruçãoprobatória; ou, descartados os dois primeiroscaminhos, tem por saneado o processo e enca-minha a instrução probatória (não sem antes,diante da disciplina instaurada com a reformado final de 1994, tentar conciliar as partes, seo direito admitir transação). Enfim, no exameda continuidade ou não do processo, o juízonegativo impõe a disciplina dos arts. 329 e 330;o positivo, a do art. 331 (ainda que com issonão se queira dizer que a prática dos atos pre-vistos no art. 331 implique necessariamente odescarte das hipóteses de extinção de que tratao art. 329 – v. adiante).

Então, querer separar incisivamente “sane-amento do processo” e “julgamento conformeo estado do processo”3 equivale, por exemplo esob certo prisma, a pretender ver na sentençade procedência e na de improcedência dois “ins-titutos distintos”: são coisas diversas, sem dú-vida; mas compõem os dois caminhos de umabifurcação, duas alternativas por ocasião dedeterminado juízo.

Indo avante, algo da tarefa imposta ao le-gislador no art. 331 do atual Código brasileiro– a fixação dos pontos controvertidos e o enca-minhamento da instrução probatória – não está,no direito português, inserido propriamente nadisciplina do “despacho saneador”, mas nospreceitos imediatamente seguintes. Trata-se da“organização da especificação e questionário”:ato que, conquanto praticado no bojo do pró-prio “saneador”, constitui “realidade autôno-ma” perante ele4.

Por fim, e desde a Lei nº 8.952, de 13-12-94,o “saneamento do processo” brasileiro incluiainda audiência em que se tenta conciliação ediscutem-se a fixação dos pontos controverti-dos e as provas a serem produzidas. Nada ha-

via de similar no Código brasileiro de 39. Odireito português igualmente prevê, mais oumenos nesse ponto do procedimento ordinário,uma audiência. Essa, diferentemente do que sepassa no sistema brasileiro, precede o “sanea-dor” com todos os seus desdobramentos (pos-sibilidade de extinção; correção de vícios etc.).Além disso, possui fins em parte diversos dosvisados pela nova audiência prevista no Brasil(tentativa de conciliação e debates sobre o mé-rito, quando de tal se possa conhecer direta-mente, ou sobre exceções).

Em suma, a comparação entre os modelosde saneamento dos três sistemas envolve pre-cipuamente as previsões relativamente concen-tradas em uma mesma fase dos respectivos pro-cedimentos ordinários pelas quais, nessa ordem:(a) verifica-se a existência de vícios – suprin-do-os se sanáveis, extinguindo o processo emcaso negativo; (b) conhece-se diretamente domérito, se isso já é possível; (c) ou, não sendo,resolvem-se as questões processuais pendentes,definem-se os pontos controvertidos e encami-nha-se a instrução probatória.

Portanto, e mais do que ato isolado, o sane-amento constitui verdadeira “fase”. E isso, nostrês regimes: mesmo o “despacho saneador”português e o do Código brasileiro de 39 de-têm essa característica: são, quando menos, atoscomplexos5. E, se acima foi criticada a termi-nologia do atual diploma brasileiro, essa é umadas ressalvas que se pode fazer à expressão“despacho saneador”: dá a indicação inadequa-da de ato único (além do que, na série de pro-vimentos que podem compô-lo, os principaistêm conteúdo decisório – e não de simples des-pacho).

III -O saneamento do processo nodireito português

III-1. Mecanismos anteriores à criação do“despacho saneador”

4. As Ordenações Filipinas (Livro III, Tí-tulo XX, §16) disciplinavam hipótese que po-deria hoje, a grosso modo, ser aproximada àda argüição e apreciação das condições da açãoe ao reconhecimento de sua carência pelo au-tor. Ainda, as mesmas Ordenações (Livro III,Título LXVI, § 9º) traziam a previsão de que,em caso de confissão do réu, o juiz profeririadesde logo decisão, não equiparável à sentençaque é precedida de instrução completa. Tinha-se então um “preceito de solvendo” (que não

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Revista de Informação Legislativa140

se confundia nem com a sentença definitivanem com a interlocutória), dotado de eficáciaexecutiva. A noção de confissão a que se refe-riam as Ordenações era igualável à atual de“reconhecimento do pedido”6.

Todavia – destaca reiteradamente a doutri-na –7, não há como se pretender ver em taishipóteses verdadeiros precedentes do “despa-cho saneador”, naquilo que esse mecanismotem de especial. Primeiro, porque tratavam desituações específicas – e não da conferênciagenérica de poderes ao juiz para zelar pela re-gularidade do processo. Depois, e como conse-qüência da primeira constatação, não se davaao juiz a possibilidade de inspecionar ex officioa regularidade do processo.

5. Ainda antes da criação do “despacho sa-neador”, noticiam-se atos administrativos doMinistério da Justiça e da Procuradoria Régiaportugueses advertindo os membros do minis-tério público de que deveriam procurar evitaras nulidades nos processos de que participas-sem, suprindo as sanáveis – sob pena de anota-ções na ficha funcional. Dessa providência ad-ministrativa teria surgido a prática de o órgãodo ministério público, nos processos em queatuasse, buscar junto ao juiz e com a concor-dância dos advogados a realização de audiên-cia posterior à fase postulatória, com o fim delocalizar e eliminar nulidades8.

Mas, ainda nesse caso, e deixando-se delado a abrangência concreta dessa prática, fal-ta o elemento essencial do “saneador” e de seusdesdobramentos no Brasil: a provocação parao exame dessas matérias era feita por sujeitodo processo que não o juiz.

III.2 - O “despacho saneador” português9

6. A criação do instituto deu-se, de fato, pormeio do Decreto nº 3, de 29-5-1907 (então como nome de “despacho regulador do processo”).Tratava-se de dispositivo inserido na discipli-na de processo sumário para as causas cíveis ecomerciais de pequeno valor. Concediam-sepoderes ao juiz para, por ocasião desse “despa-cho regulador”, conhecer e julgar matéria re-lativa às nulidades processuais.

Ainda em 1907 (30 de agosto), outro de-creto estendeu tal previsão – praticamente re-petindo-a – para o procedimento das ações dedespejo de prédios urbanos e rústicos. Nos anosseguintes, houve sucessivas regulamentações deprocedimentos das demandas atinentes a in-

quilinato, em que se manteve o “despacho re-gulador” (Decretos de 12-11-10; de 27-6-18 [nº4.499]; de 19-4-19 [nº 5.411]). Posteriormen-te, o Decreto nº 12.353, de 22-9-26 (que veicu-lou a “reforma do processo ordinário”), esten-deu os poderes do juiz ao exame, naquele mo-mento, da legitimidade das partes, de sua re-presentação em juízo e de outras questões pré-vias ou prejudiciais ao conhecimento do méri-to – passando o ato a ser denominado “despa-cho saneador”. A partir de então, desenvolveu-se tendência jurisprudencial de ampliação dashipóteses de julgamento direto do mérito já nafase saneadora. Com o Decreto nº 18.552, de3-7-30, passam a poder ser resolvidas no “sa-neador” todas as outras questões para cuja de-cisão o processo já reunisse elementos instru-tórios suficientes. Depois, o Decreto nº 21.287,de 26-5-32, consolidou a legislação processualcivil e comercial, mantendo as regras até entãovigentes sobre o “despacho saneador”, e criouo instituto do “questionário”.

Por fim, o Código de Processo Civil de 1939(Decreto nº 29.637), em seu art. 514, veio acomplementar o rol de atividades desenvolvi-das pelo juiz por ocasião do “saneador”, dan-do-lhe basicamente a feição que possui hoje emPortugal. Autorizou-se o conhecimento diretodo mérito (o que em alguns casos já era possí-vel antes – quer por expressa previsão dos tex-tos anteriores, quer por criação jurisprudenci-al). Previu-se audiência preparatória, a prece-der o “saneador”, a qual se destinaria à buscada conciliação e – frustada a tentativa ou in-cabível – à discussão das questões resolúveis pormeio daquele pronunciamento. Ainda, introdu-ziu-se a figura da “especificação”. (v. a seguir).

Em 1961, reformou-se o Código português(Decreto-Lei nº 44.129), com a disciplina ati-nente à fase de saneamento (que a doutrinaportuguesa usa designar “fase de condensação”)estendendo-se do art. 508 ao 512. Ainda, o“questionário” e a “especificação” passaram aocorrer formalmente também no “despachosaneador” (v. a seguir). Houve nova reformano processo português em 1967, sem maior al-teração da disciplina do “saneador”. Finalmen-te, também o Decreto nº 242 de 9-7-85 trouxealgumas mudanças, que, embora significativas,não chegaram a alterar a feição geral da fasede saneamento.

Elaborou-se anteprojeto de reforma do CPC,publicado ainda em 1988 pelo Ministério daJustiça, que traria algumas modificações paraessa fase do procedimento, sem alterá-lo subs-

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tancialmente. Esse anteprojeto acabou sendodeixado de lado. Em fevereiro de 1995, o Mi-nistério da Justiça divulgou novo “Projecto deRevisão”, que não guarda relação com aquelepublicado em 1988 e também traz algumas al-terações em relação à disciplina vigente10.

7. O atual regime do “despacho saneador”pode ser descrito, em apertada síntese, nos se-guintes termos.

7.1. Finalizada a fase postulatória (“os ar-ticulados”), caso pareça possível ao juiz conhe-cer diretamente do mérito, ele poderá designaraudiência preparatória (art. 508, 1). Igual po-der o magistrado terá se reputar necessária adiscussão de exceções dilatórias ou peremptó-rias (art. 508, 3). Admitindo a causa transa-ção, as partes serão intimadas para, sob penade multa, participarem da audiência ou confe-rirem ao advogado poderes especiais para tran-sigir (art. 508, 2).

Até 1985, a audiência, no caso do art. 508,1, era obrigatória. Sua falta acarretava “nulida-de não principal”, nos termos do art. 201, 111 –ou seja, algo equivalente à anulabilidade emnosso sistema (não é conhecível de ofício, ésanável, convalidável, não argüível por quema deu causa etc.). Apenas na hipótese do art.508, 3, a designação de audiência era faculta-tiva. O Decreto nº 242/85, porém, tornou sem-pre facultativa.

Tenta-se primeiro a conciliação (art. 509,1). Não a obtendo, o juiz dirige os debates en-tre as partes (art. 509, 2). A falta de alguma ouambas as partes devidamente intimadas nãoadia a audiência (art. 509, 3).

7.2. Depois da audiência (quando nela nãose obtém conciliação) – ou, se não houve audi-ência, logo após a fase postulatória –, tem vezo “despacho saneador”, cujo objeto o exame(art. 510, 1):

(a - primeira parte) de exceções quelevem à “absolvição de instância” (emoutros termos: à extinção do processopela falta dos pressupostos para admis-sibilidade de julgamento do mérito);

(a - segunda parte) das nulidades(“principais” e “secundárias” – o equi-valente, a grosso modo, a nulidades ab-solutas e relativas);

(b) das “exceções peremptórias” (noque se incluem, além dos fatos impediti-vos e extintivos do direito do autor12, talcomo hoje concebidos em nosso sistema,o “caso julgado”);

(c) direto do pedido, se a questão demérito for só de direito e já puder serdecidida com “segurança” ou se o pro-cesso já possui elementos suficientes para“decisão conscienciosa”.

7.3. O exame das nulidades e das causasacarretadoras da “absolvição de instância” sópode deixar de se fazer no “saneador” se nessemomento faltarem elementos instrutórios sufi-cientes para tanto – cabendo ao juiz fundamen-tar a decisão que postergue tal tarefa (art. 510,2). Também as exceções peremptórias serãosempre julgadas quando dispensável maior ins-trução probatória (art. 510, 3). Apenas o julga-mento imediato do mérito não está expressa-mente imposto em termos cogentes. Mas, mes-mo nessa hipótese, a doutrina destaca não setratar de simples faculdade do juiz – e sim de-ver “inerente ao princípio geral da economiaprocessual”13 .

Entendia-se caber agravo da decisão quedeixa para depois o julgamento das questõesexamináveis no “saneador”14. A reforma de1985, contudo, estabeleceu expressamente que“não cabe recurso de ‘despacho saneador’ que,por falta de elementos, relegue para a sentençao reconhecimento das matérias que lhe cum-pre conhecer nos termos das alíneas a) a c) donº 1” do art. 510 (art. 510, 5).

7.4. Sendo conhecido diretamente o méritoou julgada procedente exceção peremptória, “odespacho fica tendo, para todos os efeitos, ovalor de uma sentença e como tal é designado”(art. 510, 4). O recurso cabível será então o deapelação (e não de agravo, como nas demaishipóteses, inclusive na de rejeição de exceçõesperemptórias).

7.5. Ainda não sendo o caso de encerramen-to do processo, o juiz selecionará os fatos queinteressam para a solução da causa. Especifi-cará os que reputa incontroversos e fará quesi-tos (“questionário”) daqueles que remanesçamcontrovertidos (art. 511, 1). Só ingressarão noquestionário ou na especificação “fatos articu-lados” (art. 664 do CPC)15 e que interessem àsolução da causa. Assim, para esses atos, assu-me extrema importância a distinção entre “ma-téria de fato” e “matéria de direito”16 e entre“fatos essenciais” e “irrelevantes”. Ainda, comotempero à limitação do questionário aos fatosarticulados, estabelece-se a diferença entre “fa-tos fundamentais” e “instrumentais”. Esses,conquanto não alegados pelas partes, podemser investigados pelo juiz (CPC, art. 264), namedida em que se prestam a indicar a ocorrên-

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julgado em relação às questões concretas decompetência nele apreciadas. Essa norma se-ria extensível às demais matérias conhecíveisde ofício.

Ocorre que, no que tange à legitimidade daspartes, o Supremo Tribunal de Justiça reputouinaplicável por analogia a regra sobre a incom-petência absoluta – por reputá-la norma de na-tureza especial. Em conseqüência, editou-seassento pelo qual:

“É definitiva a declaração em termosgenéricos, no ‘despacho saneador’, tran-sitado relativamente à legitimidade, sal-vo a superveniência de fatos que nestarepercutam” (1-2-1963).

Em suma, afirmou-se a absoluta eficáciapreclusiva do “saneador”, no que tange à ques-tão da legitimidade – independentemente dequais tenham sido os chamados “fundamentosconcretos”.

Mas, o assento do STJ disse respeito só àlegitimidade. O assento, no direito português,tem eficácia vinculante. Vale como se lei fosse.Daí surge a dúvida. Para as demais questões deordem pública, aplica-se por analogia o dispo-sitivo sobre incompetência absoluta (que limi-ta a preclusão às questões concretamente deci-didas) ou aplica-se analogicamente o assento(estendendo-se a preclusão a todos possíveisdefeitos processuais que poderiam ter sido ar-güidos ou verificados de ofício)? Para a doutri-na que preconizava a posição menos rígida so-bre a preclusão, deve ser aplicado por analogianão esse assento , mas sim o preceito legal ati-nente à incompetência absoluta22. Ainda, Cas-tro Mendes, procurando mitigar o alcance doassento, ressalta que apenas a decisão “genéri-ca” é abrangida pelo regime previsto naqueleato do STJ – não a implícita23.

8.2. Outra questão de interesse para fins decomparação diz respeito à eficácia preclusivada especificação e do questionário dos fatosrelevantes. Já nesse caso, o posicionamentomajoritário é extremamente flexível.

Primeiro, considera-se possível a alteraçãoda especificação e do questionário em virtudede episódios supervenientes (ex.: declaração defalsidade de documento; anulação de confis-são; alegações das partes sobre fatos novos...).Além disso, independentemente de tais inci-dentes, admite-se que o presidente do colegia-do que proferirá a sentença final amplie o ques-tionário, incluindo novos quesitos que consi-dere necessários à solução da causa. Mais ain-

cia ou não daqueles.7.6. O questionário não apenas se presta a

limitar o âmbito da produção probatória, comoainda delimita “o poder jurisdicional do tribu-nal coletivo”, que julgará a causa17. O tribunalcoletivo “não se pronunciará sobre os fatos”contidos na especificação, e a instrução proba-tória se baseará no questionário18.

“Especificação e questionário” constituemtema diverso daquele originariamente contidono “despacho saneador”. Daí a preocupação emse destacar tratar-se de “peças diferenciadas”ou “realidades autônomas”19. Mas não se negaque integram formalmente o mesmo ato do“despacho saneador”. Igualmente, é indiscutí-vel que funcionalmente se enquadram na con-cepção ampla de saneamento (v. I e II, acima).

Nesse ponto do procedimento, é previstoprazo para “reclamações das partes” quanto à“especificação” e ao “questionário” (art. 511,2 e 3). Da decisão dessas reclamações cabe re-curso para a Relação (segundo grau de jurisdi-ção); “da decisão desta não há recurso” (art.511, 4). É sob esse aspecto que tem relevânciao destaque de que o “despacho saneador” e a“especificação e questionário” são peças autô-nomas: da especificação e questionário só sepode recorrer tendo havido prévia reclamação;mas “a reação contra o saneador não está con-dicionada à reclamação”20.

8. Das várias questões debatidas na doutri-na e jurisprudência acerca do “saneador”, trêspodem ser rapidamente indicadas, para fins decomparação.

8.1. A primeira diz respeito à eficácia pre-clusiva do “saneador” quanto às nulidades e àscausas que levariam à “absolvição da instân-cia”, quando não encerra o processo. Trata-sede saber, na terminologia empregada pelos pro-cessualistas portugueses, se há “caso julgadoformal”.

A respeito do tema, há duas correntes bemdefinidas. Para alguns, a declaração da ausên-cia de defeitos processuais – ainda que genéri-ca –, se irrecorrida ou depois de decidido o re-curso, faria “caso julgado”. Não se poderiammais suscitar tais matérias nem ser conhecidasde ofício. O segundo entendimento21 é o de quesó as questões concretamente apreciadas pelo“saneador” ficariam acobertadas pelo “casojulgado formal”. Para embasar tal posição, in-voca-se a aplicação analógica do dispositivo queregula a eficácia do “despacho” que decide aquestão da incompetência absoluta: só há caso

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da: até de ofício, a Relação (órgão de segundograu) pode anular a sentença e determinar re-torno dos autos para a ampliação do questio-nário (e conseqüente nova produção de provas).Por fim, o próprio Supremo Tribunal de Justi-ça, julgando o recurso de revista (que só tempor objeto o exame da correta aplicação do di-reito), pode mandar baixar o processo ao se-gundo grau, para que se amplie a decisão acer-ca dos fatos (com a conseqüente alteração daespecificação e do questionário e eventual pro-dução probatória) – isso para que o Supremopossa então ter “base suficiente para a corretadecisão do direito”24.

O STJ veio a editar assento (de nº 14), em2-10-94, pelo qual

“... a especificação, tenha ou não havidoreclamações, tenha ou não havido impug-nação do despacho que as decidiu, podesempre ser alterada, mesmo na ausênciade causas supervenientes, até ao trânsitoem julgado da decisão final do litígio”.

8.3. Por fim, pode ser mencionada discus-são acerca da possibilidade de julgamento par-cial de mérito – com o restante ficando para asentença. O art. 510, ao tratar do “despachosaneador”, previu apenas a hipótese de julga-mento direto do pedido (nº 2) – sem menção àpossibilidade de julgamento parcial do méritonessa fase. Todavia, o art. 508, ao disciplinar aaudiência preparatória, estabeleceu que elaocorreria quando o juiz visse a chance de co-nhecer diretamente “do pedido ou de algum dospedidos principais, ou do pedido reconvencio-nal” (nº 2). Ou seja, indicou expressamente ahipótese de julgamento parcial do mérito.

Daí que parte minoritária da doutrina negaa possibilidade de julgamento parcial do méri-to. Isso quebraria a exigência de “unidade” dojulgamento (no “saneador”, quem decide é ojuiz isoladamente; na decisão final, é o colegi-ado – tribunal coletivo)25 .

Prevalece, porém, em doutrina e jurispru-dência, a admissão desse julgamento parcialde mérito – tanto por força de sua expressa pre-visão no art. 508, como em atenção à finalida-de do “saneador”, que é a de enxugar o máxi-mo possível a matéria a ser conhecida ao fi-nal26. Mesmo nesse caso, de julgamento parci-al de mérito, o recurso cabível é apelação27.

IV - O saneamento do processo no direitobrasileiro anterior a 193928

9. No que tange à verificação de nulidades,

o Regulamento 737 previa a possibilidade de ojuiz eliminar as nulidades acusadas pelas par-tes. Relativamente à extinção do processo, aConsolidação Ribas repetiu (nos arts. 251, § 3º,in fine, e 363) as duas normas constantes dasOrdenações Filipinas, acima mencionadas.

Entre os códigos processuais civis estadu-ais (pós-Constituição Federal de 1891), algunstraziam a previsão de, havendo a confissão doréu (vale dizer, o atual “reconhecimento dopedido”), ocorrer julgamento “no estado em quese achar o processo” (art. 271 do código dePernambuco; semelhante norma havia nos có-digos do Rio Grande do Sul e São Paulo). Vá-rios desses diplomas repetiram basicamente aprevisão de eliminação de nulidades noticia-das pela parte (SP, RS, DF, MG, PE, BA, ES,RJ, SC).

Permanecia afastado o exame ex officio devícios processuais pelo julgador.

Já para o Estado do Mato Grosso, em 1928,elaborou-se anteprojeto (jamais convertido emlei) que foi o primeiro a reproduzir o modeloportuguês de “despacho saneador” (com diretae confessa inspiração no Decreto português nº12.353/26 e na doutrina de J. A. dos Reis).Ainda outra tentativa frustrada de consagra-ção do “despacho saneador” no direito positi-vo brasileiro deu-se com o anteprojeto de 1934(de autoria de Pereira Braga e Filadelfo Aze-vedo), relativo à Justiça Federal.

Por fim, o Decreto-Lei nº 960, de 17-12-38(sobre cobrança de dívida pública), em seu art.19, além de providências saneadoras propria-mente ditas, do exame dos pressupostos pro-cessuais e condições da ação e da preparaçãoda instrução probatória da causa, previu a hi-pótese de julgamento de mérito no caso de fal-ta ou intempestividade da defesa.

V - O “despacho saneador” no Código deProcesso Civil brasileiro de 1939

10. O Código de 39 veio a estabelecer o“despacho saneador” como instituto geral noâmbito do “processo ordinário” (Decreto-Leinº 1.608/39 – posteriormente, o Decreto-Leinº 4.565/42 especificou melhor as funções dojuiz por ocasião do “saneador”29).

Assim, nos art. 293 a 296, previu-se caberaos juízes, encerrada a fase postulatória no pro-cedimento ordinário:

(a) ordenar o processo: (a.1) dando oportu-

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nidade de ouvida do autor, quando houvessedefesa material indireta (art. 294, II); (a.2) ve-rificando se havia nulidades e suprindo as sa-náveis (art. 294, IV);

(b) verificar a presença dos pressupostosprocessuais e condições da ação, extinguindoo processo sem julgamento de mérito, se fosseo caso (“absolvição da instância” – art. 294, I,III e IV – v. a seguir);

(c) preparar a instrução probatória: (c.1)ordenando a realização de perícias (art. 294,V); (c.2) designando a audiência e determinan-do a produção de prova oral (art. 296, I e II).

Diferentemente do direito português e dosantecedentes no próprio direito brasileiro (De-creto-Lei nº 960 – v. acima), excluía-se, emprincípio, a possibilidade de conhecer-se dire-tamente do mérito nesse momento. Consagra-va-se a indispensabilidade da audiência, aindaque não houvesse provas a produzir (mas, acer-ca do tema, ver adiante).

Não havia expressa menção ao exame de“pressupostos processuais”. Eram consideradoscompreendidos não só no inciso I (de onde seextraía expressa menção à legitimidade ad pro-cessum e a representação), como também noinciso IV do art. 294 (interpretado como se dis-sesse respeito a defeitos processuais de todaespécie).

De qualquer modo, discutia-se acerca dapossibilidade de verificação de alguns dos pres-supostos por ocasião do “saneador”. Assim, porexemplo, Liebman, dando por “conforme aodireito brasileiro” lição de Chiovenda sobre odireito italiano, afastava a possibilidade deapreciação do tema da litispendência nessa fasedo processo: por força do art. 182, II, seu exa-me ficaria condicionado à interposição da res-pectiva exceção instrumental, processada emautos apartados, sem que o “despacho sanea-dor” pudesse nisso interferir30. Já Galeno La-cerda destacava a natureza de ordem públicada questão que, como tal, poderia ser conheci-da de ofício e a qualquer tempo pelo juiz: as-sim, e não interposta a exceção pela parte, ojuiz poderia examiná-la no “despacho sanea-dor”31 .

11. A grande inovação decorrente da ado-ção do “despacho saneado” – e que consisteem aspecto essencial do instituto, tanto no Bra-sil como em Portugal – foi a reserva de ummomento em que o juiz tem o poder de, exofficio, examinar e, se possível, eliminar pos-síveis vícios processuais. Antes do Código de39, só mediante provocação do interessado isso

podia ser feito. Daí que, antes de existir o “des-pacho saneador”, o interessado aguardava parasó apontar a nulidade (absoluta ou relativa: nãose falava em preclusão em relação a nenhumadas duas) quando lhe aprouvesse, eventualmen-te já no recurso contra a sentença que lhe foradesfavorável32. Todas as matérias que não esti-vessem na esfera de disponibilidade da parte, apartir do Código de 39, passaram a poder serconhecidas de ofício, nessa nova fase do pro-cesso.

A positivação da fase saneadora refletiu nãotanto a conscientização acerca do caráter pú-blico da relação processual e da função do juiz(que já antes disso, mesmo no Brasil, vinhasendo destacado), como a preocupação de tra-duzir em resultados concretos essa nova per-cepção do processo. Mais ainda, destinou-se apropiciar economia processual – quer com ojuiz encerrando o processo que não deveria irpara frente, quer eliminando a discussão dequestões processuais.

12. O Código de 39 não trazia exigênciaexpressa e genérica de motivação. O art. 280,II, estabelecia apenas a necessidade de funda-mentação da sentença. Em outros específicoscasos, existia ainda a exigência de motivação(art. 117: deferimento de provas; art. 118: ava-liação da prova; art. 119: declaração de suspei-ção) – mas não na disciplina do “despacho sa-neador”. De qualquer modo, não era incomumapontar-se a necessidade de o juiz embasar suadecisão, mesmo quando não encerrasse o pro-cesso. Tal se imporia como “imperativo técni-co” ou decorrência do sistema e dos princípiosgerais33.

13. O “despacho saneador” poderia assu-mir a forma de decisão interlocutória, decisãoterminativa (não julgava o mérito, sendo, nes-se caso, a ação renovável: hipóteses indicadasem, 10, b, acima) ou decisão definitiva (a açãonão seria renovável: quando do acolhimentode questões prejudiciais ao mérito ou do exa-me do próprio mérito – para aqueles que o con-cebiam nessa fase do processo – v. a seguir)34 .

14. Havia exigência expressa de julgamen-to positivo sobre condições da ação (art. 294, Ie III) e pressupostos processuais (art. 294, I eIV): “o juiz... decidirá...; examinará...; pronun-ciará...; mandará...” , etc.

Por isso, chegava-se a sustentar que, acer-ca desses assuntos, o juiz não era autorizado ajulgar de ofício em outros momentos35. Ignora-va-se, assim, aspecto quase que óbvio: eventu-

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no “saneador”; (b) excetuariam-se dessa pre-clusão: incompetência absoluta, nulidade dacitação, impedimento, litispendência e coisajulgada; (c) quanto às condições da ação, só fica-ria precluso o exame das questões decididas39.

14.2. Conquanto em minoria, eram extre-mamente autorizadas as vozes que se pronun-ciavam em sentido diverso, afastando-se da ten-dência excessivamente “preclusionista”.

Assim, Amaral Santos admitia a reapreci-ação da matéria referente às condições da ação,quer na decisão final, quer em segunda instân-cia, sem necessidade formal de agravo no autodo processo. Igualmente Galeno Lacerda afas-tava a preclusão relativamente a todas as ques-tões alheias à esfera de disponibilidade da par-te – desde que a decisão não tivesse sido termi-nativa do processo (quando então se “esgota ajurisdição”). E, nessa esfera de indisponibili-dade incluía, entre outras matérias, as condi-ções da ação, os pressupostos processuais e asnulidades “absolutas” e “relativas” (que se con-traporiam às “anulabilidades”). Nessas hipó-teses, não se conceberia “decisão implícita”.Todavia, quando a matéria dissesse respeitoexclusivamente ao interesse da parte, não só o“saneador” teria eficácia preclusiva como acer-ca delas poderia ocorrer “decisão implícita”.Ainda, Bueno Vidigal, em suas aulas de 1959para os alunos do quarto ano da Faculdade doLargo São Francisco, transcritas e publicadaspelo C. A. XI de Agosto, negou a existência dequalquer eficácia preclusiva no “despacho sa-neador”, citando inclusive voto do MinistroFiladelfo de Azevedo, constante da RT nº 160/308. Inexistiria preceito proibindo o juiz dereapreciar, no curso do processo, as questões jádecididas. O art. 289 (de teor semelhante aoatual art. 471, caput) apenas proibiria o reexa-me, em outro processo, de “lide” (no sentidode “mérito”) já decidida40.

14.3. Seja como for, Liebman retratava oentendimento dominante ao afirmar que o “des-pacho saneador... tem sempre o efeito de deci-são preclusiva, explícita ou pelo menos implí-cita, das questões indicadas pela lei”41.

15. Discutia-se, ainda, acerca da possibili-dade de julgamento de mérito por ocasião do“saneador”. Já se viu que isso não foi previstoem termos expressos na disciplina do instituto.

Tomem-se em conta as atuais hipóteses dejulgamento de mérito (CPC/73, art. 269).

15.1. Quanto à homologação de atos de dis-posição das partes, não havia dúvidas de que

almente esses assuntos, especialmente as con-dições da ação, também dependeriam de ins-trução probatória – como destacava GalenoLacerda36. Outros, cientes dessa circunstância,mas convictos da impossibilidade de a matériaser deixada para a sentença final (salvo quan-do se confundisse com o próprio mérito), suge-riam instrução específica tendo por objeto asquestões preliminares (inclusive, e se necessá-rio, com audiência), dentro da própria fase sa-neadora. Nesses termos, manifestou-se Lieb-man – com ele concordando Frederico Mar-ques, ainda que destacando que não se proce-dia desse modo na prática. Essa posição foi fun-damentadamente criticada por G. Lacerda37.

14.1. Da exigência de pronunciamento ex-plícito, partiu-se para a tese da “decisão implí-cita”: só ficaria excluída a rejeição da alegaçãonão expressamente examinada caso se pudessedepreender, direta ou indiretamente, do teor dodespacho que a matéria seria apreciada na sen-tença (diante de alguma indicação de que erainadequada sua apreciação naquele momento).Foi dessa noção, correta ou não, de imprescin-dibilidade do exame das preliminares no “sa-neador” que se originou a Súmula 424 do Su-premo: “Transita em julgado o ‘despacho sa-neador’ de que não houve recurso, excluídasas questões deixadas, explícita ou implicita-mente, para a sentença”. Afirmava-se a pre-clusão da apreciação posterior, se o interessa-do não houvesse feito uso do agravo no auto doprocesso (expressamente previsto como recur-so cabível – art. 851, IV).

Mendonça Lima, escrevendo já sob a égidedo Código de 73, mas referindo-se ao que sepassava ao tempo do diploma anterior, traçouo seguinte quadro da preclusão das questõesapreciáveis no “despacho saneador”: se nãoargüidas ou se não verificadas de ofício, nãomais caberia levantá-las; se argüidas, poderiao juiz expressamente retardar sua apreciaçãona sentença38. Mendonça Lima não tratou dahipótese em que, argüida matéria a ser exami-nada no “saneador”, o juiz se omitia. Mas, tam-bém nesses casos, nos termos da Súmula 424,haveria preclusão, se não tivesse ocorrido res-salva (direta ou indireta) de que a questão se-ria apreciada na sentença.

Seguindo as linhas gerais da concepçãodominante, ainda que a mitigando em algunspontos, Frederico Marques afirmava que: (a)ficaria precluso o exame dos pressupostos pro-cessuais, tendo sido ou não decidida a matéria

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pudesse ocorrer por ocasião do “saneador”. Issonão por expressa previsão na disciplina do ins-tituto, mas com base no estabelecido relativa-mente à “cessação de instância”: nos arts. 206e 207, indicavam-se a “transação” e “desistên-cia” (como renúncia ao direito em que se fun-da a ação) como hipóteses de encerramento doprocesso por ato da parte. Ainda, no art. 55,havia a menção à “confissão”, no sentido dereconhecimento do pedido (pois o regime quese lhe previa era diverso do estabelecido no art.118 para a “confissão” enquanto ato probató-rio)42. O juiz haveria de chancelar tais atos aqualquer tempo, inclusive no “saneador”.

15.2. Já relativamente à prescrição e à de-cadência, existia maior controvérsia doutriná-ria e jurisprudencial. Liebman, considerando-as integrantes do mérito e descartando qual-quer exame desse no “saneador” (v. a seguir),afastava sua apreciação em tal fase. No mesmosentido parece ser o pensamento de Buzaid43.Prevalecia o entendimento oposto, de que, comopreliminares de mérito, seria possível apreciá-las no “saneador”44.

15.3. Note-se que, quando parte da doutri-na e jurisprudência afirmava admitir julgamen-to de mérito no “despacho saneador”, muitasvezes tinha em vista a tão-só possibilidade deexame de condições da ação, na suposição deque tais matérias (ou, quando menos, a possi-bilidade jurídica e a legitimidade) integrariamo mérito – concepção essa que foi expressamen-te afastada pelo Código de 73: art. 267, VI.Assim, Galeno Lacerda reputava como sendode mérito, conquanto atinentes à relação pro-cessual, a possibilidade jurídica e a legitimida-de – sendo possível julgamento “de mérito”acerca delas quando do “saneador”. Lacerda,contudo, concebia ainda, em outras hipóteses,o julgamento do mérito nessa fase (v. a seguir).M. Lima tratava a legitimidade como questão“prejudicial” ao mérito. Liebman, pelo contrá-rio, destacava que as condições da ação só po-diam ser julgadas no “saneador” precisamentepor não integrarem o mérito45.

15.4. Todavia, o conhecimento direto domérito na fase de saneamento, tal como o auto-rizado pelo “julgamento antecipado da lide” doCódigo ora vigente, era descartado majoritari-amente por doutrina e jurisprudência46.

Segundo Liebman, o mérito não poderia serdecidido sem audiência de instrução e julga-mento. Suprimir a audiência equivaleria a su-primir a oralidade. Só dispositivo legal expres-

so, inexistente no Código de 39, autorizariaresposta no sentido contrário – tal como no di-reito português, em que, além de haver lei nes-se sentido, o julgamento do mérito no “sanea-dor” é precedido de discussão escrita mais am-pla e audiência preparatória. Igualmente Frede-rico Marques e Buzaid rejeitavam a possibilida-de de decisão sobre o mérito no “saneador”47 .

Galeno Lacerda, discordando desse enten-dimento, ponderava serem três as finalidadesda audiência: produção de provas, discussão ejulgamento. Em relação a nenhuma das três aaudiência seria essencial: nem toda prova emaudiência se produz; as partes podem renunci-ar ao debate; o juiz pode proferir a sentençadepois de encerrada a sessão. A oralidade, nosistema brasileiro, teria assim caráter relativo.A seguir, Lacerda lembrava que “jurisprudên-cia de tomo” vinha admitindo a decisão de pre-liminares de mérito no “saneador”. Mas a dis-tinção entre “mérito propriamente dito” e “pre-liminar de mérito” seria imprópria: haveria,isso sim, hierarquia quanto ao caráter prejudi-cial entre as várias questões de mérito. Daí que,por constituírem “questões prejudiciais”, deve-riam ser apreciados no “saneador” os fatos “ex-tintivos” (Lacerda incluía entre eles, além dosassim hoje reputados, a coisa julgada), os “im-peditivos” (indicava aqui as condições da ação)e os “suspensivos” (citava, entre outras hipóte-ses, o direito de retenção, o benefício da execu-ção). A condição para exame de tais matériasno “saneador” resumir-se-ia exclusivamente àdesnecessidade de produção probatória. Jáquanto ao fato “constitutivo do pedido”, só po-deria ser conhecido “por ocasião” do “sanea-dor” se, além de dispensável a produção pro-batória, os interessados aquiescessem com asupressão da audiência. Mas, ainda nesse últi-mo caso, Lacerda ressalvava as hipóteses deconfissão expressa e integral “do pedido” (sic)e de não-contestação da ação executiva, quan-do então estaria autorizado o julgamento ime-diato do pedido independentemente de consul-ta. De qualquer modo, a apreciação de todosesses temas, com exceção das condições daação, dar-se-ia apenas “por ocasião do sanea-dor”, mas não “no saneador”. Vidigal tambémpronunciou-se favoravelmente ao julgamentode mérito no “saneador”, vez que o Código nãoadotara, em seu entender, “o sistema da orali-dade em sua pureza”48.

Entretanto, reitere-se: ressalvado o caso da“preliminar de mérito”, não prevalecia o en-tendimento favorável ao julgamento do pedidoquando do “saneador”.

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VI - O conteúdo do saneamento noprocesso civil brasileiro atual

16. O Código de 73 adicionou às hipótesesprevistas no diploma anterior a possibilidadede, em tal momento, o juiz já conhecer do mé-rito da causa – não só quando houver revelia(como era no Decreto-Lei nº 960/38), comotambém se os elementos constantes dos autos jálhe permitirem a formação de convencimento.

Essa inovação deu-se, mais uma vez e as-sumidamente, por influência do direito portu-guês49. A previsão do inciso I do art. 330 temteor bastante semelhante ao do dispositivo dodiploma português que autoriza o julgamentodo mérito por ocasião do “saneador”.

17. Examinem-se sumariamente essa e asdemais hipóteses de julgamento imediato domérito nessa fase do processo.

17.1. Questão unicamente de direito – a quese refere o art. 330, I, para autorizar o julga-mento “antecipado da lide” – não existe. Sem-pre haverá fato subjacente ao direito. A únicaexceção que normalmente se aponta está noexame direto de constitucionalidade. Mas, mes-mo nesse caso, pode haver maior ou menorcarga de questão fática a se verificar (pense-se,por exemplo, na argüição de inconstitucionali-dade por defeito formal – quando é possívelhaver investigação de fatos atinentes ao pro-cedimento de que resultou o ato). Então, ques-tão unicamente de direito é aquela em que osaspectos fáticos direta ou indiretamente rele-vantes são incontroversos, pacíficos e o juiz nãoverifica nenhum aspecto que objetivamente oleve a duvidar de sua veracidade a ponto deprecisar determinar provas de ofício – resumin-do-se a discussão entre as partes às decorrênci-as jurídicas de tais fatos.

Já a outra hipótese constante do inciso I doart. 330 (quando, a questão de mérito “sendode direito e fato, não houver necessidade deproduzir prova em audiência”), diz respeito aoscasos em que a prova já trazida para os autos(que, em regra, até esse momento, será apenasa documental) já é suficiente para o julgamen-to do mérito. Obviamente, havendo só a neces-sidade de perícia – embora esse meio probató-rio não se “produza em audiência” necessaria-mente –, do mesmo modo descaberá o “julga-mento antecipado”.

Assim, os dois casos constantes do inciso I(e, como se verá a seguir, também o do inciso

II) recaem em uma mesma hipótese: desneces-sidade de produção de novas provas. Por isso,não é de todo apropriado o nome “julgamentoantecipado” – como também não o é a expres-são “julgamento conforme o estado do proces-so”. Transmitem a falsa impressão de que oato decisório estaria ocorrendo antes de seumomento oportuno, “abortando a caminhadaem direção à sentença final”50. Não é o que sedá: decide-se porque não há mais o que ser fei-to; porque tudo o que era necessário para a for-mação da convicção do julgador já está nosautos.

17.2. A outra hipótese em que se autoriza ojulgamento direto do mérito (art. 330, II) con-cerne à revelia em que se produza seu efeitoprincipal (previsto no art. 319). É decorrênciadireta do regime estabelecido para a revelia, apartir do Código de 73 – com a regra geral dapresunção de veracidade dos fatos afirmadoscontra o revel. Então, não é mais do que espe-cificação da diretriz genérica estabelecida noinciso I do art. 330: julga-se nesse momentovez que não existem questões de fato contro-vertidas.

Bem por isso, a norma do inciso II do art.330 está diretamente relacionada com a “pro-vidência preliminar” do art. 324 do CPC, pelaqual, tendo havido revelia, cumpre ao juiz ve-rificar a ocorrência do seu efeito principal. Emcaso negativo, possibilitará ao autor a produ-ção de provas51.

Afinal, nem sempre à revelia correspondea produção de seu efeito principal. A ausênciade contestação do réu validamente citado nãogerará essa eficácia: (I) se litisconsorte passivocontestar e a defesa dele servir para o revel;(II) se o litígio versar sobre direitos indisponí-veis; (III) se a inicial não estiver acompanhadade instrumento “substancial” (art. 320). Ain-da, além das expressamente previstas no art.320 do CPC, há outras hipóteses sistematica-mente extraíveis em que não opera o efeito prin-cipal da revelia: assim, por exemplo, art. 9º,II, c/c art. 302, parágrafo único; art. 52, pará-grafo único; art. 129.

Em todos esses casos, só se autorizará jul-gamento imediato do mérito se, a despeito danão-ocorrência do efeito da revelia, o caso con-creto se enquadrar na hipótese genérica do in-ciso I do art. 330. Também não ficará afastada,obviamente, eventual extinção do processo nostermos do art. 329 (desde que o motivo que aenseje seja conhecível de ofício).

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Além disso, não se pode esquecer que a re-velia tem por efeito a presunção relativa dosfatos afirmados pelo autor. A consideração defatos notórios, máximas da experiência, juízosde probabilidade podem derrubar essa presun-ção. Por isso, tem-se reconhecido que “nemmesmo a revelia impede a atividade probatóriado juiz”52.

Mas a revelia, mesmo quando não se ca-racterize uma das exceções à ocorrência de seuefeito principal, não impõe necessariamentejulgamento de mérito a favor do autor, se: (a)dos fatos narrados na inicial não resultam asconseqüências jurídicas pretendidas pelo autor;(b) os fatos alegados são manifestamente fal-sos ou impossíveis (repita-se: a presunção doart. 319 é relativa); (c) há matérias, contráriasao autor, que o juiz pode conhecer de ofício(pressupostos processuais e condições da açãoe, quanto ao mérito, as objeções: decadência,prescrição de direitos indisponíveis, pagamen-to etc.). Nesse último caso, tais matérias tantopodem estar de plano evidenciadas nos autos,quanto delas pode haver algum marcante ele-mento indicativo – justificando-se então atéprovidência probatória de ofício.

E – eis o que interessa para o presente texto– o julgamento de mérito contrário ao autorpode eventualmente até se dar na fase do jul-gamento conforme o estado do processo, nostermos do art. 329, c/c art. 269, IV (prescriçãoquanto a direitos indisponíveis e decadência emqualquer caso), ou do art. 330, I. As hipótesesindicadas em a e b, imediatamente acima, en-quadram-se exatamente no disposto no incisoI do art. 330. E o mesmo pode se dar no quetange ao mencionado em c, acima, quando des-necessária produção probatória.

Além disso, mesmo quando se produz o efei-to principal da revelia, o revel pode compare-cer tardiamente ao processo, recebendo-o nasituação em que se encontra e passando a serintimado de seus atos. E, desde que ingresseno processo antes de proferida a sentença, po-derá apresentar as defesas processuais e mate-riais que o juiz conheceria de ofício e fazer pro-va quanto a elas, bem como contrapor provaàquela produzida pelo autor. Portanto, e tam-bém nessa hipótese, eventualmente ficará afas-tado o julgamento imediato do mérito.

17.3. Em suma, o pressuposto geral e ina-fastável nas três hipóteses autorizadoras do jul-gamento antecipado é a desnecessidade da pro-dução de qualquer outra prova.

18. Precisamente por isso, há vasta juris-prudência dos tribunais de segundo grau de-clarando nula sentença proferida em “julga-mento antecipado”, por considerar que aindahavia a necessidade de produção de provas.Desse modo, não há que se falar em “discricio-nariedade” do julgador quanto a julgar ou nãoantecipadamente. Seu “livre convencimento”não serve de obstáculo ao reexame, pelo segun-do grau, dessa opção. Só poderá conhecer dire-tamente do mérito, nessa fase, se objetivamen-te estiverem presentes todos os elementos ins-trutórios necessários.

Mas, dessa constatação, nem sempre se ex-trai sua outra face. Se é objetivamente verificá-vel a impossibilidade do “julgamento anteci-pado” (com a cassação da sentença proferidaquando havia necessidade ainda de provas),também há de sê-lo o inverso – ou seja, quan-do, embora já não seja necessária qualquer pro-va, deixa-se de conhecer diretamente do méri-to nessa fase do processo53. Evidentemente, emtermos práticos, talvez nem sempre os litigan-tes consigam ou queiram valer-se do controlerecursal: o resultado do agravo de instrumentocontra a decisão que determinou proferir pro-vas pode vir a ocorrer só depois de finalizada afase probatória; a parte pode não querer insis-tir no “julgamento antecipado”, temendo queo resultado lhe desfavoreça etc. De qualquermodo, não se pode ignorar o aspecto ora des-tacado.

19. Também o art. 329, ao tratar “da extin-ção do processo” nessa fase do procedimento,prevê hipóteses em que tal ocorrerá “com jul-gamento de mérito” (art. 269, II a V). Nessescasos, todavia, não se tratou de especial inova-ção (v. item V, acima).

A exemplo do que já ocorria sob a égide doCódigo de 39, os atos de disposição das partes(art. 269, II, III e V), independentemente dequando ocorrem, hão de ser imediatamenteexaminados e, se perfeitos, chancelados. OCódigo atual expressamente previu que a ho-mologação se dará por meio de sentença (e,portanto, apelável) “de mérito”. Questão queescapa do objeto desse trabalho é examinar sea autoridade da coisa julgada acobertará essepronunciamento.

Já a previsão de extinção com base na pres-crição e decadência há de ser considerada emharmonia com o regime geral do “julgamentoconforme o estado do processo” – cuja tônicaestá na função (dever-poder) de o juiz decidir

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nesse momento tudo o que, com base nos ele-mentos instrutórios já carreados, seja possível.Como a prescrição e a decadência são matériasgeralmente conhecíveis de plano, o art. 329indicou-as sem qualquer ressalva (não houves-se o preceito, se enquadrariam, na generalida-de dos casos, na hipótese do art. 330, I, primei-ra parte). Mas, ainda que raro, pode ser neces-sária investigação probatória para determinar-se, por exemplo, quando efetivamente se deu otermo inicial do prazo prescricional ou deca-dencial. Nesse caso, e por óbvio, afasta-se aextinção com amparo no art. 269, IV.

20. É possível “extinção parcial” do pro-cesso, com ou sem julgamento de mérito? Maisdo que resposta positiva ou negativa, a soluçãodo problema passa pela consideração acerca dequal seria a natureza da decisão, sua recorribi-lidade, eficácia e autoridade (coisa julgada,preclusão).

20.1. Moniz de Aragão afirma generica-mente que seria possível “extinção parcial”,tanto por força de causas previstas no art. 267,quanto no art. 269 (exemplifica com a prescri-ção de parte do crédito). Caberia recurso deagravo54. Não aborda o problema da autorida-de dessa decisão – problemática, sobretudo,quando por motivo de mérito.

Para Frederico Marques, quando houver“processo cumulativo” e o juiz declarar inad-missível (questão preliminar) algum(ns) dos“litígios” (sic), não se encerra nenhum proces-so. Invoca o art. 317 como argumento: o pre-visto para a reconvenção se aplica às demaiscumulações. Assim, tal decisão não será sen-tença. O recurso cabível é o de agravo. Agora,no “processo cumulativo”, o juiz não pode de-cidir antecipadamente um ou algum(ns) dos“litígios”, deixando os demais para a sentençaa ser proferida no final. Inclui nessa negativaaté a hipótese de “extinção parcial” por deca-dência ou prescrição: se isso fosse admissível,eventual apelação suspenderia o processo e “se-ria absurdo” entender-se que, nesse caso, o re-curso cabível é o agravo de instrumento. Talsituação, segundo Marques, contrariaria o prin-cípio da economia processual, em que se inspi-ra o art. 33055.

Pontes de Miranda parece não admitir ojulgamento imediato parcial do mérito56. Tam-bém nesse sentido, há pronunciamentos doSupremo Tribunal Federal (RTJ nº 119/1235,RTJ nº 75/274 – nesse segundo, consigna-seser “preferível” o julgamento não-fracionado).

Calmon de Passos vai além na rejeição dejulgamento parcial do mérito. Seria inadmissí-vel até mesmo decisão que repelisse por com-pleto a argüição de prescrição. Nenhum examefracionado de mérito seria possível nessa fasedo processo – o que aconteceria caso se rejei-tasse a alegação de prescrição, sem que se pros-seguisse no exame direto do pedido. Quanto aisso, para o processualista baiano, o atual di-ploma permitiria menos do que o anterior: noantigo “saneador”, eram examináveis todas aspreliminares (mesmo de mérito); no sistemaatual, “só se autoriza o julgamento antecipadode mérito ou a extinção sem julgamento domérito; não o exame de todas as prelimina-res”57.

20.2. O afirmado por Calmon de Passos nãoparece correto. Não bastasse a expressa previ-são da possibilidade de rejeição da prescriçãoou decadência nessa fase (art. 331, parte inici-al, c/c art. 329, c/c art. 269, IV), não se põe,em tal caso, nenhum dos óbices que se indi-cam ao provimento parcial do mérito nessa fase(quanto à eficácia do recurso e quanto à autori-dade da decisão).

Quanto à “extinção parcial” sem julgamentode mérito – como se viu –, não são postos mai-ores óbices à sua admissibilidade.

Ora, isso é o que basta para não se poderinvocar a letra da lei como argumento contrá-rio ao julgamento imediato parcial de mérito,em qualquer caso, no “saneador”. Afinal, se a“extinção parcial” sem julgar mérito é possí-vel, embora o art. 329 não a preveja expressa-mente (referindo-se apenas ao processo comoum todo), o exame direto de parte do mérito,nessa fase, também há de sê-lo, a despeito de oart. 330 não explicitar essa possibilidade. Nes-se ponto, é de se aproveitar a doutrina portu-guesa a respeito do tema: o objetivo da fasesaneadora é precisamente diminuir a matériaobjeto da cognição do juiz, na continuidade doprocesso, estritamente àquilo que ainda não seestá em condições de decidir (v. acima – III.2).Aliás, no Brasil nem mesmo existe o pro-blema apontado por Anselmo de Castro, parao processo português, de se diferenciarem osórgãos que julgariam o mérito (v. III.2): omesmo órgão que conduz o processo proferea sentença.

Aspectos atinentes à eficácia, recorribilida-de e autoridade não atrapalham tal conclusão.

A eficácia da decisão parcial de mérito nocurso do processo ficará condicionada à da

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sentença final: até lá é possível o exame de ques-tões de ordem pública pertinentes inclusive aessa parte do objeto do processo.

Não há que se falar, desde logo, em coisajulgada do provimento relativo a parte do mé-rito. Afinal, a decisão não será sentença: o res-tante do processo prosseguirá. Vale aqui o mes-mo raciocínio pelo qual a decisão extintivaparcial sem julgamento de mérito não é sen-tença (vede, acima, as lições de F. Marques eM. de Aragão). Haverá apenas preclusão – e,ainda assim, limitada (v. adiante): não mais serápossível reexame do tema (salvo em recurso),a não ser que tenha sido desconsiderada ques-tão conhecível de ofício. Depois, com a sen-tença, desde que não abalada a anterior deci-são parcial do mérito, advirá a coisa julgada:nesse caso, o comando da sentença automati-camente incorpora o anterior decisum parcialsobre o mérito.

Quanto à recorribilidade da decisão parci-al do mérito, caberá agravo – que não tem, au-tomaticamente, efeito suspensivo. Não se põe,então, o óbice apontado por F. Marques, de queseria contrariada a economia processual, namedida em que a parte ainda não decidida doprocesso permaneceria suspensa enquanto pen-desse “apelação” (sic) referente à parcela deci-dida58. Afinal, repita-se, a solução ora aponta-da quanto ao problema recursal é exatamente amesma que concebe o próprio Marques quan-do trata da recorribilidade da decisão que “ex-tingue parcialmente” o processo sem julgar omérito: em ambos os casos, não será sentença– mas sim decisão interlocutória (o conteúdode mérito é irrelevante nos termos do art. 162do CPC). Note-se, de outra parte, que a faltade eficácia suspensiva do recurso de agravotampouco significa a possibilidade de imedia-ta execução da decisão. Como se expôs, suaeficácia fica condicionada à da sentença final.Agora, o que não se descarta é que, nesse mo-mento, conceda-se antecipação de tutela, sepresentes os requisitos (lembre-se que um de-les – o da grande plausibilidade do direito – jáestará mais do que satisfeito): daí sim, e dentrodos limites desse instituto, vai-se poder falarem eficácia imediata.

21. A extinção do processo sem julgamen-to de mérito, por falta de pressupostos proces-suais e condições da ação (art. 267, IV, V eVI), ou com o seu julgamento, mediante a chan-cela de atos de disposição (269, II, III e V) oupelo acolhimento de prescrição de direitos in-

disponíveis ou decadência (art. 269, IV), pode-se dar a qualquer tempo, antes ou depois dafase de “julgamento conforme o estado do pro-cesso”. Tirando a hipótese dos atos de disposi-ção (que as próprias partes haverão de noticiarao juiz), nas demais haverá exame ex officio(art. 267, § 3º, e art. 295, IV, c/c art. 219, § 5º,a contrario sensu).

O mesmo se diga quanto à verificação denulidades. O juiz exerce constante atividadesaneadora. As nulidades absolutas o juiz exa-minará de ofício e a qualquer tempo. Mas mes-mo as relativas, desde que alegadas na primei-ra oportunidade pela parte interessada, serãologo apreciadas pelo juiz – que não ficará limi-tado a tratar delas apenas na fase de saneamentoou na sentença.

Há, reitere-se, saneamento constante doprocesso. Eis aspecto essencial no sistema doCódigo de 73. Trata-se de concepção que nãoprevalecia na vigência do Código de 39, embo-ra preconizada por autorizada doutrina. Con-siderava-se geralmente o “despacho saneador”como o momento oportuno e único para o exa-me da regularidade do processo, excetuando-se, quando muito, a possibilidade de expressaindicação de que o tema seria tratado na sen-tença final (v. item 5, acima). Tal peculiarida-de, de certo modo, muda o perfil da fase sane-adora: essa é, no atual Código, a ocasião espe-cialmente reservada para a atividade de verifi-cação da validade formal do processo – masnão o único momento em que se autoriza essaatividade. Enfim, a fase saneadora, diferente-mente do que se entendia sob a égide do diplo-ma anterior, não é uma ilha de poderes do juizdentro de um mar de dispositividade.

22. Mas a ampla concessão de poderes aojuiz tem sua contrapartida: a exigência de “di-álogo com as partes”.

É por isso que, constatando o próprio juiz aeventual existência de vícios processuais ati-nentes a matéria de ordem pública ou “obje-ções materiais” (defesas materiais indiretasexamináveis de ofício), antes de decidir acercadelas, deverá propiciar o exercício do contra-ditório. Assim, parecendo-lhe ausente pressu-posto processual ou condição da ação ou exis-tente alguma objeção material, caberá ouvir oautor. Trata-se do “dever de diálogo” do juizpara com as partes, modernamente ressaltadocomo o próprio contraditório em sua dimensãomais plena: não se justifica que as partes sejamsurpreendidas por decisões de ofício acerca de

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matéria sobre as quais, até então, não haviamdesenvolvido alegações59. Isso vale para qual-quer momento do processo, inclusive para suafase saneadora. Portanto, também nessas hipó-teses – e não só nos casos dos arts. 326 e 327(em que se cogita de matéria alegada pelo réu)– o juiz abrirá vista do processo para o autor. Écerto que, não se subsumindo exatamente àshipóteses dos arts. 326 e 327, o prazo para oautor falar não será automaticamente aquelede dez dias. O juiz fixará o termo para a mani-festação e, no seu silêncio, valerá o prazo geralde cinco dias (CPC, art. 185).

23. Aliás, outra hipótese de ouvida do au-tor, depois da contestação, haverá quando o réujuntar documentos com a contestação (art. 398– prazo de cinco dias).

De outra parte, e também por força do art.398, se o autor, nas manifestações de que tra-tam os arts. 326 e 327, traz novos documentos,ouve-se igualmente o réu.

Há o perigo, “teoricamente”, de haver uma“seqüência dialética indefinida”, em virtude desucessivas juntadas de documentos. Esse riscofoi destacado, já no início da vigência do Códi-go de 73, por Malachini – que apontava comoforma de evitá-lo a rigorosa observância dosmomentos próprios para a produção de provadocumental (a inicial e a contestação). Depoisdesses atos, só poderiam ser trazidos novosdocumentos aos autos nas hipóteses taxativasdo art. 397, ou seja, para realização de contra-prova ou prova de fatos novos60. Ocorre que, adespeito de a posição doutrinária restritiva àjuntada tardia de prova documental ter sido adominante de início (como então notava Mala-chini), não foi esse o entendimento que preva-leceu concretamente. Estabeleceu-se de formamarcante a tendência jurisprudencial de não-preclusão em virtude da falta de juntada aosautos da prova documental no momento opor-tuno. Inclusive, passou a se ter por “indispen-sável” – cuja ausência não-suprida acarretariao indeferimento da inicial (arts. 283 e 284) –apenas o documento “substancial” – ou seja,aquele que a própria lei prevê como essencial àforma do ato, a ponto de integrar-lhe a própriasubstância. Os outros vêm podendo ser apre-sentados depois, no curso do processo61. Ade-mais, também “teoricamente”, não fica afasta-da a hipótese de infinitas e sucessivas ouvidasdas partes mesmo que só admitida a juntadatardia de documentos nos limites estritos doart. 397: em tese, poderia haver reiteradas “con-traprovas” de parte a parte. Seja como for, a

prática desses mais de vinte anos evidenciounão ser comum a ocorrência dessa “seqüênciadialética indefinida” – de modo que o supostorisco acaba por não justificar a rejeição da “ten-dência não preclusiva” quanto aos documen-tos (de resto, amparada nas normas do livreconvencimento e dos poderes probatórios – arts.130 e 131). Mas, ainda assim, se, em situa-ções-limite e absolutamente excepcionais, sur-gir tal círculo vicioso, daí então o juiz haveráde fazer cessá-lo. E tal providência, nessa hi-pótese remota, não se dará tanto com base nasregras atinentes ao momento de produção daprova documental, mas por força do preceitoque impõe ao juiz o dever de zelar pela rápidasolução do processo (art. 125, II). Haverá de seponderar concretamente dois valores igualmen-te relevantes em abstrato – a pesquisa da ver-dade e a exigência de celeridade – para definiro que prevalecerá.

24. Discute-se, ainda, se o silêncio do au-tor, quando intimado para se manifestar sobredefesa indireta, acarretaria efeito semelhanteao da revelia, vale dizer, a presunção dos fatosafirmados pelo réu. Prevalece o entendimentode que não62. Até certo ponto, essa respostanegativa parece acertada: é inviável o estabe-lecimento dessa conseqüência desfavorável nafalta de expressa cominação.

Mas o silêncio do autor pode funcionarcomo fato indicativo, subsídio para a formaçãodo convencimento do juiz. É a consideração daconduta das partes no processo como elementoprobatório. Na Itália, há expressa previsão le-gal (CPC, art. 116, segunda parte). O Códigobrasileiro não explicita essa regra, mas ela éextraível do seu art. 131 (que, aliás, tem teorsemelhante ao da primeira parte do art. 116 dodiploma italiano)63. Assim, e na medida em quese relativiza o efeito principal da revelia (v.acima), aproximam-se as conseqüências em ume outro caso. A diferença básica está em que arevelia é presunção legal; a falta de réplica,presunção “comum” (que, ainda mais do queaquela estabelecida no art. 319, muito dependedas circunstâncias concretas). Ambas, de qual-quer forma, são presunções relativas. A isso,some-se a previsão de que “não dependem deprova os fatos admitidos, no processo, comoincontroversos” (art. 334, III) – no que se en-quadra a hipótese em exame. Seja como for,mesmo sob essa ótica, não fica excluído o “prin-cípio da livre e fundamentada apreciação dasprovas pelo juiz” (como concluiu o STF emrelação a outra das hipóteses previstas no art.

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334 – RTJ 99/144). Em conclusão: o silênciodo autor, quando lhe é dada a oportunidade dereplicar a defesa material indireta, pode funci-onar como subsídio para a conclusão acerca daveracidade dos fatos que embasam tal defesa64

– se o contrário não for extraível dos autos ounotório (nos moldes acima apontados para oefeito da revelia). Mas, enquanto elemento in-dicativo autorizador de presunção, há de serinvocado pelo julgador só depois que esgota-dos meios mais diretos e idôneos para a forma-ção do convencimento sobre os fatos da causa.

25. Além disso, antes de cogitar da extin-ção do processo, tem de ser verificado se não ésanável o defeito existente. Por isso, obviamen-te, a imposição do art. 227, parte final, precedea da extinção (sem ou com julgamento de mé-rito). E isso vale igualmente para o “julgamen-to antecipado”, que também é antecedido peloexame da presença dos pressupostos de admis-sibilidade para pronunciamento sobre o méri-to. Assim, “verificando a existência de irregu-laridades ou nulidades sanáveis, o juiz manda-rá supri-las, fixando prazo nunca superior atrinta dias”.

Cabe rápido exame da natureza desse pra-zo e das conseqüências do descumprimento dasmedidas que nele deveriam ser tomadas.

No que tange ao autor, a falta de instru-mento de mandado para o advogado, não su-prida nos termos do art. 37, parágrafo único,acarreta a inexistência do(s) ato(s) praticado(s)pelo profissional. Sendo a própria inicial o atoque se praticou sem procuração (o mais prová-vel nesse momento do procedimento), reflexa-mente faltará pressuposto da própria existên-cia do processo: a demanda. Nas hipóteses deque trata o art. 13 do CPC65, em caso de inérciado autor, haverá “a nulidade do processo” (art.13, I) – vale dizer, a extinção do processo porfalta de pressuposto para seu regular desenvol-vimento66. Também o parágrafo único do art.47 traz regra expressa sobre o tema: extingue-se o processo quando não for promovida a cita-ção de litisconsorte necessário no prazo assi-nalado. Já os casos sem disciplina específica,em que o prosseguimento do processo dependada regularização do defeito, serão regidos di-retamente pelo art. 267, III, e §1º: intima-se oautor por meio do advogado; não se proceden-do à regularização no prazo ali mencionado(trinta dias – que não se confunde com o prazoque o juiz dará para regularizar a situação,eventualmente menor), a própria parte autora

será intimada para suprir a falta em 48 horas,sob pena de extinção do processo.

Ao réu, sua inércia, na hipótese de que tra-ta o art. 13 (corrigir defeito na representação ecapacidade), importará em revelia (art. 13, II).A inexistência de mandado para seu advoga-do, se não suprida nos termos do art. 37, pará-grafo único, acarretará a inexistência do atopraticado sem procuração (sendo a própria con-testação, haverá revelia).

A providência a se tomar, para a regulari-zação do processo, pode ainda incumbir ao pró-prio órgão judicial (ex.: verifica-se incompe-tência absoluta, com a necessidade de remessados autos ao juízo competente). Daí, então, nãohá prazo próprio, preclusivo. A demora no cum-primento da providência deverá trazer conse-qüências administrativas, e não processuais.

26. Moniz de Aragão descarta a “tese deque o juiz deve necessariamente pronunciar-se” sobre condições da ação e pressupostos pro-cessuais, por ocasião do saneamento. A seguir,contudo, destaca que, “se o tema... já estivermaduro”, o magistrado tem o dever de exami-ná-lo – e indica decisões nesse sentido (RT 548/89 e 507/147)67. Vale aqui o já exposto acima,ao se tratar da função que desempenha o juizao definir se julga ou não imediatamente omérito da causa na fase saneadora. Não há dis-cricionariedade: cabe ao juiz examiná-las, sepresentes os elementos instrutórios para tanto.

Adiante, vai-se tentar definir o conjunto deconseqüências dessa constatação.

27. Antes, tem de se tratar de problema re-lacionado com tais decorrências: a eficácia pre-clusiva da decisão que declara saneado o pro-cesso.

O próprio Moniz de Aragão, examinandoas diferenças da disciplina de saneamento doprocesso no Código de 73 em relação ao de 39,ressalta a inexigência de pronunciamento ex-presso acerca das condições da ação e pressu-postos processuais, senão quando o juiz consi-dere ser o caso de extinção do processo. Ade-mais, pressupostos processuais e condições daação são apreciáveis de ofício e em qualquergrau de jurisdição (CPC, art. 267, § 3º). Daíque é impossível adotarem-se os mesmos pa-drões de interpretação empregados sob a égidedo Código anterior68.

Mas se há, por um lado, a constatação dainviabilidade de simplesmente se adotarem ospadrões então majoritariamente aceitos, não sechega, por outro, a fácil conclusão sobre qual o

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exato regime preclusivo da decisão de sanea-mento no sistema atual, no que concerne àsquestões de ordem pública. Faz prova dessadificuldade a imensa quantidade de opiniõesautorizadas sobre o tema. Confiram-se algu-mas delas, apresentadas, dentro do possível, naordem decrescente da extensão de preclusão quereputam advir da decisão declaratória de sane-amento.

27.1. Segundo Barbosa Moreira, o profe-rimento do “despacho saneador” significa que,independentemente de expressa menção, foramdescartadas as hipóteses de extinção do pro-cesso com ou sem julgamento do mérito e dejulgamento imediato do pedido. Em decorrên-cia, tal decisão, se não agravada, tem eficáciapreclusiva não só quanto aos temas expressa-mente abordados, mas quanto aos que, conhe-cíveis de ofício ou tendo sido suscitados, nãoforam decididos. E não há nisso nenhuma “de-cisão implícita”, mas a tão-só impossibilidadede apreciação posterior (ao que parece, Barbo-sa Moreira não concebe aí “preclusão consu-mativa”, mas “por fase do processo”). Excluí-das dessa preclusão ficam apenas a possibili-dade de deferimento de prova antes indeferida(por força do art. 130) e outras questões paraas quais haja autorização de resolução posteri-or (ex.: art. 113, caput, e parte final do pará-grafo único do art. 245)69.

Lauria Tucci consigna que, havendo deci-são expressa e não interposto agravo, não sepode redecidir. Em outra passagem, dá a en-tender que mesmo as questões não decididasexpressamente não poderiam mais ser analisa-das depois da declaração de saneamento70.

Para Calmon de Passos, havendo expressadecisão sobre o tema e não interposto o agra-vo, opera-se preclusão tanto para o juiz de pri-meiro grau quanto para o tribunal. Mas, “quan-do o juiz declara saneado o feito, sem resolverquestões, porque não provocado a decidir emface de controvérsias das partes”, não haverápreclusão apenas para o segundo grau. Contu-do, e a seguir, apresenta uma série tal de res-salvas e exceções que praticamente dizimam aregra geral proposta. Assim: em face dos pres-supostos de existência do processo, não se háde falar em preclusão; a incompetência abso-luta, se não suscitada nem expressamente abor-dada no “saneador”, não fica acobertada porpreclusão, em virtude de regra exceptuadoracontida no art. 113, § 1º; atos praticados noprocesso por pessoa sem capacidade postulató-

ria ou por advogado sem procuração, posto queinexistentes, também não são atingidos porqualquer eficácia preclusiva; idem quanto àinépcia da inicial por falta de pedido ou causade pedir e à intervenção do Ministério Público;a litispendência e a coisa julgada só ficam atin-gidas pela preclusão quando a decisão aborda-as expressamente – e por aí afora. Quanto àscondições da ação, expressamente as enquadrana sua formulação geral acerca da preclusão71.

Frederico Marques, por sua vez, diz que hápreclusão quando, suscitada ou não a questãopela parte, sobre ela explicitamente decidir ojuiz e não se agravar. O mesmo se dá se, embo-ra expressamente suscitada a matéria pela par-te, o juiz não a abordar, mas der por saneado oprocesso, e a parte não agravar: tratar-se-ia dedecisão implícita. Por outro lado, para Mar-ques não há preclusão quando, mesmo sendo afalta do pressuposto processual ou condição daação anterior ao saneamento, não é apontadapela parte nem pelo juiz72.

Malachini, conquanto antes condene o “au-tomatismo preclusionista” da antiga doutrina(expressão de Galeno Lacerda a que se repor-ta), afirma concordar integralmente com o en-tendimento de F. Marques, que – já se viu –acolhe a tese da “decisão implícita”, ainda quelhe dê extensão menor. De outra parte, adere,basicamente nos mesmos termos, à tese da de-cisão implícita no que tange à prescrição (emqualquer caso) e à decadência: havendo reque-rimento do réu a respeito, se o juiz silencia, hárejeição implícita – cabendo o agravo para quese afaste a preclusão73.

Segundo Bermudes, quando “o juiz simples-mente ignora a existência de questões proces-suais pendentes e, sem nada declarar quanto aelas ou quanto à regularidade do processo,”prepara a instrução probatória, não há decisãoimplícita – não se podendo falar em preclusão.Quando o juiz expressamente decide essas ques-tões, haveria “preclusão só para a parte”, casonão agravasse. Dá a entender que isso tambémocorreria quando, embora sem apreciar expres-samente as questões processuais, o juiz decla-rasse saneado o processo e a parte não interpu-sesse embargos de declaração nem agravo. Aseguir, contudo, destaca que essa preclusão nãose estende nem ao juiz nem ao tribunal, que,independentemente de recurso e por força doart. 267, § 3º, podem rever a decisão74.

Manoel Caetano Ferreira Filho consideraque, quanto às questões não abordadas na de-cisão, não haveria nenhuma preclusão. Não

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existe decisão implícita. Tampouco o sanea-mento, em face do art. 267, § 3º, pode aindaser considerado a única ocasião em que o juiztem para decidir sobre pressupostos processu-ais e condições da ação. Já as decisões expres-samente decididas, não interposto o agravo, nãopoderiam ser redecididas pelo juiz de primeirograu. A autorização para decidir a qualquertempo não se poderia confundir com permis-são para redecidir – vedada, salvo expressa au-torização legal, pelo art. 471, caput. Mas a regrado art. 267, § 3º, serviria ainda para possibilitarao tribunal (inclusive os superiores) examinar amatéria, mesmo de ofício, por ocasião de julga-mento de recurso sobre outro tema da causa: nessecaso, não estaria havendo reexame, mas verifi-cação inédita em novo grau de jurisdição75.

Porém, parece prevalecer vertente mais fle-xível.

Moniz de Aragão escreve que, se já era dis-cutível a extensão que se deu ao efeito preclu-sivo do “saneador” no Código de 39, no novodiploma nem há o que se discutir. Não só ficadescartada a preclusão pela via implícita, comopode o juiz rever seu anterior juízo positivoacerca da presença dos pressupostos processu-ais e condições da ação, caso entenda haver-seequivocado no primeiro exame. Cita ainda de-cisão do Supremo, pela qual: “não há preclu-são para o juiz” quanto à matéria (RTJ 101/901). O juiz não fica na dependência do agra-vo para reexaminar o tema76.

Também para Cruz e Tucci, o juiz pode re-apreciar as questões cognoscíveis de ofício, in-dependentemente de agravo. Apresenta apa-nhado da doutrina e decisões retratando os vá-rios entendimentos acerca do tema e procuradestacar a tendência jurisprudencial no senti-do da negativa da preclusão77.

Negando o caráter preclusivo da decisãodeclaratória de saneamento, mesmo que expres-sa acerca das condições da ação e pressupostosprocessuais, podem ainda ser mencionados:Ovídio Baptista da Silva, Greco Filho e L. R.Wambier78. Ainda, no Simpósio de Curitiba em1975, concluiu-se que não preclui a decisão quedeixa de declarar extinto o processo (concl. XV,RT 482/271). Em termos mais amplos, no VIEncontro Nacional dos Tribunais de Alçada,foi aprovada a proposição de que, mesmo ha-vendo decisão explícita, no que tange às con-dições da ação, não há preclusão (concl. 9). Porfim, sejam vistas também as notas 11, ao art.331, e 55, ao art. 267, no CPC de Negrão – que

indicam diversas decisões também nesse sen-tido.

27.2. Conclui-se esse ponto do texto nosseguintes termos.

De uma parte, há de se rejeitar a tese dadecisão implícita. Em nenhuma hipótese, ques-tão não-examinada pela decisão declaratória desaneamento (ou por qualquer outra) pode-seconsiderar implicitamente rejeitada. A idéia dedecisão implícita é incompatível com a garan-tia constitucional de fundamentação das deci-sões (art. 93, IX). Se é absolutamente nula adecisão que não traz suas razões, o que dizerda rejeição de tema sem qualquer apreciação?E o argumento de Barbosa Moreira (de que nãose trataria de decisão implícita, mas apenasestaria vencida a possibilidade de exame dotema) em nada atenua o problema. Não impor-ta o nome que se dê ao fenômeno. Interessa éque, a valer a tese, ter-se-á a rejeição de alega-ção da parte sem sua efetiva apreciação. Ora, anulidade absoluta da decisão não-fundamenta-da não se convalida pela falta de recurso. Igual-mente, a falta de agravo não legitimaria a su-posta automática rejeição da questão não-exa-minada na decisão de saneamento.

Além disso, também parece acertado afir-mar que a questão sobre os pressupostos dadecisão de mérito (pressupostos processuais econdições da ação), ainda que expressamenteexaminada, pode tornar a ser decidida, inclu-sive no mesmo grau de jurisdição e indepen-dentemente de recurso. Não se pode extrair doart. 267, § 3º, regra que autorizaria apenas adecisão de ofício a qualquer tempo e em qual-quer grau, mas não a redecisão. Compare-seesse dispositivo com o do art. 130 (autorizadorda produção de provas de ofício) – que juris-prudência e doutrina (inclusive autores quenegam a possibilidade de redecisão das condi-ções da ação e pressupostos processuais – v. aseguir) entendem permitir ao juiz que decidanovamente acerca de prova antes indeferida.Também esse dispositivo não faz menção ex-pressa à autorização de nova decisão sobre otema, sem que se deixe de extrair-lhe tal senti-do. Tanto nessa hipótese como na dos pressu-postos processuais e condições da ação, está-sediante de matéria que diz respeito à própriaatividade jurisdicional – justificando-se igualtratamento.

O que se disse até aqui vale para todas asquestões processuais usualmente denominadas“de ordem pública” (os pressupostos de ad-

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missibilidade para o julgamento do mérito –“pressupostos processuais” e “condições daação” – e as nulidades absolutas).

Já quanto às questões processuais atinentesao “interesse da parte”, não se põe em dúvidaque a decisão que expressamente as descarta,se irrecorrida, tem plena eficácia preclusiva.Na hipótese em que apenas se declara saneadoo processo, sem apreciação das questões de in-teresse da parte (ou ainda quando nem mesmohá tal declaração), pode-se estabelecer discus-são semelhante à acima noticiada. E, pelo quejá se expôs, há de se negar eficácia preclusivatambém nesse caso. Isso apesar de, então, nãose poder invocar o art. 267, § 3º. O problema éoutro. Reitere-se que a idéia de “decisão implí-cita” é inconciliável com a imposição constitu-cional de fundamentação das decisões (art. 93,IX). Daí que, ainda que houvesse nesse caso“decisão”, seria absolutamente nula por faltade fundamentação – nulidade essa que pode serconhecida a qualquer tempo e em qualquer graude jurisdição (art. 245, parágrafo único, doCPC, c/c art. 93, IX, da CF)79. Portanto, a ques-tão de interesse da parte não apreciada na de-cisão de saneamento poderá ser decidida de-pois, mesmo não tendo havido recurso.

28. Agora, a negação da eficácia preclusi-va em relação aos pressupostos de admissibili-dade para o julgamento de mérito – por reco-nhecer-se que a matéria deve ser decidida (ereexaminada) a qualquer tempo – não signifi-ca que não exista a imposição de que, sempreque possível, essas matérias sejam decididas jána fase saneadora. Reafirme-se o que acima seexpôs: examinar, ou não, essas questões no “jul-gamento conforme o estado do processo” nãose submete ao mero talante do juiz. Havendoelementos para a matéria ser decidida, cum-pre-lhe apreciá-la já na fase saneadora. Ausen-tes, não pode decidir nesse instante. Adiantese retorna ao tema (itens 7 e 8).

29. Quando vigorava o Código de 39, bas-tava o protesto genérico por produção de pro-vas, na inicial e na contestação. O Código de73 pretendeu alterar esse regime, dando-lhemaior rigidez. Em termos taxativos, estabele-ceu-se que a petição inicial e a contestação se-riam os momentos oportunos para a proposi-ção da prova (art. 282, VI, e 300). Os meiosprobatórios haveriam de estar indicados comprecisão já na inicial. Na prática, continuouhavendo apenas o protesto genérico na fasepostulatória (admitido inclusive pelo STF – RTJ

106/157, RT 580/260). Assim, e antes da de-claração de saneamento, tornou-se costume o“despacho de especificação de provas”. É cria-ção da vida forense. Não há sua previsão noCódigo. E a solução da praxe demonstrou ofe-recer maior mobilidade e racionalidade ao pro-cesso. Depois da fase postulatória, as partes têmmelhores condições de saber o que é precisoprovar, o que não está incontroverso – e assimpor diante.

Da admissão do protesto genérico têm-seextraído algumas decorrências. Assim, mesmopara quem não requereu nem genericamenteprovas na inicial ou contestação, admite-se queas requeira depois, por ocasião do “despachode especificação”. Quem já as especificou nainicial não precisa tornar a fazê-lo depois (se-não estaria sendo subvertido todo o procedi-mento fixado em lei: abrandá-lo é concebível;criar sistema que prejudique aquele que cum-pre a letra da lei não). Em suma, nota-se ate-nuação da preclusão em campo probatório80.

30. Por fim, resta examinar a relação entredeferimento e indeferimento de provas e pre-clusão. O juiz pode deferir a prova antes inde-ferida: as normas dos arts. 130 e 131 possibili-tam ao juiz, a qualquer tempo antes de julgar,determinar o desenvolvimento de instruçãoprobatória para que possa formar adequada-mente seu convencimento; mas não pode inde-ferir a prova antes deferida – o que afrontaria asegurança jurídica, que deve prevalecer no cur-so do processo81.

VII - A reforma de 199431. A reforma processual de dezembro de

1994 inovou substancialmente o regime da fasede saneamento do processo ao incluir audiên-cia em seu bojo (Lei nº 8.952/94).

A audiência de saneamento no processo ci-vil brasileiro (art. 331) difere da preparatóriaportuguesa, bem como da vasta maioria dosmodelos adotados em outros sistemas – não sódaqueles que prevêem tal ato já na fase inicialdo processo, como dos que o estabelecem de-pois da fase postulatória82. Isso porque a audi-ência brasileira sucede ao exame da possibili-dade da extinção do processo e do “julgamentoantecipado”. Quanto a isso, o texto legal é cla-ro: “Se não se verificar qualquer das hipótesesprevistas nas seções precedentes...” (art. 331,caput, parte inicial)83.

Ademais – e em inter-relação com esse

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primeiro aspecto –, o seu fim essencial é a ten-tativa de conciliação. Apenas secundariamen-te ela tem o escopo saneador e preparador dainstrução. Melhor dizendo: aproveita-se da au-diência, que se teve de realizar com o fito debuscar a conciliação, para discussão da maté-ria atinente ao saneamento (a de ordem públi-ca e a de interesse das partes, não exauridaantes).

Tanto é assim que, não sendo possível ne-nhuma transação em face do objeto do proces-so, a audiência não ocorrerá. Isso está estabe-lecido – ainda que não em termos de todo preci-sos – no texto legal. Na conversão do projeto emlei, excluiu-se o que constava no final do § 2º:“Proceder-se-á da mesma forma se a lide ver-sar sobre direitos indisponíveis”. Assim, só terávez a audiência prevista no art. 331 quando oobjeto do processo, no todo ou em parte, forpassível de transação. Repita-se, em termosprecisos: (a) cabe a audiência não só quando acausa envolve direitos “disponíveis” – o quesignificaria um âmbito mais restrito84; (b) mas,sendo causa que não tolere transação quanto anenhum aspecto seu, não haverá audiência85.O “Esboço de Anteprojeto” de nova reformatornará ainda mais clara a norma. Consignana proposta de nova redação para o caput: “Se...a causa versar sobre direitos que admitam tran-sação”. E cria-se o § 3º: “Caso o direito emlitígio não admita transação, o juiz procederádesde logo ao saneamento do processo na for-ma do parágrafo anterior”.

32. Nos casos em que cabe a audiência, seessa não for designada, ingressando-se direta-mente na fase probatória, ter-se-á: nulidadequanto à falta de tentativa da conciliação; anu-labilidade quanto à ausência de discussão oralpara a fixação de pontos controvertidos e de-terminação dos meios probatórios (defeito esseconvalidável, se não argüido)86. Afinal, essaúltima função da audiência é secundária e con-dicionada à primeira. Mas, mesmo a nulidadepela falta da tentativa de conciliação há de tersuas decorrências adequadamente delimitadas.Não argüida a anulabilidade decorrente da fal-ta dos debates e constatada a nulidade pela fal-ta de tentativa de conciliação, não se anularátudo o que já se fez até o momento no processo(por exemplo, prova pericial em curso): ape-nas se fará a audiência para tentar a concilia-ção. Ainda, se o defeito constata-se quando jáse está por realizar a audiência de instrução ejulgamento, não se designará audiência espe-cífica de tentativa de conciliação: a própria

audiência de instrução e julgamento já terá eta-pa destinada a satisfazer essa finalidade. Ade-mais, realizada a audiência de instrução e jul-gamento – e nela tendo existido a tentativa deconciliação –, não há mais como se invocar odefeito decorrente da falta da audiência pre-vista no art. 331.

33. Da parte inicial do art. 331 (“Se não severificar qualquer das hipóteses das seções pre-cedentes..., o juiz designará audiência...”) de-corre ainda outra questão relevante. Em prin-cípio, parece haver o pressuposto de ter sidonegativo o juízo acerca da extinção do proces-so com ou sem julgamento de mérito. Diantedisso, qual a eficácia preclusiva dessa decisãoque designa audiência e, conseqüentemente,não extingue o processo87?

Em primeiro lugar, a solução exige que seconjugue essa parte do artigo com o contido no§ 2º (“decidirá as questões processuais penden-tes”). Certamente esse dispositivo não está ape-nas a referir-se às questões surgidas entre adesignação da audiência e a própria audiência.Ou seja, há, nesse § 2º, a expressa autorizaçãopara a decisão, pelo menos, das questões pro-cessuais não-decididas. E note-se que inclusi-ve a própria definição acerca da possibilidadeou não de julgamento antecipado é questão pro-cessual (tanto que – e não se discute – é errorin procedendo o indevido julgamento anteci-pado): daí que, mesmo se realizando audiênciapreliminar, ainda não fica afastado o julgamen-to imediato do mérito. Ademais, e pelo que jáse expôs, não há como se conceber preclusãonesse caso, vez que não há “decisão implíci-ta”. Além disso, as questões de ordem públicapodem ser revistas mesmo que a decisão desig-nadora da audiência as tenha enfrentado ex-pressamente (v. VI, nº 27.2, acima).

34. As conseqüências da falta das partes e(ou) seus procuradores à audiência tambémvariam conforme as duas finalidades distintasdo ato.

34.1. Considere-se, antes, o escopo da ten-tativa de conciliação. Na falta da parte e deprocurador habilitado a transigir, considera-sefrustrada a tentativa conciliatória. Não decor-re disso nenhuma sanção – ainda que se pu-desse pensar em alguma, com base em expres-sa previsão legal, se a parte simplesmente fal-tasse ao ato sem peticionar antes indicando que,por não querer nenhum acordo, não compare-ceria (arcar com as despesas pela audiênciainútil, multa – como ocorre no direito português

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[v. III.2, acima], agravamento de honoráriosem eventual sucumbência ao final etc.). Masnunca tal hipotética sanção poderia ser aquelade que, de uma leitura apressada do § 2º doart. 277 (que trata do procedimento sumário),extrair-se-ia: a presunção de veracidade de fa-tos afirmados pela outra parte. A valer essa con-cepção, haveria a distorção das finalidades dosmecanismos estabelecidos no processo: a con-sagração da ficção.

Faltando à audiência o advogado, mas pre-sente a parte, é possível a tentativa de concili-ação. Trata-se de ato a ser desempenhado pelaprópria parte – e não por seu advogado (sendoassim, é irrelevante para tanto a regra do art.36). Tanto é ato pessoal da parte que a delega-ção de poderes para sua prática – como a detodos os demais vinculados diretamente à par-te – exige específica menção no instrumentode mandato. A parte tem o direito de ser assis-tida pelo seu advogado quando da busca daautocomposição. A ausência deste, porém, nãoobsta o ato. Havendo prévia intimação e exce-tuado motivo de força maior, ter-se-á que ou aparte dispensou a presença de seu patrono ouele indevidamente faltou para com seu cliente(o que se resolverá no âmbito direto da respon-sabilidade profissional).

34.2. No que tange à discussão para fixa-ção dos pontos controvertidos e definição dasprovas, têm de ser analisadas as conseqüênci-as da ausência do advogado. A falta da parte éirrelevante. Essa sim é atividade cuja práticaexige capacidade postulatória. A previsão dodebate acerca da delimitação da atividade ins-trutória consiste em chance a mais que se dá,para as partes, de buscar influir no convenci-mento do juiz acerca desse tema. E, do ângulodo juiz, é oportunidade que se lhe confere paramelhor se esclarecer. O requerimento de pro-dução de provas já terá ocorrido em momentoanterior (v. acima, item 6). Daí que a ausênciado advogado não pode gerar conseqüência pre-clusiva quanto à faculdade de produzir provas– antes já pleiteadas. O juiz até poderá indeferira produção da prova requerida por quem nãocompareceu, mas não em virtude da pura e sim-ples ausência e, sim, como em qualquer outrocaso e fundamentadamente, porquanto a consi-dere desnecessária (e, nessa hipótese, talvez atéo procurador da parte, ao faltar à audiência, per-ca boa chance de convencer o juiz do contrário).

34.3. Enfim, ao se tratar das conseqüênciasque decorrem da ausência da parte e (ou) seu

patrono à audiência preliminar, há de se evitara supervalorização do meio diante do fim. Erraquem vê nesse novo momento destinado à ten-tativa de conciliação mero instrumento de “de-safogo” do Judiciário. Só a partir de tal pers-pectiva conseqüências como a presunção deveracidade dos fatos narrados pelo adversário(no caso do art. 277, § 2º) ou perda do direitode produzir provas (como têm decidido algunsmagistrados de primeiro grau, no que tange aoart. 331) seriam proporcionais e adequadas:afinal, por meio dessas sanções, também sechegaria à “diminuição de serviço”, mediantea dispensa da dilação probatória. Todavia, ten-tar a conciliação é só maneira de chegar a so-lução que mais se aproxime da pacificaçãosocial. Se isso gera mais rápida eliminação deprocessos, tanto melhor. Mas não deixa de serfator secundário. E decisão fundada em pre-sunção ou ficção – como a que se daria caso seconcebesse a presunção de veracidade dos fa-tos aduzidos contra o ausente; ou a perda dodireito de produzir provas, a despeito de já an-tes pleiteadas –, além de provavelmente nãosignificar correta atuação da vontade da lei, estábem longe de por si só pacificar socialmente.

34.4. Por outro lado, tendo havido intima-ções regulares e inexistindo qualquer motivode força maior, a ausência de alguma das par-tes e (ou) de seus advogados não obstará a rea-lização da audiência – com as conseqüências elimitações acima indicadas. Não é de se des-cartar, por exemplo, que, de todos os envolvi-dos, compareça apenas o advogado de uma daspartes. Então, mesmo nesse caso, o juiz fará aaudiência, debatendo as matérias indicadas noart. 331, § 2º, com esse único protagonista quese propôs a participar da sessão.

Se faltantes ambas as partes e seus procu-radores, não se designará nova data: proceder-se-á diretamente ao que determina o § 2º doart. 33188. Contudo, e mesmo nesses casos, ha-verá sempre a possibilidade de o juiz, a qual-quer momento, chamar as partes para tentar con-ciliá-las (art. 125, IV). Todavia, então não se es-tará mais diante do ato de que trata o art. 331.

35. A nova redação do art. 331 deixou cla-ro que, na decisão declaratória de saneamentodo processo, só se designará audiência de ins-trução e julgamento “se necessário”89. Não sedescarta que, mesmo não sendo o caso de “jul-gamento antecipado”, a instrução do processonão inclua provas orais (ou que essas já se te-nham produzido antecipadamente). Nessa hi-pótese, não requerendo as partes esclarecimen-

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tos orais do perito, nem os reputando necessá-rios o juiz (arts. 435 e 452, I), não terá vez aaudiência de instrução e julgamento. É bemverdade que, em tal caso, só se saberá da des-necessidade dessa segunda audiência quando,entregue o laudo (assim como eventuais pare-ceres dos assistentes), nenhum dos sujeitos prin-cipais do processo sentir a necessidade de es-clarecimentos. Mas são imagináveis outras hi-póteses em que, mesmo havendo ainda a ne-cessidade de produção de prova depois da fasesaneadora, de antemão, ter-se-á certeza de quenão se precisará da audiência de instrução ejulgamento (por exemplo, quando for deferidaunicamente inspeção judicial). Seja como for,vale aqui ressalva (que já se depreenderia deoutras noções expostas acima): ainda que ini-cialmente tivesse reputado dispensável audiên-cia instrutória, surgindo a necessidade de qual-quer esclarecimento pericial ou prova oral, ojuiz poderá designá-la.

36. Ainda, o novo art. 331 reiterou o cará-ter cogente da determinação de desenvolvimen-to das atividades de saneamento: o juiz fixaráos pontos controvertidos; examinará as ques-tões processuais pendentes.

37. Quanto à eficácia preclusiva da parteda decisão que fixa os pontos controvertidos,vale o dito antes acerca de decisão que defereou indefere prova (v. VI, nº 30), eis que a fixa-ção de que ora se cuida é o antecedente lógicodo deferimento de uma prova. Assim, se o juizreputou irrelevante determinado ponto, dispen-sando atividade probatória que se lhe referisse,pode voltar atrás e, tendo-o por relevante, de-terminar as medidas instrutórias antes indefe-ridas ou nem mesmo cogitadas – isso, repita-se, por força dos arts. 130 e 131 do CPC. Ooposto não lhe é dado: havendo tomado umponto por relevante e controvertido, conven-cendo-se depois do contrário, não poderá res-tringir a atividade de instrução probatória an-tes deferida.

VIII - Consideração final38. Diversas conclusões acerca do atual re-

gime saneador brasileiro – que tomaram emconta os outros dois modelos examinados – jáse apresentaram no curso do texto e não serãoaqui repetidas. Cabe apenas observação finalacerca de tema nuclear para definir a exata fun-ção da fase saneadora: a relação entre a obri-gatoriedade do saneamento do processo e suaeficácia preclusiva.

Arruda Alvim compara o “saneador” de1939 com o “saneamento” de 1973. Lembraque no “saneador” o juiz decidia acerca dospressupostos processuais e condições da ação,“tudo com preclusão”. Com a eliminação daeficácia preclusiva do saneamento no Códigode 73, “hoje está diminuída a importância doinstituto”90. Também Calmon de Passos con-signa que, “ou se admite a preclusão, ou o sa-neamento do processo perde toda sua signifi-cação e operacionalidade91. Barbosa Moreirainclui entre as condições para o funcionamen-to eficaz da fase saneadora sua “real utiliza-ção” – apontando “a sensível inclinação pararelegar para a sentença final o exame de ques-tões que, de acordo com o sistema da lei, nãodevem sobreviver”. Menciona o Código portu-guês, incisivo na necessidade de julgamento detais questões por ocasião do “saneador”, salvoimpossibilidade (v. acima, III.2). Chega a su-gerir a responsabilização, de algum modo, dojuiz relapso (disciplinar; civil: arcar com ascustas do processo etc.). Fala, também, do usoda preclusão para evitar protraimentos, masdestaca não se dever utilizar tal mecanismo comexcessivo rigor92.

Dessa última consideração de Barbosa Mo-reira, parte-se para a conclusão. Tem de serreforçada a obrigatoriedade de o juiz desempe-nhar as atividades previstas para a fase sanea-dora do processo, salvo absoluta impossibili-dade diante da falta de elementos instrutórios.Como decorrência, há de se afirmar a contro-labilidade da conduta do juiz nesse momentodo processo. Lembre-se que, em Portugal, dehá muito a lei consigna expressamente o cará-ter cogente da imposição das tarefas saneado-ras. Todavia, a reforma empreendida em 1985veio a eliminar o cabimento de recurso para ocontrole dessa atividade (v. III.2). Ora, isso édar com uma mão e tirar com a outra: dizer-seque o juiz está obrigado, mas não concederinstrumentos para verificação do cumprimen-to desse dever, é inócuo.

Mas o realce desse caráter cogente não au-toriza o retorno à concepção reinante sob a égi-de do Código de 39, com a consagração do “pre-clusionismo” combatido por Galeno Lacerda.

Impõe-se a utilização racional da fase sa-neadora. E, para tanto, não se pode perder devista sua destinação: a de filtrar, depurar, en-xugar o processo – sem que se possa falar emnenhuma violação a garantias das partes. Háde se decidir, nesse momento, tudo o que já

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pode ser decidido – em outros termos, tudo oque, se deixado para depois, estará sendo deci-dido tardiamente. A isso tem de se conjugar anatureza pública de diversas das matérias ob-jeto da atividade saneadora: essa mesma natu-reza, que propiciou historicamente a criaçãodo “despacho saneador” e seus desdobramen-tos, desautoriza severo regime de preclusão. Dequalquer modo, tais preocupações com as ga-rantias das partes e o correto desempenho dafunção jurisdicional – em nada desprezíveis –são perfeitamente satisfeitas com a constata-ção de que: (a) não há “discricionariedade”quanto ao exame das questões e à pratica dosatos reservados para essa fase do procedimen-to (presentes os elementos necessários, há dejulgar imediatamente o mérito, há de apreciaras questões processuais pendentes, há de defi-nir os pontos controversos e provas necessári-as...); (b) em conseqüência, é sempre controlá-vel a conduta do juiz (para definir se devia ounão julgar antecipadamente; se devia ou nãoapreciar nesse momento as questões processu-ais etc.); (c) contudo, da imposição da práticade tais atos, sempre que possível, não se podeextrair eficácia preclusiva automática do sane-amento do processo: as medidas destinadas afazer com que o juiz decida o que há de decidirnesse momento hão de ser outras que não apreclusão – sob pena de se estabelecer um con-tra-senso, uma sanção que vá contra o própriofim visado pela norma cuja eficácia ela visa apreservar.

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Notas de rodapé1 ARAGÃO, Egas Moniz de. Exegese, v. 4, t. 1,

p. 3-7, e Julgamento..., p. 197-198; TUCCI, Lauria.A nova fase..., p. 348-352, e Do julgamento, p. 9-31; MIRANDA, Pontes de. Comentários, v. 4, p.231; LACERDA, Galeno. Despacho saneador, p.13-32 e 43-54; BUZAID, Do despacho..., p. 1-30;REIS, J. A. dos. CPC, p. 182; LIEBMAN, O despa-cho saneador e o julgamento..., p. 99-101; VIDI-GAL, Direito judiciário, p. 363-365; MOREIRA,Barbosa. Saneamento..., p. 120-129 (são dele asexpressões entre aspas, acerca das várias funções –p. 132).

2 LACERDA, Galeno. op. cit., p. 36; BUZAID,op. cit., p. 15; LIMA, Mendonça. As providênci-as..., p. 27; TUCCI, Do julgamento, p. 14, e A novafase..., p. 352; ARAGÃO, Exegese, p. 4; PASSOS,Calmon de. Comentários, v. 2, p. 459; LIEBMAN,op. cit., p. 98; VIDIGAL, op. cit., p. 365. São fre-qüentes, na doutrina não luso-brasileira, as referên-cias à peculiaridade do “despacho saneador” (e deseus desdobramentos), em contraste com outras téc-nicas funcionalmente similares. V., p. ex., LIEB-MAN, Istituti del diritto comune..., p. 501-502; Ilnuovo código de processo civil brasiliano, p. 486-487; BRISEÑO SIERRA, Los anteproyectos..., p.65.

3 TUCCI, A nova fase..., p. 354-355.4 Expressão constante de acórdão da Relação de

Lisboa, de 3-4-68, citado por A. Varela e outros(Manual, p. 382, nota 1). Sobre seu sentido e corre-ção, vede adiante.

5 ARAGÃO, Exegese, v. 4, t. 1, p. 11 e 40-41;LIMA, Do saneamento..., p. 8; GRINOVER, Direi-to processual, p. 41-42.

6 ARAGÃO, Exegese, v. 4, t. 1, p. 7-8, e Julga-mento..., p. 198-200.

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7 LACERDA, op. cit., p. 34; TUCCI, Do julga-mento, p. 14-15. Ver as referências na nota 2, acima.

8 SILVA, Pâncaro da. Prólogo. In: LACERDA,op. cit., p. 6-11.

9 Sobre o tema, inclusive as indicações históri-cas: REIS, op. cit., p. 164-237; MAGALHÃES, Bar-bosa de. Estudos, p. 44-66; MENDES, Castro. Ma-nual, p. 392-405; VARELA, Antunes. BEZERRA eNORA, Manual, p. 368-429; SOARES, Luso. Pro-cesso civil, p. 703-766; BRITO, SOARES, L. eMESQUITA, CPC, 2. ed. p. 320-327, e CPC, 9. ed.p. 343-349; DE CASTRO, Anselmo. Direito pro-cessual, p. 247-293; ABÍLIO NETO, CPC, p. 389-403; LACERDA, Despacho, p. 40-43; LIEBMAN,O despacho saneador e o julgamento..., p. 100-102;ARAGÃO, Exegese, v. 4, t. 1, p. 4; LIMA, As provi-dências..., p. 27; TUCCI, A nova fase..., p. 352-353,e Do julgamento, p. 15-18; MOREIRA, op. cit., p.112-113; SILVA, op. cit., p. 11-15; VIDIGAL, op.cit., p. 365-366.

10 SOUSA, Teixeira de. Apreciação..., esp. p.394-402.

11 REIS, op. cit., v. 3, p. 169. Cf. doutrina e ju-risprudência nesse sentido em Brito, Soares e Mes-quita (op. cit., p. 321-322).

12 O Código consagrou o ponto de vista de seuprincipal autor, J. A. dos Reis, no sentido de excluirdo “julgamento do mérito” o exame dos fatos queembasam as defesas materiais indiretas (REIS, op.cit., p. 189; MENDES, op. cit., p. 399-400).

13 VARELA, A. et al. op. cit., p. 386; no mesmosentido, CASTRO, op. cit., p. 254.

14 A. NETO, op. cit., p. 391, nota 5.15 Consagra-se “o princípio dispositivo em ma-

téria de factos” (VARELA et al. op. cit., p. 401).16 A. NETO, op. cit., p. 401-402, notas 45, 48 e

49.17 REIS, op. cit., p. 205.18 VARELA et al. op. cit., p. 400 e 402-403.19 Ibidem, p. 381-382; MENDES, op. cit., p. 392.20 Cf. ac. da Relação, apud A. NETO, op. cit., p.

399, nota 21.21 Sustentado por autorizada doutrina – inclusi-

ve a de J. A. dos Reis (op. cit., p. 199-200), queidealizou o “despacho saneador”.

22 VARELA et al. op. cit., p. 393-395.23 Op. cit., p. 398.24 VARELA et al. op. cit., p. 427-428; CASTRO,

op. cit., v. 2, p. 282-293; e, antes, REIS, op. cit., p.193.

25 Nesse sentido, opinam Anselmo de Castro (op.cit., p. 259-262) e Luso Soares (op. cit., p. 727-729).

26 Nesse sentido: REIS, op. cit., v. 3, p. 193;VARELA et al. op. cit., p. 384; v. ainda outras indi-cações, inclusive de jurisprudência, em BRITO,SOARES e MESQUITA, op. cit., p. 324, nota 5, eABÍLIO NETO, op. cit., p. 391, nota 2.

27 Cf. ac. da Relação apud A. NETO, op. cit., p.394, nota 22.

28 Sobre o contido nesse item, vede: LACER-DA, op. cit., p. 34-38; ARAGÃO, Julgamento..., p.

199, e Exegese, v. 4, t. 1, p. 8-10; LIMA, As provi-dências..., p. 27; MOREIRA, op. cit., p. 114-115.

29 Sobre esse Decreto-Lei de 1942, assim se pro-nunciou Liebman: “Em face do texto originário doart. 294, vários escritores e julgados entenderam quea ‘legitimidade das partes’, mencionada no nº 1 comoquestão a ser decidida no despacho saneador, fosseunicamente a legitimidade ad processum: a legiti-midade ad causam, como questão incluída no méri-to, deveria ser examinada na sentença...”. E menci-onou, a seguir, diversos autores que assim se havi-am pronunciado, inclusive ele mesmo (CHIOVEN-DA. Instituições, v. 1, p. 178, nota 11, e em O des-pacho saneador e a legitimação...). E prossegue:“Sobrevindo o decreto nº 4.565, de 1942, que in-cluiu, na matéria do despacho saneador, o requisitodo interesse, todo o problema precisou ser exami-nado ex-novo, admitindo-se, então, que o despachosaneador deve decidir também sobre a legitimidadead causam” (O despacho saneador e o julgamen-to..., p. 104, nota 7). VIDIGAL, op. cit., p. 353-354.

30 CHIOVENDA, op. cit., p. 283. nota 4.31 op. cit. p. 114-122. Lacerda noticiava, ainda,

a admissão pela jurisprudência da “oponibilidade eo reconhecimento de ofício da coisa julgada e daincompetência absoluta a qualquer tempo” – não obs-tante a paralela previsão de exceções instrumentais(Ibidem, p. 121). Aliás, quanto à incompetênciaabsoluta ratione materiae, havia expressa previsãolegal nesse sentido (art. 182, §1º).

32 ARAGÃO, Exegese v. 4, t. 1, p. 13-14; LA-CERDA, p. 107; op. cit., LIMA, Do saneamento...,p. 11.

33 Esses dois fundamentos são apresentados, res-pectivamente, por M. Lima (As providências..., p.30) e LACERDA (op. cit., p. 173). Jurisprudência arespeito do tema é relatada por Buzaid (p. 35).

34 Vede LIMA, As providências..., p. 31. Acercada classificação dos provimentos no Código de 39,v. BUZAID, Do agravo, p. 128-129.

35 ARAGÃO, Exegese, v. 4, t.1, p. 12-13 e 20,noticia essa corrente de entendimento.

36 op. cit., p. 134.37 LIEBMAN, Novamente..., p. 151-153; MAR-

QUES F., Instituições, v. 3, p. 225; LACERDA, op.cit., p. 131-139.

38 As providências..., p. 31.39 op. cit., p. 227-228.40 SANTOS A. As condições da ação, p. 105 e

106; LACERDA, p. 153-178; VIDIGAL, op. cit., p.369-371.

41 CHIOVENDA, Instituições, v. 1, p. 378, nota6.

42 A esse respeito, vede ARAGÃO, Exegese, v.4, t. 1, p. 20.

43 LIEBMAN, O despacho saneador e o julga-mento..., p. 134; Buzaid, op. cit., p. 36.

44 ARAGÃO, Exegese, v. 4, t. 1, p. 20; LIMA,As providências..., p. 30-31 – esse último dava por“quase pacífico” o entendimento doutrinário e ju-risprudencial favorável ao trato dessas matérias no

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Revista de Informação Legislativa162

saneador – op. cit., p. 31.45 LACERDA, op. cit., p. 82-89; LIMA, As pro-

vidências..., p. 31); LIEBMAN, O despacho sanea-dor e o julgamento..., esp. p. 133. De considera-rem-se as condições da ação mérito, ou não, depen-dia a definição do recurso adequado contra o “des-pacho saneador” que encerrasse o processo por ca-rência de ação. Em se tratando de mérito – comopretendia Lacerda relativamente à possibilidade ju-rídica e à legitimidade –, caberia apelação (art. 820- op. cit., p. 179-180). Caso contrário, agravo depetição seria o recurso cabível, por força do art. 846(nesse sentido, BUZAID, Do agravo, p. 126-127 e132).

46 LIMA, As providências..., p. 31 – ao que esseautor se refere como exame do “mérito propriamen-te dito”). Amplo levantamento da jurisprudênciasobre o tema é apresentado por BUZAID,..., p. 36-37.

47 LIEBMAN, O despacho saneador e o julga-mento..., p. 105-112; MARQUES, op. cit., III, p. 229;BUZAID, Do despacho..., p. 36-38.

48 LACERDA, op. cit., p. 140-152; VIDIGAL,op. cit., p. 371-372.

49 Sejam vistas as palavras de Buzaid em pro-nunciamento na II Conferência Nacional da OAB,citadas por ARAGÃO, Exegese, v. 4, t. 1, p. 14 e28.

50 Ibidem, p. 16. V. também p. 15-17, 27 e 38. Oautor vê autorização para verdadeiro “julgamentoconforme o estado do processo” na parte final do §2º do art. 265 (Ibidem, p. 17, nota 29, e Julgamen-to..., p. 201).

51 Sobre o tema, vede interessantes considera-ções de ARAGÃO, Exegese, v. 4, t. 1, p. 35-38;MALACHINI, Do julgamento..., p. 97 e 105; GRI-NOVER, op. cit., p. 101-102.

52 BEDAQUE, Poderes instrutórios, p. 102, nota237. Há inúmeras decisões afirmando o caráter re-lativo da presunção estabelecida pela art. 319 e apossibilidade de produção de provas de ofício (v.nota 6 ao dispositivo no CPC, de Negrão, p. 227).

53 Para confirmar o quanto essa face da questãoé ignorada, basta o exame das notas aos arts. 130 e330 no CPC de Negrão: para uma imensa quantida-de de decisões, examinando a ocorrência ou não docerceamento por ocasião do julgamento antecipado,há uma única nota (com duas decisões – sendo umado STJ – no sentido favorável e uma contrária) apre-ciando a possibilidade de controle para imposiçãodo julgamento imediato (nota 1 ao art. 330).

54 Exegese, v. 4, t. 1, p. 25-26.55 Manual, v. 2, p. 155 e 161.56 op. cit. p. 229.57 op. cit., v. 3, p. 489-490. Mas, na p. 517, há

afirmação parcialmente colidente com essas.58 E – exclusivamente a título de argumentação

– pondere-se que, ainda que fosse o caso de apela-ção (e não é), essa não suspenderia todo o processo.A parte não abrangida pela decisão não se submete-ria à eficácia suspensiva dessa suposta apelação.

Proceder-se-ia da mesma forma que se procede quan-do a apelação é parcial (carta de sentença etc.). Essaé a solução adotada em Portugal, onde cabe apela-ção com efeito suspensivo contra o “saneador” quedecide parte do mérito (ABÍLIO NETO, op. cit., p.397, nota 4).

59 TARZIA, O novo processo, p. 6; DINAMAR-CO, A instrumentalidade, p. 132 e 249; OLIVEI-RA, C. A. de. O juiz..., p. 35.

60 op. cit., p. 81-83.61 A nota 1 ao art. 397, no CPC de Negrão, per-

mite clara constatação dessa tendência.62 LIMA - As providências..., p. 37; MIRANDA,

op. cit., p. 221; PASSOS, op. cit., p. 472. No senti-do de que sim: GRECO FILHO, v. 2, Direito pro-cessual, p. 162.

63 A esse respeito, confiram-se as lições de IvanRighi (Eficácia probatória..., p. 69) e ARAGÃO(Exegese, v. 4, t. 1, p. 74-76 e 100).

64 O próprio Calmon de Passos acaba por reco-nhecer essa circunstância (op. cit., p. 495).

65 Note-se que não há conflito entre a regra doart. 13, quando trata de representação, e a do art.37. A norma do art. 13 diz respeito às hipóteses ge-rais de mandato (ex.: a procuração de uma pessoa aoutra para que promova em seu nome um processo[e para tanto constitua inclusive um advogado emseu nome]), de representação de incapazes (art. 8º)e de presentação (art. 12).

66 BARBI, Comentários, v. 1, p. 97, item 152.67Exegese, v. 4, t. 1, p. 13, nota 22.68 Ibidem, p. 13 e 19.69 O novo processo, p. 62-63. O autor não escla-

rece se só o caput do art. 113 autoriza reexame – ouse também o § 3º do art. 267 (redigido em termossemelhantes ao art. 113) permite-o relativamente àsmatérias nele tratadas. Em caso positivo, a posturade Barbosa Moreira, em vez de preclusionista, esta-rá muito mais próxima daqueles que adotam posici-onamento flexível quanto ao tema – v. adiante. Emoutro escrito (Saneamento..., p. 142, nota 40), refe-re-se ao contraste entre a parte inicial do art. 331 eo § 3º do art. 267 – sem contudo posicionar-se.

70 Do julgamento, p. 162-163.71 op. cit., p. 517-523, esp. 522-529.72 Manual, v. 2 , p. 153, 167 e 171.73 op. cit., p. 107-108.74 Atualização dos Comentários de Pontes de

Miranda, p. 241-242.75 A preclusão, p. 104-115.76 Exegese, v. 4, t. 1, p. 20-21.77Sobre a eficácia..., passim.78 O. B. da Silva, Curso, I, p. 163; GRECO FI-

LHO, op. cit., p. 181; WAMBIER, L. R. Despachosaneador irrecorrido, p. 227-231.

79 Note-se que algumas das situações em que porvezes se afirma haver “decisão implícita” não seconfundem com a ora analisada. Assim, por exem-plo, a sentença que julga improcedente o mandadode segurança importa automática revogação da li-minar antes concedida, mesmo que nada diga a res-

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peito. E isso não porque haja “decisão implícita” –mas sim diante de absoluta incompatibilidade lógi-ca entre a mantença da liminar, que pressupõe juízode plausibilidade acerca do direito do impetrante, ea sentença de improcedência, que descarta por com-pleto tal plausibilidade. Agora, veja-se que, mesmoem tal hipótese, terá sido observada a garantia dafundamentação das decisões: a razão pela qual a li-minar não pode mais vigorar estará retratada na pró-pria motivação da improcedência. Enfim, trata-sede algo em tudo diverso do que se examina no texto.

80 LIMA, Do saneamento..., p. 11 e, principal-mente, FERREIRA FILHO, op. cit., p. 88-89.

81 Endossando a primeira assertiva: Bermudes,Atualização aos Comentários de Pontes de Miran-da, p. 242-243. No sentido da segunda: Repro 5/366e 17/297. Nos termos integrais desse período: B.Moreira (O novo processo, p. 62-63) e M. CaetanoFerreira Filho (op. cit., p. 91-92). Para Calmon dePassos, em nenhum dos casos haveria preclusão,salvo quando já estabelecida situação incompatívelcom a redecisão (op. cit., p. 530). O Supremo, con-tudo, já se manifestou, reconhecendo que o deferi-mento da prova acarreta preclusão para o juiz (RTJ,n. 76, p. 305 e n. 95, p. 271).

82 Confrontem-se os vários modelos descritos porMOREIRA, Saneamento..., p. 120-129.

83 Não se está afirmando, entretanto, nenhumcaráter preclusivo da decisão que designa a audiên-

cia, nem a absoluta rigidez do procedimento. Confi-ra-se o exposto adiante.

84 Nesse sentido, entre outros: Bermudes (atua-lização dos Comentários de Pontes de Miranda, p.237); TUCCI, A nova fase..., p. 360; WAMBIER, Anova audiência..., p. 34-35.

85 Nesse sentido, entre outros: PASSOS, p. 113.Contra, admitindo-a sempre, v. por todos: DINA-MARCO, A reforma, p. 124-125; TUCCI, A novafase..., p. 362.

86 Dinamarco (A reforma, p. 126-127) e Tucci(A nova fase..., p. 360): falam apenas genericamen-te em nulidade absoluta – sem a distinção ora em-preendida quanto aos escopos da audiência.

87 Há problema semelhante a esse no direito por-tuguês. Lá, é prevista “audiência preparatória” quan-do parecer possível o julgamento imediato de méri-to (CPC português, art. 508, v. 1). Disso poderiaextrair-se a conclusão de que, designada a audiên-cia, o magistrado já decidiu possível o conhecimen-to direto do pedido? A lei dá expressa resposta ne-gativa (art. 508, 4).

88 Nesse sentido, expressamente a lei portugue-sa no que tange à audiência preparatória – v. III.2,acima.

89 Vede Bermudes, atualização aos Comentáriosde Pontes de Miranda, p. 243.

90 Principios fundamentales..., p. 96.91 op. cit., p. 522.92 Saneamento..., p. 138-139, 141-143.

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SUMÁRIO

ALVARO LAZZARINI

1. Considerações gerais. 2. Direito Ambiental ePoder de Polícia. 3. Polícia AdministrativaAmbiental e Polícia Judiciária Ambiental. 4.Sanções administrativas ambientais. 5. Conclusão.

Sanções administrativas ambientais

Alvaro Lazzarini é Desembargador do Tribunalde Justiça do Estado de São Paulo, Professor deDireito Administrativo da Academia de PolíciaMilitar do Barro Branco e da Escola Paulista daMagistratura e Sócio Colaborador do Instituto dosAdvogados de São Paulo.

1 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Obrade ed. cits., p. 340.

2 LAZZARINI, Alvaro. Proteção do meio ambi-ente pela polícia militar, Revista de InformaçãoLegislativa, Brasília, a. 29, n. 116, p.153-162, out./dez., 1992.

3 Idem. Direito Administrativo e prevenção deincêndio. Revista de Direito Administrativo, Rio deJaneiro, v. 186, p.114-132. out./dez. 1991.

4 LAZZARINI, Alvaro et al. O corpo de bom-beiros e o poder de polícia. São Paulo : ImprensaOficial do Estado, 1992. p. 13-23.

1. Considerações geraisHá aspectos de Direito Administrativo que

causam polêmicas sérias quanto à competênciapara o exercício do Poder de Polícia Ambiental,nos quatro modos de atuação a que se refereDiogo de Figueiredo Moreira Neto1, ou seja, aquem cabe a ordem de polícia, a quem cabe oconsentimento de polícia, a quem cabe a fisca-lização de polícia e a aplicação da sanção depolícia, aliás, conforme tive oportunidade deexaminar em monografias que cuidam da Pro-teção do Meio Ambiente pela Polícia Militar2,que diz respeito ao Direito Ecológico, e doDireito Administrativo e Prevenção deIncêndio3, bem como em O Corpo de Bombeirose o Poder de Polícia4, essas duas últimasdirecionadas ao Direito Urbanístico, embora oincêndio em uma floresta ou, então, em umamata seja uma catástrofe ecológica e suaprevenção seja Poder de Polícia Ambiental.

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Ao certo, o implemento de medidas legaispelo Poder Público para a proteção ambientaldo homem só se torna possível, administrativa,civil e penalmente, pelo regular exercício doPoder de Polícia, quer na preservação, querna conservação do meio ambiente, aquela nãoadmitindo o seu uso, com ausência de açãoantrópica, esta, a conservação, admitindo ouso, com o manejo auto-sustentado5.

2. Direito Ambiental e Poder de PolíciaA nossa Carta de 1988, no art. 23, III, VI e

VII, estabelece ser da competência comum daUnião, dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios “proteger os documentos, as obrase outros bens de valor histórico, artístico ecultural, os monumentos, as paisagens naturaisnotáveis e os sítios arqueológicos”, protegendo,assim, o meio ambiente e combatendo apoluição em qualquer de suas formas, preser-vando as florestas, a fauna e a flora. No art. 24,I, estabelece a competência da União, dosEstados e do Distrito Federal para legislarconcorrentemente sobre Direito Urbanístico,que diz respeito à denominada massa cinza,cabendo à União a competência limitada deestabelecer normas gerais (art. 24, § 1º), o quenão exclui a competência suplementar dosEstados (art. 24, § 2º), salvo se inexistir leifederal sobre normas gerais, hipótese em queos Estados exercerão a competência plena, paraatender às suas peculiaridades (art. 24, § 3º),certo, contudo, que a superveniência de leifederal sobre normas gerais suspende a eficáciada lei estadual no que lhe for contrário (art.24, § 4º).

A Constituição de 1988 dedica, outrossim,todo um capítulo ao meio ambiente (CapítuloVI do Título VIII, que trata da Ordem Social),consubstanciando, no seu art. 225, com 6 (seis)parágrafos e 7 (sete) incisos no seu § 1º. Nocuidar sobre os princípios gerais da atividadeeconômica, no Capítulo I do Título VII, quetrata Da Ordem Econômica e Financeira, o art.170, estabelece que a ordem econômica,fundada na valorização do trabalho humano ena livre iniciativa, tendo por fim assegurar atodos a existência digna, conforme os dita-mes da justiça social, observará, entre outros,o princípio de defesa do meio ambiente (art.170, VI).

No Estado de São Paulo, a ConstituiçãoEstadual de 1989, cuida Do Meio Ambiente,dos Recursos Naturais e do Saneamento, noCapítulo IV do Título VI, que é o “Da OrdemEconômica”, arts. 191 a 216.

O Município rege-se por lei orgânica, quedeve atender aos princípios estabelecidos naConstituição do respectivo Estado, por expressaexigência do art. 29, caput, da Constituição de1988, e art. 144 da Constituição do Estado,competindo-lhe, nos termos do art. 30 daquelaCarta Federal, legislar sobre assuntos deinteresse local (art. 30, I), suplementar a legis-lação federal e a estadual no que couber (art.30, II), promover, no que couber, adequadoordenamento territorial, mediante planejamentoe controle do uso, do parcelamento e daocupação do solo urbano (art. 30, VIII).

Dessa normatização constitucional, comoassevera o ambientalista Vladimir Passos deFreitas6, surge, para as entidades federadas, aatribuição do poder de legislar e, como conse-qüência direta, o de fiscalizar, sendo quefiscalização, como entendo, é um dos modosde atuação do poder de polícia, com a duplautilidade de realizar a prevenção das infraçõespela observação do comportamento dos admi-nistrados relativamente às ordens e aos consen-timentos de polícia; em segundo lugar, preparaa repressão das infrações pela constataçãoformal dos atos infringentes, tudo conformelição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto aque voltarei logo mais.

Pode, pois, a denominada Polícia Ambientalser executada pela União, Estados, DistritoFederal e Municípios, certo que, como salientaVladimir Passos de Freitas,

“este poder, que é, normalmente, exer-cido para limitar os direitos individuais,pode ser dirigido, também, contra asmesmas pessoas jurídicas de DireitoPúblico. Entre elas não há hierarquia nonosso sistema federativo. Assim, desdeque uma delas esteja atuando nos limitesde sua competência, firmada na Consti-tuição Federal, as outras deverão curvar-see obedecer”7,

inclusive, na regularização fundiária nasáreas de interesse ambiental.

Lei, como a do município paulista de Santos,

5 MELE, João Leonardo. Quadro sinóptico doDireito Ambiental no Brasil, São Paulo, 1994.Trabalho inédito.

6 FREITAS, Vladimir Passos de. Direito Admi-nistrativo Ambiental. Curitiba : Juruá, 1993. p. 71.

7 Ibidem, p. 73.

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que, a pretexto de proibir a captura do callichirusSP, o conhecido corrupto, na orla marítima domunicípio, determinou competir à GuardaMunicipal a fiscalização do seu cumprimento8,é lei de duvidosa constitucionalidade no queconcerne à competência municipal parasubsistir medida da Polícia Florestal do Estadode São Paulo quanto à Guarda Municipal, atri-buindo a esta atividade que lhe é vedada, poisa sua competência está prevista no art. 144, § 8º,da Constituição de 1988, sendo pacífica a dou-trina e jurisprudência no sentido de que nãocabe às guardas municipais os serviços depolícia ostensiva, de preservação da ordempública, de polícia judiciária e de apuração deinfrações penais9, por ser guarda patrimonial10.

O exercício do poder de polícia ambiental,como adverte Paulo Affonso Leme Machado11,“supõe a existência e a atuação de órgão públicoambiental”, com competência para a prática doato que o concretiza, isso acrescento, mesmoporque é nesse sentido que entendo a idéiasintetizada no princípio 10 da Declaração doRio de Janeiro (UNCED/92), que, com a adesãounânime dos membros da ONU, afirmou:

“O melhor modo de tratar as ques-tões ambientais é assegurar a partici-pação, em nível relevante, de todos oscidadãos interessados. No plano nacio-nal, cada indivíduo deve ter adequado

acesso às informações relativas ao meioambiente, que estejam em poder dasautoridades públicas, compreendidas asinformações concernentes às substânciase atividades perigosas existentes em suascomunidades, e ter possibilidade departicipar no processo de tomada dedecisões. Os Estados devem facilitar eencorajar a conscientização e partici-pação do público, tornando as informaçõesfacilmente disponíveis. Deve ser assegu-rado acesso efetivo aos processosjudiciais e administrativos, inclusive noconcernente às sanções e reparações”.

A participação de todos os cidadãos inte-ressados, em nível relevante, e o encorajamentopelo Brasil para essa participação, no entanto,não estão a dizer que todas pessoas físicas oujurídicas, de direito público ou de direitoprivado, podem exercer atividade de políciaambiental, como examinarei na Teoria Geraldo Poder de Polícia, que logo abordarei.

Lembro, antes, que a cada restrição dedireito individual (expressa ou implícita nanorma legal) corresponde equivalente Poder dePolícia Administrativa à Administração Públi-ca, para torná-la efetiva ou fazê-la obedecida12.

Só órgão público competente para o ato podeexercer o Poder de Polícia, à vista não só dasnormas constitucionais, como infraconstitu-cionais e, também, infralegais, enfim, de umextenso emaranhado de leis, decretos e reso-luções, o que Édis Milaré denominou “textosbásicos sobre o meio ambiente no Brasil, deacordo com a nova ordem constitucional e comas inovações introduzidas pelo ‘ProgramaNossa Natureza’ e ‘Plano Brasil Novo’”, textosesses que renderam 636 (seiscentos e trinta eseis) páginas do seu precioso livro LegislaçãoAmbiental no Brasil , editado por EdiçõesAPMB, em São Paulo, no ano de 1991. Talemaranhado está a indicar a urgente necessi-dade de uma codificação, se não total pelomenos parcial do denominado Direito Ambi-ental, ou, ainda, a sua consolidação, tudo paradar segurança jurídica, não só para os opera-dores do Direito, sejam juristas ou policiais,como, e principalmente, para o administrado,ou seja, o povo que tem direito ao meio ambi-ente ecologicamente equilibrado.

8 Lei nº 1.293, de 17 de dezembro de 1993, doMunicípio de Santos, São Paulo, art. 1º, que alterouo parágrafo único do art. 2º da Lei nº 850, de 19 demarço de 1992, dando-lhe nova redação.

9 Acórdão unânime da Quinta Câmara Criminaldo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em27 de maio de 1993, na apelação criminal nº140.786-3, de Cotia, relator Desembargador DanteBusana. Jurisprudência do Tribunal de Justiça, SãoPaulo, v. 146, p. 304 - 308; idem acórdão unânimeda Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiçado Estado de São Paulo, em 03 de março de 1994,na apelação criminal nº 124.767-3/5, de Americana,relator Desembargador Cunha Bueno, ainda nãoconstante de repertórios de jurisprudência; idemacórdão unânime da Segunda Câmara Criminal doTribunal de Justiça do Estado de São Paulo, naapelação criminal nº 96.007-3/7, de Araras, relatorDesembargador Weiss de Andrade, apud CRETELLAJÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasi-leira de 1988. Rio de Janeiro : Forense, 1992, p.3.426.

10 Ibidem.11 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Estudos

de Direito Ambiental. São Paulo : Malheiros, 1994.p. 79.

12 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Admi-nistrativo Brasileiro. 18ª ed. atualizada por Euricode Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e JoséEmmanuel Burle Filho. São Paulo : Malheiros,1993.p. 117.

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Ao certo, nesta oportunidade, não ireiinterpretar e, tampouco, decifrar esse emara-nhado que se denomina legislação ambientalno Brasil de hoje. Penso, no entanto, que aTeoria Geral do Poder de Polícia auxiliará acompreender a ação do Estado frente à proble-mática do meio ambiente, quer por parte dosórgãos públicos que constituem o SistemaNacional do Meio Ambiente (Sisnama), comopor parte dos cidadãos interessados no magnoproblema do meio ambiente no Brasil, inclusiveno que toca à efetivação da regularizaçãofundiária.

Passo, assim, a examinar o Poder de Polícia,que é o poder que, como inicialmente visto, temcomo modos de atuação, entre outros, a fisca-lização, como também a aplicação da sançãode polícia, este último como objeto deste estudo.

3. Polícia Administrativa Ambiental ePolícia Judiciária Ambiental

Há, no Poder de Polícia, uma dicotomiaque interessa à preservação e à conservaçãodo meio ambiente. Esse poder administrativo,com efeito, concretiza-se em duas atividades,ou seja, a de polícia administrativa e a de políciajudiciária , ambas presentes na temática doDireito Ambiental. A dicotomia, no entanto,tem gerado confusão não só no espírito dosleigos, como também no do legislador, bemcomo disputas entre entes estatais, autárquicos,fundacionais e paraestatais e, ainda, entreórgãos policiais, que não se acomodam noslimites de suas competências institucionais e,assim, nos limites do Poder de Polícia, tudoem prejuízo do administrado que, quase sempre,acaba por sucumbir aos abusos de autoridade,por excesso de poder ou desvio de poder, comoé comum na Administração Pública em geral,inclusive, no manejo do Direito Ambiental.

O Poder de Polícia é um poder adminis-trativo , porque, conceitualmente, ele, quelegitima o poder da polícia e a própria razãodela existir, é um conjunto de atribuições daAdministração Pública, como poder público eindelegável aos entes particulares, emborapossa estar ligado àquela, tendente ao controledos direitos e liberdades das pessoas, naturaisou jurídicas, a ser inspirado nos ideais do bemcomum, e incidente não só sobre elas, comotambém em seus bens e atividades.

Daí por que a polícia administrativa e apolícia judiciária são exteriorização de ativi-dade tipicamente administrativa, malgrado a

última polícia ser qualificada de judiciária.A polícia administrativa propriamente dita

é preventiva, regida pelas normas e princípiosde Direito Administrativo, enquanto a políciajudiciária é repressiva, exercendo atividadesadministrativas de auxiliar da repressãocriminal. A polícia judiciária, necessário éinsistir, não integra o Poder Judiciário, nemcomo órgão administrativo. Este Poder daSoberania Nacional, num Estado Democráticode Direito, detém o monopólio da jurisdiçãoe, bem por isso, ele é que procede à repressãocriminal, sendo auxiliado pelo órgão do PoderExecutivo que, administrativamente, exerce aatividade de polícia judiciária e que, assim,deve observar as normas e princípios do DireitoProcessual Penal.

Em tema de meio ambiente, por exemplo,os órgãos licenciadores , como o InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos RecursosNaturais Renováveis e, ainda, os da Secretariade Estado e Meio Ambiente, exercem típicaatividade de polícia administrativa, dando oconsentimento de polícia ou negando-o,fazendo, inclusive, a fiscalização de polícia,dando suas ordens de polícia e, falhando todoo mecanismo, verificada a infração às normasda legislação ambiental de regência, aplicandoas sanções administrativas de polícia ambiental,nos limites de suas competências.

A repressão administrativa não se confundecom atividade de polícia judiciária, está voltadasomente à apuração de ilícitos penais, inclusive,diante do Direito Ambiental, que não seconfundem com polícia de segurança, setor daadministrativa voltado à prevenção criminal.

O mesmo órgão, porém, pode ser ecléticono exercício do Poder de Polícia, e dentro doslimites de sua competência constitucional ouinfraconstitucional, porque age preventiva erepressivamente, ou seja, passa, necessária eautomaticamente, da atividade policial preven-tiva para o exercício da atividade policialrepressiva, dado que ocorreu o ilícito que nãoconseguiu evitar. Quando o ilícito for penal,ter-se-á, então, atividade de polícia judiciáriaconsubstanciada na denominada repressão ime-diata por parte do órgão policial exercente daatividade de polícia preventiva.

Não é, aliás, o rótulo do órgão público quequalifica a atividade de polícia. O que a qua-lifica em polícia administrativa (preventiva)e polícia judiciária (repressiva) é, e sempre,a atividade de polícia em si mesmo desen-volvida .

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Isso está a demonstrar que a linha de dife-renciação entre o que seja polícia administra-tiva (preventiva) e polícia judiciária (repres-siva) é bem precisa, porque será sempre a ocor-rência ou não de um ilícito penal13, posiçãonossa colhida por Maria Zanella Di Pietro14.

Essa distinção é importante em termos decompetência administrativa para os atosprevistos na legislação ambiental em vigor,lembrando-se, a propósito, algo que os órgãosenvolvidos no Sistema Nacional do MeioAmbiente – Sisnama esquecem e originamconflitos de atribuições, ou seja,

“A primeira condição de legalidadeé a competência do agente. Não há emDireito Administrativo, competênciageral e universal: a lei preceitua, emrelação a cada função pública, a forma eo momento do exercício das atribuiçõesdo cargo. Não é competente quem quer,mas quem pode, segundo a norma dedireito. A competência é, sempre, umelemento vinculado, objetivamentefixado pelo legislador”15.

A importância dessa distinção de políciaadministrativa e de polícia judiciária acen-tua-se, igualmente, em termos de competênciajurisdicional, pois o controle jurisdicional doato de polícia administrativa é da competênciado órgão jurisdicional a que caiba o processo ejulgamento de causas da Fazenda Pública,enquanto o do ato de polícia judiciária é doórgão que detenha a competência criminal, tudocomo dispuserem as leis de organização judi-ciária do Estado Federado ou do DistritoFederal, quando for o caso.

No Estado de São Paulo, por exemplo, semadentrar na competência da Justiça Federal, atosde polícia administrativa praticados por policiaismilitares na proteção do meio ambiente sãojulgados pelos juízes de direito que detenham acompetência do cível nas comarcas do interior,enquanto na de São Paulo e na que tenha a daFazenda Pública a competência é das Varas daFazenda Pública, com recurso para o Tribunalde Justiça do Estado, Primeira Seção Civil.

Aliás, em relação à Polícia Militar do Estadode São Paulo, é necessário esclarecer que elaintegra o Sistema de Proteção e Desenvolvi-mento do Meio Ambiente, mediante as suasunidades de policiamento florestal e de manan-ciais, incumbidas da prevenção e repressão dasinfrações cometidas contra o meio ambiente,sem prejuízo dos corpos de fiscalização dosdemais órgãos especializados, tudo confor-me a Constituição do Estado de São Paulo,no seu art. 195, parágrafo único, que inter-pretei, sistematicamente, no indicado traba-lho sobre A Proteção do Meio Ambiente pelaPolícia Militar (infra nota 2), concluindo,então, que

“a Polícia Militar, principalmente pelassuas unidades especializadas, pode fazera prevenção a repressão das infraçõesflorestais, inclusive o respectivo inqué-rito, salvo quando o fato ocorrer emterras da União ou tiver repercussãointerestadual ou internacional, cabendoentão o inquérito, e só ele, à PolíciaFederal, que detém exclusividade nafunção”,

enquanto que“a Polícia Civil poderá, concorrentementecom a Polícia Militar e ressalvada acompetência da Polícia Florestal, efetuaro inquérito sobre as infrações penaisflorestais, não lhe cabendo missõespreventivas, administrativas, por falta deprevisão legal, em nível constitucional einfraconstitucional”.

Todos esses aspectos do Direito Adminis-trativo e que envolvem o Poder de Políciadevem ser considerados por quem o detenhano âmbito do Direito Ambiental, pois, paraconsiderar-se regular o seu exercício, ele há deser “desempenhado pelo órgão competente noslimites da lei aplicável, com observância doprocesso legal e, tratando-se de atividade que alei tenha como discricionária, sem abuso oudesvio de poder”, conforme cuida o art. 78,parágrafo único, da Lei federal nº 5.172, de 25de outubro de 1966, conhecida como CódigoTributário Nacional, pois dispõe sobre oSistema Tributário Nacional e instituiu normasgerais de Direito Tributário aplicáveis à União,Estados e Municípios, lembrando, a propósito,que o poder administrativo que examino, oPoder de Polícia, ainda hoje é referido umaúnica vez na Constituição da República, ou seja,em seu art. 145, II, ao tratar dos princípiosgerais Do Sistema Tributário Nacional e prever

13 LAZZARINI, Alvaro et al. Direito Adminis-trativo da Ordem Pública. p. 37.

14 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. DireitoAdministrativo. São Paulo : Atlas, 1990. p. 90.

15 TÁCITO, Caio. O abuso do poder adminis-trativo no Brasil : conceito e remédios. Rio deJaneiro : DASP, 1959. p. 27.

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“taxas, em razão do exercício do poder depolícia”.

Regulando, assim, o ato de polícia admi-nistrativa, ele goza de atributos, que são odiscricionarismo, a auto-executoriedade e acoercibilidade, próprios do Poder de Polícia.

A discricionariedade é o uso da liberdadelegal de valoração da atividade policiada, sendoque esse atributo diz respeito, também, à gra-dação das sanções administrativas aplicáveisaos infratores. Lembro, porém, que o discri-cionarismo de que falo diz respeito à conve-niência e oportunidade da prática do ato depolícia diante da atividade policiada, não seconfundindo com arbítrio, com arbitrariedade.

O Poder de Polícia há de ser exercidodentro dos limites impostos pela lei, pelarealidade e pela razoabilidade, sob pena deresvalar para a arbitrariedade a autoridade quenão observe tais limites, com a conseqüênciajurídica decorrente do seu abuso de autoridade,por excesso ou desvio de poder.

A auto-executoriedade do ato de políciaadministrativa importa em ele produzir todosos seus efeitos de imediato, isto é, ser colocadoem execução desde logo, independente deprévia autorização do Poder Judiciário, que sópoderá ser chamado a intervir a posteriori.Lembro, novamente, que o Poder de Políciaobjetiva conter excessos, a atividade anti-social,e, em tema do meio-ambiente, preservar ouconservar a denominada massa verde (flo-restas, matas, etc.) e a chamada massa cinza(meio urbano), dando proteção ao homemcontra a degradação ambiental, razão pela qualnão é possível condicionar atos de polícia,inclusive quanto às sanções administrativas, àprévia aprovação de qualquer outro órgão depoder estranho à Administração Pública.

No que se refere à coercibilidade, lembroque todo ato de polícia é imperativo, isto é,obrigatório ao seu destinatário, que, se resistir,ensejará, até mesmo, o emprego de força físicapara a remoção do obstáculo oposto ao seucumprimento.

O ato de polícia, bem por isso, não é facul-tativo ao administrado, uma vez que há coer-cibilidade estatal para torná-lo efetivado. Essacoerção, como focalizado, dado o atributo daauto-executoriedade, independe de autorizaçãojudicial, porque é a própria AdministraçãoPública que decide e toma as providênciascabíveis para a realização do que se decidiu,impessoalmente,inclusive aplicando, dentro da

discricionariedade que lhe é inerente, aspenalidades administrativas que a lei deregência expressamente indique para infraçõesadministrativas ao Direito Ambiental.

4. Sanções administrativas ambientaisA propósito da sanção de polícia ambiental,

tema deste estudo, devo esclarecer que mealinho com o publicista alemão Otto Mayer,separando a pena de polícia do constrangimentode polícia, que se caracteriza no obrigar outrema fazer ou deixar de fazer o que era de seudesejo, subordinando-o compulsoriamente, demaneira pessoal, imediata e direta, ao interessepúblico. Por sua vez, a pena de polícia, limitadaà esfera administrativa e prevista taxativamentena legislação de regência da atividade policiada,tem sentido de castigo, ainda que por imposiçãopecuniária, revelando-se como intervençãopunitiva do Estado sobre as atividades e aspropriedades particulares dos administrados,sendo aplicada, unilateral e imperativamenteaos infratores16, por quem tenha competêncialegal para tanto.

Não se pode esquecer, nesta oportunidade,que, para o tema em exame,

“sanção significa o meio coercitivo,disposto pela própria lei, para que seimponha o seu mando, ou a sua orde-nança. Assim, sanção e coercibilidadetêm significados idênticos, tendentesambos a assinalar as vantagens ou aspenalidades decorrentes do cumprimentoou da falta de cumprimento do mandolegal. Em princípio, toda norma legaltraz a própria sanção, em virtude do quehá sempre uma vantagem, ou uma penaligada ao seu fiel cumprimento ou à suatransgressão. Por ela é que se tornaefetiva a coação, asseguradora do direito,pela qual se convoca a proteção do poderpúblico”17.

Sanção administrativa ambiental, portanto,é uma pena administrativa prevista expressa-mente em lei para ser imposta pela autoridadecompetente quando violada a norma de

16 LAZZARINI, Alvaro. O esforço legal nocontexto do trânsito. Revista de Informação Legis-lativa, Brasília, a. 30, n. 117, p.67-88, jan./mar.idem. Unidade, Porto Alegre, n. 16.

17 SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico,Rio de Janeiro : Forense, 1963. v. 6, p. 1.402-3 :verbete “Sanção”.

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regência da situação ambiental policiada.A sanção administrativa ambiental, assim,

há de estar expressamente prevista na lei deregência, aplicando-se, analogicamente, oprincípio da reserva legal do Direito Penal,consubstanciado na previsão de que não há penasem prévia cominação legal, hoje com digni-dade constitucional (art. 5º, inciso XXXIX, daConstituição de 1988). Não se pode aplicar, emconseqüência, sanção administrativa ambientalque não esteja catalogada na lei anterior à ocor-rência do ilícito administrativo de naturezaambiental.

A sanção administrativa ambiental temduplo objetivo, ou seja, ela tem por fim acorreção do infrator, no que representa umverdadeiro castigo para que melhore a suaconduta de respeito às normas legais ambien-tais, como também um fim de prevenção, nosentido de servir de verdadeiro alerta a todosos outros, e ao próprio infrator, das conse-qüências da infração ambiental.

Podemos classificar as sanções administra-tivas que concretizam a tutela administrativaambiental em (a) sanções pecuniárias, comoas multas aplicadas em razão da não-obser-vância das normas de proteção ambiental; e (b)sanções objetivas, como as que envolvem bense/ou serviços como apreensões, cancelamentodo registro, cancelamento de matrícula depescador profissional, interdição do barco,embargos de iniciativas particulares, etc.

A sanção administrativa ambiental, sendopunição, deve ser imposta por meio do devidoprocedimento legal. Tal procedimento, denatureza administrativa, obrigará a autoridadeadministrativa ambiental, em linhas gerais, aassegurar ao acusado o contraditório e a ampladefesa, com os meios e recursos a ela inerentes(art. 5º, inciso LV, da Constituição da Repúblicae, no Estado de São Paulo e seus Municípios,art. 4º, combinado com o art. 144, da suaConstituição).

A acusação será formulada formalmentemediante Auto de Infração Ambiental, que serámotivado com a narração circunstanciada dainfração verificada e seu enquadramento nalegislação ambiental, de tudo notificado o acu-sado para que possa produzir, no prazo legal,sua ampla defesa, contraditando a acusação –esta, sendo ato administrativo, tem o atributoda presunção de veracidade e de legitimidade(princípio da veracidade e da legitimidade dosatos administrativos), só podendo ser infirma-da por prova cabal em sentido contrário a ser

produzida pelo acusado –, seguindo-se a faseprobatória se pertinentemente requerida, sobpena de cerceamento de defesa, e, finalmente,a decisão final que a autoridade ambientalcompetente entenda de dar à hipótese exami-nada no procedimento administrativo ambi-ental, sempre com o recurso previsto em lei eque o caso comporte.

Se aplicada sanção administrativa ambien-tal, ela, necessariamente, deve vir motivada,lembrando-se que, no Estado de São Paulo, asua Constituição obriga à motivação de todosos atos da Administração Pública, não só daestadual (art. 4º e 111), como também da deseus municípios, estes por força de seu art. 144.

Deve também ser salientado que, dada aautonomia das instâncias administrativa, civile penal, não ocorrerá o bis in idem na hipótesede, apesar da ocorrência de apenação civil ecriminal, sempre mais demorada a efetivar-se,ocorrer também a sanção administrativa ambi-ental, sempre mais célebre. O bis in idem, comosabido, é a repetição (bis) da punição sobre amesma conduta faltosa (in idem), o que évedado e torna nulo o ato sancionadorrepetitivo.

Em razão da aludida autonomia das instân-cias, a autoridade ambiental competente nãodeverá aguardar a solução criminal ou civil,devendo, desde logo, aplicar a sanção admi-nistrativa adequada a todo infrator nas normasambientais, observando-se que, também, dadoo atributo da auto-executoriedade do Poder dePolícia, que está exercendo, a sanção independede autorização do Poder Judiciário para efeti-var-se. O Poder Judiciário só deve fazer con-trole posterior ao ato administrativo punitivoe, mesmo assim, se provocado pelo destinatáriodo ato.

Podemos, assim, catalogar as sançõesadministrativas ambientais previstas no nossoordenamento jurídico ambiental.

Sanções administrativas ambientais sãoencontradas no Código Florestal (Lei Federalnº 4.771, de 15 de setembro de 1965, com asalterações decorrentes das Leis Federais nºs.7.803, de 18 de julho de 1989, e 7.875, de 13de novembro de 1989). O seu artigo 20, pará-grafo único, por exemplo, prevê que asempresas industriais serão apenadas com multaequivalente a 10% (dez por cento) do valorcomercial da matéria-prima florestal nativaconsumida além da produção da qual participe,na hipótese de a empresa não cumprir o

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comando do seu caput, ou seja, manter, dentrode um raio em que a exploração e o transporteda matéria-prima florestal sejam julgadoseconômicos, um serviço organizado que asse-gure o plantio de novas áreas, em terras própriasou pertencentes a terceiros, cuja produção, soba exploração racional, seja equivalente aoconsumido para o seu estabelecimento.

A apreensão dos produtos e dos instrumentosutilizados na prática de infrações penais ,determinadas no artigo 35 do Código Florestal,por ser de responsabilidade das autoridadesadministrativas a que alude o seu artigo 33,embora destinados à prova criminal, não deixade ter, também, conotação de sanção adminis-trativa.

A Lei de Proteção à Fauna, Lei Federal nº5.197, de 3 de janeiro de 1967, em linhas gerais,não apresenta sanções administrativas, salvo ado cancelamento do registro de que trata o seuartigo 16, instituído para as pessoas físicas oujurídicas que negociem com animais silvestrese seus produtos, incidindo a sanção, de ordemadministrativa, na hipótese de a pessoa regis-trada não apresentar a declaração de estoquese valores sempre que exigida pela autoridadecompetente (artigo 17, caput e parágrafoúnico). A apreensão dos produtos de caça e/ou pesca, bem como dos instrumentos utili-zados em infrações penais, inclusive a suadestinação, em se tratando de produtos perecíveis,com doação a instituições científicas, penais, hos-pitais e/ou casas de caridade mais próximas,sendo da responsabilidade de autoridadesadministrativas competentes, novamente com-parece na legislação de regência como nítidasanção administrativa de polícia ambiental.

O Código de Pesca, Decreto-lei Federal nº221, de 28 de fevereiro de 1967, é o que melhorcuida das sanções administrativas. Ao tratar dasembarcações pesqueiras, no seu artigo 6º, capute parágrafo único, dispõe que toda embarcação,nacional ou estrangeira, que se dedique à pescacomercial, além do cumprimento das exigênciasdas autoridades marítimas, deverá estar inscritae autorizada pelo órgão público federal com-petente, sob pena administrativa de interdiçãodo barco até a satisfação das exigênciasimpostas pelas autoridades competentes.

O seu artigo 9º, caput e parágrafo único,exige que as embarcações estrangeiras, pararealizar atividades pesqueiras nas águas brasi-leiras de que trata o artigo 4º, deverão estarautorizadas por ato administrativo do Ministrode Estado dos Negócios da Agricultura, podendo

o Poder Público, além de responsabilizarcriminalmente o comandante, determinaradministrativamente a interdição da embar-cação, seu equipamento e carga.

Interdição do funcionamento do estabele-cimento respectivo sem prejuízo da multarespectiva, igualmente, são sanções adminis-trativas previstas no artigo 19, parágrafo único,do Código de Pesca. A hipótese é de infraçãoao determinado no caput do referido artigo, queexige que se obtenha prévia autorização doórgão público federal competente para exercersuas atividades no território nacional ou naságuas abrangidas pelo referido Código de Pesca,devendo estar devidamente inscrito e cumpriras obrigações de informações e demaisexigências que forem estabelecidas.

O seu artigo 25 autoriza aplicar sançõesadministrativas ao armador que deixar deoferecer seguro contra acidentes de trabalho aostripulantes das embarcações pesqueiras, bemcomo deixar de filiá-los a instituições dePrevidência Social.

Cancelamento de matrícula de pescadorprofissional, como sanção administrativa, éencontrada no artigo 26, parágrafo único,quando for comprovado que o pescador não façada pesca sua profissão habitual ou quandoinfringir as disposições do referido Código dePesca e seus regulamentos, no exercício dapesca.

O Código de Pesca, ao contrário dos ante-riores examinados, tem a peculiaridade dededicar todo um capítulo, o Capítulo VII, àsmultas, como sanção administrativa, prevendo,no seu artigo 65, que todas as informaçõesprevistas no Código, sem prejuízo da ação penalcorrespondente, sujeitam os infratores aopagamento de multa na mesma base das esta-belecidas no capítulo anterior, o Capítulo VI,artigos 55 a 64.

Essas multas serão impostas por despachoda autoridade competente em processo admi-nistrativo (artigo 66), cujo rito está previsto nosartigos 67 a 69, havendo, também, a previsãoda inscrição da multa não-paga nos prazos paracobrança em execução fiscal (artigo 70), bemcomo a destinação do arrecadado como“Recurso da Pesca” (artigo 72).

A Lei Federal nº 7.679, de 23 de novembrode 1988, que dispõe sobre proibição da pescade espécies em período de reprodução e dáoutras providências, nos artigos 4º e 5º, igual-

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mente, prevê sanção administrativa de multaaos pescadores profissionais e aos pescadoresamadores, bem como às empresas que explorama pesca quando violarem suas normas proibitivas.

A criação das Estações Ecológicas e deÁreas de Proteção Ambiental estão discipli-nadas pela Lei Federal nº 6.902, de 27 de abrilde 1981. As Estações Ecológicas serão criadaspela União, Estados e Municípios em terras deseus domínios (artigo 2º). O seu artigo 7º elencaas proibições a serem observadas nas EstaçõesEcológicas, sujeitando o infrator à apreensãodo material proibido e ao pagamento da inde-nização pelos danos causados (artigo 7º, § 3º),penalidades essas a serem aplicadas pelaAdministração da Estação Ecológica (artigo 7º,§ 4º).

A Lei Federal nº 6.902, de 1981, no seuartigo 9º, também, precisa que, dentro dos prin-cípios constitucionais que regem o exercício dodireito de propriedade, o Poder Executivo deveestabelecer normas limitadoras ou proibitivasrelativas a esse direito, competindo ao InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos RecursosNaturais Renováveis – Ibama, ou órgão equi-valente no âmbito estadual, em conjunto ouisoladamente, ou mediante convênio com outrasentidades, fiscalizar e supervisionar as Áreasde Proteção Ambiental (artigo 9º, § 1º).

No caso de violação às normas de que cuidao referido artigo 9º, dispõe o seu § 2º que osinfratores estão sujeitos às sanções de embargodas iniciativas irregulares, à medida cautelarde apreensão do material e das máquinas uti-lizadas nessas atividades , à obrigação dereposição e reconstituição, tanto quantopossível, da situação anterior e à imposiçãode multas.

Todas essas penalidades administrativasserão aplicadas por iniciativa do InstitutoBrasileiro dos Recursos Naturais Renováveis –Ibama, ou do órgão estadual correspondente, econstituirão, respectivamente, receita da Uniãoou do Estado, quando se tratar de multa, certoque, quanto a esta última sanção administrativa,a de multa, aplicam-se as normas da legislaçãotributária e do processo administrativo fiscalque disciplinam a imposição e a cobrança daspenalidades fiscais (artigo 9º, §§ 3º e 4º).

Dispondo sobre a Política Nacional do MeioAmbiente, seus fins e mecanismos de formu-lação, além de dar outras providências, a LeiFederal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, noseu artigo 14, é expressa em dizer que, sem

prejuízo das penalidades definidas pela legis-lação federal, estadual e municipal, o não-cumprimento das medidas necessárias àpreservação ou correção dos inconvenientes edanos causados pela degradação da qualidadeambiental sujeitará os transgressores àssanções administrativas previstas em seusincisos, isto é, à de multa simples ou diária (I),à perda ou restrição de incentivos e benefíciosfiscais (II), à perda ou suspensão de partici-pação em linhas de financiamento (III) e à sus-pensão de sua atividade (IV).

O Regulamento da Lei Federal nº 6.902, de27 de abril de 1981, que cuida da criação deEstações Ecológicas, Áreas de Proteção Ambi-ental e dá outras providências, e da Lei Federalnº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõesobre a Política Nacional de Meio Ambiente edá outras providências, está consubstanciadono Decreto Federal nº 99.274, de 6 de junho de1990, em cujo Título III encontram-se relacio-nadas as infrações ambientais e os valores dasmultas respectivas, definindo o seu artigo 33que

“Constitui infração, para os efeitosdeste Decreto, toda ação ou omissão queimporte na inobservância de preceitosnele estabelecidos ou na desobediênciaàs determinações de caráter normativodos órgãos ou das autoridades adminis-trativas competentes”.

Os seguintes artigos 34 a 39 cuidam espe-cificamente da imposição das penas de multa,merecendo ser salientado que, quando asinfrações forem causadas por menores ouincapazes, responderá pela multa quem forjuridicamente responsável pelos mesmos (arti-go 40) e, em qualquer caso, a imposição depenalidades pecuniárias, por infração à legis-lação ambiental pelos Estados, pelo DistritoFederal e pelos Municípios, excluirá a exigên-cia de multas federais, na mesma hipótese deincidência (artigo 41), com o que se proíbe odenominado bis in idem.

Em qualquer das hipóteses de aplicação dapena de multa, ele poderá ter a sua exigibilidadesuspensa quando o infrator, por termo decompromisso aprovado pela autoridadeambiental que aplicou a penalidade, obrigar-se à adoção de medidas específicas paracessar e corrigir a degradação ambiental,certo que, cumpridas as obrigações assu-midas pelo infrator, a multa será reduzidaem até noventa por cento (artigo 42, caput eparágrafo único).

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5. ConclusãoSanção administrativa ambiental é pena

administrativa prevista em lei anterior que tratedo meio ambiente e a ser imposta por autoridadepública competente ao violador da normaambiental preexistente.

Na sanção administrativa ambiental se

concretiza o Poder de Polícia Ambiental, que,sem ela, ficaria inane, devendo ser aplicada emregular procedimento administrativo ambien-tal, assegurando-se ao acusado o contraditórioe a ampla defesa, com os meios e recursos a elainerentes, tudo independentemente de soluçãode processo criminal ou civil que a violação danorma ambiental possa ensejar.

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SUMÁRIO

IVAN LIRA DE CARVALHO

1. Introdução. 2. Jurisprudência: Ciência doDireito ou conjunto de decisões? 2.1. O caso francês.3. O Direito Sumular. 4. O stare decisis. 5. Asdecisões vinculantes e a independência dos juízesda inferior instância. 5.1. Respeitáveis argumentoscontrários à súmula vinculante. 6. Razões pelasquais acredito na eficiência das decisões vinculantes.7. Concluindo.

Ivan Lira de Carvalho é Juiz Federal e Professorde Direito da UFRN.

Decisões vinculantes

1. IntroduçãoA busca da qualidade total nos meios de

produção e na prestação dos serviços tem sidoa tônica da sociedade contemporânea, tanto emnível privado como na seara estatal. Reflexosda globalização, dizem uns, que se intitulamneo-liberais. Procura de novos rumos para osocialismo, justificam outros, ainda alinhadosa essa doutrina. O certo é que a rotulação dequalidade, boa ou má, não passa ao largo detípicas atividades do Estado, como é o caso daprestação da tutela jurisdicional. E, nesseparticular, o quadro brasileiro é preocupante.Apesar da detecção de segmentos comprome-tidos com a elevação do nível da atividade doJudiciário, do ponto de vista da eficácia e daeficiência, ainda há muito terreno a serpercorrido.

Pretendendo estimular as discussões acercade alguns dos mecanismos apontados comohábeis para enfrentar a situação embaraçosa naqual está mergulhada a Justiça nacional é quesão tecidas as considerações seguintes.

2. Jurisprudência: Ciência do Direitoou conjunto de decisões?

Reservaram os romanos, para a designaçãodo que é ciência jurídica, a expressão juris-

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prudência. Tanto que Miguel Reale, na primeiraparte do seu Lições preliminares de Direito1,esclarecendo grafar sempre o vocábulo emdestaque com maiúscula quando tiver ela essaacepção, anota que modernamente outra temsido a utilização da palavra: a de simbolizar oconjunto de decisões judiciais convergentes ecoincidentes. Obviamente, mesmo com a apli-cação atual da expressão, não pode ela servulgarizada como sinônimo de um ou de poucosjulgados isolados, em determinada direção. Émister a reiteração ponderável de julgados,inclinados para um mesmo rumo, para que setenha firmada a jurisprudência, conformeexplica Roberto Rosas2:

“A jurisprudência, assim conside-rada, é a reiteração de casos análogospassados para o rol dos fatos consu-mados, que somente podem ser revistosem virtude de motivos relevantes oualterações das duas origens ou fontesemanadoras: a lei, a doutrina, etc.Somente neste ponto vislumbramos oentendimento da jurisprudência, jáconsolidada e incorporada aos reper-tórios jurisprudenciais, qual um códigonorteador das decisões a seguir”.

Ainda hoje, mesmo que com incidência umpouco mais rara do que a constatada até umadécada atrás, permanece viva a discussão sobreser ou não ser a jurisprudência uma fonte doDireito. Caio Mário da Silva Pereira3 enceta apolêmica, capeando-se em posição de extremalegalidade, ao aduzir que, se

“se tomar a expressão fonte em sentidotécnico estrito, não se pode assim com-preender a jurisprudência, porque, nosregimes de separação de poderes, aoJudiciário cabe aplicar contenciosamentea lei aos casos particulares, e, não com-petindo aos tribunais formular regrasjurídicas, senão aplicá-las, a manifestaçãojurisprudencial não se pode qualificarcomo fonte criadora da norma de direito,porque não passa de um processo de apli-cação da lei. A Corte de Justiça nãoelabora a regra, porém diz ou declara odireito, arrimada à disposição legislativa,

que é, por isso mesmo, a sua fonte. Afunção criadora da norma pertence aoPoder Legislativo. O Judiciário cinge-sea aplicá-la ou interpretá-la, ou a verificare declarar a existência do costume, razãopor que se recusa aos arestos e decisõeso caráter gerador de direito”.

O renomado civilista apenas acata ajurisprudência como fonte informativa ouintelectual do Direito.

Em contraposição, Roberto Rosas lembraque

“Glück, Savigny, Wachter conside-ram a jurisprudência como fonte dedireito. Pacchioni deu notável impulso aeste grupo, comparando as várias deci-sões de determinados juízes, mas nesseúnico sentido, a uma orquestra cominúmeros instrumentos e intérpretes, mastodos executando com uma finalidade.Assim é a jurisprudência, de nada valemas posições isoladas dos magistrados. Osarestos reiterados formam a jurispru-dência, tornando-se fonte de direito”4.

E diz ainda, em primeira pessoa, que“este autor enquadra seu pensamento nateoria egológica, que considera o direitocomo conduta e a sentença como fato daexperiência jurídica”.

Sem fazer profissão de fé cossiana, achoque, pela instrumentalidade que representa parao operador jurídico moderno, a jurisprudênciaé, inquestionavelmente, uma fonte do Direito.Assim afirmo sem receio de receber censurados mais ortodoxos defensores da clássicadivisão dos Poderes, preferindo ousar em buscade novos referenciais para a sobrevivência e arevitalização do Estado (aí incluindo, por óbvio,o ramo Judiciário).

2.1. O caso francês

Ocupou-se Recásens Siches, na sua Lógicado Razoável, de reproduzir estudo empreendidopelo famoso advogado francês Jean Cruet, emum livro intitulado La vida del Derecho y laimpotencia de las leys”, publicado em 1908,acerca da ação inovadora da jurisprudência naFrança, no correr do primeiro século devigência do Código Napoleônico (século XIX).Inaugura o seu ensaio destacando a perplexi-dade de, na França, onde imperava o fetichismode se supor que a lei contém normas para

1 2. ed. São Paulo : J. Bushatsky 1974. p. 70.2 Direito Sumular. Revista Jurídica LEMI. São

Paulo, n. 148, p. 44, mar. 1980.3 Instituições de Direito Civil. 2. ed. Rio de

Janeiro : Forense, 1991. v. 1, p. 41. 4 op. cit., p. 44.

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resolver todos os problemas, razão pela qual aatividade judicante sempre foi muito coartada,curiosamente ter sido a jurisprudência queprimeiro deu resposta às exigências da evolu-ção social. Assevera que uma lei não podeconservar indefinidamente o sentido e o alcanceque tinha quando foi editada, se tudo vaimudando ao derredor dela: os homens, ascoisas, o juiz e o legislador mesmo, concluindoque uma nova disposição introduzida no direitolegislado pode converter-se, em virtude dosefeitos que a jurisprudência lhe der, em umafonte de rejuvenescimento para o conjunto doDireito.

Lembra Siches uma série de “inovaçõessubstanciais” impostas ao Direito francês apartir das criações jurisprudenciais, a saber:

a) Portalis, artífice do Código Civil de1804, sustentava verdadeira ojeriza à idéia deque alguém, em vida, pudesse estipular, em prolde terceiro, a percepção de quantia, máxime seo evento futuro fosse a morte do estipulador.Sepultado assim, ao ver do “pai” do CódigoNapoleônico, o seguro de vida. Apesar dosarreganhos imperiais de Napoleão contra osjuízes (acusados de desvirtuação do Código,pela ousadia de interpretá-lo), durante todo oséculo XIX o seguro de vida foi se convertendoem um contrato bastante acatado, findando opróprio legislador por oferecer regulaçãoadequada ao instituto, tomando por modelo oconjunto de decisões judiciais sobre o tema;

b) muito antes da interferência parla-mentar, a jurisprudência foi abundante emjulgados de cunho trabalhista. Assim, derivamdas decisões judiciais as leis que versam, porexemplo, sobre o direito à indenização porrescisão brusca ou intempestiva do contratolaboral; a impenhorabilidade de salários ousoldos pequenos; bem como a lei sobre osacidentes do trabalho;

c) o Código Civil Francês não previu odesenvolvimento rápido dos valores mobiliários.Daí prever apenas para os casos de alienaçãode valores imobiliários a necessidade de auto-rização do Conselho de Família, com a homo-logação judicial. A jurisprudência estendeu àalienação de valores mobiliários a necessidadede uma autorização partida do Conselho deFamília;

d) antes da Lei de 1893, a mulher de ummarinheiro desaparecido em um naufrágioestava fadada a uma eterna viuvez, pois nãotinha respaldo legal para registrar o óbito dodefunto, sendo, também por isso, proibida de

contrair novas núpcias, sob pena de incorrerem crime de bigamia;

e) sem a ação inovadora da jurisprudência,precursora de lei específica, um tio que despo-sasse uma sobrinha ou um cunhado que casassecom uma cunhada, sempre com autorizaçãojudicial, não podiam legitimar a prole, estahavida, ad aeternum, como incestuosa;

f) coube à sensibilidade da jurisprudênciaavançar contra a vedação do Código Civil, queproibia a investigação de paternidade contraos pais que protagonizavam os falsos lares,montando base para a definição dos direitos dosfilhos concebidos fora do matrimônio;

g) veio também da jurisprudência oremédio que forçou a edição da Lei de 1889,demarcando responsabilidades para os pais oututores que conservavam os filhos ou tuteladosna ignorância ou na imoralidade;

h) em matéria penal, apesar de estar o juizafixado ao princípio da legalidade estrita, ainterpretação da lei varia de acordo com aconsciência ou a mentalidade do juiz. Assim,ainda que a greve fosse havida como crime, asautoridades judiciais e administrativas cederamà incontornável força dos sindicatos e assu-miram uma postura de tolerância em relaçãoàs greves;

i) não havia na França nem jurisdiçãoadministrativa nem Direito Administrativo. Ocostume criou a primeira e a jurisprudênciacriou o segundo.

Visto, pois, que a jurisprudência atuou emum século na França, dando força ao Direitocomo um todo e, por via transversa, ao próprioCódigo Civil, que Napoleão temia fosseconspurcado pela atuação exegética dos juízes.

Saltando – e muito – no tempo, é bom serrememorado episódio havido já na últimadécada deste século (mais precisamente emoutubro de 1991), que demonstra a força dajurisprudência francesa. Uma empresa dediscotecas inventou uma grotesca brincadeirapara brindar os jovens freqüentadores dos seusclubes: o lancer de nain. Isso mesmo: o arre-messo de anão! Consistia em transformar umhomem de pequena estatura em projétil, a serarremessado pela platéia de um ponto a outroda casa de espetáculo. Relata Joaquim BarbosaGomes5 que, movido pela repugnância que a

5 O poder de polícia e o princípio da dignidade dapessoa humana na jurisprudência francesa. BoletimJurídico TRAVELNET, 20 jun. 1996, veiculado pelaInternet, <http://www.travelnet.com.br/jurídica>.

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iniciativa provocou,“o prefeito de uma das cidades (Morsang-sur-Orge) interditou o espetáculo,fazendo valer a sua condição de guardiãoda ordem pública na órbita municipal.Do ponto de vista legal, o ato de inter-dição teve como fundamento o Códigodos Municípios, norma de âmbitonacional (a França é um país unitário)que disciplina, de forma minuciosa, oexercício da ação administrativa estatalno plano municipal. Nos termos desseCódigo (art. 131), incumbe ao Prefeito,sob o controle administrativo do repre-sentante do poder central na respectivacircunscrição (Préfet), o exercício dopoder de polícia no Município, podendointervir em atividades ou limitar o exer-cício de direitos sempre que necessárioà preservação da ordem pública. (...) Poroutro lado, a decisão administrativa doPrefeito se inspirou em uma norma decunho supranacional, o art. 3º da Con-venção Européia de Salvaguarda dosDireitos do Homem e das LiberdadesFundamentais. (...) Insatisfeita, aempresa interessada, em litisconsórcioativo com o deficiente físico em causa,Sr. Wackenheim, ajuizou ação perante oTribunal Administrativo de Versaillesvisando a anular o ato do prefeito”.

Diz ainda Barbosa Gomes que em primeirainstância,

“os autores obtiveram êxito, já que a corteadministrativa (na França, os órgãosjurisdicionais, mesmo em primeirainstância, têm em regra a estrutura cole-gial) julgou procedente o ‘recours pourexcès de pouvoir’ por eles ajuizado eanulou o ato do Prefeito, entendendo queo espetáculo objeto da interdição nãotinha, por si só, o condão de perturbar a‘boa ordem, a tranqüilidade ou a salu-bridade públicas’. (...) Mas, ao examinaro caso em grau de recurso, em outubrode 1995, o Conselho de Estado, órgãode cúpula da jurisdição administrativa,reformou a decisão do Tribunal Admi-nistrativo de Versailles, declarando que‘o respeito à dignidade da pessoa humanaé um dos componentes da (noção de)ordem pública; (que) a autoridade inves-tida do poder de polícia municipal pode,mesmo na ausência de circunstânciaslocais específicas, interditar um espetá-

culo atentatório à dignidade da pessoahumana’”.

Retratado, aí, um quadro moderno do pres-tígio desfrutado pela jurisprudência na Françade hoje, inclusive delineando uma perfeitaligação entre o Código dos Municípios e a Con-venção Européia de Salvaguarda dos Direitosdo Homem e das Liberdades Fundamentais.

3. O Direito SumularAbordado, ainda que superficialmente, o

que é jurisprudência e a importância que estateve num determinado espaço (a França) emdelimitada época (o século XIX), é bom que sevisite, também aligeiradamente, um fruto dasdecisões pretorianas, que chega a este final demilênio com força indiscutível: o DireitoSumular.

Mas, afinal, o que é Direito Sumular? Ousodizer que é a elevação da jurisprudência esparsa,mediante o amalgamamento dos julgados, aopatamar de ramo da árvore do Direito. No dizerde José Pereira-Lira6, o Direito Sumular temgênese nacional, que pode ser atribuída aoMinistro Victor Nunes Leal, que, em 1963,

“com os seus companheiros da Comissãode Jurisprudência, no Supremo Tribunal,ousou, com autoridade para isso, dentrodos cancelos, e fora deles, no PretórioExcelso, um corajoso passo à frente,promovendo a ‘criação’ da ‘Súmula’,de nítidas raízes brasileiras, sem cópiado stare decisis nem filiação a therestatiment of the Law”.

Louvado no ornato vernacular “a lei propõe;a jurisprudência compõe”, Pereira-Lira recuano tempo para situar em 1937 o termo inicialda sua própria cruzada pela respeitabilidade dajurisprudência sumulada, dizendo que ali estavaacontecendo

“a volta ao ‘empirismo jurídico’, infor-mado nas mais puras fontes do positi-vismo, com a Escola Analítica de Juris-prudência, sob o comando de JohnAustin, aproveitando as conclusões doantiescolasticismo e as tendências anti-feudais e humanistas da chamada Escolada Culta Jurisprudência, e a formaçãotedesca da Escola da Jurisprudência deInteresses, para desembocar na Escola do

6 Prefácio ao livro de ROSAS, Roberto. DireitoSumular. 4. ed. São Paulo : RT, 1989. p. 9.

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Direito Livre, animada pelo espírito dalivre investigação científica. (...) AEscola Realista Americana, indo além daEscola Sociológica Americana, princi-palmente com Oliver Wendell Holmes,gerou a convicção de que deve o jurista,antes de tudo, observar o comportamentodos juízes, dos Tribunais e dos cidadãos,para examinar a sua atividade no sentidodo que fazem, e não do que deveriamfazer”7.

São essas as aligeiradas considerações sobreo que é o Direito Sumular, que vem galgandoprestígio a partir da segurança jurídica queoferece aos seus invocadores e a partir dacomplexidade do processo legislativo brasileiro.Tem como nascedouro as mais repetidasposições dos pretórios, que julgam as lides emderradeira instância.

4. O stare decisisÉ inegável que o Judiciário enfrenta uma

crise de credibilidade perante a sociedadebrasileira, em face do retardamento com queentrega a prestação jurisdicional. As soluçõesaventadas para rebater o prefalado descréditopartem tanto da própria magistratura como daspessoas destinatárias do serviço institucional.Em uma e em outra searas, não são poucas asvozes que se alevantam pedindo a adoção, entrenós, do primado da força vinculante dos prece-dentes, de berço consuetudinário e anglo-saxão.Mas, afinal, que doutrina é essa, desejada comopanacéia para solver os males (quase crônicos)do Judiciário lerdo?

Consiste o stare decisis no prestígio que osjulgadores emprestam às decisões anteriores,para destas tomarem um princípio, que nortearáo julgamento do caso concreto. É uma home-nagem ao estudo que já foi desenvolvido quandoanalisado caso similar, poupando os novosjuízes de uma discussão bizantina, que em regralevaria ao mesmo resultado já apurado outrorapelos tribunais. Explica Edward D. Re, docenteda St. John’s University, Nova Iorque, USA8,que a mencionada doutrina,

“cuja formulação é stare decisis et nonquieta movere (mantenha-se a decisão e

não se disturbe o que foi decidido), temraízes na orientação do common lawsegundo a qual um princípio de direitodeduzido através de uma decisão judicialserá considerado e aplicado na soluçãode um caso semelhante no futuro. Naessência, esta orientação indica a proba-bilidade de que uma causa idêntica ouassemelhada que venha a surgir no futuroseja decidida da mesma maneira. (...) Épreciso compreender que o caso decidido,isto é, o precedente, é quase universal-mente tratado como apenas um ponto departida. Diz-se que o caso decidido esta-belece um princípio, e ele é na verdadeum principium, um começo, na verda-deira acepção etimológica da palavra.(...) Um princípio é uma suposição quenão põe obstáculo a maiores indagações.Como ponto de partida, o Juiz, nosistema do common law, afirma a perti-nência de um princípio extraído doprecedente considerado pertinente. Ele,depois, trata de aplicá-lo moldando eadaptando aquele princípio de forma aalcançar a realidade da decisão do casoconcreto que tem diante de si. O processode aplicação, quer resulte numa expansãoou numa restrição do princípio, é maisdo que apenas um verniz; representa acontribuição do Juiz para o desenvolvi-mento e evolução do direito”.

Lamentavelmente, defeitos de comunicaçãotêm feito grassar, entre nós, a idéia – falsa – deque o stare decisis, posto que originário deEstados adotantes do common law, dispensa autilização de leis, restando satisfeito única eexclusivamente com o manejo dos precedentesjudiciais. Em verdade, é posto em prática todoum ritual de julgamento e de subsunção do casoconcreto ao direito aplicado. Explica EdwardD. Re9 que, manejando um precedente, é deverdo jurista determinar a autoridade do prece-dente. Assim, deverá perquirir se ele é vincu-lativo ou meramente persuasivo. No primeirocaso, será aplicado e definirá o caso em julga-mento. Se, pelo inverso, for somente persua-sivo, desfia toda uma gama de outros elemen-tos, que, em conjunto, definirão a aplicação e aextensão do precedente.

A mais severa crítica que se faz ao staredecisis é pertinente à suposta estagnação que adoutrina impõe à prestação da atividade juris-dicional. Eivam-na de estática ou comodista.Outros atacam a doutrina, apontando-a como

7 Ibidem, p. 8.8 Stare Decisis. Tradução de Ellen Gracie

Northfleet. Revista Trimestral de Jurisprudência dosEstados. São Paulo, v. 122, p. 56-57, 1994. 9 Ibidem, p. 58.

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incrementadora de litígios, já que se constrói apartir das soluções emanadas para dirimirconflitos interpessoais. Estas últimas restriçõessão rebatidas por Allen, citado por Edward D.Re10, que, em Law in the Making, afirma:

“Nem constitui crítica inteiramenteinjusta afirmar que os precedentestendem a fazer com que o desenvolvi-mento do direito dependa de acidentesdo processo litigioso. Pontos importantespodem permanecer obscuros simples-mente porque ninguém se interessou emquestioná-los. Um julgamento errôneopode permanecer e adquirir autoridadeimerecida, simplesmente porque a partesucumbente deixa de recorrer – geral-mente pela boa razão de que não podemais arcar com os ônus do litígio”.

Quanto a ser o stare decisis paralisante daevolução do Direito, rebate Edward D. Re:

“A toda evidência a autoridade dosprecedentes varia consideravelmente.Num extremo estão os precedentes tidoscomo vinculativos; noutro, aqueles quese consideram de todo inaplicáveis aocaso em exame. A doutrina do staredecisis conseqüentemente não exige obe-diência cega a decisões passadas. Elapermite que os Tribunais se beneficiemda sabedoria do passado, mas rejeitem oque seja desarrazoado ou errôneo. Antesde mais nada é necessário que o Tribunaldetermine se o princípio deduzido pormeio do caso anterior é aplicável. Emseguida, deve decidir em que extensão oprincípio será aplicado. Um Tribunalpode preferir estender um princípio maisalém dos limites de um caso antecedentese entender que assim estará promovendoJustiça. Caso a aplicação do princípio,entretanto, possa produzir resultadoindesejável, o Tribunal estreitará ourestringirá o princípio, ou ainda aplicaráprecedente diverso. Por isso, é precisoassinalar que stare decisis não é apenasuma doutrina de estabilidade e unifor-midade. Suas restrições e limitaçõesinerentes, bem como os fatores quedeterminam a inaplicabilidade dedecisões anteriores, tornam possível anecessária flexibilidade, indispensávelpara a mudança e o progresso”.

Máxime em Estados, como o nosso, de

organização tripartite, a adoção do stare decisisreclama moderação no prestígio e na valoraçãodas fontes jurídicas que darão base aos julga-mentos, evitando a exclusividade cega dequalquer delas.

5. As decisões vinculantes e a independênciados juízes da inferior instância

Na esteira do stare decisis (o trocadilho éproposital), tem tomado corpo, conformealinhei acima, a idéia de que a adoção davinculação dos precedentes judiciais, incidentesverticalmente no edifício do Judiciário, damaior à menor instância, resolveria o afoga-mento imposto ao Poder, notadamente depoisdo registro do inesperado número de demandas,oriundas da descoberta da cidadania pelo povobrasileiro, após o advento da Constituição de1988. A vigente Carta Política, se coberta dedefeitos fosse, haveria de mostrar pelo menosum ponto positivo: lembrou ao homem brasi-leiro que ele existe e compõe o Estado, comoNação, não sendo apenas súdito do Rei, massócio deste. Pois bem! Descobrindo que podereclamar do Estado pelas peraltices dos seusgerentes, o homem comum achou de bater àsportas do Judiciário reclamando da insuportávele confusa carga tributária; dos desmandosadministrativos, notadamente na área depessoal; da incorreção dos cálculos dos proven-tos previdenciários etc. E, com freqüênciaconsiderável, esse chamado aconteceu junto aojuízo singular, na inferior instância. Foi nestaque foram proferidas as primeiras decisõesmandando o INSS igualar os ganhos dos rurí-culas aposentados aos dos trabalhadores daativa (CF, art. 201, § 5º) e dela saíram asprimeiras decisões liminares ordenando odesbloqueio dos cruzados retidos quando daedição do Plano Collor (1990), apenas porexemplos.

O alentado volume de ações aforadas emmuito pouco tempo assoberbou de serviço oPoder Judiciário, que padece de sério, muitosério mesmo, estrangulamento. A situação éinsuportável. Os magistrados reclamam, osadvogados lamentam e o povo grita. Urge umasolução. E a que se apresenta como mais viávelé a da força vinculante dos precedentes ousúmula vinculante.

O instituto que se comenta (a súmulavinculante) é capaz de despertar paixões eódios, que balizam, em lados opostos, posiçõeseqüidistantes e equilibradas, bem possíveis de10 Ibidem, p. 60.

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encontrar aí uma saída para o congestiona-mento das instâncias forenses, ainda queconjunturalmente.

Tentaremos alinhar aqui alguns argumentoscontrários à adoção da súmula vinculante.

5.1. Respeitáveis argumentos contráriosà súmula vinculante

Diz-se que os limites do exercício da funçãojurisdicional são a lei e a consciência jurídica,devendo esta última ser o norte do magistrado,que, no seu labor, deve extrair o sentido da lei,por meio da interpretação. Não deve o juiz,portanto, renunciar a essa atividade concilia-tória da sua consciência jurídica com o objetivoda lei em nome da celeridade da prestaçãojurisdicional, pois esta não é o único nem omaior valor a ser considerado em matériajudicial. Afinal, o aforismo “justiça que tardanão é justiça” é eivado de relativismo, pois épreferível que o jurisdicionado obtenha oproveito desejado, ainda que demorado.

É afirmado, outrossim, que, em um sistematripartite de poderes como o nosso, configuraignomínia o Judiciário desprezar a produçãolegislativa para firmar-se em princípios por elepróprio construídos. A legitimidade da ativi-dade judicante promana da vinculação do PoderJudiciário às leis e à Constituição. No instanteem que o juiz estiver vinculado às normaselaboradas pelo seu próprio Poder, desapare-cerá a sua legitimação democrática legal-repre-sentativa, restando fraturado o princípio daharmonia e da autonomia entre os poderesestatais, porque um estaria subtraindo acompetência do outro, para enfeixá-la empoucas mãos (as da cúpula).

Para Urbano Ruiz, Presidente da AssociaçãoJuízes Para a Democracia, “a criação do efeitovinculante impediria que o juiz decidisse livre-mente”11, no que é criticado por Antonio CelsoAguilar Cortez, também integrante dessaassociação, que afirma:

“Dizer, por outro lado, que a propostapõe em risco a liberdade de decidir dosjuízes é uma redução simplista daquestão. Importante é observar que,normalmente, a evolução da jurispru-dência, sua sintonização com a expecta-tiva da sociedade, não acontece de cimapara baixo, mas sim de baixo para cima.

Muito mais do que os tribunais ‘infe-riores’ ou ‘superiores’, os juízes deprimeiro grau ‘sentem’ os problemasvivos no contato direto e pessoal com aspartes e os advogados”12.

Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, Presi-dente da Associação dos Magistrados do Estadodo Rio de Janeiro, também critica o rumo quese vem traçando para a solução do problema:

“Propõe-se a adoção de súmulavinculante na reforma do Judiciário,ressuscitando os Assentos das Casas deSuplicação, considerados inconstitu-cionais pelo STF desde a fundação daRepública. Como pontificava RuyBarbosa – lembrado por Evandro Lins eSilva em artigo publicado no Jornal doBrasil de 16 de setembro –, na defesa(em 1895) do juiz de Direito do RioGrande do Sul Alcides de MendonçaLima, que, por considerá-la inconstitu-cional, negou aplicação a uma lei esta-dual que abolira características essenciaisà instituição do júri e acabou processadoem seu próprio Tribunal (que firmouposição contrária acerca do tema) porcrime de prevaricação e condenado àpena de nove meses de suspensão, talentendimento criava o crime de herme-nêutica”13.

Também rebelde quanto à súmula vincu-lante, bradou o Desembargador João AlbertoMedeiros Fernandes, do Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul:

“O direito do cidadão de ver o seucaso concreto examinado pelo seu advo-gado e pelo seu juiz é inalienável, decorrede princípio constitucional, mas jamaisde aplicações de decisões preconcebidas,também chamadas de stare decisis. (...)Criada a referida súmula de aplicaçãoobrigatória, é possível fechar os escri-tórios de advocacia, as comarcas, calar aOrdem dos Advogados do Brasil e apo-sentar juízes, mas é certo que, antes, ocidadão morrerá de injustiça. A súmulavinculante é uma maneira de oprimir opovo porque ele não tem consultoriajurídica em Brasília, nem força econô-

11 Justiça poderia evitar 90% dos processos.Gazeta Mercantil, 12 fev. 1997.

12 Súmulas dogmáticas e interesse público. OEstado de São Paulo. 17 fev. 1997.

13 Uma questão de incompatibilidade de gênios.AMAERJ : home page, (http://www.nutecnet.com.br/amaerj). 13 fev. 1997.

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mica para contratar os maiores juristasdo país, ao passo que o governo, osbancos e as multinacionais, peloscaminhos certos, estabelecerão a imuta-bilidade futura das decisões que lhesfavoreçam”14.

Incontáveis outras abordagens, contráriasà súmula vinculante, poderiam ser colacionadasneste ensaio. Existem a mancheias, não rarobrilhantemente defendidas. Mas os exemplosacima são significativos da recusa do institutoem apreciação.

6. Razões pelas quais acreditona eficiência das decisões vinculantesLonge de mim ditar a última palavra sobre

assunto tão polêmico. Longe de mim, também,a idéia de ficar omisso em face de questão tãocrucial para todos os partícipes da cena jurídica.Daí a ousadia de listar alguns argumentos,derivados das observações que tenho empreen-dido sobre a matéria, visando unicamente esti-mular a busca de soluções para o caos em queestá mergulhada a atividade jurisdicional.

Penso que o primeiro passo a ser empreen-dido por quem realmente deseja reverter o galo-pante necrosamento do Judiciário é despir-se devaidades e de pruridos que, se afagam o ego,“afogam” a ação profissional e institucional(com perdão pelo trocadilho proposital). Bastaa elevação do pensamento para os sítios do bemcomum para que sejam esquecidos ciúmes ereceios que são diminutos, se comparados aotamanho da crise ora analisada.

Não acho que a adoção do precedentevinculante seja uma invasão tão periculosaassim aos domínios do Poder Legislativo. NosPaíses do Common Law, conforme é sabido, ocostume judicial dá a tônica da prestação juris-dicional e nem por isso o Poder Legislativo édiminuído. O exemplo da Inglaterra é irres-pondível.

Mas, considerando que o modelo de tripar-tição dos poderes não conta ainda três séculos(o que é muito pouco, em termos de história dahumanidade), haveria algum mal terrível quefosse essa divisão repensada? Lembro agora aspalavras de Walter Ceneviva, convocando osoperadores jurídicos para a reversão dosproblemas enfrentados neste passar de milênio:

“A curto prazo não há luz no fim do15 Operadores do Direito. Coluna Letras Jurí-

dicas. Folha de São Paulo. 7 dez. 1996.16 A AMB e a súmula vinculante. Jornal do

Magistrado. ano 7, n. 39, p. 12, dez. 1996.14 A ditadura está chegando à Justiça. Jornal do

Comércio. Porto Alegre, 31 out. 1996.

túnel, mas as más conseqüências serãocontornáveis se os operadores do direitocompreenderem a conveniência da suaunião para o enfrentamento das grandesteses. A tripartição dos poderes deve serrepensada. Estamos precisando de umnovo Montesquieu no caminho de umanova Ágora, na qual todos os cidadãospossam manifestar-se sobre os destinosda cidade. A Internet nos mostra que issoserá tecnicamente possível em breveprazo”15.

Volvendo ao cerne do questionamento oraposto, reitero não temer pela minha indepen-dência de juiz em face da vinculação dasdecisões superiores sumuladas. O modelodefendido pela Associação dos MagistradosBrasileiros – AMB é marcado pela moderaçãonaturalmente esperada de um ente representa-tivo do pensamento dos juízes do Brasil. Assim,acolhendo a posição do Deputado JairoCarneiro, relator do substitutivo da reformaconstitucional pertinente, defende a AMB que

“a edição da súmula vinculante somenteserá dada pelo voto de 3/5 dos membrosdo STF e Tribunais Superiores, apósreiteradas decisões sobre a validade, ainterpretação e eficácia de normas oumatérias específicas e determinadas,acerca das quais haja controvérsia atualentre órgãos judiciários ou entre esses ea administração pública que acarretegrave insegurança jurídica e relevantemultiplicação de processos sobrequestão idêntica , sujeitas, ainda, aocontrole de constitucionalidade”,

conforme reporta Antonio Fernando Gui-marães16. Visto está, portanto, que a necessidadeda ocorrência de repetidas decisões sobre avalidade, a interpretação e a eficácia de certasnormas ou de matérias especificadas afasta portodo o “fantasma” da indébita invasão legisla-tiva, dita perpetrável pelo Judiciário. Consoli-dar julgados reiteradamente discutidos peloórgão ápice do Poder Judiciário não pode serconfundido com atividade legislativa anômala...

Outro ponto que foi bem acolhido pelaAMB, por meio do seu Conselho Executivo edo seu Conselho de Representantes, diz respeitoà alteração ou revisão das súmulas vinculantes.

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crimes contra a administração pública, máximeo de prevaricação. Assim, quando um juiz deinferior instância recebe um julgado do tribunalque lhe é superior e deixa de a ele dar cumpri-mento ao argumento de que, por exemplo, “nãoconcorda com a posição doutrinária desposadapela corte”, estará agindo criminosamente,imbuído por sentimento pessoal (CP, art. 319).Acho que quanto a isso não há dúvida.

De igual modo, tendo o Supremo TribunalFederal sumulado um conjunto de decisões eordenado que os juízos inferiores a eles rendamobediência, nada mais estará fazendo do queaquilo que faria, de forma fracionada, nosprocessos a, b, c.... E por qual razão o magis-trado da instância inferior cumpre uma decisãoisolada, sem opor discussões, e terá receios decumprir um conjunto sumulado de decisões?Será que a mentalidade da magistratura brasi-leira ainda está sediada na época em que areforma de uma sentença consistia num avilta-mento ao trabalho do juiz singular? E, se sabidoque o juiz pode perfeitamente ser sujeito ativodo crime de prevaricação, previsto há mais demeio século no Código Penal, por que haveriade recusar a possibilidade de ser também sujeitoativo de semelhante prática delituosa em umnovo diploma legal?

7. ConcluindoNa atual conjuntura experimentada pelo

Poder Judiciário do Brasil, a edição da súmulavinculante constitui sério instrumento paraimprimir maior velocidade e melhor raciona-lização na atividade jurisdicional, sem que issomacule a independência e a capacidade criativados juízes subordinados aos tribunais editores,principalmente se forem adotados mecanismosde revisão ágeis e democráticos.

Pelo substitutivo Jairo Carneiro, será fran-queada aos tribunais inferiores, ao MinistérioPúblico da União ou dos Estados, à União, aosEstados ou ao Distrito Federal, ao ConselhoFederal da Ordem dos Advogados do Brasil eà Associação dos Magistrados Brasileiros aproposta de alteração ou de cancelamento dasúmula editada.

Ainda conforme o substitutivo acimamencionado, a força vinculante da súmula estádemonstrada pela possibilidade da oposição dereclamação, dirigida ao poder editante, quandoa mesma não for aplicada por juízo inferior oufor desrespeitada por ente administrativo. Umavez acatada a reclamação, será anulado o atoadministrativo ou cassada a decisão judicial.Ainda que a reclamação não configure, emsenso estrito, um recurso, decerto será um meiodeveras hábil a inibir o poder público deprocrastinar feitos judiciais ou providênciasadministrativas em descompasso com a inter-pretação sumulada.

Por último, o mais polêmico dos temas: nãoadotando o juízo inferior o regramento passadopela súmula vinculante, estará o magistradocometendo infração penal?

A elevada missão de distribuir justiça, aoinstante em que o juiz é o próprio Estado, postoque integrante de um dos Poderes deste, nãocompadece ameaças ou ralhamentos prévios,ainda que editados no corpo da Constituição.Pela magnitude da atividade judicante e pelarespeitabilidade que os juízes devem ostentarperante os jurisdicionados, acho perfeitamentedesprezível a inserção, no texto legal, deameaças de prisão ou de outras sançõesnegativas para os casos concretos de desatençãoàs súmulas vinculantes. Entretanto, não possoolvidar que o juiz, como servidor público latosensu que é, está exposto ao cometimento de

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A estabilidade no serviço público emface da proposta do governo “FHC” de“flexibilizá-la”

ERASTO VILLA-VERDE FILHO

SUMÁRIO

Erasto Villa-Verde Filho é Advogado em Brasí-lia, Procurador do Banco Central do Brasil e Espe-cialista em Direito Público pela Universidade deBrasília – UnB.

1. Introdução. 2. Conceituação. 3. A teleologiada estabilidade. 4. A estabilidade no direito com-parado territorial. 5. A estabilidade no direito com-parado temporal. 6. A estabilidade e os “emprega-dos públicos”. 7. A estabilidade é no “serviço”,não no “cargo público”. 8. O princípio do infor-malismo do processo administrativo. 9. Classifica-ção dos servidores públicos quanto à garantia depermanência no serviço público. 10. Demissões emrazão de excesso de pessoal. 11. Instrumentos dedisciplina administrativa. 12. Conclusão.

1. IntroduçãoA partir da divulgação da vontade do atual

Presidente da República, Fernando HenriqueCardoso, de apresentar proposta de emendaconstitucional no sentido de “flexibilizar” aestabilidade no serviço público, o tema passoua ser objeto de discussão em âmbito nacional.

A polêmica já grassava pelo País aforaquando veio a público a posição oficial do Go-verno Federal. O Ministro da AdministraçãoFederal e da Reforma do Estado, Luiz CarlosBresser Pereira, publicou, no jornal CorreioBraziliense, em 26 de janeiro de 1995, página13, sob o título Flexibilidade sem medo, artigoonde sustenta que “a estabilidade rígida e ge-neralizada, prevista na Constituição de 1988,é um obstáculo fundamental à reforma do Es-tado e à consolidação do Plano Real”, formu-lando, então, a controvertida proposta de alte-rar o instituto.

Na página 2 do suplemento semanal Direito& Justiça do mesmo jornal Correio Brazilien-se, no dia 6 de fevereiro de 1995, foi publicadoartigo da lavra do editor Josemar Dantas, sob otítulo Equívocos ameaçam a estabilidade, em

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que o articulista defende a estabilidade, chamade “pueris” os argumentos do Governo que lhesão contrários e argumenta que “só por meiodela será possível ao funcionalismo opor-se àprática de atos lesivos ao interesse público e aoassalto da corrupção”.

Foi apresentada então a Proposta de Emen-da Constitucional nº 173/95, que modifica oCapítulo da Administração Pública. Segundoa professora Cármen Lúcia Antunes Rocha, aproposta “tem como fundamento uma visãoweberiana e econômica do fenômeno estatalsobre o qual se cuida. Despolitiza e desjuricizao Estado, que não é reconhecido como entepolítico constituído pelo Direito e dinamizadosegundo ele, e busca-se uma perigosa neutrali-zação, inclusive ética, da Administração Pú-blica”, conforme parecer aprovado pela Ordemdos Advogados do Brasil (Revista da OAB, a.26, n. 62, p. 195).

Mais recentemente, Wellington Cabral Sa-raiva, também em artigo publicado no suple-mento Direito & Justiça do Correio Brazilien-se (maio, 1997. p. 6), afirma que “é lamentá-vel má-fé ou perigosa ignorância rotular a es-tabilidade como a causa dos males (que nãosão poucos) do serviço público brasileiro”.

Diante desse intenso debate que se estabe-leceu sobre o tema, o momento é propício aoestudo da estabilidade no serviço público, sen-do essa a proposta do presente trabalho.

2. Conceituaçãoa) EstabilidadeO instituto da estabilidade no serviço pú-

blico está insculpido no art. 41 da Constitui-ção da República, que assim dispõe, verbis:

“Art. 41. São estáveis, após dois anosde efetivo exercício, os servidores nome-ados em virtude de concurso público.

§ 1º O servidor público estável sóperderá o cargo em virtude de sentençajudicial transitada em julgado ou medi-ante processo administrativo em que lheseja assegurada ampla defesa.

§ 2º Invalidada por sentença judiciala demissão do servidor estável, será elereintegrado, e o eventual ocupante davaga reconduzido ao cargo de origem,sem direito a indenização, aproveitado emoutro cargo ou posto em disponibilidade.

§ 3º Extinto o cargo ou declarada suadesnecessidade, o servidor estável ficaráem disponibilidade remunerada, até seuadequado aproveitamento em outrocargo.”

Não há significativas discrepâncias a res-peito da definição de estabilidade, nem na dou-trina, nem na jurisprudência, mesmo porque oconceito exsurge do próprio art. 41 da Consti-tuição da República: é a garantia constitucio-nal que tem o servidor público concursado,ocupante de cargo efetivo e aprovado no está-gio probatório, de não ser demitido salvo emvirtude de sentença judicial irrecorrível ou pro-cesso administrativo em que lhe seja assegu-rada ampla defesa.

b) Requisitos da estabilidadeA mesma observação é válida no que se re-

fere aos requisitos da estabilidade, que tambémsão estabelecidos pelo referido art. 41, não ha-vendo nenhuma controvérsia sobre o assunto.São eles: concurso público, cargo efetivo e es-tágio probatório, conforme relação de Dióge-nes Gasparini (1993, p. 160).

c) VitaliciedadeEm Direito Administrativo, é também qui-

escente a distinção entre estabilidade e vitali-ciedade. Essa última não é atribuída aos servi-dores públicos civis, mas somente a algunsagentes públicos, a quem é conferida tal ga-rantia em razão da necessidade de maior pro-teção do que a simples estabilidade para o de-sempenho de suas atribuições, como é o casodos membros do Poder Judiciário, do Ministé-rio Público e dos Tribunais de Contas.

As diferenças e semelhanças entre os insti-tutos da estabilidade e da vitaliciedade forammuito bem arroladas por Pinto Ferreira (1990),na seguinte passagem:

“Deve-se também distinguir nitida-mente entre estabilidade e vitaliciedade,da seguinte maneira: a) ambas são ga-rantias constitucionais (CF de 1988, arts.41 e 95, I); b) a estabilidade é a garantiaconstitucional de permanência no servi-ço público, enquanto a vitaliciedade é agarantia de permanência no serviço e nocargo público; c) a demissão do servidorpúblico estável somente pode ocorrer porsentença judicial transitada em julgadoou processo administrativo (CF de 1988,art. 41), mas o servidor vitalício só podeser demitido em virtude de sentença ju-

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dicial transitada em julgado (CF de 1988,art. 95, I); d) a estabilidade é adquiridadepois de um biênio de efetivo exercíciopara os servidores nomeados em virtudede concurso público (CF de 1988, art.41), enquanto a vitaliciedade é adquiri-da pelos magistrados, no primeiro grau,após dois anos de exercício (CF de 1988,art. 95, I). Os agentes nomeados para ostribunais adquirem vitaliciedade desdea posse (LOMN, art. 22, I); e) a estabili-dade não ampara o servidor público con-tra a extinção do cargo (Súmula 23 doSTF), enquanto a extinção do cargo porservidor público não-estável admite aexoneração (RT, 36:465 e 86:543). Emse tratando de servidor público estável,extinto o cargo ele será posto em dispo-nibilidade remunerada, até seu aprovei-tamento em outro cargo (CF de 1988, art.41, § 3º; RTJ, 33:493). A vitaliciedadetambém não impede a extinção do cargo(Súmula 11 do STF).” (p. 420-421)

d) EfetividadeÉ necessário também distinguir efetivida-

de de estabilidade. A respeito disso, há certaquerela doutrinária: Hely Lopes Meirelles(1993, p. 382) afirma que a efetividade consti-tui pressuposto da estabilidade; enquanto Ma-noel Gonçalves Ferreira Filho (1990, p. 272),por sua vez, já não identifica a efetividade comorequisito da estabilidade.

Assiste razão a Manoel Gonçalves FerreiraFilho. Com efeito, efetividade é característicada nomeação, pois pode haver, no serviço pú-blico, nomeação em comissão, em caráter vita-lício, ou em caráter efetivo. Vê-se, portanto,que o funcionário aprovado em concurso pú-blico e nomeado para cargo de provimento efe-tivo passa, logo depois de empossado, a ter efe-tividade, sem ter estabilidade. Estabilidade,diferentemente, é o direito que adquire o servi-dor nomeado por concurso após dois anos deefetivo exercício.

Ademais, o art. 19 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias assegurou aos ser-vidores públicos com cinco anos de exercíciona data da promulgação da Constituição esta-bilidade, sem lhes assegurar efetividade, quesó seria adquirida após o concurso público aque se refere o § 1º do referido dispositivo doADCT, donde se conclui que esta não é neces-sariamente pressuposto daquela.

O Supremo Tribunal Federal, ainda na vi-

gência da Constituição anterior, já entendia queestabilidade não implica efetividade, como sepode deduzir do seguinte acórdão relatado peloMinistro Antônio Neder:

“O art. 177, § 2º, da Constituição de1967 conferiu apenas o direito à estabi-lidade no serviço público, e não no car-go que, por força da legislação ordiná-ria, fosse ocupado pelo funcionário. Acitada regra outorgou direito à estabili-dade e não à promoção.” (apud Dallari,1990, p. 89).

e) Estágio probatórioSendo o estágio probatório um dos requi-

sitos da estabilidade, além do concurso públi-co e do cargo efetivo, é preciso definir o insti-tuto e conhecer sua finalidade:

“Estágio probatório é o período deexercício do funcionário durante o qualé observada e apurada pela Administra-ção a conveniência ou não de sua per-manência no serviço público, mediantea verificação dos requisitos estabelecidosem lei para a aquisição da estabilidade(idoneidade moral, aptidão, disciplina,assiduidade, dedicação ao serviço, efici-ência etc.)” (Meirelles, 1993, p. 383).

Em essência, essa é também a definiçãoadotada por Diógenes Gasparini (1993, p. 161).

O funcionário em estágio probatório – que,portanto, ainda não adquiriu estabilidade – podeser demitido (mediante processo administrati-vo ou judicial em que seja apurada falta disci-plinar capaz de ensejar pena de demissão) etambém exonerado (sendo considerado inca-paz para o exercício do cargo). A segunda hi-pótese, entretanto, não dispensa ato devidamen-te motivado e procedimento administrativo,ainda que simplificado, em que seja apurada ainaptidão do servidor, como acentua Hely Lo-pes Meirelles (1993, p. 383), respaldado naSúmula 21 do Supremo Tribunal Federal:

“Funcionário em estágio probatórionão pode ser exonerado nem demitidosem inquérito ou sem as formalidadeslegais de apuração de sua capacidade”.

Releva considerar também que o SupremoTribunal Federal, nos termos da Súmula nº 22,entende que “o estágio probatório não protegeo funcionário contra a extinção do cargo”.

f) DisponibilidadeDisponibilidade, direito assegurado ao ser-

vidor estável pelo citado § 3º do art. 41 da Cons-

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tituição de 1988, conforme Celso AntônioBandeira de Mello (1994):

“é a colocação do servidor titular de car-go em inatividade remunerada, até seuadequado aproveitamento em outro car-go. Este é um direito que a Constituiçãoconfere ao servidor público civil estável,caso seu cargo venha a ser extinto oudeclarado desnecessário (§ 3º do art. 41)ou ainda quando, em virtude de reinte-gração de outrem, seja desalojado do car-go que ocupava sem ter um cargo de ori-gem para regressar a ele (art. 43, § 2º,precitado)” (p. 139).

Importa ressaltar que o Supremo TribunalFederal decidiu que a remuneração do servi-dor em disponibilidade deve ser integral, de-clarando a inconstitucionalidade do Decreto nº99.300/90, que fixava os vencimentos de ser-vidores em disponibilidade proporcionalmen-te ao tempo de serviço, conforme acórdão pro-ferido na Ação Direta de Inconstitucionalida-de nº 313/DF (RTJ, n. 137, p. 984).

3. A teleologia da estabilidadePara explicar a estabilidade no serviço pú-

blico do ponto de vista teleológico, i.é, pers-crutando os fins a que se destina, é preciso re-troceder no tempo, até os primórdios doinstituto.

Marcelo Caetano (1977, p. 361) recordaque, nas velhas monarquias européias, não sedistinguiam os órgãos da Administração e osda Justiça. Todos recebiam a sua autoridade doSoberano, o Rei, que em si concentrava a ple-nitude do Poder. Somente a partir do constitu-cionalismo liberal é que foi feita a distinçãonítida entre os órgãos judiciários e administra-tivos, assegurando-se a independência dosjuízes.

Segundo o ilustre juspublicista português,com o liberalismo, os órgãos administrativosficaram muito ligados à política, e os seus agen-tes eram recrutados entre os indivíduos comserviços prestados ao partido que ocupava ogoverno e que usava as funções públicas comomoeda de aquisição de apaniguados ou de pa-gamento de favores.

Resultado disso era a precariedade da situ-ação dos funcionários, pois a modificação degoverno podia pôr em causa a sua permanên-cia nos cargos. Tal ligação da função pública àpolítica chegou ao seu apogeu nos Estados

Unidos do século XIX, onde o partido vitorio-so expulsava os adversários do serviço públi-co, para assegurar vagas aos seus amigos e apa-niguados. De acordo com Marcelo Caetano(1977), “era o spoil system – as funções públi-cas constituíam os despojos da batalha eleito-ral que, por direito, pertenciam à facção vitori-osa” (p. 362).

Naquele período da história estaduniden-se, a função pública era considerada um em-prego como outro qualquer. Em face da extre-ma flexibilidade social então existente, commuitas oportunidades de ocupação e iniciati-va, que permitia aos cidadãos freqüentementemudarem de atividade, a função pública nãoconstituía profissão nem implicava carreira.

Na Europa, todavia, a mentalidade era di-ferente. Nas monarquias absolutistas, conquan-to, em regra, tudo girava em torno da vontadedo soberano, havia certa “tradição de devoçãoà função pública e de estabilidade dos servido-res nos cargos” (Ibidem.).

Essa tradição de certa forma perdurou nosnovos regimes liberais, donde surgiu a aspira-ção de estabilidade daqueles que exerciam asfunções públicas e a tendência para a profissi-onalização dos funcionários.

É nesse contexto histórico que se deve vis-lumbrar o surgimento da estabilidade, comonarra Marcelo Caetano (1977):

“Efetivamente, à medida que se mul-tiplicavam os serviços públicos, a expe-riência não tardou a demonstrar aos po-líticos que a máquina do Estado tinhade funcionar com regularidade e conti-nuidade através das vicissitudes das vi-tórias partidárias e das mudanças gover-namentais” (p. 363).

Eis a razão de ser do instituto da estabili-dade do servidor público, que passou a ser uni-versalmente consagrado. Ninguém duvida danecessidade de conceder ao servidor certa ga-rantia de permanência no serviço público. Mes-mo quem defende a alteração da estabilidadereconhece que ela é necessária, seja para que oservidor permaneça alheio a perniciosas injun-ções políticas, seja para evitar solução de con-tinuidade no serviço público:

“A estabilidade é necessária na me-dida em que defende o Estado e seus fun-cionários contra os poderosos e os cor-porativistas” (Pereira, B. 1995).

“Claro está que o Estado precisa con-tar com um quadro de servidores está-

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veis, imunes aos humores e interesses dospolíticos episódicos, levando-se em con-ta a necessária continuidade na execu-ção dos serviços, planos administrativos,política econômica, moralidade e efici-ência, que somente podem ser assegura-dos pela estabilidade da máquina buro-crática” (Ramos, S.1995).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990)explica a finalidade do instituto em exame, naseguinte lição:

“O poder de demitir deve ser estrita-mente regulado, na medida em que sedesejar a constituição de um corpo ad-ministrativo estável, isento, no máximo,de influências políticas. Do contrário, éde se temer a implantação do spoil’s sys-tem, a alternância dos partidos no podersignificando o afastamento em massa deservidores para a admissão de outros que,filiados aos triunfantes, com eles parti-lhem dos despojos...” (p. 272).

Com base em tais fundamentos, não há ne-gar que a estabilidade existe muito mais embenefício da sociedade e do Estado que em pro-veito do próprio servidor estável, como asseve-ra Celso Antônio Bandeira de Mello (1994):

“Tal regime, atributivo de proteçõespeculiares aos providos em cargo públi-co, almeja, para benefício de uma açãoimpessoal do Estado – o que é uma ga-rantia para todos os administrados –,ensejar aos servidores condições propí-cias a um desempenho técnico isento,imparcial e obediente tão-só a diretrizespolítico-administrativas inspiradas nointeresse público, embargando, dessar-te, o perigo de que, por falta de seguran-ça, os agentes administrativos possam sermanejados pelos transitórios governan-tes em proveito de objetivos pessoais,sectários ou político-partidários. A esta-bilidade para os concursados, após doisanos de exercício, a reintegração (...),consistem em benefícios outorgados aosservidores, mas não para regalo destes,e sim para propiciar, em favor do inte-resse público e dos administrados, umaatuação impessoal do Poder Público”(p. 142 – destacou-se).

Em suma, teleologicamente considerada, aestabilidade é a garantia que, ao mesmo tempoem que estimula o profissionalismo dentro doserviço público, proporciona independência

funcional, colocando o servidor a salvo de even-tuais pressões ou perseguições, de modo a po-der atuar tecnicamente orientado para finali-dades públicas e não em proveito de interessespartidários ou pessoais dos detentores ocasio-nais do poder.

4. A estabilidade no direito comparadoterritorial

A estabilidade do servidor público não écriação do direito brasileiro. Ao contrário, tra-ta-se de garantia de há muito assegurada aosfuncionários públicos de diversos países.

Em 1917, Araujo Castro já dizia que “emtoda a parte ha grande tendência para garantircerta estabilidade aos funccionarios publicos”(p. 127), tendência por ele denominada Movi-mento em favor da estabilidade do funcciona-rio. Referido autor informava que a estabilida-de do funcionalismo já era assegurada na Es-panha, na Alemanha, na Itália, na Bélgica.

Na França, Duguit, como anota Araujo Cas-tro (1917, p.129), também defendia com vee-mência a estabilidade, demonstrando a grandevantagem que o instituto traria para o próprioEstado.

O mesmo Araujo Castro conta ainda que osfuncionários públicos já gozavam de estabili-dade na Inglaterra (onde não se admitia a hi-pótese de que um bom funcionário pudesse serarbitrariamente destituído do seu cargo), naSuíça (onde, embora não fosse assegurada vi-taliciedade nem mesmo a seus juízes, a tradi-ção impedia que alguém fosse dispensado semjusta causa) e na Argentina (onde o poder discri-cionário em matéria de exonerações já era julga-do inconveniente aos interesses do Estado).

Na América Latina, em 1916, o CongressoSul-Americano de Ciências Sociais de Tucu-man chegara à seguinte conclusão: “Em maté-ria de administração geral, é indispensável,para assegurar a regularidade da função públi-ca, a existência de preceitos legais que se as-sentem na estabilidade dos funcionários” (apudCAVALCANTI, Themistocles Brandão. 1958,p. 405).

Atualmente, a estabilidade do funcionalis-mo continua a ser encontradiça no direito com-parado territorial, sendo que, em certos países,a garantia é ainda maior do que a vigente noBrasil, como afirma Josemar Dantas (1995):

“As nações mais desenvolvidas domundo, entre as quais a Alemanha e a

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Itália, adotam o regime da estabilidadeem extensão bem mais abrangente do queno Brasil. Até mesmo os postos políti-cos logo abaixo do ministro são ocupa-dos por servidores estáveis. Tal critérioexplica por que as crises políticas nospaíses que praticam a estabilidade jamaisse convertem em crises institucionais ouinterrompem o funcionamento pleno damáquina administrativa”.

Em Portugal, é assegurado ao funcionalis-mo público o “direito à titularidade do lugar”,assim definido pela doutrina daquela naçãoirmã:

“Por direito à titularidade do lugarentendemos o direito à ocupação do mes-mo ou à sua cativação, não podendo otitular respectivo ser dele destituído a nãoser através de pena expulsiva de naturezadisciplinar ou criminal” (Alfaia, J. 1985,p. 477).

Como se pode observar, o direito do funci-onário de permanecer no cargo, em Portugal, ésemelhante ao vigente no Brasil. Com efeito,lá e aqui, a estabilidade não é assegurada a to-dos indistintamente, mas apenas a determina-das categorias de agentes públicos que preen-cham os requisitos necessários à sua aquisição(Ibidem, p. 387).

Na Venezuela, os funcionários públicospodem ser “de carrera o de libre nombramien-to y remoción”, sendo a estabilidade assegura-da aos primeiros nos termos do art. 17 da Leyde Carrera Administrativa, verbis:

“Artículo 17 – Los funcionarios decarrera gozarán de estabilidad en el de-sempeño de sus cargos. En consecuen-cia, sólo podrán ser retirados del servi-cio por los motivos contemplados en lapresente Ley” (Boletín del Instituto deDerecho Comparado, Caracas, n. 10/12,p.43, oct./dic. 1976.)

Contudo, os funcionários públicos venezue-lanos, mediante indenização, podem ser exo-nerados por outros motivos além de falta disci-plinar, conforme o art. 26 do citado diplomalegal.

“Artículo 26 - Los funcionarios decarrera tendrán derecho a percibir comoindemnización al renunciar, o ser reti-rados de sus cargos conforme a lo pre-visto en el artículo 52 de esta Ley, lasprestaciones sociales que pudieren cor-responderle conforme a la Ley del Tra-

bajo o según la Ley respectiva, si estaúltima le fuere más favorable” (idem).

O mesmo ocorre na França, onde os funcio-nários podem ser afastados do serviço públicona hipótese de redução de quadros, mediante opagamento de indenização. Cumpre salientar,todavia, que isso só é possível mediante lei:

“Quant au licenciement pour d’autrescauses, et notamment pour cause de su-ppression d’emploi, il ne peut, depuis1946, pour la fonction publique d’Etat,résulter que d’une loi spéciale, dite de‘dégagement des cadres’, qui organise-ra le reclassement ou l’indemnisation desintéressés (loi du 11 janvier 1984, art.69)” (Chapus, R. 1987, p. 193).

Segundo o Ministro da Administração, quea qualifica de “rígida” e “inflexível”, a esta-bilidade, nos termos atualmente postos naConstituição, seria uma “segurança absoluta”do servidor público, que teria “seu empregoprotegido de forma absoluta, monopolista”,motivo pelo qual propõe uma nova concepçãode estabilidade, que julga “sensata, razoável”.

Ao contrário do que alega o ministro, en-tretanto, a estabilidade no Brasil não pode serchamada de rígida, quando comparada com agarantia de permanência no serviço públicoexistente em outros países. Conforme o acimaexposto, a estabilidade não existe somente noBrasil: há muito tempo que os funcionáriospúblicos dos países civilizados gozam de talgarantia. O ordenamento jurídico brasileiro nãodifere muito de outros ordenamentos alieníge-nas ao garantir ao servidor público proteçãocontra demissões arbitrárias.

5. A estabilidade no direito comparadotemporal

Pesquisando as origens históricas do insti-tuto da estabilidade no Brasil, evidencia-se que,assim como não constitui criação do direitobrasileiro, também não se trata de novidade noordenamento jurídico pátrio.

Desde o império, já havia algumas normasesparsas que asseguravam a determinadas clas-ses de funcionários certas garantias de perma-nência no serviço público. Araujo Castro (1917,p. 132), no início do século, recordava que “an-tes da Republica, já diversos regulamentos con-signavam disposições assecuratorias da perma-nencia do funccionario”, citando como exem-

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plo o art. 190 do Decreto nº 9.912 A, de 26 demarço de 1888.

Viveiros de Castro (1914, p. 572) ressalta-va a importância da estabilidade, explicandoque os tratadistas de então colocavam em pri-meiro lugar, entre os direitos dos funcionáriospúblicos, o de exercer o cargo de uma maneiraregular e estável, podendo o seu exercício sergarantido por uma ação judicial ou adminis-trativa, no caso de demissão arbitrária.

Entretanto, era princípio assente no Brasil,conforme Viveiros de Castro (1914, p. 573),que todos os funcionários públicos que nãogozavam de vitaliciedade, em virtude de ex-pressa disposição de lei, eram demissíveis adnutum, fossem quais fossem as condições esta-belecidas para a nomeação, e qualquer que fosseo tempo de exercício.

De fato, durante algum tempo, o SupremoTribunal Federal sustentou que a garantia depermanência no emprego só caberia aos vitalí-cios, como consta da jurisprudência colaciona-da por Araujo Castro (1917):

“A demissão dos empregados não vi-talícios não offende direito algum, masapenas simples interesse do demitido. (Ac-cordão de 23 de agosto de 1899)” (p. 65).

Essa orientação passou a ser consideradamuito radical pela opinião dominante na épo-ca. Viveiros de Castro (1914), embora reconhe-cendo o direito do governo de demitir o funci-onário não-vitalício, assinalava que “a própriaconveniência do serviço público exige que essedireito de demissão não seja arbitrariamenteexercido” (p. 575).

Nesse mesmo sentido, Rui Barbosa susten-tava que:

“Por via de regra, o poder que livre-mente nomeia livremente demitte. Masesse arbitrio póde soffrer restricções e assoffre. Esse poder se restringe, em pri-meiro logar, si á função está collado porlei o privilegio da vitaliciedade. Restrin-ge-se esse poder, em segundo logar, si anomeação estipúla, como clausula a ellainherente, um prazo legal ou convencio-nal de serviço. Em terceiro logar, aindase restringe, si a lei estabelece os casosde exoneração, como na especie fez, pres-crevendo que o funccionario tem direitoa ser mantido emquanto bem servir”(Demissão de curador de orphãos, p. 21,apud CASTRO, Araujo. 1917, p. 66).

Seguindo esse novo rumo, o Supremo Tri-

bunal Federal passou a coarctar o livre arbítriodo governo na demissão de funcionários, sen-do dignos de nota os dois seguintes acórdãos,datados de 1913, de relevante valor histórico ejurídico, verbis:

“A demissão do funccionario publi-co só póde ser dada com observancia dalei reguladora do caso, sendo nullo o actodo governo que a dá sem motivo e semessa observancia, ficando o funcciona-rio demittido com direito a todas as van-tagens do cargo (...). Supremo TribunalFederal, 30 de Janeiro de 1913. (Rela-tor: Ministro Canuto Saraiva)”.

“(...) Temos, portanto, uma modali-dade jurídica que está entre a vitalicie-dade e a demissibilidade ad nutum. Esta,se é necessária, em se tratando de cargosde exclusiva confiança do Poder Execu-tivo, como, por exemplo, os de comman-dantes de forças de terra, ou de mar, dechefe, delegado e sub-delegado de poli-cia, só póde ser nociva quando applica-da a cargos que devem estar ao abrigodas mutações politicas. Foi esta prova-velmente a consideração que dictou o art.33º do dec. nº 4:059. Nomeados e de-mittidos ao sabor dos interesses de pai-xões políticas, os collectores não podemser os homens probos e cumpridores ezelosos dos seus deveres, que mister quesejam; (...). Supremo Tribunal Federal,23 de Abril de 1913. – Pedro Lessa, re-lator.” (apud CASTRO Viveiros de.1914, p. 576/585).

Firmou-se, então, essa nova orientação ado-tada pelo Supremo Tribunal Federal. Viveirosde Castro (1914, p. 585), concordando com essamudança da jurisprudência, dizia que ela esta-va de inteiro acordo com o princípio assenteno estrangeiro (França, Suíça, Império Alemão,Itália e alhures).

Por fim, Viveiros de Castro preconizavapara o estatuto dos funcionários públicos, en-tão em processo de elaboração, o estabelecimen-to de disposição que lhes assegurasse o direitoà estabilidade (1914, p. 588).

Até então, algumas legislações dispersasasseguravam estabilidade a certas categorias,como, por exemplo, os empregados do Tesou-ro Nacional, estáveis por força do art. 24 daLei nº 2.083, de 20 de julho de 1909. Foi du-rante a vigência dessa legislação, que assegu-rava o direito à estabilidade de maneira espar-

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Revista de Informação Legislativa192

sa, que Rui Barbosa fez a seguinte observação:“Entre a vitaliciedade e a exonerabi-

lidade ad nutum medeia, por tôda a par-te, a situação dos funcionários, que, nãosendo arbitrariamente nem exoneráveis,nem também vitalícios, podem sofrerdestituição, mas só nas emergências,debaixo das condições, ou mediante asformas na lei previstas e capituladas”(Comentários à Constituição FederalBrasileira, v. 3, p. 235-6, apud TÁCITO,Caio, Repertório enciclopédico do Di-reito brasileiro. Rio de Janeiro : Borsoi,v. 21, p. 9-10: verbete “Estabilidade”.

A preconização de Viveiros de Castro, RuiBarbosa e de outros importantes juristas deentão, no sentido de que fosse assegurada, me-diante preceito de caráter geral, a estabilidadea todos os funcionários públicos, logo viria asurtir efeito. Em 5 de janeiro de 1915, foi pro-mulgada a Lei nº 2.924, cujos artigos 125 a127 estabeleceram que o funcionário ou em-pregado público federal, salvo os em comissão,que contasse 10 ou mais anos de serviço, sempenas disciplinares, somente poderia ser desti-tuído do cargo mediante sentença judicial ouprocesso administrativo. Entretanto, a citadalei ainda era restrita: referia-se tão-somente aofuncionalismo federal, motivo pelo qual o mo-vimento pela estabilidade continuou.

Segundo Araujo Castro (1917, p. 132/137),ele próprio importante precursor do institutono Brasil, havia “entre nós uma grande cor-rente favoravel à adopção da estabilidade dofunccionario, exceptuados unicamente os decargos de confiança”, liderada por Viveiros deCastro, Alcindo Guanabara, Justiniano de Ser-pa, Graccho Cardoso, Moniz Sodré, Camillode Hollanda e outros renomados juristas.

Por fim, esse denominado, por Araujo Cas-tro, Movimento em favor da estabilidade dofunccionario (1917, p. 127) viria a obter êxito.Atentando para a evolução doutrinária no cam-po do serviço público, que propugnava por umanormatização sistemática para o funcionalis-mo público, foi promulgada a Constituição de1934, que, pela primeira vez dedicando todoum título aos funcionários públicos (Título VII,artigos 168 a 173), consolidou, no Brasil, oinstituto da estabilidade no serviço público,conforme o disposto no art. 169:

“Art. 169. Os funcionários públicos,depois de dois anos, quando nomeadosem virtude de concurso de provas, e, emgeral, depois de dez anos de efetivo

exercício, só poderão ser destituídos emvirtude de sentença judiciária ou medi-ante processo administrativo, reguladopor lei, e, no qual lhes será asseguradaplena defesa.

Parágrafo único. Os funcionários quecontarem menos de dez anos de serviçoefetivo não poderão ser destituídos dosseus cargos, senão por justa causa oumotivo de interesse público”.

Percebe-se que, quando adquiriu a força depreceito constitucional, a garantia da estabili-dade no Brasil era então assegurada até mes-mo a funcionários não-concursados, depois dedez anos de exercício do cargo. Os ocupantesde cargos de confiança também não eram ex-cluídos da garantia.

Desde então, a estabilidade no serviço pú-blico sempre constou das constituições brasi-leiras (vide Constituições do Brasil. Brasília :Senado Federal, Subsecretaria de EdiçõesTécnicas, 1986).

A Constituição de 1937 manteve quase amesma redação da sua antecessora, apenas su-primindo o parágrafo único, que somente per-mitia a destituição dos não-estáveis “por justacausa ou motivo de interesse público”. A esta-bilidade, entretanto, continuou sendo assegu-rada aos não concursados com dez anos de ser-viço público:

“Art. 156. O Poder Legislativo orga-nizará o Estatuto dos Funcionários Pú-blicos, obedecendo aos seguintes precei-tos desde já em vigor:

..........................................................c) os funcionários públicos, depois de

dois anos, quando nomeados em virtudede concurso de provas, e, em todos oscasos, depois de dez anos de exercício,só poderão ser exonerados em virtude desentença judiciária ou mediante proces-so administrativo, em que sejam ouvi-dos e possam defender-se;”.

Na ordem constitucional seguinte, a aqui-sição da estabilidade por não-concursados foiainda mais facilitada, com a redução do prazode exercício do cargo para cinco anos, confor-me art. 188 da Constituição de 1946:

“Art. 188. São estáveis:I – depois de dois anos de exercício,

os funcionários efetivos nomeados porconcurso;

II – depois de cinco anos de exercí-

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cio, os funcionários efetivos nomeadossem concurso.

Parágrafo único. O disposto nesteartigo não se aplica aos cargos de confi-ança nem aos que a lei declare de livrenomeação e demissão”.

Com a Constituição de 1967, a estabilida-de passou a ser assegurada exclusivamente aosfuncionários concursados, como expressamenteconstava do § 1º do art. 99:

“Art. 99. São estáveis, após doisanos, os funcionários, quando nomeadospor concurso.

§ 1º Ninguém pode ser efetivado ouadquirir estabilidade, como funcionário,se não prestar concurso público.

§ 2º Extinto o cargo, o funcionárioestável ficará em disponibilidade remu-nerada, com vencimentos integrais, atéo seu obrigatório aproveitamento em car-go equivalente”.

A Constituição de 1969, entretanto, con-forme art. 100, suprimiu a regra expressa cons-tante do § 1º do art. 99 da Constituição anterior:

“Art. 100. Serão estáveis, após doisanos de exercício, os funcionários nome-ados por concurso.

Parágrafo único. Extinto o cargo oudeclarada pelo Poder Executivo a suadesnecessidade, o funcionário estável fi-cará em disponibilidade remunerada,com vencimentos proporcionais ao tem-po de serviço”.

Na vigência da Carta de 1969, em face dasupressão do citado § 1º do art. 99 da Cartaque a antecedeu, havia polêmicas sobre a pos-sibilidade de aquisição da estabilidade por fun-cionários não-concursados, como lembra Ma-noel Gonçalves Ferreira Filho (1990):

“O texto primitivo, promulgado em1967, acrescentava um parágrafo ao ar-tigo correspondente a este (art. 99, § 1º),segundo o qual ninguém pode ‘adquirirestabilidade, como funcionário, se nãoprestar concurso público’. Tal exigênciaera correlativa ao art. 95, § 1º, da mes-ma redação que subordinava a nomea-ção para cargo público à aprovação pré-via em concurso.

Ora, a Emenda nº 1, de 1969, não sósuprimiu esse parágrafo como no art. 97,§ 1º (que equivale ao antigo art. 95, §

1º), permitiu que a lei abrisse exceções àexigência de concurso para nomeaçãopara cargo público. Em vista disso, ca-bia perguntar se o funcionário admitidosem concurso poderia adquirir estabili-dade.

Qualquer dúvida desaparece em facedo texto vigente. Este é bem claro aocondicionar a aquisição da estabilida-de à nomeação ‘em virtude de concursopúblico’” (p. 271 – realçou-se).

De fato, a Constituição de 1988 – salvo asituação transitória prevista no art. 19 do ADCT– é clara ao assegurar a estabilidade apenas aos“servidores nomeados em virtude de concursopúblico”.

Não procede a alegação de que a Constitui-ção em vigor teria previsto uma estabilidade“rígida e generalizada”, como consta do aludi-do artigo do Ministro da Administração.

Ao contrário, o presente texto constitucio-nal é menos abrangente do que os pretéritos:alguns chegavam a assegurar a estabilidade atémesmo a não-concursados e a ocupantes decargos em comissão. Hoje, “não existe contro-vérsia no tocante à absoluta impossibilidade dese conferir estabilidade a ocupante de cargo emcomissão ou função de confiança” (Dallari, op.cit. p. 81).

A Constituição de 1988 limitou-se a asse-gurar a permanência no ordenamento jurídicopátrio de instituto mundialmente consagrado,com contornos menos amplos do que os defini-dos em textos constitucionais anteriores. Cui-da-se de instituto que, ao longo do tempo, for-taleceu-se e hoje está solidamente arraigado naconsciência jurídica nacional e internacional.

6. A estabilidade e os “empregados públicos”Há certa polêmica doutrinária sobre a apli-

cabilidade da garantia prevista no art. 41 daConstituição aos empregados públicos concur-sados.

Antes de enfrentar a questão, é preciso de-finir em que acepção está sendo utilizada, nes-te trabalho, a expressão “empregados públicos”.Trata-se de espécie do gênero “servidor públi-co”. Os servidores públicos podem ser servi-dores públicos civis (os servidores da adminis-tração direta, das autarquias e das fundaçõesde direito público que mantêm com o serviçopúblico vínculo de natureza estatutária) ouempregados públicos (os servidores da admi-

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nistração direta ou indireta regidos pela CLT).Está sendo adotada aqui a classificação de CelsoAntônio Bandeira de Melo (1994 – p. 124).

Pinto Ferreira e Toshio Mukai entendemque a estabilidade do art. 41 da CF alcança osceletistas concursados:

“O novo texto constitucional utilizaa expressão servidores e não funcionári-os (art. 41, caput), como antes o fizeramos arts. 39, caput, §§ 1º e 2º, e 40, ca-put. Tudo leva ao entendimento de queos celetistas, onde houver (segundo o art.39, caput), também são estáveis, após oestágio probatório, quando concursados.Não serão estáveis: os alcançados pelaestabilidade referida, os servidores cele-tistas (de nível federal, estadual ou mu-nicipal) que a nova Lei Magna de 1988encontrar em exercício e que não pres-taram concurso público.

O art. 41, § 1º, restaurando normaexistente em nosso direito público desdelonga data, determina que ‘o servidorpúblico estável só perderá o cargo emvirtude de sentença judiciária transitadaem julgado ou mediante processo admi-nistrativo em que lhe seja asseguradaampla defesa’. Observa Toshio Mukai(Administração pública na Constituição de1988, cit., p. 65) que, portanto, o celetistaestável está abrangido pela norma”.

Sem embargo do respeitável entendimentosupra, os empregados públicos não gozam daestabilidade prevista no art. 41 da CF, que sedirige apenas aos “servidores públicos civis”,ou seja, àqueles da administração direta, au-tárquica e fundacional, sujeitos ao regime es-tatutário. Aos empregados públicos, regidos quesão pela CLT, não é assegurada a estabilidadeconstitucional do art. 41.

O art. 41 da Constituição da República estáinserto na seção que trata dos servidores públi-cos civis (Seção II do Capítulo VII, do TítuloIII), o que é suficiente para levar o intérprete aexcluir de sua incidência os empregados pú-blicos, como entende Diógenes Gasparini(1993):

“A nomeação mediante concurso,para esse fim, é exigência prevista nessedispositivo, encartado entre outros quecuidam dos servidores públicos civis, istoé, os que se vinculam à AdministraçãoPública direta, autárquica e fundacional

pública. Desse modo, resta induvidosoque, mesmo tendo logrado aprovação eclassificação em concurso público, osdemais servidores públicos, como são,por exemplo, os ligados às entidadesgovernamentais (sociedade de economiamista, fundação privada e empresa pú-blica), não adquirem estabilidade” (p.161)

Adilson de Abreu Dallari (1990) tambémentende que o art. 41 em foco se aplica tão-somente aos servidores submetidos ao regimejurídico único (p. 81).

Os servidores das empresas estatais, semdúvida, sujeitam-se à legislação trabalhista, nostermos do § 1º do art. 173 da Constituição Fe-deral:

“§ 1º A empresa pública, a socie-dade de economia mista e outras enti-dades que explorem atividade econô-mica sujeitam-se ao regime jurídicopróprio das empresas privadas, inclu-sive quanto às obrigações trabalhistase tributárias.”

E isso se justifica: as empresas estatais,como exploradoras de atividade econômica,devem ter a mesma agilidade, no que se refereàs suas relações empregatícias, que têm asempresas privadas, às quais se equiparam, sen-do, portanto, adequado o regime celetista. Naadministração direta e autárquica, ao contrá-rio, o regime estatutário, mais rígido, é maisconveniente, não sendo apropriado o regimeda CLT, na medida em que os órgãos e entida-des governamentais de direito público não es-tão no domínio da exploração econômica, masexercem atividade eminentemente estatal.

É certo que, mesmo não sendo estáveis, osempregados públicos não podem ser arbitrari-amente demitidos, pois as chamadas entidadesparaestatais são afetadas pelo regime jurídicoadministrativo, ao qual repugna a prática dequalquer ato arbitrário, desprovido de funda-mentação fática e jurídica, por força dos prin-cípios da legalidade, impessoalidade, morali-dade e publicidade que informam a Adminis-tração Pública (Constituição da República, art.37). O administrador da empresa pública ouda sociedade de economia mista não é seu pro-prietário e, portanto, deve atuar sempre no in-teresse coletivo, jamais segundo seu livre arbí-trio, como leciona Celso Antônio Bandeira deMello (1991):

“(...) Embora não disponham da ga-

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rantia da estabilidade após dois anos,característica do regime de cargo, pró-prio da Administração direta, das autar-quias e das fundações públicas, comoadiante se verá, não podem ser dispen-sados ao bel-prazer dos dirigentes des-tas entidades. Para serem desligados épreciso que haja uma causa de interessepúblico demonstrável” (p. 60).

Sucede que a necessidade de diminuição dequadros numa empresa estatatal (sociedade deeconomia mista ou empresa pública) pode en-sejar a demissão de pessoal, como admite opróprio Celso Antônio Bandeira de Mello(1991): “(...) também caberá desligamento nocaso de política administrativa de redução dequadros, para enxugamento de excesso de pes-soal” (p. 61/62).

À luz da premissa de que não há estabili-dade nas entidades paraestatais, cumpre anali-sar a assertiva do Ministro da Administraçãode que o instituto constitui óbice à propalada“reforma do Estado”.

É notória a orientação política do GovernoFHC no sentido de adotar concepção do Esta-do que o mantenha adstrito às atividades tipi-camente estatais. O que se pretende, quando sefala em “reforma do Estado”, é diminuir o in-tervencionismo estatal na economia. Busca-se“reduzir o tamanho do Estado”, fala-se em “pri-vatização” de empresas estatais. Ainda que oGoverno FHC rejeite o rótulo de “neoliberal”,é manifesto que sua política resgata princípiosdo chamado liberalismo econômico.

Ora, o Estado intervém na economia pormeio de empresas públicas e sociedades de eco-nomia mista, as chamadas genericamente “en-tidades paraestatais” (Meirelles, op.cit. p. 318).“Para as empresas públicas e sociedades de eco-nomia mista foi consignada a finalidade de ex-ploração da atividade econômica” (Mello,C.A.B. 1994, p. 73).

Contudo, de acordo ainda com Celso Antô-nio Bandeira de Mello (1994), “as autarquiassão pessoas de direito público e foram norma-tivamente apontadas (decreto-lei 200) comopredispostas a executar atividades típicas daAdministração Pública”. O mesmo vale paraas fundações públicas, que, segundo o autor,“são pura e simplesmente autarquias” (p. 83).Tais entidades exercem atividades eminente-mente públicas, que não implicam intervençãono domínio econômico.

Pelo visto, não há estabilidade nas entida-

des paraestatais. Somente os servidores públi-cos civis, da administração direta, autárquicae fundacional, gozam de estabilidade. Os em-pregados públicos não têm essa garantia.

Considerando que a reforma do Estado visaa retirá-lo do domínio econômico e na medidaem que o Estado intervém na economia medi-ante empresas públicas e sociedades de econo-mia mista, a estabilidade não constitui “obstá-culo fundamental à reforma do Estado”, poistais entidades podem ser privatizadas, sem queo Estado tenha que manter, em seus quadros,os empregados.

7. A Estabilidade é no “Serviço”,não “no Cargo Público”

A estabilidade também não impede seja feitaampla reforma administrativa na administra-ção direta, autárquica e fundacional pública.

Sem dúvida, o servidor estável não é protegi-do contra a extinção de cargos, pois a estabilida-de é no serviço público , não no cargo público.Extinto o cargo, fica o servidor em disponibili-dade, até ser aproveitado em outra função.

Ademais, estabilidade não se confunde cominamovibilidade:

“A estabilidade é um atributo pesso-al do servidor, enquanto a efetividade éuma característica do provimento de cer-tos cargos. Daí decorre que a estabilida-de não é no cargo mas no serviço públi-co, em qualquer cargo equivalente ao danomeação efetiva. O servidor estávelpode ser removido ou transferido pelaAdministração, segundo as conveniên-cias do serviço, sem qualquer ofensa àsua efetividade e estabilidade. O estávelnão é inamovível. É conservado no cargoenquanto bem servir e convier à Admi-nistração. Nisso se distingue do vitalício,que tem direito ao exercício do cargo, en-quanto existir, conservando as vantagensrespectivas, no caso de extinção” (Meire-lles, op. cit. p. 384 – grifou-se).

No mesmo sentido, Diógenes Gasparini(1993): “A estabilidade não impede a remoçãoou a transferência do servidor para atender asnecessidades do serviço (...) (RT, v. 204, p.218e v.320, p.120)” (p. 166).

O próprio Ministro da Administração, Bres-ser Pereira, no sobredito artigo, reconhece que“não há um excesso generalizado de funcio-

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nários na União”. O que existe é excesso depessoal em determinados setores e carência emoutros. É necessário corrigir essa distorção,remanejando recursos humanos. E esse rema-nejamento é perfeitamente possível, mesmohavendo a estabilidade. A Administração dis-põe de instrumentos aptos a realizar profundareforma administrativa visando ao melhor apro-veitamento do pessoal disponível, quais sejam,os institutos da transferência, da remoção e daredistribuição.

Pode ainda a Administração extinguir oudeclarar desnecessários cargos, colocando osseus ocupantes estáveis em disponibilidade,que, no entender de Adilson Dallari (1990, p.102-103), constitui importante instrumento depolítica administrativa, diante da “necessida-de de alterar situações em que esteja ocorrendodesperdício ou ociosidade, para dirigir essa for-ça de trabalho supérflua para setores onde hou-ver carência”.

Foi visto que a estabilidade não constituióbice à desestatização da economia, na medi-da em que os servidores das entidades paraes-tatais, regidos pela CLT, não são estáveis. Oinstituto em exame também não impede a ex-tinção, fusão ou desmembramento de órgãosda administração direta ou de entidades autár-quicas ou fundacionais públicas, nem que car-gos públicos sejam extintos ou declarados des-necessários, pois os servidores públicos está-veis atingidos por tais medidas podem ser trans-feridos, removidos ou postos em disponibili-dade, até serem adequadamente aproveitadosem outros cargos.

8. O princípio do informalismo doprocesso administrativo

O fato de a estabilidade vedar a demissãodo servidor sem processo administrativo nãoconstitui “garantia absoluta” de permanênciano cargo. Estabilidade não se confunde comimpunidade.

O processo administrativo – que se carac-teriza por certa simplicidade, regido que é peloprincípio do informalismo – não constitui obstá-culo insuperável à demissão do servidor faltoso.Trata-se do mínimo de garantia assegurada aoservidor público contra a demissão arbitrária.Desde que seja assegurado o direito à ampla de-fesa, o processo disciplinar dispensa maiores for-malidades e pode tramitar celeremente.

A esse respeito, veja-se o seguinte ensina-mento de Hely Lopes Meirelles (1993):

“O processo administrativo discipli-nar não é tão formal quanto o judicial,penal ou não, nem tão rigoroso no con-traditório. O essencial é que se concedaao acusado a oportunidade de ilidir a acu-sação, sem o quê a punição administrati-va é nula, por afrontar uma garantia cons-titucional (art. 41, § 1º) (...)” (p. 391).

É certo que esse informalismo jamais podecomprometer o direito à ampla defesa que aConstituição assegura aos indivíduos. Admitira demissão de servidor público sem que lhe sejaassegurado o direito de defesa seria a consoli-dação do arbítrio. O due process of law é prin-cípio fundamental do direito processual, apli-cável ao processo administrativo.

José Cretella Júnior salienta que “a defesaé instituto do direito natural” (1991, p. 2.441).Não se concebe a possibilidade de demissão doservidor público sem o direito de defesa.

Contudo, isso não pode significar o emper-ramento da atividade disciplinar da Adminis-tração. O direito de defesa não implica infin-dáveis e morosos formalismos processuais queterminem por inviabilizar o ato demissório.

Desde que seja assegurada ampla defesa aoacusado e respeitadas as normas jurídicas per-tinentes, ainda que o processo tramite de ma-neira célere, a singeleza procedimental nãonulifica a demissão do servidor faltoso, por issoque no processo administrativo vige o princí-pio do informalismo.

9. Classificação dos servidores públicosquanto à garantia de permanência no

serviço públicoImpende seja concebida classificação quan-

to à estabilidade que contemple todas as espé-cies de servidores públicos, com a atribuiçãode um nome para cada categoria taxonômicaque designe todos os servidores nela enquadra-dos. Propõe-se, então, que os servidores públi-cos (i.é, os servidores públicos civis e os em-pregados públicos), quanto à intensidade dovínculo com o serviço público, sejam assimclassificados, em ordem crescente:

1. Instáveis: são os servidores públicos de-missíveis “ad nutum”, i.é, os ocupantes de car-gos em comissão, funções gratificadas ou deconfiança, que podem ser exonerados discrici-onariamente, e os empregados públicos con-

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tratados por prazo determinado, nos termosdo art. 37, IX, da Constituição, para atendernecessidade temporária de excepcional interes-se público, uma vez vencido o prazo contratual.Os servidores instáveis não têm nenhuma ga-rantia de permanência no serviço público.

2. Infra-estáveis: categoria intermediária,os infra-estáveis, embora não gozem da estabi-lidade do art. 41 da Constituição Federal, nãopodem ser desligados do serviço público senãopor ato devidamente motivado. São eles:

a) os servidores públicos civis emestágio probatório, que podem ser exo-nerados por conveniência da Adminis-tração desde que comprovadamente nãosatisfaçam as condições necessárias aoexercício do cargo;

b) os empregados públicos contrata-dos por prazo indeterminado, que, embo-ra não disponham da garantia da estabili-dade, “para serem desligados é preciso quehaja uma causa de interesse público de-monstrável” (Mello, C.A.B., 1991, p. 60).

3. Estáveis: os que tenham adquirido a es-tabilidade na forma do art. 41 da ConstituiçãoFederal ou do art. 19 do ADCT, que podem serdemitidos mediante processo judicial ou admi-nistrativo e cuja permanência é assegurada nãono cargo, mas no serviço público. Podem serremovidos ou transferidos.

4. Superestáveis: ou vitalícios. A garantiadesses servidores de permanência no serviçopúblico é superior à dos estáveis. Só podem serdemitidos por processo judicial. A Constitui-ção vigente concede vitaliciedade aos Magis-trados (art. 95, I), aos Ministros e Conselhei-ros dos Tribunais de Contas (art. 73, § 3º) e aosmembros do Ministério Público (art. 128, § 5º,I, a). Tais servidores são também inamovíveis,i.é, não podem ser removidos, salvo interessepúblico, e se forem atendidas certas condições(CF, arts. 93, VIII, 128, § 5º, I, b, e 73, § 3º).

Nota-se, portanto, que não há a alegada “es-tabilidade indiscriminada para todos os funci-onários”, como consta do predito artigo do Mi-nistro da Administração. O que existe é umagradação da garantia de permanência no ser-viço público, variável de acordo com a espéciede servidor.

10. Demissões em razão de excesso de pessoalSegundo a proposta do Governo, havendo

evidente excesso de pessoal, o servidor público

poderia vir a ser demitido.Ocorre que, “não há um excesso generali-

zado de funcionários na União”, como afirmao próprio Ministro da Administração. A afir-mativa é confirmada por Augusto Carvalho(1995), que noticia:

“Importante órgão internacional re-centemente produziu um estudo provan-do que muitos países, incluindo váriosbem mais desenvolvidos que o Brasil,têm funcionários públicos em quantida-de maior que a nossa, tanto em relaçãoao PIB, como em relação à população”.

De fato, consta do estudo realizado porDonald C. Rowat (1990), intitulado Compa-ring bureaucracies in developed and develo-ping countries: a statistical analysis, que onúmero de empregos públicos em relação àpopulação é muito maior nos países desenvol-vidos do que nos em desenvolvimento. Naque-les, a média é de 6,4 empregados públicos paracada 100 habitantes, enquanto que nestes essamédia cai para 2,6. Na Suécia, por exemplo, amédia chega a atingir 15 empregados públicospara cada 100 habitantes. Afirma Donald C.Rowat:

“We already know that the numberof public employees in relation to popu-lation is higher for the wealthy develo-ped countries. Our comparison showsthat this is also generally true for thewealthier developing countries”.

Todavia, ainda que se admita a existênciado problema do excesso de servidores públicosno Brasil, a estabilidade não constitui óbice àsua solução. O número de servidores públicosfederais que se aposentam ou se exoneram porano chega a 20 mil (como atesta o próprio mi-nistro). Basta, portanto, suspender a realiza-ção de concursos públicos para que a quanti-dade de servidores seja naturalmente reduzi-da, sem a necessidade de demissões, como de-fende o deputado federal Augusto Carvalho(1995):

“Estudo recente da SAF, conduzidopelo insuspeito Romildo Canhim, provaque as reduções no total de funcionáriospor aposentadoria, morte e demissõesvoluntárias alcançam de 30% a 40% acada três anos. Um dado espantoso, poisprova que a simples não-contrataçãoabre um enorme espaço de ajustes nofuncionalismo, sem traumas e sem re-médios heróicos” (destacou-se).

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Não obstante, mesmo que as aposentadori-as, mortes e exonerações a pedido não resol-vessem o problema da superlotação, há outrosmeios aptos a corrigir essa distorção no servi-ço público, sem a necessidade de qualquer al-teração no instituto da estabilidade.

Pode a Administração extinguir cargos,exonerando os servidores que ainda não tenhamcompletado o período de aquisição da estabili-dade (“O estágio probatório não protege o fun-cionário contra a extinção do cargo.” – Súmu-la 22 do STF) e colocando os estáveis em dis-ponibilidade até seu adequado aproveitamentoem outro cargo (CF, art. 41, § 3º).

A Administração pode ainda transferir, re-mover ou redistribuir servidores, medidas quetambém podem ajudar a solucionar a superlo-tação, pois é incontroverso que, enquanto hásobra de pessoal em certas áreas do serviçopúblico, em outras, o problema é a falta.

11. Instrumentos de disciplina administrativaAfirma também o ministro articulista que

“não é possível haver uma administração pú-blica eficiente e moderna quando seus dirigen-tes não têm condições de exigir que o trabalhoseja executado com competência e disposição”.

Constitui dever do servidor público “exer-cer com zelo e dedicação as atribuições do car-go”, entre outros arrolados no art. 116 da Leinº 8.112/90.

A Administração dispõe de amplo leque depenalidades aplicáveis aos servidores que dei-xam de cumprir seus deveres funcionais, con-forme o rol do art. 127 do Regime JurídicoÚnico – RJU, quais sejam: (I) a advertência;(II) a suspensão; (III) a demissão e a cassaçãode aposentadoria ou disponibilidade; (IV) adestituição de cargo em comissão e (V) a desti-tuição de função comissionada.

O funcionário que não cumpre suas obriga-ções pode até mesmo ser considerado desidio-so e, portanto, demitido do serviço público(RJU, art. 132, XIII, c/c art. 117, XV).

Além disso, como afirma Wellington Ca-bral Silva (cit.), “a Constituição e as leis nãoimpedem a demissão de servidores públicos,como se tem dito mentirosamente. Na órbitafederal, a lei do Regime Jurídico Único autori-za demitir em nada menos de que vinte hipóte-ses, que remetem a muitas outras mais”.

Evidente que os administradores têm, sim,“condições de exigir que o trabalho seja execu-

tado com competência e disposição”, na medi-da em que podem aplicar penalidades aos mausservidores, e até demiti-los, mesmo com o atualregime de estabilidade.

12. ConclusãoA estabilidade constitui a garantia do ser-

vidor público contra a demissão arbitrária. Pre-dispõe-se muito mais à salvaguarda do interes-se público do que à proteção do interesse pes-soal do próprio servidor. A permanência noserviço público do bom servidor, que cumpresuas obrigações com dedicação e denodo e, nãoraras vezes, contraria interesses ilegítimos deseus superiores, aproveita sobretudo à coletivi-dade. Já o interesse pessoal do mau servidor,desidioso ou irresponsável, de permanecer noserviço público, esse a estabilidade não prote-ge: pode ser demitido mediante processo ad-ministrativo disciplinar ou processo judicial.

O servidor desprovido dessa garantia fica-ria à mercê do administrador, que poderia de-miti-lo sem lhe assegurar o direito de defesa,por mera “conveniência administrativa”. Aestabilidade cumpre a dupla finalidade de asse-gurar (a) a independência funcional ao servidore (b) a continuidade do serviço público, que po-deriam ser gravemente ameaçadas se a sorte doservidor estivesse ao alvedrio dos governantes.

A estabilidade nem é criação brasileira(existe em diversos países, com maior ou me-nor grau, mas sempre garantindo a permanên-cia do servidor no serviço público), nem é no-vidade no ordenamento jurídico pátrio (desdeo império, tem-se conhecimento de legislaçõesesparsas que a asseguravam a certas categori-as, sendo que, a partir de 1934, foi erigida aostatus de garantia constitucional do servidorpúblico).

O Brasil não adota “estabilidade indiscri-minada para todos os funcionários”, como afir-ma o Ministro da Administração. Ao contrá-rio, quanto à garantia de permanência no ser-viço público, os servidores são classificados emquatro níveis distintos, aqui denominados ins-tabilidade, infra-estabilidade, estabilidade esuperestabilidade.

É, no mínimo, exagero dizer que a estabili-dade constitui obstáculo à reforma do Estado.Por um lado, onde essa reforma visa a reduzira intervenção do Estado na economia, i.é, nasentidades paraestatais (sociedades de economiamista, empresas públicas e fundações de direito

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privado instituídas pelo Estado), não há fa-lar em estabilidade, pois seus servidores nãodesfrutam dessa garantia. Por outro, na ad-ministração direta, autárquica e fundacionalpública, há importantes instrumentos ade-quados à realização da almejada reforma ad-ministrativa: a estabilidade não impede aremoção, a transferência, a redistribuição depessoal, nem a extinção e a declaração dedesnecessidade de cargos.

A instabilidade do servidor público, aforaas situações dos ocupantes de cargos em co-missão e dos estagiários, não se coaduna comos princípios que norteiam o regime jurídicoadministrativo. No Estado Democrático de Di-reito – onde a supremacia do interesse públicosobre o privado e a indisponibilidade, pelaAdministração, dos interesses públicos consti-tuem as “pedras de toque” do regime jurídicoadministrativo (Mello, C.A.B., 1994, p. 16) –,a estabilidade do servidor público é consectá-rio lógico inafastável.

Vale dizer: não se pode instituir, na Ad-ministração Pública, regime jurídico de pes-soal próprio das empresas privadas, onde oempregador demite o empregado quandobem entender, desde que assegure seus di-reitos trabalhistas. Tamanha liberdade seriaincompatível com os princípios que infor-mam o Direito Administrativo, como asse-vera Celso Antônio Bandeira de Mello(1994): “Em suma, o necessário – parece-nos – é encarecer que na administração osbens e os interesses não se acham entreguesà livre disposição da vontade do adminis-trador” (p. 23).

Com razão a Ordem dos Advogados doBrasil ao adotar posição contrária à Propos-ta de Emenda Constitucional nº 173/95, quemodifica o Capítulo da Administração Pú-blica. Aprovando parecer da ilustre Profes-sora Cármen Lúcia Antunes Rocha, a OABalerta que, “tal como as garantias da magis-tratura, a estabilidade tem como escopo con-ferir independência ao servidor. Livre doreceio da perda do emprego, o servidor de-sempenhará suas funções sem a preocupa-ção de agradar e sem o medo de desagradaraos que estão transitoriamente no poder”(cit., p. 198).

Com base nos fundamentos acima adu-zidos, força é concluir pela não-alteração doart. 41 da Constituição da República.

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1. Obrigações de dar

1.1. Conceito

Segundo Orosimbo Nonato, a obrigação dedar “tem por objeto a entrega de uma coisa aocredor para que este adquira sobre a mesmaum direito”1.

O Código Civil argentino assim a definiuno artigo 574:

A execução das obrigações de dar, fazere não fazer no direito brasileiro e nodireito comparado

Dilvanir José da Costa é Professor de DireitoCivil nos cursos de graduação e pós-graduação daFaculdade de Direito da UFMG, Doutor em DireitoCivil e Advogado.

DILVANIR JOSÉ DA COSTA

1. Obrigações de dar. 1.1. Conceito. 1.2. Formasde execução. 1.3. A polêmica da execução diretanas obrigações de dar. 1.4. Conclusões. 1.5. Teoriados riscos: obrigações de dar e de restituir. Coisaincerta. 2. Obrigações de fazer e não fazer. 2.1.Conceito. 2.2. Interesse da distinção entreobrigações de dar e de fazer: a forma de execução.2.3. Regras de execução. 2.4. Obrigações de emitirdeclaração de vontade. 2.5. Contrato preliminar.2.6. Promessa de compra e venda de imóveisloteados ou não. 2.7. Adjudicação ou outorga inde-pendente de registro do compromisso. 2.8. Outrospré-contratos imobiliários. 2.9. Obrigações de nãofazer. Impossibilidade da prestação: efeito. Práticado ato: desfazimento ou conversão em perdas edanos. 3. Regime das multas ou penas pecuniárias.3.1. Disciplina processual. 3.2. Comentário de J.J.Calmon de Passos. 3.3. A teoria das “astreintes”no direito francês. O parecer de Louis Josserand.3.4. Comentário de Alcides de Mendonça Lima. 3.5.Jurisprudência. A Lei nº 8.953/94. 3.6 A multa “exofficio” na ação civil pública 3.7. A tutela específicana Lei de Defesa do Consumidor. 3.8. A novaredação do artigo 461 do CPC. 4. A execução nosJuizados Especiais Cíveis: a “astreinte” na obri-gação de dar. 5. Conclusões.

SUMÁRIO

1 NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações.Rio de Janeiro : Forense, 1959. v. 1, p. 287.

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Revista de Informação Legislativa202

“La obligación de dar es la que tienepor objeto la entrega de una cosa muebleo inmueble, con el fin de constituir sobreella derechos reales, o de transferirsolamente el uso o la tenencia, o derestituirla a su dueño.”

Constituem exemplos clássicos de obrigaçãode dar ou entregar: a) para instituir sobre a coisaum direito real: compra e venda; b) para trans-ferir somente o uso: locação; c) e de restitui-laao respectivo dono: empréstimo, depósito.

1.2. Formas de execução

A obrigação de dar comporta execuçãodireta ou específica ou mediante a própria coisaobjeto da mesma, sobretudo a de restituir, emque o credor tem seqüela sobre o objeto, quelhe pertence. Mas, mesmo na obrigação de darou entregar (para uso ou para constituição dedireito real), prevalece a regra da execuçãodireta, salvo se o objeto não mais se achar empoder do devedor, especialmente em virtude devínculo real. Contra o terceiro adquirente nãoprevalece a execução, eis que o contrato é resinter alios acta. Nessa hipótese, a execução se-ria indireta ou pelo substitutivo da res debita,mediante a resolução da obrigação com perdase danos.

1.3. A polêmica da execução diretanas obrigações de dar

Mesmo quando o objeto se ache na possedo devedor, há uma corrente doutrinária quenão admite a execução direta por meio daapreensão da coisa em poder do devedor, paraentrega ao credor e constituição do direito realem favor deste. Só teria busca e apreensão otitular de direito real sobre a coisa. Recusan-do-se o devedor a entregar a coisa em seu poder,em cumprimento da obrigação, esta resolver-se-ia em perdas e danos, com base na distinçãotécnica entre direito real e obrigacional.

A propósito, J.M. Antunes Varela assimexpõe:

“Dentro da vasta categoria das pres-tações de coisa, há que distinguir entreas obrigações de dar e as obrigações deentregar a coisa.

Nas obrigações de dar, a prestação doobrigado é essencial à constituição outransferência do direito (real) sobre acoisa. São os casos em que o credor temdireito à coisa (jus ad rem), mas a aqui-

sição do direito depende da prestação(tradição) a cargo do obrigado. Assim su-cede com o vendedor ou o doador de coi-sa móvel, que ficam obrigados a transfe-rir o domínio da coisa vendida ou doada,mas continuam donos dela enquanto nãorealizam o ato posterior da entrega (art.868).

Nas obrigações de entrega da coisa,a prestação da coisa não se destina atransferir o seu domínio ou a constituirqualquer outro direito (real) sobre ela.Visa apenas proporcionar o uso, fruiçãoou posse direta da coisa, a que o credortem direito. É o caso típico da obrigaçãode restituir, que incide sobre o comoda-tário ou o depositário.

A distinção tem uma importânciacapital. É que a possibilidade de busca eapreensão judicial da coisa e a suaconseqüente entrega pelo tribunal aocredor (previstas no art. 625 do CPC,como momento culminante da chamadaexecução para entrega de coisa certa) sótêm cabimento quanto às obrigações deentrega da coisa. Nestas, se o devedornão cumprir e o credor requerer a reali-zação coativa da prestação, o tribunalpode, realmente, apreender a coisa nopatrimônio do executado e fazer a entregadela ao exeqüente, substituindo-se aodevedor faltoso.

Tratando-se de obrigação de dar, asubstituição do devedor pelo tribunal, nostermos previstos pelo artigo 625 do CPC,já não é possível. O sistema jurídicobrasileiro repudiou deliberadamente aconcepção do Código napoleônico, queatribui eficácia real aos contratos dealienação de coisa determinada. Preferiu,até certo ponto, o sistema romanista, quedesdobra a transferência de domíniosobre a coisa numa dupla operação. E asegunda operação – a tradição, no casodas coisas móveis – depende ainda, comoato jurídico do obrigado, da vontadedeste”2.

Contra essa doutrina argumentam outrosjuristas que:

“O princípio dominador no direitomoderno é outro: tem o credor direito à

2 VARELA, J.M. Antunes. Direito das Obri-gações. Rio de Janeiro : Forense, 1977. v. 1, n. 24,p. 75-77.

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prestação mesma prometida, à coisa oufato prometido”3.

“A forma específica e direta constituia execução normal e ideal”4.

“O devedor de cousa, estando deposse dela, deve ser compelido a entre-gá-la por força física (manu militari)”(Lacerda de Almeida)

“Elle s`execute ponctuallement par ladelivrance même de la chose et ledebiteur ne peut offrir en place desdommages et intérêts.” (Larombière)

“O sujeito passivo de uma obligatiodandi pode ser compelido a entregá-lamanu militari (Orosimbo Nonato)”5.

Mais incisivo é Humberto Theodoro Júnior(civilista e processualista):

“A garantia de execução forçada paraa obrigação deve assegurar, sempre quepossível, o mesmo bem jurídico que ocredor obteria com a execução volun-tária, ou seja, com o adimplemento pelodevedor. Somente quando tal não forpossível é que a execução específica serásubstituída pela execução subsidiária dasperdas e danos.

No entanto, há quem só admite a exe-cução específica no caso dos direitosreais, ficando o credor sujeito apenas àexecução de perdas e danos quando odevedor não cumpre a obrigação de dar,porque, antes da tradição, não lhecaberia, ainda, direito à coisa, porque odomínio não se transfere apenas pelocontrato. Há nisso, todavia, um equívoco.Não é o direito real que impõe ao devedoragir, perante o credor, exatamente nostermos da obrigação daquele e do direitodeste. Entre devedor e credor, a obrigaçãoé vínculo jurídico suficiente para forçaro pagamento exatamente nos termos emque se estabeleceu entre as partes. E opatrimônio do devedor não é a garantiadas perdas e danos pelo inadimplemento.É a garantia de que o credor receberá,com intervenção da soberania estatal, oque é devido.

O direito real confere ao titular umadominação direta sobre a coisa oponívelerga omnes, de maneira que pode perse-

gui-la e recuperá-la de quem quer que adetenha de maneira injusta. O titular dedireito de crédito não tem poder similar,ou seja, não pode perseguir a coisa devidafora do patrimônio do devedor. Dentro,porém, do patrimônio que responde peladívida, claro é que o vínculo obrigacionaloutorga ao credor o direito de exigir exa-tamente a coisa que lhe deve o devedor.Para isso, não depende de direito real;basta-lhe o direito obrigacional.

Se o bem devido ainda se encontrano patrimônio do devedor, não temsentido recusar-se a execução forçadaespecífica para impor ao credor apenasas perdas e danos. É que pelo cumpri-mento das obrigações responde o patri-mônio do devedor. Assim, chegar-se-iaao absurdo de negar a entrega da coisain natura, mas não se teria como impedirsua penhora para vendê-la em arrema-tação, para, com o produto apurado,proceder-se ao pagamento das perdas edanos. Ora, se a coisa devida pode serobjeto de realização da execução subsi-diária, não há como deixar de reconhe-cer-lhe a aptidão para a execuçãoespecífica, que é a natural e lógicaconseqüência do vínculo obrigacional.Se, enfim, o devedor não pode impor oadimplemento voluntário, por via decoisa diversa da que deve ao credor(Código Civil, art. 863), como admitirque, incorrendo em mora e subme-tendo-se à sanção do processo executivoforçado, venha a beneficiar-se dacompulsória troca de objeto da obrigação?(Sobre o tema, consultar THEODOROJÚNIOR, Humberto. O contrato e seusprincípios. Rio de Janeiro : Aide, 1993.p. 209-215)”6.

1.4. Conclusões

A obrigação de dar ou entregar, seja paraconstituição de direito real ou para permitir aocredor o uso da coisa, pode ser executadacoativamente de forma direta, específica oumediante a própria res debita, desde que a coisase ache em poder do devedor, ou seja, desdeque não interfira um terceiro de boa-fé numarelação nova com o mesmo objeto (adquirente,locatário ou similar), contra o qual não

3 NONATO, op. cit. p. 296.4 ANDRADE apud NONATO, op. cit. p. 298.5 OLIVEIRA, Gonçalves de. Trecho do voto no

RE 61.068-SP, base da Súmula 500 do STF (RTJ, n.43, p. 263).

6 GOMES, Orlando. Obrigações. 11. ed. rev.e atual. por Humberto Theodoro Júnior. Rio deJaneiro : Forense, 1996, n. 15, p. 20-21.

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prevaleça a obrigação entre as partes, em razãodo princípio da relatividade dos contratos (art.625 do CPC).

A obrigação de restituir comporta execuçãocoativa específica com maior razão, admitindoa busca e apreensão ou outra ação real contraterceiros possuidores, em razão do vínculo realdo credor à coisa (direito de seqüela).

A coisa objeto da obrigação, por sua auto-nomia em relação à pessoa do devedor, podeser apreendida sem ofensa à liberdade indivi-dual do mesmo e entregue ao credor, inclusivemanu militari.

Somente em caso de perda ou outra formade impossibilidade da prestação específica ouinterferência de direito de terceiro é que seabrirá ensejo à substituição da coisa pelo seu equi-valente (id quod interest) (art. 627 do CPC).

A obrigação de restituir pode achar-seamparada por lei especial de ordem pública,destinada a proteger certos contratos de massa,a exemplo da Lei do Inquilinato, que regula osrequisitos e a forma de devolução do imóvellocado.

A propósito da execução da obrigação dedar ou entregar, assim decidiu o SuperiorTribunal de Justiça:

“Admissível que a execução paraentrega de coisa fungível (sacas de soja),submetida à disciplina prevista nos arts.621 usque 628 do estatuto processual,seja fundada em título extrajudicial (art.585, II, do mesmo diploma)” (REsp. nº52.052-5-RS, Rel. Min. Sálvio deFigueiredo. j. 10.10.94)7.

1.5. Teoria dos riscos: obrigações de dare de restituir. Coisa incerta

Ao regular a perda, a deterioração, osmelhoramentos e os frutos da coisa, naobrigação de dar e na de restituir, o CódigoCivil leva em conta o princípio res peritdomino. Na transição entre a formação e aexecução da obrigação de dar (entregar ourestituir), a coisa perece ou se deteriora ou sevaloriza para o seu dono, sofrendo ele os riscosde sua perda ou deterioração e auferindo asvantagens de seu incremento.

Como, em nosso direito, o domínio só setransfere ao adquirente com a tradição da coisa,

daí resultam as seguintes conseqüências:1) na obrigação de transferir o domínio (dar

ou entregar), antes da tradição, a coisa pertenceao devedor, que até então suporta a sua perdaou deterioração por caso fortuito ou força maior,assim como se beneficia com os seus incrementos(arts. 865 a 868);

2) na obrigação de restituir ocorre o inverso:a coisa pertence ao credor, que assume os riscosde sua perda ou deterioração sem culpa dodevedor, até a tradição ou devolução, assimcomo lucra com os seus melhoramentos espon-tâneos (arts. 869 a 872).

Coisa incerta. A coisa incerta ou determi-nável há de ser genérica ou alternativa.Vigoram as seguintes regras a respeito:

a) determina-se pela escolha ou concen-tração;

b) a escolha compete ao devedor, salvoestipulação em contrário;

c) as coisas genéricas se concentram pelamédia: nem as melhores nem as piores;

d) antes da escolha, o devedor não poderáalegar perda ou deterioração por caso fortuitoou força maior: genus non perit;

e) feita a escolha, a obrigação se rege pelasnormas da obrigação de dar coisa certa.

2. Obrigações de fazer e não fazer

2.1. Conceito

“As obrigações de fazer têm por objeto umou mais atos do devedor, quaisquer atos, de foraparte a entrega de uma coisa.”

Abrange, assim, e em toda a sua extensão,a obligatio faciendi e parte das obrigaçõesproestandi do direito romano.

O objeto da obrigação de não fazer é umato negativo, uma abstenção do devedor.

Não recebia nome especial no direitoromano, confundida às vezes com a obligatiofaciendi e outras com a obligatio proestandi.

Tais, em abreviado, as linhas traçadas porGiorgio Giorgi para definir os limites dessaclassificação.

Confessam os D.D. que, assaz vezes, essaslinhas se tornam confusas ou se delgaçam,principalmente no tocante à distinção entre dare fazer.

7 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O STJ e oprocesso civil. Brasília Jurídica, 1995. art. 621,p. 433.

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Lacerda de Almeida assinala ser dificílimoencontrar, assim no direito romano como nopátrio, o critério seguro e infalível da distinçãoque, entretanto, a essa conta não deve serrelegada.8

“O substractum da diferenciação entre aobrigação de dar e fazer está em verificar seo dar ou o entregar é ou não conseqüênciado fazer. Assim, se o devedor tem de dar oude entregar alguma coisa, não tendo, porém,de fazê-la previamente, a obrigação é de dar;todavia, se, primeiramente, tem ele de confec-cionar a coisa para depois entregá-la, se temele de realizar algum ato, do qual ser merocorolário o de dar, tecnicamente a obrigação éde fazer.”9 Os exemplos típicos seriam: oquadro do pintor já exposto à venda nagaleria (dar) e aquele encomendado para serexecutado (fazer).

2.2. Interesse da distinção entre obrigaçõesde dar e de fazer: a forma de execução

No ensinamento de Lacerda de Almeida:“A distinção entre essas duas classes deprestações tem o seguinte alcance prático. Aopasso que, em regra, o devedor de fato se deso-nera pagando perdas e danos resultantes dainexecução, o devedor de cousa, estando deposse dela, deve ser compelido a entregá-la porforça física (manu militari).” Do mesmo modo,Larombière: “Ce que caractérise surtoutl’obligation de faire c’est son mode d’execution.À la différence de l’obligation de faire ou dene pas faire, qui se résout à défaut d’exécution,en dommages et intérêts (art. 1.142), elle recoitune exécution littérale et complète. Elles’exécute ponctuallement par la delivrancemême de la chose et le debiteur ne peut offriren place des dommages et intérêts. De mêmeen effer qu’il est dans l’obligation de livrer lachose, le créancier est en droit de l’exiger.”Também Orosimbo Nonato: “O alcance dadivisão residiria, na versão mais corrente, nadiversidade da execução: o devedor inadimplentede um fato se desonera com o satisfazer perdase danos, ao passo que o sujeito passivo de umaobligatio dandi pode ser compelido a entregá-lamanu militari”10.

2.3. Regras de execução

Obrigações “intuitu personae”. Se, pelaconvenção ou pelas circunstâncias, o ato devaser praticado pelo próprio devedor, o credor nãoé obrigado a aceitar a prestação de terceiro(CCB, art 878). Como no exemplo da enco-menda de um quadro a um pintor de renome.

Prestação infungível. Por outro lado, se aprestação é infungível e só o devedor poderealizá-la, não se pode obrigá-lo ao cumpri-mento manu militari. “Uma sociedade bemorganizada – lê-se no Programa de TitoFulgêncio – não permite violência à pessoa dodevedor para que faça o que não quer fazer.Sagrada é a liberdade pessoal e não se lhe toleraviolação por negócio meramente financeiro”11.

Vigora, na obrigação de fazer, o princípionemo cogi potest ad factum praecise. Havendorecusa do devedor, não se pode exigir dele aprestação pessoal por meio de coação física oucorporal. Resolve-se pela conversão da presta-ção em perdas e danos (CCB, art. 880; Projetode Cod. Civil, art. 247; CPC, art. 638 eparágrafo).

Prestação fungível: execução por terceiroou opção por perdas e danos. Podendo ocumprimento da obrigação de fazer ser reali-zado por terceiro e, portanto, sem ofensa àliberdade do devedor, o juiz pode determinar aexecução por outrem à custa do devedor inadim-plente (CPC, arts. 633-637). Poderá o credoroptar pela conversão em perdas e danos ou exe-cução indireta ou por substitutivo (CCB, art.881; Projeto de Cód. Civil, art 249). É a hipó-tese de prestação fungível.

Impossibilidade da prestação. Impossibi-litando-se a prestação sem culpa do devedor,extingue-se a obrigação de fazer: ad impossi-bilia nemo tenetur. As partes voltam ao statusquo ante (CCB, art. 879; Projeto de Cód. Civil,art. 248).

2.4. Obrigações de emitirdeclaração de vontade

Tratando-se de obrigação de emitir decla-ração de vontade, a sentença produzirá osmesmos efeitos, substituindo a vontade rebeldesem constrangimento físico ou ofensa à liber-dade corporal do devedor. (CPC, art. 641). Asentença é um ato jurídico por excelência.

8 NONATO, op. cit. p. 287-288.9 MONTEIRO, Washington Barros. Curso de

Direito Civil : Direito das Obrigações. São Paulo :Saraiva, v. 1, p. 87.

10 OLIVEIRA, op. cit. 11 NONATO, op. cit. p. 295.

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2.5. Contrato preliminar

O contrato preliminar constitui aplicaçãoda obrigação ampla de emitir declaração devontade. A sentença produzirá os mesmosefeitos do contrato definitivo, atendidos osrequisitos essenciais deste (CPC, art. 639;Projeto de Cód Civil, arts. 462-465).

Se o compromisso for de transferência depropriedade de coisa ou direito, o credor deveráoferecer a contraprestação exigível, comocondição da ação (CPC, art. 640).

2.6. Promessa de compra e vendade imóveis loteados ou não

Imóveis loteados. A promessa específica decompra e venda de imóveis loteados se regebasicamente pelo Decreto-Lei nº 58/37.

Cabe ação de adjudicação compulsória dolote, para cumprimento da obrigação deoutorgar a escritura definitiva, produzindo asentença o mesmo efeito desta, para fins deregistro no cadastro imobiliário (art. 16 do DL58/37). “É inadmissível o arrependimento docompromisso de compra e venda sujeito aoregime do Decreto-Lei nº 58/37” (Súmula 166do STF).

Imóveis não-loteados. A propósito, aSúmula 413 do STF tem o seguinte enunciado:“O compromisso de compra e venda de imó-veis, ainda que não loteados, dá direito àexecução compulsória, quando reunidos osrequisitos legais” (a exemplo da outorga uxóriado promitente, da ausência de cláusula dearrependimento e do próprio registro do imóvelem nome do promitente). A Súmula tevesuporte nos artigos 346 e 1.006 do CPC/39,correspondentes aos artigos 639 e 640 do CPCatual e ao artigo 22 do DL 58/37, em sua novaredação.

“Só se aplica o artigo 639 do CPC se ocontrato preliminar contiver todos os elementose pressupostos para que se converta em defini-tivo” (RTJ, n. 92, p. 250).

“A promessa de compra e venda firmadasó pelo marido não é nula. Resolve-se em per-das e danos, se não cumprida” (STJ. REsp36.413-2-SP. Rel. Ministro Eduardo Ribeiro.DJU, 27-9-93).

2.7. Adjudicação ou outorga independente deregistro do compromisso

O Superior Tribunal de Justiça evoluiu no

sentido de desprezar o requisito da inscriçãodo compromisso no registro imobiliário. Oessencial é que o imóvel esteja registrado emnome do compromitente. Diante disso, ocompromisso sem cláusula de arrependimento(que enfraquece a obrigação, tornando-acondicional) e com a necessária outorga uxória,se for o caso, pode ter execução específica pormeio de sentença. Eis como vem decidindo o STJ:

“A adjudicação compulsória inde-pende de inscrição do compromisso decompra e venda no registro imobiliário.A promessa de venda gera efeitos obri-gacionais. O direito à adjudicação com-pulsória é de caráter pessoal, restrito aoscontratantes.” (RSTJ, n. 3, p. 1.043, n.25, p. 465, n. 29, p. 356, n. 42, p. 407,contrariando a Súmula 167 do STF).

“À falta do registro do compromisso,a ação cabível é a do artigo 639 do CPC”(RSTJ, n. 28, p. 419; RT, n. 617, p. 82,n. 619, p. 100, n. 630, p. 113; JTA, n.104, p. 57, n. 118, p. 140, n. 143, p. 32).

Assim decidindo, o colendo STJ consagroudois princípios: 1) o de que a obrigação deemitir declaração de vontade, praticar ato jurí-dico ou outorgar contrato definitivo pode serexecutada por sentença, ato jurídico por exce-lência, sem ofensa à liberdade corporal dodevedor; 2) o de que a obrigação de constituirdireito real independe da existência de direitoreal de aquisição ou compromisso registradoem nome do credor (seqüela adjudicatória),bastando que o devedor seja titular da disponi-bilidade do direito real prometido. A inscriçãoda promessa no registro imobiliário só é indis-pensável para prevenir a transferência do direitoreal a terceiro, frustrando a execução específicado compromisso. E mais: a sentença apenastransforma a obrigação de contratar em contratodefinitivo, substituindo a vontade rebelde. Atranscrição da sentença no registro imobiliárioé que gera o direito real.

2.8. Outros pré-contratos imobiliários

O artigo 27, parágrafo terceiro da Lei nº6.766/79 (parcelamento do solo urbano) mandaaplicar os artigos 639 e 640 do CPC aodescumprimento de outros pré-contratos imo-biliários:

“promessa de cessão, proposta decompra, reserva de lote ou qualquer outroinstrumento do qual conste a manifesta-ção de vontade das partes, a indicação

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do lote, o preço e modo de pagamento ea promessa de contratar” (art. 27, § 1º).

2.9. Obrigações de não fazer. Impossibilidadeda prestação: efeito. Prática do ato:

desfazimento ou conversão em perdas e danos

A lei, o contrato ou a sentença pode obrigaralguém a uma abstenção ou tolerância, comoocorre nas servidões. Os romanos se referiamao seu objeto como um pati, de patientia, terpaciência, tolerar. Ocorrendo a impossibilidadeda abstenção sem culpa do devedor, extingue-sea obrigação (CC, art. 882, Projeto, art. 250).Praticado o ato, o credor pode exigir que odevedor o desfaça, sob pena de desfazimento àsua custa, com perdas e danos (CC, art. 883;Projeto, art. 251; CPC, art. 643). Não sendopossível desfazer o ato, converte-se em perdase danos (CPC, parágr. do art. 643).

3. Regime das multasou penas pecuniárias

3.1. Disciplina processual

1) Prestação de fato pessoal ou infungívelou abstenção da prática de ato ou tolerância dealguma atividade: pedido de cominação de penapecuniária para o caso de descumprimento dasentença (CPC, art. 287).

2) Execução de obrigação de fazer ou nãofazer determinada em título judicial: fixaçãode multa por dia de atraso no cumprimento,alterável pelo juiz, se insuficiente ou excessiva(CPC, art. 644).

3) Execução de obrigação de fazer ou nãofazer fundada em título extrajudicial: fixaçãopelo juiz, ao despachar a inicial, de multa pordia de atraso no cumprimento, ou redução damulta excessiva convencionada (CPC, art. 645).

3.2. Comentário de J.J. Calmon de Passos

Pode-se assim resumir o comentário de J.J.Calmon de Passos ao artigo 287 do CPC:

A recusa do devedor, na obrigação de fazer,coloca em confronto dois valores: o do respeitoà liberdade individual, em razão do que se tutelaa recusa do devedor a prestar o fato, não sepermitindo seja ele violentado em sua liberdade,resolvendo-se o inadimplemento em perdas edanos; e o da tutela do interesse do credor,assegurando-lhe, coativamente, a prestaçãopactuada, mediante a execução específica.

A primeira orientação prevaleceu entre osromanos e ainda hoje é aceita pela doutrinatradicional. À segunda aderiram inúmeroscivilistas franceses e italianos e processualistasnacionais.

Não é a recusa arbitrária do devedor queleva a excluir-se a execução específica, mas sima impossibilidade prática de obter-se aprestação.

Ao lado dos meios de sub-rogação daprestação do devedor (prestação por terceiro –art. 634 do CPC), emissão de declaração devontade (substituída por sentença – arts. 639/641 do CPC), existem os meios de coação sobrea vontade do devedor, tais como, no contrato, acláusula penal e as multas pactuadas porinadimplemento, além das prescritas em leipara influir sobre a vontade do obrigado, indu-zindo-o a prestar aquilo a que se obrigou.

Quanto foi dito acima vale para as obri-gações de não fazer e de suportar ou tolerar(prestare patientiam).

A tutela dessas obrigações sempre foi aten-dida, em nosso direito, pelas ações de preceitocominatório.

O código revogado previu para elas umprocedimento especial (arts. 302 a 310). Ocódigo atual não contemplou um procedimentoespecial cominatório. Limitou-se aos artigos287, 644 e 645.

A pretensão de haver de alguém umcomportamento omissivo ou comissivo decorreda lei ou do contrato. E a todo direito subjetivomaterial corresponde o direito público subjetivode reclamar judicialmente a sua efetivação.Logo, diante dos artigos 287, 644 e 645 do CPC,perdura a tutela das obrigações de fazer e nãofazer mediante ação de preceito cominatório12.

3.3. A Teoria das “astreintes” no direitofrancês. O parecer de Louis Josserand

A propósito do artigo 1.142 do Código Civilfrancês, que dispõe, “em termos amplos eaparentemente absolutos”, que “toda obrigaçãode fazer ou de não fazer se resolve em perdas edanos, em caso de inexecução por parte dodevedor”, o grande civilista Louis Josserandafirma que essa conclusão é inaceitável e deveser retificada. Não poderia depender da inércia,da má vontade do devedor a troca do objeto da

12 PASSOS, J.J. Calmon de. Comentários aoCPC. Rio de Janeiro : Forense, art. 287.

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dívida, acentua ele. Acabar-se-ia com a forçaobrigatória das convenções. O artigo 1.142 nãofaz mais do que reproduzir o velho adágio:nemo potest cogi ad factum praecise, prossegueo mestre. Acrescenta que Pothier já fazia umadistinção por demais tradicional, segundo aqual a regra só se aplica no tocante àsobrigações que têm por objeto algum atocorporal do devedor, a cuja prática não poderiaeste ser constrangido sem que se atentassecontra sua pessoa e sua liberdade. E prosseguefigurando a hipótese de uma obrigação cujaexecução específica implique a intervenção dopróprio devedor, como no exemplo clássico dopintor famoso que se obrigou a pintar umquadro. E indaga: é então absolutamentecorreto que o credor não possa, de modonenhum, impor ao devedor a execução especí-fica de seu compromisso e que a obrigação seresolva em perdas e danos, ante a resistênciadeste último? Certamente não, responde. Epassa a referir-se a um procedimento com adupla vantagem de não violentar a pessoa físicado devedor e de conduzir a um resultadoconcreto: o sistema das “astreintes”.

Sobre a teoria das “astreintes” discorreJosserand:

“La ‘astreinte’ es una condenapecuniaria que se pronuncia a razón de‘tanto’ por día, por semana, por mes opor año de retraso, y que tiende a vencerla resistencia del deudor de una obligaciónde hacer, a ejercer presión sobre suvoluntad: gracias a la progresión que lacaracteriza, este sistema es de eficienciay seguridad a toda prueba: no hay fortunaque pueda resistir una presión continuae incesantemente acentuada; la capitu-lación del paciente es fatal; se vence suresistencia, sin haber ejercido violenciasobre su persona: se procede contra susbienes, contra su fortuna, contra susrecursos materiales”13.

3.4. Comentário de Alcides de Mendonça Lima

Em comentário ao artigo 644 do CPC,Alcides de Mendonça Lima esclarece que,desde o início do século XIX, a jurisprudênciafrancesa criou as “astreintes”, apesar dashostilidades da doutrina, invocando o princí-pio nulla poena sine lege. E prossegue: as

“astreintes” podem ser fixadas por descumpri-mento de obrigação legal ou resultante desentença ou de contrato. No direito anglo-americano, o descumprimento da obrigação éconsiderado um desrespeito ao tribunal(contempt of Court), com constrição ex officio.Não se deve confundir esta engenhosa medidacom as perdas e danos decorrentes do inadim-plemento. E, citando Liebman e Couture, refe-re-se ao aumento indefinido das “astreintes”,“quase sempre arbitrárias em seu valor edesproporcionadas à obrigação mesma.” Econclui: o direito processual civil brasileirodesconhecia as “astreintes” até o vigenteCódigo. O artigo 1.005 do Código anteriorlimitava a cominação ao valor da prestação. Omontante ilimitado das “astreintes” é o seucaráter, podendo exceder o valor da obrigação,ao contrário das perdas e danos14.

3.5. Jurisprudência. A lei nº 8.953/94

Segundo a jurisprudência do STF, as“astreintes” não têm o caráter de indenizaçãopor inadimplemento, mas sim o de meio coativode cumprimento de sentença e por isso só vigoraa partir do seu trânsito em julgado (RTJ, n. 89,p. 556, n. 103, p. 774).

Decidiu o STJ:“o objetivo buscado pelo legislador, aoprever a pena pecuniária no artigo 644do CPC, foi coagir o devedor a cumprira obrigação de forma específica. Talcoação, no entanto, sem embargo deequiparar-se às “astreintes” do direitofrancês, não pode servir de justificativapara o enriquecimento sem causa, queao Direito repugna” (REsp. 13.416-0-RJ.Rel. Ministro Sálvio Figueiredo. RSTJ,n. 37, p. 428).

E o Tribunal de Justiça de São Paulo:“Humberto Theodoro Jr., no tema,

ensina que ‘a multa diária de que trata oartigo 644, a exemplo das astreintes dodireito francês, é de duração indefinida,perdurando enquanto subsistir o inadim-plemento do devedor. Com efeito, a penapecuniária in casu não é forma de repararo prejuízo do credor, de sorte que nãorepresenta as perdas e danos decorrentesdo inadimplemento da obrigação de fazerou não fazer. Pune-se o devedor, através

14 LIMA, Alcides de Mendonça. Comentáriosao CPC. Rio de Janeiro : Forense, art. 644.

13 JOSSERAND, Louis. Derecho Civil. Traducciónde Santiago y Manterola. Buenos Aires : Ed. Juridica,1950. v. 1, t. 2, n. 589/594.

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da multa, com o intuito de coagi-lomoralmente a cumprir a sentença. Porisso, a multa não encontra limitetemporal, nem tampouco fica restrita aovalor da obrigação. A pena só cederáquando a prestação for cumprida, isto é,a coação durará enquanto durar oinadimplemento’” (Comentários aoCPC. Forense, 1978. v. 4, n. 259).

“A matéria é bem sintetizada porAmílcar de Castro, quando observa que,‘pelo artigo 1.005, do Código anterior, acominação pecuniária não podia excederdo valor da prestação, mas o novoCódigo, acompanhando o direito francêse o direito alemão, não marca limite aovalor da astreinte: a soma cobrada ésuscetível de aumento indefinido’”(Comentários ao CPC. RT, 1974. v. 8,n. 253).

“No mesmo diapasão, vejam-se,ainda, os magistérios de Alcides deMendonça Lima (Comentários ao CPC.Forense, 2. ed. 1977. v. 6, n. 1787),Sahione Fadel (CPC Comentado. Forense,4. ed. 1982. v. 2, p. 417), FredericoMarques (Manual de Dir. Proc. Civil.Saraiva, 1976. v. 4, n. 840) e Pontes deMiranda (Comentários ao CPC. Forense,1976, v. 10, p. 156).

“Mais não fosse e, por não se tratarde dever contratual de natureza econô-mica, prima facie, que se pudesse suprirpor indenização correspondente a preju-ízos, si et in quantum, qualquer limi-tação, temporal ou valorativa, poderiapropiciar aos devedores a singular eextravagante opção de, solvendo asanção, adquirirem o direito de conso-lidar o inadimplemento, o que, positiva-mente, não foi o sentido da normaprocessual que instituiu as astreintes.

“Ainda nesse ponto, vale transcrevera lição de Humberto Theodoro Jr.,quando adverte que, ‘perante essesdeveres de natureza não econômica, pormais que dure a multa, nunca estarásatisfeito o autêntico direito do credor,razão pela qual a astreinte, com todapropriedade, há de durar indefinidamente,ou seja, há de perdurar enquantoperdurar o descumprimento da sentença,que condenou a parte a praticar o atoou abster-se do fato’” (op. cit. n. 261,p. d342).

“Pela não-limitação da pena do artigo644 do CPC é a jurisprudência maisrecente (JTACSP, n. 59, p. 157 e n. 69,p. 134 e Saraiva, n. 80, p. 45), inclusivenesta Corte (RJTJESP, n. 78, p. 78)” (Ac.un. 12a CC TJSP. Ap. nº 111.232-2.RJTJESP, n. 105, p. 52).

A Lei nº 8.953, de 13-12-94, deu flexibili-dade às multas cominadas, introduzindo pará-grafos aos artigos 644 e 645, verbis:

“Art. 644. (...)Parágrafo único. O valor da multa

poderá ser modificado pelo juiz daexecução, verificado que se tornou insu-ficiente ou excessivo.”

“Art. 645. (...)Parágrafo único. Se o valor da multa

estiver previsto no título, o juiz poderáreduzi-lo se excessivo.”

3.6. A multa ex officio na ação civil pública

Dando seqüência ao regime das “astreintes”em nosso direito, a Lei nº 7.347, de 24-7-85(disciplina a ação civil pública em defesa domeio ambiente, consumidor, bens e direitos devalor artístico, estético, histórico, turístico epaisagístico) veio dispor:

“Art. 11. Na ação que tenha porobjeto o cumprimento de obrigação defazer ou não fazer, o juiz determinará ocumprimento da prestação da atividadedevida ou a cessação da atividade nociva,sob pena de execução específica, ou decominação de multa diária, se esta forsuficiente ou compatível, independente-mente de requerimento do autor.”

3.7. A tutela específica na Leide Defesa do Consumidor

A Lei nº 8.078, de 11-9-90 (dispõe sobre adefesa do consumidor), veio consagrar:

a) a tutela específica ou providência queassegure o resultado prático equivalente, naexecução das obrigações de fazer e não fazer(art. 84, caput);

b) a conversão em perdas e danos dessasobrigações somente por opção do credor ou porimpossibilidade da tutela específica ou doresultado prático correspondente (art. 84, § 1º);

c) a indenização sem prejuízo da multa (art.84, § 2º);

d) a possibilidade de tutela liminar (art.84, § 3 º);

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e) a imposição de multa diária ex officio,na decisão liminar ou na sentença (art. 84,§ 4 º);

f) outras medidas visando à tutela específicaou ao resultado prático equivalente (busca eapreensão de pessoas e coisas, desfazimento deobra, impedimento de obra nociva e requisiçãode força policial) (art. 84, § 5º).

3.8. A nova redação do artigo 461 do CPC

A nova redação do artigo 461 do CPC, comseus parágrafos 1º a 5º, por meio da Lei nº8.952, de 13-12-94, é a reprodução ou trans-plante, para o CPC, do artigo 84 e seus pará-grafos da Lei de Defesa do Consumidor, queacabamos de resumir no item anterior (Lei nº8.078/90). Muitos não perceberam isso.Theotônio Negrão considerou o novo texto doCPC como “preceito completamente novo”15.

Comentando essas inovações, HumbertoTheodoro Jr. assim se manifesta:

“Os novos poderes conferidos ao juizpelo art. 461 deverão manifestar-se emface de qualquer obrigação de fazer ounão fazer, mas seu campo de atuaçãoprática mais intensa será, sem dúvida, odo compromisso de compra e venda edemais contratos preliminares tão difun-didos no comércio jurídico atual, tantoem torno de bens imóveis como de bense valores mobiliários de todo tipo. Umadas conseqüências imediatas da posturainovadora da lei será a definitiva supe-ração da antiga jurisprudência quesupervalorizava a perfeição formal doscompromissos, não admitindo a adjudi-cação compulsória quando o pré-contratonão estivesse previamente inscrito noRegistro de Imóveis ou quando nãocontivesse todos os dados necessários aoatendimento das exigências de acessoàquele registro público. Agora, o juiz estáarmado de poderes processuais para,antes da sentença, apurar e completartudo o que for necessário à expedição deum título judicial que seja perfeito paracumprir o anseio de efetividade da tutelajurisdicional, num terreno de enormerepercussão social, como é o dos com-promissos de compra e venda, mormenteem relação às camadas mais humildesda população. Dados faltosos no contrato,

como os pertinentes ao registro anterior,confrontações, área e demais caracterís-ticas do prédio negociado, poderão serobjeto de ampla pesquisa durante ainstrução da causa, e o juiz deve empe-nhar-se para tudo esclarecer e suprir, detal modo a proferir uma sentença deadjudicação compulsória que contenhaa declaração sobre tudo aquilo que sejaútil e necessário ao acesso ao registro deimóveis. Assim é que estará cumprindoa missão, ora a ele confiada, de deter-minar, na sentença de procedência dopedido de cumprimento de obrigação defazer, as ‘providências que assegurem oresultado prático equivalente ao do adim-plemento’ (art. 461, caput).

“A nova postura da lei diante dasobrigações de contratar superou atémesmo a postura doutrinária e jurispru-dencial que tentava salvar o compromissode compra e venda incompleto, confe-rindo-lhe a ação de outorga de escrituraem lugar da sentença de adjudicaçãocompulsória. Não há mais razão paradistinções desse tipo. A sentença deverásempre ser dotada da carga máxima deeficácia prática. O juiz, portanto, terá desuprir as lacunas do contrato, apurandoe declarando os dados omissos, de talmodo que a sentença de adjudicaçãocompulsória, sempre que possível, sejacompleta, ainda que o compromisso nãoo tenha sido.

As providências lembradas pelo § 5ºe outras que se revelarem úteis e conve-nientes à realização da efetividade daprestação jurisdicional terão seu camponatural de atuação na fase de cumpri-mento ou execução da sentença. Poderão,no entanto, conforme o título de quedispuser o autor e as circunstâncias docaso concreto, ser objeto também damedida liminar autorizada pelo § 3º. Apropósito, é bom lembrar que, in casu,como aliás já se previra em caráter geralno novo texto do art. 273, a medidaliminar não se confunde com simplesmedida cautelar (preventiva), poisassume a função específica de anteci-pação da tutela visada a alcançar com asentença de mérito (medida, portanto,satisfativa). Como tal, a liminar comporta,em caráter provisório, as mesmas provi-dências que, em caráter definitivo,

15 NEGRÃO, Theotônio. CPC e legislação... 26.ed. São Paulo : Saraiva, nota 2 ao art. 461.

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intenta-se obter com o julgamento finalda causa.

“Pode-se concluir que, em face doatual texto do art. 461, ao autor de umaação de cumprimento de compromissode compra e venda quitado é lícito, porexemplo:

a) cumular, na inicial, pedido deadjudicação compulsória com pedido deimissão de posse ou de busca e apreensão;

b) pleitear, desde logo, liminar quelhe assegure a posse provisória do bemcompromissado”16.

4. A execução nos Juizados EspeciaisCíveis: a “astreinte” na obrigação de dar

A Lei nº 9.099, de 26-9-95, que disciplinouos Juizados Especiais Cíveis, destinados aconciliar, processar, julgar e executar as causascíveis de menor complexidade, sob os critériosda informalidade e celeridade, inspirando-senos arts. 644 e 645 do CPC, ampliou, em nos-so país, a aplicação do regime das “astreintes”.Estendeu-as às obrigações de dar e entregar,nestes termos:

“Art. 52. A execução da sentençaprocessar-se-á no próprio Juizado, apli-cando-se, no que couber, o disposto noCódigo de Processo Civil, com asseguintes alterações:

(...)V - nos casos de obrigação de entre-

gar, de fazer, ou de não fazer, o Juiz, nasentença ou na fase de execução, comi-nará multa diária, arbitrada de acordocom as condições econômicas do deve-dor, para a hipótese de inadimplemento.Não cumprida a obrigação, o credorpoderá requerer a elevação da multa oua transformação da condenação emperdas e danos, que o Juiz de imediatoarbitrará, seguindo-se a execução porquantia certa, incluída a multa vencidade obrigação de dar, quando evidenciadaa malícia do devedor na execução dojulgado;

VI - na obrigação de fazer, o Juiz podedeterminar o cumprimento por outrem,fixado o valor que o devedor deve depo-sitar para as despesas, sob pena de multadiária;”

Conforme já demonstrado, a obrigação dedar ou entregar tem por objeto uma coisa, quepode ser objeto de execução direta, específicaou mediante a própria coisa, que é subtraídado devedor, manu militari, sem ofensa à suapessoa, liberdade ou dignidade (“délivrance” éo termo francês). O mesmo não ocorre com aobrigação de fazer ou de não fazer, que nãopodem ser exigidas mediante coação física sobreo devedor e por isso incidem na regra nemocogi ad factum, resolvendo-se em perdas edanos ou execução indireta.

Mas, como vimos, a jurisprudência francesainovou, instituindo um meio de coação moral(não física) sobre o devedor, por meio das“astreintes” ou penas pecuniárias, a fim devencer a resistência dos inadimplentes.

O nosso direito processual anterior jáadmitia esse regime para a execução das obri-gações de fazer e não fazer, tanto que instituiuum procedimento especial para abrigar taispretensões: ação cominatória (art. 302, XII doCPC/39).

Com base nesse texto, foi elaborada aSúmula 500 do STF, segundo a qual: “Não cabea ação cominatória para compelir-se o réu acumprir obrigação de dar”. E não cabe porquea obrigação de dar pode ser exigida manumilitari sem ofensa à pessoa do devedor (pelasubtração da coisa e entrega ao credor).

O novo Código processual suprimiu oprocedimento especial cominatório, mas nãoexcluiu o procedimento ordinário ou sumáriopara a execução das obrigações de fazer e nãofazer, com suporte nos arts. 287, 461, 644 e645, conforme já dilucidado.

Surge agora a inovação: o preceito comina-tório ou regime das “astreintes” para a execuçãodas obrigações de dar ou entregar. E a razão éde ordem prática, ao que presumimos: nosJuizados Especiais, “o processo orientar-se-ápelos critérios da oralidade, simplicidade,informalidade, economia processual e celeri-dade...” (art. 2º da Lei nº 9.099/95). O mandadode busca e apreensão da coisa móvel ou deimissão na posse do imóvel, como momentoculminante da execução específica para entregade coisa (art. 625 do CPC), exigiria diligênciasburocráticas e dispêndios incompatíveis com onovo processo especial das pequenas e nume-rosas causas; donde a opção pela auto-execução, por meio da coação moral mediantecominação de multa diária pela inobservânciado preceito, seja de dar, fazer ou não fazer. É a

16 THEODORO JR, Humberto. As inovações noCPC. Rio de Janeiro : Forense, 1995, art. 461, p.19-21.

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Revista de Informação Legislativa212

mudança das técnicas por meio do direitopositivo, em função das transformações sociaise da massificação das relações.

5. ConclusõesResumindo o essencial da matéria, podemos

concluir:I - As obrigações de dar (entregar ou resti-

tuir) admitem execução específica, mediante abusca e apreensão da coisa móvel ou da imissãodo credor na posse do imóvel – “délivrance”(art. 625 do CPC).

II - A obrigação de fazer não admiteexecução direta por meio de violência físicacontra o devedor (nemo cogi potest ad factumpraecise).

III - A obrigação de fazer, sendo a prestaçãofungível, pode ser executada por terceiro à custado devedor (art. 634 e parágrafos do CPC).

IV - A obrigação de fazer, sendo intuitupersonae, não pode ser executada por terceirocontra a vontade do credor (mudança daprestação).

V - A obrigação de fazer, sendo a prestaçãoinfungível ou intuitu personae, assim comoa obrigação de abstenção ou tolerância,podem ser exigidas por meio de preceitocominatório – “astreinte” (arts. 287, 461,644 e 645 do CPC).

VI - Na obrigação de fazer, recusando-se odevedor a cumpri-la, o credor pode optar pelaconversão em perdas e danos (art. 633 do CPC).

VII - As obrigações de emitir declaração devontade e de concluir um contrato podem serexecutadas por meio de sentença que produzaos mesmos efeitos (prática de ato jurídico – arts.639/641 do CPC).

VIII - O compromisso de compra e venda ea cessão de direitos de imóvel loteado ou não,bem como outros pré-contratos similares,podem ser executados mediante sentença de

adjudicação ou outorga da respectiva escri-tura ou contrato, observados os requisitos doDL nº 58/37, arts. 16 e 22, e da Lei n º 6.766/79, art. 27.

IX - As obrigações de não fazer podem com-portar, conforme o seu objeto, o desfazimentodo ato praticado ou da obra realizada, ou a apli-cação de preceito cominatório (“astreinte”), ouainda a conversão em perdas e danos (arts. 461,642 e 643 do CPC).

X - A Lei de defesa do consumidor concedetutela específica, inclusive liminar, paraexecução das obrigações de fazer e não fazer,inclusive pela cominação de multa diária exofficio e outras medidas drásticas de compulsão(Lei nº 8.078/90, art. 84). Esse sistema veio aser transplantado para o artigo 461 do CPC pelaLei nº 8.952, de 13-12-94.

XI - Admite-se o preceito cominatório comoregra na execução das obrigações de entregar,fazer e não fazer, nos Juizados EspeciaisCíveis – sistema da auto-execução, por economiaprocessual (Lei nº 9.099/95, art. 52, V).

Como se percebe por esta pesquisa, a exe-cução das obrigações de dar, fazer e não fazer,em nosso país, situa-se entre as mais avançadastécnicas de tutela específica admitidas no direitocontemporâneo.

Os contratos de massa – trabalho, locação,compra e venda, promessa de compra e venda,prestação de serviço, transporte e outros – vãodinamizando as relações e impulsionando odireito material e processual no sentido daaceleração e maior eficiência na solução dosconflitos.

O aperfeiçoamento do direito e do aparelhojudiciário, por meio das técnicas de coaçãocontra o inadimplemento, é uma das vertentesdo equilíbrio social. Mas é preciso que se abramas avenidas do progresso econômico, daeducação e da moralização dos costumes, paraque se implantem a cooperação e a solidarie-dade entre os cidadãos.

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Informação e participaçãoInstrumentos necessários para a implementação do Direitoambiental

PAULO AFFONSO LEME MACHADO

SUMÁRIO

1. Informação ambiental. 1.1. Informação eprevenção do dano ao meio ambiente. 1.2. Infor-mação e uso de recursos naturais. 1.3. Informaçãoe controle de atividades. 1.4. Organização dainformação como obrigação dos poderes públicos.1.5. Criminalização da não informação ou dainformação deficiente. 2. Participação popular emeio ambiente. 2.1. Participação na formação dasdecisões administrativas. 2.2. Participação nosrecursos administrativos e nos julgamentos admi-nistrativos. 2.3. Participação nas açoes judiciais.2.4. Participação no século XXI - consolidação eampliação do plebiscito ambiental.

Elizabeth Haub Colloquium – “The Cutting Edgeof Environmental Law: Compliance and EmergingNorms” – Wiesbaden (R.F. Alemanha). Abril / 1997.

Paulo Affonso Leme Machado é Presidente daSociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente.Prêmio Internacional de Direito Ambiental “Eliza-beth Haub” (1985). Professor de Direito Ambientalna Universidade Estadual Paulista - Rio Claro, SP.Promotor de Justiça aposentado. 1 A Convenção CITES e a Convenção sobre a

Movimentação de Rejeitos Transfronteiriços (Con-venção de Basiléia, 1989) são fundamentalmentebaseadas no sistema de troca de informações do

1. Informação ambientalA informação merece ser coletada e trans-

mitida durante as diversas etapas do trabalhohumano que utilize os recursos ambientais,evitando-se a transmissão de dados somentequando os prejuízos já tenham ocorrido.

A primeira etapa da coleta e transmissãoda informação vai abranger todas aquelaspessoas – físicas ou jurídicas – que possam pôrem risco o meio ambiente. Serão destinatáriosdessa informação a Administração Pública e asociedade. Dependerá de cada legislação nacio-nal especificar qual o tipo e a intensidade deinformação que ficará retida com a Adminis-tração Pública e qual será totalmente acessívela todas as pessoas. As convenções interna-cionais precisam contemplar essa questãovisando à uniformização da informação nasquestões ambientais1. Em matérias regionais,os acordos prevêem tradicionalmente o

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Revista de Informação Legislativa214

intercâmbio de informações.A matéria mereceu ser tratada na Consti-

tuição da Eslováquia de 1992, que afirma emseu artigo 43:

“Toda pessoa tem direito de serinformada, de modo oportuno e completo,do estado do meio ambiente, assim comodas causas e conseqüências a ele rela-tivas”2.

Na República Federativa do Brasil, nos seus26 Estados, 16 previram, em suas Constitui-ções Estaduais do ano de 1989, o direito àinformação ambiental3.

A Comunidade Européia tem dado umagrande importância à informação ambiental4.

Temos que distinguir dois aspectos jurídicosda informação ambiental: a procura da infor-mação e a comunicação antecipada ou siste-mática da informação. Não basta que as pessoase os grupos sociais possam obter a informação,se a solicitarem. Para que a informação ambi-ental produza seus resultados imediatos eeficazes, torna-se necessário que quem tenha ainformação sobre o meio ambiente – os parti-culares ou os governos – torne pública essainformação de forma contínua e organizada,independente de pedido de quem quer que seja.

É um fato notório que a informação públicaem todos os domínios, não só no meio ambiente,tem seus inimigos. Aqueles que querem serautoritários e corruptos evidentemente tentarãode forma direta ou indireta dificultar atransmissão da informação ambiental.

1.1. Informação e prevençãodo dano ao meio ambiente

a) Informação no procedimento de avaliaçãode impacto ambiental

A realização da consulta ao público, pormeio do procedimento denominado “AudiênciaPública”, é apontada pelas diferentes legis-lações nacionais como sendo de grande utili-dade. O Estudo de Impacto Ambiental passa ater diferentes atores: o empreendedor, os orga-nismos da Administração Pública, o grupo deespecialistas e o público.

A intensidade e a eficácia da intervençãodo público nessa fase preparatória da tomadada decisão ambiental dependerá de diversosfatos: tempo anterior de convocação para aaudiência; localidades consultadas; possibili-dade efetiva de consulta aos documentos quecompõem o estudo já efetuado; tempo depalavra concedido nos debates; imparcialidadena direção da audiência; respostas efetuadas naprópria audiência, ou em outra posterior, peloempreendedor ou pela equipe multidisciplinaràs perguntas apresentadas; possibilidade deapresentação e inserção de documentos.

Se não houver uma efetiva e justa regula-mentação da participação popular na audiênciapública, seja essa participação individual ou deassociações de defesa do meio ambiente, aaudiência pode tornar-se uma participaçãoilusória e despida de real importância.

Dependendo de quem pede a realização daaudiência pública, poderá o peticionário serinformado pessoalmente da designação daaudiência e até receber cópia do estudo deimpacto ambiental5.

b) Informação no registro de pesticidas enos procedimentos de engenharia genética

Especialmente nos procedimentos em quehá manifesto risco nas atividades, tem sidoexigida a intervenção do Poder Público – sobforma de autorização – antes da produção dosprodutos. É o próprio processo de produção queé submetido à avaliação. As legislações nacio-nais e de organismos regionais não têm permitidoque se guarde inteiro segredo desses processos,determinando a informação do público para que

Estado “importador”e do Estado “exportador”. Con-tudo, é preciso insistir-se no alargamento dessasinformações, com a publicação, nos jornais oficiais,das concordâncias dos Estados e da motivação dessasautorizações. Essas convenções apresentam fracosresultados nos países em que se desconhece aamplitude dos negócios efetuados.

2 Récueil International de Législation Sanitaire.Organisation Mondiale de La Santé. v. 44, n. 2, 1993.

3 MACHADO, P.A.L. Direito Ambiental brasi-leiro. 6. ed. São Paulo : Malheiros, 1996. 782 p. OEstado do Rio de Janeiro obriga a divulgaçãosemestral do monitoramento da água servida (artigo279 da Constituição Estadual).

4 Ver WINTER, G. European EnvironmentalLaw. Aldershot : Dartmouth. 1996. 442 p: Freedomof environmental information. REHBINDER, E.L’apport de la Communauté Européenne audéveloppement du droit de l’ environnment.Bruxelles : Facultés Universitaires Saint-Louis.1996. 480 p : Quel avenir pour le droit del’environnement? e POSTIGLIONE, A. Codicedell’ambiente. 3. ed. Rimini, 1995. 1672 p.

5 No Município de Franca, Estado de São Paulo,Brasil, o Ministério Público tem direito de receberuma cópia do Estudo Prévio de Impacto Ambi-ental (art. 16, § 4º, da Lei Complementar nº 9 de26-11-96).

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possa opinar em tempo oportuno6.c) Informação e planejamentoOs planos pretendem geralmente disciplinar

o uso do solo, das águas ou do ar. Vão estabe-lecer regras explicitando o que é permitido e oque é proibido e poderão apontar metas a serematingidas e estratégias a serem utilizadas.

Os planos tradicionalmente são utilizadosem nível local ou municipal. Entretanto,dependendo dos interesses em questão, osplanos poderão ganhar uma dimensão regionalou estadual e nacional.

Sejam os planos elaborados por lei, pordecreto ou por resolução de um órgão colegiado,o seu conteúdo merece ser informado previa-mente ao público e submetido ao debate público.Debater o plano com a população não ésubmetê-lo a discussões intermináveis, mas éreconhecer que os destinatários do planomerecem respeito e consideração dos planeja-dores. Caso contrário, estaremos diante de umaplanificação que somente reconhece bom sensoe competência nos que estão no poder7.

1.2. Informação e uso de recursos naturais

A autorização pela Administração Públicade desmatamentos é um ato administrativo que,para ser integralmente controlável pela opiniãopública, precisa ser transparente. Para isso,torna-se necessário que o mesmo sistema apli-cado às atividades poluidoras seja utilizado.Assim, tanto o pedido de desmatamento (hajaou não estudo de impacto ambiental) quanto aemissão ou não da autorização merecem serpublicados em jornal oficial e em jornais degrande circulação. Espaços naturais impor-tantes como a Amazônia não são continuada-mente controlados pela população de seuspaíses e até pela opinião pública internacional,por ausência de um sistema legal de transmissãode informações.

É oportuno citar a Declaração sobre Florestas,proposta durante a Conferência das Nações Uni-das para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,realizada no Rio de Janeiro em 1992:

“É indispensável estar vigilante paraque o público e os que decidam dispo-nham, em tempo útil, de informaçãoconfiável e precisa sobre as florestas eos ecossistemas florestais” (nº 2, c).

1.3. Informação e controle das atividades

A implementação das medidas de conser-vação do meio ambiente não ocorre simples-mente pela autofiscalização dos própriosempreendedores ou pela fiscalização pelosórgãos públicos.

A prática da legislação tem mostrado que,sem acompanhamento das medidas preconizadasno momento da autorização, essas medidas nãosão implementadas por completo8. De outrolado, o monitoramento das atividades autori-zadas, com a coleta de dados técnicos periódica,tem se revelado muito útil.

A auditoria ambiental como auto-avaliaçãofeita pelo próprio empreendedor tem sidomodernamente apresentada como um instru-mento de implementação da política ambiental.

6 A Comunidade Européia, nas suas Diretivas90/219-CE, e 90/220-CE, ao tratar de microrga-nismos geneticamente modificados e de liberaçãovoluntária de OGM no meio ambiente, tratamtambém da informação. O dever de informar aspessoas envolvidas com os OGM, sejam empresasou pessoas físicas, foi explicitamente formulado naDiretiva 90/219-CE (Comunidade Européia), que,em seu artigo 10, estabelece que devem constarinformações relativas aos microrganismos geneti-camente modificados, sobre o pessoal e suaformação, sobre a instalação e sobre a gestão dosrejeitos, sobre a prevenção dos acidentes e acercados planos de urgência e sobre a avaliação de riscospara a saúde e para o meio ambiente. Ao proteger osigilo industrial, a Diretiva 90/219 afirma que osdados fornecidos com base no referido artigo 10 nãopodem ficar confidenciais. A Diretiva 90/220, rela-tiva à liberação voluntária de OGM no meio ambi-ente, no art. 19.4, estabelece as matérias “que nãopodem ficar confidenciais”: descrição do ou dosOGM, nome e endereço do notificante, fim e lugarda liberação; métodos e planos de acompanhamentodo ou dos OGM e de intervenção em caso deurgência; avaliação dos efeitos previsíveis, notada-mente dos efeitos patógenos e/ou ecologicamenteperturbadores.

7 A lei brasileira de política nacional dosrecursos hídricos – Lei nº 9.433 de 8-1-1997 –não inseriu, na discussão dos planos de recursoshídricos (artigos 6º a 8º), uma fase de publicida-de e de audiência pública. Garantiu-se o direito“a dados e informações” (artigo 26, III), que ficouindefinido e vago.

8 “In Canada, the ‘Canadian EnvironmentalAssessment Act’ (CEAA) came into force in Janua-ry 1995. Under the ‘Canadian EnvironmentalAssessment Act’, the public must be notified of thesefollow-up programs and their results”. Prabhu-Mue-ller. Recent Developments in Canadian Environmen-tal Law. In: RAPPORTO MONDIALE SU DIRITTODELL’AMBIENTE. Milan : Giuffrè Ed. 1996. p. 643-658.

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Revista de Informação Legislativa216

Dependendo da legislação do país ou do grupoa que pertença o país, a auditoria ambientalserá obrigatória ou voluntária9.

O sigilo industrial tem sua proteção legal,e os procedimentos de monitoramento e deauditoria não se destinam a derrubar essesistema. Contudo, para que o autocontrole nãose transforme em um ato de marketing, neces-sário se torna um mínimo de acesso às infor-mações para a verificação de sua confiabilidadepelos interessados.

1.4. Organização da informação comoobrigação dos poderes públicos

Os poderes públicos – na área dos serviçospúblicos de meio ambiente – não são somenterepassadores das informações obtidas. Cumprea esses serviços buscar as informações, quandoas mesmas não vierem voluntariamente da partedos que devem informar. Os poderes públicosprecisam, evidentemente, utilizar o poder depunir os que se recusam a informar10.

1.5. Criminalização da não-informaçãoou da informação deficiente

O Direito Penal do Meio Ambiente nãopretende ocupar o primeiro lugar entre os váriosramos do Direito que tratam do meio ambiente.Mas a intimidação pela sanção penal começa a

exercer um papel relevante, principalmentequando são responsabilizadas as corporações11.

Registramos a criminalização da não-infor-mação na Lei da Ação Civil Pública, no Brasil:

“Constitui crime, punido com penade reclusão de um a três anos maismulta de dez a mil Obrigações Rea-justáveis do Tesouro Nacional, arecusa, o retardamento ou a omissãode dados indispensáveis à propositurada ação civil, quando requisitados peloMinistério Público”12.

2. Participação popular e meio ambienteA participação popular visando à conser-

vação do meio ambiente insere-se num quadromais amplo da participação diante dosinteresses difusos e coletivos da sociedade. Éuma das notas características da segundametade do século XX.

O voto popular, em escrutínio secreto,passou a não satisfazer mais o eleitor. Aausência de um conjunto de obrigações doseleitos, previamente fixadas, tem levado ascidadãs e os cidadãos a pleitearem uma parti-cipação contínua e mais próxima dos órgãosde decisão em matéria de meio ambiente.

O tema já passou a ser objeto das Consti-tuições. A Finlândia modificou sua Consti-tuição em 1995, passando a dispor no artigo14, a:

“Cada um é responsável pela natu-reza, pela biodiversidade e pelo meioambiente. Os poderes públicos devemgarantir a cada um o direito a um meioambiente sadio, assim como a possibili-dade de influenciar na tomada dedecisões sobre as questões relativas a seumeio ambiente”.

9 O Código Ambiental do Município de Franca,Estado de São Paulo, Brasil (Lei Complementar nº9 de 26-11-96), de autoria de P.A.L. Machado, dizem seu artigo 23, § 5º : “Quando as pessoas físicasou jurídicas realizarem auditorias privadas faculta-tivas destinadas à obtenção de certificado ou rótulode qualidade ambiental, o relatório da auditoria serásubmetido ao procedimento de audiência pública,constante do artigo 18 deste Código”.

10 No Brasil, a Lei nº 6.938 de 31-8-81, com aalteração feita pela Lei nº 7.804 de 18-7-89, diz noseu art. 9º, XI : “a garantia da prestação de informa-ções relativas ao meio ambiente, obrigando-se oPoder Público a produzi-las, quando inexistentes”.A Constituição do Brasil prevê em seu art. 5º, XX-XIII: “todos têm direito de receber dos órgãospúblicos informações de seu interesse particular oude interesse coletivo ou geral, que serão prestadasno prazo da lei, sob pena de responsabilidade,ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindívelà segurança da sociedade e do Estado”. A Lei nº9.051, de 18-5-95, fixou que as informações deverãoser prestadas no “prazo improrrogável de quinzedias, contado do registro do pedido no órgão expe-didor” (art. 1º).

11 “Most importantly, the 1990’s have witnesseda renewed emphasis on the use of criminal sanctionsto enforce environmental laws. This renewed focuson criminal enforcement has lead to a number ofother policy debates. For example, the intentrequirement for a criminal conviction underenvironmental law has been relaxed by statutes andcase law. Some environmental statutes criminalizenegligence as well as knowing wrongs.” (DIMENTO,J., SILECCHIA, L. A time to put thinghs togetherand... time to question strategies of environmentallaws in the mid 90’s. In: RAPPORTO MONDIALESUL DIRITTO DELL’AMBIENTE. p. 659-674.

12 Brasil: Artigo 10 da Lei nº 7.347 de 24-7-85.

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A Declaração do Rio de Janeiro de 1992,em seu artigo 10, diz:

“O melhor modo de tratar as questõesdo meio ambiente é assegurando a parti-cipação de todos os cidadãos interes-sados, no nível pertinente”.

No nível nacional, cada pessoa deve ter a“possibilidade de participar no processo detomada de decisões”.

“O direito ambiental faz os cidadãos saíremde um estado passivo de beneficiários, fazen-do-os partilhar das responsabilidades na gestãodos interesses da coletividade inteira”13.

A implementação do processo de partici-pação pode apresentar obstáculos. “Entre estescumpre superar a lentidão da participação ousua excessiva brevidade e a possibilidade deformas tumultuárias e falsas de participação.Seria ilusório esperar que todo cidadão venhaa manifestar-se a tempo, pois haverá o inerte”14.

2.1. Participação na formaçãodas decisões administrativas

Interessa apontar experiências de países emque as decisões administrativas ambientaispassaram das mãos de um só funcionário ou deuma comissão de funcionários públicos paraconselhos em que a chamada “sociedade civil”ou as “organizações não-governamentais”tivessem voz e voto.

Generalizou-se a implantação de conselhoscom poderes consultivos não só nas matériasjá costumeiras em meio ambiente, mas tambémnas mais recentes, como os “organismosgeneticamente modificados”.

Outros países passaram a organizarconselhos com poderes consultivos e delibera-tivos nas mais variadas matérias ambientais.

A prática registra que, em alguns países,são as próprias organizações governamentaisque elegem seus representantes para essesconselhos, sem que os governos interfiramnessa eleição.

A questão não é isenta de dificuldades. Namaioria dos conselhos, os governos – sejam elesde natureza central, regional ou municipal –têm a maioria dos votos. Assim, as organizações

não-governamentais, ainda que possamapresentar seus argumentos nas discussões,podem ficar vencidas, dando legitimidade,contudo, às decisões tomadas.

2.2. Participação nos recursos administrativose nos julgamentos administrativos

A participação na interposição de recursosadministrativos é fundamental para que hajapossibilidade para os interessados em bater àsportas da própria Administração a fim de reverseus atos irregulares. O recurso administrativoenseja a conciliação e a correção do ato admi-nistrativo ambiental, evitando-se que sejainterposta ação judicial15.

2.3. Participação nas ações judiciais

Um fato marcante da segunda metade doséculo XX é a ampliação do acesso das pessoase das associações ao Poder Judiciário, defen-dendo não só o seu interesse, mas o interessedifuso e coletivo. A defesa do meio ambiente edo consumidor são questões novas que vierama estar presente nas decisões judiciais damaioria dos países. Nos Estados Unidos daAmérica do Norte, já há uma tradição por meiodo conceito citizen suits16.

No Brasil, desde 1981, com a Lei de PolíticaNacional do Meio Ambiente14, o MinistérioPúblico passou a ter legitimidade para proporações judiciais em defesa do meio ambiente.Em 1985, pela Lei nº 7.347, estrutura-se a“Ação Civil Pública”, para a defesa dos inte-resses difusos, quando as organizações nãogovernamentais ambientais também ganharamesse direito de ação judicial. Aponte-se que oMinistério Público Federal e o Estadual, com aConstituição Federal de 1988 (artigos 127 a

13 KISS, Alexandre-Charles. La mise enoeuvre du Droit de l’Environment. problématiqueet moyens. In: CONFÉRENCE EUROPÉENNEENVIRONNEMENT ET DROITS DE l’HOMME,2, Salzbourg, 1980.

14 MACHADO, op. cit.

1 5 A Lei brasileira nº 7.802/89 – sobreagrotóxicos – dá legitimidade às associações dedefesa do meio e do consumidor para impugnaremo registro de pesticidas ou pedirem o cancelamentodo registro já efetuado.

16 “Section of the Clear Air Amendments of1970, which was the first and became the prototypefor federal citizen suit legislation. The immediateconsequence is to open the federal courts to citizensuits without regard to diversity of citizenship orjurisdictional amount. A second consequence is thatthe citzen suit provisions should be read as doingaway with the necessity for the normal injury in factstanding allegations”. (RODGERS JR., W.H.Environmental Law. St. Paul : West Publishing,1977. 956 p.).

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Revista de Informação Legislativa218

130), passaram a ser independentes dosgovernos, tendo, entre suas funções, a depromover o

“inquérito civil e ação civil pública paraa proteção do patrimônio público e social,do meio ambiente e de outros interessesdifusos e coletivos”.

Incontestavelmente, a atuação do MinistérioPúblico diminuiu a intensidade das agressõesao meio ambiente.

As ações judiciais devem poder ser utili-zadas para exigir da Administração Pública edos particulares o “cumprimento da obrigaçãode fazer” no concernente ao direito à infor-mação e ao direito de participação.

2.4. Participação no século XXI – consolidaçãoe ampliação do plebiscito ambiental

“As associações de defesa do meio ambientesempre reclamaram a introdução do referendode iniciativa popular em nível local com o fimde levar os poderes locais a instaurar um debatedemocrático sobre as opções de ordenamentodo meio ambiente de um município. Essa

reivindicação choca-se com a posição doseleitos locais, inquietos de serem despojadosde seus poderes”17.

A Itália e a Suécia usaram a consultapopular principalmente sobre a política nuclear.

Se a manifestação popular, com poderdecisório, no plano regional e nacional, não deveser banalizada, nem por isso deve ser excluída.Não basta pretender-se o alargamento daparticipação popular, pois é necessário que asregras dessa participação sejam estabelecidasde forma a permitir o emprego dos mesmosrecursos financeiros na propaganda dosdiversos pontos de vista.

A consulta direta às populações em assuntosque dizem respeito aos interesses das geraçõespresentes e futuras é matéria que mereceaprofundamento.

Tenho confiança que os juristas, juntamentecom outros setores da sociedade, encontrarãomeios de consolidar as conquistas obtidas naslegislações ambientais, contribuindo com novoselementos para o direito da informação e daparticipação.

17 PRIEUR, M. Droit de l’Environnment. 3. ed.Paris : Dalloz, 916 p.

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Gladston Mamede é Doutor em Filosofia doDireito.

SUMÁRIO

GLADSTON MAMEDE

Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil

1. A estrutura de Estado. 2. A possibilidade departicipação. 3. Cidadania: participação consci-ente. 4. O ‘mito’ da cidadania.

Cidadão. Cidadania.Se fosse possível “gastar” palavras, essas

seriam palavras gastas. Desde quando se co-meçou o afastamento dos militares do coman-do de Estado, muito se falou – e ainda muito sefala – em cidadania; colocou-se “o cidadão”no centro de todo e qualquer discurso político.Resta, contudo, questionar o que significa e oque pode significar cidadania para que possa-mos dizer se somos ou não cidadãos e qual aamplitude dessa qualificação.

1. A estrutura de EstadoEm Semiologia e Direito, procurei recons-

truir um certo enfoque para a sociedade, tal quala conhecemos. Permito-me resumir o que afir-mei então: é possível compreender o termo“Estado” como um adjetivo – não um substan-tivo –, indicando uma característica da organi-zação socio-política humana, determinada aolongo da evolução histórica da humanidade.Cuida-se de um valor institucional e uma es-trutura de organização social (com mecanis-mos protetores). Essa estrutura social e todosos instrumentos que a asseguram revestem-sede uma significação específica: significam “Es-tado”. Uma organização de indivíduos (o apa-relho de Estado) controla essa estrutura social,correspondendo-lhe um poder de Estado, istoé, uma capacidade institucional de ação regu-ladora sobre a estrutura social, a partir do ma-nejo e do emprego de instrumentos repressi-

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vos, ou coercitivos, de Estado (1995, p. 87).Conquanto vivamos em uma sociedade de

palavras, esse poder de Estado exerce-se pornormas, isto é, “enunciados do aparelho deEstado (ou seja, dos detentores do poder deEstado, a elite política organizada e institucio-nalizada – em suas estreitas relações com a eli-te econômica da sociedade) que visam regulara existência e convivência social pelo estabele-cimento de modelos hipotéticos de comporta-mentos (e situações devidas), revestindo-lhesde uma significação e um valor autorizado (ju-rídico), dispostos em um sistema imposto (queé o Direito), de onde cada unidade retira a suaimperatividade. A norma jurídica deve ser cum-prida voluntariamente pelos súditos de Estadoou poderá ser aplicada a sanção que lhe corres-ponde (em sentido lato sensu, quer dizer, tantoa pena prevista, quanto a execução forçada daobrigação normativa, ou a anulação do ato etc.),usados os poderes repressivos da estrutura or-ganizada de Estado” (Idem, p. 86). Por tais ra-zões, denuncio que “o fim último do Direito émanter a estrutura de Estado o mais estávelpossível, com o que culmina por garantir queum modelo de vida e organização social (e, porconseqüência, um modelo econômico) se per-petue, referenciado pelos interesses dos quedetêm o poder necessário para validá-los e efe-tivá-los” (Idem, p. 87).

Pode-se argumentar que vivemos em umtempo de democracia, não havendo muitos di-tadores e ditaduras pelo mundo. Muito se evo-luiu, reconheço, mas muito há por evoluir. Oobjetivo deste trabalho é justamente demons-trar a existência de falhas no modelo políticovigente. Nossas estruturas políticas estão vici-adas na centralização de poder e no desrespei-to ao interesse público. Souza, a propósito, re-fere-se a “uma elite de empresários, políticos eservidores públicos dos três Poderes” que “com-põem uma cúpula privilegiada por uma legis-lação elaborada meticulosamente para manteresse estado de vantagens e opressões” (apudMuniz, 1994, p. 12).

Não foram consolidadas formas efetivaspara o exercício de cidadania, permitindo aparticipação real dos indivíduos na determina-ção dos destinos da sociedade (e democraciapressupõe sociedade civil forte, consciente eparticipativa). Assim, a proposta de um “Esta-do Democrático de Direito” fica estéril, caren-te de instrumentos que permitam limitar o po-der e as ações dos administradores. Não de-nuncio – vê-se – ditaduras; alerto para o poder

que é inerente às estruturas de Estado, passívelde ser exercido arbitrariamente, o que cria anecessidade de que cada indivíduo (e, coletiva-mente, a sociedade) esteja atento e participe1.

Esse poder sublinhado não se restringe aocontrole central da estrutura de Estado: eletransborda por “n” níveis de agentes de Estado(todos aqueles que ocupam funções na organi-zação de Estado), que o rateiam. A porção depoder de cada um desses agentes é determina-da não apenas pelo nível hierárquico ocupado,mas também pelas funções desempenháveis(sua competência funcional) e desempenhadas(seu trabalho, o “espaço” que ocupa); acresça-se a capacidade de influenciar outras esferasadministrativas (próximas ou distantes). Taisagentes de Estado, demonstra Aguiar, funcio-nam como “microlegisladores”, isto é, “legis-lador para pequenos grupos, para parcelas dacomunidade atingidas pelo preceito originário”.Sua característica essencial “é a de ser destina-tário do mandamento legal originário,” o que“lhe confere obrigações e direitos que balizamo âmbito de sua liberdade na questão regula-mentada pela norma geral” (1984, p. 30-31).

Destarte, os súditos de Estado não estãoapenas à mercê de um poder central (das cúpu-las dos três poderes), mas submetidos a níveisde poder estratificado, em muitos dos quais asnormas jurídicas não assumem formas clássi-cas (Constituição, leis, decretos, etc.); exem-plo: por normas verbais, policiais, carcereirosetc. exercem sua parcela de poder. Porém, oexercício desse poder fragmentado pode reali-zar-se sob a forma de agressão ao direito deadministrados, em proveito de outros interes-ses; segundo Aguiar, tais agentes, enquantomicrolegisladores, via de regra, confirmam,pela exegese, que concretizam os parâmetrosque orientam “a norma original, adaptando-a,interpretando-a em função das característicasdo grupo e da correlação de forças que o com-põem. [...] Mas, dentro dos parâmetros estabe-lecidos, o microlegislador pode desenvolveruma tarefa normativa que chega a desfigurar oteor normativo original, ultrapassando os parâ-metros estabelecidos” (Idem, p. 31).

A situação é lamentavelmente notória: umagente de Estado, investido de uma porção depoder e encarregado de determinadas atribui-

1 Ser ativo politicamente e não apenas “súdito”,mero objeto de macropolíticas (onde ninguém pos-sui rosto, história pessoal ou opinião; uma parte não-individualizada das estatísticas).

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ções específicas (e devendo respeitar o conjun-to normativo vigente), utiliza-se dessa parcelade poder para obter uma vantagem indevida dequalquer natureza (uma “comissão”, uma re-compensa etc.), desvirtuando o sentido dasnormas que deve aplicar ou simplesmente des-conhecendo-o e desrespeitando-o. Um exem-plo simples: o sem-número de exigências e di-ficuldades que funcionários (mesmo os maisdesqualificados) podem impor ao exercício deum direito, problema endêmico de muitas denossas repartições públicas.

Mais: há atos que não são propriamente ile-gais, mas que subvertem o fim das normas, le-sionando parcelas da sociedade. O agente deEstado utiliza a atribuição de poder e compe-tência que lhe foi atribuída para negar (totalou parcialmente) a vigência da norma a apli-car. As omissões constituem hábito endêmicoentre nós, em face da prática de legislar retori-camente (sem visar à implementação das hi-póteses definidas); o art. 3º, III, da Constitui-ção afirma constituir objetivo fundamental daRepública “erradicar a pobreza e a marginali-zação e reduzir as desigualdades sociais e regi-onais”; convive, porém, com um quadro demortalidade infantil2 e de miséria. Drumondrefere-se ao contraste entre a Constituição, con-sagrando “a saúde como direito do cidadão edever do Estado” e a entrada do Brasil “na dé-cada de 90 com um inventário na área da saú-de que bem espelha o acentuado desarranjo dotecido social brasileiro que, é bom enfatizar, bei-ra a tragédia” (1993, p. 135).3 Some-se a omis-são no poder/dever de proteger (quer legislandoeficazmente, quer processando e julgando) osbens e interesses públicos, o que já determinouuma generalizada descrença pública diante detantos escândalos financeiros, políticos etc4.

Aqui, impossível não reproduzir a pertinen-te análise de Faria, apontando para a divisãodo aparelho de Estado brasileiro em “anéis bu-rocráticos”, cada um deles:

“(a) agindo em função dos interesses eparticularismos de sua clientela especí-fica, visando à manutençao e à expan-são de suas prerrogativas e reforçandocom isso seus traços neocorporativistas;(b) distorcendo os programas sociais,mediante o sistemático desvio dos recur-sos e subsídios de projetos destinados ori-ginariamente aos segmentos mais caren-tes da população para os próprios seto-res estatais, para vários grupos empre-sariais e para as próprias classes médi-as; (c) produzindo uma distribuição de-sigual e perversa dos direitos e deveresconsagrados pelas leis, uma vez que osgrupos mais articulados conquistaramnão só acesso a foros decisórios privile-giados, mas, igualmente, mais prerroga-tivas do que obrigações, sob a forma deincentivos fiscais, créditos facilitados,juros subsidiados, reservas de mercadoetc.; (d) tornando o jogo político-insti-tucional dependente da ‘jurisprudência’interna de cada um desses ‘anéis’, poisos programas sociais foram convertidosem recursos de poder, razão pela qual aimportância de cada ‘anel’ passou a de-correr de seu orçamento interno e/ou deseu poder regulamentar; (e) descaracte-rizando ideologicamente os partidos eobscurecendo a transparência do jogopolítico e das ações públicas, na medidaem que a retórica parlamentar e sua am-bigüidade programática jamais explici-taram critérios e prioridades em termosde gastos públicos” (1992, p. 22-23).

Sem dúvida, o exame das práticas de Esta-do revela incontáveis situações desconformesao Direito, ou, no mínimo, contrárias à ética eà moral (balizas do processo de interpretação/aplicação das normas), bem como lesivas aosfins declarados para a República. Essas situa-ções demonstram a opressão da estrutura (e dopoder) de Estado. Revelam, ademais, que a es-trutura de Estado é manejada para beneficia-mento de alguns. Souza ressalta que “a legis-lação mentirosamente acena com justiça soci-al, direitos humanos, desenvolvimento, mastudo não passa de letra morta diante da inver-são cultural que levou ao desconhecimento dosprincípios éticos e dos mais elementares dita-

2 Conferir: Folha de São Paulo, 12 fev. 1995.p.18, caderno Brasil, e Veja, 27 set. 1995. p. 40-42.

3 Completa o autor: “estamos perdendo terrenopara a diarréia. Na décima economia do mundo oci-dental, a paralisia infantil continua matando e alei-jando no Nordeste. [...] Só no Estado de São Paulo,1,7 mil mulheres morrem, anualmente, de câncerde colo uterino, que por um simples exame preven-tivo poderia reduzir o número de óbitos à metade”(Idem, p. 136).

4 Note a impunidade no “caso Riocentro”, a anis-tia dos torturadores do período militar brasileiro (le-vada ao extremo de impedir a apuração das circuns-tâncias do “desaparecimento” de vários cidadãos).Na esteira parecem ir os massacres do Carandiru,Corumbiara e Eldorado de Carajás.

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mes do Direito, afastando-o do cidadão paratratá-lo como número em estatísticas quasesempre manipuladas” (Op. cit., p. 12). Tam-bém Bastos já teve a oportunidade de frisar que“as leis são rasgadas num momento político deimposição da força pela força; ou são contor-nadas, elegantemente contornadas, na condu-ta administrativa ou nas sentenças e acórdãos”(apud ENCARNAÇÃO, 1995, p. 52). Carva-lho Netto, por seu turno, refere-se a uma “sub-versão efetiva dos significados possíveis, ori-ginais e primeiros dos textos legais que, ao se-rem atualizados por práticas tradicionais ine-rentes à ordem anterior, asseguram a continui-dade desta” (1992, p. 207).

Em resumo: estamos submetidos a um po-der de Estado: somos súditos (em maior oumenor grau) daqueles que o controlam (políti-ca ou economicamente); num segundo nível,somos reféns potenciais de incontáveis “agen-tes públicos”. Nesse quadro, a cidadania deve-ria ser uma verdadeira possibilidade de limita-ção desse poder, diluindo-o entre toda a socie-dade: o indivíduo deixaria a condição de merosujeito de direitos e deveres e tornar-se-ia ci-dadão, ou seja, tornar-se-ia uma célula consci-ente de participação social.

2. A possibilidade de participaçãoEnquanto possibilidade de efetiva partici-

pação nos desígnios de Estado (determinado-res do destino da sociedade), será o próprioconjunto normativo que definirá o que seja ci-dadania, bem como seu (maior ou menor) al-cance. Em circunstâncias tais, pode-se dizer,como lê-se em Aguiar, que as Constituições dosregimes modernos tendem a estabelecer uma“autolimitação do Estado” (1984, p. 40). Ouseja, os sistemas jurídicos contemporâneos, emsua maioria, exibem um conjunto (maior oumenor, dependendo da evolução histórico-po-lítica das respectivas sociedades) de previsõesnormativas que criam limites para o exercíciodo poder de Estado, em lugar de obrigaçõespara os súditos. Porém, para haver, de fato,maior distribuição de poder (ou seja, democra-cia), não bastam normas jurídicas definindolimites para a atuação dos agentes de Estadoou direitos para os súditos (individualmente oucoletivamente considerados). Faz-se necessá-rio, isto sim, uma profunda revisão das rela-ções sociais, que tendem à exploração desme-surada das massas em benefício de poucos, e

dos fins da estrutura de Estado, tradicionalmen-te manipulada para conservação da exploraçãointrínseca àquelas relações sociais.

Já neste ponto, desenha-se o “mito da cida-dania”, fenômeno presente em diversos orde-namentos jurídicos, dentre os quais destaco obrasileiro. Poucas transformações (geralmentesuperficiais, cênicas ou retóricas) imitam con-cessões, mas apenas falseiam a conservação dopoder de Estado. No Brasil, os mais variadostextos (normas, discursos políticos, publicida-de “oficial” etc.) ressaltam a importância dacidadania para a concretização de um “EstadoDemocrático de Direito” (Constituição Fede-ral, art. 1º); no entanto, por mais que os brasi-leiros queiram se acreditar partícipes, por maisque se valorize o poder de cidadania, conser-vam-se problemas crônicos, como truculênciapolicial, abusos de autoridades administrativas,inoperalidade, corrupção, impunidade, entreoutros5.

O exercício da cidadania no Brasil possuitrês grandes obstáculos: 1º) o sistema jurídicobrasileiro não possui uma ampla definição depossibilidades para uma efetiva participaçãopopular consciente; 2º) a postura excessiva-mente conservadora de parcelas do Judiciário,apegando-se a interpretações que limitam ab-surdamente o alcance dos dispositivos legaisque permitiriam uma efetiva democratizaçãodo poder; por fim, 3º) uma profunda ignorân-cia do Direito: a esmagadora maioria dos bra-sileiros não possui conhecimentos mínimossobre quais são os seus direitos e como defen-dê-los. Dessa forma, o poder continua preser-vado, como preservados continuam os benefí-cios desfrutados por aqueles que podem deter-minar (ou influenciar), de fato, os desígnios deEstado.

Nesse sentido, para além do poder de votare ser votado, os brasileiros dispõem de poucase limitadas possibilidades de fazer valer a lei(menos ainda de fazer valer a sua vontade nalei); e não se olvide que as eleições são jogosmarcados por retórica, teatralidade e publici-

5 O jornal Estado de Minas, 24 set. 1995, noti-cia 120 casos, registrados pela Promotoria de Defe-sa dos Direitos Humanos, de torturas, extorsões e es-pancamentos, somente no ano de 1995. A revista Veja,1º nov. 1995, denuncia que a tortura é empregadacomo principal método de investigação pela políciabrasileira, relatando diversos casos em que foi barba-ramente empregada. Liste-se, ainda, o massacre de“trabalhadores sem-terra” em Corumbiara, RO.

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dade, em que se vendem imagens nem sempreverdadeiras e honestas. Para além desse “po-der” de eleger e ser eleito (com todas as limita-ções que o jogo político lhe impõe), são poucosos espaços para a participação popular. Bello,em artigo ainda inédito, destaca o problemajustamente sob o ângulo da cidadania, toman-do tal conceito “ante uma perspectiva ampla”,ou seja, “como uma célula ou unidade mínimado Estado de Direito (participativo), que não tem,unicamente, a capacidade de votar e ser votado”(1996), ou, ainda, como definição de Cléve, en-carando o cidadão como “sujeito ativo na cenapolítica, sujeito reivindicante ou provocador damutação do direito” (apud Bello, op. cit.).

Segundo Bello, a partir do art. 1º, parágra-fo único (dispondo que todo poder emana dopovo, que o exerce por meio de representanteseleitos ou diretamente, nos termos desta Cons-tituição), a vigente Lei Maior “estabeleceu hi-póteses de participação popular na Adminis-tração Pública: na educação (art. 206, VI), naproteção do patrimônio cultural (art. 216, § 1º),na fixação da política agrícola (art. 187), noplanejamento municipal (art. 29, X), no con-trole das contas municipais (art. 31, § 3º), naseguridade social (art. 194, VII) etc.” (Idem).Entretanto, reconhece, “embora seja uma gran-de conquista o elenco dessas normas na Cons-tituição Federal, elas são normas programáti-cas e dependem de regulamentação legal paraterem ampla aplicação”. É uma concessão pe-riférica6: alude, mas não garante a participa-ção popular na Administração Pública, o queseria, segundo Ferraz, um dos “instrumentoscogitáveis para o desmantelamento do aparatoautoritário da administração pública brasileirae do direito administrativo brasileiro” (apudBello, op. cit.). E, se pequenas brechas foramabertas pela legislação, não houve ainda umamobilização para ocupar tais espaços; “o cida-dão também precisa compreender que a parti-cipação é boa para si mesmo e para a coletivi-dade. A falta de tradição do Brasil neste aspectonão inviabiliza a concretitude de tal proposta”(Bello, op. cit.).

Para além da possibilidade (ou impossibi-lidade) de participação, resta a questão da de-fesa do Direito estabelecido, da busca de efeti-vação das normas limitadoras do poder de Es-

tado, normas moralizadoras e disciplinadorasda ação pública etc. Barroso, apoiando-se emJellinek, destaca:

“as diversas situações jurídicas subjeti-vas criadas pela Constituição seriam deínfima valia se não houvesse meios ade-quados para garantir a concretização deseus efeitos. É preciso que existam ór-gãos, instrumentos e procedimentos ca-pazes de fazer com que as normas jurí-dicas se transformem, de exigências abs-tratas dirigidas à vontade humana, emações concretas” (1993, p. 115).

De fato, a previsão normativa de um direi-to, ou de uma garantia individual ou coletiva,não exaure, por si só, o embate entre domina-dores e dominados, entre exploradores e ex-plorados. Não basta a Constituição dizer, emseu art. 1º, III, que o Estado Brasileiro possuicomo fundamento “a dignidade da pessoa hu-mana”; a tal previsão não corresponde um meiopelo qual um cidadão possa impedir a degra-dação de uma família (conduzida pelo desem-prego para a mendicância), a prostituição in-fantil, a exploração de trabalho em carvoarias,etc.; o texto normativo, assim, não é mais queretórica. Aliás, a Constituição brasileira é umamplo discurso retórico: repleta de previsõesnormativas não-implementadas. O art. 3º daConstituição Federal afirma constituirem ob-jetivos fundamentais da República “construiruma sociedade livre, justa e solidária”, “garantiro desenvolvimento nacional”, “erradicar a po-breza e a marginalização e reduzir as desigual-dades sociais e regionais”, e “promover o bemde todos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas dediscriminação”. Como um cidadão pode exigira sua concretização? Mesmo munido da com-provação estatística de que a pobreza, a margi-nalização e as desigualdades sociais e regio-nais estão se ampliando, um cidadão não podeexigir o cumprimento da norma constitucional(base de todo o sistema jurídico pátrio).

Aliás, nosso sistema jurídico (normas e ju-risprudência) é extremamente injusto e elitis-ta: estimula, quer pelo processo (previsto e pra-ticado), quer pelo estabelecimento de penas (emabstrado e em concreto), a impunidade dos maisabastados (empresários, administradores públi-cos, parlamentares, entre outros). Assim, pune-se de forma basicamente igual aquele que lesao patrimônio público (subtraindo-o, aproprian-do-se, desviando, superfaturando etc.) em mi-

6 Denuncia Aguiar: “a grande sabedoria de umordenamento jurídico é conceder no periférico emanter no essencial” (1984, p. 35). Aqui o sistemaapenas prevê a participação direta dos cidadãos.

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lhões e aquele que lesa o patrimônio público e/ou privado em pequenos valores. Note: desviarmilhões de reais destinados a programas desaúde é fato que provavelmente não será ape-nado (via de regra, há prescrição da pretensãopunitiva, quando não há absolvição em face daprecariedade da instrução probatória), e, se ofor, merecerá condenação inferior à de um rou-bo com ameaça de violência e concurso de agen-tes, em face da primariedade, bons anteceden-tes, etc. O absurdo está em não agravar a penade acordo com a gravidade da lesão (chegandoa décadas de privação da liberdade quando odano for de grande monta, o que incentivaria areposição do patrimônio público).

Existem alguns instrumentos processuaisprevistos para a defesa de alguns dos direitoselencados. Apenas possibilidade, já que, comodito, restam dois grandes embaraços para omanejo amplo e irrestrito de tais caminhos pro-cedimentais: despreparo jurídico (desinforma-ção) da população (ignorante de seus direitos,bem como dos deveres de seus concidadãos edos agentes públicos) e uma endêmica resis-tência de parte da magistratura em concretizaros avanços sócio-políticos, insistindo em pos-turas (inclusive hermenêutica) excessivamen-te conservadoras, formalistas, contribuindopara a impunidade (não apenas penal). Emdefesa dessa postura, as hierarquias superioresdo Judiciário insistem em invocar uma desvir-tuada necessidade de separação e harmonia dospoderes; vale dizer: obrigar os outros Poderesa cumprir normas estabelecidas constituiria ris-co à independência destes, atentando contra aseparação e harmonia entre todos. Mesmoquando há uma evolução legal, verifica-se, ain-da assim, uma resistência judiciária em aceitaro avanço. Barroso, a respeito, apóia-se emBarbosa Moreira para criticar uma tendênciade “interpretação retrospectiva”, ou seja, aquelaque “lê o novo texto com espírito nostálgico,no ímpeto de buscar novas soluções. Tanto atimidez como a eventual hostilidade do PoderJudiciário tirar-lhe-iam as honras de colabora-dor sincero e empenhado da restauração de-mocrática, para transformá-lo em coadjuvantedo fracasso, como sabotador voluntário ou in-voluntário.” (Idem, p. 120)

Exemplo dessa “timidez judiciária” é omandado de injunção (art. 5º, LXXI, da Cons-tituição). Foi previsto para que a ausência denormas regulamentadoras não impedisse a apli-cação de normas constitucionais: o Judiciário

poderia suprir a lacuna para o requerente, per-mitindo a efetivação do dispositivo constituci-onal. Entretanto, como lê-se no Mandado deInjunção nº 288-6/DF, “a jurisprudência domi-nante no Supremo Tribunal Federal firmou-seno sentido de atribuir ao mandado de injunçãoa finalidade específica de ensejar o reconheci-mento formal da inércia do Poder Público emdar concreção à norma constitucional positi-vadora do direito postulado, buscando-se, comessa exortação ao legislador, a plena integra-ção normativa do preceito fundamental invo-cado pelo impetrante do writ como fundamen-to da prerrogativa que lhe foi outorgada pelaCarta Política”(rel.: Min. Celso De Mello. DJU,p. 11.629, 3 maio 1995).

O Supremo Tribunal Federal transformouo mandado de injunção numa mera ação de-claratória de “mora legislativa”: em lugar desuprir a ausência de regulamentação de um dis-positivo constitucional, garantindo sua eficá-cia plena, limita-se a declarar a existência dalacuna, reconhecendo a inadimplência do Po-der Legislativo no cumprimento de seu deverde regulamentar os direitos e as garantias pre-vistas na Lei Básica. Via de conseqüência, ex-terminou-se a possibilidade de dar eficáciaimediata às normas constitucionais; mesmonotificado de sua mora, o Legislativo pode nãosuprir a lacuna. É o que ocorre, por exemplo,com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal,norma que, há muito, o STF já declarou care-cer de regulamentação (cf. ADIn 4/DF); a in-terposição de mandado de injunção sobre amatéria, a exemplo do nº 457-9/SP, mereceapenas o reconhecimento da inadimplência,mas não o suprimento da lacuna: o mandado é“deferido em parte, para que se comunique aoPoder Legislativo a mora em que se encontra,a fim de que adote as providências necessáriaspara suprir a omissão” (cf. DJU, p. 22.440, 4ago. 1995).

A mesma timidez (ou resistência) envolvecertos aspectos da ação direta de inconstitucio-nalidade. Como já tive ocasião de analisar alhu-res, “tal como posto em nossa legislação, essa– efetiva – participação de Estado é pratica-mente impossível de ser exercida: o ordena-mento jurídico brasileiro cria, assim, uma ci-dadania parcial, na medida em que retira docidadão o poder de agir para a preservação dosinteresses sociais (depois de já ter retirado dagrande maioria da população o poder de com-preensão, não lhe fornecendo condições parauma formação educacional, minimamente sa-

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tisfatória que fosse). A isso acresça-se uma exe-gese judicial que dificulta ainda mais o exercí-cio da cidadania: o Supremo Tribunal Federal,por exemplo, erige todas as dificuldades possí-veis para o exercício das ações diretas de cons-titucionalidade” (1995b, p. 153, nota 2).

Entre as dificuldades erigidas, pode-seexemplificar com a definição e compreensãodo que seja “entidade de classe de âmbito naci-onal” (cf. ADIn 334-8. DJU, p. 7.772, 31 mar.1995), bem como a exigência de que haja uma“relação de pertinência entre o interesse espe-cífico da classe” defendida por tal entidade e“o ato normativo que é argüido como inconsti-tucional” (cf. ADIn 913-3. DJU p. 11.904, 5maio 1995). O Supremo Tribunal Federal trans-formou tais requisitos em elementos mais im-portantes do que o próprio exame da pertinên-cia da alegação de inconstitucionalidade. Des-tarte, mais do que requisitos procedimentais,tais elementos cumprem a função de entravescolocados justamente para dificultar o exameda inconstitucionalidade, passando a questãode mérito a ocupar posição secundária, justa-mente em função do formalismo exacerbadoque impede o seu conhecimento.

Outros instrumentos processuais do Direi-to vigente dirigem-se à defesa de direitos e in-teresses coletivos e difusos, ou seja, respecti-vamente: (a) interesses e direitos de um grupode indivíduos que se pode determinar, ligadosentre si por elemento comum; ex.: profissio-nais de uma mesma área – associados em enti-dade profissional –, empresas de uma regiãoou área econômica – organizadas em entidaderepresentativa – , alunos ou pais de alunos deuma instituição de ensino, condôminos etc.; (b)interesses e direitos que dizem respeito a umconjunto não-enumerável de indivíduos – nãoidentificados ou identificáveis –, como “a soci-edade”, os moradores de uma região, os consu-midores de um certo produto etc. A proteçãodessas duas ordens de direitos e interesses (des-tacada a difusão) constitui tema inegavelmen-te central no debate jurídico contemporâneo.Infelizmente, no Brasil, não se consolidou ain-da uma legislação e muito menos uma tradiçãojudiciária adequadas a uma ampla defesa deinteresses e direitos dessas naturezas (uma la-mentável falta de amplitude democrática).

A Constituição Federal de 1988 (art. 5º,XXI) avançou ao permitir que as entidades as-sociativas pudessem buscar a defesa dos direi-tos de seus membros, judicial ou extrajudicial-mente. O texto da norma, contudo, refere-se à

necessidade de “autorização expressa” dosmembros, o que, em conjunto com a disposi-ção do inciso XX, do mesmo art. 5º (prevendoque “ninguém poderá ser compelido a associ-ar-se ou permanecer associado”), tem sido uti-lizado como argumento para limitar o âmbitode atuação das associações. O argumento im-peditivo deve ser analisado com seriedade, mas,principalmente, com razoabilidade, certo que,em inúmeras situações, essa autorização chegaa se presumir (ex.: associação de pais e mes-tres em procedimentos que dizem respeito àadministração de unidade escolar, preço demensalidade, prestação de contas; associaçõesde aposentados, em procedimentos que visemà melhoria de pecúlios ou serviços assistenci-ais, etc.). Sem esse bom senso na interpretaçãodo dispositivo constitucional, fugir-se-á aos finsvisados pela norma, um inegável retrocesso nabusca da consolidação de um Estado Democrá-tico de Direito.

Ainda para a defesa dos interesses difusos,pode-se listar a ação civil pública, pretenden-do determinar a responsabilidade por danoscausados ao meio ambiente, ao consumidor, abens e direitos de valor artístico, estético, his-tórico e turístico. A capacidade de aforamentoda ação civil pública é limitada pelo texto le-gal (Lei nº 7.347/85): o Ministério Público, osentes políticos e seus órgãos descentralizados,as associações velhas de um ano, cujos estatu-tos prevejam a tutela do interesse cogitado inconcreto. Um inegável instrumento para a pro-teção dos bens e dos interesses públicos. En-tretanto, como anota Barroso, a legislação quea disciplina já está a comportar uma evolução:“extensão da legitimidade ativa a particulares,agindo em nome da coletividade”, assim comoa ampliação dos “interesses tutelados”, “nãohavendo razão para restringir as ações coleti-vas aos temas que a lei, numerus clausus, deli-mita” (Op. cit., p. 140-141).

O art. 5º, LXXIII, do Texto Constitucionalde 1988 lista a “ação popular”, que pode serproposta por “qualquer cidadão”, visando “aanular ato lesivo ao patrimônio público ou en-tidade de que o Estado participe, à moralidadeadministrativa, ao meio ambiente e ao patri-mônio histórico e cultural, ficando o autor, salvocomprovada má-fé, isento de custas judiciais edo ônus da sucumbência”. Destaca Barroso que“a legislação ordinária que disciplina a açãopopular ampliou-lhe largamente a área de in-cidência”, tutelando não apenas as “pessoasestatais, mas também autarquias, as socieda-

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des de economia mista, as empresas públicas,as fundações instituídas pelo poder público eos serviços sociais autônomos, dentre outras(Lei nº 4.717/65, art. 1º). Além disso, ao fixaro conceito de patrimônio público, dilatou-o paraabranger os bens e direitos de valor econômi-co, artístico, histórico ou turístico (art. 2º).”(Op. cit., p. 134)

O mandado de segurança, atualmente pre-visto no art. 5º, LXIX, da Constituição, é ins-trumento que surgiu já na Carta de 1934, es-tando regulamentado pela Lei nº 1.533/51. Oart. 5º, LXX, da vigente Constituição, criou afigura do manejo coletivo do mandado de se-gurança, determinando uma “ampliação da le-gitimação ativa”, “uma hipótese de substitui-ção processual”, com o que “poderá uma enti-dade de classe intervir em nome da coletivida-de como um todo, na defesa de um interessegeral, que apenas se reflete, sem com ele con-fundir-se, no interesse individual de cada umdos seus membros”, o que implica uma “gran-de simplificação e economia de tempo e traba-lho”, assim como suprime a “possibilidade dedecisões logicamente conflitantes” (Idem, p.136-137). Mas também, quanto ao mandadode segurança coletivo, paira a sombra de umainterpretação limitadora, que poderia ser im-pingida a partir da invocação do inciso XX domesmo art. 5º (cf. supra), exigindo seriedade erazoabilidade do Judiciário, certo que se podelimitar em excesso o emprego do mandamuscoletivo com uma exegese ortodoxa, lamenta-velmente reiterada por certa parcela da magis-tratura.

No âmbito dos direitos individuais, há ohabeas corpus, cuja presença, no direito brasi-leiro (hábil à proteção da liberdade de locomo-ção – art. 5º, LXVIII), é clássica, não mere-cendo, no âmbito deste trabalho, maiores con-siderações. A Constituição de 1988, em seu art.5º, LXXII, criou uma nova ação, qual seja ohabeas data, permitindo o “conhecimento deinformações relativas à pessoa do impetrante,constantes de registros ou bancos de dados deentidades governamentais ou de caráter públi-co”, bem como a retificação desses dados. Paraa interpretação desse art. 5º, LXXII, é indis-pensável que se lance atenção para outro direi-to e garantia individual, anotado no art. 5º,XXXIII, da vigente Constituição Republicana:“todos têm direito a receber dos órgãos públi-cos informações de seu interesse particular, oude interesse coletivo ou geral, que serão pres-tadas no prazo da lei, sob pena de responsabi-

lidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja im-prescindível à segurança da sociedade e doEstado”.

O constituinte procurou sepultar uma anti-ga prática de Estado no Brasil, onde os admi-nistradores insistem em práticas abusivas. Já

“ao tempo do Império, havia expedien-tes em que a simples afirmativa ‘constaque’era suficiente para a cassação até dedireitos políticos dos cidadãos, demons-trando com isso o arbítrio que havia notocante ao fornecimento de dados pesso-ais comprometedores da honorabilidadedo cidadão, utilizados por terceiros, semque o prejudicado tivesse ciência do fatoou pudesse corrigir eventuais abusos, porlhe serem negadas informações referen-tes à sua pessoa. Na atualidade, ocorremabusos semelhantes, que o preceito emtela procura evitar, facultando o acessodo interessado às informações de quenecessite” (Soares, 1990 , p. 136).

3. Cidadania: participação conscientePara além da questão relativa à definição

normativa das possibilidades de participaçãonos desígnios da sociedade e sua organizaçãoem Estado, restam as condições sócio-políticasem que se insere o tema cidadania. Parte doproblema já foi analisada: refiro-me a uma pos-tura conservadora de parte do Poder Judiciá-rio, limitando a evolução social do país (e oquadro de miséria vigente entre nós aponta anecessidade urgente de reformas sociais). Fa-ria confessa desapontamento semelhante:

“à medida que surgem novos tipos deconflitos, a maioria das leis vai envelhe-cendo. Embora os legisladores respon-dam ao desafio da modernização das ins-tituições de direito com a criação de no-vas leis, a cultura técnico-profissional damagistratura parece defasada, insensível,portanto, aos problemas inerentes à apli-cação de leis mais modernas em sua con-cepção” (1992, p. 9).

A posição assumida pelo Judiciário consti-tui um dado forte nas mazelas da máquina es-tatal brasileira. Era inevitável, portanto, que,mais cedo ou mais tarde, o Judiciário fosse co-locado nos debates nacionais, o que aos poucosvem ocorrendo. Durante anos, foi um Poderintocado, como que posto para além do bem e

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do mal. Houve, contudo, excessos. Por certo,garantir independência aos juízes é um princí-pio de democracia; mas não expô-los à opiniãopública é permitir o exercício do arbítrio dequem, possuindo o poder de interpretar as nor-mas, pode até mesmo negá-las. Esse debate,contudo, deve ser criterioso: a muitos interessaapenas garantir que o Judiciário não obstaculi-zará suas ações ilegítimas. Permiti-lo seria umenorme retrocesso. Mas esquecer-se que tam-bém no Judiciário se praticam atos reprováveisconstitui, no mínimo, ingenuidade. A discus-são, portanto, exige bom senso e respeito à pri-mazia dos interesses da sociedade sobre os in-teresses individuais.

Há também o problema do acesso dos po-bres à Justiça. Carneiro, pretendendo analisar“a pobreza crítica de milhões de latino-ameri-canos”, refere-se a uma correlata “pobreza po-lítica”, vale dizer, não há “nenhum acesso aopoder político e nenhuma oportunidade de par-ticipação” (apud Oliveira Filho, 1995, p. 23).É o terceiro obstáculo, já referido: como se podeter cidadania (participação consciente nos de-sígnios de Estado) com indivíduos que nãopossuem condições mínimas de compreenderseus direitos e deveres? Afinal, como dizCarneiro,

“para exercitar direitos e cumprir obri-gações pessoais e sociais, para partici-par de uma democracia sólida, madura eativa, é necessário que as pessoas tenhama possibilidade de informar-se, de conhe-cer, quer dizer, de participar.”

Porém, na realidade, os pobres “não têmoportunidade de conhecer seus direitos, nãopossuem acesso aos serviços apropriados e dis-poníveis. Para eles, a lei, o Direito, é algo ina-cessível, amedrontador, olhado com bastantereserva, pois, sempre que os pobres têm conta-to com a lei e a justiça, é, em geral, no campodo direito penal, e sempre para sancioná-lo,coibi-lo; em nenhum momento o pobre encaraa justiça como um serviço social capaz de ou-torgar-lhe benefícios – as experiências pesso-ais, os abusos de autoridades mostram a reali-dade expressada” (Idem, p. 25).

Milhões de brasileiros vivem em pobrezapolítica: não se lhes permitiu uma educaçãoapta a desenvolver um senso político e crítico.Especificamente quanto ao Direito, esse enor-me contingente populacional vive em ignorân-cia jurídica, desconhecendo informações ele-mentares que lhe tocam o cotidiano, como a

Lei do Inquilinato, normas sobre o poder deprisão, direitos trabalhistas etc. Chamar-lhesde cidadão, nesse contexto, é pura retórica den-tro de um mito de democracia participativa quenão possui condições mínimas de ser imple-mentada por não estar alicerçada em uma efe-tiva (possibilidade de) participação popular.Curiosamente, os “esforços de redemocratiza-ção” (denominandos assim os atos e processosde transição entre os regimes militares, autori-tários, para regimes civis, pretensamente de-mocráticos) pelos quais passaram – e/ou pas-sam – os países da América Latina não foramacompanhados por uma popularização do co-nhecimento jurídico, permitindo a formação decidadãos conscientes de seus poderes, suas fa-culdades, e de suas obrigações. Ao contrário,esse conhecimento continua sendo um privilé-gio daqueles que podem pagar a assessoria dequalificados profissionais do Direito (e, quan-to mais qualificados, mais bem remunerados).

Como se só não bastasse, Carneiro tambémreconhece que

“existem em nossas instituições judici-ais inegáveis dificuldades que impedemo acesso dos mais despossuídos ao siste-ma judicial. As experiências demonstramque os processos são lentos, burocráti-cos, gerando decisões inoperantes, e queterminam por causar frustrações e ressen-timento a tais setores” (Op. cit., p. 26).

Há que se acrescer, por óbvio, o problemado custo de estar em juízo, principalmente noque se refere à possibilidade de se fazer repre-sentar por um bom advogado, capacidade que,justamente em razão da limitação econômica,os pobres rarissimamente podem exercitar.Carneiro assevera que a atenção para as de-mandas dos pobres, por parte de advogadosnomeados pela Ordem dos Advogados ou pe-los Tribunais para defender gratuitamente aspessoas pobres, por parte dos Defensores Públi-cos, escrivães, funcionários do Judiciário, é “es-cassa, negligente e descuidada” (Idem, p. 29-31).

4. O mito da cidadaniaA cidadania entre nós, vê-se, não é uma

realidade: é uma promessa. E, se não temoscidadania (e, por conseqüência, cidadãos), senão temos participação consciente (um amplocontingente de pessoas conscientes e dispostasa participar da e) na condução da sociedadeorganizada em Estado, não temos democracia.

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Destaque o elemento humano. É preciso nãoesquecer que, para além da definição jurídicade “cidadão”, estamos nos referindo a sereshumanos (e a uma sociedade). É a qualidadepolítica de cada um desses indivíduos que mar-ca a qualidade política da sociedade (num so-matório não-aritmético). Althusser, escorando-se em Marx, adverte que “a sociedade não écomposta de indivíduos”; “o que a constitui é osistema de suas relações sociais, onde vivem,trabalham e lutam seus indivíduos”. Realça-sea questão da formação do ser humano pela ena sociedade7; afinal “cada sociedade tem seusindivíduos, histórica e socialmente determina-dos” (1978, p. 30; grifei)8.

A questão da cidadania não é apenas nor-mativa e doutrinária, mas sociológica: apura-se também no plano dos fatos que compõem (eafetam) a vida dos seres humanos. Assim, im-porta também verificar a cidadania efetivamen-te experienciada pela sociedade, pois, para alémdas teorias e das normas, está a vida de cadaser humano que constitui a sociedade. De pou-co adianta propagar que cada um é um agentede seus destinos político, social, econômico,jurídico (o mito da cidadania), se não há con-dições jurídicas e mesmo pessoais para que issoocorra. Esse ser humano que se crê agente é,antes de mais nada, um objeto de cultura: ela oprecede e o forma. Pensamos agir com liberda-de, mas agimos segundo parâmetros de “nor-malidade” desse tempo histórico (repetindo atose pensamentos que nos são anteriores e poden-do influenciar a história apenas em certos li-mites – variáveis de caso a caso, mas, via deregra, extremamente reduzidos). Confira-seFigueiredo (1994): o tempo histórico forma oindivíduo, constrói seu pensamento, marca atendência de seus comportamentos, seus dese-jos principais, suas “necessidades”. Sob o en-foque da psicologia, Figueiredo demonstra oacerto das afirmações de Marx acerca das in-fluências das condições materiais, econômicas,sociais sobre o ser humano.

Assim, o ser humano medieval (europeu)acreditava em (vivia com) fadas, feiticeiros,magos, maldições, etc.: um tempo de luta reli-giosa (contraste de seitas em um mundo quecrescia) e de forte influência da Igreja Católi-ca: a vida como mera provação, entre Deus e odiabo (luta marcada pelo sacrifício e pelo so-frimento; o prêmio: a salvação eterna; o casti-go: o inferno). O agnosticismo de nosso tem-po, por sua vez, segue também a história: a re-ligião foi substituída do centro das atenções ereferências pela ciência e pela economia (e avida eterna, pelo conforto, riqueza, sucesso).Sim! Somos seres feitos de história9, formadosem um tempo e lugar, em uma sociedade e suaprática social; não só nosso comportamento,mas nossa visão de mundo (a forma como arealidade se manifesta em nós) nos são anteri-ores em suas linhas mestras. Cada ser humanocompreende a si e a realidade em que se insere(na forma como crê que seja essa realidade e essainserção) a partir de referenciais que lhe são ex-teriores e anteriores (que lhe foram dados)10.

No caso brasileiro, deixando de dar forma-ção educacional (crítica e política) a parte dapopulação, mantém-se a prática espoliatória quebeneficia uma elite (narcísica, incompetente,inconseqüente) em desproveito de milhões depessoas (miseráveis e trabalhadores das clas-ses baixas). Permite-se uma certa ordem deprivilégios para uma classe intermediária (clas-se média), que, na estrutura social, funcionacomo suporte para as classes dominantes: for-nece-lhe profissionais que administram seusinteresses (nestes incluídos tanto os negóciosparticulares, quanto os “negócios de Estado”,ou seja, a administração do aparelho de Esta-do, sempre no estrito respeito à conservação deseus benefícios), assim como assimila (moti-vada pelo desejo de conservar sua própria par-

7 Já tive oportunidade de abordar, mais detida-mente, essa questão da formação (condicionamen-to) do indivíduo pela (e na) sociedade (cf. 1995,capítulos 2 a 8).

8 Minha adesão a Althusser é limitada. Não acre-dito, p.ex., que a exploração de seres humanos sejaprivilégio do capitalismo: regimes autodenomina-dos comunistas e socialistas exibiram-na também;não comungo, portanto, da confiança do autor noPartido.

9 Não só, é claro.10Neste tempo, as condições históricas requerem

a formação de indivíduos politizados (conscientes daimportância de participar dos desígnios da sociedademundial); porém, procura-se forçar a acomodação dostrabalhadores em nome do emprego e do desenvolvi-mento; os trabalhadores abrem mão de direitos soci-ais, mas as elites conservam festas caras, comprasmilionárias de objetos de arte, iates, propriedadessuntuosas etc. Por outro lado, a “vida moderna”, cons-truída de trabalho alienado e consumo, desiludiu: vi-vemos um surto de depressão: crescem as “culturasalternativas” (místicas ou não), o consumo de drogas(do alcóol e tabaco aos entorpecentes) e a busca porentretenimento (alienante, frise-se).

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cela – ainda que limitada – de benefícios) afobia – e a luta – contra um possível “levante”das massas exploradas.

A esse quadro de dominação e à explora-ção serve o “mito da cidadania”: nossa socie-dade é induzida a crer-se democrática e os in-divíduos a crerem-se cidadãos; segundo essediscurso (falso, nos termos vistos), haveria,entre nós, respeito ao Direito (não só às nor-mas estabelecidas, como aos “elevados princí-pios de justiça”) e oportunidades de participa-ção. Mas, examinando-se os indivíduos isola-damente, encontrar-se-á apenas uma pequenaminoria que possui condições pessoais e soci-ais de, efetivamente, conhecer e utilizar-se daspossibilidades (limitadas, como viu-se) de par-ticipação consciente nos desígnios de Estado.A consolidação do (verdadeiro) Estado Demo-crático de Direito, em contraste, exige muitomais. Há que repensar nossas posturas: a pre-tensa inocência da alienação política provou,durante anos, ser uma irresponsável adesão àcontinuidade do sistema espoliativo que polvi-lhou nosso país de miseráveis, despreparados,até mesmo, para perceberem que o trabalho11 e aorganização das iniciativas poderia ser uma pos-sibilidade de superação do estado em que se en-contram. Assim, muitos se entregam às seduçõesdo vício (que aliviaria) e da criminalidade (ondecrêem poder exercitar algum poder).

Os que possuem uma visão crítica preci-sam posicionar-se e buscar conquistas que efe-tivem a democracia. Trabalhar, quer no planopolítico (na luta pela construção de um siste-ma educacional capaz de criar seres humanosaptos a compreender, de forma crítica e parti-cipativa, a realidade social e política; a altera-ção das legislações que cuidam da participa-ção popular na Administração Pública e dadefesa dos direitos previstos, etc.), quer no pla-no jurídico (criando organizações não-gover-namentais para o exercício dos meios proces-suais disponíveis, concretizando uma defesa dosdireitos individuais, coletivos ou difusos pre-vistos, bem como defesa dos bens e interessespúblicos; alteração das práticas judiciárias e ad-ministrativas de Estado, em que a busca de for-malismo determina que se tratem de forma igualfracos e fortes, espoliados e espoliadores).

Esse o desafio que se coloca diante de nós;

11 Não se esqueça que a ausência de educaçãolhes franqueia apenas postos desqualificados de tra-balho.

assumi-lo é uma opção de justiça, opção hu-manista, evolucionária (em lugar de revolucio-nária).

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Direito Comparado como Ciência

SUMÁRIO

IVO DANTAS

1. A questão terminológica. 2. A expressão Di-reito Comparado. 2.1. Direito Extrangeiro, Legis-lação Comparada, Direito Comparado. 3. Concei-to de Ciência. Caráter científico do Direito. 4. Di-reito Comparado: método ou ciência? 5. Funçõesdo Direito Comparado. 6. Pequena bibliografia deDireito Comparado.

1. A questão terminológicaQualquer tentativa de conceituação e fixa-

ção de objeto e método de uma ciência impli-ca, evidentemente, valoração por parte daque-le que vai empreender o estudo. Em outras pa-lavras, pode-se dizer que não existe posiçãocerta ou errada em tais tentativas, uma vez queo entendimento filosófico-epistemológico doautor é que determinará a rota que será segui-da na tarefa conceitual.

Se tal ocorre até mesmo nas ciências ditasavançadas, muito mais presente está nas ciên-cias sociais, geralmente filhas do século XIX,embora com certa tradição desde a antigüida-de greco-romana e da qual não fogem os estu-dos políticos, representados pela reflexão va-lorativa de Aristóteles, Platão, Tomás de Aqui-no, Agostinho, Rousseau, Montesquieu, Marxe tantos outros, mas que só recentemente pas-saram a preencher os requisitos de cientifici-dade.

A conclusão de parte da doutrina no senti-do de reconhecer a cientificidade das reflexõessobre o social, entretanto, não afasta a consta-tação de que não são poucos os autores que ain-da hoje lançam-lhe dúvidas, entre outros moti-vos, pela presença de uma flexibilidade termi-

Ivo Dantas é Professor Titular da Faculdade deDireito do Recife (UFPE), Doutor em Direito Cons-titucional (UFMG), Livre Docente em Direito Cons-titucional (UERJ), Professor do Curso de Mestradoem Direito da Universidade Federal do Pará, Pro-fessor do Curso de Mestrado em Direito da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte, Professordo Curso de Mestrado em Direito da UniversidadeFederal de Alagoas, Professor Titular do BureauJurídico, Recife, e Advogado. NOTAS AO FINAL DO TEXTO.

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nológica e pela inexistência de um paralóquiointeligível ao homem de cultura média, ou seja,uma metalinguagem que explique e seja acei-ta, tanto quanto possível, pelo universo dos quese dedicam a tais estudos. Assim, na Sociolo-gia, por exemplo, o próprio conceito de socie-dade ou mesmo de fato social ainda não con-seguiu uma aceitação pacífica, muito embora ten-tativas nesse sentido existam desde Durkheim eoutros, o mesmo acontecendo com o de Esta-do, nos estudos jurídicos e políticos tal comotemos nos ocupado em todos os trabalhos járeferidos1.Preocupado com o direito, afirma Paul Valéry2

que“nous parlons facilement du droit, de larace, de la proprieté. Mais qu’est-ce, quele droit, que la race, que la proprieté?Nous le savons, et ne le savons pas”.

Referindo-se aos dois sentidos do vocábulodireito, tal como já por nós mencionado (= pro-cesso e conhecimento), Alberto Calsamiglia3,ao estudar “El Estatuto Científico de la Dog-mática”, referindo-se à “ambigüedad del tér-mino derecho”, escreve que

“la distinción entre el derecho y la cien-cia del derecho no está clara para lamayoría de los juristas. Una de las posi-bles acepciones de la palabra derecho esciencia del derecho. En el lenguaje ordi-nario, décimos que estudiamos derecho.En esta frase se hace referencia al saberjurídico. También utilizamos la palabraderecho para designar un ordenamientojurídico, derecho subjetivo o, incluso, laidea de justicia”.

Em outras palavras, não poderemos perderde vista – e já o afirmamos – que com a mesmaexpressão tanto designamos o ordenamentojurídico-positivo como o estudo que se efetuasobre ele. Dizendo melhor: o mesmo substan-tivo tanto é usado para significar o processoem si como o conhecimento que sobre ele seformula, a ponto de Héctor Fix-Zamudio, nolivro Metodologia, Docencia e InvestigaciónJurídicas4, escrever que

“en primer término, el derecho tiene ensu contra la circunstancia de que la de-nominación que puede darse a la disci-plina que se ocupa de su estudio es equí-voca y comienza por confundirse con sumisma materia.

Así, mientras a nadie se le ocurriríaconfundir la astronomía con los astros,las estrellas o las galaxias; la física con

la materia, o la geografía con el globoterráqueo, es frecuente la discusión so-bre si el derecho posee o no carácter ci-entífico, no obstante que el derecho noes una disciplina racional, sino un obje-to de conocimiento”.

Embora reconhecendo a inexistência deuma rigidez vocabular nos estudos jurídicos,Cândido Dinamarco (Fundamentos do Proces-so Civil Moderno5) já identifica nele um pro-gresso que o torna “mais minucioso e apura-do”. Textualmente, escreve que

“mede-se o grau de desenvolvimento deuma ciência pelo refinamento maior oumenor do seu vocabulário específico.Onde os conceitos estão mal definidos,os fenômenos ainda confusos e insatis-fatoriamente isolados, onde o método nãochegou ainda a tornar-se claro ao estu-dioso de determinada ciência, é naturalque ali também seja pobre a linguagem,e as palavras se usem sem grande preci-são técnica.

Em direito também é assim. À medi-da que a ciência jurídica se aperfeiçoa,também o vocabulário do jurista vai sen-tindo os reflexos dessa evolução, tornan-do-se mais minucioso e apurado. A lin-guagem do jurista de hoje não é a mes-ma do seu antecessor do século passado,precisamente porque a ciência do direi-to já se encontra profundamente modifi-cada (assim como a do físico, que nasúltimas décadas tantos fenômenos novosvai precisando designar)”.

Finalmente, relembre-se que a necessidadede precisar o sentido dos vocábulos já era real-çada por Aristóteles6 nos seguintes termos:

“É útil ter examinado a pluralidadede significados de um termo, tanto nointeresse da clareza (pois um homem estámais apto a saber o que afirma quandotem uma noção nítida do número de sig-nificados que a coisa poder comportar),como para nos certificarmos de que onosso raciocínio estará de acordo comos fatos reais e não se referirá apenas nostermos usados. Pois, enquanto não ficarbem claro em quantos sentidos se usa umtermo, pode acontecer que o que respon-de e o que interroga não tenham suasmentes dirigidas para a mesma coisa; aopasso que, depois de se haver esclareci-do quantos são os significados, e tam-bém qual deles o primeiro que se tem

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em mente quando faz a asserção, o quepergunta pareceria ridículo se deixassede dirigir seus argumentos a esse ponto.

Isso também nos ajuda a evitar quenos enganem e que enganemos os ou-tros com falsos raciocínios; porque, seconhecemos o número de significados deum termo, certamente nunca nos deixa-remos enganar por um falso raciocínio,pois perceberemos facilmente quando oque interroga deixa de caminhar seusargumentos ao mesmo ponto”.

A flexibilidade terminológica do vocábuloDireito agrava-se de maneira mais gritantequando utilizado na expressão Direito Com-parado, visto que, apesar de reconhecidas suaexistência e autonomia, sua denominação per-manece como ponto de discordância, o que, porsinal, ocorre com suas primas-irmãs, CiênciaPolítica e Teoria do Estado.

2. A expressão Direito ComparadoFelipe de Solá Cañizares, em sua Introduc-

ción al Derecho Comparado7, além de reco-nhecer o aspecto mencionado, fala-nos de umuso inadequado da expressão, ao escrever que

“antes de examinar el problema tan de-batido del concepto del derecho compa-rado, conviene hacer unas observacionesacerca de la expresión derecho compa-rado y de las otras denominaciones quese han empleado en un sentido equiva-lente.

Derecho Comparado es la expresiónconsagrada por el uso, especialmente enlos países latinos, en los de lengua in-glesa y también en los países escandina-vos y eslavos. Y, sin embargo, los auto-res contemporáneos coinciden en consi-derar esta expresión inadecuada y pres-tándose a confusión, porque puede ha-cer creer que se trata de una rama delderecho que trata de una materia deter-minada, como es el sentido de las expre-siones derecho civil, derecho penal, de-recho comercial, etc”.

No mesmo sentido, Pierre Arminjon, Ba-ron Boris Nolde e Martin Wolff, em seu Traitéde Droit Comparé8, escrevem que “l’expressiondroit comparé est à première vue peu satisfai-sante, elle ne donne pas une idée claire de lachose qu’elle désigne”, para, logo em seguida,prosseguir:

“Elle implique une comparaison,

mais sans en indiquer les termes. Onpourrait croire qu’il s’agit de comparerles diverses branches du droit: droit ci-vil, droit commercial, droit maritime,droit administratif, droit pénal, ou biende comparer le même système de droit àdiverses époques de son évolution”.

Dessa inadequação nos fala René David emseu Tratado de Derecho Civil Comparado –Introducción al Estudio de los Derechos Ex-tranjeros y al Método Comparativo9, quandoafirma que

“la expresión Derecho Comparado, porevocar una analogía entre diversas ra-mas del Derecho positivo que constituyenotras tantas ramas de la ciencia jurídica,es una expresión desafortunada que ha-bría sido mejor y valdría la pena evitar”.

E acrescenta:“Muchas discusiones ociosas se ha-

brían evitado si en lugar de empregarlase hubiera hablado, con ciertos autores,bien de comparación de Derechos, biende método comparativo”.

Aliás, entre os que preferem substituir aexpressão Direito Comparado por Compara-ção de Direito, cumpre lembrar Alberto Tri-piccione, que denomina seu livro de La Com-parazione Giuridica, nele estabelecendo umaverdadeira Teoria do Direito Comparado, alémde proceder a análises dos sistemas soviético eislâmico do Direito. A mesma opção acontececom A. J. Van Der Helm e V. M. Meyer nolivro Comparer en Droit10.

H. C. Gutteridge (Le Droit Comparé – In-troduction à la méthode comparative dans larecherche juridique et l’étude du droit11), apoi-ando-se em Lee, entende que

“l’expression droit comparé est une ex-pression étrange. Son étrangeté apparaitlorsque l’on s’efforce de la definir ou depreciser ses rapports avec d’autres bran-ches de la connaissance”.

E prossegue:“Une bonne part de l’atmosphère de

doute et de suspicion qui entoure l’étudedu droit comparé et qui, dans le passé,s’est tant opposée à son dévelopementdisparaîtrait, s’il venait à être reconnupar tout le monde que l’éxpression ‘droitcomparé’ désigne une méthode d’étudeet de recherche, et que le droit comparén’est pas une branche ou une divisionspéciale du droit. Si par ‘droit’ nous en-

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tendons un corps de règles, il est évidentqu’il n’existe pas une telle chose que ledroit ‘comparé’.”

Concluindo, afirma Gutteridge:“Il n’existe pas une branche particu-

lière du droit appelée ‘droit comparé’dans le même sens qu’il y a un ‘droit dela famille’, ou un ‘droit maritime’ oud’autres divisions dans lesquelles ons’entend pour grouper les règles de droiten vigueur, relatives à une matière dé-terminée.

Les mots ‘droit comparé’ ne recou-vrent rien...”12

Ora, se atentarmos que o Direito Compa-rado é ramo do conhecimento sobre o proces-so (= ordenamento jurídico), não vemos ne-nhum inconveniente no uso da expressão, a qualequivale, em essência, ao que os alemães cha-mam de Rechtsvergleichung, e que podemostraduzir como “comparação de direitos”.

Referindo-se a ela, Cañizares13 chega a di-zer que é “más afortunada”, pois

“indica comparación de derechos, y porlo tanto, da una idea más exacta de loque en realidad es lo que denominamosderecho comparado, que es la compara-ción de sistemas jurídicos distintos y noun conjunto de reglas aplicables a unamateria determinada”.

Seja-nos permitido adiantar que, mesmo oDireito Comparado visando estudar “sistemasjurídicos distintos”, como afirma o citado au-tor, nada lhe impede analisar subsistemas ouaspecto(s) de um subsistema. Assim, poderá ocomparativista, por exemplo, voltar-se para osistema tributário, sistema penal, sistema cons-titucional (= partes do sistema jurídico total),ou ainda, dentro de cada um deles, determina-do instituto como, por exemplo, fato gerador,pena, sistema partidário ou controle da cons-titucionalidade das leis. Se tal não fosse possí-vel, incorreto seria falar-se em Direito Tributá-rio Comparado, Direito Penal Comparado, Di-reito Constitucional Comparado, Direito Admi-nistrativo Comparado e assim por diante14.

Essas possibilidades levam os autores a ad-mitir dois tipos de comparação, a saber, umaMacrocomparação e uma Microcomparação15,expressões que Mauro Cappelletti, no estudoEl Derecho Comparado: Método y Finalida-des16, toma em sentido diverso daquele que aquiutilizamos.

Diz-nos, textualmente, Cappelletti:“El derecho comparado es, en reali-

dad, un método (Rechtsvergleichung[comparación jurídica] y no vergleichen-des Recht [derecho que compara], segúnla terminología alemana, más apropia-da); es, en suma, una manera de anali-zar el derecho de dos o más sistemas ju-rídicos diversos: así, existe aquella quepodemos llamar ‘micro-comparación’,cuando la comparación se efectúa en elámbito de ordenamientos que pertene-cen a la misma ‘familia jurídica’ (porejemplo, entre Francia e Itália), o bien,‘macro-comparación’, si el análisis com-parativo se conduce a caballo entre doso más familias jurídicas, por ejemplo,entre un ordenamiento del Civil Law,como el de Italia, y uno del Common Law,como el de Inglaterra” 17.

2.1.Direito Estrangeiro, LegislaçãoComparada e Direito Comparado

Além das denominações já referidas, Di-reito Comparado (Derecho Comparado, DroitComparé, Diritto Comparato, ComparativeLaw) e Rechtsvergleichung, outras são utiliza-das, embora tragam em si impropriedades e umcrescente desuso: Direito Estrangeiro e Legis-lação Comparada.

Comparemo-las com a denominação DireitoComparado, começando pela expressão Direi-to Estrangeiro .

Para Marc Ancel18, “a distinção entre o di-reito comparado e o direito estrangeiro era clás-sica, desde antes de 1900; mas ela não é sem-pre muito clara, e menos ainda respeitada”. Emseguida, destaca, com plena razão, que “o di-reito comparado está na dependência dos es-tudos de direito estrangeiro” e que o “direitoestrangeiro é a matéria-prima do direito com-parado. Ninguém, com efeito, é comparativis-ta sem ter praticado, inicialmente, o direitoestrangeiro, assim como ninguém é chefe deorquestra sem ser, ou ter sido inicialmente, ins-trumentista”.

A colocação feita por Marc Ancel põe emdestaque um ponto sobre o qual se deve insis-tir: o Direito Estrangeiro é a conditio sine quanon para a possibilidade de fazer-se direitocomparado, isso porque não poucos pensamque, pelo simples fato de citarem o direito es-trangeiro em seus estudos, significa que estejam

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fazendo estudo comparado.Nada mais inexato. A existência de um ou

mais sistemas jurídicos diferentes funcionacomo um dos pólos indispensáveis ao DireitoComparado, pelo que não é correto pensar-seneste quando, por exemplo, estuda-se a evolu-ção histórica de um instituto, dentro do mesmosistema.

Dando um exemplo: se alguém pretendeestudar o federalismo na Constituição brasilei-ra de 1988, e estabelece uma análise de suaevolução nos textos nacionais anteriores, sim-plesmente faz História Constitucional, passan-do ao domínio do Direito Comparado quando,por exemplo, compara-o com o federalismonorte-americano. Insista-se: não basta, entre-tanto, citar a Constituição americana; necessá-rio é que se estabeleçam as semelhanças e desse-melhanças existentes entre ambos os modelos.

No tocante à expressão Legislação Com-parada, a sua impropriedade inicia-se no ins-tante em que se tenta identificar Direito comLegislação, mormente quando estamos lembra-dos que aquele tem um sentido bem mais am-plo que a segunda, sendo esta (legislação) ape-nas uma das formas de manifestação daquele(= Direito Positivo).

Quando se empreende um estudo de Direi-to Comparado, sua tarefa vai muito além da-quele instante refletido na norma posta, já quedeve analisar “o quadro geral em que a normase encontra”, inclusive a própria Doutrina.

A propósito, lembra Caio Mário da SilvaPereira, em artigo intitulado Direito Compa-rado e seu estudo, publicado na Revista daFaculdade de Direito da Universidade Fede-ral de Minas Gerais19: “quando se criaram noBrasil as primeiras cátedras, esta era a tendên-cia dominante e esta a denominação”. Quemlê as obras de Clóvis Beviláqua, Lições de Le-gislação Comparada, e Cândido de Oliveira,Curso de Legislação Comparada, não encon-tra senão esta concepção para a disciplina.Obras do fim do século passado traduzem bemas idéias em voga, que reduziam as atividadescomparatistas a pouco mais que uma resenhaestatística de textos de lei.

O Direito Comparado, porém – continuaCaio Mário –, vê a realidade dos sistemas jurí-dicos em seu conjunto e deve ter presente alémda legislação, a jurisprudência, o conhecimen-to do meio social, a prática contratual, a ten-dência da técnica jurídica. O direito, ainda nos

países de direito escrito como o Brasil, ondesua fonte primordial está na lei, não se limita aesta”.

E prossegue:“O investigador comparatista, reali-

zando sua obra com o material legislati-vo apenas, fecha seus horizontes e nãotem a desenvoltura que a pesquisa decunho nitidamente científico reclama.Para que possua essas qualidades essen-ciais, deve o autor da obra desse gêneroverificar o que o legislador dispôs, e in-vestigar também o que registram os ares-tos dos Tribunais, as influências da dou-trina, aquelas imponderáveis de todo or-ganismo jurídico que Tulio Ascarellidenomina ‘as premissas implícitas’ dossistemas em foco, econômicas, doutriná-rias, às vezes não formuladas, mas sem-pre presentes nos sistemas de direito” –conclui Caio Mário20.

Na mesma linha de raciocínio, Ana Lúciade Lyra Tavares, em artigo intitulado A Utili-zação do Direito Comparado pelo Legislador21,após afirmar que “a expressão direito compa-rado deve ser entendida aqui em seu sentidorestrito e, para a grande maioria dos compara-tivistas contemporâneos, bastante distinto dedireito estrangeiro”, escreve:

“na verdade, o estudo de ordenamentosjurídicos alienígenas constitui uma fasepreparatória indispensável para a com-paração jurídica, mas com ela não seconfunde, uma vez que pode limitar-sea meras descrições sobre um ou outroaspecto daqueles ordenamentos ou aeventuais cotejos sistemáticos. Nos ca-sos em que são focalizadas com exclusi-vidade as fontes legislativas, têm-se en-saios de legislação comparada, campoque, de resto, precedeu historicamente odireito comparado”22.

Dessa distinção entre Legislação Compa-rada e Direito Comparado igualmente nos falaCañizares23:

“También se emplea todavia la ex-presión ‘Legislación Comparada’, perova cayendo en desuso, porque su sentidorestrictivo parece insuficiente, pues elvocablo ‘derecho’ tiene un sentido másamplio que ‘legislación’”.

Por fim, e a título ilustrativo, lembremosque, nas denominações das Sociedades e

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Institutos, é conservada a expressão “Legisla-ção Comparada”, muito embora em suas pu-blicações oficiais utilizem “Direito Compara-do”. Como exemplo, cite-se a Sociedade deLegislação Comparada criada em Paris em1869, apesar de não se poder esquecer que, em1900, o primeiro Congresso Internacional jáincorporava, em sua designação oficial, a ex-pressão Direito Comparado24.

3. Caráter científico do Direito?O ponto central de toda reflexão epistemo-

lógica é o conceito de ciência e sua aplicaçãoao setor do conhecimento para o qual se vol-tam as análises empreendidas25.

Abordando o Discurso da Ciência do Di-reito, Tércio Sampaio Ferraz Jr.26 escreve que

“costuma-se, de modo geral, entender aCiência do Direito como um ‘sistema’de conhecimentos sobre a ‘realidade ju-rídica’. Esta concepção é, evidentemen-te, muito genérica e pressupõe uma sé-rie de discussões que se desenvolvem nãosó em torno da expressão ciência jurídi-ca propriamente dita, mas também emtorno do próprio termo ciência. Os pon-tos cruciais desta discussão são, a nossover, os seguintes:

“a) o termo ciência não é unívoco; seé verdade que com ele designamos umtipo específico de conhecimento, não há,entretanto, um critério único que deter-mine a extensão, a natureza e os carac-teres deste conhecimento; os diferentescritérios têm fundamentos filosóficos queultrapassam a prática científica, mesmoquando esta prática pretende ser ela pró-pria usada como critério;

“b) as modernas disputas sobre o ter-mo ciência estão sempre ligadas à me-todologia; embora, em geral, se reconhe-ça que as diversas ciências têm práticasmetódicas que lhe são próprias e, even-tualmente, exclusivas, renovadas e anti-gas são as dissenções sobre uma duali-dade fundamental e radical do métododas chamadas ciências humanas e dasciências da natureza;

“c) embora haja um certo acordo emclassificar a Ciência do Direito entre asciências humanas, surgem aí debatesentre as diversas epistemologias jurídi-cas sobre a existência ou não de uma ci-ência exclusiva do Direito, havendo

aqueles que preferem vê-lo como umasimples técnica ou arte, reduzindo-se aciência propriamente dita do Direito auma parte da Sociologia, da Psicologia,da História, da Etnologia etc.” – concluiSampaio Ferraz Jr.

Iniciemos, pois, a análise sobre a caracte-rização científica do Direito Comparado, ob-servando que esta encontra-se “evidentementeligada à qualificação como ciência, da ciênciado direito em geral”, tal como observa, acerta-damente, João de Castro Mendes em seu livroDireito Comparado27.

Por outro lado, vale ressaltar que os proble-mas aqui aventados não são pacíficos, dado quea descrença ainda hoje existente sobre a cienti-ficidade dos estudos, entre outros motivos, as-senta-se na concepção aristotélica do conceitode ciência, segundo a qual, para que algumconhecimento seja merecedor daquela qualifi-cação, ser-lhe-ia indispensável e necessária aexistência de leis, alcançáveis por meio da re-petição dos fatos que formam o seu objeto e deuma generalidade, esta inexistente no domí-nio dos estudos sociais e, portanto, jurídicos.

Essa questão do estatuto científico do Di-reito, digamo-lo como o fez Calsamiglia28, “setransmite de generación en generación comouna enfermidad endémica”, podendo-se lem-brar que Montaigne, com fina ironia, (Essais),já afirmava que (no Direito) “a insegurança étanta, que não só uma instância julga contra aoutra, como seu próprio juízo é susceptível devariação”. E concluía:

“Que tipo de bondade é esta que on-tem era vigente e amanhã não, que ocurso de um rio chega a convertê-la emcrime? Que tipo de verdade é esta que asmontanhas limitam?”

Apesar das afirmativas de Montaigne, foide J. H. von Kirchmann (séc. XIX) a mais vi-gorosa e conhecida negação da cientificidadedo Direito, quando, em conferência intituladaDie Wertlosigheit als Wissenchaft (traduzidapara o espanhol com o título La Jurispruden-cia no es Ciencia29, doutrinava que

“os juristas ocupam-se, sobretudo, daslacunas, dos equívocos, das contradiçõesdas leis positivas; daquilo que nelas háde falso, de antiquado, de arbitrário. Oseu objeto é a ignorância, a insensatez, apaixão do legislador... Por força da leipositiva, os juristas converteram-se emvermes que só vivem da madeira apo-drecida, desviando-se da sã, estabelecem

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o seu ninho na enferma. Na medida emque a ciência faz do contingente o seuobjeto, ela mesma se torna contingência:três palavras retificadoras do legisladorconvertem bibliotecas inteiras emlixo”30.

Retomando o primeiro requisito apresenta-do pela concepção aristotélica de ciência – exis-tência de leis –, é de lembrar-se que, a partirdo séc. XIX e devido ao Historicismo Alemão,foi aquela perspectiva completamente modifi-cada pelas conclusões a que chegaram Dilthey,Windelband e Rickert, em decorrência das quaisnão mais se admite a existência de unicidadeno conceito de ciência31.

Fala-se, então, em uma bifurcação daque-le, mediante a qual, de um lado, estão a “cultu-ra e as ciências culturais”, enquanto do outroencontram-se “a natureza e as ciências da na-tureza”.

A propósito, Truyol Y Serra, em Prefácioque escreveu para a tradução de Kirchmann,afirma que

“os termos do problema mudaram radi-calmente a partir das últimas décadas doséc. XIX, com a elaboração do conceitodas ciências do individual, cujos artífi-ces principais foram, de um lado, Dil-they e, do outro, Windelband e Rickert.Às ciências naturais, ciências ‘de leis’ou ‘nomotéticas’ contrapõem os dois úl-timos, no seu clássico dualismo, as ciên-cias da cultura, que são ciências de ‘acon-tecimentos’ ou ‘ideográficas’: se as pri-meiras são generalizadoras e explicati-vas, as segundas são individualizadorase valorativas. Esta teoria geral das ciên-cias foi aplicada sistematicamente à ci-ência jurídica por Gustavo Radbruch. Adiscussão segue em aberto”,

conclui Truyol Y Serra, de cujo texto per-mitimo-nos discordar da adjetivação “valora-tivas”, que o autor utiliza em relação às ciênci-as da cultura, pelos motivos que mais adianteserão expostos.

Como resultado dessa nova forma de con-ceituar-se o conhecimento científico, não maisseria o objeto que determina a existência, ounão, de uma ciência, mas sim a presença deum rigoroso método de análises. Nesse senti-do, são oportunas as palavras de José MariaMartinez Doral, em livro intitulado La Estruc-tura del Conocimiento Jurídico32, ao analisara matéria de que nos ocupamos:

“En consecuencia, tampoco se pide

para ella una certeza causal; no le hacefalta. Se contenta con una coherenciainterna de las proposiciones que la cons-tituyen y con exigir a sus métodos deverificación el máximo rigor”.

A crítica apresentada por Kirchmann, combase na Física como modelo de ciência33 – eque ainda hoje encontra adeptos –, fundamen-ta-se, sobretudo, no caráter histórico-temporaldo ordenamento jurídico.

Entretanto, observa Erik Wolf, no interes-sante estudo El caracter problematico y nece-sario de la Ciencia del Derecho34, que

“a ello es fácil contestar que la teoría delderecho, que, sobre todo hoy, trabaja conconocimientos sociológicos y patronesético-valorativos, no solamente explicael origen, el fundamento y las funcionesdel orden jurídico con independencia desu formulación legal, sino que tambiénexamina criticamente los hechos condi-cionantes y las normas valorativas, sedesarrolla permanentemente de acuerdocon los resultados de esta crítica de susistema y transciende el ámbito del de-recho nacional por medio de investiga-ciones de derecho comparado”.

No tocante à posição de descrença na cien-tificidade do Direito, acreditamos que ficaráafastada a partir do instante em que desenvol-vermos uma correta análise das funções da ci-ência jurídica e, em conseqüência, do compor-tamento que o seu estudioso pode e deve terdiante da realidade estudada.

Assim, sabendo-se que o jurista enquantocientista interpreta, sistematiza e constrói arealidade que estuda por meio de determina-dos comportamentos e limitações metodológi-cas, haveremos de chegar a uma conclusão po-sitiva, ou seja, que é viável a ciência do Direi-to. Esta, porém, não poderá ser pensada nosmoldes da precisão (?) dos estudos físicos enaturais, mas dentro das particularidades quecompõem seu objeto de preocupações e que sãocomuns a todas as denominadas ciênciassociais.

Analisemos, portanto, as referidas funções daciência jurídica, iniciando pela interpretação.

Interpretar – ensina Aurélio Buarque deHolanda35 – significa “ajuizar a intenção, o sen-tido. Explicar, explanar ou aclarar o sentido”,pelo que ao jurista compete enxergar o ordena-mento jurídico dado ou posto, sem, contudo,julgar a norma que analisa, dizendo-a justa e/ou injusta.

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Gustav Radbruch36, após tecer algumas di-ferenciações entre as várias ciências do direi-to, refere-se a um sentido estrito, no qual a en-tende como sendo a ciência do direito positivo.Adiante, desta feita estudando a Interpretação,afirma:

“(ela) recai sobre o sentido objetivo dodireito positivo, ou seja, o sentido incor-porado no próprio preceito jurídico; e nãosobre o sentido subjetivo, ou seja, o pen-samento das pessoas que tomaram partena sua formação. Isto separa a interpre-tação jurídica da interpretação filoló-gica. A interpretação filológica consisteem repensar apenas o que já uma vez foipensado (é um conhecimento do já co-nhecido, segundo Augusto Bóckh); a in-terpretação jurídica é um pensar até ofim o já pensado uma vez. Porquanto aJurisprudência é uma ciência prática;deve ter resposta para todas as questõese não pode recusar-se a decidir, sob pre-texto de lacunas, contradições ou obscu-ridade da lei37. É seu dever entender alei melhor do que aqueles que participa-ram na sua feitura, e extrair dela maisdo que aquilo que os seus autores cons-cientemente lá introduziram” – conclui.

A essa altura, dois problemas carecem demaior desenvolvimento: o primeiro é sobre otipo de interpretação, ou seja, qual o relacio-namento entre o cientista do direito e o siste-ma interpretado (analisado); o segundo é so-bre a dificuldade que encontrará em sua tarefa,como conseqüência da falta de um vocabulárioadequado e cientificamente inteligível, a já pornós referida Flexibilidade Terminológica.

Comecemos pelo segundo dos problemas,sobre o qual escrevemos em nosso livro Intro-dução à Sociologia – Fundamentação Episte-mológica38, que os autores consideram a ter-minologia como essencial à caracterização doconhecimento científico, ou seja, indispensá-vel à ciência. Necessário que esta traga consi-go todo um vocabulário, uma terminologiaidentificável facilmente pelos que com ela con-vivem.

Na doutrina epistemológica, este ponto épacífico. Assim, Walter Brugger, em seu Dici-onário de Filosofia39, entende que

“importante recurso metódico é a termi-nologia científica, a linguagem técnicaque procura oferecer expressões quantopossíveis claras e unívocas aos concei-tos de ciência”.

Identicamente, Leônidas Hegemberg40, aoestudar “a complexidade das Ciências Sociais”,refere-se ao problema com as seguintes pala-vras:

“nelas persiste uma indecisão a propósi-to da terminologia, e os termos utiliza-dos conservam, com freqüência, os seussignificados cotidianos, com todas asespúrias conotações. Superada essa fase– continua – o cientista social estariahabilitado a formular as suas leis e assuas teorias, dando-lhes conteúdo fatualpreciso e condições adequadas de testa-bilidade, superando, assim, a barreira dacomplexidade”.

Em verdade – repetimos aqui o que escre-vemos no livro acima citado –, o vocabuláriotécnico é meio de que se valem os especialistaspara a comunicação entre si, tornando compre-ensível tudo aquilo que desejam expressar. É,por assim dizer, o veículo sem o qual não ha-veria diálogo, compreensão e, em conseqüên-cia, progresso científico. Se entre as CiênciasNaturais o nível alcançou índice satisfatório,entre as Ciências Sociais a situação é bem di-ferente...

No caso específico do Direito, o quadro nãoé menos vexatório, o que levou François Geny,no clássico estudo Science et Tecnique en DroitPrivé Positif 41, a se referir, pela primeira vez,a uma Lingüística Jurídica, hoje, no magisté-rio de Sylvio de Macedo, em artigo intituladoA Linguagem Jurídica42, possuidora de um

“status definido como disciplina cientí-fica nova, que ora se utiliza no campojurídico das contribuições dos lingüistascomo dos filósofos da linguagem, camponovo de descoberta e prospecção científi-ca sem dúvida sedutor sobre os espíritosamantes do diálogo interdisciplinar”.

Inexistente na afirmativa de Macedo qual-quer exagero, bastando que se observe o nú-mero cada vez maior de estudiosos que se vol-tam para tais pesquisas, sobretudo movidos pelointeresse de alcançar, com precisão, uma lin-guagem paraloquial, própria de cada setor doconhecimento científico, e deixando de lado osentido meramente coloquial dos termos quesão utilizados pela ciência.

Desse objetivo não poderia destoar o Direi-to, enquanto conhecimento científico.

Atento a esse aspecto dos atuais estudos daLingüística Jurídica, afirma Sylvio de Macedo43

que“o aparecimento dos dicionários dos di-

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versos paralóquios, inclusive jurídicos,é prova de que esse rigor não significanenhum bizantinismo, mas é a imposi-ção do espírito humano, na sua ânsia dedomínio, na sua tomada de posição.Constatamos na Alemanha – prossegueMacedo –, p. ex., de 1947 para cá, queBoeseler, Brediek, Koest, Thilo, Steiner,Waschke, Badedow, Weinhold, Weissen-tein, Wicher e outros publicaram dicio-nários, sistematizações, sobre o paraló-quio jurídico. E por isso Theodor Stern-berg alude ao fato de que a idade cientí-fica atual está a exigir dos seus juristas‘uma tensão de suas formas espirituais eanímicas muito diferente daquela dou-trina havida na Ciência Verbalista’ –então o oposto do tecnicismo dos nossosdias, pesquisado e aplicado ainda emsetores restritos” – conclui44.

Mencionemos um aspecto importante notocante ao paralóquio jurídico: trata-se do fatode que sua existência implicará, necessariamen-te, o afastamento de curiosos ou ideólogos,permitindo uma fácil comunicação entre os queformam o universo ou comunidade científicados estudos jurídicos, tal como ocorre com aMatemática ou a Física. Nesse sentido, a exis-tência de um paralóquio, ao invés de ser ummeio de elitização dos estudos jurídicos (comoargumentam alguns), será um meio de purifi-cação metodológica dos mesmos, único pro-cesso pelo qual se conseguirá abolir da CiênciaJurídica os muitas vezes existentes interessesideológicos, que tanto prejudicam a comunica-ção e o desenvolvimento da ciência.

Só uma linguagem jurídica rigorosa e, tan-to quanto possível, precisa poderá contribuirpara o estudo científico do Direito!

Tudo o que se disse – é bom frisar – temaplicação tanto na linguagem legal como nalinguagem do jurista, ou, se quiserem, tantona linguagem do objeto quanto na metalingua-gem, tais como entendidas por Lourival Vila-nova45 ao estudar os dois níveis de linguagem.

“Tenhamos em conta – afirma Vila-nova – que o argumento jurídico a con-trário pode situar-se em dois planos di-ferentes: em nível lógico, como formaimplicacional de uma proposição com-posta (se p, então q) base da forma infe-rencial dedutiva (se p, então q / logo, nãoq); em nível de Direito positivo, comoconteúdo de regra de Direito positivo, ouregra de interpretação que estipula o in-

térprete e aplicador que deve ser utiliza-da a inferência nos sentidos indicados(ainda que se pondo de lado a carênciade fundamentação lógica).

No primeiro caso, a implicação si-tua-se em nível de metalinguagem, istoé, em nível de linguagem sobre a lin-guagem do Direito positivo, falandoacerca de algo que ocorre no Direitopositivo. No segundo caso, a implicaçãoé usada no Direito positivo, adquire aprescritibilidade sob o comportamento dointérprete e aplicador do Direito, que nãotinha como estrutura lógica. Aqui, co-loca-se ao nível de linguagem-objeto; ali,no nível de metalinguagem” – concluiVilanova.

A existência de um paralóquio e sua corre-ta utilização não significam, entretanto, queesteja o discurso científico afastado dos recur-sos estilísticos e da correção gramatical.

Discutindo a História como Ciência e comoArte46, chegamos a afirmar que ela não pode-ria renunciar a uma constante procura do belo,a qual, contudo, não a poderia comprometer.Escrevemos naquele ensaio:

“...a História, enquanto recomposiçãodos fatos passados, não é apenas umaArte, embora não possa (ou não deva)abdicar, completamente, dos dados quea arte lhe oferece – com seu conceito –de busca ou procura do belo. Pensamosdessa forma, uma vez que ao historiadornão se pode dispensar que ponha a ser-viço da reconstituição do passado o queé próprio ao seu estilo, enquanto capazde buscar a beleza literária. Isso, contu-do, não o habilita nem o autoriza a aban-donar a exatidão científica, em busca deuma elaboração estética”.

Tais afirmativas são totalmente aplicáveisao estudo científico do Direito em qualquer deseus ramos, bem como à técnica de sua elabo-ração, o que, aliás, foi reconhecido por Geor-ge Ripert no livro Forces Creatices de Droit47,ao estudar “a arte de legislar”. Escreveu:“...existe un art de légiférer et une esthétiquedes lois”. E prossegue:

“Le mauvais emploi des termes,l’imprécision des phrases, l’erreur sur laforme impérative de la prescription crée-ront plus tard de sérieuses difficultésd’application”.

Uma linguagem baseada em um paraló-quio, aliada a uma correção sintático-morfo-

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lógica e estilística, dão ao discurso jurídicoum embasamento estético do qual a Matemáti-ca, na frieza de suas fórmulas – com certeza –,jamais poderá utilizar-se.

Repita-se: não se exige do jurista, enquan-to cientista, que desconheça ou não se favoreçadas lições da estilística ou da estética. Pelo con-trário: poderá e deverá fazê-lo, como o soube maisdo que nenhum outro no idioma português, RuiBarbosa, em quem se poderá identificar, de-pendendo da ocasião, o jornalista, o político eo jurista puro e exato, mas com a mesma corre-ção vocabular e gramatical, além de um estilomagistral de leitura agradável.

Nesse particular, o estudo do vernáculo, umdomínio da gramática e suas particularidades,é essencial e indispensável à criação e aplica-ção do paralóquio jurídico.

Passemos ao primeiro problema por nós le-vantado e que, sem dúvida, é o ponto capitalda polêmica quando se tenta discutir a cientifi-cidade dos estudos sociais e, portanto, dos es-tudos jurídicos: o relacionamento do jurista-cientista com o ordenamento jurídico que es-tuda.

Dizendo-se de forma mais direta, trata-seda aplicação, ou não, aos estudos jurídicos dodenominado princípio da Neutralidade Axio-lógica ou Ideológica, pelo qual ao cientista sóé dado emitir juízos de realidade (ou de ser), enunca juízos de valor (ou de dever ser), sobreo objeto estudado, em nosso caso, o sistemajurídico.

No campo da Epistemologia Jurídica, esseposicionamento conta com a adesão, entre ou-tros, de Hans Kelsen, Pontes de Miranda e A.L. Machado Neto.

Entendendo-se por sistema “el conjunto deelementos materiales o no, que dependen reci-procamente los unos de los otros de manera deformar un todo organizado”, como ensina An-dré Lalande em seu Vocabulário Técnico yCrítico de la Filosofia48, podemos dizer que oordenamento jurídico está inserido em um sis-tema maior – o social –, formado pelo conjun-to de sistemas econômico, antropológico, lin-güístico, político, etc., como aliás observamPierre Arminjon, Baron Boris Nolde e MartinWolff 49, ao afirmarem que “un système juridi-que est un ensemble d’institutions interdépen-dantes qui se sont formées et ont évolué parl’effet de circonstances variables et contin-gentes”.

Pois bem, o cientista do Direito como tal,com referência ao sistema jurídico, encontra-se

em uma relação intra-sistêmica, isto é, terá elede analisá-lo enquanto inserido no próprio sis-tema jurídico, sem que lhe seja possível, à luzdos estudos epistemológicos, sair dos princípi-os do sistema para julgá-los. Seu comportamen-to (enquanto cientista) só lhe permite enxergarpela óptica do sistema, razão pela qual cum-pre-lhe apontar inconstitucionalidades, nulida-des e ilegalidades de normas e atos, mas sem-pre – repitamos – em razão do modelo jurídicocomo um todo, nunca motivado por preferên-cias pessoais.

Assim, por exemplo, e dentro da visão kel-seniana de escalonamento das normas, ao ve-rificar que o Direito Penal consagra a pena demorte, caber-lhe-á conferir se tal preceito en-contra guarida no texto constitucional (= partedo sistema jurídico total) e explicar os limitesou condições que este traça àquele. Não pode-rá jamais, por convicções políticas, religiosasou morais, defender ou negar o instituto jurídi-co consagrado, isto, repita-se, enquanto no de-sempenho de seu papel social de cientista.

Por outro lado, como eleitor, pai de famí-lia, crente, etc., pode ele discordar de determi-nada norma jurídica ou mesmo do sistema comoum todo.

Essa duplicidade de comportamentos expli-ca-se pelo fato de que, em sua vida social, ohomem possui vários status e, conseqüentemen-te, vários papéis sociais que lhe são decorren-tes, ou seja, em uma linguagem mais depura-da, cada ser humano possui vários esquemasde qualificação.

Defendendo a neutralidade do cientista,Pontes de Miranda, em seu Sistema de Ciên-cia Positiva do Direito50, escrevia, em 1922,que “observar os fatos e descobrir-lhes a uni-formidade, tal é a missão do cientista”. E con-tinua:

“Em livro que pretende tratar cienti-ficamente o Direito não posso discutirse é justa ou se é injusta tal ou qual regrajurídica. Essa questão não teria sentidopara mim”.

Finalizando, di-nos Pontes de Miranda:“se defendo ou combato o divórcio,

pelo estudo a que procedi das conveni-ências ou inconveniências das partes, nãoconstitui Ciência do Direito o que escre-vo, ainda que perfeita a minha condiçãoe brilhante a minha retórica, o meu esti-lo, a minha oratória”.

Até aqui nossa posição não tem nada deinovadora.

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Contudo, entendemos que a tarefa de inter-pretação do sistema jurídico nem sempre podecircunscrever-se a elementos ou dados jurídi-cos, isso porque, em vários momentos, serãonecessários subsídios de outros ramos do co-nhecimento, indispensáveis até mesmo a umacorreta aplicação da norma jurídica. Nesse ins-tante, mesmo sem valorar a norma que inter-preta ou aplica, o cientista do Direito terá devaler-se de análises inter-sistêmicas. Abraça eledados de outras ciências sociais, ou mesmo fí-sico-naturais, para melhor “trabalhar” os ele-mentos existentes na norma, sem, repita-se,julgá-la.

O texto da norma passa a ser visto dentrodo contexto que a criou e para a qual ela seráinterpretada e aplicada. Isso significa, em últi-ma análise, que existe uma íntima relação en-tre a ciência jurídica estrito senso (a denomi-nada Ciência Dogmática do Direito) e a Socio-logia do Direito, por muitos denominada deCiência Social do Direito.

Vale a insistência: nessa operação-análise,o cientista não julgará a norma, porém lança-rá mão de elementos ou conceitos científicosnão-jurídicos para melhor desincumbir-se desua missão, eminentemente científica (e, por-tanto, neutra), a partir da qual o jurista termi-na por ingressar noutra função da Ciência doDireito: a sistematização do ordenamento ju-rídico, isto é, ele vai “reduzir diversos elemen-tos a sistema”. Vai “agrupar em um corpo dedoutrina”51 o preceito ou norma que antes pa-recia “solta”, sem vinculação com o “todo”.

Essa função é bastante ligada à anterior, issoporque, em direito, não se pode proceder à in-terpretação de uma norma sem considerar osistema como um todo, já que entre elas (asnormas) existe um vínculo que lhes dá seu sen-tido ôntico e coerente.

Ao interpretar e sistematizar o ordenamen-to jurídico, o cientista não estará preocupadocom a justiça do preceito – função esta queserá própria daquele que elabora ou faz a lei,no caso, o político, a quem caberá, na medidado possível, fazer com que a norma representeos valores da sociedade, expressando naquela(= Lei) a ideologia socialmente aceita.

Nesse sentido, Hans Kelsen, no “Prólogo”de sua Teoría General del Derecho y del Esta-do52, afirma que

“la ciencia tiene que descubrir su objetotal como realmente es, y no prescribircomo debiera o no debiera ser desde elpunto de vista de determinados juícios

estimativos. Este último es un problemapolítico y, como tal, concierne al arte delgobierno, que es una actividad dirigidahacia valores, no un objeto de la ciencia,ya que ésta estudia realidades”53.

Para Radbruch54, ao sistematizar, a Ciên-cia do Direito

“leva a cabo, com relação ao seu todo,aquilo que a Constituição realiza comrespeito a um instituto único: o desen-volvimento de todos os diferentes pre-ceitos duma ordem jurídica em conjun-to, ou de uma das suas partes, a partir deuma única idéia”.

Por último, ao cientista do direito cabe aconstrução de conceitos que não se acham di-retamente indicados na norma, mas que sãoadquiridos por meio da indução. É aqui, maisprecisamente, que se observa a utilização deuma metalinguagem, nos termos em que aci-ma foi definida.

Resumindo tudo o que foi dito, podemosafirmar que, no desempenho de suas três fun-ções (interpretar, sistematizar e construir), ocientista do Direito afasta-se daquele outro quefaz o Direito, que o legisla, que o adapta àsnovas realidades e situações sociais.

O posicionamento por nós advogado nãoimplica que alguém encarregado de fazer oDireito fique impossibilitado de estudá-lo ci-entificamente.

Possível será que a mesma pessoa chegue aagir como político (fazendo o Direito) e comojurista (estudando o Direito enquanto objeto deconhecimento científico). O que não se poderáadmitir, sob pena de comprometimento da ci-ência jurídica, é que os juízos de valor inva-dam a esfera da ciência como tal. Dessa forma,se uma pessoa assume os esquemas de qualifi-cação de político e de jurista, deverá fazê-lo deforma consciente, já que cada um tem sua pers-pectiva e seus objetivos próprios.

Desnecessário dizer-se que o ponto de vistaaqui esposado não encontra aceitação unâni-me entre os estudiosos, sendo muitos os queenxergam nesse comportamento neutro uma“alienação dos juristas”, sua concordância como status quo, acusando-os, até mesmo, de con-servadores.

Tal interpretação, entretanto, não procede,sendo explicável pelo fato de assentar-se emuma premissa falsa, qual seja, a de que tais crí-ticos desconhecem ou não entenderam o fato(tantas vezes aqui referido) de que o mesmohomem é possuidor de vários papéis ou “es-

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quemas de qualificação”, cada um exigindo umcomportamento próprio e ímpar.

4. Direito Comparado: método ou ciência?Mauro Cappelletti, em trabalho intitulado

El Derecho Comparado: Método y Finalida-des55, reconhece “un extraordinario aumentode la difusión e importancia de los estudios ylas enseñanzas de tipo comparativo en los últi-mos decenios”56, para, em seguida, apontarquatro razões que considera explicativas de talfenômeno, a saber:

“1) Una primera razón se debe alaumento extraordinario de los intercam-bios económicos, personales, culturalesentre las naciones, con el consiguienteincremento de las relaciones jurídicas anivel transnacional.

“2) Una segunda razón, no desliga-da de la primera, radica en la naturezatransnacional (transfrontier) de fenóme-nos cada vez más relevantes, los cualesrequieren, por tanto, una disciplina jurí-dica que no sea meramente nacional (...).

“3) Una tercera razón proviene de latendencia de ciertos valores, particular-mente en el campo de los derechos hu-manos, a afirmarse en el nivel transna-cional, cuando no universal.

“4) Una cuarta razón, por último,resulta de la tendencia a crear organiza-ciones políticas y económicas multina-cionales, como la Comunidad Económi-ca Europea”57.

Pois bem, apesar dessa constatação (que, emgeral, é aceita por todos os comparativistas),as questões discutidas nos tópicos anterioresaplicam-se ao Direito Comparado, tendo, pois,razão Felipe de Solá Cañizares58 quando escreveque, mesmo depois de quase um século da rea-lização, em Paris (1900), do Congresso Inter-nacional de Direito Comparado, ainda hoje seindaga sobre a caracterização do Direito Com-parado. Em outras palavras: o Direito Compa-rado é método ou ciência?

A Doutrina, mais uma vez, não tem umposicionamento pacífico, a ponto de H. G. Gut-teridge59 afirmar que

“el problema de la definición del Dere-cho comparado está estrechamente rela-cionado con otro; el de la tan debatidacuestión de si el Derecho comparadopuede considerarse como una ‘Ciencia’”.

Leontin-Jean Constantinesco, em seu Tra-tado de Derecho Comparado60, emprega as

duas expressões, conforme esclarece:“siempre que se utilice el término Dere-cho Comparado en el ámbito de esta obradesignará indistintamente el método ola ciencia autónoma. Cada vez que sealuda al Derecho Comparado como mé-todo se empleará el término método com-parativo. Siempre que se aluda a la dis-ciplina autónoma se utilizará la expresi-ón Ciencia de los Derechos Compara-dos”.

Evidente que, para alguns, o Direito Com-parado não poderia ter pretensão de cientifici-dade, resumindo-se a simples método, como oquer Edgar Carlos de Amorim (Direito Inter-nacional Privado61) ao escrever que

“não há, evidentemente, um direito com-parado, e sim um método comparativo.

“Direito pressupõe a idéia de aplica-ção – prossegue – e o chamado direitocomparado nada mais é do que um siste-ma de pesquisa através do qual o exper-to, examina dois institutos, desde as suasorigens, indo da causa ao efeito e do efei-to à causa, isto é, aplicando ora o méto-do dedutivo, ora o método indutivo, parafinalmente chegar à verdade perquirida,ou seja, à identidade existente entre ume outro.

“Este trabalho é de suma importân-cia para o Direito Internacional Priva-do, principalmente no exame das insti-tuições desconhecidas.

“Instituições desconhecidas, paraquem não sabe, são aquelas existentesnum sistema jurídico e ignoradas poroutro”.

Mesmo que um grande número de estudio-sos entenda que o Direito Comparado é, sim-plesmente, método – o método comparativoaplicado às ciências jurídicas –, assim nãopensamos, assumindo, dessa forma, idênticaposição àquela defendida, entre outros, por CaioMário da Silva Pereira (1952) em artigo inti-tulado Direito Comparado, Ciência Autôno-ma62.

Para nós, à medida que se compreendam osconceitos de método e ciência, bem como doque seja autonomia científica, não haverá, emsã consciência, como assumir posição diferen-te, sobretudo se levarmos em conta os moder-nos estudos da Epistemologia.

No caso específico do Direito Comparado,o seu estudo apresenta dificuldades que, entre-tanto, uma preparação metodológica correta do

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pesquisador poderá superar.Assim, pelo menos duas dificuldades po-

dem ser mencionadas, a saber:1) a questão do acesso às fontes estrangei-

ras, ligadas aos ordenamentos que se pretendecomparar (fontes aqui tomadas não apenas nosentido de textos legislativos, mas tambémcomo Doutrina, Jurisprudência e costumes);

2) a dificuldade relativa ao problema lin-güístico, isto é, conhecimento da língua usadapelo Estado cujo Direito se pretende comparar.

São, repita-se, dificuldades ou obstáculosque uma preparação metodológica e intelectu-al poderá superar, e na qual não se poderá es-quecer que ela englobará – inclusive e princi-palmente – a adequada terminologia utilizadapelo sistema ou ordenamento jurídico estran-geiro e seu significado.

Demos um exemplo: na Constituição Es-panhola de 1978, utilizam-se as expressõesRecurso de Amparo e Leyes Orgánicas quan-do se refere à competência do Tribunal Consti-tucional (art. 161 1.b e d). Se desconhecermoso significado de tais expressões no sistema es-panhol, evidentemente que o estudo compara-tivo ficará falho, comprometido naquele aspectoque mais deverá ser buscado: a verdade cientí-fica, embora esta jamais possa ser encarada emsentido absoluto.

Muitos outros exemplos poderiam ser da-dos como indispensáveis à preparação meto-dológica, a fim de que se possa alcançar umestudo sério e científico. Isso, contudo, não nospermite reduzir o Direito Comparado a sim-ples método, que ficaria restrito a indicar ca-racterísticas dos sistemas jurídicos pesquisados.

O método é apenas o caminho a ser segui-do, trilhado. Por ele – e temos dito várias vezes– ser-nos-á possível “explicar” ou “compreen-der” (dependerá da posição epistemológica decada um) as similitudes e diferenças dos siste-mas estudados, levando-se em conta seus con-dicionamentos sócio-econômicos, pois, comodiz Cañizares, “el comparativista no puede ig-norar los antecedentes y las consecuencias delderecho positivo que compara, en los aspectossocial y económico”63.

De posse, portanto, de uma metodologiaadequada, que, em conseqüência, levará à exis-tência de um objeto formal ímpar e próprio aoDireito Comparado, a ponto de Carlos Ferrei-ra de Almeida afirmar que

“nas páginas anteriores foi possívelverificar que o direito comparado:

– dispõe de um objeto (a pluralidade

de ordens jurídicas) diferente do objetodas demais disciplinas que estudam odireito e que

– tem um método específico (o mé-todo comparativo).

Por isso – prossegue – , concluímos(como Zweigert) que o direito compara-do é uma ciência autônoma, que se sub-divide em dois ramos ou vertentes com-plementares – a macrocomparação e amicrocomparação”64.

Resta-nos o terceiro elemento para caracte-rizar o Direito Comparado como conhecimen-to científico: a sua autonomia doutrinária edidática.

Quanto à primeira – autonomia doutriná-ria –, desnecessário seria discutir-se, já que,desde os gregos, como já o demonstramos, exis-tem estudos doutrinários (embora sem rigorcientífico) comparando sistemas jurídicos.

Ademais, contemporaneamente, milharesde trabalhos monográficos, tratados e manuaisconfirmam uma autonomia doutrinária em taisestudos, entre os quais podem ser citados – emuma perspectiva geral – os de Cañizares, Gut-teridge e René David, enquanto, no caso espe-cífico do Direito Constitucional Comparado,devem ser mencionados os de Garcia Pelayo,Sanches Agesta, Biscareti di Ruffia, G. de Ver-gottini e muitos outros, conforme bibliografiareferida no item 6 deste estudo.

Na segunda perspectiva – autonomia didá-tica –, esta igualmente existe, sobretudo noscursos de Mestrado e Doutorado, para não fa-larmos no cultivo do Direito Comparado emdiversas instituições internacionais criadas comeste único objetivo.

Em síntese, aplicando-se o raciocínio de-senvolvido, podemos afirmar que existe umDireito Constitucional Comparado com carac-terização de Ciência, e não como método. Esteé apenas um dos elementos que autorizam ditacaracterização, ao lado de um objeto formal ede uma autonomia doutrinária e didática. Nãose diga que lhe falta uma autonomia legislati-va, pois esta não caberá no seu âmbito nem noseu objeto. As legislações nacionais (no caso,as Constituições próprias de cada Estado) po-derão utilizar-se dos resultados do Direito Com-parado para aperfeiçoarem-se.

Desse tema trataremos no item seguinte.

5. Funções do Direito ComparadoPara Gutteridge65, ainda ao discutir a cien-

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tificidade, ou não, do Direito Comparado, “elinterés de tales problemas es puramente aca-démico y, en todo caso, de una importancia re-lativa”, após o que considera que mais impor-tante do que saber se o Direito Comparado éciência, ou não, é conhecer para que servemtais estudos. São suas palavras: “el problemaesencial no es qué es el Derecho comparado?La verdadera cuestión es la de: para qué sir-ve?”66

Em princípio, as funções já referidas comopróprias da Ciência Jurídica – interpretação,sistematização e construção –, evidentemen-te, também se aplicam aos estudos do DireitoComparado, muito embora, desde o CongressoInternacional de Paris (1900), os comparatistasapontem suas funções ou fins específicos.

Como se verá, de todas as posições aponta-das, cremos nós que poderão ser estabelecidos,de maneira ampla, dois grupos de objetivos oufinalidades.

Pelo primeiro, ao qual denominamos deobjetivos pessoais, visa-se a uma maior satis-fação intelectual daquele que lança mão dosestudos sobre os sistemas jurídicos estrangei-ros para verificar a forma como os fatos soci-ais, econômicos e políticos estão sendo trata-dos por outros povos. O objetivo, pois, é mera-mente subjetivo, cultural.

Na lição de Lambert, essa perspectiva temuma finalidade apenas científica, a saber:

“el descubrimiento, por medio de un pro-ceso de comparación, de las causas quefundamentan el origen, desarollo y de-cadencia de las instituciones jurídicas,en otras palabras, la Historia comparati-va del Derecho. En este caso, la compa-ración es ilimitada, tanto en espaciocomo en tiempo”67.

Laseilles, por sua vez, chegava a vincularesse enfoque ao estabelecimento de “princípi-os jurídicos do mundo civilizado, que seriamuniversais, mas não imutáveis”, a ponto de uti-lizar-se da expressão Droit Ideal Positif.

Nessa linha de raciocínio, Caio Mário daSilva Pereira, no já citado artigo Direito Com-parado, Ciência Autônoma, afirma:

“Dos sistemas legislativos nacionaisextrairá os princípios informativos dosvários institutos e, operando uma sinte-tização que não é estranha aos proces-sos de formação doutrinária, construirádogmática superestrutural, que exprimiráo estado da civilização jurídica em dadomomento histórico”68.

O segundo grupo de finalidades – em nos-so entender – pode ser denominado de profis-sional e encontra-se mais ligado à Técnica ePolítica Jurídica ou mesmo Política Legisla-tiva, oferecendo os elementos necessários àanálise, por parte dos operadores do Direito,para melhor compreensão de institutos jurídi-cos – principalmente aqueles que foram re-cepcionados pelo sistema nacional – existen-tes em outros ordenamentos, sobretudo porque,queiram ou não, assistimos, nos dias atuais, auma tendência de universalização dos concei-tos no campo da Ciência Jurídica.

Ressalte-se que, em uma primeira fase deseu pensamento, Lambert chegava a referir-sea um Direito Comum Internacional consisten-te em criar regras aplicáveis às necessidadesdos povos que tenham alcançado o “mesmonível de civilização”69.

Duas observações fazem-se necessárias:a) não é o Direito Comparado que terá fun-

ções práticas. Suas conclusões é que serão uti-lizadas por legisladores, magistrados, advoga-dos, etc., para melhor regulamentar os fatossociais de determinada sociedade;

b) ao nos referirmos à universalização, lon-ge de nós se encontra a crença de que se possatransportar um instituto de uma sociedade paraoutra, sem levar-se em conta os condicionamen-tos a que estão sujeitos todos os modelos jurí-dicos70.

Entretanto, impossível será negar-se, poroutro lado, uma das características do mundocontemporâneo, qual seja, a difusão de solu-ções jurídicas cada vez mais aproximada pelosdiversos Estados, fenômeno esse denominadode Recepção Legislativa e entendido, na liçãode Ana Lúcia de Lyra Tavares em artigo intitu-lado A Utilização do Direito Comparado peloLegislador71, como sendo “a introdução, em umsistema jurídico, de normas ou institutos deoutro sistema”.

A atual Constituição brasileira é pródiga emexemplos, muitos dos quais se contradizem deforma flagrante, pelo menos quando vistos emrelação ao sistema jurídico-constitucional comoum todo (ex.: medidas provisórias), enquantooutros permanecem inertes (ex.: mandado deinjunção).

Considerando as observações acima, algunsautores falam em Direito Comparado Descri-tivo e Direito Comparado Aplicado, respecti-vamente72.

De maneira geral – já o dissemos –, os cul-tores do Direito Comparado apontam vários

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objetivos ou “vantagens” que constituem suas“funções próprias e específicas” ou “finalida-des”, para usarmos a expressão de Paolo Bis-caretti di Ruffia que, em seu livro Introducci-ón al Derecho Constitucional Comparado73, asagrupa em quatro, a saber:

1) satisfacción de meras exigenciasde orden cultural;

2) interpretación y valoración de lasinstituciones jurídicas del ordenamientonacional;

3) notable aportación que la cienciadel derecho constitucional puede propor-cionar al campo de la nomotética, esdecir, en relación con la política legis-lativa;

4) la unificación legislativa.Giuseppe de Vergontini, por seu turno, de-

pois de afirmar que, “si comparar significa, antetodo, cotejar para manifestar analogias y dife-rencias”, entende que “es preciso también pre-guntar cúal es la razón de tal operación lógica”.

Nesse sentido, em seu Derecho Constituci-onal Comparado74, indica como suas finalida-des as seguintes:

a) perfeccionamiento del conocimi-ento;

b) clasificación y agrupación de or-denamientos;

c) interpretación de las institucionesconstitucionales;

d) preparación de la normación;e) unificacción de derechos y armo-

nización de la normativa pluralista.Marc Ancel, na monografia já citada75, in-

dica “vantagens e benefícios”, os quais não sediferenciam, em muito, das posições de Ruffiae Vergontini. São eles:

a) apesar da diversidade das legisla-ções, existe uma universalidade do di-reito;

b) o conhecimento do direito estran-geiro é freqüentemente indispensável aoadvogado, ao juiz e ao árbitro;

c) permite ao jurista uma melhorcompreensão do direito nacional, cujascaracterísticas particulares se evidenci-am, muito mais, mediante uma compa-ração com o direito estrangeiro;

d) o método comparativo é indispen-sável ao estudo da História do Direito eda Filosofia do Direito;

e) nenhuma legislação nacional podedispensar o conhecimento das legislaçõesestrangeiras.

Embora se refira à unidade do método com-parativo, para Gutteridge76:

“la característica fundamental del Dere-cho comparado, considerado como unmétodo, es la de que éste es aplicable atodas las formas de investigación jurídi-ca. El método del Derecho comparadose halla tanto al servicio del historiadordel Derecho, como al del filósofo, el juez,el abogado y el profesor de Derecho. Esaplicable tanto al Derecho público comoal privado y está igualmente a la dispo-sición del economista, el sociólogo y elabogado. Puede prestar un importanteservicio al político, al funcionario y alhombre de negocios”.

Finalizando, e diante de todas as conside-rações feitas às páginas anteriores, justiticadaestá a afirmativa de que existe uma imperiosanecessidade de reflexões epistemológicas e pro-pedêuticas ao estudo do Direito Comparado,fazendo-se uma espécie de sua Teoria Geral,apesar de entendermos (e isso não excluiria anecessidade referida) que toda a perplexidadeapontada ficará atenuada a partir do momentoem que não nos esqueçamos de que o vocábuloDireito traz, em si mesmo, um sentido dúbio,que não é peculiar apenas aos estudos compa-rados.

6. Pequena bibliografia de Direito ComparadoA seguir, e com o intuito de possibilitar ao

leitor um contato mais profundo com os temasdo Direito Comparado, ofereceremos uma pe-quena bibliografia, ressaltando a existência deinúmeros periódicos (além dos aqui relaciona-dos) que se dedicam ao estudo do Direito Com-parado:

AGESTA, Luis Sanchez. Curso de Derecho Consti-tucional Comparado. Madrid : Universidad deMadrid, 1976.

AGOSTINI, Eric. Droit Comparé. Paris : PressesUniversitaire de France, 1988.

ALCÁNTARA SÁEZ, Manuel. Sistemas políticosde América Latina. Madrid : Tecnos, 1989. 2 v.

ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Di-reito Comparado. Coimbra : Almedina, 1994.

ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do Direito Com-parado. Porto Alegre : S. A. Fabris, 1980.

ARAGON LOPEZ. Derecho Constitucional I. Bue-nos Aires : Ed. Norte, 1986.

ARMINJON, Pierre, NOLDE, Baron Boris, WOL-FF, Martin. Traité de Droit Comparé. Paris :Libr. Générale de Droit et de Jurisprudence,1950. 3 v.

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Periódicos especializadosEntre outras revistas que se voltam para o

estudo e a divulgação do Direito Comparado,citem-se as seguintes:

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Revista de Informação Legislativa248

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BOLETIN DEL INSTITUTO DE DERECHO COM-PARADO. Universidad Central del Ecuador.

ANUÁRIO: [Instituto de Derecho Comparado]. Va-lencia : Universidad de Carabolo, Faculdad deDerecho.

ANNUARIO DI DIRITTO COMPARATO E DISTUDI LEGISLATIVI. Roma : Istituto Italianodi Studi Legislativi.

BULLETIN MENSUEL DE LA SOCIETÉ DE LE-GISLATION COMPARÉ. Societé de Legislati-on Comparé de Paris. Esta Revista, desde 1949circula com a denominação de Revue Internati-onal de Droit Comparé.

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THE AMERICAN JOURNAL OF COMPARATIVELAW. The American Society of ComparativeLaw. University of California.

DOCUMENTAÇÃO E DIREITO COMPARADO :Boletim do Ministério da Justiça. Lisboa.

REVISTA DE DIREITO COMPARADO LUSO-BRASILEIRO. Rio de Janeiro : Instituto de Di-reito Comparado Luso-Brasileiro.

Notas de Rodapé

1 Vejam-se notas 1, 2 e 3 do capítulo 1.2 Regards sur le monde actuel. Paris : Gallimard,

1962. p. 37.3 Introducción a la ciencia jurídica. Barcelona :

Ariel, 1988. p. 49.4 Porrua, 1968, p. 57. Trata-se de fundamental

livro sobre os temas que aborda, sendo que, em vá-rios capítulos, o Direito Comparado é o objeto deestudos.

5 RT, 1987, p. 101-102.6 Tópicos. Editora Abril, 1973, v. 1, p. 26. (Os

pensadores).7 Barcelona : Instituto De Derecho Comparado,

1954. p. 95.8 Paris : Libr. Générale de Droit et de Jurispru-

dence, 1950. v. 1, p. 10.9 Madrid : Revista de Derecho Privado, 1953.

p. 5.10 Padova : CEDAM, 1961. 438 p.; HELM,

MEYER. Comparer en Droit. Strasbourg : Cerdic-Publications, 1991. 213 p.

11 Libr. Générale de Droit et de Jurisprudence,Paris, 1953. p. 17. Há uma tradução do Instituto deDerecho Comparado, Barcelona, 1954. 253 p.

12 Ibidem p. 17-18.13 op.cit. p. 95-96.14 É mais fácil, sob certo sentido, encontrar um

número maior de estudos referentes a estes ramos

do que voltados para uma Teoria do Direito Com-parado.

15 Veja-se, por exemplo, ALMEIDA, Carlos Fer-reira de. Introdução ao Direito Comparado, Coim-bra : Almedina, 1994. p. 7-9.

16 Publicado no livro de sua autoria, Dimensio-nes de la justicia en el mundo contemporáneo : cu-atro estudios de derecho comparado. México : Por-rua, 1993. p. 13-42.

17 Op. cit. p. 17.18 Utilidades e métodos do Direito Comparado:

elementos de introdução geral do estudo compara-do dos Direitos. Porto Alegre : Fabris , 1980. p.109-110.

19 Nova Fase, a. 7, p. 37, out. 1955, p. 37.20 Ibidem, p. 38.21 Revista Contextos, Pontifícia Universidade Ca-

tólica do Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, mar. 1987, p. 1.22 Ibidem, p. 96.23 Veja-se, a propósito, CAÑIZARES, op. cit.

p. 96.24 Ibidem, p. 48-49.25 Uma das questões mais polêmicas, nos estu-

dos de Epistemologia Jurídica, é sobre a expressãoCiência Normativa e com a qual se tenta caracteri-zar o Direito. A propósito, veja-se nosso livro Direi-to Constitucional e instituições políticas, Bauru :Jalovi, 1986. p. 54-58.

26 Direito, retórica e comunicação : subsídiospara uma pragmática do discurso jurídico. Sarai-va, 1973. p. 159-160.

27 Lisboa : AAFDL, 1982-1983. p. 47.28 op. cit. p. 47.29 Instituto de Estudios Políticos, 1916.30 Ibidem, p. 54.31 Vejam-se DILTHEY, Wilhelm. Introducción

a las ciencias del espiritu, Madrid : Revista de Oc-cidente, 1966; e H. RICKERT, Ciencia Cultural yCiencia Natural. Madrid : Espasa-Calpe, 1922.

32Pamplona : Universidad de Navarra, 1963.p. 56.

33 CALSAMIGLIA, p. 54.34 Buenos Aires : Abeledo - Perrot, 1962. p.

33-34.35 Novo Dicionário Aurélio. Ed. Nova Frontei-

ra, [1986?]; p. 777.36 Coimbra : Amado, 1979. p. 395.37 A propósito, CPC, art. 126: “O juiz não se

exime de sentenciar ou despachar alegando lacunaou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, re-correrá à analogia, aos costumes e aos princípiosgerais de direito”.

38 Editora Rio: Soc. Cultural, 1978. p. 16-17. Ver,igualmente, nossa Teoria do Estado: Direito Cons-titucional I, Belo Horizonte : Del Rey, 1989. p. 1-4.O texto existente neste segundo livro corresponde ànossa Tese “A Teoria do Estado no Quadro do Co-nhecimento Político”, com a qual obtivemos o títulode Livre Docente em Direito Constitucional, Facul-dade de Direito da Universidade do Estado do Rio

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 249

de Janeiro, 1989.39 S. Paulo : Herder, 1969. p. 84.40 Explicações científicas : uma introdução à

Filosofia das Ciências. Herder, 1969. p. 211.41 paris : Sirey, 1921. p. 448.42 Revista da Academia Brasileira de Letras Ju-

rídicas, Rio de Janeiro, v. n. 1, 1985. p. 79.43 Ibidem, p. 87.44 Realmente, a existência de um paralóquio ju-

rídico implica a existência de um discurso jurídicocom sua gramática particular, tal como analisado porA. J. Greimas no livro Semiótica e Ciências Soci-ais. Cultrix, 1981. p. 72-84.

45 As estruturas lógicas e o sistema do DireitoPositivo, RT, 1977. p. 193.

46 Introdução à Sociologia, p. 89.47 Paris, 1955. p. 346.48 El Ateneo, 1966. p. 957.49 op. cit. p. 7.50 2. ed. Borsoi, 1972. v. 1, p. 31-32.51 Novo Dicionário Aurélio, p. 1309.52 México : Imprenta universitária, p. 6.53 A propósito do pensamento de Kelsen e sua

posição favorável a um estudo científico neutro, leia-se o artigo de COELHO, Luiz Fernando. Positivis-mo e neutralidade ideológica em Kelsen. In: Estu-dos de Filosofia do Direito : uma visão integral daobra de Hans Kelsen, RT, 1985. p. 42-62.

54 op. cit. p. 395-396.55 Publicado no livro Dimensiones de la justicia

en el mundo contemporáneo : cuatro estudios de de-recho comparado. México : Porrúa, 1993. p. 13-42.

56 op. cit. p. 14.57 op. cit. p. 14-15.58 op. cit. p. 4959 El Derecho Comparado : introducción al mé-

todo comparativo en la investigación y en el estudiodel derecho. Barcelona : Instituto de Derecho Com-parado, 1954. p. 14.

60 Madrid : Tecnos, 1981. v. 1, p. 26.

61 4. ed. Forense, 1988. p. 9-10.62 Revista da Faculdade de Direito da UFMG,

out. 1952. p. 33-47.63 op. cit. p. 19.64 op. cit. p. 27.65 op. cit. p. 15.66 idem, p. 15.67 cf. GUTTERIDGE, op. cit. p. 16.68 destaque nosso. op. cit. p. 4369 cf. GUTTERIDGE, op. cit. p. 16.70 Sobre isso, afirma José Nicolau dos Santos em

artigo intitulado Direito Comparado e geografia ju-rídica. Revista da Faculdade de Direito, Universi-dade do Paraná, v. 3, n. 3. p. 349. dez. 1955: “AGeografia Jurídica (...) é uma verdadeira Ciênciaespeculativa, com princípios próprios e específicos,destinada ao estudo dos fatos jurídicos. É ciênciaintermédia entre a Geografia e o Direito, podendoramificar-se em ambas. Despe-se, porém, do pres-suposto teleológico de alterar a legislação dos po-vos, aconselhando a sua uniformidade. Recusa-se ater um caráter prático, transcendendo do seu âmbitode Ciência pura o da arte legislativa” (destaques nooriginal).

71 Contextos : Revista da PUC-RJ, v. 1, n. 1, p.2, mar. 1987.

72 A propósito, escreve GUTTERIDGE: “Estadistinción ha merecido una aceptación general y esútil en cuanto pone de relieve el hecho que el Dere-cho comparado comprende mucho más que una sim-ple descripción del Derecho de un país extranjero”(op. cit. p. 19). Consulte-se o que diz o A. às p. 18-19.

73 México : Fondo de Cultura Económica, 1975.p. 13-15.

74 Madrid : Espasa-Calpe, 1985. p. 75-83.75 Utilidades e métodos do Direito Comparado.

p. 17-18.76 op. cit. p. 22-23.

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 251

Planos econômicos, direito adquirido eFGTS

TEORI ALBINO ZAVASCKI

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Direito adquirido e ato jurídicoperfeito. 3. Aplicação imediata e aplicação retroa-tiva. 4. Orientação do Supremo Tribunal Federal.5. A orientação da doutrina. 6. Inexistência dedireito adquirido à manutenção de situação insti-tucional. 7. As modificações implantadas no FGTSpelos planos econômicos. 8. Natureza jurídica doFGTS. 9. Momento da ocorrência da alteraçãolegislativa: antes de consumado o lapso temporalda aquisição do direito. 10. Inexistência de direitoà escolha de indexador. 11. Legitimação passiva eresponsabilidade pelo creditamento. 12. Conclusões.

Teori Albino Zavascki é Juiz do TRF – 4ª Região.

1. IntroduçãoO tema proposto situa-se no domínio de um

dos mais instigantes campos da ciência jurídica:o que diz com a eficácia da lei no tempo e quedefine limites ao poder de legislar. Mais preci-samente, o que se busca investigar é a legiti-midade ou não dos preceitos normativos,editados no âmbito de planos econômicos, quealteraram os critérios de cálculo da correçãomonetária das contas vinculadas ao Fundo deGarantia por Tempo de Serviço. Houve ofensaa direito adquirido? Violou-se ato jurídicoperfeito? Essas as indagações que atualmenteestão sendo postas ao exame do Poder Judiciárioem todo o Brasil. Para respondê-las, é indis-pensável sejam traçadas previamente algumaspremissas conceituais.

2. Direito adquirido e ato jurídico perfeitoA Constituição, como se sabe, impôs as

seguintes limitações ao legislador, no que serefere à criação de leis e à sua incidência notempo: “a lei não prejudicará o direito adquirido,

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Revista de Informação Legislativa252

o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art.5º, inc. XXXVI). Trata-se de norma de sobre-direito, editada com a finalidade de nortear aprodução de outras normas, tendo por destina-tário direto, conseqüentemente, o própriolegislador infraconstitucional.

Desde logo cabe observar que a restriçãoconstitucional diz respeito não apenas ao poderde legislar sobre direito privado, mas tambémao de editar normas de direito público. Emnosso sistema não é cabível, para tal efeito,estabelecer distinção entre os diversos ramosdo direito. Todos os preceitos normativosinfraconstitucionais, seja qual for a matéria queversarem, devem estrita obediência à cláusulalimitativa do art. 5º, inciso XXXVI, da Cons-tituição. Portanto, também as normas de direitoeconômico, como são as que editam planoseconômicos, hão de preservar os direitosadquiridos e o ato jurídico perfeito.

“Reputa-se ato jurídico perfeito”, segundoo § 1º do art. 6º da Lei de Introdução ao CódigoCivil, “o já consumado segundo a lei vigenteao tempo em que se efetuou”. O termo “consu-mado”, aqui, deve ser entendido como se refe-rindo aos elementos necessários à existênciado ato, e não à sua execução ou aos seus efeitosmateriais. Ou seja: “ato consumado” é ato exis-tente (= em que se acham completos, “consu-mados”, todos os requisitos para sua formação),ainda que pendentes (= ainda que não “consu-mados”) os seus efeitos.

“Consideram-se adquiridos”, diz a mesmaLei de Introdução (art. 6º, § 2º), “assim osdireitos que o seu titular, ou alguém por ele,possa exercer, como aqueles cujo começo deexercício tenha termo prefixo ou condição pre-estabelecida, inalterável a arbítrio de outrem”.Duas são as situações previstas no dispositivo.A primeira – a que considera direito adquiridoaquele que pode ser exercido – estabelece nítidadistinção entre aquisição e exercício do direito:considera-se adquirido o direito quando apto aser exercido, ainda que não tenha havido, efe-tivamente, o seu exercício. A segunda parte dodispositivo trata dos direitos cujo exercício estácondicionado. Não se confundem tais direitoscom as chamadas expectativas de direito. Osdireitos condicionados, ou expectativos, sãodireitos existentes, estando condicionado, ouexpectante, apenas o seu exercício. Diferente-mente é o que ocorre com as chamadas expec-tativas de direito, situações em que não hádireito algum, já que ainda pendentes (“emexpectativa”) de configuração os própriosrequisitos básicos para sua existência.

3. Aplicação imediata e aplicação retroativaNão se pode, igualmente, confundir apli-

cação imediata com aplicação retroativa da lei.A aplicação retroativa é a que faz a normaincidir sobre suportes fáticos ocorridos no pas-sado. Essa incidência será ilegítima, salvo sedela não resultar violação a direito adquirido,a ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. Assim,não seria vedada a incidência retroativa denorma nova que, por exemplo, importassesituação de vantagem ao destinatário.

Aplicação imediata é a que se dá sobre fatospresentes, atuais, não sobre fatos passados. Emprincípio, não há vedação alguma a essa inci-dência, respeitada, evidentemente, a cláusulaconstitucional antes referida. Aqui, todavia,colocam-se os problemas que mais desafiam aargúcia da doutrina e da jurisprudência. É quepode haver fatos atuais (ou até futuros) queconstituem, simplesmente, efeitos de atos jurí-dicos perfeitos ocorridos no passado. É possí-vel, outrossim, ocorrer situação em que o fatogerador do direito, embora não inteiramenteconsumado, já estava em vias de formação nomomento em que veio a lume a nova lei. Há,nesses casos, incidência imediata da normasuperveniente?

Para dar resposta a essas e a tantas outrasperguntas semelhantes que o tema suscita, háde se partir de um critério fundamental, queadiante será examinado com mais vagar: o quese relaciona com a natureza do ato que deuorigem à situação jurídica analisada.

4. Orientação do Supremo Tribunal FederalTomemos como parâmetro de trabalho dois

precedentes do Supremo Tribunal Federal emque questões dessa natureza foram examinadas.Caso A: decisão do STF que considerou incons-titucionais dispositivos da Lei nº 8.177, de1991, que alteraram o indexador adotado emcontratos de financiamento da casa própria (osdispositivos considerados inconstitucionaisdeterminavam a substituição dos índices decorreção monetária previstos no contrato, porindexador baseado na variação da Taxa Refe-rencial – TR) (ADIn nº 493. RTJ, v. 143, p.724). Caso B: decisão do STF que considerouconstitucional a Lei nº 8.030, de 1990 (con-versão da Medida Provisória nº 154, de 1990),que revogou (quando já concluído o trimestrede apuração do índice a ser aplicado) o art. 1ºda Lei nº 7.830 de 1989, que assegurava aos

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vencimentos dos servidores públicos reajusta-mentos trimestrais “em percentual igual àvariação acumulada do Índice de Preços aoConsumidor – IPC, verificada nos três mesesanteriores” (MS 21.216. RTJ, v. 134, p. 1112).É o conhecido precedente sobre o reajustamentode 84,32%, de abril de 1990.

Observe-se que, em ambos os casos, as leisquestionadas modificaram critérios de fixaçãode obrigações pecuniárias (prestação docontrato de financiamento da casa própria evencimentos dos servidores públicos) e dispu-nham para o futuro (não importavam alteraçãode valores já pagos ou devidos no passado),mediante aplicação imediata.

Quais os fundamentos adotados pelo STFpara chegar a conclusões aparentemente tãocontraditórias?

No caso A (contrato de financiamento dacasa própria), a tese central foi a de que osdispositivos eram inconstitucionais porqueofensivos a ato jurídico perfeito. Veja-se o quesustentaram os Ministros: “A norma constitu-cional impede a retroatividade da lei nova emface do ato jurídico perfeito, que, por não poderser modificado retroativamente, tem os seusefeitos futuros resguardados da aplicação dessalei” (Alves, p. 753). “O postulado da irretroa-tividade da lei nova” assegura “a imutabilidadeda manifestação de vontade licitamenteexpressa, segundo direito vigente ao tempo dofato (ato jurídico perfeito)” (Mello, p. 794). “Àsobrevivência das cláusulas livrementepactuadas, em matéria que, à época de suacelebração, era confiada à autônoma estipulaçãodas partes, não pode opor-se a lei superveniente,ainda que de ordem pública” (Pertence, p. 797).

No caso B (vencimentos dos servidorespúblicos), a linha de fundamentação foi a dainexistência de direito adquirido. É o que sepode constatar dos seguintes excertos dos votos:“A revogação precedeu a própria aquisição enão somente o exercício do direito”. “Para aaquisição do direito, ou seja, para o ingressodeste no patrimônio do pretenso titular, seriamister que, antes da revogação, se houvessemreunido e consumado todos os elementos, istoé, os fatos idôneos à sua constituição ou produ-ção” (Gallotti, p. 1119). “O momento aquisitivodo direito vindicado – não fosse a intercorrentealteração legislativa – ter-se-ia consumado coma conjugação desses dois elementos essenciaisjá referidos: a ocorrência da variação nominaldo IPC e a efetiva prestação laboral, no mês de

abril/90”. Antes disso, a situação jurídica estava“em processo de constituição”, caracterizando“mera expectativa de direito (...) não oponívelao Estado” e que não “pode ser invocada parainibir-lhe o desempenho de suas típicas funçõesjurídico-institucionais: a função de legislar”(Mello, p. 1125). “Não se adquire o direito aíndice, não se adquire o direito a moeda, nãose adquire o direito a reajustamento; adquire-seo direito ao salário pro labore facto no mês decompetência” (Borja, p. 1130). “Não há direitoadquirido. Para que este surja é necessário que,no mundo real, (ocorra) o fato complexoprevisto abstratamente na norma jurídica comocausa de nascimento do direito subjetivo demodo integral” (Alves, p. 1131).

Como se percebe, no caso A, prevaleceu,contra a lei nova, um direito previsto emcláusula de contrato; e, no caso B, prevaleceua lei nova sobre o que dispunha outra lei, arevogada (art. 1º da Lei nº 7.730, de 1989). Ouseja: no caso A, o ato originante da situaçãojurídica era um contrato. No caso B, uma lei.

5. A orientação da doutrinaA orientação adotada pelo STF nos prece-

dentes antes alinhados está perfeitamenteajustada aos critérios técnicos definidos na dou-trina. Com efeito, a configuração do direitoadquirido e do ato jurídico perfeito não ocorrede maneira uniforme em todas as situaçõesjurídicas. Em matéria de direito intertemporal,é indispensável que se trace a essencialdistinção entre direito adquirido fundado emato de vontade (contrato) e direito adquiridofundado em preceito normativo, de cunhoinstitucional, para cuja definição o papel davontade individual é absolutamente neutro.

Para ilustrar o pensamento da doutrinanesse domínio da ciência do direito, leia-se oque, em síntese esclarecedora e didática,escreveu Celso Antonio Bandeira de Mello:

“2. Como bem o diz Laubadère,‘denomina-se situação jurídica o conjuntode direitos e obrigações de que umapessoa pode ser titular.’ As situaçõesjurídicas, basicamente, comportam doistipos: a) situações gerais e impessoais,às vezes denominadas estatutárias ouobjetivas, cujo conteúdo, segundo ocitado mestre, é necessariamente omesmo para todos os indivíduos quedelas são titulares, pois tal conteúdo édeterminado por disposição geral. São

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também chamadas de situações legais ouregulamentares. (...) b) situações indivi-duais ou subjetivas, cujo conteúdo éindividualmente determinado e podevariar de um para outro titular. É o casoda situação de um credor, de um devedor,de um locatário, em que o conteúdo dasituação é específico para cada qual,modela-se pelo ato individual (e não porvia geral, como no caso anterior). O atoindividual (ato subjetivo), ao mesmotempo que cria a situação jurídica,investe nela o indivíduo. 3. As situaçõesindividuais, registra o renomado autor,jamais se encontram em estado puro. Sãosempre mais ou menos mistas, poiscomportam inevitavelmente algunselementos fixados por disposições gerais,a par dos aspectos subjetivos individuaisoriundos do ato individual que as cria.Exemplifica com o contrato, justamenteo mais típico gerador das situações sub-jetivas. Pelo contrato são produzidassituações individuais, de teor específicoem cada relação. Não obstante, qualquercontrato está submisso a certas regrasgerais que derivam de lei. 4. A utilidadeprincipal da distinção a que se acaba dealudir concerne precisamente – acentuaLaubadère – ao problema da modifica-bilidade das situações jurídicas: enquantonas situações gerais as alterações se apli-cam de plano, alcançando os que nelasestão investidos, as situações individuaise subjetivas permanecem intangíveis,intactas. E conclui: ‘Vê-se que a distin-ção fornece o critério técnico parasolução de problema da aplicação da não-retroatividade das leis.’

E prossegue Celso Antônio:“Entre nós, o Professor Oswaldo

Aranha Bandeira de Mello também fazampla e completa exposição do tema. Arespeito averbou: ‘As situações estatu-tárias se estendem a número indetermi-nado de sujeitos e são mutáveis segundoa alteração das regras jurídicas que aregulam. Já as situações individuais sereferem apenas a especificados sujeitos,de modo determinado, e são inalteráveispor terceiros ou por uma das partes sema concordância da outra, obedientes àsregras que permitiram a sua criação.’ 6.Em suma: o plexo de direitos e deveresdos indivíduos tanto pode consistir em

situações gerais (ditas também estatutá-rias, legais, regulamentares ou objetivas)como em situações individuais, subje-tivas, pessoais. As situações gerais sãoproduzidas por atos correspondentes, ouseja, atos que têm materialmente oalcance de criar disposições gerais eabstratas. Tais atos denominam-se atos-regra. A lei, o regulamento, estatutos,regimentos, convenções coletivas detrabalho são atos-regra. As situaçõessubjetivas são produzidas por atoscorrelatos, é dizer, cujo alcance materialrestringe-se ao produtor ou aos produtoresdeles. Tais atos são chamados de atossubjetivos. Seu modelo característico é ocontrato. Cifram-se a regular relaçõesespecíficas do ou dos intervenientes noato. Por meio deles os sujeitos delineiamuma específica relação jurídica, dese-nhando-lhes a figura com o empenho desuas vontades. (...) 7. A aplicação dassituações gerais aos indivíduos dependeda ocorrência de algum fato ou de algumato distinto daquele que as gerou. Pelocontrário, nas situações subjetivas, o atocriador delas ipso facto investe o sujeito(ou sujeitos) nas situações que produziu.Assim, para que alguém se veja incluídoem uma situação geral, cumpre queocorra algum evento previsto comodeflagrador do plexo de regras jurídicasque a compõem. Esse evento é queincorporará ao sujeito a situação geral.Tal evento pode ser um ato ou um fato.8. Os atos que investem alguém em umasituação jurídica geral denominam-seatos-condição. Consistem em condiçãopara que se desencadeie o conjunto dedireitos e deveres que perfazem asituação jurídica de alguém. Por meiodeles, não se cria direito novo – aocontrário do ato subjetivo; apenas imple-menta-se o necessário a fim de que umquadro normativo já existente passe avigorar em relação ao sujeito ou aossujeitos que nele se vêm incluir. Seualcance material é precisamente este:inserir alguém no campo de incidênciade um ato geral (ato-regra). O ato condi-ção não cria situação subjetiva: tão-sódetermina a incidência de uma situaçãogeral e objetiva sobre alguém que destarteingressa em regime comum aos demaisindivíduos colhidos por esta situação

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geral. Por exemplo: o ato de aceitar cargopúblico acarreta a inserção do sujeito nasituação jurídica geral de funcionário,situação que é a mesma para os funcio-nários em geral. O ato de se casar acar-reta para os que se convertem emcônjuges suas inserções no correlatostatus jurídico de casados, vale dizer, nasituação jurídica geral comum a todas aspessoas casadas, sujeitas ao mesmoquadro de direitos e obrigações. São atos-condição. 9. A inclusão de alguém emuma situação geral pode também resultarde um fato que operará como condiçãopara que se desencadeiem as regras quea delineiam. Assim, o fato de uma pessoaauferir certo montante de renda faz comque se concretize para ela a situação –que é disciplinada de modo geral – decontribuinte do imposto de renda. O fatode um jovem completar certa idadedetermina para ele a particularização dasituação jurídica geral, própria dosobrigados à prestação de serviço militar.10. Nota-se a profunda diferença entreas situações gerais e as situações indivi-duais. Intuitivamente percebe-se a ime-diata alterabilidade das primeiras e aintangibilidade das segundas”.

“Teria sentido – pergunta ele –alguém pretender se opor à alteração dasregras do imposto de renda, argüindodireito adquirido àquelas normas quevigiam à época em que se tornou contri-buinte pela primeira vez? Teria sentidoinvocar direito adquirido para obstar aaplicação de novas regras concernentesao serviço militar, argumentando que oregime vigorante era mais suave quandoo convocado completou 18 anos? Acasopoderia um funcionário, em nome dodireito adquirido ou do ato jurídicoperfeito, garantir para si a sobrevivênciadas regras funcionais vigentes ao tempoem que ingressou no serviço público,quais as concernentes às licenças, adi-cionais etc.? Seria viável alguém invocardireito adquirido a divorciar-se, se alegislação posterior a seu casamentoviesse a extinguir este instituto jurídico?Ou, reversamente, teria direito adquiridoà indissolubilidade de vínculo se lei novaestabelecer o divórcio? É meridianamenteclaro o descabimento de resistência a taisalterações. Elas colhem de imediato os

indivíduos inclusos nas situações jurí-dicas gerais modificadas. Salvo hipótesesadiante explanadas, inexiste a intangi-bilidade reconhecida para as situaçõesindividuais.

“Bem ao contrário – continua – sealguém contrata com outrem o trespassede bem móvel, convindo as partes, daspossibilidades legais, que os riscos dacoisa, antes da tradição, correm por contado comprador, cria-se situação subjetivaimutável. Daí que o vendedor poderáinvocar direito adquirido àquelas cláu-sulas, se lei posterior à avença dispuserque os riscos da coisa vendida e aindanão entregue devem ser suportados pelovendedor. (...) 13. É nítido o discrímenentre ambas as espécies de situaçõesjurídicas e igualmente nítida a imediataaplicação das modificações que incidamsobre as situações gerais, ao contrário doque se passa com as subjetivas” (Atoadministrativo e Direito dos adminis-trados. Revista dos Tribunais, 1981.p.106-111).

6. Inexistência de direito adquirido àmanutenção de situação institucionalNão existe, portanto, direito adquirido a

manter inalterado determinado regime jurídico,e quanto a isso, como se viu, há absolutaharmonia entre doutrina e jurisprudência.Confiram-se, nesse sentido, alguns outrosexemplos retirados da jurisprudência do STF,frutos dessa linha de pensamento: a) o direitoa aposentadoria regula-se pela lei vigente aotempo em que forem implementados todos osrequisitos necessários. Antes disso, não hádireito adquirido, nada impedindo que a lei sejaalterada, com modificação do regime vigente(súmula 359-STF; RTJ, v. 75, p. 481); b) nãohá direito adquirido a determinado regimejurídico de servidor público. O servidor podeadquirir direito a permanecer no serviço públi-co, mas não adquirirá nunca o direito ao exer-cício da mesma função, no mesmo lugar e nasmesmas condições (RTJ, v. 119, p. 1324); c)enquanto não completado integralmente operíodo aquisitivo correspondente, não hádireito adquirido a licença-prêmio ou à suaconversão em dinheiro, nada impedindo que olegislador modifique ou mesmo extinga taisvantagens (RTJ, v. 123, p. 681); d) não há

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direito adquirido a vantagem prevista em leienquanto não implementada a condição tem-poral que a autorizaria (RTJ, v. 123, p. 372).

7. As modificações implantadas no FGTSpelos planos econômicos

O saldo das contas vinculadas ao FGTS(Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) éatualizado periodicamente, mediante créditosde juros e de correção monetária. A Lei quecriou o FGTS (Lei nº 5.107, de 1966) dispunha,em seu art. 3º, que o saldo das contas vinculadasseria corrigido segundo “....critérios adotadospelo Sistema Financeiro da Habitação”. Naépoca, os índices e a periodicidade do créditoforam fixados por atos do Poder Executivo,sendo que, pelo menos a partir de 1975 (Decretonº 76.750, de 5-12-75), a periodicidade foitrimestral.

Posteriormente, o FGTS foi alterado pelaLei nº 7.839, de 1989, em cujo artigo 11 ficouestabelecido que a correção monetária do saldodas contas vinculadas se daria “...com base nosparâmetros fixados para atualização dos saldosdos depósitos em poupança” e com periodici-dade mensal (§§ 1º e 2º), disposições que forammantidas pelo artigo 13 e §§ 1º e 2º da Lei nº8.036, de 1990, que atualmente rege o FGTS.

O que se tem questionado judicialmente dizrespeito, de modo específico, às alteraçõesrelativas aos índices de correção monetária dosmeses de junho de 1987, de janeiro de 1989 ede abril de 1990. Em relação a junho de 1987(“Plano Bresser”), a controvérsia tem a seguinteorigem: o artigo 12 do DL nº 2.284, de 1986,com a redação dada pelo DL nº 2.311, de 1986,estabelecia que “os saldos das cadernetas depoupança, bem como do Fundo de Garantia doTempo de Serviço – FGTS e do Fundo deParticipação PIS/PASEP, serão corrigidos pelosrendimentos das Letras do Banco Central oupor outro índice que vier a ser fixado peloConselho Monetário Nacional, mantidas astaxas de juros previstas na legislação corres-pondente”. O índice fixado pelo CMN foi o davariação da OTN, que, por sua vez, era calcu-lada com base na variação do IPC ou dosrendimentos produzidos pelas Letras do BancoCentral, “....adotando-se o índice que maiorresultado obtiver...” (Resolução nº 1.336, de11-6-87). Sobreveio, porém, a Resolução nº1.338, de 15-6-87, e, em seu item I, alterou omodo de calcular a OTN de julho daquele ano,estabelecendo que “o valor nominal das

Obrigações do Tesouro Nacional – OTN seráatualizado, no mês de julho de 1987, pelorendimento produzido pelas Letras do BancoCentral – LBC no período de 1º a 30 de junhode 1987, inclusive”. Ora, a variação da OTNassim calculada foi de 18,02%, enquanto o IPC,no mesmo período, registrou variação de26,06%. Sustenta-se a existência de direitoadquirido ao crédito dessa diferença.

Em relação a janeiro de 1989 (“PlanoVerão”), a controvérsia tem a seguinte origem:a correção monetária das cadernetas de pou-pança, e, também, das contas vinculadas doFGTS, vinha sendo calculada pela variação daOTN, segundo o disposto na ResoluçãoBACEN nº 1.396, de 22-9-87 (que deu novaredação ao item IV, da Resolução nº 1.338, de15-6-87). Entretanto, em 15-1-89, foi editadaa Medida Provisória nº 32, depois convertidana Lei nº 7.730, de 31-1-89, que extingui aOTN (art. 15) e estabeleceu que o saldo dascadernetas de poupança, no mês de fevereiro,seria corrigido “com base no rendimentoacumulado da Letra Financeira do TesouroNacional verificado no mês de janeiro de 1989,deduzido o percentual fixo de 0,5% (meio porcento)”. O mesmo critério foi adotado paracorreção do saldo das contas vinculadas doFGTS, pelo art. 6º, I, da Medida Provisória nº38, de 3-2-89, convertida, posteriormente, naLei nº 7.738, de 9-3-89, “mantida a periodici-dade trimestral”. Em conseqüência, a correçãomonetária das contas vinculadas, creditada em1º de março de 1989 correspondeu à variaçãoacumulada da OTN de dezembro de 1988(28,79%), mais a da LFT de janeiro (22,359%)e mais a da LFT de fevereiro (18,353831%),totalizando, no trimestre, 86,5095%. O que setem sustentado é o direito adquirido ao créditoda diferença, correspondente à variação do IPCde janeiro, que foi de 70,28%.

Finalmente, no que se refere ao mês de abrilde 1990 (“Plano Collor”), a questão tem aseguinte origem: a correção monetária dascontas vinculadas do FGTS, que tinha como basea variação do IPC (Lei nº 7.730, de 31-1-89, art.17, III, e Lei nº 7.839, de 12.10.89, art. 11),passou a ser calculada, por força da MedidaProvisória nº 168, de 15-3-90, convertida naLei nº 8.024, de 12-4-90, pela variação do BTNFiscal, já que este foi o critério adotado para acorreção dos saldos das cadernetas de poupança(art. 6º, § 2º e Lei nº 7.839, de 12-10-89, art.11). O crédito, nessa época, já tinha periodici-dade mensal (Lei nº 7.839, de 12-10-89, art.

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11, §§ 1º e 2º). O que se sustenta é o direito àmanutenção, para o mês de abril, da correçãomonetária com base na variação do IPC, de44,80% (Em muitos casos, questionou-se tam-bém o índice do mês de março de 1990.Todavia, relativamente a esse mês, a discussãonão tem substância, já que o crédito efetuadoàs contas vinculadas foi equivalente ao davariação do IPC).

8. Natureza jurídica do FGTSPara identificar a existência do questionado

direito adquirido é indispensável, à luz daspremissas antes estabelecidas, saber se o FGTStem natureza institucional ou contratual. O queé o FGTS? Qual a sua natureza? Muito se temdebatido, em doutrina e jurisprudência, parabuscar resposta a tais indagações. Há os quenele vislumbram um instituto de natureza tipi-camente previdenciária, e assim o fazem ematenção aos casos em que o empregado sehabilita a movimentar a conta vinculada(desemprego, doença, aquisição da casaprópria, necessidade urgente); há os que vêemnele relação jurídica de cunho tributário ou decontribuição social (assim o definiu o STF àluz da Constituição de 1969 – RTJ, v. 136, p.681), e isso em consideração à natureza cogentedo recolhimento dos depósitos; e, enfim, outrosvêem ali espécie de salário diferido, ou deindenização, ou de crédito, e essa é perspectivafundada na relação que se estabelece entre oempregado e o próprio Fundo. Síntese dessasvárias correntes de opinião podem ser encon-tradas em estudos de Amauri Mascaro Nasci-mento (Curso de Direito do Trabalho. 8. ed.Saraiva, 1989. p.473) e de Ney da FontouraBoccanera (Natureza jurídica e implicaçõespráticas de certas instituições trabalhistas .Revista de Direito do Trabalho, n. 17, p. 111).Qualquer que seja, no entanto, a perspectiva apartir da qual se examine o FGTS, uma carac-terística importante nele se identifica desdelogo: a sua natureza institucional. Na verdade,o FGTS é uma instituição, da qual decorre umplexo de relações jurídicas com diferentes fi-gurantes: há a relação jurídica que se estabeleceentre o empregador e o Fundo, cuja prestação éuma contribuição mensal sobre os ganhos dosempregados; e há a relação jurídica que seestabelece entre o titular da conta vinculada (oempregado) e o Fundo, da qual nasce o deverde creditar rendimentos periódicos e, eventu-almente, de entregar ao titular da conta o saldo

disponível. Tais relações jurídicas nascem e semoldam em estrita observância de normaslegais, gerais e abstratas, idênticas para todosos empregados e para todas as empresas. Atémesmo a opção pelo “regime instituído napresente lei” (observe-se que a lei fala em“regime”!), originalmente prevista no art. 1ºda Lei nº 5.107, de 1966, até mesmo essa opção,único resquício de autonomia de vontade doempregado (e que se limitava a aderir ou nãoao regime), já não mais existe. Hoje, a adesãoao regime do FGTS é imposta por lei a empresase a trabalhadores, e é a lei que disciplina, deforma exaustiva, todo o conteúdo e todas asconseqüências de tal vinculação. Em suma,nada tem de contratual o regime do FGTS. Suanatureza é tipicamente institucional, estatutária,objetiva. É, sob esse aspecto, em tudo seme-lhante ao regime da Previdência Social: emambos os casos, o ingresso é automático edecorre tão-somente da existência do contratode trabalho, que é seu ato-condição.

9. Momento da ocorrência da alteraçãolegislativa: antes de consumado o lapso

temporal da aquisição do direitoSe o FGTS tem natureza institucional, e não

contratual, os critérios jurídicos a seremadotados em relação a ele são os mesmos quenortearam a dedisão do STF no precedente arespeito de reajustamento de vencimentos (CasoB). Não se pode aplicar a ele, sem maior consi-deração, o outro precedente, relativo a contrato(Caso A), e nem, como tem ocorrido comfreqüência, os precedentes jurisprudenciais arespeito de rendimentos de caderneta de pou-pança. É que também a caderneta de poupançatem natureza contratual. É espécie de contratode depósito bancário a prazo certo de um mês,que pode ser renovado ou não, segundo avontade do depositante. Ora, conforme antesse viu, em se tratando de contrato, os efeitosfuturos regem-se pelas normas estabelecidasquando de sua celebração, e é essa a razão asustentar o direito a rendimentos previstos nanorma vigente ao tempo do depósito.

Aliás, mesmo nas situações de naturezacontratual – que, como assevera a doutrina,nunca são encontráveis em estado puro –, a leinova incide imediatamente sobre as cláusulasnele incorporadas por força de preceito norma-tivo cogente, ou seja, aquelas cujo conteúdo fogeao domínio da vontade dos contratantes. Real-mente, em casos de situações jurídicas oriundas

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de contratos, notadamente em se tratando decontratos de trato sucessivo e execução diferida,que incorporam cláusulas regradas por lei, épacífica a jurisprudência no sentido de que nãohá direito adquirido à manutenção de taiscláusulas. Disciplinadas em lei de formaabstrata e geral, elas são suscetíveis de alteraçãocom eficácia imediata, inclusive em relação aoscontratos em curso de execução. Assim: “...asnormas que alteram padrão monetário e esta-belecem os critérios de conversão dos valoresem face dessa alteração se aplicam de imediato,alcançando os contratos em curso de execução,uma vez que elas tratam do regime legal damoeda, não se lhes aplicando, por incabíveis,as limitações do direito adquirido e do ato jurí-dico perfeito...” (RE 114.982. Relator: MinistroMoreira Alves. DJ 1º mar. 1991. No mesmosentido: Relator: Ministro Ilmar Galvão. RTJ,v. 141, p. 1001); “não há direito adquirido adeterminado padrão monetário pretérito, sejaele o mil réis, o cruzeiro velho ou a indexaçãopelo salário mínimo. O pagamento se farásempre pela moeda definida pela lei do dia dopagamento” (RTJ, v. 117, p. 376); “não hádireito adquirido a que os benefícios de previ-dência privada sejam fixados segundo o valordo salário mínimo, se lei posterior fixa novaescala móvel, alcançando obrigações de origemcontratual ou não” (RTJ, v. 118, p. 709; nomesmo sentido: RTJ, v. 121, p. 776, v. 122, p.1077, v. 122, p. 1147 e v. 124, p. 633).

É nesse sentido também a orientação doSTJ, que a adotou, por exemplo, no que se referea cláusulas contratuais de reajuste de prestaçõese benefícios da previdência privada (RSTJ, n.3, p. 1032), em contratos de locação (RSTJ, n.9, p. 391) e em relação a normas que proce-deram “expurgo” de correção monetária medi-ante aplicação de “tablitas”.

É certo que, no julgamento da Ação Diretade Inconstitucionalidade nº 493-DF, o STFconsiderou inconstitucional a norma quealterou, para os contratos em curso (do SistemaFinanceiro da Habitação), o índice de correçãomonetária anterior (OTN ou UPC) pela TaxaReferencial – TR. No entanto, tal precedentede modo algum infirma a jurisprudência acimacitada. É que o fundamento da inconstitucio-nalidade, na referida Ação Direta, não decorreupropriamente da modificação do indexadormonetário, mas sim da substituição de umindexador monetário (“...que reflita a variaçãodo poder aquisitivo da moeda”) por um inde-xador não-monetário, que não reflete a correção

da moeda, mas “as variações do custo primárioda captação dos depósitos a prazo fixo” (RTJ,v. 143, p. 724). Aliás, isso restou expresso novoto do relator, Ministro Moreira Alves:

“Não é, pois, a Taxa Referencialíndice de atualização monetária, razãopor que não há necessidade de se exa-minar a questão de saber se as normasque alteram índice de correção monetáriase aplicam imediatamente, alcançando,pois, as prestações futuras de contratoscelebrados no passado” (RTJ, v. 143,p. 758).

Em suma: sendo o FGTS de natureza insti-tucional, o que importa averiguar é se, quandodo surgimento da lei nova, estavam ou nãoimplementados os requisitos fáticos indispen-sáveis para incidência da lei antiga. Nãoestavam. As alterações legislativas operaram-sepor normas que entraram em vigor antes mesmode consumado o lapso temporal relativo à apu-ração do índice que incidiria caso não tivessehavido a interveniência legislativa. Assim, noque se refere a junho de 1987, a correçãomonetária, à época, tinha periodicidade trimes-tral e abrangia os meses de junho a agostodaquele ano, sendo 1º de setembro a data docrédito. A alteração do regime ocorreu em 15de junho, no curso do período formativo. Omesmo se passou em relação a janeiro de 1989:o trimestre de competência abrangia os mesesde dezembro a fevereiro, sendo em 1º de marçoa data do crédito. A alteração do regime se deuem 15 de janeiro. E, finalmente, com relação àcorreção monetária do mês de abril de 1990, aalteração do regime se deu em março daqueleano, antes mesmo que tivesse início o próprioperíodo de apuração do índice, que na épocaera mensal.

Veja-se que, no precedente antes referido,relativo a reajuste de vencimentos de servidores– que têm garantia constitucional de irreduti-bilidade (art. 7º, VI e art. 39, § 2º) –, o STFconsiderou legítima a aplicação da lei nova,mesmo que editada quando já decorrido operíodo de apuração do índice de reajuste (nocaso do FGTS esse período ou estava ainda emcurso, ou sequer havia iniciado), e isso porque“o período pesquisado para efeito de apuraçãodo índice alusivo ao reajuste não se confundecom o elemento temporal referente à aquisiçãodo direito às parcelas a serem corrigidas” (REnº 177.109-7. DJ, p.11.920, 5 maio 1995; nomesmo sentido: RE nº 178.276-5. DJ, p.11.921, 5 maio 1995; RE 177.857-1. DJ, p.

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11.921, 5 maio 1995 e RTJ, v. 134, p. 1112).Nessa perspectiva, a conclusão a que se

chega é a da legitimidade das normas que alte-raram o regime, que, certamente, não atingiramdireito adquirido. Aliás, se ilegítimas, caberiasuscitar, em relação a elas, incidente de incons-titucionalidade, o que, até agora, não ocorreuem qualquer Tribunal.

10. Inexistência de direitoà escolha de indexador

Ainda que se admitisse o direito adquiridoà correção monetária calculada com base emdeterminado indexador e, portanto, a ilegiti-midade da interferência legislativa para alterarcritério de cálculo de correção monetária doFGTS, outras considerações mereceriamdestaque.

Os diversos indexadores monetários previs-tos em nosso sistema têm, cada qual, critériospróprios de aferição, variando segundo osegmento da economia ou dos produtos que lheservem de suporte para cálculo ou segundo aépoca, o local e a qualidade das amostras cole-tadas. É questionável, por isso, a afirmação,muitas vezes repetida, de que este ou aquele éo índice que realmente representa a inflaçãoda economia do país. O próprio STJ, como sesabe, entendeu que, em janeiro de 1989, avariação a ser adotada para correção monetá-ria com base no IPC não deveria ser a de72,28%, mas sim a de 42,72%.

Todavia, a admitir-se que determinadoíndice é o juridicamente legítimo para acorreção das contas do FGTS, por espelhar comprecisão a perda do poder aquisitivo, é certoque deve ele vigorar não apenas num mêsdeterminado, mas também em outros meses,anteriores e subseqüentes. Não se poderia deixarao arbítrio do titular da conta eleger, mês a mês,o índice que melhor lhe conviesse.

Isso tem significativa importância no examedo tema que aqui nos ocupa. Por exemplo: noque se refere ao mês de janeiro de 1989, a seter por ilegítima a substituição do IPC pela LBCnaquele mês, é certo que o IPC deveria seradotado como fator de reajuste não apenas emjaneiro de 1989, mas também nos mesesseguintes, especialmente no mês de fevereiro,que, com dezembro e janeiro, compunha otrimestre de referência. Ora, em fevereiro avariação do IPC foi de apenas 3,60%, muitoinferior ao índice adotado, o da LBC, que foi

de 18,35%. Assim, o percentual de correçãomonetária efetivamente creditado em 1º demarço de 1989 foi, segundo dados oficiais, de86,5095% (mais juros). A adotar-se o IPC nessemesmo período, o índice acumulado do trimes-tre (28,79% em dezembro, 42,72% em janeiroe 3,60% em fevereiro) passaria a ser de90,4262%. Ou seja, a diferença entre um e outroseria mínima. E, caso o IPC continuasse sendoadotado no trimestre seguinte (março/abril/maio de 1989), dita diferença estaria inteira-mente coberta e com sobras: a variação acu-mulada do IPC no referido trimestre (6,09%em março, 7,31% em abril e 9,94% em maio)foi de 25,16%, enquanto o crédito efetuadoatingiu, também segundo os dados oficiais, opercentual de 46,16% (sem considerar a taxade juros).

11. Legitimação passivae responsabilidade pelo creditamentoOutro tema debatido nas ações em que se

questionam os indexadores do FGTS é o quediz com a legitimidade passiva. Esse temaguarda relação direta com outro: o de saberquem ou que patrimônio deverá suportar aexecução das sentenças condenatórias.

É preciso, antes de mais nada, não confun-dir, como seguidamente ocorre, “contas vincu-ladas ao FGTS” com o próprio “FGTS”. OFGTS (Fundo de Garantia do Tempo deServiço), desde a sua criação, sempre foi muitomais do que o conjunto das contas vinculadas.A ele se agregam outras receitas (receitaspatrimoniais e financeiras, multas por atrasono recolhimento, correção monetária e jurosperdidos pelos empregados despedidos por justacausa, outras receitas orçamentárias, elencadasexpressamente na lei). Ora, o rendimentoperiódico de juros e correção monetária é devidoe incide, não sobre os recursos do Fundo comoum todo, mas somente sobre os saldos dascontas vinculadas em nome dos trabalhadores.É o que dispunham a Lei nº 5.107, de 1966,art. 3º, e a Lei nº 7.839, de 1989, art. 11, queanteriormente regulavam o FGTS. E é o quedispõe a atual Lei nº 8.036, de 1990, art. 13. OFGTS, em si mesmo, obtém remuneração dasaplicações que faz dos seus recursos, cujarentabilidade não está tarifada, cuidando olegislador de estabelecer apenas certascondições mínimas, a saber: as aplicaçõesdevem ter rentabilidade necessária “a assegurara cobertura das suas obrigações” (Lei nº 5.107,

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de 1966, art. 11), “deverá ser suficiente à co-bertura de todos os custos incorridos pelo Fun-do e, ainda, à formação de reserva técnica” (Leinº 7.839, de 1989, art. 7º, § 1º, e Lei nº 8.036,de 1990, art. 9º, § 1º).

Pois bem, entre as obrigações do Fundo, aserem cobertas com os rendimentos proveni-entes da aplicação dos seus recursos, estájustamente a de creditar, periodicamente, jurose correção monetária sobre os saldos das contasvinculadas. É o que estabelece expressamentea lei de regência: Lei nº 5.107, de 1966, art.3º, § 1º (“A correção monetária e a capitaliza-ção dos juros correrão à conta do Fundo”), Leinº 7.839, de 1989, art. 11, §§ 1º e 2º (“... aatualização monetária e a capitalização dosjuros correrão à conta do Fundo”), e Lei nº8.036, de 1990, art. 13, §§ 1º e 2º (“...a atuali-zação monetária e a capitalização de juroscorrerão à conta do FGTS”). Em outraspalavras, se a correção monetária foi paga emvalor menor que o devido, quem disso se bene-ficiou foi quem deveria ter pago a maior e nãoo fez, ou seja, o próprio Fundo.

É o Fundo, pois, em primeiro lugar, oresponsável por eventual complementação oureparação devida aos titulares das contas a elevinculadas.

Ocorre que o FGTS não tem personalidadejurídica. No dizer de Eduardo Gabriel Saad, oFundo é uma espécie de autarquia imperfeita,“porque tem alguns traços característicos, maslhe faltam outros”. Foi criado por lei, tem fina-lidade pública, mas não tem administraçãoprópria (Comentários à Lei do Fundo deGarantia do Tempo de Serviço 3. ed. Ltr, p.98). Não tendo personalidade jurídica própria,sua representação processual há de ser por quemo administra. É essa a solução que o nossosistema oferece em casos análogos, como ocorrecom o espólio (que é representado pelo inven-tariante) e com o condomínio (que é representa-do pelo síndico). É o que se dá, igualmente,em relação aos consórcios de automóveis e àmassa insolvente, na insolvência civil, que,mesmo sem lei expressa a respeito, são repre-sentados por seus respectivos administradores.Isso não significa dizer que o patrimôniopessoal do administrador, do síndico ou doinventariante vá suportar os ônus da conde-nação. Suportá-los-á, se for o caso, o patrimôniodo representado.

Pois bem, a Lei nº 8.036, de 1990, estabe-leceu que o FGTS tem um Conselho Curador,encarregado, basicamente, de editar normas e

diretrizes (art. 3º), um gestor de suas aplicações(que é um Ministério de Estado), encarregadode estabelecer e fiscalizar programas de aloca-ção dos recursos, acompanhar sua gestãoeconômica e financeira e assim por diante (art.5º), e um agente operador, a Caixa EconômicaFederal. Apenas esta última é que tem perso-nalidade jurídica. É ela, salvo quando se tratarde cobrança das contribuições, que representajuridicamente o FGTS, judicial ou extrajudici-almente, ativa e passivamente, conforme, aliás,consta expressamente da Resolução nº 52, de12-11-91, do Conselho Curador do Fundo.

Assim, em princípio (ressalvadas situaçõespeculiares que possam surgir em face da causaou do fundamento jurídico do pedido), quemdeve figurar no pólo passivo da relação proces-sual nas demandas onde se reclamam diferençasde correção monetária das contas do FGTS é aCaixa Econômica Federal, como representantedo Fundo (ou, se quisermos ser mais rigorosostecnicamente, é o Fundo, representado pelo seuagente operador, a Caixa Econômica Federal).

12. ConclusõesSão as seguintes, portanto, as principais

conclusões a que se pode chegar do que foiexposto:

I – No que se refere à aplicação da lei notempo: a) o preceito constitucional, segundo oqual a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito,o direito adquirido e a coisa julgada, é restri-ção ao poder de legislar aplicável inclusive àsnormas de direito público, como são as queeditam planos econômicos; b) por ato jurídicoperfeito entende-se aquele cujos elementosformadores, indispensáveis à sua existência,encontram-se completos; c) considera-se adqui-rido o direito tão pronto esteja apto a ser exer-cido, bem como quando o seu exercício dependaapenas de termo prefixo ou condição preesta-belecida, inalterável a arbítrio de outrem; d)não se confunde aplicação retroativa com apli-cação imediata da lei: aquela é vedada, salvose importar situação de vantagem ao destina-tário; esta é, em princípio, admitida; e) o critériotécnico, adotado pela jurisprudência do STF epela doutrina, para a solução dos problemasrelacionados com a aplicação da lei no tempoestá baseado na identificação da natureza dasituação jurídica: se individual (contratual) ouinstitucional (geral, estatutária); f) as situaçõesindividuais – que decorrem de atos específicos,notadamente de natureza contratual, em que

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as partes têm liberdade para disciplinar oconteúdo da relação jurídica – não são modifi-cáveis, nem mesmo quanto aos seus efeitosfuturos, por lei nova, eis que isso importariaofensa a ato jurídico perfeito; g) nas situaçõesinstitucionais – cuja disciplina é prevista emnormas abstratas e cuja aplicação individualdepende do implemento de outro ato ou fatoposterior à sua edição (suporte fático) –, a leinova tem aplicação imediata e alcança inclusiveas situações em curso de formação; de seualcance ficam excluídas apenas as situações emque o suporte fático para a incidência da leiantiga já se havia completado inteiramenteainda na vigência daquela.

II – No que se refere especificamente aoFundo de Garantia do Tempo de Serviço: a) oFGTS tem natureza institucional, e nãocontratual, de modo que as supervenientesmodificações da lei que o disciplina têm apli-cação imediata, alcançando situações jurídicasnão-aperfeiçoadas na vigência da lei anterior;

b) a intercorrência legislativa que operou alte-rações nos critérios de cálculo da correçãomonetária das contas vinculadas, em junho de1987 (“Plano Bresser”), janeiro de 1989 (“PlanoVerão”) e abril de 1990 (“Plano Collor”), deu-seantes de implementado o suporte fático para aincidência da lei antiga, não importando,conseqüentemente, ofensa a direito adquirido;c) de qualquer modo, a se admitir como legítimoo indexador antigo, este há de ser aplicadodurante todo o período de competência, e nãoapenas no mês específico em que seu percentualfoi superior ao índice da nova lei; e) os créditosde juros e correção monetária devidos às contasvinculadas correm à conta do próprio Fundo,que, por sua vez, é alimentado por receitasprovenientes de variadas fontes (depósitos dosempregadores, receitas patrimoniais e finan-ceiras, multas, receitas orçamentárias); f) pornão ter personalidade jurídica própria, o FGTSé representado, em juízo, pela Caixa EconômicaFederal, seu agente operador.

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1. IntroduçãoTema dos mais intrigantes de Direito Inter-

nacional Público é aquele que se dedica à saídacompulsória do território nacional, mormenteà extradição, que, ao excluir do seu alcance osbrasileiros, imprescinde de uma vasta literaturasobre a nacionalidade: aquisição, mudança eperda. Sobre o assunto, dois tópicos se eviden-ciam e merecem uma análise mais acurada, nãosó pela necessidade de sistematização, mastambém pelo alcance que possuem: a eficáciaex nunc da naturalização e a extradição debrasileiro. A exposição do tema, mediantecomentários da jurisprudência do SupremoTribunal Federal, tornou o estudo eminente-mente prático.

2. A eficácia ex nunc na naturalizaçãoA nacionalidade é o vínculo jurídico-polí-

tico que liga o indivíduo ao Estado. Quanto asua aquisição, pode ser originária, aquela quecoincide com o nascimento do indivíduo, ouderivada, obtida após o nascimento. A nacio-nalidade originária se materializa por doiscritérios básicos: o ius soli e o ius sanguinis,não obstante hoje já se fale em ius domicilii eius laboris (DOLINGER, Jacob. Direito Inter-nacional Privado. 3. ed. Rio de Janeiro :Renovar, 1994).

A naturalização, que para muitos é um atode soberania do Estado e, portanto, de naturezapolítica e de total discricionariedade (Lei nº

1. Introdução. 2. A eficácia ex nunc na natura-lização. 3. A extradição de brasileiro.

SUMÁRIO

RICARDO PERLINGEIRO MENDES DA SILVA

A eficácia ex nunc da naturalização e aextradição de brasileiro

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva é JuizFederal no Rio de Janeiro, Professor Assistente daUniversidade Federal Fluminense, Mestre emDireito e Doutorando em Direito.

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Revista de Informação Legislativa264

6.815/80, art. 121), a que mantenho profundasreservas, é o meio tradicional de aquisiçãoderivada da nacionalidade brasileira. Emboraa Constituição de 1988 tenha previsto trêsespécies de naturalização, duas delas vinculadasao seu próprio texto (Constituição, art. 12, II,alínea a, segunda parte, e alínea b), tem sidotradição no nosso Direito Constitucionaldelegar ao legislador ordinário a fixação dosrequisitos para a sua concessão (Constituição,art. 12, II, alínea a, primeira parte), o que decerta forma contribui para o surgimento decontrovérsias a respeito.

Há muito se discute sobre o alcance dosefeitos da naturalização, se retroagem ou não,e se chegam a atingir os filhos e cônjuge donaturalizando. Interessante questão é saber sefilho de estrangeiro, posteriormente naturali-zado brasileiro, e nascido no exterior, pode serconsiderado brasileiro nato. A dúvida se acen-tuou com o advento da Lei nº 4.404/64, cujoartigo 1º dispunha que “o menor estrangeiro,residente no país, filho de pais estrangeirosnaturalizados brasileiros e aqui domiciliados,é considerado brasileiro para todos os efeitoslegais” e, ainda, pelo seu art. 2º, prescrevia que,“atingida a maioridade, deverá o interessado,para conservar a nacionalidade brasileira,optar, por ela, dentro de quatro anos”.

Parte da jurisprudência, à época, sustentavaque a Constituição não distinguia brasileironato do naturalizado, e que, portanto, filho debrasileiro, fosse naturalizado ou nato, sepreenchesse os requisitos constitucionais, seriaconsiderado brasileiro nato. Sucede que anacionalidade originária é conceitualmenteaquela na qual o indivíduo com ela já nasce, demodo que, se a naturalização do pai é posteriorao nascimento do filho, significa que este nãonasceu brasileiro, mas sim estrangeiro. Ocontrário implica admitir que a naturalizaçãosurte efeitos ex tunc, retroativos, o que, alémde ofender a boa técnica jurídica, é um resultadorepelido pela unanimidade da doutrina espe-cializada.

Além disso, haveria grandes riscos defraude à legislação sobre naturalização. Ima-ginem um estrangeiro, desejoso de obter anacionalidade brasileira por meio de naturali-zação, mas que não possuísse os seus requisitos.Bastaria que o seu pai a obtivesse, para que,em seguida, fosse considerado brasileiro, e,pior, brasileiro nato. Dessa maneira, a melhorexegese daquele diploma legal, deveria ser nosentido de que o menor estrangeiro, residente

no país, filho de pais estrangeiros naturalizadosbrasileiros e aqui domiciliados, fosse conside-rado brasileiro para todos os efeitos legais,desde que já nascido por ocasião da naturali-zação, pois aí realmente não há qualquerdistinção entre brasileiro nato e naturalizado.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal, noRecurso Extraordinário nº 76.067/RS, de quefoi relator o Ministro Aliomar Baleeiro, deixouassentado que “a Constituição não distingueentre pais brasileiros natos ou naturalizados”;porém, em se tratando de pai brasileiro natura-lizado, “o essencial é que, na data de nasci-mento, já houvesse obtido a sua naturalização”.Da mesma maneira, o Ministro Vitor NunesLeal, no Recurso Extraordinário nº 46.305,decidiu que:

“A naturalização dos pais, a chamadanaturalização expressa, não poderiaretroagir para aquele efeito. O títulodeclaratório é que retroage, porque nãoconfere o status nacional, mas apenasdeclara a nacionalidade adquirida, ante-riormente, pela reunião dos pressupostosconstitucionais. Como não podia a natu-ralização dos pais retroagir, a recorridanasceu de pais estrangeiros, e só os filhosde brasileiros podem optar pela nossanacionalidade” (Revista Forense, n. 204,p. 131).

Embora com indícios de inconstitucionali-dade, a Lei nº 4.404/64 jamais foi objeto derepresentação direta perante o SupremoTribunal Federal. Registre-se a infrutíferasolicitação a respeito do então Procurador-GeralHaroldo Valladão, que algum tempo antes,como consultor jurídico do Itamaraty, susten-tara a tese de que a dita lei era inconstitucionale contara com o apoio do Consultor-GeralAdroaldo Mesquita da Costa. A representaçãotomou, no Supremo, o nº 705 e foi julgadacarente de objeto, vez que revogada pela Lei nº5.145/66 (RTJ-48/156). Não obstante, naquelaoportunidade, o Ministro Themistócles Caval-cante, com sua autoridade, encampou a tese dainconstitucionalidade, nos seguintes termos:

“Não tenho dúvidas sobre a incons-titucionalidade da lei que me parecemanifesta, e não tenho motivos para nãodecretá-la para anular os atos praticadosem sua vigência”.

Peculiar posição adotada sobre o assunto foia do então Subprocurador-Geral da RepúblicaJosé Francisco Rezek, no parecer exarado no

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Recurso Extraordinário nº 93.534-7/SP (DJU,07-10-83), o qual entendeu ter a Lei nº 4.404/64 criado uma espécie diversa de naturalização(nacionalidade derivada), de modo que, sendomatéria reservada à norma infraconstitucional,era ela perfeitamente compatível com a CartaMagna. Da sua erudita promoção, extrai-se oseguinte trecho:

“Parece-me, com o respeito devidoàqueles doutos mestres, que a execraçãoda Lei nº 4.404 decorreu de um racio-cínio precipitado. Seria flagrante, na lei,o vício de inconstitucionalidade, quandoali detectássemos o intento de criar, àmargem da Lei Maior, um novo caso denacionalidade originária. Entretanto, alinguagem da lei é ambígua e atípicaquando atribui a seus beneficiários – osmenores estrangeiros, filhos de pais aquidomiciliados e já naturalizados – acondição de brasileiro ‘para todos os efei-tos’. Pretendeu-se, sistemática e super-ficialmente, dar essa expressão porsinônima de brasileiros natos, o que meparece, no mínimo, discutível. Seriacorreto afirmar-se, por exemplo, que obrasileiro nato tem todas as prerrogativasdo brasileiro naturalizado, e maisalgumas. Efeitos, contudo, não signi-ficam o mesmo que prerrogativas, muitomais amplo e complexo demonstrando oalcance daquele primeiro vocábulo.Observe-se, como ilustração, que só obrasileiro naturalizado está sujeito àperda da nacionalidade a que se refere oinciso III do art. 146 da Carta. Para esseefeito específico, brasileiro é tão-só otitular da nacionalidade adquirida, nãoaquele da nacionalidade de origem.Parece válido, nessas circunstâncias, afir-mar-se que ninguém é brasileiro paratodos os efeitos, ou, enfocando as coisassob outro ângulo, e visando, legitima-mente, a valorizar o labor-legislativo,diríamos que a expressão, tal como apa-rece ao final do art. 1º da Lei nº 4.404,quer se referir a todos os efeitos cabíveisna alçada do legislador ordinário – e quesão, pois, os pertinentes à nacionalidadepor naturalização. Quando se entendessede desprezar o raciocínio exposto no itemanterior, ainda assim a tese da inconsti-tucionalidade da Lei nº 4.404, seriarematado absurdo, porque ilegítimoderrubar-se em seu contexto, em nome

do primado da Lei Maior, mais que apura e simples expressão ‘para todosefeitos’. E a conseqüência não muda: alei é perfeitamente sadia como expressãodo poder de naturalizar pessoas, que aCarta não nega ao legislador ordinário.Assim, aquela Lei votada pelo CongressoNacional em 1964 teve, sem sombra dedúvida – ainda que mais ampla a inten-ção de seus redatores –, a virtude deinstituir uma forma de naturalização,beneficiando, sem maiores requisitos, omenor estrangeiro, filho de pais jáincorporados à comunhão nacional”.

Com o advento da Lei nº 5.145/66, que deunova redação ao art. 4º e § 1º da Lei nº 818/49,a controvérsia voltou a surgir, isso porque,embora ficasse assentado que o requerimentopara a opção de nacionalidade (originária)devesse ser instruído com o comprovante danacionalidade de um dos genitores do optante,na data do seu nascimento, não se esclareceuse a nacionalidade dos genitores poderia serdecorrente de naturalização. Porém, a questãofoi logo dirimida pelo STF, no Recurso Extra-ordinário nº 77.065-8/SP (DJU, 13-5-83), deque foi relator o Ministro Aldir Passarinho,encontrando-se assim ementado:

“Nacionalidade. Opção. Termo deregistro de nascimento. Não é de conhe-cer-se de recurso extraordinário que visaa reforma de acórdão do Tribunal Federalde Recursos segundo o qual ‘ao filho debrasileiro naturalizado, nascido noestrangeiro, na vigência de ato de natu-ralização do pai, ou da mãe, assiste odireito de pleitear o benefício do registroprevisto no inciso c do item I do art. 140da Constituição”.

Hoje os efeitos na naturalização estãoregulamentados pelo Capítulo II, Título XI, daLei nº 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro).Dispõe o seu art. 123 que “A naturalização nãoimporta aquisição da nacionalidade brasileirapelo cônjuge e filhos do naturalizado”, o que,contudo, não impede que o filho de brasileiro,naturalizado antes do seu nascimento, sejaconsiderado brasileiro nato. Retrata, pois, aconcepção de que a naturalização surte efeitosapenas ex nunc, e que as causas para aconcessão da nacionalidade originária estãotaxativamente previstas na ConstituiçãoFederal, não podendo ser exepcionadas, ouampliadas, por norma infraconstitucional.

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3. A extradição de brasileiroÉ regra de Direito Internacional a inextra-

ditabilidade de nacional. E, assim, as Consti-tuições pátrias não têm admitido a extradiçãode brasileiro, valendo, contudo, a anotação deCelso D. de Albulquerque Mello (Curso deDireito Internacional Público. 9. ed. Rio deJaneiro : Renovar, 1992. v. 2, p. 718) de que “aLei de 1911 de extradição consagrava a entregade nacional, mediante reciprocidade”. Trata-se,ademais, de princípio consagrado quase queuniversalmente, tendo-se notícias de que apenasos EUA e a Inglaterra não o acolhem (REZEK,J. F., Direito Internacional Público. 6. ed. SãoPaulo : Saraiva, 1996, p. 206).

Segundo a autorizada doutrina de CelsoMello, a razão principal de sua existência é queo Estado tem a obrigação de proteger os seusnacionais, acrescentando, ainda, os fundamen-tos de que

“ninguém pode ser subtraído a seus juízesnaturais; o direito do nacional de habitaro seu próprio Estado; a dificuldade dedefesa em tribunais estrangeiros; e a faltade imparcialidade da justiça estrangeira”(Op. cit. p. 718).

Não obstante, antes mesmo do advento daConstituição de 1988, a legislação ordináriabrasileira permitia a extradição de brasileiroque viesse a se naturalizar após o fato criminoso(Lei nº 6.815/80, art. 77, I), o que suscitavadúvidas sobre a sua constitucionalidade, já quea própria Constituição não fazia distinção entrebrasileiro nato e naturalizado, ao menos paratal finalidade.

De fato, não há distinção entre brasileironato e naturalizado, de modo que, se é vedadaa extradição de brasileiro, pouco importa se anacionalidade foi adquirida originária ou de-rivadamente. Entretanto, relativo ao tema,tem-se em vista sempre que, para a concessãoda naturalização, forma derivada de aquisiçãoda nacionalidade, a primariedade e os bonsantecedentes são pré-requisitos. Dessa maneira,se um estrangeiro obtém a naturalização, e,mais tarde, sua extradição é requerida pelaprática de crime ocorrido antes da sua diplo-mação, entende-se que faltava um dos seusrequistos, o que, em última análise, enseja anulidade do processo de naturalização e resta-belece o status quo do indivíduo. Estaríamos,pois, extraditando não um brasileiro naturali-zado, mas sim um estrangeiro.

O Estatuto dos Estrangeiros prescreve quesão condições para a concessão da naturali-zação, dentre outros, o bom procedimento e ainexistência de denúncia, pronúncia ou conde-nação no Brasil ou no Exterior por crime dolosoa que seja pena mínima de prisão, abstratamenteconsiderada, superior a 1 ano (art. 112, VI eVII). Dispõe em seguida que, verificada, aqualquer tempo, a falsidade ideológica oumaterial de qualquer dos requisitos exigidos,será declarado nulo o ato de naturalização (art.112, § 2º). Da mesma maneira, prescreve o art.35, caput, da Lei nº 819/49, formalmente aindaem vigor.

Contudo, é entendimento do SupremoTribunal Federal que, nesses casos, a extradi-ção só pode ser deferida se a decretação danulidade da naturalização for anterior e medi-ante o devido processo legal a que se referem o§ 3º, do art. 112 da Lei nº 6.815/80 e os pará-grafos do art. 35 da Lei nº 819/49. Nesse senti-do, decidiu o Plenário do STF, no HabeasCorpus nº 60.546-0/DF (Revista de Jurispru-dência do STF. n. 53, p. 277.), de que foi relatoro Ministro Soares Muñoz, e de cujo voto destacoo seguinte trecho:

“A melhor orientação, em face daConstituição Federal e do Estatuto doEstrangeiro, é a de que a decretação danulidade da naturalização deve antecederao deferimento da extradição”.

A propósito, em posição antagônica, valeregistrar a doutrina de Pontes de Miranda aoesclarecer que

“pedida a extradição do ex-estrangeiro,isto é, do naturalizado brasileiro, por fatoanterior à naturalização, a extradiçãopode ser concedida, se a naturalizaçãonão podia ser deferida (nulidade comefeito ex tunc), posto que o tivesse sido.Mas é preciso, então, que o primeirotenha eficácia à decisão (constitutivanegativa) de nulidade. Cancelada anaturalização de alguém – acrescenta osaudoso jurista – pode ser concedida aextradição, se o crime é anterior à natu-ralização, e essa não podia ser deferida”(Comentários à Constituição de 1967.t. 5, p. 258).

Relembra o ilustre jurista que o STF, naExtradição 105, julgada em 1935, chegou aafirmar que o art. 113, § 31, da Constituiçãode 1934 (que também declarava “não serconcedida, em caso nenhum, a extradição de

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brasileiro”) revogara o preceito da Lei nº 2.416/11, art. 1º, § 2º, que permitia a extradição dosnaturalizados se a naturalização tivesse sidoposterior ao fato criminoso (Op. cit., p. 259).

Dissipando qualquer fonte de dúvidas arespeito da extradição de brasileiro, a atualConstituição Federal, art. 5º, LI, admite,expressamente, a extradição de brasileironaturalizado posteriormente ao fato que deucausa ao pedido de naturalização. Porém, foimais além. Chega a admitir a extradição debrasileiro naturalizado, antes mesmo do fato,na hipótese de crime de tráfico de entorpe-centes, deixando em aberto a possibilidade de,nesse caso, ser também extraditado o brasileironato (MELLO, op. cit. p. 718).

Dispõe o art. 5º, LI, da Constituição que“nenhum brasileiro será extraditado,salvo o naturalizado, em caso de crimecomum, praticado antes da naturalização,ou de comprovado envolvimento emtráfico ilícito de entorpecentes e drogasafins, na forma da lei”.

A expressão “na forma da lei” impede queo citado dispositivo constitucional tenha apli-cabilidade imediata, sendo indispensável, paraa sua eficácia, a implementação de legislaçãoordinária regulamentar. Nesse sentido, decidiuo Supremo Tribunal Federal, na Extradição nº541 (RTJ-145/428), de que foi relator oMinistro Sepúveda Pertence, valendo destacaro seguinte trecho da ementa correspondente:

“Ao princípio geral de inextraditabi-lidade do brasileiro, incluído o naturali-zado, a Constituição admitiu, no art. 5º,LI, duas exceções: a primeira, de eficáciaplena e aplicabilidade imediata, se anaturalização é posterior ao crimecomum pelo qual procurado; a segunda,no caso de naturalização anterior ao fato,se se cuida de tráfico de entorpecentes:aí, porém, admitida, não como a dequalquer estrangeiro, mas sim ‘na formada lei’ e por ‘comprovado envolvimento’no crime: a essas exigências de caráterexcepcional não basta a concorrência dosrequisitos formais de toda extradição,quais sejam, a dúplice incriminação dofato imputado e o juízo estrangeiro sobrea seriedade da suspeita”.

A extradição de brasileiro nato, no caso deenvolvimento em crime de tráfico de entorpe-centes, decorre da idéia de que a ConstituiçãoFederal não permite a distinção entre brasileironato e naturalizado (art. 12, § 2º). Ocorre que,

por uma questão de ordem gramatical, asegunda parte do inciso LI, art. 5º, da Consti-tuição está apenas vinculada à expressão“naturalizado”, e aí residiria mais uma exece-ção à regra de igualdade entre brasileiro nato enaturalizado, não sendo viável, de qualquermaneira, a extradição de brasileiro nato, emborao Supremo Tribunal Federal não tenha, expli-citamente, assim se manifestado.

Situação diversa é aquela do brasileiro queperde a nacionalidade e, posteriormente a umfato criminoso, requer a sua reaquisição, justa-mente para se furtar da extradição. Se areaquisição for de nacionalidade originária,tenho que a sua natureza é meramente decla-ratória, de modo que surtirá efeitos ex tunc eimpedirá a extradição, já que se trata de brasi-leiro nato. Se a hipótese for de reaquisição denacionalidade derivada, a regra aplicável ésemelhante à naturalização em geral, vale dizer,possui natureza constitutiva, com efeitos exnunc, e deverá ser concedida a extradição umavez sendo o fato criminoso anterior à reaquisição.

Dessa maneira, já trilhou o SupremoTribunal, na Extradição nº 441-7 (DJU.10.06.88), cuja ementa está assim redigida:

“Extradição. Havendo o extraditandocomprovado a reaquisição da nacionali-dade brasileira, indefere-se o pedido deextradição. Constituição Federal, art.153, § 19, parte final. Não cabe invocar,na espécie, o art. 77, I, da Lei nº 6.815/80. Essa regra dirige-se, imediatamente,à forma de aquisição da nacionalidadebrasileira, por via de naturalização. Naespécie, o extraditando é brasileiro nato(Constituição Federal, art. 145, I, alíneaa). A reaquisição da nacionalidade, porbrasileiro nato, implica manter essestatus e não o de naturalizado. Indeferidoo pedido de extradição, desde logo, dianteda prova da nacionalidade brasileira,determina-se seja o extraditando postoem liberdade, se por algum motivo nãohouver de permanecer preso”.

Entretanto, na doutrina, a matéria écontrovertida. Celso Mello afirma que, emboraa reaquisição não tenha efeito retroativo, oindivíduo readquire a nacionalidade no mesmostatus que possuía antes de perdê-la. Com ele,encontra-se o magistério de Ilmar PennaMarinho, Oscar Tenório e José Afonso da Silva(MELLO , op. cit. v. 1, p. 680). Pontes deMiranda e F. Rezek, ao contrário, já entendem

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que a reaquisição de nacionalidade detémnatureza de naturalização, pouco importandoo status anterior, o que não é de todo absurdo,já que a Constituição Federal, ao dispor sobreas causas de aquisição e perda da nacionalidade,foi omissa a respeito da reaquisição.

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RENÉ ARIEL DOTTI

O interrogatório a distânciaUm novo tipo de cerimônia degradante

“Onde estava o juiz que nunca tinha visto? Ondeestava o alto tribunal ante o qual nunca compare-cera? Elevou as mãos e separou todos os dedos”.

(Penúltimas palavras de Josefh K, em Oprocesso, de Kafka.)

Em seu profético 1984 , George Orwelldescreveu, 35 anos antes e com alegorias depânico, a permanente vigilância contra aspessoas, dentro de suas próprias casas, por meiode teletelas que capturam a imagem e a voz emtodos os lugares onde estivessem, transmi-tindo-as para o visor de um enorme aparelho,manipulado por uma figura poderosa que tudocontrola e dirige.

Essa referência paradigmática de opressãodo corpo e do espírito serve como feedback parailustrar a cena do interrogatório a distância,uma proposta de extração da prova com aintermediação do computador.

A primeira experiência para se implantar onovo sistema foi ruidosamente festejada comreportagem de primeira página do jornal Folhade São Paulo. Aquela divulgação massificadaprovocou uma grande polêmica e justifica adiscussão aberta e vigorosa sob os mais diversosaspectos do tema.

Junto ao preso, na outra ponta, fica umfuncionário para identificá-lo, qualificá-lo edar-lhe ciência, em voz alta, das perguntasformuladas pelo juiz. Os procedimentos poste-riores do ato são descritos pelo ilustre magistra-do que o presidiu, o Doutor Luiz Flávio Gomes,em artigo publicado no Boletim do Instituto Bra-sileiro de Ciências Criminais. Vale transcrever:

“De outro lado, esse funcionário ouveo que o acusado diz e lhe cabe o registrodisso no computador. A este funcioná-rio, ademais, é que cabe zelar pela

René Ariel Dotti é Professor de Direito Penal eProcessual Penal.

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publicidade do ato. (...) Deve-se regis-trar que o preso entrevistou-se antes comseu defensor. Registra-se ainda que aopreso as perguntas foram lidas em vozalta, na presença do defensor. Este acom-panha todo o interrogatório e cabe-lhefiscalizar a transcrição correta do que foidito pelo acusado. Ao funcionário daJustiça cabe fiscalizar a não-interferên-cia do advogado nas respostas dadas peloacusado, nos termos do CPP (art. 187)”.1

Estamos entendidos: entre o juiz e o réu,atua um amanuense com atribuições de mani-pulador dos registros e fiscal da ação do advo-gado, se este pretender “intervir ou influir, dequalquer modo, nas perguntas e nas respostas”,como determina o autoritário dispositivoprocessual. E se houver uma questão de ordemou esclarecimento que dependa do diálogodireto com o gestor da surrealista audiência?O digitador impedirá que o defensor procureretificar o que está sendo erroneamente grafa-do? Sabe-se que, não raro, a colheita da palavradireta do acusado no sistema vigente caracterizao monopólio do interrogante, um exemplodeplorável do tipo inquisitorial de processocomo se esse importante ato fosse um assuntoparticular entre o juiz e o réu. Sabe-se, também,que muitos deles não escondem a irritaçãoquando o advogado solicita, ainda que respei-tosamente, a correção de termos, expressões oufrases ditadas equivocadamente. Agora com aleitura da alma do acusado por meio da tele-patia cibernética, o juiz de vocação autoritárianão precisará mais advertir o defensor com asameaças veladas ou expressas (desacato, deso-bediência, representação, etc.).

O chamado interrogatório ‘on line’ sugerea lembrança do texto premonitório de Orwell,com uma diferença, para pior, assim destacadapelo próprio interrogador:

“Pelo sistema até aqui concretizadoefetivamente, o juiz não vê o rosto (nemas expressões corporais) do acusado.Mas isso já ocorre com muita freqüência,seja quando o interrogatório é feito porprecatória, seja quando é o Tribunal quecondena o acusado. Não vigora, entrenós, a identidade física do juiz; com isso,o que sentencia muitas vezes não é o queinterroga”2.

A ausência, no processo penal, do aludidoe generoso princípio permite que o julgadorcondene, com lamentável freqüência, sereshumanos que desconhece. São raríssimas ashipóteses em que ele se utiliza das cautelaresregras que prevêem o reinterrogatório, nointeresse da apuração do fato e em obséquio àgarantia da ampla defesa.

Entre os princípios fundamentais do pro-cesso penal, destacam-se dois deles: o princípioda investigação e o princípio da verdade mate-rial. O primeiro está vinculado ao aspecto doimpulso processual, enquanto o segundo estárelacionado com a prova. Ambos, porém,harmonizam-se e se completam numa relaçãode meio a fim. O princípio da investigaçãoconstitui elemento integrante da estruturabasicamente acusatória do processo penal. Eletambém poderia chamar-se de instrutório ouinvestigatório, mas tais designações se presta-riam a equívocos na suposição de que oprincípio somente valeria para a fase dainstrução da causa ou que identificasse ummodelo de feição autoritária. A sua caracterís-tica essencial está na autonomia do juiz ou dotribunal para apurar os fatos, acima e além davontade das partes. A investigação constituifenômeno relativo ao impulso do procedimentoe também à descoberta dos fatos. Daí a desig-nação paralela de princípio da verdade material.A propósito, a lição de Figueiredo Dias:

“Por isso se diz que, no processopenal, está em causa não a ‘verdadeformal’, mas a ‘verdade material’, quehá de ser tomada em duplo sentido: nosentido de uma verdade subtraída àinfluência que, através de seu comporta-mento processual, a acusação e a defesaqueiram exercer sobre ela; mas tambémno sentido de uma verdade que, nãosendo ‘absoluta’ ou ‘ontológica’, há deser antes de tudo uma verdade judicial,practica e, sobretudo, não uma verdadeobtida a qualquer preço, mas processual-mente válida”3.

A procura da verdade material constitui umpoder-dever do Estado, pois a boa administra-ção da Justiça é um dos objetivos fundamentaisda República no plano do desenvolvimento dasociedade que deve ser, ela mesma, livre, justae solidária (Constituição, art. 3º, I). Esse ônus

1 O interrogatório à distância on line. Boletimdo IBCCrim, n. 42, jun. p. 6, 1996. (Grifos meus).

2 Ibidem. (Grifos meus).

3 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processualpenal. Coimbra Ed. v. 1, p. 193-194, 1979. (Desta-ques do original).

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da investigação é inerente à atividade judicialem sistema como o nosso que não admite ochamado processo de partes, no qual o juizpermanece inerte quanto à iniciativa da prova.Em mais de uma oportunidade, o Código deProcesso Penal dispõe que o juiz poderá(rectius: deverá) promover diligências para seesclarecer a respeito de questões de fato, medi-ante as seguintes providências: a) determinar,de ofício, diligências para dirimir dúvida sobreponto relevante, no curso da instrução ou antesde proferir sentença (art. 156); b) proceder, emqualquer tempo, a novo interrogatório (art.196); c) ouvir outras testemunhas, além dasindicadas pelas partes (art. 209); d) reinquirirtestemunhas e o ofendido (parágrafo único,art. 502).

Diante de tais observações, perde sentido adiscussão bizantina sobre a natureza jurídico-processual do interrogatório: se é meio de provaou mero ato de defesa . É elementar que,constituindo o interrogatório do acusado umdos capítulos submetidos ao Título que regula,justamente, a produção da prova4, nenhumarazão existe para desconsiderar esse importan-tíssimo ato como integrante do conjunto deelementos de fato para constituir a decisão. Éoportuno salientar que o primeiro artigo quetrata da prova no Código de Processo Civilassim declara:

“Todos os meios legais, bem como osmoralmente legítimos, ainda que nãoespecificados neste Código, são hábeispara provar a verdade dos fatos, em quese funda a ação ou a defesa” (art. 332).

Tal dispositivo é aplicável, por analogia, aoprocesso penal (CPP, art. 3º). E o art. 157 doCódigo do Processo Penal estabelece que o juizformará a sua convicção pela “livre apreciaçãoda prova”, vale dizer, pelo conhecimento einterpretação de todos os elementos, sejam elesproduzidos pelas partes ou por sua iniciativa.Assim ocorre mesmo nas ações penais instau-radas com fundamento na Lei nº 9.099/95,quando o interrogatório é o último ato da ins-trução, se o acusado estiver presente (art. 81).A aludida regra permite que o réu deixe decomparecer à audiência sem sofrer qualquertipo de sanção, como um corolário lógico dodireito de calar que é constitucionalmentegarantido (art. 5º, LXIII).

As (supostas) razões com as quais o talen-toso penalista Luiz Flávio Gomes procura jus-tificar esse modismo, que anestesia a palavra eesconde o rosto, são equivocadas e procuramse amparar na lamentável conjuntura forense.Entre as mesmas se destacariam: a) a concessãoda liberdade provisória, em muitas situações,ocorre após o interrogatório, quando o juiz seconvence que a prisão em flagrante, provisória,preventiva ou sob outro título não se justifica.As dificuldades com o transporte e apresentaçãodo preso à sede do Juízo retardaria o ato emprejuízo da liberação mais expedita; b) adispensa de ofícios e outros expedientes derequisição permitiria a audição de “uma pes-soa em qualquer ponto do país, sem necessidadedo seu deslocamento. Eliminam-se riscos, sejapara o preso (que pode ser atacado quando estásendo transportado), seja para a sociedade. Otransporte do preso envolve gastos comcombustível, uso de muitos veículos, escolta,muitas vezes gasto de dinheiro para o trans-porte aéreo, terrestre, etc. O sistema do inter-rogatório a distância evitaria todos esses gastos.Representaria uma economia incalculável parao erário público e mais policiais na rua, maispoliciamento ostensivo, mais segurançapública”5; c) “Realizando-se o interrogatórioprontamente por computadores, praticamenteo preso não interrompe sua rotina no presídio,isto é, não precisa se ausentar das aulas, quandoestá estudando, não precisa se privar da assis-tência religiosa, não precisa cessar seu trabalho.Isso significa vantagens para a sua ressociali-zação, principalmente porque o trabalhopermite a remição”.6

Essa visão da natureza humana e dosproblemas jurídicos suscitados pelo fórcepseletrônico da alma foi devidamente criticadapelos advogados Adriano Salles Vanni e MarlonWander Machado, em artigo intitulado “Osdireitos do preso e o interrogatório on line”7,no qual demonstram que a temerária prática serevelará atentatória ao princípio da publicidadedos atos processuais e gravosa aos direitosfundamentais do acusado, entre eles o de ampladefesa. E indicam situações concretas nas quaiso preso não terá a segurança necessária paradenunciar fatos de interesse pessoal, como osmaus-tratos no cárcere, ou de interesse para acausa, como a chamada de um co-réu que esteja

4 Livro I (Do processo em geral); Título VII (Daprova); Capítulo III (Do interrogatório do acusado)(CPP art. 185 e s.).

5 GOMES, op. cit.6 Ibidem.7 Boletim do IBCCrim, n. 44, p. 5.

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cumprindo pena no mesmo estabelecimento. Osautores insistem na necessidade do contatopessoal do preso com o magistrado dentro dasala de audiências.

“Tal contato, na verdade, extrapolao simples olhar ou sentimento domagistrado quanto à pessoa do interro-gando para representar verdadeiramentea garantia ao réu de poder manifestar-selivremente, sem sofrer de imediato oscastigos fatalmente advindos de seucomportamento, pois, findo o interroga-tório, estará novamente em sua realidade,agora para sofrer as conseqüências de seuato”8.

O Promotor de Justiça em São Paulo esecretário do Ministério Público Democrático,Maurício Antonio Ribeiro Lopes, em artigopublicado no mesmo local, adverte que, emnome da

“comodidade judicial, procura-se livraro preso do sacrifício de ser transportadoao Fórum para conhecer seu juiz e exer-citar não o mero direito de ser ouvido,mas o direito de dizer, o que são coisascompletamente distintas como um chipe uma razão”.9

O autor salienta que a Constituição Federal“ainda garante a todos, além da igual-dade, o direito à dignidade humana. Issosignifica que os acusados presos e livresdevem gozar de iguais condições no pro-cesso penal, nada havendo que justifi-que tão odiosa discriminação àqueles queestão presos (e que, não por acaso, sãomajoritariamente os pretos e pobres, etodos sabem como pretos e pobres sãotratados por aqui).”

E, mais incisivamente, arremata:“Os riscos de se levar involuntaria-

mente, insista-se, a uma justiça assépticanão encontram minimização no empregodesse recurso informático. Todas asjustificativas apresentadas levam a umaúnica preocupação de ordem econômica,a minimização dos gastos públicos. Essamesma minimização que, na outra mão,reduziu os investimentos sociais básicosem saúde, educação e urbanismo, respon-sável por considerável parcela de nossacriminalidade. Parece hora de considerar

essas realidades nas relações de custo dadistribuição da Justiça. Não há oportu-nidade para modismos informáticos nagarantia da liberdade individual, e aprimeira forma de proteção desta é oexercício pleno do direito de defesa,que implica o direito do acusado deir a Juízo e dizer seu direito. Ética nacibernética”10.

Outras contestações, à altura do debate ecom o melhor propósito científico, foram apre-sentadas por estudiosos e militantes do DireitoCriminal.

A Procuradora do Estado e membro doConselho Penitenciário de São Paulo, Ana SofiaSchmidt de Oliveira, lembra bem que o inter-rogatório é o único ato processual em que édada voz ao réu no processo penal.

“Em outros momentos, ele fala porintermédio de seu advogado, faz reper-guntas, argumenta, requer, recorre, sem-pre por intermédio de seu advogado” (...)“O interrogatório é o único ato proces-sual em que o juiz dialoga com o réu”.(...) “Que se repita ad nauseam a versãodo ponto do ônibus ou da visita à tia ouamigo. Nada disso importa. Importa oolhar. Importa olhar para a pessoa e nãopara o papel. Os muros das prisões sãofrios demais. Não é bom que estejamentre quem julga e quem é julgado”11.

O juiz criminal em São Paulo e membro daAssociação dos Juízes para a Democracia, DyrceuAguiar Dias Cintra Junior, disse muito bem:

“... a notícia de que o colega Luiz FlávioGomes anda fazendo interrogatórios deréus presos on line, mediante o uso demodernos computadores interligados emrede, causou-me um grande espanto.Fiquei pensando no preso, de um ladoda linha, frustrado em sua esperança deser encaminhado logo ao fórum, e nojuiz, do outro lado, sem qualquer possi-bilidade de ouvir as razões daquelehomem com a prudente intervenção deseu olhar e do sentir”. (...) “Convém, porfim, que não se abra caminho para umacerta assepsia – palavra que já ouvi comeste sentido preconceituoso – dos espaçospúblicos nos fóruns, cruelmente desejadapor alguns operadores jurídicos que não

8 Ibidem.9 Modernidade inútil, Boletim do IBCCrim.

10 Ibidem. (Grifos meus).11 Interrogatório on line. Boletim do IBCCrim,

n. 42, p.1.

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querem assumir suas responsabilidades,como profissionais e cidadãos, em faceda iniqüidade de nossas prisões e doambiente criminógeno que decorre dosistema econômico-social. Ainda quetenha Luiz Flávio pensado, ao contrário,na agilização do processo em benefíciodo preso, é bom que reflita melhor sobreo assunto. Há maneiras fáceis e legaisde agilizar o processo penal: desburocra-tizar a requisição dos presos, usando ofax; implantar um perfeito controle peloJudiciário do local em que se encontracada preso; investigar, enfim, a razãopela qual os órgãos policiais têm falhadotanto no cumprimento das requisições”12.

Todas as observações críticas deságuam naconvicção alimentada pela visão humanista doprocesso penal: a tecnologia não poderásubstituir o cérebro pelo computador e, muitomenos, o pensamento pela digitação. É neces-sário usar a reflexão como contraponto damassificação. É preciso ler nos lábios as pala-vras que estão sendo ditas; ver a alma doacusado através de seus olhos; descobrir a facehumana que se escondera por trás da máscarado delinqüente. É preciso, enfim, a aproxima-ção física entre o Senhor da Justiça e o homemdo crime, num gesto de alegoria que imita otoque dos dedos, o afresco pintado pelo gêniode Michelangelo na Capela Sistina e represen-tativo da criação de Adão.

O interrogatório on line tem o privilégio deinaugurar um novo estilo de cerimônia degra-dante. Como lembram Figueiredo Dias e CostaAndrade, o conceito status-degradationceremony foi introduzido em 1956 por H.Garfinkel referindo-se aos procedimentosritualizados nos quais um indivíduo é conde-nado e despojado da sua identidade e recebeoutra (degradada). E arrematam: “O julgamentocriminal é a mais expressiva – mas não a única– das cerimônias degradantes”13.

Mas a coisa não pára por aí. Existe umaconspiração de circunstâncias a ampliar oprojeto da teleaudiência. Tal possibilidadedecorre da previsão inquietante feita pelomagistrado Luiz Flávio Gomes em seu próprioartigo:

“Por enquanto, apenas o interroga-

tório pode ser feito no sistema on line. Aempresa Taisei-Consultoria e Informá-tica, que deu suporte para a experiência,está importando o necessário para osistema de teleconferência (audiovisual).Aí será possível a realização de umaaudiência completa (com oitiva de vítimae testemunhas, reconhecimento, etc.)”14

Esse prognóstico revela as faces da desespe-rança na condição humana como fenômeno capazde aprimorar a administração da justiça. Umadelas se refere ao tribunal; a outra, ao acusado.

Com efeito, as representações estereotipadasdas audiências e a liturgia de certos procedi-mentos conduzem à alienação dos participantese à perda de substância do próprio objeto queos reúne em torno de uma mesa ou de umbalcão. E daí surge, inevitável, a triste conclu-são de que “também o tribunal, surpreendidopela massificação da justiça, teve de sacrificarno altar da eficiência e de se converter à lógicada quantidade e à racionalidade burocrática”15.

Ninguém melhor que Kafka descreveu, naexperiência do presente século, a paranóia deum sistema de justiça que retirou de sua vidanormal o bancário Joseph K., submetendo-o àangústia de uma prisão sem causa, a uma acu-sação por motivos ignorados e a um magistradoque não chegou a conhecer. Antes de serexecutado, Joseph K. fez um violento discursoverberando a monstruosidade do aparelhojudiciário e a corrupção de seus funcionários.Mas logo percebe, diante dos acompanhantes– que se demasiavam entre si com “repugnantescortesias” –, que o seu protesto é absolutamenteinútil e que o seu destino será a morte. Comoderradeiro gesto de possível liberdade, JosephK. “elevou as mãos e separou todos os dedos”.

“Mas as mãos de um dos senhoresseguraram a garganta de K. enquanto ooutro lhe enterrava profundamente nocoração a faca e depois a revolvia ali duasvezes. Com os olhos vidrados conseguiuK. ainda ver como os senhores, man-tendo-se muito próximos diante de seurosto e apoiando-se face a face, observa-vam o desenlace. Disse:– Como umcachorro! – era como se a vergonha fossesobrevivê-lo”16.

12 Interrogatório on line ou virtual?, Boletim doIBCCrim, n. 42, p. 3.

13 Criminologia : o homem delinqüente e a soci-edade criminógena. Coimbra Ed. 1984. p. 350.

14 GOMES, po. cit. (Grifos meus).15 SCHUMANN, apud DIAS E ANDRADE, op.

cit., p. 513.16 KAFKA, Franz. 1883-1924. O processo : cena

final. Tradução de : Der prozess.

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Direito concreto?A criança e o adolescente na Capital Federal

JOSÉ ROSSINI CAMPOS DO COUTO CORRÊA

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.Fernando Pessoa

José Rossini Campos do Couto Corrêa é Bacharelem Direito e Doutor em Ciências Sociais, com Se-minários Pós-Doutorais em Política Internacional eComparada. Servidor Requisitado do Senado Fede-ral e Professor de Introdução ao Estudo do Direito eFilosofia do Direito (FADI - CEUB).

SUMÁRIO

1. Antecedentes. 2. Desenvolvimento. 2.1. Ascomissões temáticas. 2.2. Algumas vivências. 2.3.A secretaria executiva. 2.4. As dificuldades. 2.5. Asparticipações. 2.6. O método de avaliação.2.7. Osresultados. 2.8. A visão analítica I. 2.9. A visão ana-lítica II. 3. Conclusão. 4. Anexo.

1. AntecedentesA Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990,

instituiu o Estatuto da Criança e do Adoles-cente e determinou que as ações governamen-tais e não-governamentais da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios pas-sariam a ser, de maneira concertada, as res-ponsáveis pela política de atendimento dos di-reitos da criança e do adolescente, segundo ainspiração decorrente da Lex Magna de 1988,que preconiza a participação comunitária e aafirmação da cidadania.

Pressionado pelos fatos, o Governo doDistrito Federal, no uso das atribuições confe-ridas pelo artigo 20, inciso II, da Lei nº 3.751,de 13 de abril de 1960, baixou o Decreto nº12.970, de 2 de janeiro de 1991, responsávelpela criação paritária da Comissão Especial dosDireitos da Criança e do Adolescente, que fun-cionou de janeiro de 1991 a junho de 1994,quando foi instalado o Conselho de Direitos daCriança e do Adolescente do Distrito Federal,não obstante estivesse criado desde 15 de ja-neiro de 1992, quando a Câmara Legislativado Distrito Federal decretou e o Poder Execu-tivo sancionou a Lei nº 234, que taxativamente

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Revista de Informação Legislativa276

estabelece, no seu art 4º:“Art. 4º - Fica criado, na forma do

inciso II do artigo 88 do Estatuto da Cri-ança e do Adolescente, o Conselho dosDireitos da Criança e do Adolescente doDistrito Federal – Conselho DCA/DF,órgão deliberativo e controlador das po-líticas de ação governamental e não-governamental”.

Mais tarde, entrando em vigência na datade sua publicação, a 30 de julho de 1993, a Leinº 518 trouxe significativas modificações à Leinº 234, de 15 de janeiro de 1992, sem que, en-tretanto, ferisse os poderes estabelecidos porseu artigo 4º, supracitado e ora em comento,que passou a ter existência plena, de facto e dejure, a 31 de junho de 1994, com a instalaçãodo Conselho DCA/DF, cujas atividades, no cur-so do ano de 1995, são o objeto maior do pre-sente documento, cabendo, contudo, a satisfa-ção de um precedente, qual seja, a renovaçãoda fixação “Da competência do Conselho DCA/DF”, que constitui o Capítulo III da Lei nº 234/92, no seu art. 7º:

“Art. 7º - Compete ao ConselhoDCA/DF:

I - Deliberar sobre a política dos di-reitos da criança e do adolescente noDistrito Federal, observando o Estatutoda Criança e do Adolescente e a presentelei;

II - deliberar sobre a reformulação eformulação de programas sociais bási-cos e estabelecer prioridades na aplica-ção de recursos públicos para execuçãode políticas dos direitos da criança e doadolescente do Distrito Federal;

III - deliberar sobre a conveniência ea prioridade na implementação de pro-gramas e serviços a que se refere esta lei,bem como sobre a criação e o reordena-mento de entidades governamentais enão-governamentais;

IV - articular-se com os Poderes Exe-cutivo e Legislativo do Distrito Federal,na definição de dotações orçamentáriasa serem destinadas à execução de pro-gramas de atendimento à família, à cri-ança e ao adolescente, em conformidadecom a alínea d do parágrafo único doartigo 4º do Estatuto da Criança e doAdolescente;

V - estabelecer critérios e deliberar

sobre o repasse de recursos do Fundo dosDireitos da Criança e do Adolescente doDistrito Federal a entidades governamen-tais e não-governamentais de atendimen-to à família, à criança e ao adolescente;

VI - acompanhar, controlar e avaliaras ações governamentais e não-governa-mentais decorrentes da execução da po-lítica e dos programas de promoção e deatendimento à família, à criança e aoadolescente;

VII - realizar intercâmbio com enti-dades governamentais e não-governa-mentais, nacionais, estrangeiras e inter-nacionais, visando ao alcance de seusobjetivos;

VIII - examinar e aprovar os progra-mas de entidades governamentais e não-governamentais do Distrito Federal;

IX - zelar pelo ordenamento e estru-turação adequada das entidades gover-namentais e não-governamentais;

X - recomendar a adoção de umapolítica de pessoal adequada à execuçãodos programas de defesa, promoção eatendimento à criança e ao adolescente,de forma a incentivar a atualização per-manente dos profissionais de entidadesgovernamentais e não-governamentais;

XI - oferecer subsídios para a elabo-ração ou alteração de leis e decretos queobjetivam beneficiar crianças e adoles-centes;

XII - difundir e divulgar amplamen-te os princípios constitucionais, o Esta-tuto e as políticas dos direitos da criançae do adolescente no Distrito Federal,objetivando o efetivo envolvimento eparticipação da sociedade de forma in-tegrada com os poderes públicos;

XIII - gerir o Fundo dos Direitos daCriança e do Adolescente do DistritoFederal, previsto no Estatuto da Criançae do Adolescente, alocando recursos paraas entidades governamentais e repassan-do recursos para as não-governamentais;

XIV - deliberar sobre a celebração deconvênios para a canalização de recur-sos do Fundo dos Direitos da Criança edo Adolescente do Distrito Federal;

XV - conceder registros e processarinscrição de programas às entidades não-

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governamentais de defesa, de promoçãoe atendimento à criança e ao adolescen-te do Distrito Federal;

XVI - elaborar e aprovar o seu Regi-mento Interno;

XVII - deliberar sobre outros assun-tos relacionados com as políticas dos di-reitos da criança e do adolescente doDistrito Federal;

XVIII - estabelecer prioridades naaplicação de recursos públicos para exe-cução de políticas de direitos da criançae do adolescente no Distrito Federal”.

Registre-se desde já que, no período emquestão, numerosas foram as mudanças por quepassou o Conselho DCA/DF, decorrentes:

a) do estabelecimento de um novo quadroadministrativo no Governo do Distrito Federal;

b) da ênfase concedida a todos os esforçosconcernentes à mobilização, organização e par-ticipação da sociedade brasiliense;

c) da profunda alteração dos componentesda representação governamental com assentono órgão, seja quanto a seus membros titula-res, seja quanto a seus suplentes, com o regis-tro ainda de lacunas, em virtude de SecretariasDistritais que não se fizeram representar;

d) da instabilidade que também alcançouos membros da representação não-governamen-tal, determinando uma sensível rotatividade napresença dos seus integrantes no organismo; e

e) da necessidade do estabelecimento de umgeral e comum aprendizado, referente à natu-reza, função e propósitos deste corpo coletivosuperior, bem como do que é ser Conselheirode Direitos.

2. DesenvolvimentoA Secretaria do Conselho DCA/DF, em pro-

cedimento pioneiro, pôde articular o seu Planode Trabalho em agosto de 1995, estabelecen-do, com seguras diretrizes metodológicas, am-biciosas expectativas, às quais os Conselheirosde Direitos deram significativa contribuição,no intuito de que fossem cumpridas no espaçode tempo que restava para que o ano findasse.Nada menos do que sete foram as diretrizeseleitas e consagradas, a saber:

I - garantir o funcionamento do conselhoDCA/DF;

II - controlar as ações voltadas à criança e

ao adolescente;III - instalar os conselhos tutelares;IV- propor e acompanhar a legislação per-

tinente à criança e ao adolescente no DistritoFederal;

V - apoiar a capacitação de conselheiros dedireitos e tutelares;

VI - implementar o fundo dos direitos dacriança e do adolescente; e

VII - dar visibilidade às ações do conselhoDCA/DF.

Cada uma das diretrizes mereceu o desta-que das competentes Estratégias de Ação, aindicação do conjunto subseqüente de subaçõese a fixação dos resultados esperados.

2.1. As comissões temáticas

Vale destacar que, na diretriz I, a organiza-ção das Comissões Temáticas aparecia comoessencial, em virtude de exigência advinda doRegimento Interno do Conselho DCA/DF, oqual, no seu Capítulo V – Da Organização, daCompetência e do Funcionamento – prevê comoórgãos competentes de sua estrutura organiza-cional o Plenário, a Presidência, a Mesa Dire-tora, as Comissões Temáticas e a SecretariaExecutiva, nos termos do seu art. 8º, incisos Ia V, e parágrafos 1º e 2º.

Em cumprimento da sobredita determina-ção regimental, foram especificadas as Normasde Funcionamento das Comissões Temáticas doConselho dos Direitos da Criança e do Adoles-cente do Distrito Federal, consideradasrequisito básico a seu bom funcionamento,como mecanismos de disciplina dos órgãos de-tentores da competência, contida no art. 1º, para“estudar”, analisar, opinar e emitir parecer so-bre matéria que lhes for distribuída.

Divididas as Comissões Temáticas em Tran-sitórias e Permanentes, as funções destas fo-ram estatuídas pelo art. 3º, mediante os seguin-tes incisos:

“I - De Legislação – elaborar, pro-por e opinar sobre projetos de leis,decretos e resoluções normativas relati-vas ao atendimento à criança e ao ado-lescente;

II - De Políticas Sociais – elaborar,propor e opinar sobre a formação de po-líticas sociais de atendimento à criançae ao adolescente;

III - De Ordenamento e Reordena-

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mento – elaborar, propor e opinar sobreo ordenamento e o reordenamento pro-gramático e institucional de entidadesgovernamentais e não-governamentais,envolvidas com o atendimento à criançae ao adolescente;

IV - De Orçamento e Finanças – ela-borar, propor e opinar sobre questõesrelativas a orçamento e finanças, concer-nentes ao Conselho e ao Fundo DCA/DF e à política de atendimento à criançae ao adolescente”.

Claro está que as Comissões TemáticasPermanentes foram as de Legislação, PolíticasSociais, Ordenamento e Reordenamento e Or-çamento e Finanças, acompanhadas por umaComissão Temática Transitória, responsávelpelo bem sucedido processo de escolha dos pri-meiros Conselhos Tutelares, das Regiões Ad-ministrativas de Sobradinho, Brazlândia e Pla-naltina. O conhecimento da competência dasComissões Temáticas, permitido pelo art. 4º, éfundamental para a visualização da contribui-ção que deram, somadas aos demais órgãos daestrutura organizacional do Conselho DCA/DF:

“I - sistematizar, analisar e manter odiagnóstico e mapeamento dos assuntosrelativos à função de cada Comissão;

II - propor e formular diretrizes deação de acordo com a especificidade decada Comissão;

III - acompanhar as ações públicas eprivadas, desenvolvidas na área da cri-ança e do adolescente, de acordo com anatureza de cada Comissão Temática;

IV - elaborar pareceres sobre assun-tos que lhes forem distribuídos;

V - contribuir na elaboração e desen-volvimento dos programas e projetos deacordo com a natureza de cada Comissão,visando ao desempenho do Conselho;

VI - subsidiar na elaboração do Pla-no anual de Atividade do ConselhoDCA/DF;

VII - apresentar relatórios avaliati-vos das atividades realizadas nas Comis-sões trimestralmente;

VIII - propor medidas ou procedi-mentos ao Plenário, necessários ao de-senvolvimento de seus trabalhos”.

Revelaram-se as Comissões Temáticas ór-gãos ágeis, de natureza didática e envolvidos

com problemas tanto concretos quanto especí-ficos, das quais, em conjugação com o Plená-rio e a Secretaria Executiva do Conselho DCA/DF, legitimamente muito se há de, com pro-veito, esperar. Da mencionada conjugação deesforços nasceram múltiplas atividades, quebem revelam que, inobstante a consciência davastidão de ações que estão por ser desenvolvi-das, no Conselho DCA/DF houve uma perse-guição continuada de propósitos e de realiza-ções, denunciadora de que a busca de sua ma-turidade organizacional é um processo que podeconviver com percalços e com dificuldades, masque desconhece, de toda maneira, a estagnaçãoe o retrocesso.

2.2. Algumas vivências

Provocado por diferentes desafios, pode oConselho DCA/DF deliberar, participar, inte-ragir, intervir e debater os problemas, tantograves quanto emergentes, que cercam e afli-gem a vida de crianças e de adolescentes, maisimediatamente, no Distrito Federal. Uma vi-gorosa dinâmica daí decorreu, renovando umatradição em desenvolvimento, em cujo embateo órgão vai conquistando, no curso de numero-sos processos, experiência e maturidade. Abo-nam a argumentação ora posta em causa osepisódios em seguida sumariados:

... Participação, em razão de decretos go-vernamentais, na Comissão da Bolsa Educa-ção e no Conselho do Programa Brasília Cri-ança.

... Apresentação de Parecer sobre o Projetode Lei nº 0899/93, de autoria do DeputadoGeraldo Magela (PT - DF), que autoriza o PoderExecutivo a criar a Secretaria da Criança e doAdolescente e dá outras providências.

... Deliberação referente à garantia do di-reito das crianças e dos adolescentes não sofre-rem restrição, no seu acesso à rede escolar, porfalta de uso de uniforme.

... Encaminhamento de medidas relativas àtransferência de adolescentes da Unidade deAtendimento ao Adolescente Autor de AtoInfracional para o sistema penitenciário.

... Garantia de matrícula dos adolescentesegressos da rede de ensino particular no pro-cesso seletivo para os profissionais do 2º Grau,oferecidos pela rede pública.

... Participação no seminário sobre Elimi-nação do Trabalho Infantil, promovido pela

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Organização Internacional do Trabalho – OITno Rio de Janeiro.

... Fixação de políticas e de diretrizes paraa busca de solução das dificuldades encontra-das no cotidiano do Conselho DCA/DF, pormeio:

a) da tentativa de estabelecimento decanais de articulação junto às Secretari-as do GDF, em particular, as de Gover-no, da Fazenda e Planejamento e da Ad-ministração; e

b) da promoção de intercâmbio comórgãos e com agentes locais e nacionais,direta ou indiretamente envolvidos coma causa da criança e do adolescente, doque decorreram valiosas interações:

... com o inventariante do CBIA e o Depar-tamento da Criança do Ministério da Justiça,pleiteando e conquistando materiais e equipa-mentos para a infra-estrutura do ConselhoDCA/DF;

... com o BRB e a Caixa Econômica Fede-ral, tendo em vista a necessidade do estabele-cimento de parcerias, para garantir a divulga-ção do Fundo DCA/DF;

... com o programa Comunidade Solidáriae a Unicef, ainda em busca de meios para via-bilizar a campanha publicitária do Fundo DCA/DF;

... com a Câmara Legislativa do DistritoFederal, para apresentar, acompanhar e garan-tir as emendas ao Orçamento de 1996, de inte-resse do Conselho DCA/DF, sobretudo no queconcerne à implantação dos Conselhos Tutela-res e à instalação do Fundo DCA/DF.

2.3. A secretaria executiva

Há de ser considerado, em face de tudoquanto, até o presente, foi exposto, que o su-porte operacional do Conselho DCA/DF é a suaSecretaria Executiva, que dispôs da força detrabalho ora mencionada para o exercício dasatividades pelas quais é responsável:

A Secretaria Executiva conduziu todo oprocesso preparatório e subseqüente a cada reu-nião plenária, integrou as equipes de trabalhoenvolvidas com o esforço de escolha dos Con-selhos Tutelares, assessorou a formação e o fun-cionamento das Comissões Temáticas, colabo-rou com os Conselheiros de Direitos na con-fecção das resoluções normativas e subsidiou ocurso das ações para o registro do funciona-mento das entidades de atendimento, em açõesque, em parte, podem ser retratadas nesteinventário:

Funções Quantidade

Secretária executiva 1

Assessores técnicos 4

Assistentes administrativos 2

Auxiliar administrativo 1

TOTAL 8

Atividades Quantidade

Estudos realizados 30

Ofícios expedidos 866

Ofícios recebidos 240

Editais 13

Resoluções normativas 12

Concessão de registro 38

Não-concessão de registro 14

Cancelamento de registro 2

TOTAL 1.215

Dispõe sobre o uso do uniformena rede de ensino e de aten-dimento à criança e ao adoles-cente do DF.

Dispõe sobre a aprovação doRegimento Interno do ConselhoDCA/DF.Dispõe sobre o processo de es-colha dos representantes da so-ciedade civil, para os cargos va-gos no Conselho DCA/DF, refe-rentes ao mandato de junho de1994 a julho de 1997.Dispõe sobre as normas de fun-cionamento das ComissõesTemáticas.

Convém, entretanto, em ato de justiça paracom os esforços desenvolvidos pelo ConselhoDCA/DF, que seja especificada a natureza decada uma das resoluções normativas baixadasem 1995, segundo o que vai, em seguida,exposto:

9.6.957/95

8/95 9.6.95

9/95 19.6.95

10/95 22.9.95

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11/95 Repub.4.10.95

SN/95

16/95

15/95

14/95

13/95

12/95

SN/95

22.9.95

4.10.95

4.10.95

16.10.95

7.11.95

10.10.95

11.10.95

– Deficiência da infra-estrutura de funcio-namento da Secretaria Executiva, carente detransporte, aparelhos de comunicação e de pes-soal.

– Obstáculos involuntários à freqüênciadesejável dos Titulares da representação gover-namental nas reuniões plenárias, alta rotativi-dade dos seus suplentes e mesmo a falta de in-dicação destes, por parte da Secretaria de Fa-zenda e Planejamento, a despeito dos reitera-dos pedidos que lhe foram encaminhados, etardia nomeação dos representantes da Secre-taria do Trabalho.

– Inexistência de uma estrutura formal àqual coubesse a tarefa de divulgar, de maneiracontínua e sistemática, as ações do ConselhoDCA/DF para a sociedade, transformando-asem notícias veiculadas pelos meios de comuni-cação.

2.5. As participações

Inobstante todas as limitações apontadas,pode o Conselho DCA/DF, em virtude do con-curso dos dois presidentes que exerceram agestão do órgão no ano de 1995, bem como dosdemais conselheiros, Secretaria Executiva e dosassessores técnicos, participar de numerosasatividades extra-Plano de Trabalho, as quaisficam aqui compreendidas:

– Participação na reunião preparatória, pro-movida pela Comissão de Direitos Humanos eCidadania, da Câmara Legislativa do DistritoFederal, da Campanha Brincando para a Paz.

– Participação na reunião preparatória, pro-movida pelo Cecria/DF – Unicef – Unesco, doEncontro Internacional sobre exploração Se-xual de Crianças e Adolescentes.

– Entrevista com o Juiz Substituto da Varada Infância e da Juventude, sobre o processode escolha, pela comunidade, dos ConselhosTutelares.

– Trabalho desenvolvido em parceria como Conselho dos Direitos da Mulher do DistritoFederal, por meio da Defensoria Pública, refe-rente às crianças cuja mãe foi brutalmente as-sassinada pelos caseiros de sua chácara.

– Visita ao Tribunal Regional Eleitoral doDistrito Federal, para a realização de consultasobre os procedimentos cabíveis no processode escolha dos Conselhos Tutelares.

– Articulação com o inventariante do CBIA,Serpro, Codeplan e Ministério da Justiça, vi-sando a obtenção de materiais e de equipamen-tos do seu interesse.

2.4. As dificuldades

Não foram poucas as dificuldades encon-tradas pelo Conselho DCA/DF no ano de 1995,cabendo sublinhar, entre outras muitas, as abai-xo enumeradas:

– Transferência do órgão, que funcionavano Palácio do Buriti, para o SBS, Edifício Bra-sília, 5º andar, onde o espaço físico é insufici-ente para as atividades da Secretaria Executi-va e não permite a realização das reuniões ple-nárias.

– Destinação de recursos propostos no Or-çamento para as ações do Conselho DCA/DF,os quais não foram objeto da necessária libera-ção financeira em sua totalidade.

– Frustração da expectativa de funciona-mento, no ano em questão e segundo era pre-visto, do Fundo DCA/DF, cuja efetiva implan-tação ficou para 1996.

Dispõe sobre a designação dosmembros das Comissões Temá-ticas Permanentes.Dispõe sobre o registro de Uni-dade de Atendimento à criançae adolescente, não-governa-mental e sediada no DF, man-tenedora de sede e foro em ou-tra unidade federada.Dispõe sobre o processo de es-colha dos conselheiros do Con-selho Tutelar.Dispõe sobre a designação demembros para comporem aComissão Coordenadora doprocesso de escolha dos Con-selhos Tutelares, nas RegiõesAdministrativas.Sugere a ampliação do anoletivo do ensino fundamental emédio no DF.Dispõe sobre a designação doGerente de Fundo dos Direitosda Criança e do Adolescente doDF.

Dispõe sobre a designação doPresidente do Conselho DCA/DF.Dispõe sobre a indicação doVice-Presidente do ConselhoDCA/DF.

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– Negociação com a Assessoria Especial deControle de Políticas Públicas, da Câmara Le-gislativa do Distrito Federal, para a feitura detrabalho conjunto.

– Intercâmbio com o Departamento da Cri-ança, do Ministério da Justiça, tendo em vistaa realização de atividades de interesse comum.

– Participação em debate promovido peloSOS Criança do Distrito Federal, relativo aosConselhos Tutelares.

– Discussão com o Conanda a respeito darealização do Encontro Nacional dos Conse-lhos dos Direitos.

– Articulação com o Conanda para garan-tir a vinda do Conselheiro Charles, o qual pres-tou consultoria à Comissão Temática de Reor-denamento do Conselho DCA/DF.

– Negociação com o Unicef, objetivando ofinanciamento da campanha publicitária doFundo DCA/DF.

– Participação no seminário sobre Explo-ração Sexual, promovido pela Comissão deDireitos Humanos e Cidadania da Câmara Le-gislativa do Distrito Federal.

– Participação no seminário promovido pelaMagistratura, referente à Avaliação do Estatu-to da Criança e do Adolescente.

– Participação no Fórum Brasília contra aProstituição Infantil, promovido pelo movimen-to Ação da Cidadania.

– Participação no Encontro Nacional deMeninos e Meninas de Rua, promovido peloMNAMRA em Brasília.

– Participação no seminário Desconstruin-do a Violência e Edificando a Plataforma deBeijing 95, promovido pelo Conselho dos Di-reitos da Mulher do Distrito Federal.

– Participação no seminário Políticas Pú-blicas, Trabalho e Educação Profissional sob aÓtica de Gênero, promovido pelo Conselho dosDireitos da Mulher do Distrito Federal.

– Participação no Encontro Nacional sobreExploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

– Participação em debate promovido peloDepartamento de Serviço Social da Universi-dade de Brasília, sobre o Estatuto da Criança edo Adolescente.

– Participação em debate realizado no CDSdo Plano Piloto, referente ao lançamento doprograma Brasília Criança.

– Realização de palestra para professores

no Caic da Ceilândia, sobre o Estatuto da Cri-ança e do Adolescente.

– Realização de palestras no CRT, sobre oDireito de Crianças e de Adolescentes à Con-vivência Familiar e Comunitária.

– Participação no conjunto de trabalhos deformulação do programa Brasília Criança.

– Participação na conferência sobre Refor-ma do Estado, promovida pela SEPTIS.

– Participação no debate sobre o Adoles-cente Infrator, promovido pela Câmara Legis-lativa do Distrito Federal.

– Participação na reunião sobre EducaçãoInfantil, promovida pela Assessoria Especialdo Governador.

– Reunião com representantes da MP, VIJe SDSAC/DF para a discussão do Plantão In-teristitucional.

– Reunião com representante do MP, paradiscutir a natureza e a validade da Resoluçãosobre o processo de escolha dos Conselhos Tu-telares.

– Realização de palestra no Instituto DomOrione, sobre o Estatuto da Criança e do Ado-lescente.

– Articulação com a Imprensa Nacionalpara solicitar a doação de exemplares do Esta-tuto da Criança e do Adolescente.

– Negociação com o Congresso Nacionalpara garantir uma edição do Estatuto da Cri-ança e do Adolescente com a logomarca doConselho DCA/DF.

– Reunião com representante da Andi e comtécnico em comunicação social para discutir adivulgação das ações do Conselho DCA/DFjunto à comunidade.

2.6. O método de avaliação

Toda uma expectativa de avaliação foi de-senvolvida pela Secretaria Executiva do Con-selho DCA/DF, que, para tanto, definiu uminstrumento de trabalho, construído em formade questionário individual, de maneira a reco-lher opiniões e impressões referentes a diver-sos tópicos de questionário individual da vidado órgão no ano de 1995. Quatro grandes itensforam contemplados, a saber: avaliação em re-lação à atuação do conselho; em relação à atu-ação dos conselheiros; em relação à atuaçãoda Secretaria Executiva; e sugestões para o

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Revista de Informação Legislativa282

ano de 1996. Para cada grande item houve umrol de subitens, para os quais cabia indicar comum “X” um dos cinco conceitos possíveis: FR(fraco); RE (regular); BO (bom); OT (ótimo);e EX (excelente). À margem de todo o questio-nário contou um campo aberto, denominadoobservação, para que detalhes e esclarecimen-tos, se necessários, pudessem ser aditados. Estegráfico de barra consubstancia, no plano dadesejabilidade, o que pretendia a SecretariaExecutiva do Conselho DCA/DF.

Pretendia a Secretaria Executiva do Con-selho DCA/DF que o total de 26 Conselheirosde Direitos respondessem ao questionário in-dividual; só o responderam 14, o que corres-ponde a 53,8% do universo de referência. Essaparticipação, como que pela metade, aconte-ceu em virtude da inevitável mudança da datada avaliação, de 13 para 20 de dezembro doano findo. O clima natalino já havia chegado,muitos Conselheiros de Direitos estavam deférias ou com viagem marcada, não havendo,enfim, naquela que foi a última reunião do ano,o alto índice de freqüência que caracteriza a roti-na das sessões plenárias do órgão em discussão.

2.7. Os resultados

A tabulação dos resultados obtidos, eviden-ciados os subitens de cada item, permite oseguinte:1) Avaliação em relação à atuação do Conselho

a) Exerceu a função deliberativa emrelação aos direitos:

7..........RE..........50%4..........BO..........29%2..........OT..........14%1..........EX............7%

b) Exerceu a função de controle das açõesna área da criança e do adolescente:

8..........FR..........57%5..........RE..........35%1..........BO..........7%

c) Diagnosticou a situação da criança edo adolescente em todas as áreas do DF:

9..........FR..........64%4..........RE..........29%1..........BO..........7%

d) Atuou no nível político:8..........FR..........57%6..........RE..........42%

e) Exerceu atuação conhecida pela socie-dade:

10..........FR..........71%2..........RE..........14%2..........BO..........14%

f) Considerou a implementação do Planode Garantia:

8..........FR..........57%5..........RE..........35%1..........BO..........7%

IDEAL

REAL

O contraste entre o virtual e o efetivo apa-rece, por completo, quando aproximados os doisgráficos de barra:

IDEAL

REAL

Em virtude de fatores que serão, a seu tem-po, expostos, a participação registrada apresen-tou este perfil:

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2) Avaliação em relação à atuação dos conse-lheiros

a) Demonstraram ter compromisso como CDCA:

5..........RE..........35%2..........BO..........14%4..........OT..........29%3..........EX..........21%

b) Demonstraram ter conhecimento doCDCA:

2..........FR..........14%5..........RE..........35%7..........BO..........50%

c) Sentiram-se capacitados para a fun-ção de conselheiros:

4..........FR..........29%4..........RE..........29%4..........BO..........29%2..........OT..........14%

d) Estabeleceram como prioridade oCDCA em relação aos demais encargos:

6..........RE..........42%2..........BO..........14%4..........OT..........29%

e) Sentiram-se identificados com a causada criança e do adolescente:

5..........RE..........35%2..........BO..........14%3..........OT..........21%3..........EX..........21%

f) Participaram nas Comissões Temáticas:2..........RE..........14%6..........BO..........42%3..........OT..........21%3..........EX..........21%

g) Participaram nas Reuniões Plenárias:1..........FR..........7%7..........BO..........50%3..........OT..........21%3..........EX..........21%

3) Avaliação em relação à atuação da SecretariaExecutiva

a) Apoio operacional:5..........BO..........35%6..........OT..........42%3..........EX..........21%

b) Apoio técnico:4..........BO..........29%

7..........OT..........50%3..........EX..........21%

c) Articulação:5..........RE..........35%6..........BO..........42%3..........OT..........21%

d) Gerenciamento:5..........RE..........21%6..........BO..........57%3..........OT..........7%2..........EX..........14%

e) Comunicação:3..........RE..........21%5..........BO..........35%5..........OT..........35%1..........EX..........7%

4) Sugestões para o ano de 1996“Manter o ritmo dos últimos meses”; “evi-

tar reuniões extraordinárias”; “acabar com asreuniões das Comissões Temáticas fora do diadas Plenárias”; “planejamento das ações doConselho DCA no estabelecimento de metas aserem cumpridas”; “colocação como ponto depauta dos encaminhamentos do Conselho DCA,como forma de garantir e de socializar os re-sultados”; “reforçar o Plano de Garantia dosdireitos das Crianças e dos Adolescentes doDistrito Federal”; “aumentar a articulação po-lítica”; e “definir um local estável para a reali-zação das reuniões plenárias”.

2.8. A visão analítica I

Como os números não são em si mesmoseloqüentes, exigem, para que se lhes revele osentido, a mínima análise. É o que será, de for-ma concisa, tentado.

Em termos de avaliação em relação à atu-ação do conselho, nenhum dos respondentes aconsiderou FR (fraca) e 50% deles classifica-ram-na como RE (regular). Perceba-se que osomatório das categorias BO (bom), OT (óti-mo) e EX (excelente) empata com RE (regu-lar), atingindo a ordem dos restantes 50% douniverso global. Dir-se-á, portanto, que apercepção em torno do desempenho do órgão épositiva, de maneira moderada, no tocante aoitem a, de exercício da função deliberativa emrelação aos direitos.

Já no tocante ao item b, referente ao cum-primento da função de controle das ações naárea da criança e do adolescente, nenhum dos

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respondentes a admitiu satisfatória a ponto declassificá-la como OT (ótimo) ou EX (excelen-te). Ao contrário: 57% julgaram-na FR (fra-ca), enquanto 35% viram-na RE (regular) eapenas 7% consideraram-na como de resulta-do BO (bom). FR (fraca) e RE (regular), adici-onados, atingem a órbita de 92 a 93% dos po-sicionamentos, o que evidencia, de forma al-tissonante, ser aqui negativa a percepção reve-lada e desfavorável com baixa moderação, exi-gindo o exercício da função de controle a má-xima atenção do Conselho DCA/DF, por sereste um dos seus pontos críticos.

No relativo ao item c, de preocupação coma situação da criança e do adolescente de todoo Distrito Federal, exigente da confecção dediagnósticos autorizativos de um mais consci-entemente esclarecido exercício da função de-liberativa em relação aos direitos, 64% dosConselheiros de Direitos entenderam-na comoFR (fraca) e 29% como RE (regular), o queconfigura o elevado índice de 93% do conjun-to dos pronunciamentos. Apenas 7% escolhe-ram o conceito BO (bom), sem que ninguémelegesse os tópicos OT (ótimo) e EX (excelen-te). Trata-se de uma quase absoluta necessida-de do Conselho DCA/DF, como mecanismo,inclusive, de qualificação do exercício da fun-ção deliberativa.

A abordagem do item d, pertinente à atua-ção no nível político, é de uma clareza meridi-ana. Ninguém escolheu as categorias BO (bom),OT (ótimo) e EX (excelente). Cinqüenta e setepor cento dos pronunciamentos fixaram-se noFR (fraco) e 42% optaram pelo RE (regular).O equilíbrio é de característica negativa, indi-cando que, inserto em um universo exigentede interações políticas, o Conselho DCA/DFdeve buscar reparar esta lacuna, que o tornaclaudicante em face da realidade circundante,em que pesem todos os esforços que vem de-senvolvendo em sua caminhada.

A leitura do item e, preocupado com a res-sonância das atividades do Conselho DCA/DFna sociedade, registra o ápice das manifesta-ções em torno da categoria FR (fraco), com 71%das preferências manifestas. Equivalem-se,quanto ao mais, os pronunciamentos cravadosno RE (regular) e os dirigidos ao BO (bom):14% a 14% , somando pouco além de 1/4 douniverso global das respostas. Ninguém esco-lheu os conceitos OT (ótimo) e EX (excelen-te). O Conselho DCA/DF precisa, com urgên-cia, encontrar caminhos institucionais de ga-rantia da repercussão do seu trabalho, no âm-

bito da sociedade global.Por fim, o item f, voltado para a implemen-

tação do Plano de Garantia dos Direitos dasCrianças e dos Adolescentes do Distrito Fede-ral. Aqui, novamente, ninguém admitiu comoválidas ou cabíveis as proposições OT (ótimo)e EX (excelente). Apenas 7% consideram acei-tável a marca BO (bom). Já 35% responderamser de natureza RE (regular) o desempenho doConselho DCA/DF, enquanto a maioria, ouseja, 57%, concentrou a sua preferência no con-ceito FR (fraco). O documento em questão, pelasua relevância, deve merecer atenção do Con-selho DCA/DF por significar a bússola do seuembate com o real, que necessita evidenciar,em grau superior, a sua substantivação no pla-no do concreto.

Por sua vez, a avaliação em relação à atua-ção dos conselheiros revela, quanto ao item a,voltado à averiguação do seu compromisso como Conselho DCA/DF, que ninguém escolheu oconceito FR (fraco). Trinta e cinco por centodas respostas concentraram-se na categoria RE(regular). O que merece ser sublinhado é que,com a agregação do BO (bom), do OT (ótimo) edo EX (excelente), atinge-se o índice bastantepositivo de 64% dos pronunciamentos possíveis.E mais: em leitura complementar, pode-se ga-rantir que o índice de aprovação, quanto ao com-promisso com o Conselho DCA/DF, foi de 100%.

O item b, de mensuração do conhecimentodo corpo colegiado enquanto órgão, função ecompetência, fica aquém do nível de compro-misso já submetido à devida análise qualifica-dora. Ninguém escolheu os conceitos OT (óti-mo) e EX (excelente). Já no referente à catego-ria BO (bom), atingiu 50% das preferênciasesboçadas, seguida de 35% de opção pelo nívelRE (regular), com apenas 14% dos responden-tes concentrados no grau FR (fraco). Trata-sede maturidade de percepção e de capacidadecrítica. RE (regular) e BO (bom) somados re-sultam em 85%, ou seja, disposição para umaprendizado que alimente a esperança quantoao futuro do Conselho DCA/DF.

A capacitação para a função de Conselhei-ros de Direitos foi objeto do item c. Ninguémconsiderou a si mesmo EX (excelente).Quatorzepor cento julgaram-se na faixa OT (Ótimo), esucessivamente, 29% concentraram-se nos trêscorredores seguintes: BO (bom), RE (regular)e FR (fraco), muito embora todos orcem em29%. A razão disso está nos 14% de manifes-tação em torno do conceito OT (ótimo), o quepermite assegurar que a capacitação evoluiu,

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devendo o seu avanço prosseguir, a título deprograma constante do Conselho DCA/DF.

No tocante ao item d, relativo à proprieda-de concedida no Conselho DCA/DF, em meioao exercício de múltiplos papéis pelos Conse-lheiros de Direitos, dois dos respondentes nãose pronunciaram. Entre os que o fizeram, nin-guém optou pelos conceitos FR (fraco) e EX(excelente): 42% preferiram o RE (regular),14% o BO (bom) e 29% o OT (ótimo), obtendoeste mais do dobro das escolhas pela categoriaprecedente, o que autoriza a colocação de quea avaliação dos Conselheiros de Direitos, quan-to à sua dedicação graciosa ao órgão e à causa,foi razoável, com forte, nítida inclinação posi-tiva, ascendente, desde que o somatório de BO(bom) e OT (ótimo), 43%, supera a marca dos42%, alcançada pelo RE (regular).

A identificação com a causa foi a preocu-pação mensurada pelo item e, que foi objeto daabstenção de um respondente. O conceito FR(fraco) não foi escolhido por ninguém. O agre-gado de BO (bom), OT (ótimo) e EX (excelen-te) resulta em 56%, contraposto aos 35% damarca RE (regular), o que, de novo, permiteindicar a existência de um quadro avaliativoestável, com mais robusta ainda tendência po-sitiva, o que não chega a surpreender, uma vezque muitos dos Conselheiros de Direitos sãomilitantes da causa da criança e do adolescen-te, gerindo, alguns deles, instituições de aten-dimento, enquanto outros mobilizam a criançae o adolescente em torno de movimentos cultu-rais, cursos profissionais, etc.

O item f é respeitante à participação nasComissões Temáticas. Ninguém optou pelo ní-vel FR (fraco) e apenas 14% escolheram a fai-xa RE (regular). A adição das categorias BO(bom), OT (ótimo) e EX (excelente) atinge oelevado índice de 84%, indicativo do sucessoque, em tese, a idéia do funcionamento dasComissões Temáticas alcançou na vida do Con-selho DCA/DF, cujas futuras estratégias devemcontemplar, sempre que possível, o concursodaquelas.

A participação nas Reuniões Plenárias foia preocupação do item g. Ninguém aceitou aalternativa RE (Regular), e apenas 7% grafa-ram a opção FR (fraco). A totalização dos con-ceitos BO (bom), OT (ótimo) e EX (excelente)resulta no patamar de 92%, que é supremacia,revelando que os Coselheiros de Direitos jul-gam como extremamente ativa a sua presençanas Reuniões Plenárias.

Quanto à avaliação em relação à atuação

Secretaria Executiva, o item a discutia o apoiooperacional, não merecendo, por parte dos res-pondentes, a preferência pelas opções FR (fra-co) e RE (regular). Predominou na avaliação acategoria OT (ótimo), com 42%, a qual, soma-da aos 21% da marca EX (excelente), resultaem 63%, ou seja, uma cifra que mereceu 35%das preferências. Trata-se, portanto, de um ce-nário de plena aprovação.

No que é pertinente ao item b, voltado parao exame do apoio técnico, também não regis-trou a escolha das marcas FR (fraco) e RE (re-gular). A agregação dos conceitos OT (ótimo)e EX (excelente) atinge 71% , o que é quaseduas vezes e meia, 72,5%, o valor alcançadopelo meritório conceito BO, ou seja, 29%. Aavaliação do apoio técnico é mais favorável ain-da do que o julgamento de plena aprovação doapoio operacional.

O item c, voltado para a preocupação coma articulação, não registrou a escolha das al-ternativas extremas – FR (fraco) e EX (exce-lente). A alternativa RE (regular) aparece comomoderadora, com seus 35%, superando os 21%da marca EX (excelente) e estando próxima dafaixa dos 42% do conceito OT (ótimo), muitoembora estes dois, agregados, cheguem a 63%,a caminho do dobro – 70% – dos 35% do con-ceito RE (regular). Merece, pois, atenção, porparte da Secretaria Executiva do ConselhoDCA/DF, o problema da articulação, o qualpode ser reforçado, havendo, para tanto, espa-ço e necessidade.

Já o item d, dirigido ao gerenciamento, nãoapresentou também a eleição da alternativa FR(fraco). A presença do RE (regular), da ordemde 21%, é menos moderadora do que a sua pre-cedente manifestação. Das respondentes, 7%escolheram a alternativa OT (ótimo) e 14%preferiram a possibilidade EX (excelente). Per-cebe-se, contudo, a maciça concentração naopção BO (bom), da ordem de 57%, isto é,maior, com 15% de vantagem, do que o soma-tório dos conceitos RE (regular), OT (ótimo) eEX (excelente), que alcança a ordem de 42%.O quadro é, em conseqüência, de segura apro-vação.

Quanto ao item e, destinado à comunica-ção, não registrou a opção de ninguém pela al-ternativa FR (fraco), a qual esteve fora, de ex-tremo a extremo, do julgamento da SecretariaExecutiva do Conselho DCA/DF. Dos respon-dentes, 21% concentraram-se na opção RE (re-gular), de baixa expressão moderadora, haja

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Revista de Informação Legislativa286

vista ser mais de 30% menor do que a adiçãodos conceitos BO (bom), OT (ótimo) e EX (ex-celente), que resulta em 77%, evidenciando,com ênfase, a aprovação dos esforços interco-municantes da Secretaria Executiva do Conse-lho DCA/DF.

Quanto às sugestões para o ano de 1996,sumariadas em concisas sentenças, permitemuma exegese apoiada na teoria dos signos, detal maneira que, por inspiração decorrente dasemiologia, os seguintes nexos frasais sejamisolados, valorizados e dinamicizados:

1) Ritmo 2) Tempo

5) Estabilidade

4) Controle 3) Planejamento

→↓

←Cada uma das expressões, em si mesma,

poderia ser geradora de uma complexa árvoresemântica. Como, entretanto, poderia parecerexcessivo colocá-las em pauta, em virtude dasobriedade devida a um relatório técnico, con-vém apenas, em leitura dinâmica, explicitar osentido das antevisões esboçadas em relação aoano de 1996.

Ritmo significa o desejo de que o ConselhoDCA/DF preserve a velocidade de ação adqui-rida a partir do segundo semestre de 1995. Tem-po é a racionalização do seu uso colegiado, demodo a, economizando-o, tornar mais compa-tíveis as agendas do Conselho e dos Conselhei-ros, considerando que aquele precisa manter oseu ritmo, e estes, por sua vez, não dispõem dededicação exclusiva. Planejamento significa aordenação lógica de metas a serem alcançadas,dispondo, como marco referencial, da revisãoatualizadora do Plano de Garantia dos Direi-tos das Crianças e dos Adolescentes do Distri-to Federal. Controle é o efetivo acompanha-mento das deliberações do Conselho DCA/DF,marcado pela comunicação ao colegiado dosresultados atingidos. Estabilidade significa aconquista do ritmo com eficácia, ou seja, comtempo, com planejamento e com controle, navida do órgão em questão, que necessita de ar-ticulação política e de visibilidade societal.

À margem do exposto, no campo aberto àobservação, mais propriamente no item avali-ação em relação à atuação do conselho, algu-mas contribuições foram registradas, as quais,

sem lugar à dúvida, podem ser compactadaspelo vocábulo falta. Falta de reconhecimentogovernamental quanto à atuação do ConselhoDCA/DF. Falta de infra-estrutura, meios e re-cursos para agir como era devido. Falta de von-tade política de exigir os meios necessários aseu bom e legítimo funcionamento. Enfim, faltaque extrapola este limite e assume um sentidosimbólico, que precisa ser trabalhado em umaóptica construtivista.

2.9. A visão analítica IIForam ainda, a seu tempo, formadas qua-

tro Câmaras Técnicas, nas quais os Conselhei-ros de Direitos foram distribuídos, cuja com-petência era a de analisar e avaliar as diretri-zes estabelecidas no Plano de Trabalho do Con-selho DCA/DF para o ano de 1995, dentro daseguinte dispersão:– Câmara A-Diretrizes 1ª e 4ª:

1ª – “Garantir o funcionamento do Con-selho DCA/DF”;4ª – “Proporcionar e acompanhar a le-gislação pertinente à criança e ao ado-lescente”.

– Câmara B- Diretrizes 2ª e 6ª:2ª – “Controlar as ações voltadas à cri-ança e ao adolescente”;6ª – “Implementar o Fundo dos Direitosda Criança e do Adolescente”.

– Câmara C- Diretrizes 3ª e 5ª:3ª – “Instalar os Conselhos Tutelares”;5ª – “Apoio à capacitação dos Conselhei-ros de Direitos e Tutelares”.

– Câmara D- Diretriz 7ª:7ª – “Dar visibilidade às ações do Con-selho DCA/DF”.

A Câmara A considerou parciais todos osresultados da Diretriz 1, desde o cronogramade trabalho à participação na proposta orça-mentária do Distrito Federal, apontando comojustificativa máxima para a obtenção medianade resultados a difícil articulação com o Go-verno do Distrito Federal.

Quanto à Diretriz 4, a elaboração e propos-ta de revisão da Lei nº 234/92 e nº 518/93 foiconsiderada satisfatória pela Comissão de Le-gislação, a qual julgou que faltou tempo hábilpara a elaboração de resolução normativa defi-nindo o prazo para inscrição dos programasgovernamentais, mas considerou válido o

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acompanhamento da tramitação da lei de cria-ção da Secretaria da Criança e do Adolescentedo Distrito Federal, que chegou a ser devida-mente discutida em reunião plenária. As res-tantes subações não existiram, e a atribuiçãode responsabilidade foi concedida ao malogrodo Poder Legislativo, quer distrital, quer fede-ral, em articular-se para dialogar com o públi-co externo.

A Câmara B, ao abordar a Diretriz 2, acei-tou como parcialmente alcançados os resulta-dos relativos ao cadastramento de entidade comregistro e inscrição de programa, a exposiçãosobre políticas para a criança e o adolescentepor cada área representada no Conselho DCA/DF e a articulação nas diversas instâncias doExecutivo e do Legislativo. Todas as demaissubações foram consideradas não-realizadas.Aqui, a responsabilidade pelos resultados não-atingidos foi partilhada, pois, se o Governo doDistrito Federal não concedeu a estrutura, nãorepassou os recursos e não registrou os seusprogramas, reina o entendimento de que o Con-selho DCA/DF não exigiu a contento e nãonegociou o suficiente, em torno do que lhe eradevido.

No referente à Diretriz 6, a apreciação con-siderou realizadas as subações referentes à in-dicação do gerente do fundo DCA/DF e a ela-boração do plano de aplicação do Fundo DCA/DF, e parcialmente realizada a elaboração deum plano de divulgação do Fundo DCA/DF.As demais subações não foram contempladas,e as razões apontadas como óbices a um me-lhor desempenho foram a falta de tempo, a fal-ta de pessoal e a falta de implementação doFundo DCA/DF.

A Câmara C, ao discutir a Diretriz 3, con-siderou que só ficou por ser realizado o quenão podia ainda sê-lo – a investidura dos Con-selhos Tutelares e a capacitação dos Conselhei-ros Tutelares –, por integrar o campo das açõesa serem desenvolvidas no corrente ano. Foramrealizadas a elaboração de normas regulamen-tadoras do processo de escolha dos ConselhosTutelares, a apresentação ao Ministério Públi-co dos critérios de escolha e a coordenação doprocesso de escolha. Como de realização par-cial foi admitida a garantia, junto ao Executi-vo, das condições de funcionamento dos Con-selhos Tutelares, em razão da dificuldade dearticulação política do Conselho DCA/DF como Governo do Distrito Federal. A justificativapara o bom desempenho foi atribuída à clareza

em relação ao papel do Conselho DCA/DF.Já quanto à Diretriz 5, a única subação con-

siderada realizada foi a distribuição de materi-al institucional sobre Conselhos Tutelares e deDireito, em virtude da utilização de estratégiaadequada. Realizada de maneira parcial, nojulgamento em questão, foi a promoção men-sal de eventos para a capacitação dos Conse-lheiros de Direitos e dos seus Suplentes, à qualavançou, depois de composta, quanto aos qua-dros técnicos e de gestão, a Secretaria Executi-va do Conselho DCA/DF. Todas as demais su-bações foram postas na rubrica das não-reali-zadas, por duas razões: uma objetiva, falta depriorização, outra subjetiva, falta de clareza dopapel do Conselho DCA/DF.

A Câmara D, à qual competiu o exame daDiretriz 7, visualizou como realizada a parti-cipação em eventos do interesse da criança edo adolescente, e parcialmente satisfeita a arti-culação com a imprensa, o empresariado, clu-bes de serviços, sindicatos e movimentos po-pulares, sobretudo com a imprensa. Todas asdemais subações não foram realizadas, dizen-do respeito à articulação com o Conanda, a Varada Infância e da Juventude, a Delegacia da In-fância e da Juventude e os Conselhos Estadu-ais de Direitos da Criança e do Adolescente, etambém, entre diversos aspectos, à elaboraçãode plano de Comunicação Social responsávelpela ampla difusão das ações do ConselhoDCA/DF junto à sociedade global. A justifica-tiva para o desempenho em questão foi atribu-ída às crises vividas pelo Conselho DCA/DFno ano de 1995, inclusive a de natureza suces-sória, bem como à falta de iniciativa para ocontato e o diálogo, e à falta de articulação parainteragir e conquistar espaço com eficiênciaprogramática, sem o esquecimento, de resto,de que houve um efetivo superdimensionamen-to de ações no Plano de Trabalho do Conselhode Direitos da Criança e do Adolescente, parao ano de 1995.

3. ConclusãoFinalmente, pode-se, fazendo um balanço

global das atividades desenvolvidas pelo Con-selho DCA/DF no ano de 1995, garantir quenada, absolutamente nada, autoriza considerarque o órgão não caminha em busca de sua ma-turidade, do seu equilíbrio e do seu crescimen-to qualitativo, horizontal e vertical.

Em um ano de crise, instabilidade e apren-

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dizado, pôde o Conselho DCA/DF realizar umexpressivo conjunto de diligentes ações, rela-tadas ao longo deste documento, as quais bemdemonstram a sua substantiva possibilidade detonificar-se, robustecer-se, enfim, crescer emmusculatura.

O eixo do vindouro trabalho, em podendoser desenrolado em torno da Plenária, das Co-missões Temáticas e da Secretaria Executiva,poderá significar, sem a perda de vista do pa-norama geral, a promissora certeza do êxitoinstitucional. Compete, como é natural, aosaparelhos gerenciais – a Presidência e a MesaDiretora, em particular – a condução superiordo processo em questão, que objetiva a concre-ta maximização dos resultados que justificama existência do Conselho DCA/DF.

Como decorrência de tudo quanto foi ex-posto, vêm à superfície determinadas sugestões,merecedoras da reflexão colegiada do órgão empauta, que decidirá a conveniência e a dosa-gem cabíveis, quanto a sua implementação:

– definir o Plano de Trabalho do Conselhodos Direitos da Criança e do Adolescente doDistrito Federal para o ano de 1996, discutin-do qual a escala desejável de expectativas acontemplar, considerados os fatores tempo erecursos disponíveis;

– retrabalhar, atualizando-o no que neces-sário for, o Plano de Garantia dos Direitos daCriança e do Adolescente do Distrito Federal,que, pela sua relevância, é um documento quenão pode, em nenhuma hipótese, ser letra friae morta;

– estender o bem-sucedido esforço de esco-lha dos Conselhos Tutelares, levando-o paranovas Regiões Administrativas, paralelamen-te à negociação das condições mínimas para asua instalação e o seu funcionamento; e

– investir, de maneira continuada e siste-mática, no treinamento, na capacitação, na for-mação, enfim, do conjunto heterogêneo de ato-res relacionados com a causa da criança e doadolescente no Distrito Federal, tendo em vis-ta que o crescimento qualitativo, para ter efei-tos práticos, necessita ser global.

Registre-se como de relevo, na vida do Con-selho DCA/DF em 1995, o auspicioso e eleva-do índice de freqüência dos Conselheiros deDireitos às reuniões plenárias, fato esse gera-dor de expectativas quanto à sua necessáriacontinuidade, por ser o caminho testado e apro-vado na realidade, para garantir a densidade, a

representação e a dinâmica do órgão colegiadoem questão, de cujo crescimento qualitativodepende, em considerável medida, a soluçãopositiva da grave causa da criança e do adoles-cente em Brasília.

Determinados problemas têm de ser enfren-tados, como resposta à autoconsciência que aAvaliação do Desempenho do Conselho dosDireitos da Criança e do Adolescente (Conse-lho DCA/DF) permite visualizar a contento, pormeio das expectativas contidas nas cargas sim-bólicas do Ritmo, do Tempo, do Planejamento,do Controle e da Estabilidade.

Redefinir estratégias e estabelecer priorida-des, lutar sem descanso para conquistar a ca-pacidade de articulação política, construir ca-nais e instrumentos de convencimento políti-co, estabelecer uma competente política, cons-truir canais e instrumento político, estabeleceruma competente política de comunicação soci-al, aumentar a capacidade de interação comórgãos similares, nos planos estadual, nacio-nal e internacional, avançar na reivindicaçãoem torno da evolução da sua indispensável in-fra-estrutura, concitar todos os atores envolvi-dos com a causa da criança e do adolescente aterem um maior empenho pessoal, apostar emtodas as formas de advento de uma nova cons-ciência, conducente à classificação do seu pa-pel, e acumular um mais profundo conhecimen-to técnico sobre orçamento e planejamento sãoalguns dos desafios que estão batendo à portado Conselho DCA/DF e exigindo dele urgen-tes e refletidas respostas.

Propositalmente, ficou para ser tratado emespaço diferenciado o problema do Fundo DCA/DF, que reivindica a máxima atenção e neces-sita do esforço concentrado de todo o ConselhoDCA/DF, por configurar o instrumento a serestabelecido, legitimado e desenvolvido para oalcance de sua maioridade plena. Trata-se, pois,de conjugar energias em busca dos recursos quea superação do drama da criança e do adoles-cente reclama, e o faz com razão, e para já.Essa urgência das urgências, cercada de difi-culdades, dá bem o tom do desafiante caminhoque aguarda o Conselho DCA/DF no ano de1996 e seguintes, ao qual ele haverá, de certo,de reagir com crescente lucidez, permanentediálogo e ambicionado sucesso, como formapositiva de servir à sociedade brasileira e bra-siliense, em particular.

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PLANO DE TRABALHO DO CONSELHO DCA/DF

Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

- Elaboração do cronogra-ma de trabalho do CDCA.

- Elaborar o Plano deTrabalho do CDCA, defi-nindo as prioridades para oseu funcionamento.

- Organizar as ComissõesTemáticas segundo oRegimento Interno.

- Distribuição dos Conse-lheiros em ComissõesTemáticas.- Elaboração do Plano deatuação das ComissõesTemáticas.- Acompanhamento doandamento dos trabalhosdas Comissões Temáticas.

- Propor o funcionamentoda Mesa Diretora e suaperiodicidade.

- Elaboração de cronogra-ma de reunião da mesadiretora.

- Preparação do local pararealização das reuniões ple-nárias.

- Negociar, quando neces-sário, com o Executivo, oapoio administrativo às ati-vidades do CDCA.

- Conhecimento dos recur-sos orçamentários destina-dos ao funcionamento doCDCA.- Participação do CDCA naelaboração da propostaorçamentária do DF.

DIRETRIZ: GARANTIR O FUNCIONAMENTO DO CONSELHO DCA/DF

4. Anexo

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Revista de Informação Legislativa290

PLANO DE TRABALHO DO CONSELHO DCA/DF

Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

DIRETRIZ: CONTROLAR AS AÇÕES VOLTADAS À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

- Acompanhar a execuçãoorçamentária do DF/95para a criança e o adoles-cente.- Conhecer e analisar, pre-viamente, a Proposta Or-çamentária do Governo doDF para 1996.- Acompanhar a aprovaçãoda proposta orçamentária/96.

- Discussão e análise dospercentuais alocados para acriança e adolescentes noOrçamento/96.- Articulação nas diversasinstâncias do Executivo edo Legislativo.- Acompanhamento da exe-cução financeira ao orça-mento/95.

- Definir estratégia e meca-nismo de monitoramentodas políticas públicas.- Manter informações atua-lizadas sobre o atendi-mento a crianças e adoles-centes e recursos disponí-veis no Distrito Federal.

- Exposição sobre políticapara a criança e o adoles-cente por cada área repre-sentada no Conselho.- Levantamento de pesqui-sas e outros dados sobrecrianças, jovens e famíliano Distrito Federal com afinalidade de subsidiar aavaliação do impacto daspolíticas públicas sobre apopulação.- Organização de espaçoreferencial de dados sobrea criança e o adolescentedo DF.- Discussão e elaboração deuma proposta de Reordena-mento de Entidades Gover-namentais e Não-Governa-mentais de Atendimento àCriança e ao Adolescentedo DF.

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 291

PLANO DE TRABALHO DO CONSELHO DCA/DF

Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

DIRETRIZ: INSTALAR OS CONSELHOS TUTELARES

- Coordenar o processo deescolha e instalação dosConselhos Tutelares.

- Elaboração de normas re-gulamentadoras do proces-so de escolha dos Conse-lhos Tutelares.- Apresentação ao Ministé-rio Público dos critérios deescolha.- Coordenação do proces-so de escolha.- Promoção de capacitaçãodos membros escolhidos nafunção de Conselheiros Tu-telares.- Investidura dos ConselhosTutelares.- Garantia, junto ao Execu-tivo, das condições de fun-cionamento destes Conse-lhos.

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Revista de Informação Legislativa292

PLANO DE TRABALHO DO CONSELHO DCA/DF

Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

DIRETRIZ: PROPOR E ACOMPANHAR A LEGISLAÇÃO PERTINENTE À CRIANÇAE AO ADOLESCENTE NO DF

- Elaboração e proposta derevisão da Lei nº 234/92 enº 518/93.

- Acompanhamento da res-cisão constitucional, no quese refere à criança e ao ado-lescente.- Estabelecimento de meca-nismo de articulação perti-nente com parlamentaresdistritais.- Acompanhamento da tra-mitação da Lei nº 644, doPromenor.

- Acompanhamento da tra-mitação da Lei nº 690 sobreo menor aprendiz.

- Acompanhamento da tra-mitação da Lei da criaçãoda Secretaria da Criança edo Adolescente do DistritoFederal.- Revisão das ResoluçõesNormativas da ComissãoEspecial dos Direitos da Cri-ança e do Adolescente,adequando-as às necessi-dades atuais.- Elaboração de resoluçãonormativa definindo o prazopara inscrição dos progra-mas governamentais.

- Participar na elaboraçãoda legislação pertinente àcriança e ao adolescente.

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 293

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Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

DIRETRIZ: APOIO À CAPACITAÇÃO DE CONSELHEIROS DE DIREITOS ETUTELARES

- Desenvolver um progra-ma sistemático de capaci-tação de Conselheiros deDireito e Tutelares.

- Mobilização de Universi-dades na realização do Pro-grama de Capacitação.

- Promover, mensalmente,a formação dos Conselhei-ros e Suplentes.

- Articulação com a Vara deInfância e da Juventudepara a participação na defi-nição de conteúdos e reali-zação do processo de capa-citação de ConselheirosTutelares.- Elaboração e execução doplano de capacitação paraConselheiros de Direitos.- Elaboração e execução doplano de capacitação deConselheiros Tutelares.- Distribuição de materialinstitucional sobre Conse-lhos Tutelares e de Direito.- Adoção de metodologia deensino à distância para trei-namento dos Conselheirose Suplentes.- Conhecimento de experi-ências de Conselhos Tute-lares de outras unidadesfederadas.

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Revista de Informação Legislativa294

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Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

DIRETRIZ: IMPLEMENTAR O FUNDO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DOADOLESCENTE

- Definir as providênciasfundamentais ao funciona-mento do Fundo DCA/ DF.

- Indicação do Gerente doFundo dos Direitos da Cri-ança e do Adolescente.- Definição de critérios paraescolha dos Gerentes doFundo.- Estabelecimento de inter-face entre o Fundo/DF e oFundo Nacional.- Elaboração do Plano deAplicação do Fundo DCA/DF.- Elaboração de um planode divulgação do FundoDCA/DF.- Organização do fluxo defuncionamento do FundoDCA/ DF.- Capacitação das entida-des com vista à utilizaçãode recursos do Fundo.- Análise e cruzamento dosÓrgãos Governamentaisque repassam recursospara Entidades Não-Gover-namentais de atendimentoà criança e ao adolescente.- Definição das entidadesaptas por este Conselho areceberem recursos do Fun-do DCA/DF.

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Estratégia de ação Subações JustificativaResultados

DIRETRIZ: DAR VISIBILIDADE ÀS AÇÕES DO CONSELHO DCA/DF

- Promover intercâmbiocom órgãos e agentesdireta ou indiretamente en-volvidos com a causa dacriança e do adolescenteem nível nacional e localpara possibilitar ao CDCAorganizar sua atuaçãopolítica.

- Articulação com a Vara daInfância e da Juventude, Mi-nistério Público, para dis-cussão de estratégias deação conjunta.- Articulação com o Conan-da e Conselhos Estaduaispara atuação conjunta emtorno das questões de âm-bito nacional.- Articulação com o Conan-da para participar como ob-servador das reuniões ple-nárias.- Articulação com os Con-selhos setoriais sobre inter-face de atuação.- Articulação com a impren-sa, empresariado, clubes deserviço, sindicatos, movi-mentos populares.- Articulação com os Con-selhos Tutelares para ocumprimento eficaz dasfunções do Conselho deDireito.- Articulação com a Delega-cia da Infância e da Juven-tude.- Participação em eventosdo interesse da criança e doadolescente.- Elaboração de um planode Comunicação Social vol-tado para a realização dasações do Conselho e de te-mas inerentes aos direitosda criança e do adolescen-te junto à opinião pública esegmentos específicos.

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O Estado empresário. O fim de uma era

JORGE RUBEM FOLENA DE OLIVEIRA

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Antecedentes históricos – In-tervenção do Estado na ordem econômica. 3. Daatuação participativa do Estado na ordem econô-mica – Atividade econômica empresarial. 4. Asempresas do Estado – Natureza jurídica. 5. Da in-tervenção mínima – Privatizações. 6. Conclusão.

Jorge Rubem Folena de Oliveira é Mestrandoem Direito na UFRJ e Advogado. OBS: NOTAS AO FINAL DO TEXTO.

1.IntroduçãoO Estado, formado pela vontade coletiva

organizada, sempre procurou colocar-se, nasdiversas fases históricas, conforme os interes-ses e anseios da sociedade1.

É nesse sentido que a ação estatal na ativi-dade econômica se formou ao longo do tempo.Ora o Estado é convocado para participar dodesenvolvimento da atividade econômica, oraé destituído do exercício de tal atividade, sob aalegação de que não cabe a ele interferir emassuntos dessa natureza.

É importante destacar que o papel de inter-ventor assumido pelo Estado foi fundamentalno desenvolvimento da ordem econômica e dasociedade organizada, principalmente nos pe-ríodos de crise enfrentados pelo capitalismo.

Portanto, o papel do Estado é o de provedordo interesse geral, devendo ser direcionado àvontade coletiva, seja na ordem política/insti-tucional ou na ordem econômica. Assim, o Es-tado agiu, quando convocado, para atuar comoempresário na ordem econômica.

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Revista de Informação Legislativa298

2. Antecedentes históricosIntervenção do Estado na ordem econômica

Na Idade Moderna, com a formação dosEstados Monárquicos, deu-se o fortalecimentodo poder absolutista dos reis e o advento dosEstados Nacionais. Nesse período, houve umaintervenção estatal na economia, por meio dapolítica econômica do Mercantilismo.

O Mercantilismo tinha como meta princi-pal o fortalecimento econômico do Estado2. Ointeresse da nascente burguesia européia, na-quele momento, era ter um Estado forte paraproteger suas práticas comerciais com as ar-mas e barreiras alfandegárias, que facilitassemas exportações de produtos, contribuindo paraa acumulação de metais preciosos e a manu-tenção da produção de alimentos dentro do ter-ritório nacional. Assim, a política mercantilis-ta estava fundada no metalismo, na balançacomercial favorável e no protecionismo alfan-degário.

O Estado Absolutista, durante os séculosXV e XVI, intervinha na economia como pa-trocinador do desenvolvimento comercial3.Nesse contexto histórico, constatou-se a parti-cipação das primeiras empresas estatais no pro-cesso de colonização em curso, como foi sali-entado por Caio Tácito:

“a empresa constituída pelo Estado vi-sando os fins econômicos tem como an-tecedentes históricos as companhias ho-landesas e portuguesas que, nos séculosXV e XVI, corporificavam investimen-tos da Coroa destinados a alcançar, atra-vés de conquistas dos mares e terras des-conhecidas, novas fontes de suprimentospara os mercados europeus mediante in-tercâmbio e importação de mercadorias”4.

Com a Idade Contemporânea, ocorreu aqueda do poder dos monarcas e o desenvolvi-mento dos ideais liberais burgueses, que tinhamcomo princípio maior sob o aspecto econômi-co: “a não-intervenção do Estado na econo-mia”5.

O movimento liberal burguês dos séculosXVII e XVIII tinha por meta, sob o aspectopolítico, ou sob o aspecto econômico, o míni-mo de ingerência estatal na liberdade dos indi-víduos6 ou na atividade econômica.

A doutrina econômica liberal tinha emAdam Smith7 o seu maior apologista. Sua prin-cipal pregação era a de que o mercado se regu-laria naturalmente pelas leis da oferta e da

procura, o que ficou consignado como a cha-mada “mão invisível”8. A partir desse posici-onamento, o papel designado ao Estado, naordem econômica, foi o de garantir a total li-berdade de mercado.

Com efeito, João Bosco Leopoldino da Fon-seca9 comenta que os princípios liberais do sé-culo XVII estavam apoiados pelas doutrinasjusnaturalistas pregadas durante aquele perío-do, in verbis:

“A teoria mercantilista é suplantadapela idéia do liberalismo econômico, quese assenta nos princípios do liberalismofilosófico e político trazidos principal-mente pelas doutrinas jusnaturalistas doséculo XVII, em que se exaltam os prin-cípios de liberdade, de valorização doindivíduo, de revolta contra os privilé-gios e contra o poder absoluto dos reis.O liberalismo pode assumir variadas for-mas, mas o que se sucedeu ao mercanti-lismo caracterizou-se pela defesa doprincípio segundo o qual o desenvolvi-mento econômico deveria fazer-se emconformidade com as leis naturais domercado, sem os grilhões anteriormentepostos pelo Estado. Neste ponto se so-bressaia a doutrina de Adam Smith.”(nossos grifos)

Portanto, com o liberalismo econômico, fi-cou inexistente a participação da ação estatalna ordem econômica, seja sob a forma fiscali-zadora/reguladora, ou por meio da forma par-ticipativa/empresarial.

Com a virada do século XX10, constatou-se, nitidamente, que a plena liberdade de co-mércio, com a livre regulamentação da econo-mia por meio da “mão invisível” defendidapelos economistas liberais dos séculos XVII eXVIII, não podia mais prosperar, pois, comoassevera Alberto Venâncio Filho11,

“... durante todo o transcorrer do séculoXIX, importantes transformações econô-micas e sociais vão profundamente alte-rar o quadro em que se inserira esse pen-samento político-jurídico. As implica-ções cada vez mais intensas das desco-bertas científicas e de suas implicações,que se processavam com maior celerida-de, a partir da Revolução Industrial, oaparecimento das gigantescas empresasfabris, trazendo, em conseqüência, a for-mação de grandes aglomerados urbanos,representavam mudanças profundas na

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 299

vida social e política dos países, acarre-tando alterações acentuadas nas relaçõessociais, o que exigiu que paulatinamen-te, sem nenhuma posição doutrináriapreestabelecida, o Estado fosse, cada vezmais, abarcando o maior número de atri-buições, intervindo mais assiduamentena vida econômica e social”. (nossosgrifos)

O capitalismo, até então vigente, passou poruma profunda crise, originada pela concentra-ção econômica decorrente da formação de gru-pos empresariais provocada pelo avanço daRevolução Industrial, dando fim à eliminaçãoda livre concorrência. Desse modo, não se po-dia mais deixar as relações econômicas entre-gues a uma regulação natural do mercado. Eravital, a partir daí, que a “mão invisível” deAdam Smith desse lugar à “mão visível” doEstado12.

A propósito, João Bosco Leopoldino daFonseca13 salienta que

“o fenômeno da concentração empresa-rial foi, segundo Farjat, o elemento de-cisivo para o surgimento do Direito Eco-nômico, pois que, a partir de então, sur-giu a necessidade de o Estado intervir(através de normas) no mercado, nãopara impedir a concentração de empre-sas, como falsamente se entende, maspara garantir efetivamente a liberdadede mercado, com a proteção das classesque poderiam vir a ser desfavorecidascom a nova feição das empresas”14

.Nesse sentido é que Keynes defendia a in-

tervenção do Estado na economia, de modo asuperar a crise vivenciada, àquela época, pelocapitalismo, passando o Poder Público a regu-lar as políticas econômicas a serem desenvol-vidas na sociedade:

“O Estado deverá exercer uma influ-ência orientadora sobre a propensão aconsumir, em parte por meio da fixaçãoda taxa de juros e, em parte, talvez, re-correndo a outras medidas. Por outrolado, é improvável que a influência dapolítica bancária sobre as taxas de jurosseja suficiente por si mesma para deter-minar um volume dos investimentos óti-mos. Eu entendo, portanto, que uma so-cialização algo ampla dos investimentosserá o único meio de assegurar uma si-tuação aproximada de pleno emprego,embora isso não implique a necessida-

de de excluir ajustes e fórmulas de todaespécie que permitam ao Estado coope-rar com a iniciativa privada”15. (nossosgrifos)

Assim, como alude Eros Roberto Grau16,comentando acerca da intervenção do Estadona ordem econômica após a virada do séculoXIX,

“deixa o Estado, desde então, de intervirna ordem social exclusivamente comoprodutor do direito e provedor de segu-rança, passando a desenvolver novas for-mas de atuação, para o que faz uso dodireito positivo como instrumento de suaimplementação de políticas públicas –não atua apenas como terceiro-árbitro,mas também como terceiro-ordenador”.

Porém, a intervenção estatal na economia,a partir daí, não limitou-se apenas na regula-mentação da ordem econômica, mas tambémna participação estatal em setores de prestaçãode serviços e produção de bens, até então pró-prios da iniciativa privada17. O Estado passa aagir como empreendedor, tornando-se um ver-dadeiro empresário18.

É justamente no período pós-Guerra que aação empresarial estatal ganhou, em todo mun-do, fortes luzes, persistindo, mesmo com mui-tas críticas, até hoje19.

3. Da atuação participativa do Estado naordem econômica – Atividade econômica

empresarialPrincipalmente após a Segunda Guerra

Mundial, a forma encontrada para vencer acrise enfrentada pelo capitalismo foi contar como auxílio do Estado na intervenção da ordemeconômica.

A intervenção estatal no domínio econômi-co ocorreu basicamente por meio (i) da regula-mentação, planejamento e controle da econo-mia de mercado e (ii) da participação direta naatividade empresarial.

No que se refere à participação direta doEstado20 na ordem econômica, ponto que nosinteressa quanto ao tema destacado (EstadoEmpresário), cumpre realçar que a ação esta-tal passou a contemplar tanto os serviços pú-blicos propriamente ditos, como também, eprincipalmente a partir daí, os serviços peculi-ares da atividade econômica empresarial: em-preendimentos comerciais e industriais.

Nesse contexto, desenvolve-se o “Estado do

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Revista de Informação Legislativa300

Bem-Estar Social” (welfare state) ou “EstadoProvidência”, em que o Poder Público passoua intervir, explorando a atividade econômicacom o fito de auxiliar a iniciativa privada emcrise21. Assim, o Estado passou a executar ser-viços públicos de natureza comercial ou indus-trial, além daqueles próprios da atividade esta-tal22.

Para intervir em atividades comerciais eindustriais, típicas da iniciativa privada, o Es-tado constituiu empresas públicas com tais fi-nalidades, que, segundo alude Pedro Paulo deAlmeida Dutra23, tinham como fator de seussurgimentos aspectos de natureza econômica,política e social24.

Então, o Estado passa a praticar atos decomércio e indústria25 ao lado dos particulares,concorrendo normalmente com a iniciativa pri-vada no desenvolvimento da atividade econô-mica por meio de suas empresas. Tal empreen-dimento econômico pelo Estado, hodiernamen-te, é questionado, chegando alguns a suscita-rem até a prática de concorrência desleal, hajavista, segundo expõem os seus apologistas, asvantagens e benefícios de que dispõem as em-presas públicas na disputa de mercados em re-lação às empresas particulares26.

É imperioso ressaltar que as Constituiçõesbrasileiras, em respeito à ideologia capitalista/liberal nelas adotada, sempre deram preferên-cia para exploração da atividade econômica aosparticulares (iniciativa privada) e, secundaria-mente, em caráter de exceção, ao Estado. As-sim, historia José Cretella Júnior27, in verbis:

“Tem sido, aliás, observado pelo le-gislador constituinte brasileiro, sem ex-ceção, o princípio que coloca em primei-ro lugar o particular, no tocante a explo-ração de atividade econômica, permiti-da a intervenção do Estado nesta áreaquando inoperante ou ineficiente a ini-ciativa privada, variando, tão-só, deConstituição para Constituição, os fun-damentos invocados para legitimar a in-tervenção do Estado no domínio econô-mico, como ocorreu na vigência daConstituição de 1934, art. 116 (‘pormotivo de interesse público e autoriza-ção em lei especial, a União poderá mo-nopolizar determinada indústria ou ati-vidade econômica’), na Constituição de1937, art. 135 (‘a intervenção do Estadono domínio econômico só se legitimapara suprir as deficiências da iniciativa

individual’), na Constituição de 1946,art. 146 (‘a União poderá, mediante leiespecial, intervir no domínio econômi-co e monopolizar determinada indústriaou atividade. A intervenção terá por baseo interesse público e por limites os direi-tos fundamentais nesta Constituição’), naConstituição de 1967, art. 157, e na ECnº 1 de 1969, art. 163 ( ‘são facultados aintervenção no domínio econômico emonopólio de determinada indústria ouatividade, mediante lei federal, quandoindispensável por motivo de segurançanacional ou para organizar setor que nãopossa ser desenvolvido com eficácia noregime de competição de liberdade ini-ciativa’). E, ainda, em 1969, art. 170:‘apenas em caráter suplementar da ini-ciativa privada o Estado organizará eexplorará a atividade econômica’ (art.137, parágrafo único).

Em 1988, a colocação é a mesma,justificando-se a exploração direta deatividade econômica pelo Estado somen-te quando necessária aos imperativos dasegurança nacional ou a relevante inte-resse coletivo, conforme definidos emlei.”

Portanto, embora a ação estatal na ativida-de econômica tenha se massificado durante esteséculo, verifica-se que esta conduta interven-cionista, pelo menos em nosso país, sempre foisecundária28, por imperativo constitucional, emtotal respeito à ordem econômica liberal/capi-talista. Sendo assim, nota-se que a atividadeestatal na economia é de natureza auxiliar àiniciativa privada, o que, de certa forma, preo-cupa, podendo tornar-se prejudical ao Eráriopúblico em determinadas situações em que oEstado é convocado somente para solucionarmás administrações de empresários sem qual-quer compromisso social29. Geralmente depoisde saneadas, o Estado retorna essas empresasao controle da iniciativa privada.

4. As empresas do Estado –Natureza jurídica

Para o Estado realizar seus objetivos inter-vencionistas na atividade econômica, no cam-po da Administração Pública, adotou a políti-ca de descentralização administrativa30 quan-to a prestação de serviços públicos ou a reali-zação de atividade econômica empresarial.

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Brasília a. 34 n. 134 abr./jun. 1997 301

No que se refere à realização de atividadeeconômica empresarial, o Estado brasileirocriou duas modalidades de entes parestatais:1) a empresa pública31 e 2) a sociedade de eco-nomia mista32; ambas de natureza jurídica dedireito privado, porém submetidas, no que foratinente à Administração Pública Indireta, àsregras de direito público33.

Com efeito, o art. 5º do Decreto-Lei nº 200/67 define tanto a empresa pública, quanto asociedade de economia mista, in verbis:

“Art. 5º. Para os fins desta lei, consi-dera-se:

(...)II. Empresa pública – a entidade do-

tada de personalidade jurídica de direitoprivado, com patrimônio próprio e capi-tal exclusivo da União, criada por lei paraexploração de atividade econômica queo Governo seja levado a exercer por for-ça de contigência administrativa, poden-do revestir-se de qualquer das formasadmitidas em direito.

III. Sociedade de Economia Mista –a entidade dotada de personalidade jurí-dica de direito privado, criada por leipara a exploração de atividade econômi-ca, sob a forma de sociedade anônima,cujas ações com direito a voto perten-çam em sua maioria à União ou a enti-dade da Administração Indireta.”

Das definições legais em tela, percebe-seque a distinção entre a empresa pública e a so-ciedade de economia mista reside no seguinte:

1) empresa pública – o capital socialé exclusivamente do Poder Público34,adotando-se esse tipo de parestatal qual-quer forma ou modalidade de sociedadecomercial existente no direito pátrio;

2) sociedade de economia mista – ocapital social é formado pelo Poder Pú-blico e pelo particular, sendo que somentepodem ser constituídas por meio da mo-dalidade de sociedades anônimas, inclu-sive estando submetidas aos imperativosda Lei nº 6.604/76 (Lei das S/A)35.

Tais tipos de empresas, a propósito, têm queser constituídas por leis específicas36, onde de-verão estar contemplados seus fins ou objetossociais a serem alcançados37. É justamentesobre o objeto social ou finalidade prevista nalei criadora que reside a atividade econômicade natureza comercial ou industrial a ser de-

sempenhada por essas paraestatais.Realça-se que sob o objeto social das em-

presas públicas e das sociedades de economiamista incidirão as normas de direito privadoreferidas no § 1º do art. 173 da Constituiçãode 198838. Fora disso, elas estarão submetidasaos princípios obrigatórios da AdministraçãoPública, por tratarem-se de entes integrantesda Adminstração Pública Indireta, conforme ostermos do caput do art. 37 da Constituição de1988.

Por oportuno, é imperioso destacar que asparaestatais em questão, no direito brasileiro,atuam (i) em atividades “monopolizadas” peloEstado ou, então, (ii) nas atividades denomi-nadas como “necessárias”, isto é, quando exi-gir a segurança nacional ou interesse coletivo,como previsto no caput do art. 173 da Consti-tuição Federal de 198839.

No caso dos monopólios, o Poder Público,autorizado constitucionalmente, não permite àiniciativa privada explorar tais atividadeseconômicas ao lado das paraestatais, como ex-põe José Afonso da Silva40:

“não se trata aqui de participação suple-mentar ou subsidiária da iniciativa pri-vada. Se ocorrerem aquelas exigências,será legítima a participação estatal dire-ta na atividade econômica, independen-temente de cogitar-se de preferência oude suficiência da iniciativa privada”.

Na exploração das atividades econômicasdenominadas “necessárias”, o Poder Público,legitimado nas situações contempladas no ca-put do art. 173 da Constituição Federal de 1988(segurança nacional ou interesse coletivo), par-ticipa, ao lado dos particulares, no desenvolvi-mento das atividades para as quais as paraes-tatais foram criadas.

É curial esclarecer que o Supremo Tribu-nal Federal41 já posicionou-se quanto ao ques-tionamento da legitimidade de o Estado conti-nuar, após a nova ordem constitucional de 1988,intervindo na atividade econômica, além dashipóteses autorizativas expressas no caput doart. 173 da Constituição Federal de 198842.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidadereferida, o Supremo Tribunal Federal manifes-tou-se, não só acerca dos limites de interven-ção do Estado na ordem econômica, como tam-bém no direcionamento para o Poder Públicotransferir as empresas sob seu controle à inici-ativa privada, por meio de processos de deses-tatização, como pode-se conferir no voto ven-

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Revista de Informação Legislativa302

cedor do relator da ADIn 2.341 - RJ43, Minis-tro Néri da Silveira, in verbis:

“...Compreendo que a questão ora pro-

posta cabe ser visualizada em dois pla-nos distintos: o primeiro, referente à in-viabilidade de privatização das socieda-des de economia mista; e, em segundolugar, se poderia a Constituição estabe-lecer regra geral a ter vigência indefini-da, coarctando os juízos de conveniên-cia e oportunidade dos poderes legislati-vo e executivo, no que concerne à priva-tização de entidades estaduais dessa na-tureza.

(...)Não é possivel deixar de interpretar

o sistema da Constituição sobre a maté-ria em exame em conformidade com anatureza das atividades econômicas e,assim, com o dinamismo que lhes é ine-rente e a possibilidade de aconselharperiódicas mudanças nas formas de suaexecução, notadamente quando revelamintervenção do Estado. O juízo de con-veniência, quanto a permanecer o Esta-do na exploração de certa atividade eco-nômica, com a utilização da forma daempresa pública ou da sociedade de eco-nomia mista, há de concretizar-se emcada tempo e à vista do relevante inte-resse coletivo ou de imperativos da se-gurança nacional. Não será, destarte,admissível no sistema da Constituição,máxime, à vista de seus artigos 173 e174, que norma de constituição estadualproíba, no Estado-Membro, possa estereordenar, no âmbito da própria compe-tência, sua posição na economia, trans-ferindo à iniciativa privada atividadesindevidas ou desnecessariamente explo-radas pelo setor público .” (nossos grifos)

Verifica-se, portanto, nesse momento emque a própria ação empresarial estatal foi ques-tionada constitucionalmente, que o novo pa-pel a ser desempenhado pelo Estado caberásomente sobre as atividades consideradas es-senciais, como de segurança nacional ou inte-resse coletivo definido em lei. Mais do que isto,deverá, segundo a concepção que ora se esta-belece, ser entregue à iniciativa privada, pormeio dos processos denominados de privatiza-ção ou desestatização, em curso em quase todoo mundo, influenciado pela política neoliberal

e pelo processo de globalização em franca evo-lução.

5. Da intervenção estatal mínimaPrivatizações

Curiosamente, no momento atual, pareceque estamos retornando, ou melhor, vivenci-ando as políticas liberais dos séculos XVII eXVIII44, haja vista pregar-se, cada vez mais, apresença de um “Estado mínimo”45 na ordemeconômica.

Com efeito, como adverte Eros RobertoGrau46, “a crise do nosso tempo é, em sua ori-gem, não da intervenção estatal na e sobre aeconomia, porém crise do Estado”47, pois estenão consegue mais suportar as funções que tevede assumir durante o período de crise enfrentadopelos diversos setores econômicos, principalmen-te durante o início e meio deste século48.

A figura do Estado foi, de certa forma, to-talmente desconfigurada, com ele absorvendofunções além daquelas que lhe são próprias. Adecorrência natural de tal fator, no geral, le-vou à baixa eficiência apresentada pelo PoderPúblico nas áreas onde vem atuando49.

A organização estatal, ora totalmente de-sestruturada, não estava conseguindo acompa-nhar a evolução da atual sociedade neoliberalbaseada na primazia da informação e do co-nhecimento científico. Como salientado porZuleta Puceiro50:

“essa mudança, por outro lado, represen-ta a transição para uma economia globalde acirrada concorrência e de incremen-to de bens e serviços, em ritmos inclusi-ve muito superiores ao crescimento dapopulação mundial”.

Assim, nesse novo contexto histórico, polí-tico, social e econômico é que se vem debaten-do o papel a ser desenvolvido pelo Estado, quenão aquele assumido durante o Estado de “Bem-Estar” ou “Providência”51.

Dentro dessa linha do pensamento neolibe-ral é que estão sendo propostos os processos deprivatizações em todo o mundo52, inclusive noBrasil53, cuja regulamentação legal foi previs-ta inicialmente pela Lei Federal nº 8.031/9054,encontrando-se em fase de franca evolução55;sendo que, como anota Wilson de Souza Cam-pos Batalha e Silvia Maria Batalha RodriguesNeto56,

“a privatização é apregoada como solu-ção para a fracassada iniciativa oficial

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de interferir na economia, em setoresque, de melhor maneira, podem ser me-lhor exercidos pelas empresas privadas”.

A propósito, é importante registrar, comoexplica Elena Landau57, em apresentação detrabalho desenvolvido para demonstrar a ava-liação dos resultados e perspectivas da privati-zação ocorrida no setor siderúrgico, a finalida-de alcançada pelas privatizações que atingiueste setor industrial da economia brasileira, inverbis:

“Estes resultados por si só demons-tram o impacto positivo da privatizaçãosobre o setor, permitindo um aumentogeneralizado em sua eficiência. Para al-gumas empresas, a passagem para asmãos da iniciativa privada apenas ala-vancou as potencialidades de siderúrgi-cas já lucrativas, mas, para a maioria dasempresas do setor, a privatização provo-cou uma reviravolta completa em suasadministrações e, em conseqüência, emseus resultados econômicos e financei-ros. Algumas empresas obtêm lucro lí-quido pela primeira vez em suas históri-as. A gestão privada empreendeu pro-fundas mudanças na estrutura das side-rúrgicas brasileiras.

(...)Os resultados não poderiam ser mais

estimulantes. Os aumentos da produti-vidade e da lucratividade confirmaramo que já se havia observado nas demaisexperiências internacionais de privatiza-ção: um significativo ganho de eficiên-cia, produto de diversas razões apresen-tadas em detalhe no trabalho dos con-sultores. Entretanto, o programa de pri-vatização no Brasil não tem no aumen-to da eficiência sua única motivação. Aprivatização é um elemento fundamen-tal da Reforma do Estado, devendo con-tribuir tanto para a redução do endivi-damento do setor público quanto para aconcessão do Estado naquelas áreasonde sua presença é essencial.” (nossosgrifos)

Nesse passo, como discorre Marcos Jurue-na Villela Souto,58

“de fato a alienação das empresas esta-tais conseguiu, no campo financeiro, aum só tempo, um tríplice benefício: ces-sava a sangria nos cofres públicos parasanear atividades deficitárias; admitia

recursos oriundos da alienação e legiti-mava, na iniciativa privada, um novocontribuinte de tributos relativamente àsatividades da empresa privatizada”59.

O processo de privatização ora em curso éimportante nesta fase de reestruturação do Es-tado, devendo o Poder Público dedicar-se commais intensidade e afinco àquelas atividadesconsideradas essenciais para o interesse da co-letividade por ele tutelada.

Não restam dúvidas, como acima anuncia-do, que a iniciativa privada está melhor prepa-rada para atingir o lucro no exercício de suasatividades empresariais, como está sendo cons-tatado nas empresas privatizadas; isso porqueeste é o objetivo do setor empresarial. Todavia,o Estado não tem tal objetivo em seus planos;tanto é verdade que a própria atividade de si-derurgia administrada pelo Estado esteve a ser-viço da iniciativa privada, fornecendo suasmercadorias a preços convidativos.

6. ConclusãoO Estado, que, no início deste século, foi

chamado para socorrer a iniciativa privada emcrise, agora está sendo submetido, em decor-rência de uma política econômica neoliberal, adevolver o exercício das atividades econômi-cas, desenvolvidas por meio de suas empresasestatais, àqueles mesmos que anteriormente lhetransferiram tais atividades empresariais emconseqüência de má e inoperante administra-ção no desenvolvimento dos seus negócios.

Realmente, o Estado assumiu várias ativi-dades econômicas, chegando, em determiadosmomentos, a extrapolar seu campo de açãoempresarial. Porém, o Poder Público agiu so-bre a atividade econômica, criando empresasou incorporando outras da iniciativa privada,combalidas àquela época, porque foi convoca-do para tanto. Assim, colocou em suas mãosessas atividades empresariais com o fito de so-lucionar, ou tentar amenizar, a crise enfrenta-da pelos mesmos que hoje defendem – como so-lução para os problemas políticos, econômicos esociais vivenciados na socieade contemporâneadeste final de século – que ele não deve maisatuar na ordem econômica como empresário.

No entanto, vale registrar, é curiosa a ila-ção que se pode retirar do discurso neoliberalora vigente quanto às empresas do Estado, issoporque procura-se patrocionar idéias no senti-do de que todas as atividades econômicas de-

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vem, sem exceção, ser repassadas aos particu-lares, pois o Poder Público não tem qualquervocação e preparo para os seus exercícios. En-tre as atividades que desejam privatizar, na li-nha desse discurso, encontram-se aquelas quedizem respeito às atividades60 relativas à sobe-rania nacional61, consagrada ainda62 em nossaCarta Política vigente.

Concluímos, assim, que o Estado realmen-te não pode agir de forma tão ampla no exercí-cio da atividade econômica empresarial comovinha até então procedendo, limitando-se ape-nas ao desenvolvimento das atividades econô-micas atinentes à segurança nacional e ao rele-vante interesse coletivo.

Sendo assim, o Estado deve continuar em-presário somente naquilo que for do interesse63

da coletividade que o constituiu. Por outro lado,o Poder Público deve ampliar cada vez mais asua função normatizadora e fiscalizadora, demodo também a conciliar os interesses da co-letivadade com o poder econômico e o desen-volvimento social.

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A propósito, André-Noel Roth (O Direito emcrise: Fim do Estado moderno. In : FARIA, JoséEduardo (Org.). Direito e globalização econômica: implicações e perspectivas. São Paulo : Malhei-ros, 1996. p. 17) assevera que o liberalismo “... es-tava baseado sobre o princípio da limitação da in-tervenção, da liberdade do indivíduo e da crença nasuperioridade da regulação `espontânea` (Hayek) dasociedade. ”

6 Cf. ROUSSEU, Jean-Jacques. O contratosocial.Tradução de Rolando Roque da Silva. SãoPaulo : Cultrix, 1995.

7 Adam Smith (As riquezas das nações. Gul-benkian, 1993. Livr. 4, cap. 7, p. 199) manifestavaque “... sem qualquer intervenção da lei, os interes-ses privados e as paixões dos homens levam-nos,naturalmente, a dividirem e a distribuírem o capitalde qualquer sociedade entre os diferentes empregoscom ele realizados, tanto quanto possível, na pro-porção mais vantajosa para o interesse de toda asociedade.

As várias regulamentações do sistema mercan-til vêm, necessariamente, perturbar mais ou menosesta distribuição natural e muito vantajosa do ca-pital.” (nossos grifos)

8 O movimento liberal burguês dos séculos XVIIe XVIII tinha por meta, seja sob o aspecto político,seja sob o aspecto econômico, como acima manifes-tado por meio do pensamento de Adam Smith, omínimo de ingerência estatal na liberdade dos indi-víduos ou na atividade econômica.

9 FONSECA, João Leopoldino da. Direito Eco-nômico. Rio de Janeiro : Forense, 1995. p. 24.

10 Bastos ( op. cit., p. 4) cita que “o próprio sé-culo XIX assistiu aos primeiros golpes desfechadoscontra essa doutrina absenteísta do Estado. O mani-festo comunista de Karl Max alça-se como a peçateórica que vai embasar o movimento obreiro, quegradativamente ganha corpo no correr daquela cen-túria, embora seja certo que as conseqüências práti-cas daquela ideologia só se materializem plenamenteno século XX com a Revolução Russa.”

11 Intervenção do Estado no domínio econômico.Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 1968. p.9-10.

12 Cf. Eros Roberto Grau, em artigo intitulado Odiscurso neoliberal e a teoria da regulação, em Odesenvolvimento econômico e intervenção do Estadona ordem constitucional. Porto Alegre : S. A. Fabris,1995. p. 61. Estudos Jurídcos em Homenagem ao Pro-fessor Washington Puluso Albino de Souza.

13 op. cit., p. 177.14 Roth (op. cit., p. 17) assevera que: “... des-

Notas1 Dalmo de Abreu Dallari : (Elementos de teoria

geral do Estado. 17. ed. atual e ampl. São Paulo :Saraiva, 1993. p. 89), ao comentar os fins subjeti-vos do Estado, aduz “... que os fins do Estado deve-rão ser a síntese dos fins individuais. Isso é que ex-plica a existência das instituições do Estado e a di-ferença de concepção a respeito das mesmas insti-tuições, de época para época.”

2 Como salientado por Aldo Maffey ( in : BOB-BIO, Norberto. Dicionário de Política. 6. ed atual eampl. Brasília : Ed. UnB, 1994. v. 2, p. 746), o obje-tivo filosófico mais importante visado pelo Mercanti-lismo estava na superação de um dos pressupostos deMaquiavel, que era: (sic) “não só não é necessáriopara a prosperidade do Estado que ele seja rico e ossúditos, ao contrário, pobres, como é justamente a ri-queza dos súditos que faz rico e poderoso o Estado.”

3 Destaca-se que o valor supremo objetivado,durante a vigência do Estado Monárquico, não esta-va no fortalecimeto da defesa estatal, mas, sim, nacumulação de riquezas e prosperidades almejadaspelos comerciantes daquela época, sendo o fortale-cimento do poder absoluto mera circunstância paraatingir os fins políticos e econômicos da nascenteburguesia da Idade Moderna.

4 TÁCITO ,Caio. Regime jurídico das empresasestatais. RDA, n. 195, p. 1-8.

5 Nesse sentido, Celso Ribeiro Bastos (Comen-tários à Constituição do Brasil : promulgada em 5

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truição rápida das sociedades tradicionais, familia-res e territoriais, obrigou o Estado a intervir cadavez mais, desde o último quarto do século XIX e,sobretudo, desde a Primeira Guerra Mundial, noscampos econômico e social. Esta é a grande trans-formação` descrita por Polanyi: a redução da capa-cidade auto-reguladora da sociedade civil necessi-tou da intervenção do estado na regulação da ques-tão social (seguros e direito do trabalho ....) e daeconomia (política monetária, proteção contra a com-petição ...)”.

15 KEYNES ,John Maynard. A teoria geral doemprego, do juro e da moeda. São Paulo : AbrilCultural, 1983. p. 256.( Os Pensadores).

16 op. cit., p. 461.17 Leopoldo Braga (in : SANTOS, Carvalho.

Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro.Borsoi, v. 20, p. 105-106), comentando acerca daempresa pública, manifesta que “a intervenção doEstado na ordem econômica não se limitou somenteà regulamentação da economia, mas, também, à pró-pria ação empresarial do setor privado. Inicialmen-te em setores vitais, tais como enérgia elétrica, ferro-vias, telefonia, abastecimento e distribuição de água,e posteriormente a setores não-vitais, como banco,fábrica de tecidos, onde a ação estatal destacou-secomo auxiliar da iniciativa privada em crise.”

18 Como expõe Marcos Juruena Villela Souto(Aspectos jurídicos do planejamento econômico. Riode Janeiro : Lumen Juris, 1996. p. 76), as empresasestatais “... só ganharam força com o surgimento doWelfare State, onde se legitimou a interferência es-tatal na atividade econômica”.

19 Um dos grandes debates na sociedade atual,em todo o mundo, tendo em vista as idéias neolibe-rais ora vigentes, gira em torno da redução da parti-cipação do Estado na atividade empresarial, com-petindo diretamente com a iniciativa privada. É nessecontexto que se instalam os processos de privatiza-ção ou desestatização.

20 J. Simões Patrício (Curso de Direito Econô-mico. 2. ed. Lisboa : Academia da Faculdade deDireito de Lisboa, 1981. p. 327 ), Manuel AfonsoVaz (Direito Econômico: a ordem econômica por-tuguesa. 2. ed. Coimbra : Coimbra Ed. 1990. p. 126)e Luís S. Cabral de Moncada (Direito Econômico.Coimbra : Coimbra Ed., 1985. p. 183), denominamque a ação estatal na economia como empresário édireta e indireta a ação estatal como regulamenta-dor. Sendo assim, neste trabalho, seguindo orienta-ção dos professores portugueses mencionados, va-leremo-nos da expressão intervenção direta para nosreferirmos à ação estatal como empresário, ao invésde outras, tais como intervenção participativa, uti-lizada por José Afonso da Silva (Curso de DireitoConstitucional Positivo. São Paulo : Malheiros, 10.ed. 1995. p. 736 ).

21 Washington Peluso Albino de Souza (Liçõespreliminares de Direito Econômico. 3. ed. São Paulo: L Tr., 1994. p. 285), comentando acerca das em-

presas públicas, manifestou que “o Estado passou aocupar as áreas pelas quais a iniciativa privada nãose mostrou suficientemente capacitada, e que a es-trangeira, quando o fizera, não ultrapassava os li-mites e as dimensões que lhe assegurasse lucroscertos e imediatos, quando de curto período de ma-turação”.

Braga (op. cit., p. 105-106) aduz que, “... namedida em que os empreendimentos não interessa-vam à iniciativa privada, ou que esta praticava atosprejudiciais à população, o Estado passou a ocuparessas áreas, até chegar à empresa pública, com todoo capital por ela realizado e sua oritentação total nosentido de executar a política econômica”.

22 José Cretella Júnior (Comentários à Consti-tuição de 1988. Forense, 1993. p. 4.001), comen-tando a evolução da ação estatal na atividade eco-nômica, expõe que, “num primeiro momento, osserviços públicos e privados eram partilhados entreo Estado, que desempenhava, exclusivamente, osprimeiros, e o particular, que exercia, tão-só, os ser-viços privados e, entre estes, os de nauteza comer-cial e industrial.

Num segundo momento, o Estado partilha osserviços públicos entre os seus próprios órgãos epessoas, transferindo para as autarquias aquilo quea Administração Direta não conseguia gerir.

Num terceiro momento, o Estado recorre aosparticulares e outorga os serviços públicos median-te concessões e permissões, transferindo-os a em-presas com personalidade de direito privado que,por sua conta e risco, assumem a prestação daque-les serviços.

Restam os serviços privados ou atividades pri-vadas, comerciais e industriais, numa primeira fase,a cargo, exclusivamente, da esfera particular comdesempenho por parte de pessoas físicas ou jurídi-cas de direito privado.

Num primeiro momento também, em sentidoinverso, os serviços privados de economia, comér-cio e indústria, desempenhados pelos particulares,passam a ser exercidos pelo Estado, que se tornasócio de empresas privadas, adquirindo ações. Só-cio minoritário a princípio, torna-se sócio majoritá-rio a final, participando da nova entidade – a socie-dade de economia mista.

Num segundo momento, o Estado cria entida-des, ex nihil, ou a partir de antigas sociedades deeconomia mista, sobrepujando-as, dando origem aentidades dotadas de personalidade jurídica de di-reito privado, com patrimônio e capital exclusiva-mente estatal, para exploração de atividades econô-micas que o governo seja impelido a exercer porforça de contingência ou de conveniência adminis-trativa, podendo revestir-se de qualquer das formasadmitidas em direito – eis a empresa pública.”

23 Controle de empresas estatais : uma propostade mudança. São Paulo : Saraiva, 1991. p. 28-29.

24 O ilustre autor alude como fatores justificati-vos da intervenção do Estado na atividade econômi-ca empresarial os seguintes : de natureza econômi-

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pode igualmente desempenhar atividades públicase, ao mesmo tempo, os dois tipos de atividades, pú-blica e privada.

Cf. tb. NUKAI, Toshio. Direito Administrativoe empresas do Estado. Rio de Janeiro : Forense,1984.

32 Cf. nosso artigo, escrito em conjuto com Pe-dro A. Batista Martins, da Possibilidade Jurídica daAção Renovatória de Locação de Imóveis de Pro-priedade de Sociedade de Economia Mista (RevistaDoutrina, p. 249) onde analisamos a aplicação dasregras de direito público e as de direito privado àssociedades de economia mista, além da aplicaçãodas disposições da Lei das Sociedades Anônimas aeste ente parestatal.

33 Cf. caput do art. 37 da Constituição Federalde 1988.

34 Nas palavras de Meirelles (op. cit, p. 327), “oque caracteriza a empresa pública é seu capital ex-clusivamente público, de um só ou de várias entida-des, mas sempre capital público.”

35 Cf. art. 235 e seguintes da Lei nº 6.604/76.36 Cf. art. 37, XIX e XX, da Constituição Fede-

ral de 1988.37 Lúcia Valle Figueiredo (Curso de Direito Ad-

ministrativo. São Paulo : Malheiros, p. 70) salientaque “um de seus traços característicos é que deve,necessariamente, perseguir o próprio escopo: isto é,criadas pelo Estado para determinado fim, encon-tram-se coartadas pela finalidade definida pela leicriadora.”

38 Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Ad-ministrativo. 3. ed. São Paulo : Atlas, 1992. p. 282)comenta que “uma das primeiras ilações que se ti-rar do art. 173, § 1º , é de que, quando o Estado, porintermédio dessas empresas, exerce atividade eco-nômica, reservada preferencialmente ao particularpelo caput do dispositivo, ele obedece, no silêncioda lei, a normas de direito privado. Estas normassão a regra; o direito público é exceção e, como tal,deve ser interpretado restritivamente”.

39 Cf. SILVA, J. A. da. op. cit., p. 736.40 op. cit.41 ADIn nº 2.341-RJ.42 Tais situações são aquelas atinentes aos im-

perativos da segurança nacional ou de relevante in-teresse coletivo definido em lei.

43 RDA, n. 203, p. 182 e 184.44 Como menciona Bastos (op. cit., p. 71), “as-

siste-se, pois, neste findar de século XX, a um re-torno, senão a um liberalismo clássico, tornandoinviável pela complexidade do Estado Moderno, aomenos para o primado da livre iniciativa”.

45 Arnoldo Wald e outros (O Direito de Parceriae a Nova Lei de Concessões. São Paulo : Revistados Tribunais, 1996. p. 19) expõem que, “ em todosos países, a própria noção de Estado e, em particu-lar, as suas dimensões ideais e as suas relações coma sociedade têm sido objeto de análises e polêmi-cas. Uma ampla literatura oriunda de políticos, so-ciólogos, economistas e até juristas se insurge con-

ca, a necessidade de fornecer uma infra-estruturaao desenvolviemento, o fomento aos negócios pri-vados e a obtenção de vantagens com a produção debens e serviços, mesmo que disponíveis no merca-do privado; no campo político, a preocupação esta-va voltada para as estratégias de segurança do país;em sede administrativa, a idéia foi a de descentrali-zação; os fatores sociais motivaram a produção debens e serviços já existentes no mercado a preçosmais acessíveis às populações de baixa renda.

Cf. tb. BALEEIRO, Aliomar. Ciência das finan-ças. 14. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1990. p. 135,acerca dos principais objetivos das empresas públi-cas.

25 Cretella Júnior (op. cit., p. 4.005) asseveraque “o Estado de nossos dias desenvolve, além desuas funções normais, que são os serviços puros,propriamente ditos, outros tipos de atividades – ope-rações materiais que consubstanciam atos de comér-cio ou atos de industria”.

26 Cf. Américo Luís Martins da Silva (Ordemeconômica. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 1995. p.85) e Hely Lopes Meirelles (Direito AdministrativoBrasileiro. 19. ed. São Paulo : Malheiros, 1994. p.320).

27 op. cit., p. 3.999.28 Cf. A. L. M. da Silva (op. cit., p. 121) que,

contrariamente, entende que a participação do Es-tado na ordem econômica, da forma preconizada pelaConstituição Federal de 1988, não é suplementarou subsidiária. Nesse sentido também o opinamen-to de J. A. da Silva (op. cit., 736).

29 No Brasil, são inúmeros os casos em que oEstado foi convocado para socorrer empresas priva-das por más administrações empresariais, tais comoos casos mais recentes da Fábrica de Tecidos NovaAmérica e do Banco Meridional.

30 Serviço descentralizado, segundo Meirelles(op. cit., p. 305), “é todo aquele em que o PoderPúblico transfere sua titularidade a autarquia, enti-dades paraestatais, empresas privadas e particula-res individualmente.”

31 Conforme registra Moncada (op. cit., p. 190,nota de rodapé), no direito francês há dois tipos clás-sicos de empresas públicas. Em 1º lugar aparecemaquelas com estatuto de sociedade, em 2º lugar vêmaquelas empresas com estatuto de estabelecimentopúblico.

A distinção baseia-se, fundamentalmente, nanatureza do serviço que uma e outra prestam. Justa-mente em função da natureza das tarefas levadaspor estas empresas é que se vai descobrir qual oregime aplicável numa graduação, que vai desde umregime quase puro de direito público (prestação deserviço público), até um regime quase puro de di-reito privado (sociedades públicas de caráter comer-cial ou industrial que atuam paralelamente com asempresas privadas).

No Brasil, Cretella Júnior (Empresa Pública. SãoPaulo : J. Bushatsky) expõe que a empresa públicapode prestar atividades econômicas, privadas, mas

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tra o Estado megalômano, onipresente, o Estado hi-pertrofiado e superdesenvolvido, defende-se umaampla redução do seu papel, exigindo simultanea-mente maior eficácia no exercício de suas funçõesbásicas”.

46 op. cit., p. 70.47 Cf. tb. Roth (op. cit., p. 15).48 O papel, hoje, delegado ao Estado é o de agente

normativo e regulador da atividade econômica, bemcomo o de encarregado pelo exercício de políticasde fiscalização, incentivo e planejamento desta ati-vidade.

49 Souto (op. cit., p. 122), comentando acerca daineficiência do Estado empresário, menciona que “aos poucos, no entanto, o Estado foi chamando parasi cada vez mais e mais setores. Ocorre que a preo-cupação jamais foi o lucro – buscado pela iniciativaprivada –, mas o atendimento do interesse público.Destarte, os freqüentes prejuízos começaram a serabsorvidos pelo tesouro – à custa, portanto, de tri-butos pagos pela coletividade em geral, além de fi-nanciamentos e emissão de moedas.”

50 Em artigo intitulado O processo de globaliza-ção e a reforma do Estado. In: FARIA (Org.), op. cit.p. 105.

51 Wald e outros (op. cit., p. 21) aduzem que,“decorridos cerca de 50 anos a partir da consagra-ção do Estado-Providência, ficou evidenciado que,em muitos casos, o mesmo levava seja ao Estadototalitário, seja ao Estado ineficaz e falido. O gran-de desafio atual consiste em reestruturar o Estadoe, simultaneamente, fortalecer o funcionamento dosserviços públicos que deve prestar.”

52 Segundo Zuleta Puciero (op. cit., p. 108), “osprogramas de privatizações refletem uma tendênciamundial, ainda que possam variar seus objetivosespecíficos em cada país. Nos países da AméricaLatina, tais programas procuram recursos para aten-der aos serviços de uma dívida externa acumuladadurante décadas precedentes. Na Europa Ociden-tal, tentam amortecer os efeitos do grave déficit fis-cal ocasionado pelas estruturas do Estado Social.No Sudeste asiático por outro lado, busca-se atraircapitais internacionais necessários para a consecu-ção de objetivos mais gerais de modernização.”

53 O processo de privatização brasileiro não atin-giu atividades econômicas monopolizadas pelo Es-tado. Cf. Wilson de Souza Campos Batalha e outra(O poder econômico perante o Direito. São Paulo :L Tr., 1996. p. 19).

54 O §1º do art. 2º dessa lei “considera privati-zação a alienação, pela União, de direitos que lheassegurem, diretamente ou através de controladas,preponderância nas deliberações sociais e o poderde eleger a maioria dos administradores da soci-edade.

Cf. Souto (op. cit., p. 125), onde está historiadatoda a legislação brasileira de privatização, e tam-bém Legislação do Programa Nacional de Deses-tatização : PND, atualizado até 31-10-96, da Secre-taria de Desestatização - SD - do BNDES, onde cons-

ta toda a legislação acerca das privatizações noBrasil.

55 Segundo dados do BNDES (Sistema de Infor-mações do Programa Nacional de Desestatizaçãoda Secretaria de Desestatização, p. 06), até 9 deoutubro de 1996, passaram para as mãos da iniciati-va privada o total de 50 empresas, seja medianteprivatização de empresas controladas direta ou in-diretamete pela União, ou aquelas onde haja partici-pações minoritárias da Petroquisa e da Petrofértil,além das concessões da malha ferroviária da RFFSA.

56 op. cit., p. 19.57 Cf. Gandra e Kaufman Consultores Associa-

dos. Privatização do setor siderúrgico brasileiro :avaliação de resultados e perpesctivas. BNDES, out.de 1994. p. 2 - 3.

58 op. cit., p. 127.59 Cf. Puceiro (op. cit., p. 120) acerca da experi-

ência argentina com o processo de privatização láadotado.

60 Aqui nos referimos às atividades, por exem-plo, reservadas à exploração de minerais no subsolodo território brasileiro.

61 Como salienta Paulo Bonavides (Do EstadoLiberal ao Estado Social. 6. ed. São Paulo : Ma-lheiros, 1996. p. 18-19), em crítica lançada às idéi-as neoliberais, no prefácio de sua obra clássica in-dicada, ao aduzir que “as bases do Estado Socialtêm sido, de último, acremente atacadas, pelos co-rifeus do neoliberalismo pós-guerra fria.

Partem estes para uma suposta arremetida fi-nal, intentando primeiro acabar com a história, aideologia, os símbolos e as armas nacionais, comose isso fora possível, e, a seguir, acometer o Estado,a nação e a soberania. E o fazem aferidos à posi-ções falsamente valorativas que só redundariam emproveito de novas supremacias. Não podem estasdeixar de ser, como sempre, as do grande capitalque circula agora nas artérias do sistema financeirointernacional, dotado da pretensão de globalizaçãoe perpetuidade.

Fingem, porém, ignorar que o capitalismo espo-liativo atravessa sua pior crise. Aguarda-se a esserespeito um funesto desfecho, que as caudais publi-citárias do próprio sistema batalham por encobrir.

A versão neoliberal do Direito e do Poder é,portanto, da mesma índole reacionária e dissolven-te dos absolutistas de direita e esquerda nascidosno transcurso deste século.

Seus postulados de reengenharia política e so-cial, formulados como um traslado de seus protóti-pos empresariais, colocam em perigo o Estado So-cial, ao mesmo passo em que assinalam o triunfo dainjustiça. Aí os fortes esmagam os fracos, os gran-des anulam os pequenos e as minorias, senhorean-do os privilégios e concentrando o capital, perpetu-am a ditadura social – restar-lhe-á unicamente opartido da resignação ou desespero. E, nessa alter-nativa, o desespero é, como sabemos, o conselheirodo crime e da revolução. No crime o País já vivecom as guerrilhas urbanas dos delinqüentes que tra-

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ficam com drogas. Na revolução, quem dirá, já nãoé este momento a antevéspera de um terremoto po-lítico e social?” (nossos grifos)

62 Apesar de todo o esforço para derrogar-se asoberania nacional, esta encontra-se ainda vigenteno texto constitucional, como um dos princípios fun-damentais da República Federativa do Brasil, emseu art. 1º.

No entanto, a Emenda Constitucional nº 6, de

15-8-95, adotando o pensamento neoliberal, autori-zou que empresas brasileiras e estrangeiras possam,mediante autorização ou concessão da União, ex-plorar as jazidas e demais recursos minerais e hí-dricos do país (art. 176, § 1º).

63 A expressão interesse é utilizada com o senti-do de vontade constitucional, no caso brasileiro,conforme os termos do caput do art. 173 da Consti-tuição Federal vigente.