troumatismo sob transferência

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    esclarece a psiquiatria contrariando a tese do determinismo linearuniversalizante.

    na sociedade que tenta prever e controlar tudo, que calcula, contabiliza elucra com riscos, que surge como diz ainda Laurent o escndalo dacontingncia, do inusitado, do que irrompe como impossvel de programar eprever. o escndalo tambm do sujeito que o discurso da cincia e docapitalismo suprimem, da fratura entre a causa e um efeito discordante. Nacivilizao do trauma, tudo pode ser traumtico: as catstrofes naturais eartificiais, os acidentes que a mdia no cessa de expor no nosso cotidiano, asagresses, os atentados, os abusos sexuais, o bullying os assim chamadosatos de violncia fsica ou psicolgica, que causam dor e angstia, sendoexecutados dentro de uma relao desigual de poder sobre uma vtimadesamparada.

    Efetivamente, o discurso comum com o qual recobrimos uma realidade semprepode se mostrar inoperante para entender um acontecimento, que permanececomo uma ferida aberta no simblico e no imaginrio, caracterizando o eventotraumtico. Porm, o escndalo que o discurso analtico no cessa de revelar,desde seus primrdios, que no h trauma sem a emergncia de um real queimplique uma experincia singular de satisfao, ainda que paradoxal, cujaemergncia, a angstia, esse afeto que no engana, frequentemente vemsinalizar. Com efeito, a violncia do acontecimento traumtico costuma velar ofator subjetivo envolvido no trauma, mantendo sob a barra o sujeito que s semanifesta sob as mscaras da vtima.

    A subverso do discurso analtico

    Foi necessrio que a teoria do trauma casse como explicao na doutrinafreudiana para que a psicanlise nascesse como discurso, na subversodaquele que confere ao sujeito uma subjetividade vazia, que ,paradoxalmente, o estatuto de vtima. Pela vtima, quem responde o Outro

    culpado pelo estrago, a causa do mal queacomete algum em posio passiva e inocente.

    Freud partiu dessa concepo do trauma, noperodo que considerou, no sem razo, pr-psicanaltico, entre 1895 e 1897, quando o abusosexual do adulto perverso era a causa daneurose. Mas logo Freud abandonou tal teoriapara introduzir a noo da fantasia sexual e doComplexo de dipo como causa dasintomatologia na neurose, ou seja, para

    introduzir uma satisfao paradoxal ali onde aposio da belle indiffrence histrica procurava suprimi-la. Foi preciso que

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    Freud aceitasse o lugar do ouvinte na experincia para que o discursopropriamente analtico se instaurasse, permitindo um giro em relao aodiscurso da histrica e posio da vtima inocente do mundo do qual ela sequeixa.

    Longe de questionar tal procedimento, Lacan, ao contrrio, fez dele um passonecessrio entrada em anlise propriamente dita. Enquanto os ps-freudianos preconizavam a adaptao do Eu realidade, Lacan se referia retificao subjetiva (2) para destacar a mudana necessria no estatuto dosujeito no discurso analtico, que sai da posio de objeto para produzir ossignificantes-mestres com os quais sustenta seu modo singular de gozo. Aimplicao do sujeito em sua mensagem o que o matema da transferncia (3)elucida, quando o amor permite a abertura do saber inconsciente, necessriapara a experincia analtica. Ali, ao contrrio da vtima traumatizada pelo

    evento, pelo Outro que finalmente sempre pode ser o culpvel pelo mau-encontro com o gozo, o falasser reconhece o fator subjetivo ineliminvel quefaz com que um encontro contingente passe a ser a causa de uma repetionecessria, atravs da qual o horror de um gozo at ento ignorado celebrado na iterao do traumtico.

    A compulso repetio do trauma

    Se a clnica da histeria permitiu a Freud a formulao da primeira tpica, foinecessria a Primeira Guerra Mundial para uma leitura distinta dos acidentestraumticos.

    Mesmo abandonada a teoria da seduo, Freud no abandona o aspectotraumtico de certos eventos na causa dos sintomas neurticos, propondo,contudo, uma causalidade mais complexa ao agregar, aos eventos acidentaistraumticos, o fator da fixao da libido. o que lemos na clebre ConfernciaXXIII, de 1917, Os caminhos da formao dos sintomas (4). O passo seguinteser dado ao trmino da Guerra, em 1918, momento em que Freud volta aotema do traumatismo, notadamente no Simpsio sobre as neuroses de guerra(5), quando os psicanalistas passaram a ser convocados para tratar dosneurticos de guerra diante do fracasso dos psiquiatras nessa empreitada. Issopermitiu a expanso da psicanlise, conforme disse Freud nesse Simpsio daIPA, ocorrido em Budapeste, onde Karl Abraham, Ernest Jones, Ferenczi eErnest Simmel tambm expuseram suas teses sobre os traumatizados com aguerra.

    Freud explica que a neurose de guerra pe em questo a teoria sexual daneurose, ento concebida como um conflito entre o Eu e os instintos sexuais,mas no a invalida: enquanto na neurose transferencial o Eu considera a

    prpria libido como perigosa, na neurose traumtica o Eu se defende, ou contra

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    o novo Eu ameaado, ou contra o perigo exterior, ou seja, diante dapossibilidade de experimentar um dano exercido pela violncia exterior.

    Ser necessrio o divisor de guas do Mais alm do princpio do prazer (6), de1920, para que Freud admita a pulso de morte como fundamento paraexplicar por que o paciente insiste em repetir a situao traumtica, ao invs desimplesmente abandon-la o que passa a se estender no somente para aneurose de guerra, mas para todo neurtico que, paradoxalmente, repete umreal traumtico impossvel de suportar contra o qual ergue suas defesas.

    Por exemplo, o caso da mulher os lenis, apresentado por Freud naConferncia XVII sobre O sentido dos sintomas (7), elucida como o ncleo daformao sintomtica repousa sobre um evento traumtico que o neurticorepete compulsivamente, como a noite de npcias em que o marido impotente

    falha em consumar a relao sexual. A mulher ferida, ao invs de confrontar-secom aquilo que se desvela na situao traumtica e que atinge seu ser, repeteo evento velando o furo com a formao sintomtica, que responde exignciado inconsciente de fazer a relao sexual existir. Qual gozo irrompe ali no furodo trauma o troumatismo, como Lacan (8) o nomeia no equvoco mesmo dalngua, onde se conjugam furo (trou) e traumatismo (traumatisme)? Um-gozo,esse-Um, S1, isolado que no convm ao Outro, que no faz lao social e nocessa de se inscrever como Um, ali onde a relao sexual no cessa de no seescrever.

    A violncia do supereu incidindo sobre o trauma

    Em Mais-alm do princpio do prazer, Freud encontra no masoquismo ergenoprimrio um outro exemplo da manifestao da pulso de morte, que lhepermite a reviso da tese sobre o par sadismo-masoquismo, como tambm darconta do que se apresentara de mais estranho no prprio ncleo familiar, que aanlise da sua filha, Anna Freud, termina por revelar. Sem o suposto gozosdico do Pai-Freud, a fantasia masturbatria do Bate-se numa criana de suafilha prottipo de fantasia encontrada na anlise de muitas mulheres, nosadverte Freud (9) no se sustenta. Contudo, se a violncia do Outro necessria para sustentar tal fantasia, no devido a um pretensomasoquismo intrnseco ao feminino, diz Freud (10), mas por que uma mulherpode secundariamente servir-se da fantasia de um Outro violento paraproteger-se da pulso de morte, do masoquismo ergeno primrio.

    Se, nesse caso, o amor ao Pai, supostamente sdico, garante a posio de seramada e protege o sujeito da pura destruio, o que poderia modular apotncia sombria do supereu nos tempos do Outro que no existe, nos temposdo declnio da funo paterna?

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    No Seminrio 1, Lacan define o supereu como uma lei cega, insensata, depuro imperativo, de simples tirania (11), quechega at a ser o desconhecimento de lei. Ou seja,ao mesmo tempo, o supereu a lei e suadestruio, uma ciso no sistema simblico queexclui o Ideal e exige o gozo, e que acaba por seidentificar prossegue Lacan ao que chamofigura feroz, a figuras que podemos ligar aostraumatismos primitivos, sejam eles quais forem,que a criana sofreu (12).

    Trata-se do exerccio da pura lei insensata,violenta, desatrelada do Ideal do Eu e ligada ao

    traumatismo, pois implica a emergncia de um gozo no apaziguado pelo

    Nome-do-Pai. Assim, acoplada violncia da tirania do supereu que exige asatisfao do gozo, est a perigosa docilidade masoquista que se oferece aoOutro sdico imputando-lhe a causa do mal, quando pela emergncia de Um-gozo real somente o sujeito pode se encarregar.

    Do trauma ao troumatismo na experincia analtica

    Se o troumatismo da estrutura, a experincia analtica no elimina o trauma;ao contrrio, o reedita sob transferncia. Nesse sentido, o analista encarnaalgo de traumtico por sustentar um discurso que esburaca o sujeito dosignificado com o significante que, finalmente, no significa nada e suportematerial de um gozo que no convm para que a relao sexual exista.

    Alm disso, tal como observou Freud (13), a neurose se instala sob o amor detransferncia, esse amor verdadeiro, e o analista, tal como o Outro parental,reproduzir o efeito traumtico para o sujeito. Assim, a atualizao da realidadesexual do inconsciente, definio mesma da transferncia em seu aspectosincrnico, implica que Um-gozo traumtico tome corpo tambm na experinciaanaltica, o que d a chance ao parceiro-analista de responder, no demandaamorosa que finalmente vela o real em jogo, mas ao gozo real ao qual esseamor permite acessar.

    Finalmente, no discurso analtico e graas ao amor que faz existir oinconsciente transferencial, que um sujeito poder encontrar as vias de bem-dizer um gozo incurvel que lhe diz respeito, e conferir ao trauma, impregnadode dano imaginrio, o valor de troumatismo da estrutura.

    NOTAS

    1. http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/02/o-trauma-generalizado-e-singular_9241.html

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    2. LACAN, Jacques. A direo do tratamento e os princpios de seu poder. InEscritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 591-652.3. LACAN, Jacques. Proposio de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista daEscola. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 253.4. FREUD, Sigmund (1916-1917). Leccicones introductorias al psicoanlisis, XXIII,Vas de formacin de sntomas. In Obras Completas, 4 ed. Madrid: Biblioteca Nueva,1981, tomo II, p. 2348.5. FREUD, Sigmund (1918). Introduccin al simposiosobrelas neurosis de guerra. InObras Completas. Op. cit, tomo III, pp. 2542-2544.6. FREUD, Sigmund (1920). Mas all del principio delplacer. InObras Completas.Op. cit., tomo III, pp. 2507-2541.7. FREUD, Sigmund (1916-1917). Lecciones introductorias al psicoanlisis, XVII, Elsentido de los sntomas. In Obras Completas. Op. cit, tomo II, pp. 2282-2292.8. LACAN, Jacques. Le sminaire. Livre XXI: le non-dupes errent. Lio de 19 de

    fevereiro de 1974 (indito).9. FREUD, Sigmund (1919).Pegan a un nio. In Obras Completas. Op. cit., tomo III,pp. 2465-2480.10. FREUD, Sigmund (1924). El problema econmico del masoquismo. In ObrasCompletas. Op. cit., tomo III, pp. 2752-2759.11. LACAN, Jacques (1953-1954). O seminrio, livro 1: osescritostcnicos de Freud.Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2086, p. 123.12. Ibidem.13. FREUD, Sigmund (1914). Observaciones sobre el amor de transferencia`.In Obras Completas. Op. cit., tomo II, pp. 1689-1696.