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1 Tropicalismo, Dzi Croquettes e Secos e Molhados: matrizes culturais da ditadura em videoclipes de Johnny Hooker 1 RESUMO O presente artigo investiga matrizes culturais de videoclipes publicados em redes sociais online e sites de compartilhamento de vídeo, como o Facebook e o Youtube, no Brasil. Identificamos, a partir de autores e observação de documentários, que produtos culturais existentes na ditadura militar, como o tropicalismo, as Dzi Croquettes e os Secos e Molhados permitem compreender a existência de artistas na cena cultural do país hoje, como o aqui analisado, Johnny Hooker. Acreditamos que, nos dois contextos, de maneiras distintas, expressões de certas identidades políticas e sensibilidades, como as de minorias LGBTs em especial se articulavam e se expressam nesses produtos, tensionando e reiterando espaços políticos hegemônicos, ultrapassando limitações institucionais de partidos, sindicatos e outras organizações. Hooker tem o seu consumo explicado por essas matrizes que são reconhecidas, diacronicamente, por seu público e o permitem disputas políticas no contexto atual. Essas disputas, entretanto, não se dão sem contradições. Na época da ditadura, os produtos anteriormente citados eram criticados por se utilizarem dos modos de fazer da indústria cultural capitalista e, hoje, observamos Hooker recorrer a especificidades de produção e circulação das redes sociais e plataformas online - no caso específico dele, o Youtube -, submetendo-se a suas regras e protocolos. Articulamos os conceitos de convenções a uma discussão teórica que remonta à articulação entre arte e política presente na ditadura militar. Partimos da compreensão de convenções, suas configurações e transformações a partir das discussões de Williams (1979). Para ele, as convenções expressam novas formas de sentir. Além disso, recorremos ao conceito teórico-metodológico de estrutura de sentimento, formulado por ele e desenvolvido pelo Centro de Pesquisa Estudos Culturais e Transformações na Comunicação, do Póscom-UFBA, na articulação com dois outros conceitos teórico-metodológicos: mapas mediações culturais, criado por Martín-Barbero (2008; 2009) e o diagrama para analisar a política proposto por Grossberg (2010). A partir do artista citado acima, observamos ainda de que maneira essa articulação com os modos de fazer e ver online estão relacionadas às formas do videoclipe. Palavras-chave: matrizes culturais, ditadura, sensibilidades, identidades, política 1 Thiago Ferreira é doutorando no Póscom/UFBA. Bolsista Capes, pesquisador do Centro de Pesquisa Estudos Culturais e Transformações na Comunicação. Orientadora: Itania Gomes.

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Tropicalismo, Dzi Croquettes e Secos e Molhados: matrizes

culturais da ditadura em videoclipes de Johnny Hooker 1

RESUMO O presente artigo investiga matrizes culturais de videoclipes publicados em redes

sociais online e sites de compartilhamento de vídeo, como o Facebook e o Youtube, no Brasil.

Identificamos, a partir de autores e observação de documentários, que produtos culturais

existentes na ditadura militar, como o tropicalismo, as Dzi Croquettes e os Secos e Molhados

permitem compreender a existência de artistas na cena cultural do país hoje, como o aqui

analisado, Johnny Hooker. Acreditamos que, nos dois contextos, de maneiras distintas,

expressões de certas identidades políticas e sensibilidades, como as de minorias – LGBTs em

especial – se articulavam e se expressam nesses produtos, tensionando e reiterando espaços

políticos hegemônicos, ultrapassando limitações institucionais de partidos, sindicatos e outras

organizações. Hooker tem o seu consumo explicado por essas matrizes que são reconhecidas,

diacronicamente, por seu público e o permitem disputas políticas no contexto atual. Essas

disputas, entretanto, não se dão sem contradições. Na época da ditadura, os produtos

anteriormente citados eram criticados por se utilizarem dos modos de fazer da indústria cultural

capitalista e, hoje, observamos Hooker recorrer a especificidades de produção e circulação das

redes sociais e plataformas online - no caso específico dele, o Youtube -, submetendo-se a suas

regras e protocolos. Articulamos os conceitos de convenções a uma discussão teórica que

remonta à articulação entre arte e política presente na ditadura militar. Partimos da compreensão

de convenções, suas configurações e transformações a partir das discussões de Williams (1979).

Para ele, as convenções expressam novas formas de sentir. Além disso, recorremos ao conceito

teórico-metodológico de estrutura de sentimento, formulado por ele e desenvolvido pelo Centro

de Pesquisa Estudos Culturais e Transformações na Comunicação, do Póscom-UFBA, na

articulação com dois outros conceitos teórico-metodológicos: mapas mediações culturais, criado

por Martín-Barbero (2008; 2009) e o diagrama para analisar a política proposto por Grossberg

(2010). A partir do artista citado acima, observamos ainda de que maneira essa articulação com

os modos de fazer e ver online estão relacionadas às formas do videoclipe.

Palavras-chave: matrizes culturais, ditadura, sensibilidades, identidades, política

1 Thiago Ferreira é doutorando no Póscom/UFBA. Bolsista Capes, pesquisador do Centro de Pesquisa

Estudos Culturais e Transformações na Comunicação. Orientadora: Itania Gomes.

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O presente artigo tem como objetivo investigar quais são as matrizes culturais e

as convenções que são convocadas por videoclipes brasileiros publicados no Youtube,

numa articulação entre arte2 e política. Para isso, analisaremos os videoclipes do artista

Johnny Hooker, a fim de verificar como estas sensibilidades têm sido relacionadas a

convenções em torno do videoclipe. Compreendemos convenções, suas configurações e

transformações a partir das discussões de Williams (1979) em torno do conceito de

estrutura de sentimento3.

Williams entende que uma análise cultural deve dar conta de elementos de

diferentes tempos históricos que coexistem no tempo presente. Ou seja, hoje no Brasil,

não há apenas elementos culturais formados no presente, mas também aqueles formados

no passado que continuam atuando no agora e outros elementos em formação, que se

contrapõem aos elementos dominante-hegemônicos. Aqueles elementos começados no

passado e atuantes no presente são chamados de residuais, os que atuam no presente e se

formaram nele são os dominantes e aqueles que irão se contrapor aos dominantes e

residuais são os emergentes.

Portanto, há, no mesmo momento histórico, elementos do passado/presente

(residuais), do presente/presente (dominantes) e do presente/futuro (emergentes)4,

demonstrando que estamos inseridos num contexto com distintas temporalidades. É para

dar conta da análise destas distintas temporalidades que Williams formula o conceito de

estrutura de sentimento5.

O termo que eu gostaria de sugerir é ‘estrutura de sentimento’: ele é tão

sólido e preciso quanto sugere ‘estrutura’; porém, ele opera nas partes mais

delicadas e menos tangíveis de nossa sociedade. Em certo sentido, a estrutura

2 Compreendemos, a partir de Benjamin, que o objeto artístico se transforma a partir da reprodutibilidade

técnica. Portanto, não estamos nos referindo à arte aqui apenas como aqueles objetos relacionadas à

pintura e/ou à literatura, mas, mais especificamente, neste artigo, a produtos inseridos na indústria

cultural. 3 Para mais informações sobre o processo de formulação do conceito de estrutura de sentimento, ver

Gomes (2011). 4 Recorremos aqui à terminologia formulada por Gomes (idem). 5 Importante salientar que a utilização do conceito de estrutura de sentimento para analisar aspectos

culturais e a relação entre arte e política no Brasil não é inédita. Ridenti (2005) afirma que criou-se, em

1964, uma “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária”. Esta englovaria produtos

culturais tais distintos quanto as canções de Edu Lobo e Geraldo Vandré, a dramaturgia do Teatro de

Arena e o romance Quarup, de Antonio Callado. Aqui, compreenderemos estrutura de sentimento num

sentido distinto, colocando em relação transformações e reiterações na relação entre o Tropicalismo e os

videoclipes dos artistas aqui analisados.

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de sentimento é a cultura do período: é o resultado específico da vivência de

todos os elementos em uma organização geral (WILLIAMS, 1961, p. 64).

Ressaltamos que Williams compreende a cultura não como uma produção das

camadas mais altas da sociedade, rejeitando o elitismo em torno deste conceito,

tampouco a compreende como algo meramente simbólico. Para ele, cultura é todo um

“modo integral de vida” (WILLIAMS, 1979), abrangendo aspectos materiais e

simbólicos. Há, portanto, tantas culturas quanto são os modos de vida em determinados

contextos histórico, político econômico e social. Por consequência, estrutura de

sentimento coloca em relação essas diferentes culturas que estão em diálogo no tempo

presente, sendo um processo envolto por disputas, tensões e reiterações.

É importante na observação das estruturas de sentimento que acompanhemos as

mudanças nas convenções. Para Williams, as convenções vão se alterando, se formando,

conforme os contextos e elementos históricos existentes numa dada sociedade, com a

finalidade de dar conta de formas de sentir politicamente. Segundo ele, “a convenção é

o resultado de processos sociais” (WILLIAMS, 2013, p. 335). “Enquanto a estrutura

muda, novos meios [de expressão] são percebidos e compreendidos, enquanto velhos

meios começam a parecer vazios e artificiais” (WILLIAMS, 2001, p. 33). Há, portanto,

uma articulação estreita entre mudanças social e cultural. Essa compreensão será de

fundamental importância neste artigo porque, assim como Williams, entendemos que

novas convenções têm sido configuradas na articulação a mudanças culturais e políticas.

No caso específico deste artigo, observaremos as convenções em torno dos produtos

audiovisuais online.

Analisaremos as convenções nos produtos audiovisuais supracitados, articulando

as afirmações de Williams sobre estrutura de sentimento às formulações de Grossberg

(2010), autor dos estudos culturais – corrente teórica a qual nos afiliamos –, sobre

política, e de Martín-Barbero (2009), propondo um diálogo entre os mapas das

mediações e das mutações culturais. O primeiro autor nos faz problematizar a política,

levando em consideração três pontos – Estado, corpos e vida cotidiana – e o segundo

nos faz levar em consideração mediações e mutações que circundam a relação entre

política, comunicação e cultura no contexto contemporâneo.

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1. Dois Mapas para analisar matrizes culturais, as convenções e as sensibilidades

políticas

Conforme dissemos acima, nosso objetivo neste artigo é analisaras relações

existentes entre matrizes culturais e videoclipes produzidos pelo cantor Johnny Hooker,

articulando arte a sensibilidades políticas. Entretanto, como dar conta

metodologicamente da articulação de esferas tão abrangentes e complexas, no âmbito

dos estudos culturais? É com essa questão em vista que propomos a relação entre as

afirmações de Williams (2013) e Grossberg (2010) em torno da política, e os mapas

sugeridos por Martín-Barbero (2004; 2009) para analisar tanto as mediações quanto as

mutações culturais, relacionando política, cultura, comunicação e sociedade.

Grossberg (2010) defende que “o poder é sempre multidimensional,

contraditório”6 (GROSSBERG, 2010, p. 25) e perpassado por formações que se

associam à vida cotidiana e às estruturas sociais e políticas. O político, portanto, é

associado às culturas, que se configuram e se expressam cotidianamente. Por sua vez,

culturas devem ser compreendidas, na contemporaneidade, como expressões discursivas

e mediações afetivas, sendo a organização e distribuição de afetos dentro e através da

formação social. “Cultura, embora construída, funciona, materialmente, como uma

categoria e um domínio com consequências reais nas formas em que as pessoas vivem

suas modernidades”7 (GROSSBERG, 2010, p. 171).

As formas pelas quais vivemos nossas vidas e nos expressamos politicamente

vão incidir na maneira pela qual configuramos as linguagens, as convenções. “As

formações afetivas determinam, de alguma forma, quais linguagens e lógicas de cálculo

as pessoas usam para viver suas vidas”8 (GROSSBERG, 2010, p. 195). No mesmo

sentido, analisando o romantismo, Williams (2013) afirma que o significado maior deste

movimento literário são as tentativas de “[...] apreender as mudanças sociais vitais de

seu tempo, que viriam a determinar toda a política” (WILLIAMS, 2013, p. 92).

Por isso, propomos inserir as práticas midiáticas na vida cotidiana. “[...] práticas

midiáticas aparecem, empiricamente, como elementos ou eventos dispersos na vida

6 “[...] power is always multidimensional, contradictory [...]” (GROSSBERG, 2010, p. 25). 7 “Culture, albeit constructed, functions materially as category and a domain, with real consequences for

the ways in which people live their modernity” (GROSSBERG, 2010, p. 171). 8 “[...] affective formations that determine in some way the languages and logics of calculation that people

use to live their lives” (GROSSBERG, 2010, p. 195).

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cotidiana, então não há uma fronteira clara entre a “mídia” e a vida cotidiana. [...]sem

fronteira clara entre o discursivo e o não discursivo”9(GROSSBERG, 2010, p. 221).

“[...] os meios não podiam ser pensados só em sua economia e ideologia, mas tinham

que ser relacionados com a cultura cotidiana da maioria das pessoas” (MARTÍN-

BARBERO, 2009, p. 4). Analisar as práticas midiáticas no momento presente da

comunicação e da cultura fez com que Martín-Barbero (idem) afirmasse que estamos

assistindo à emergência de um entorno tecno-comunicativo. “Assim como estou imerso

na natureza e nas instituições, agora estou imerso nesse terceiro entorno. Eu não posso

ligar o computador sem saber que sou visto” (MARTÍN-BARBERO, 2009, 10).

Compreender a relação das expressões e sensibilidades políticas neste entorno nos é

uma chave interpretativa para compreender o lugar em que se inserem os videoclipes

aqui analisados, articulados às nossas vidas cotidianas.

Vida cotidiana será um dos pontos levados em consideração por Grossberg

(2010) para que problematizemos a política. Inspirado por Foucault, Grossberg afirma

que o poder deve ser formulado em três níveis: macropoder, micropolítica10, estando

estas duas categorizações relacionadas, e poder constitutivo, sendo este último uma

categoria ontológica. Há, portanto, uma complexificação do conceito de política,

devendo ser esta analisada através de um diagrama formado por três vértices: Estados,

corpos e vidas cotidianas. A política se organiza, de acordo com Grossberg (2010), em

torno destes vértices.Nenhum deles determina a política em si; são produtos de

intersecção de linhas que circunscrevem o diagrama. O espaço constituído entre esses

espaços é o lugar transversal onde as realidades da política, conjunturalmente, são

articuladas. “É o espaço, dentro do qual, o social como a produção de valor, o

econômico como comensuração de valor, o cultural como efetização do valor, [...]

atravessam, cortam e, através deles, determinam o político”11 (GROSSBERG, 2010, p.

234).

9 “media practices appear, empirically, as dispersed elements or events in everyday life, so that there is no

clear boundary between “medua” and everyday life [...] no clear boundary between the discursive and the

nondiscursive” (GROSSBERG, 2010, p. 221). 10 Micropolítica é um conceito formulado por Foucault na sua problematização do poder ter apenas um

núcleo central como o Estado. Para Foucault, o poder se espalha em diferentes níveis sociais, com

relações de poder sendo exercidas também no nível micro, nas relações que se estabelecem

cotidianamente, como na relação entre pai e filho, professor e aluno, etc. 11 It is the space within which the social as the production of value, the economic as the commnensuration

of value, the cultural as the actualization of value [...], traverse, cut into and through, and thus determine

the political. (GROSSBERG, 2010, p. 234)

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Ainda que compreendamos a importância de levar em consideração os três

vértices na análise da política, nos concentramos aqui em dois pontos mais detidamente,

na relação entre convenções e expressões políticas: vida cotidiana e corpos. Falaremos

brevemente sobre como Grossberg (2010) formula a questão do Estado. A partir de

outra aproximação com Foucault, Grossberg o problematiza: se na euro-modernidade12,

o Estado aparenta estar desapartado da política, o esforço deve ser para reincorporá-lo,

destacá-lo enquanto processo marcado por relações e disputas de poder. “O Estado é

uma máquina territorializante que usa mecanismos codificantes para produzir ou

apropriar e inscrever uma rede de auto-identificação, através de um território e uma

população, sobre a qual ele (o Estado) reivindica poder”13 (GROSSBERG, 2010, p.

237). A relação entre o Estado moderno e os sujeitos; o aspecto simbólico organizado

por ele, o constitui enquanto ponto do diagrama exposto aqui.

Corpo se refere à constituição e à organização da vida, que é ela mesma uma

consequência de poder. Este é o ponto do diagrama/mapa proposto por Grossberg que

ele mais explicitamente se relaciona aos argumentos de Foucault. Ele recorre ao

conceito de biopolítica formulado pelo filósofo para evidenciar que as tecnologias euro-

modernas – a disciplina, a governabilidade – controlam a vida humana. Foucault (2008)

caracteriza biopolítica como “a maneira como se procurou, desde o século XVIII,

racionalizar os problemas postos à pratica governamental pelos fenômenos próprios de

um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade,

longevidade, raças...” (FOUCAULT, 2008, p 431).

Pareceu-me que não se podia dissociar esses problemas do âmbito de

racionalidade política no interior do qual eles apareceram e adquiriram sua

acuidade. A saber, o "liberalismo", já que foi em relação a ele que adquiriram

o aspecto de um verdadeiro desafio. Num sistema preocupado com o respeito

dos sujeitos de direito e com a liberdade dos indivíduos, como é que o

fenômeno “população” com seus efeitos e seus problemas específicos pode

ser levado em conta? Em nome do que e segundo que regras pode ele ser

administrado? (FOUCAULT, p. 431-432).

12 Grossberg (2010) faz uma diferenciação entre a modernidade e a euro-modernidade por querer enfatizar

uma distinção que, segundo ele, se faz necessária entre a modernidade que aconteceu na Europa e os

outros processos de modernidade que se dão ou aconteceram em outros pontos do mundo. 13 The state is a territorializing machine that uses coding machines to produce or appropriate and inscribe

a grid of self-identification across a territory and a population over which it claims power”

(GROSSBERG, 2010, p. 237)

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É a fim de responder a essas perguntas que o conceito de biopolítica é

formulado. É recuperado por Grossberg a fim de mostrar como, na análise das relações

políticas contemporâneas, nós devemos levar em consideração os efeitos que decisões

do Estado exercem sobre os corpos das pessoas. Ou seja, os corpos são também eles

espaços de disputas políticas e isso também elide na nossa relação com o outro. Nos

produtos aqui analisados, é importante observar como os corpos dos artistas convocam

vivências corporais da recepção, numa relação com aquilo que tem sido a vida cotidiana

no Brasil, convocando sensibilidades e expressividades de minorias políticas.

[...] as relações da biopolítica são rearticuladas como relações de alteridade, o

viver e seu outro, o humano e seu outro. Este é o lócus da primeira

articulação política do outro (ou diferença), uma articulação que é sempre

dada pelo sinal da negatividade na euro-modernidade14 (GROSSBERG,

2010, p. 240).

Grossberg afirma ainda, nesta problematização da política, que a violência deve

ser pensada como um de seus aspectos, em contraponto à mentalidade euro-moderna de

que ela é a falência do diálogo que caracteriza relações desta natureza, devendo ser

inserida no vértice dos corpos. Por fim, há ainda o outro vértice proposto por Grossberg

(2010): vida cotidiana15. Vida cotidiana descreve uma “mobilidade estruturada”16

(GROSSBERG, 2010, p. 242).

Vida cotidiana é um mapa de circulação de práticas e corpos, recursos e

utilidades, valores e afetos, poder e política, através do espaço e do tempo, e

os efeitos e restrições dessa circulação. Mede não somente os lugares e

espaços, mas também, as distâncias e os acessos, as intensidades e as

densidades.

[...] vida cotidiana envolve questões de tecnologias e modalidades de

pertencimento, afiliação, e identificação que definem os lugares, onde as

14 “[...] the relations of biopolitics are rearticulated as relations of othering, the living and its other, the

human and its other. This is the locus of the first political articulation of the other (or difference), an

articulation that is always given the sign of negativity in euro-modernity” (GROSSBERG, 2010, p. 240). 15 Há uma referência neste conceito de vida cotidiana à formulação de Williams (1979) sobre cultura ser

um modo inteiro de vida, numa relação entre o aspecto simbólico e práticas materiais. Desta forma,

podemos afirmar que vida cotidiana é o lugar em que Grossberg articula Estado e corpos à cultura,

identificada através da circulação de práticas, valores e afetos. 16 “[...] a structured mobility”. (GROSSBERG, 2010, p. 242).

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pessoas e práticas podem pertencer, e os lugares onde as pessoas podem

encontrar um caminho17. (GROSSBERG, 2010, p. 243).

Por isso, vida cotidiana deve ser vista como o lugar onde efetivamente as

relações de poder se desenvolvem, onde o Estado incide sobre os corpos, mas também

onde afetos, valores, afiliações e tensionamentos se estabelecem. Articulando os três

vértices, como os produtos aqui analisados relacionam corpos e vida cotidiana para

abordar sensibilidades políticas? Como estes produtos, ao estabelecer relações entre a

internet e os contextos político, econômico e social do Brasil, nos permitem

problematizar convenções e política sob o viés dos estudos culturais? São essas as

perguntas que norteiam as nossas análises.

Um conceito importante para que articulemos cultura, comunicação, política e

sociedade é o de mediações culturais, formulado por Martín-Barbero (2008). Mediações

culturais são “[...] pontos de articulação entre cultura, sistemas da produção e da

recepção, capazes de oferecer um caminho metodológico para o entendimento dos

fenômenos culturais e midiáticos” (GUTMANN, 2013, p. 226). A mediação se dá

através de um determinado produto, sendo um lugar onde ocorre a interação entre

cultura, tecnologia e vida cotidiana. Ou seja, os produtos analisados neste artigo são os

lócus de articulação das mediações (e das mutações, das quais falaremos logo em

seguida), dando à cultura um caráter comunicativo. Esta é compreendida como um “[...]

processo produtor de significações e não de mera circulação de informação” (MARTÍN-

BARBERO, 2008, p. 287).

Quando formula o conceito de mediações culturais, Martín-Barbero (2008) está

preocupado com a centralidade que a televisão possui nas sociedades latino-americanas.

Ele quer compreender o porquê de, em nossos contextos, as telenovelas, por exemplo,

possuírem a importância que têm. Ele entende, então, que compreender isso na relação

com a cultura cotidiana, faz com que observemos que “[...] há grandes mediações que

vêm de formatos históricos, de matrizes culturais” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 4).

O melodrama dos folhetins policiais seria esse formato histórico cultural que serviu de

matriz cultural para as telenovelas. Se aproximarmos aos termos de Williams, o

17 “Everyday life is a map of the circulation of practices and bodies, resources and utilities, values and

affect, power and politics, through space and time, and of the effects and constraints of this circulation. It

measures not only places and spaces but also distances and accesses, intensities and densities”

[...] everyday life involves questions of the technology and modalities of belonging, affiliation, and

identification that define the places people and practices can belong to, and the places people can find

their way to” (GROSSBERG, 2010, p. 243).

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melodrama seria um gênero cujas convenções se relacionam com as nossas

cotidianidades, com as nossas formas de viver e de sentir.

O gênero ocupa um lugar central nas discussões de Martín-Barbero e é

importante citá-lo neste artigo, ainda que não estejamos propondo aqui uma análise de

gênero. Gomes (2011) relaciona o gênero a quatro mediações formuladas por Martín-

Barbero (2008): institucionalidade, sociabilidade, ritualidade e tecnicidade.

Trabalharemos neste artigo, mais detidamente, com as duas últimas mediações.

As mediações revelam a força da noção de processo comunicativo, que se

completa nesta circulação. Destacar a importância das mediações culturais não significa

que abrimos mão da importância dos textos midiáticos, dos produtos. “A premissa que

posiciona a noção de gênero como um modo de entender o processo comunicativo se

afasta de uma perspectiva meramente textual, mas também refuta a cilada das análises

de contexto, que desmerecem a centralidade dos produtos” (GUTMANN, 2013, p. 220).

As mediações culturais são importantes, ainda de acordo com Martín-Barbero (2008),

para “desentranhar a cada dia mais complexa trama de mediações que a relação

comunicação/cultura/política articula” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 12).

o que estamos tentando pensar é a hegemonia comunicacional do mercado na

sociedade: a comunicação convertida no mais eficaz motor de desengate e de

inserção das culturas – étnicas, nacionais, ou locais – no espaço/tempo do

mercado e nas tecnologias globais (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 13).

Martín-Barbero (2008) raciocina da mesma maneira que Grossberg, acreditando

que a cultura perpassa a vida social por inteiro. “Hoje são sujeito/objeto de cultura tanto

a arte quanto a saúde, o trabalho ou a violência, e há também cultura política, do

narcotráfico, cultura organizacional, urbana, juvenil, de gênero, cultura científica,

audiovisual, tecnológica etc” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 14). Desta forma,

também a política medeia suas várias práticas – do Estado, dos corpos e da vida

cotidiana – com as formas midiáticas. No caso de Martín-Barbero, voltamos a dizer, a

televisão; no nosso caso, os produtos audiovisuais em plataformas online, como o

Youtube e o Facebook.

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mais do que objetos de políticas, a comunicação e a cultura constituem hoje

um campo primordial de batalha política: o estratégico cenário que exige que

a política recupere sua dimensão simbólica – sua capacidade de representar o

vínculo entre os cidadãos, o sentimento de pertencer a uma comunidade –

para enfrentar a erosão da ordem coletiva (MARTÍN-BARBERO, 2008, p.

15).

A fim de dar conta das complexidades existentes na relação entre comunicação,

cultura e política, Martín-Barbero (2008) propõe o mapa das mediações culturais. Este

“[...] move-se sobre dois eixos: o diacrônico, ou histórico de longa duração – entre

Matrizes Culturais (MC) e Formatos Industriais (FI) – e o sincrônico – entre Lógicas de

Produção (LP) e Competências de Recepção ou Consumo (CR)” (MARTÍN-

BARBERO, 2008, p. 16). Sobre o eixo diacrônico, Martín-Barbero (2008) diz que este

é um espaço de

(...) complexos entremeados de resíduos (Williams) e inovações, de

anacronismos e modernidades, de assimetrias comunicativas que

envolvem, da parte dos produtores, sofisticadas “estratégias de

antecipação” e, da parte dos espectadores, a ativação de novas e velhas

competências de leitura (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 17).

O eixo diacrônico18 é estabelecido na relação entre os elementos residuais e as

inovações, na tensão que se estabelece entre os formatos industriais – os programas –,

e aqueles elementos que servem como referência histórica e que atuam na definição

do que é a cultura hoje: as matrizes culturais. Com este eixo, Martín-Barbero (2008)

aponta para as mudanças que ocorrem a partir das matrizes para os produtos. Do

melodrama para o folhetim e daí para as novelas em capítulos. Este é o eixo em que

mais explicitamente Martín-Barbero se relaciona com Williams, através do conceito

de estrutura de sentimento. O que este autor indica é que nos produtos culturais

contemporâneos há relações e tensionamentos com elementos residuais, de outros

tempos históricos, que continuam atuando no presente, concomitantemente com

elementos culturais dominantes.

18 O segundo eixo, sincrônico, é estabelecido entre as Lógicas de Produção (LP) e as Competências de

Recepção (CR). As primeiras se referem às práticas referentes à indústria e as segundas às formas com

que a audiência assiste e se relaciona com estes produtos, interferindo no processo de produção.

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Gomes (2013) defende que se pense em matrizes midiáticas para estes

produtos contemporâneos. Ou seja, que se leve em consideração, por exemplo, a

maneira pela qual o humor da TV Pirata satirizando e ironizando a produção

televisiva global configurou uma convenção para o humor realizado para o Tá no Ar:

a TV na TV. Neste mesmo sentido, questionamos, neste artigo: quais são as matrizes e

convenções que giram em torno destes videoclipes? Apostamos aqui no tropicalismo,

nas Dzi Croquettes e na banda Secos e Molhados e os valores expressos por eles na

relação entre e arte e política como matrizes culturais fundamentais para a

compreensão da existência dos videoclipes aqui analisados. Falaremos mais sobre isso

adiante.

2. Convenções e matrizes culturais dosvideoclipes de Johnny Hooker

Johnny Hooker, o artista a ter seus videoclipes analisados neste artigo, faz parte

de um grupo de artistas brasileiros que tem se colocado ao lado das discussões de

identidades de gênero e étnica. Ele é um cantor pernambucano, gay, que afirma ter

como maiores influências Madonna, David Bowie e Caetano Veloso, e que teve duas

das suas músicas selecionadas para trilhas sonoras de novelas da TV Globo. Além de

convocar identidades de grupos minoritários políticos brasileiros – mais

especificamente, os gays – este artista é aqui observado por utilizar o Youtube como um

dos principais lugares de divulgação das suas músicas, através dos videoclipes.

Analisamos, neste artigo, os três videoclipes mais visualizados deste artista no site de

compartilhamento e produção de vídeos: os das músicas Volta, Amor Marginal e Alma

Sebosa19.

Os três videoclipes de Johnny Hooker se aproximam à convenção estabelecida

ainda na década de 1980 por Michael Jackson20, em que cada um deles conta uma

história, para além da apresentação da música. No caso deste artista, todos os enredos

dos videoclipes e das músicas relatam desilusões amorosas entre pessoas do mesmo

sexo – sempre ele e outro homem – ainda que isso fique mais explícito nos videoclipes

19 Todos os videoclipes foram assistidos e analisados no dia 08 de julho de 2016. Neste dia, Volta tinha,

aproximadamente, 1,6 milhão de visualizações; Amor Marginal, 1,2 milhão e Alma Sebosa, 1,1 milhão. 20 Para uma maior discussão sobre a importância de Michael Jackson nas reconfigurações e disputas em

torno do gênero videoclipe ver MITTELL (2001).

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que nas letras das músicas. Ele convoca essa matriz cultural, reconhecível por parte da

audiência que pode, desta maneira, articulá-la ao consumo do audiovisual na internet.

Aliás, essa articulação com o pop americano já estava presente nos tropicalistas, que

compreendiam ser essa uma necessidade para um diálogo com o público, sendo alvo de

críticas. Naquela época, a relação era com o rock. Agora, com Michael Jackson, David

Bowie e Madonna. Hollanda e Gonçalves (1986) vão dizer que o tropicalismo

reafirmava a simpatia pela apropriação das formas culturais geradas no

circuito internacional da comunicação de massa. A intuição da

irreversibilidade da modernização levava o projeto representado pelos

baianos a um ponto avançado na discussão da MPB. Atentos às novidades

que integravam "de dentro" a cultura brasileira às correntes culturais de tipo

urbano-industrial dos países centrais, ficavam melhor equipados para uma

intervenção crítica no circuito de produção e consumo cultural que se

estruturava no Brasil (HOLLANDA & GONÇALVES, 1986, p. 56).

Além dessa matriz do pop, podemos perceber nas performances de Johnny

Hooker exibidas nos videoclipes aqui analisados a presença da androginia, a relação da

contestação política através do corpo, assim como feito em produtos que também

identificamos como matrizes culturais, mas no Brasil, como o tropicalismo, as Dzi

Croquettes e a banda Secos e Molhados21. Hollanda e Gonçalves (1986) afirmam que “a

valorização do corpo, da intuição, da sensibilidade, a recusa da cultura livresca, dotom

grave do discurso teórico e das formas tradicionais da militância, [...]

estiverampresentes na intervenção de tropicalistas” (p. 73).

Veja abaixo a letra e trechos do videoclipe “Volta” de Johnny Hooker:

21 Acreditamos ser importante explicitar brevemente o que foram as Dzi Croquettes e os Secos e

Molhados. As primeiras foram um grupo teatral com diversas montagens que, durante a ditadura militar,

exibiam atores, cantores, travestidos de mulher, ao passo em que mantinham as feições e performances

corporais masculinas, investindo no sentido andrógino como provocação ao conservadorismo político e

sexual da época. Os Secos e Molhados foi uma banda liderada pelo cantor Ney Matogrosso que também

investia na androginia como uma das suas marcas. No caso de Matogrosso, a vestimenta costumava ser a

mesma – saias e o abdômen despido – além do gestual que valorizava os rebolados do cantor, além das

letras de músicas que ironizavam a masculinidade e criticavam a ditadura militar.

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Figura 6

Volta/ Que o caminho dessa dor me atravessa/ Que a vida não mais me

interessa/ Se você vai viver com um outro rapaz

Volta/ Que eu perdoo teus caminhos, teus vícios/ Que eu volto até o início/

Te carregando mais uma vez de volta do bar

Volta/ Que sem você eu já não posso viver/ É impossível ter de escolher/

Entre teu cheiro e nada mais

Volta/ Me diz que o nosso amor não é uma mentira/ E que você ainda

precisa/ Mais uma vez se desculpar

Então procurei/ Nos bares da Aurora me lamentei/ E confesso que talvez

joguei/ Tuas fotos e discos no mar

Então procurei/ Pelo teu cheiro nas ruas que andei/ Nos corpos dos homens

que amei/ Tentando em vão te encontrar

Johnny Hooker, assim como outros artistas, se coloca como o personagem

principal dos seus videoclipes. Com essa performance ele convoca, através do seu

corpo, a identificação do que está sendo contado com ele. Por se inserir neste contexto

de afirmação de minorias através das redes sociais e no consumo destes produtos,

inferimos também que este corpo que performatiza coloca-se como mediação entre a

audiência que se identifica e entre os gêneros convocados pela música e videoclipe,

mais especificamente, o brega – evidenciada pela letra e ritmo – e o pop – a referência

ao vestuário de Bowie – e à androginia e performance do cantor Ney Matogrosso, mais

especificamente na época dos Secos e Molhados.

Outro aspecto importante a ser ressaltado sobre a produção dos videoclipes de

Johnny Hooker e a centralidade que ele exerce neles é o fato dele ser o roteirista de

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todos os três produtos aqui analisados. Além, portanto, da centralidade que seu corpo

exerce enquanto cantor e personagem principal da narrativa, ele assume o papel de

escrever e, no caso do clipe aqui destacado – Volta – também dirigir. Essa

multiplicidade de papeis ocupados por uma mesma pessoa, reforça a aproximação de

Hooker e seu público, cabendo a ele escolhas imagéticas e narrativas. Entretanto, a

qualidade audiovisual e a participação de atores do filme em que esta música foi

inserida como trilha coloca Johnny Hooker numa relação de desigualdade

produtiva/econômica na comparação com alguém que tenha apenas seu telefone móvel

e uma câmera de qualidade.

Ele se apropria, portanto, de estratégias e ferramentas próprias das lógicas

produtivas do capitalismo contemporâneo e dos meios pós-massivos. Coloca-se também

dessa forma numa posição entre a expressão política – a dos corpos de minorias, que

rejeitam o dominante sobre a questão da sexualidade – e especificidades da indústria

cultural. Um tipo de articulação já vista em uma das matrizes que identificamos aqui: o

tropicalismo.

Entre a exigência política e a solicitação da indústria cultural, optou pelas

duas. Ou melhor: pela tensão que poderia ser estabelecida entre esses pólos.

E aqui tanto o sentido dessa exigência quanto a adequação aos esquemas do

consumo de massa foram objeto de um redimensionamento. Na opção

tropicalista o foco da preocupação política foi deslocado da área da

Revolução Social para o eixo da rebeldia, da intervenção localizada, da

política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida, ao corpo,

ao desejo, à cultura em sentido amplo. Na relação com a indústria cultural

essa nova forma de conceber a política veio a se traduzir numa explosiva

capacidade de provocar áreas de atrito e de tensão não apenas no plano

específico da linguagem musical, mas na própria exploração dos aspectos

visuais/corporais que envolviam suas apresentações (HOLLANDA &

GONÇALVES, 1986, p. 66).

Considerações Finais

A análise dos videoclipes do cantor Johnny Hooker nos permitiu ver que

elementos que identificamos hoje na relação entre estes produtos e sensibilidades e

expressões políticas tem suas matrizes culturais. Mais especificamente, a relação com o

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pop – no caso dele, Michael Jackson, Madonna e David Bowie –, o questionamento aos

ditames dominantes no que se refere à sexualidade, através da afirmação da androginia e

do lugar das minorias políticas, expresso através do corpo desse artista, já estavam

presentes no tropicalismo musical, nas Dzi Croquettes e nos Secos e Molhados,

liderados por Ney Matogrosso. Ou seja, há uma articulação com elementos culturais

brasileiros que ajudam a explicar o reconhecimento que o público tem com ele, além da

relação com o gênero brega.

Esse artigo indica ainda a propriedade de articular o mapa das mediações

culturais formulado por Martín-Barbero e a noção de estrutura de sentimento concebida

por Williams. Ao articularmos a noção das matrizes culturais do primeiro com o

conceito proposto pelo segundo, compreendemos que produtos culturais consumidos

hoje – conformando as culturas (modos de vida) atuais – convocam elementos culturais

existentes em outras épocas. Não podemos, portanto, compreender Johnny Hooker sem

essa relação histórica. Tampouco, podemos acreditar que essas relações históricas não

estão submetidas às lógicas produtivas próprias do momento atual.

Outra questão que conseguimos levantar com a análise desses videoclipes é que

as sensibilidades políticas que tensionam aspectos hegemônicos da sociedade brasileira

– no que se refere às minorias políticas – tem se valido de plataformas online para a

produção, circulação e consumo de produtos que as expressem, que se articulem

afetivamente com elas. A construção das identidades – do artista e das minorias – têm

sido perpassadas por interesses comerciais, como as existentes no Youtube, um dos

braços da multinacional Google.

E, por fim, há transformações envoltas na forma de se construir videoclipes.

Johnny Hooker caracteriza pela utilização de grandes narrativas, para os parâmetros de

videoclipes, relacionando-as a essas especificidades da internet. Existem, portanto,

transformações nas lógicas produtivas e nas formas de consumo importantes para que

compreendamos as convenções em contexto de formas mestiças de comunicação,

marcado pela existência de um tecno-comunicativo. Este último definindo por fluxos de

imagens e migrações de identidades, em que as sensibilidades políticas das minorias

exercidas em suas vidas cotidianas as fazem articular especificidades do contexto

brasileiros a formas de se expressar de culturas estrangeiras, como as vinculadas ao pop

americano.

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______. Marxismo e Literatura. 1979. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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ANEXO

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Johnny Hooker

Volta. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3ZaOZInmSDo

Amor Marginal. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qe713DXVF8k

Alma Sebosa. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8rSUKG1o8ys