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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PEDRO HENRIQUE MOREIRA LOPES TROPICÁLIA: UMA ANÁLISE ACERCA DE SEU DESENVOLVIMENTO E TRAJETÓRIA NO CAMPO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CURITIBA 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

PEDRO HENRIQUE MOREIRA LOPES

TROPICÁLIA: UMA ANÁLISE ACERCA DE SEU DESENVOLVIMENTO

E TRAJETÓRIA NO CAMPO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

CURITIBA

2010

2

PEDRO HENRIQUE MOREIRA LOPES

TROPICÁLIA: UMA ANÁLISE ACERCA DE SEU DESENVOLVIMENTO

E TRAJETÓRIA NO CAMPO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Monografia apresentada para a

obtenção parcial do grau de Bacharel

em Sociologia do curso de Ciências

Sociais. Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes. Universidade Federal

Do Paraná.

Orientadora: Prof. Drª Ana Luisa Fayet

Sallas

CURITIBA

2010

3

SUMÁRIO:

RESUMO:..................................................................................................................04

INTRODUÇÃO:..........................................................................................................05

CAPITULO 1: A TROPICÁLIA: ORIGENS E INFLUÊNCIAS.....................................10

1.2. A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA: O CAMPO DE ATUAÇÃO E A

TRAJETÓRIA TROPICALISTA..................................................................................19

CAPITULO 2: A INDÚSTRIA CULTURAL, O MERCADO E O SUBJETIVISMO NA

OBRA TROPICALISTA..............................................................................................30

2.1. AS NOVAS POSSIBILIDADES E O VANGUARDISMO TROPICALISTA..........39

2.2. GELÉIA GERAL E UNIVERSALISMO................................................................50

2.3. MUDANÇA COMPORTAMENTAL NAS APRESENTAÇÕES TELEVISIVAS E

“AO VIVO”..................................................................................................................57

CAPITULO 3: A INFLUÊNCIA DA TROPICÁLIA NA MÚSICA POPULAR

BRASILEIRA..............................................................................................................65

CONCLUSÃO:............................................................................................................70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:..........................................................................74

REFERÊNCIAS AUDIOGRÁFICAS:..........................................................................77

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RESUMO:

A Tropicália foi um movimento surgido nos anos finais da década de 60, mantendo-se ativa entre os anos de 1967 e 1972. Unindo influências de diversas áreas, incluindo a música, o teatro, a literatura e o cinema, a Tropicália inseriu importantes mudanças na relação entre público e o produto cultural consumido. Buscando aspectos universais, criou uma nova identidade dentro do campo da música popular brasileira, aliando aspectos interiores e exteriores à nossa cultura, influenciando uma série de artistas que se destacaram em períodos posteriores. Caracteriza-se como vanguardista, na medida em que aplica importantes alterações estéticas e comportamentais na cultura brasileira, principalmente na população mais jovem.

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INTRODUÇÃO:

Ao ser analisada, a Tropicália não se traduz, em um primeiro momento, como

um movimento de protesto, ou mesmo como um movimento, propriamente dito. Ao

reunir uma série de artistas, de diversos segmentos, como a literatura, a música e as

artes plásticas, esta se caracterizou por quebrar certos paradigmas tradicionais da

música popular brasileira, além de criar uma significativa ruptura, que afetou nossa

cultura em diversos níveis, como o comportamental, o político-ideológico e o

estético.

Em um momento político tenso e conturbado, já que o controle político do

Brasil há pouco havia caído nas mãos de um governo militar e ditatorial, a estética

tropicalista não primava exclusivamente pela música de protesto, apesar da

indignação e do desejo de liberdade encontrarem-se sempre presentes e latentes.

Este fato, por si só, já serviu para desagradar grande parte dos maiores

representantes da MPB daquele momento, fortemente ligados ou ao protesto ou ao

tradicionalismo da música brasileira. As acusações variavam de alienados à

detratores da verdadeira música popular brasileira.

Entre as principais influências para a nova estética tropicalista, estavam

presentes a psicodélia, tão em voga nos meados da década de 60 e fortemente

influente entre a juventude, o resgate de um certo folclore esquecido, seja pela sua

musicalidade, seja pelas suas vestimentas tradicionais. O rock`and`roll também se

mostra em forte tendência impactante, já que a MPB, até o momento, nunca tinha

visto tamanha utilização de guitarras elétricas, apesar do caminho já aberto e

trilhado pela Jovem Guarda, nos meados da década de 60. Entre outras tendências

e influências, a Tropicália também se utilizou da herança literária e comportamental

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deixada pela Semana de Arte Moderna, de 1922, e de grande parte dos movimentos

artísticos que esta pôde deixar mais comuns à nossa cultura, como o futurismo e o

concretismo. Por último, vale ressaltar a presença e influência de toda a temática

que se sobressaia naquele momento ao redor do mundo, como a Pop-art e seus

criadores, como Andy Warhol e Liechstentein, a contracultura e a cultura hippie,

além de novas expressões artísticas que o Brasil acabara incorporando naquele

momento, como o cinema novo de Glauber Rocha e o teatro anárquico e

revolucionário de José Celso Martinez Corrêa, principalmente através de sua

adaptação para a obra “O Rei da Vela”, de Oswald Andrade. Vale lembrar que da

pop-art, uma importante influência adquirida foi a da “colagem”. Os arranjos musicais

tropicalista, grande parte desenvolvidos pelos maestros Rogério Duprat e Julio

Medaglia, primavam por colagens de sons sobre um ritmo pré-determinado, o que

soava como algo alheio a música, algo que não deveria estar inserido ali naquele

momento. Voltarei a discutir este ponto mais adiante, já que este fator é

perfeitamente reprimível por uma estética de cultura industrializada, que prima pela

produção daquilo que já é previamente reconhecido e aceito, como audível e

rentável ao mesmo tempo, sendo que na Tropicália, este recurso foi usado, algumas

vezes, de forma exagerada e acabou por gerar desagrado aos próprios ouvintes.

Interessante salientar que, frente a este grande arcabouço de influências, a

Tropicália acabou por adiantar, ao menos no aspecto musical, uma forte tendência

globalizante. O local e o universal se encontram dentro de uma mesma produção

musical, antecipando aquilo que mais tarde será conhecido como “world music”. Os

artistas relacionados ao movimento tropicalista não se prendiam a limitações,

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misturavam o baião nordestino, com a psicodelia proveniente da Costa Oeste Norte-

Americana e influências do futurismo italiano de Marinette.

Claro está que esta não era uma exclusividade de nossa Tropicália, visto que

a música passava por um momento que unia, ao mesmo tempo a criação e a

(re)descoberta daquilo que já fora criado, caracterizando um termo criado pela

própria estética tropicalista, o de “geléia geral”. O termo foi cunhado pelo poeta

Décio Pignatari, justamente para definir a cultura brasileira, que ao mesmo tempo,

caminhava de maneira dinâmica para a modernidade, mas ainda se prendia as

amarras da tradição, conservando em sua cultura toda a carga objetiva e subjetiva

de seu passado: “na geléia geral brasileira, alguém tem que exercer as funções de

medula e osso”. (Calado, 1997)

Uma característica marcante que o tropicalismo não deixou de ressaltar, é

justamente a incorporação do externo, a influência aberta que o “que vem de fora”

exerce sobre nossos costumes, nossa cultura e mesmo em nossa política.

Aliando toda esta carga de influências, externas e internas, o movimento

tropicalista mostrou-se como um dos mais prolíficos e vanguardistas da história da

música popular brasileira, redefinindo padrões estéticos e comportamentais, além de

influenciar vários artistas e segmentos musicais posteriores.

Através do presente trabalho, pretendo apresentar, por meio de pesquisas em

fontes bibliográficas e a própria análise de letras e fatos ocorridos no período, como

o movimento foi importante para o acontecimento de fortes mudanças no

comportamento artístico e da juventude brasileira. Pretendo apresentar fatos que

mostrem a importância deste movimento como um “desbravador” da cultura

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brasileira, no que tange a assimilação de grande influência vanguardista, seja no

campo comportamental, seja no campo da produção artística. Foi este movimento o

principal responsável por retratar tão bem as ambigüidades latentes da cultura

brasileira: o encanto com o externo e a forte ligação com as amarras da tradição, a

necessidade de evolução e de acompanhar o ritmo das mudanças, bem como o

forte espírito experimental presente na cultura brasileira, tão diversa e, em partes,

reservada a pequenos rincões isolados, caracterizado pelas manifestações do

folclore.

Como contraponto e referencial teórico, utilizarei a crítica frankfurtiana à arte e

seu papel na sociedade industrial, quando esta assume caráter de produto e,

conseqüentemente, gerando rentabilidade. Claro que a Indústria Cultural implicará

na difusão e propagação do trabalho artístico, solidificando a artista como tal; mas

esta também pode vir a fazer um desagradável papel, de limitadora das

possibilidades experimentais, na maioria dos casos, já que é necessário adaptar o

conceito inicial as próprias necessidades de um mercado consumidor. Outro efeito,

muitas vezes nocivo deste mesmo processo, está no caráter de igualdade que pode

transmitir a produção, já que as adaptações acabam por construir um modelo pré-

fabricado e pré-aceito, onde a idéia inicial se transmuta completamente quanto ao

conceito final.

É justamente nestes dois pontos que focarei minha análise. Em como a

Tropicália utilizou-se dos meios de divulgação artística e cultural propostos pela

Indústria Cultural e, de que modo também modificou estes meios ao propor uma

estética muito mais ousada e revolucionária para a música e a arte brasileira

daquele momento, influenciando boa parte do que se produziu posteriormente. A

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Tropicália caracteriza-se por renovar forma e conteúdo, apresentando uma arte

engajada e diferenciada ao mesmo tempo.

O trabalho também se sustentará sobre o conceito de campo, proposto pelo

sociólogo francês Pierre Bourdieu. Definindo um campo de atuação conhecido como

Música Popular Brasileira, apresentarei como se deu a trajetória do movimento

tropicalista e a relação desta nova estética com aquela que já se encontrava inserida

neste mesmo campo, renovando e se relacionando com os já estabelecidos.

Hipoteticamente levantaremos a seguinte questão: de que maneira estas

novas influências, vindas de modelos interiores e exteriores, conseguiram definir

uma nova estética, renovando o caráter da música popular brasileira? Também, de

que modo, a trajetória dos principais representantes pôde ser relevante para esta

mesma estética geral, tropicalista enquanto movimento.

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1. A TROPICÁLIA: ORIGENS E INFLUÊNCIAS

A Tropicália foi um movimento que, desde seu inicio, ansiava por criar algo

novo, algo que jamais fora visto dentro da música popular brasileira. O crítico

musical Zuza Homem de Mello resume, no trecho a seguir, a insatisfação que sentia

ao constatar que nada de realmente novo estava sendo criado, desde a criação da

bossa nova nos meados da década de 50:

“Acho que a música brasileira, depois da bossa nova, ficou discutindo o que a bossa

nova propôs, mas não saiu dessa esfera, não aconteceu nada maior. Eu, pessoalmente, sinto

necessidade de violência. Acho que não dá pé para a gente ficar se acariciando. Me sinto mal

já de estar ouvindo a gente sempre dizer que o samba é bonito e sempre refaz o nosso

espírito. Me sinto meio triste com estas coisas e tenho vontade de violentar isto de alguma

maneira. É a única coisa que me permite suportar e aceitar a idéia de manter uma carreira

musical, porque uma coisa é inegável: a música é a arte mais viva de todo o mundo. O que

acho é que a música tem sido utilizada muito pra gente se manter enganado e eu não quero

mais. Quero que a gente saiba mesmo, que a gente engula e veja que a gente está num país

que não pode nem falar de si mesmo. A gente tem que passar a vergonha toda pra poder

arrebentar as coisas.” (CALADO, 1997 p. 117).

A partir deste trecho, fica nítido que um desejo de mudança estava latente,

que era necessário experimentar e criar, já que a juventude não mais se contentava

com aquilo que era natural para época. A música considerada jovem necessitava se

libertar, daquela rebeldia juvenil, insossa e inofensiva que a jovem guarda propunha.

A própria MPB politizada já não cativava tanto a atenção da juventude, e aquele

desejo de violência, citado por Zuza Homem de Mello, já era eminente. Assuntos

como dependência econômica, internacionalização da cultura, consumo e

conscientização eram pesados ou perigosos demais para serem abordados

abertamente, entretanto, o interesse em tratar estas temáticas era cada vez maior

entre a juventude influenciada diretamente pelos conhecidos conflitos de maio de 68.

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Em um momento crítico da política brasileira, logo após uma tomada militar

autoritária e repressora, a música popular brasileira se encontrava encurralada em

um beco, onde se tornava arriscado a produção de algo novo, visto que qualquer

diferencial, seja em composições, seja em evoluções rítmicas e musicais, poderia

ser considerado subversivo e anti-nacionalista. Neste meio, destacavam-se duas

grandes correntes da música nacional. A bossa nova, já se encontrava saturada da

grande badalação sofrida desde sua criação, e conseqüente fama internacional,

conseguida graças ao contato de artistas como João Gilberto e Tom Jobim com

grandes nomes da música internacional, como Stan Getz e Frank Sinatra. Desde o

golpe militar de 1964, uma grande parcela dos compositores brasileiros aderiu à

chamada música de protesto, caracterizada por um forte comprometimento social e,

principalmente, grande apelo e proximidade com a esquerda revolucionária. Foi esta

corrente que, inspirada na batida suave e solitária da bossa-nova, deu

prosseguimento à sua influência, inserindo-a em um contexto social mais repressor

e autoritário.

Por outro lado, havia os jovens, que se aproximavam da música eletrificada,

movida a guitarras e baixos elétricos, claramente inspirados na onda de rock que já

dominava os Estados Unidos da América e a Inglaterra naquele período. Chamado

Jovem Guarda, este outro movimento ficou conhecido como nosso primeiro contato

com o rock internacional. Caracterizado inicialmente por adaptarem ao português,

músicas típicas de grupos como Beatles e Rolling Stones, estes não escondiam

suas verdadeiras preocupações no momento: passeios de carro, namoro e festas

badaladas. Entre os principais representantes desta primeira safra da Jovem

Guarda, podemos destacar a dupla Roberto e Erasmo Carlos, cantoras como

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Wanderleia e Silvinha, Eduardo Araújo e grupos instrumentais como Os Incríveis,

Renato e seus Blue Caps, The Jordans e The Jet Blacks.

Entretanto, na Europa e nos Estados Unidos da América, uma grande parcela

da juventude se aproximava de um novo tipo de cultura, uma cultura que negava o

“establishment”, que pregava a paz frente a um mundo cada vez mais violento e

repressor, que enxergava no amor livre a grande saída para a crise de identidade

contemporânea. Era o surgimento do movimento hippie, da contracultura e de toda a

geração conhecida como a “geração maio de 68”, justamente por serem os

responsáveis pelas manifestações e conflitos que caracterizaram aquele momento

específico, causando grande furor e conseqüências que são sentidas até hoje.

Musicalmente, 1968 não representou uma ruptura para as direções que a

música popular brasileira vinha tomando. Significou, no entanto, uma radicalização

das experiências sonoras e aquisição de novas influências, convergindo as

vanguardas mais radicais com a tradicional cultura da MPB, modernizando e

atualizando a arte voltada para as massas no Brasil.

Diante deste contexto, surge um grupo de músicos, artistas plásticos, poetas,

entre outros segmentos diretamente ligados a cultura e a arte, que propõe uma nova

face para a música popular brasileira. Buscando uma ligação entre a influência da

bossa nova e da música de protesto, ligando estas com todo aquele fervor

revolucionário que a contra cultura propunha e pautando-se, principalmente, na força

vigorosa do rock e da cultura hippie. Desta maneira, os tropicalistas propunham para

o Brasil um novo movimento, que trouxesse em seu teor todo o caráter

internacionalista e universal que a juventude ansiava, não se prendendo

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exclusivamente as amarras tradicionais e limitadoras que a música popular brasileira

delimitava até o presente momento.

Herdeiros assumidos da chamada vanguarda antropofágica, desenvolvida nos

anos 20, pelo escritor, ensaísta e dramaturgo Oswald de Andrade, os músicos

ligados ao movimento tropicalista também assumiram uma posição de se basear em

diversos tipos de cultura e tradição, assimilando as qualidades que se mostrassem

presentes em cada uma delas. Em seu conceito inicial, Oswald considera que a

cultura brasileira é a mais forte, pois além de suas características próprias, ela

digere características também fortes da cultura européia tornando-se, deste modo,

mais rica e fértil do que àquela.

Encontra-se presente a idéia, amplamente discutida por diversas correntes

da antropologia, de que o canibal jamais se alimenta de outro ser humano apenas

para satisfazer uma simples necessidade nutricional. Ele se alimenta do outro

visando à conseguir deste suas características desejáveis, sua inteligência, sua

força. Desta forma, a Tropicália assume as influências vindas do exterior, não

negando, em nenhum momento, a assimilação das características estrangeiras em

seu processo de criação. É se “alimentando” e “digerindo” o pop-rock inglês e norte-

americano que a Tropicália enriquecerá a própria cultura nacional. Entretanto, como

fica nítido ao compararmos a Tropicália ao movimento da Jovem Guarda (que

claramente assumia uma postura de assimilação e cópia pura do rock inglês e norte-

americano, a ponto de serem reconhecidos por uma cacofonia que representa a

sonoridade daquele ritmo, o Iê-Iê-Iê), por exemplo, percebemos a importância que

os tropicalistas dão a verdadeira herança da cultura nacional, aos seus ritmos, a sua

tradição. Além do movimento tropicalista, a herança desta vanguarda antropofágica,

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desenvolvida por Oswald de Andrade na década de 20, também se mostra presente

em setores do teatro, como o “Teatro Oficina”, e no cinema novo de Glauber Rocha,

além da temática das obras do artista plástico Hélio Oiticica.

Cabe ressaltar aqui a importância da obra do cineasta Glauber Rocha. Todos

os artistas tropicalista, sem exceção, sempre fizeram questão de salientar a

importância da obra deste para a criação e o desenvolvimento de toda a temática e

estética tropicalista. Criador de um estilo próprio e inconfundível, Glauber propunha

uma obra onde aliavam-se a crítica social feroz, com um método de filmagem que se

diferenciava completamente do método importado dos Estados Unidos da América,

método este que dominava grande parte da filmografia nacional. Adepto de uma

visão apocalíptica, que enxergava um mundo em constante decadência e míséria,

Glauber se destaca no cenário nacional e internacional ao propor um novo tipo de

cinema, tão ácido e sarcástico que não tardou a desagradar todo o regime militar

brasileiro, sendo considerado como subversivo e pessimista demais em relação ao

futuro da política nacional. Entre suas principais obras, destacam-se: “Barravento”,

de 1962; “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1963; “Terra em Transe”, de 1967 e

“O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, de 1968.

Além da herança deixada pela tradição antropofágica oswaldiana, a tropicália

também utiliza-se fortemente dos conceitos de outras correntes ligadas ao

movimento do modernismo do século XX, como o concretismo. Claro que a

composição musical também se aproveita desta herança, mas são nos arranjos que

podemos sentir a verdadeira influência que cada uma destas se dá, principalmente

nos inovadores arranjos de Rogério Duprat e do maestro Júlio Medaglia, aliando

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aspectos do popular com os avanços estéticos propostos por compositores como

Jonh Cage e Karlheinz Stockhausen.

Os espaços que delimitam cada uma destas influências dentro da música são

espaços transitórios e amorfos. Há uma troca mútua entre cada uma destas

influências, fazendo com que uma mesma composição assuma diversas influências,

apresentando ao ouvinte grande versatilidade na união.

No momento da produção musical, fatores aparentemente desligados à

música podem surgir como essenciais para o processo fonográfico. O estímulo a

fluição da música surge de acordo com o momento, seja ele o de execução, seja o

da gravação ou mesmo o momento da contemplação, e a captação de uma

realidade palpável é primordial, aquela que o ouvinte pode realizar no conforto de

seu lar.

Propondo uma valorização da cultura nacional tradicional, aliada ao caráter

universal e, de certa maneira, já globalizado da nova estética contra-cultural, os

tropicalistas surgiram causando grande furor na música popular brasileira. Formado

por um grupo de músicos vindos, em sua maioria, do estado da Bahia, além de uma

gama de maestros, poetas, artistas e compositores diretamente ligados, a Tropicália

caracteriza-se como movimento vanguardista no cenário musical nacional, causando

uma ruptura de padrões que afeta não somente a música, como também ao

comportamento e mesmo a política nacional.

Em tempo, é necessessário definir o que representa o termo “vanguarda

cultural” ao longo do século XX. O termo vanguarda, provindo do francês “avante-

garde”, refere-se literalmente ao pelotão que toma a frente em uma batalha,

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enfrentando todas as vicissitudes e consequências do desconhecido. Assim como

estes pelotões que tomam a frente em uma batalha, os considerados movimentos

culturais de vanguarda assumem a dianteira, apresentando o desconhecido e

enfrentando tudo aquilo que encontra-se pré-estabelecido, ou seja, renovando.

Segundo Ferreira Gullar, “a renovação não significa romper com todo o

patrimônio de experiências acumulado. Forma revolucionária não é mera diluição de

“achados” formais e sim a forma que nasce como decorrência inevitável do conteúdo

revolucionário. São os fatos, a História que criam as formas, e não o contrário.”

Gullar prossegue: os movimentos de vanguarda caracterizam-se todos em ao menos

um ponto, a “rejeição dos principios estéticos e da ocupação acadêmica”. (GULLAR,

2006. pg. 173)

Sendo assim, aceitamos para o presente trabalho, a necessidade de que a

arte de vanguarda, mesmo que destinada ao menor número possível de

espectadores, deve manter uma relação de proximidade com estes. A aceitação de

simples arte pela arte distanciaria esta de uma de suas características principais, ou

seja, a de manter com o público a relação de troca e renovação. Sendo assim, é

necessário salientar que, apesar de revolucionar no campo estético (externo), a arte

de vanguarda também renova-se internamente, alterando forma e conteúdo

conjuntamente.

Por fim, Gullar também vê a importância do coletivo para o conceito de

vanguarda. A arte de vanguarda se firma através da troca mútua de influências entre

representantes e vivenciados de diversas áreas, o que capacita a criação de algo

realmente inédito, já que une e recria perante visões análogas e divergentes.

Prossegue Gullar: “aliás a expressão avant-garde – discutível sob inúmeros

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aspectos – se torna mais usual a partir do século XX e reflete a pretensão dos

movimentos artísticos, de caráter coletivo, que estariam na “vanguarda” das artes,

abrindo novos domínios à expressão estética.” (GULLAR, 2006. pg 177)

Ao revolucionar os métodos criativos, contribuem para alterar a própria

percepção artística e contemplatória do público, deste modo, enfrentando grande e

agressiva força crítica e contestatória, assim como podemos perceber ao analisar o

inicio do movimento tropicalista. Ao inserirem um grande aparato de arranjos e

influências, foram duramente criticados pela ala mais tradicionalista da música

popular brasileira, acusados de não comprometimento ideológico e de

“americanizarem” a nossa MPB.

Sendo assim, podemos definir um movimento de vanguarda, aplicado no

campo da cultura e da arte, quando este apresenta características como estas:

1. Representa uma quebra de paradigmas com estilos e escolas já

estabelecidos, mesmo quando se caracteriza por unir características de dois ou mais

estilos ou escolas, fundindo e criando algo novo. (Como no caso da Tropicália, que

uniu influências da bossa nova, da jovem guarda e até mesmo da música de

protesto, que tanto a repudiou inicialmente)

2. Choca ao apresentar uma estética diferenciada e, na maioria das vezes,

agressiva, aos moldes estabelecidos, provocando os modelos mais tradicionais.

3. Sofre preconceitos, repulsa e severas críticas, ao não ser compreendida,

sendo analisada de acordo com padrões estéticos focados no tradicional e já

reconhecido.

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4. Através de uma proposta diferenciada, revolucionária, acaba por influenciar

e mesmo a criar novas vertentes ou facções. Isso pode levar a uma diferenciação

apreciativa, e a consequente formação de apreciadores para um novo gênero, assim

como a nova parcela consumidora deste.

Na verdade, a Tropicália estava compondo um quadro que retratava, e ainda

retrata, a verdadeira realidade brasileira, com todas as suas características e

discrepâncias, apresentadas ao público de maneira alegre e sem disfarces, ao

mesmo tempo.

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1.2 A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA: O CAMPO DE ATUAÇÃO E A

TRAJETÓRIA DOS TROPICALISTAS

Em meados da década de 60, o campo da música popular brasileira, como já

dito, se dividia principalmente em três setores distintos: os herdeiros assumidos da

bossa nova, que ainda conservavam o romantismo inicial do movimento; aqueles

que também mantinham a tradição desta, mas uniram com a temática do protesto e

a aproximação com a cultura popular; e por último a música jovem e

descompromissada da jovem guarda, com suas letras açucaradas e quase juvenis.

Uma característica que o campo da MPB apresentava até este momento, era

a hermeticidade entre estes setores dentro do campo geral. Era quase nulo o

diálogo entre a música de protesto e a jovem guarda. Entre a música de protesto e a

cultura tradicional, popular, o diálogo era mais fácil, porém sem grandes progressos,

já que aqueles mantinham uma certa postura intelectual, estranha à estes. Até

mesmo quando tentavam se aproximar, através dos comites de arte e cultura

popular, o diálogo se tornava forçoso, devido a estas características. Era comum

até mesmo a crítica pública entre estes, com os artistas fazendo declarações de

repúdio a determinados setores alheios aos seus.

Cabe aqui salientar aqui o conceito de campo, idealizado pelo sociólogo

francês Pierre Bourdieu. O campo é o meio onde ocorrem todas as relações sociais

de determinado grupo, sejam elas de disputa ou de cooperação. Cada representante

possui sua carga de capitais pessoais, e através desta é que consegue se

representar e fazer-se notar com maior ou menor facilidade, relacionando-se com os

outros representantes deste mesmo campo. Bourdieu salienta um caráter geral para

os campos, que é justamente o fato de lidar com disputas além de materias,

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simbólicas, onde a posse é mais relacionada ao “ser” do que ao “ter”, onde também

é relevante as características relacionadas a prestígio, reconhecimento e poder.

“O conceito de campo é um dos conceitos centrais na obra de Pierrre Bourdieu e é

definido como um espaço estruturado de posições onde dominantes e dominados lutam pela

manutenção e pela obtenção de determinados postos. Dotados de mecanismo próprios, os

campos possuem propriedades que lhes são particulares, existindo os mais variados tipos,

como o campo da moda, o da religião, o da política, o da literatura, o das artes e o da ciência.

Todos eles se tornam microcosmos no interior do mundo social.” (THIRY-CHERQUES, 2006.)

É interessante salientar que de acordo com a posse destes capitais

simbólicos e materiais, é natural que ocorram lutas entre aqueles que pretendem

assumir posições e aqueles que desejam mante-las. Ao adaptarmos a teoria ao

nosso campo, o da música popular brasileira, é natural encontrarmos pontos de

atrito, onde os agentes lutavam por questões exclusivamente simbólicas, como o

maior tempo dedicado a cada um dentro das programações de rádio ou televisão, ou

mesmo o reconhecimento dentro de um festival de música.

Bourdieu salienta esta idéia no trecho a seguir:

“Os campos são resultados de processos de diferenciação social da forma de ser e

do conhecimento do mundo e o que dá suporte são as relações de força entre os agentes,

(individuos e grupos) e as instituições que lutam pela hegemonia, isto é, o monopólio da

autoridade, que concede o poder de ditar as regras e de repartir o capital específico de cada

campo.” (BOURDIEU, 1996. pg 114)

Além das disputas por objetos e capitais de uso exclusivamente de cada

agente, o campo também cria necessidades gerais, comuns a todos os agentes

envolvidos. Uma destas é a manutenção do próprio campo, assim como o controle

do que é produzido dentro dele. No presente caso, parte da cultura popular

brasileira, e os interesses destas são defendidos mesmo sob as desavenças que

possam existir. Este é o ponto de intersecção entre os diferentes setores dentro de

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um campo, mesmo quando estes tendem a disputas constantes. É o meio onde

ação e reação acontecem de modo mais brando e homogêneo.

Quando analisamos a origem social dos agentes envolvidos com o fenômeno

tropicalista, é interessante salientar que quase todos eles provinham de famílias

relativamente bem estabelecidas, ou seja, com um significativo poder aquisitivo e

representação social. Com um bom nível sócio-cultural, artistas como Caetano, Gil,

Gal e Tom Zé tiveram condições de se aproximarem e contemplarem peças, de

diferentes vertentes artísticas, relacionadas ao cinema, ao teatro e a música. Em

suas juventudes, puderam se relacionar com a efervescência cultural provocada

pela renovação vanguardista na UFBA (Universidade Federal da Bahia), proposta e

implementada pelo seu reitor na época, como cita Calado no trecho a seguir:

“Reitor da Universidade Federal da Bahia, entre os anos de 1946 e 1962, o audacioso

Edgard Santos investiu pesado no avanço cultural da instituição e da cidade. Edgard Santos

idealizou um espécie de choque intelectual, tentando reverter a marginalização cultural da

Bahia dos anos 40. Em sua concepção, a Universidade – necessariamente livre para criar e

refletir – deveria desempenhar o papel de ponta de lança da sociedade”. (CALADO, 1997. Pg

34,35)

Interessados desde o inicio neste tipo de arte mais experimental e

descompromissada com padrões, esta nova safra da música baiana se encantou ao

se deparar com obras como “Terra em transe”, do diretor Glauber Rocha ou a

adaptação de José Celso de Martinez Correia para a peça oswaldiana “O rei da

vela”. Facilmente se sentiram atraídos pelos arranjos inovadores de Rogério Duprat,

Damiano Cozzella e Julio Medaglia, trasmitindo para suas obras toda a ânsia de

criarem algo realmente inédito para os padrões nacionais.

Recapitulando a trajetória inicial do movimento tropicalista, ao menos de seus

principais representantes, notamos a preocupação que aqueles tinham em se

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fortalecerem frente a mídia, unindo-se na intenção de provocarem um maior impacto

inicial para seus projetos.

Envolvidos em um projeto que reuniu diversos artistas, de diversas frentes, se

empenharam na produção de um espetáculo que pudesse fazer com que se

fizessem notados e representativos no campo da música popular brasileira:

“Intitulado `Nós, por exemplo´, o show que ocupou o palco do Vila Velha, na noite de

22 de agosto de 64, tinha uma intenção bem definida: introduzir um grupo de jovens

compositores, cantores e instrumentistas, em maior ou menor medida influenciados

pela bossa nova, com pretensões de renovar a música popular brasileira.”

(CALADO, 1997. Pg 50).

Interessante notar o caráter coletivo do projeto. Unindo em uma única frente,

diversos agentes relacionados a música e mesmo a outras vertentes artistícas, como

o teatro e o cinema, já que a renovação vanguardista da UFBA, acabou por

influenciar grande parte do que surgia de novo no campo artistíco baiano.

Bem estabelecidos, posteriormente, é válido salientar a grande troca de

influências e mesmo de letras entre os artistas, marcando uma trajetória de conexão

entre as obras. Uma mesma faixa era gravada duas ou até três vezes, cada uma

com arranjos e adaptações diferentes, de acordo com a inspirações e influências de

cada um. É o caso de faixas como “London, London”, “Baby” ou “Cinema Olimpia”.

Voltando a questão referente a afirmação, dentro do campo geral da música

popular brasileira, os tropicalistas conseguiram se afirmarem mais facilmente,

construindo uma trajetória que os levaram ao grande público, consagrando-se

através de diversos níveis, inclusive através dos grandes festivais musicais,

23

organizados pelas emissoras de TV. Sendo que Bourdieu considera que toda

trajetória social deve ser compreendida como uma maneira ímpar de percorrer o

espaço social, o trecho a seguir dá o tom de como os agentes conseguem se

representar através da expressão de suas necessidades e anseios. Bourdieu

salienta que:

“é com relação aos estados correspondentes da estrutura do campo que se

determinam em cada momento o sentido e o valor social dos acontecimentos

biográficos, entendidos como colocações e deslocamentos nesse espaço ou, mais

precisamente, nos estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes

espécies de capital que estão em jogo no campo, capital econômico e capital

simbólico como capital específico de consagração. (BOURDIEU, 1996. Pg 292).

Analisada a partir de hoje, podemos perceber o quanto houveram

disparidades no decorrer da trajetória de cada um dos agentes envolvidos no

movimento tropicalista.

Enquanto os principais representantes (Caetano, Gil, Gal e os Mutantes)

seguiram uma carreira ascendente e promissora, com forte apelo midiático e obras

atingindo níveis de venda cada vez maiores, outros não tiveram o mesmo destino.

Mantendo-se experimental ao longo de toda sua carreira, Tom Zé acabou por ter seu

verdadeiro talento reconhecido apenas décadas depois da explosão inicial do

movimento. Até os dias atuais, Tom Zé mantém-se fortemente influenciado pela arte

experimental, lançando álbuns que giram em torno de um pequeno circuito mais

alternativo e fechado.

No final da década de 80, o músico, compositor e produtor musical David

Byrne, líder e fundador do grupo Talking Heads, declarou sua paixão pela música de

Tom Zé, lançando uma coletânea que reunia os principais sucessos deste durante

24

as décadas de 60 e 70. Consequentemente, Tom Zé acabou assistindo a uma

relativa renovação no interesse pela sua obra, por vezes mais no exterior do que

dentro de seu próprio país.

Assim como Tom Zé, o compositor Jards Macalé e o guitarrista Lanny Gordin

ainda são nomes semi-desconhecidos dentro da música popular brasileira, mesmo

tendo influenciado tantos outros músicos ao longo das décadas seguintes. O mesmo

ocorre quando citamos os nomes de Rogério Duprat, Julio Medaglia, Torquato Neto

ou Hélio Oiticica, apesar de se apresentarem como nomes fundamentais para o

desenvolvimento de toda a estética tropicalista.

Até mesmo no revival que aconteceu a partir da década de 90, com diversas

obras homenageando e revitalizando a estética tropicalista, é interessante notar o

quanto estes são nomes ignorados, ao contrário de nomes como Caetano, Gil ou os

Mutantes.

Boa parte deste novo interesse, e também da badalalação principalmente

sobre Caetano e Gil, se deve ao lançamento do álbum “Tropicália 2”, de 1993.

Empenhados no resgate daquela mesma explosão criativa do auge tropicalista,

Caetano e Gil criaram uma obra que buscava retratar a estética que buscavam

naquele período. Consequentemente, geraram um hit (“Haiti”) e trouxeram os

holofotes novamente para si, enquanto tantos outros, ligados diretamente ao

movimento, mantiveram-se no esquecimento.

Analisando sob estes aspectos, podemos notar a questão da hierarquização e

da disputa simbólica dentro do campo. O campo da música popular brasileira,

mesmo se apresentando como um campo extremamente rico e fértil, necessitava de

25

algumas “pontas de lança”, artistas que pudessem se envolver diretamente com a

mídia, capazes de lidar com as pressões e adequações exigidas pela Indústria

Cultural. Alguns, relegados a segundo plano, serão os futuros “malditos da mpb”;

artistas de extrema capacidade criativa e intelectual, mas que devido a falta de

interesse da mídia e das próprias gravadoras, acabaram esquecidos, servindo de

influência para muitos, mas não conseguindo se estabelecer de maneira concreta

no mainstream. A hierarquização se torna um fator de suma importância, já que o

mainstream e, consequentemente, a própria relação entre mercado e público,

acabam por selecionar e segregar boa parte do que se produz dentro da arte, no

presente caso, dentro da música popular brasileira.

Apesar da aspereza das palavras, o processo acaba transparecendo a idéia

de Bourdieu, quando este salienta que dentro do campo, as disputas, mesmo

quando veladas, se dão entre aqueles que “desejam assumir posições e aqueles

que desejam mantê-las” (Bourdieu, 1984. Pg 114), culminando em um processo de

constante luta por representatividade dentro do próprio campo, fortalecendo ainda

mais a este.

Abaixo segue uma pequena biografia e caracterização de cada um dos

principais envolvidos no movimento tropicalista, principalmente entre os anos de

1967 e 1972, período em que pode-se considerar como atuante o movimento

tropicalista:

Artistas direta e indiretamente relacionados à Tropicália.

Caetano Veloso: Cantor e compositor, nascido em 1942, no município de Santo

Amaro da Purificação, Bahia. Chegou a iniciar o curso de filosofia na UFBA

26

(Universidade Federal da Bahia), entretanto logo deixou o bacharelado para se

dedicar exclusivamente a música. Caetano continua fazendo sucesso até os dias

atuais, lançando bons álbuns e fazendo turnês freqüentes.

Gal Costa: Cantora intérprete, nascida em Salvador em 1945. Lança sua primeira

obra, o álbum “Domingo”, em conjunto com Caetano Veloso, no ano de 1964. A

partir do inicio da década de 70, com Caetano e Gil indo para o exílio, torna-se a

principal expoente da Tropicália. Assim como Caetano, está na ativa ainda.

Gilberto Gil: Cantor e compositor, nascido em Salvador, em 1942, entretanto, com

família instalada em Ituaçu, também na Bahia. Forma-se em Administração e quase

segue carreira nesta função, até se render por completo à música. Lança discos com

relativa freqüência e participou da política, como ministro da cultura durante certo

período do governo Luís Inácio Lula da Silva.

Mutantes, Os: Banda paulista formada inicialmente em 1966, pelo baixista, pianista,

cantor e compositor Arnaldo Baptista (1948); por seu irmão, o guitarrista Sérgio Dias

(1951), e pela cantora e compositora Rita Lee (1947). Ao aderir ao Tropicalismo, o

conjunto tornou-se o grande nome do rock de vanguarda da música brasileira dos

anos 60. Com formação erudita e influências da cultura pop, não se preocupavam

em acompanhar uma obra de Bach com guitarras e baixo elétricos, fundindo

elementos aparentemente inconcebíveis aos padrões da MPB. Após 1972, Rita Lee

se afasta do grupo, com Sérgio e Arnaldo seguindo uma linha cada vez mais

próxima do rock progressivo inglês, em auge durante a década de 70. Nos dias

atuais, Sérgio recriou o grupo, inclusive lançando um álbum com a participação do

irmão Arnaldo (“Haih or Amortecedor”). Já Arnaldo, recentemente recebeu uma

homenagem, através do documentário “Loki”, de Paulo Henrique Fontenelle, onde é

27

retratada sua vida, inclusive os infortúnios recorrentes após anos de abuso de

drogas e o acidente ocorrido em 1981. Já Rita Lee se encontrada bem estabelecida

no mainstream, lançando álbuns freqüentemente e em constantes turnês.

Nara Leão: Cantora intérprete, também nascida em 1942, em Vitória. Começou

como cantora de bossa nova e logo recebeu o apelido de “musa da bossa nova”.

Artista criativa e dinâmica, logo se encantou pela criatividade presente na estética

tropicalista. Nara veio a falecer prematuramente, em 1989, vítima de um tumor

cerebral fatal.

Tom Zé: Cantor e compositor, nascido em Irará, na Bahia. Estudou música na UFBA

(Universidade Federal da Bahia), onde entrou em contato com compositores

experimentais e vanguardistas. Logo se instala em São Paulo, já expondo forte teor

satírico e politizado em suas composições, aliando protesto e deboche às suas

letras. Durante muito tempo, Tom Zé assumiu um papel “underground” e “maldito” na

música popular brasileira, sendo redescoberto há pouco tempo. Ainda lança álbuns

com forte caráter experimental, nunca deixando de lado a irreverência e a acidez de

suas letras.

José Carlos Capinan: Poeta e letrista, nascido em 1941, em Esplanada, Bahia. Em

1963, também se instala em São Paulo, onde começa a trabalhar como publicitário e

dá inicio as suas primeiras composições. Ao longo das décadas de 60 e 70, trabalha

com grandes nomes da música popular brasileira, como Fagner, Paulinho da Viola e

João Bosco. Em 2000 ajudou a criar uma ópera em homenagem aos 500 anos do

descobrimento do Brasil.

28

Rogério Duarte: Artista gráfico, músico, compositor, poeta, tradutor e professor

universitário. Nascido em 1939, em Ubaíra, Bahia. Participa da Tropicália como

mentor intelectual. Criador das capas dos principais discos do movimento tropicalista

e co-autor de algumas músicas de Gil e Caetano. Ainda trabalha com desenho e

design gráfico. Em 2000 escreveu um livro onde retrata a sua visão da Tropicália,

dando créditos a pessoas pouca lembradas quando trata-se o tema Tropicália, como

Hélio Oiticica, Torquato Neto e a si mesmo.

Rogério Duprat: Maestro e compositor. Nascido em 1932, no Rio de Janeiro, mas

radicado em São Paulo. Desde o inicio, fortemente ligado a música de vanguarda e

um dos pioneiros a fazer experimentações musicais com computadores. Foi

arranjador da maioria dos discos tropicalistas, aliando erudição, ousadia e

experimentalismo em suas composições. Veio a falecer em 2006, conseqüência de

um câncer de bexiga.

Torquato Neto: Letrista, poeta e jornalista, nascido em Teresina, Piauí, em 1944.

Vive um tempo em Salvador e logo se instala no Rio de Janeiro, onde começa a

trabalhar como crítico musical. Também trabalhou em agências de propaganda e na

gravadora Philips, casa de boa parte da produção tropicalista. Sofrendo de graves

problemas depressivos e de alcoolismo, Torquato cometeu suicídio em 1972.

Hélio Oiticica: Pintor, escultor, artista plástico e performático. Nascido no Rio de

Janeiro, em 1939. Considerado por muitos como um dos artistas mais

revolucionários e visionários de seu tempo. Foi Oiticica o artista que elaborou a

obra-objeto “Tropicália”, que além de ceder o nome, ajudou a inspirar o movimento

musical. Morto prematuramente em 1980.

29

Jards Macalé: Ator, cantor e compositor, nascido em 1943, no Rio de Janeiro.

Nascido no bairro da Tijuca, tem contato com a música desde a sua primeira

infância. Ao lado de Gal Costa, a qual grava várias de suas composições, dá

continuidade a estética e obra tropicalista após o exílio de Caetano e Gil. Macalé

ainda lança discos e trabalha com projetos relacionados a conservação da cultura

musical brasileira.

30

2. A INDÚSTRIA CULTURAL, O MERCADO E A QUESTÃO DO SUBJETIVISMO

NA OBRA TROPICALISTA

Diante deste novo segmento que a MPB acabava de englobar, era natural

esperar-se o interesse do mercado para este novo filão de consumidores (jovens) e,

naturalmente, da Indústria Cultural, responsável tanto pela adequação, quanto pela

divulgação.

Elaborado por Theodor Adorno, em meados da década de 40, o conceito de

Indústria Cultural se mostra característica justamente por esta capacidade e a

tendência que o sistema capitalista industrial tem de gerar produtos e estabelecer as

formas como estes são produzidos e consumidos. Naturalmente, neste ciclo, ao ser

transformada em simples mercadoria para a venda em escala, a música perde o

significado e a identidade com sua proposta inicial e, conseqüentemente, se a

“fórmula” se mostrar propicia ao rendimento de lucros, será utilizada massivamente,

podendo cumular até mesmo no esgotamento artístico e econômico. Mediante isto,

percebe-se que, a partir de certo momento, as mudanças passam a surgir apenas

como recriação de estilo, adequando-se apenas ao assédio do mercado.

Por outro lado, a Indústria Cultural também é responsável pelo encurtamento

de distância entre as artes consideradas “alta” e “baixa”. A “alta”, aquela destinada

aos que já possuem certo capital cultural, capaz de aplicar o discernimento àquilo

que vê diante de seus olhos, acaba cedendo certos elementos que enriquecem a

“baixa” cultura. É importante salientar que esta “baixa” cultura, é aquela destinada a

31

massa comum, vista como amorfa e, na maioria das vezes, incapaz de raciocinar

sobre aquilo que está consumindo.

A partir desta troca de elementos, surge a “midcult”, ou cultura média; aquela

que, entre outras características: toma emprestadas características da cultura

superior, facilitando sua compreensão para as massas; em segundo lugar, utilizam

estes procedimentos apenas depois que já foram consumidos e, de certo modo,

assimilados; em terceiro lugar, por re-arranjar estes elementos, provocando efeitos e

entretenimentos fáceis para aqueles que terão contato com ela, criando uma ilusão

de proximidade com a cultura superior.

Frente a isto, a Tropicália sofreu desde o inicio o risco da badalação

excessiva, algo prestes a assumir apenas uma imagem para consumo, onde a

vivência seria deixada de lado, transmitindo algo de vazio as obras.

Paralelamente, o efeito padronizador define as condições mediante as quais

se vende e se consome estes produtos culturais, no presente caso, relacionados à

música. Assumindo a essência do pop como tal, a música veste-se de um aspecto

mais simplista e menos estilizado, traduzindo uma arte-mercadoria de consumo

rápido e dinâmico. Aqui, podemos constatar a existência de dois conceitos

fundamentais para a análise de qualquer mercado que lide com a cultura como

mercadoria, são eles: “o bem material, que se esgota no ato da compra , e o de

produto cultural, que traz com ele a possibilidade de fruição do conteúdo,

propagando-se muito além da compra e do consumo imediato”. (Corrêa, 1997.

pg.33).

32

Desta maneira, a Tropicália e seus artistas, sem aderirem a uma estética

estritamente politizada, como a adotada por outros artistas relacionados à MPB,

conseguem transcender a materialidade da produção, traduzindo conhecimento e,

ao mesmo tempo, traduzindo necessidades e anseios da juventude consumidora de

música pop. Ou seja, conseguem trafegar por estes dois conceitos fundamentais,

assumindo um sentido muito mais amplo do que o simples consumo material.

Mas outra característica, de suma importância, é justamente da Indústria

Cultural como canal de divulgação da arte e do esforço artístico. Através dela que o

artista consegue se inserir no mercado e conquistar uma abrangência maior,

conquistando novos públicos.

A maioria destes artistas inseridos no movimento era contratada de uma

grande transnacional do setor fonográfico: a Philips. Responsável por grande

divulgação e por manter uma considerável fatia do mercado, a Philips se

responsabilizou de manter a Tropicália como a “bola da vez” daquele momento,

inserindo-a na grande mídia televisiva e radiofônica. Esta inserção foi capaz de

emplacar a Tropicália, inclusive, nos meios acadêmicos, que até aquele momento

eram reconhecidos redutos de apreciadores da música de protesto. Desta maneira,

grande parcela da juventude entrou em contato com aquela que seria a grande

inovação da música popular brasileira dos meados da década de 60. Sendo assim,

apesar das possíveis limitações impostas, a Indústria Cultural é de suma importância

para a divulgação daquela, um importante canal de entretenimento, capaz de

expandir seu alcance para limites que sozinhos, os próprios artistas não

alcançariam, trazendo reconhecimento e retribuição financeira, propriamente dita.

33

Sendo que no primeiro momento a música tropicalista foi taxada e

menosprezada por grande parte do público da música popular brasileira, após a

volta do exílio, quando estes se despiram de boa parte da alegria e da inocência do

início de carreira, assumindo temáticas mais “pesadas” e realistas, conseguiram

emplacar com grande parcela da juventude, desiludida com os caminhos que a

ditadura e a censura impunham aos artistas. A partir deste momento, a Tropicália

apresentava para o Brasil uma face da contracultura que, até aquele momento, não

conhecíamos: um ar de “ressaca pós AI-5”, embalado com temáticas que até o

momento não se destacavam, mesmo no movimento tropicalista, como o amor livre,

o pacifismo e o próprio uso de drogas. São temas que o mundo ocidental jovem

(leia-se europeu e norte-americano) já haviam passado em revista desde 1966, mas

que o Brasil não pode conhecer, visto que estava sob o regime ditatorial militar, que

refreava qualquer ação contra cultural, através da opressão e da censura.

A estética tropicalista sempre se caracterizou por uma grande bagagem

subjetiva, tomando espaço tanto na produção musical, quanto no aspecto visual e

nas composições em si mesmas. As experiências eram salientadas e utilizadas

como parte do processo criativo. No movimento da Jovem Guarda, também

podemos perceber uma forte carga subjetiva, entretanto, a Tropicália utiliza-se de

reminiscências e amargores pouco comuns ao frescor jovem e ingênuo da Jovem

Guarda, preocupados primordialmente com temas tais como passeios de carro,

sessões de cinema e namoros descompromissados. Esta característica é conhecida

como a “temática noturna”.

É comum nos depararmos com letras retratando a saudade da terra natal, a

saudade da própria comida desta terra natal ou mesmo a referência a uma situação

34

temporal e única, característica da vida do próprio compositor. Isto fica nítido quando

analisamos as obras lançadas durante e após o exílio de Caetano e Gil. Entre elas,

podemos salientar os álbuns homônimos de 1971 (Caetano Veloso; Gilberto Gil),

produzidos em Londres, na época do exílio, e os dois álbuns lançados por estes

quando voltam deste exílio, em 1972 (Transa; Expresso 2222). São obras

completamente características do estado de espírito de cada um deles. Enquanto

Caetano se sentia sozinho e saudoso de sua terra, expressando toda melancolia e

pesar em suas obras, Gilberto Gil, ao contrário, mostrava o contentamento e a

fascinação de se encontrar em uma Londres onde tudo estava acontecendo.

Muito deste estado de espírito não era apenas comum a estes artistas, mas a

toda uma população que acompanhava o trabalho destes. Este é o apelo que a

música popular alcança frente à emoção coletiva. Através dela, a massa consegue

expressar seus anseios, suas idéias e temores, expropriando para si, as

manifestações do próprio compositor ou interprete.

Após o período do auge da psicodelia e da contracultura, Londres destacou-

se como o centro de produção e da inovação na música pop. É de lá que começam

a surgir os primeiros grupos que experimentam a música pesada e dão inicio ao

chamado “heavy metal”, nesta mesma Londres o cinema entra em uma nova fase,

com novas experimentações e temáticas. Todo este cenário contribuiu para o

aproveitamento, cada um a sua maneira, que os incentivaram a lançarem suas

obras-primas, a partir da volta para o Brasil, ou seja, os já citados “Transa” e

“Expresso 2222”. Estes dois álbuns se caracterizaram por fundirem a linguagem da

tradicional MPB com a linguagem do rock, que tanto atraía a juventude daquele

momento. Também se caracterizou, principalmente na obra de Caetano Veloso, por

35

fundirem a língua portuguesa com as temáticas baseadas na língua inglesa, o que

não era comum para a época.

Interessante notar como a partir daqui, a alegria dos primeiros anos converte-

se em receio e introspecção, e os temas como exílio, derrota, loucura, perda e

solidão adquirem uma importância primordial no contexto da obra. Na verdade, estas

características já podiam serem notadas desde o lançamento das duas obras auto-

intituladas de 1969, conhecidos como o “álbum branco” (Caetano) e o álbum do

“pergaminho” (Gil). Ali, ambos já se mostravam desiludidos e pouco confiantes em

relação aos seus destinos, principalmente na obra de Caetano Veloso.

Ilustrando isto, em “The Empty Boat” (O Barco Vazio), Caetano diz:

“From the rudder to the sail “Do leme à vela

Oh my boat is empty O meu barco está vazio

Yes, my hand is empty Sim, minha mão está vazia

From the wrist to the nail” Do pulso ao prego”

Em um período ditatorial e repressor, onde os indivíduos sentiam suas

liberdades individuais reduzidas e mesmo reprimidas, a arte pode-se se tornar um

importante canal de expressão individual. Ao admirar a arte, o expectador

reconhece-se naquela, criando certa identidade entre artista e público, uma empatia

onde este reconhece-se naquele, podendo expressar-se de maneira mais livre e

sem ressentimentos.

Outro aspecto interessante e, de certo modo inovador para os padrões

brasileiros, presente no lançamento destes dois lp`s da fase pós exílio, está no

estímulo a sinestesia, na utilização de vários sentidos além da simples audição, já

que ambos possuem capas que estimulam o consumidor ouvinte a montarem séries

36

de dobraduras encartadas junto com os discos e encartes. Discutirei este ponto um

pouco adiante, ao discutir sobre a importância do conceito de álbum e do próprio

disco de vinil para a música pop do século XX.

Sobre esta questão, referente à produção musical e a introdução de certa

carga subjetiva, é interessante analisar os conceitos de Jurgen Habermas, sobre

como o sistema industrial pode ser amenizado por esta mesma carga subjetiva e, de

certo modo, descomprometida. Conservando um certo encantamento com a

modernidade tecnológica, Habermas acredita que esta não seria totalmente

racionalizada de forma objetiva e fria, e acredita que a força para isto está

justamente no discurso ligado à subjetividade.

No discurso teórico de Habermas, particularmente em sua “Técnica e ciência

como ideologia”, este faz uma diferenciação entre dois referenciais presentes na

vida do individuo moderno, são eles o “mundo do sistema” e o “mundo vivido”. O

mundo do sistema é aquele que representa, materialmente, toda a evolução da

ciência, do capitalismo industrial e, particularmente no nosso caso, toda a

capacidade do sistema capitalista industrial de colonizar a arte e fazer desta uma de

suas fontes de propagação e rentabilidade. Já o mundo vivido é aquele que

representa, simbolicamente, a capacidade do individuo de se representar

socialmente através de meios não diretamente ligados ao mundo do sistema. Entre

estes meios, o individuo pode se representar através da família, do lazer, do esporte

não encarado como profissão, da arte, entre outros modos.

Habermas salienta que no período capitalista contemporâneo, o mundo do

sistema tem uma grande capacidade de colonizar, ou seja, de captar aspectos

representativos do mundo vivido e utilizar-se destes como propagadores para sua

37

própria reprodução. Esta é uma das maneiras como a Indústria Cultural, idealizada

por Adorno, fortalece-se através da utilização de meios não diretamente ligados ao

sistema industrial de produção de mercadorias. Entretanto, Habermas não deixa de

expor que o mundo da vida também tem a capacidade de colonizar parte do mundo

do sistema. (HABERMAS, 1977)

Claro que o poder de colonização do mundo do sistema é bem maior, e mais

eficiente, porém, a arte, entre outros aspectos, pode ter a capacidade de amenizar e

reduzir os efeitos nocivos e massificantes que o método de produção industrial

consegue impor em nossas vidas. É justamente sob estes aspectos que

percebemos como a carga emocional e subjetiva presente nestes trabalhos acabam

por tocar tanto a nós, ouvintes, como fortalecendo os próprios compositores,

Caetano e Gil, em um difícil e conturbado período, auxiliando na auto-afirmação

como artistas e indivíduos como tal. Através de suas composições, estes puderam

se reaproximar de uma pátria que teve de ser deixada, a força, podendo expressar

sentimentos e sensações causadores de rancores e tristezas.

É normal, à medida que o processo de assimilação pela Indústria Cultural se

desenvolve, que características subjetivas, presentes nas obras, sejam deixadas de

lado frente à massificação do sistema. O processo de reprodutibilidade mecânica, ao

conferir um ar de semelhança a tudo que produz, restringe características que os

artistas procuram inserir no momento de concepção da obra, fazendo com que esta

aparente frieza e preocupação estritamente comercial.

Não só Caetano e Gil mostraram esta capacidade de ligação entre a

subjetividade e a arte, capaz de sofisticar e, ao mesmo tempo, amenizar os duros

efeitos característicos do próprio exílio, no presente caso. Durante o período

38

abrangido pelo movimento tropicalista, podemos perceber esta característica em

obras de Gal Costa (principalmente no período do exílio de Caetano e Gil, onde esta

retrata toda sua dor e solidão, em especial em um álbum gravado “ao vivo” no ano

de 1971: “Fa-Tal, Gal a todo vapor”), Tom Zé, Mutantes e Jards Macalé.

39

2.1. AS NOVAS POSSIBILIDADES E O VANGUARDISMO TROPICALISTA

Em sua “Obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, Walter

Benjamin já deixava claro que a obra de arte estará sempre susceptível às técnicas

de reprodução, seja pela simples contemplação fetichista, seja por aqueles

interessados na simples extração de proveito material. Usufruída de maneira

separada do sujeito, a arte pode se tornar um item de fácil assimilação projetada,

ligando-se facilmente ao mundo e aos métodos da técnica. Entretanto, no que tange

à música, a contemplação e a reprodução estão bem mais próximas. Com o advento

do século XX, as técnicas de reprodução puderam por si próprias, se imporem como

formas originais de arte. A produção musical, desde o advento do disco de 78

rotações e, principalmente com o surgimento do disco de vinil, de 33 1/3 rotações,

no inicio dos anos 50, sempre deixou claro que aquela era uma forma de arte e

mídia voltadas ao mercado.

A contemplação, ou mesmo o prazer em que o consumidor sente ao ouvir seu

disco, seja no conforto de seu lar, seja em uma pista de dança, é parte fundamental

para o processo de gravação e comercialização do produto musical. Sendo assim,

toda a crítica que Benjamin faz aos processos de reprodução mecânica da arte

necessitam de outra interpretação quando o objeto de análise é a música, ainda

mais se tratando da música pop criada principalmente na segunda metade do século

XX.

Vejamos, Benjamin reconhece que a reprodução mecânica, ou seja, aquela

que visa quantidade e lucro pode-se tornar um ataque direto a “aura” da obra de

arte, assim como Adorno e Horkheimer. Realmente, a reprodução acaba por destruir

certo encantamento do momento de concepção da obra, tudo aquilo que envolve o

40

artista durante o processo de criação, acabando por reproduzir a importância do

objeto material como gerador de lucro, deixando de lado parte da inspiração do

artista no momento da concepção da obra. Entretanto, a reprodução transforma o

evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas, mantendo sua

atualidade permanente, e separando, mais especificamente, a significação social da

simples fruição contemplativa. Para música, este é um aspecto de extrema

importância, visto que, apesar de sua temporalidade de produção, o conceito de

disco implica na constante venda e conseqüente rentabilidade, e na própria

divulgação do trabalho do artista, visto que é através desta mesma reprodução

comercial que o artista poderá aumentar o poder de alcance de sua obra, podendo

até mesmo vencer esta temporalidade e conseguindo que este mesmo alcance

avance sobre gerações adiante. É o que podemos ver hoje, ao analisarmos artistas

como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa.

Herbert Marcuse discute sobre esta relação que separa o conhecimento (no

presente caso, o prazer em reconhecer uma música como objeto de apreciação

artística, unindo conhecimento e prazer) e a sua busca, das relações de

necessidade criadas no seio da sociedade industrial. É separada a relação de prazer

e conhecimento. Este último é usado apenas como necessidade material, e o prazer

da própria contemplação, no caso a audições, é desprezado. A partir disto, a

necessidade torna-se apenas de compra e venda do material artístico, do disco e do

material auxiliar ligado à este, como as grifes de moda embasadas no visual do

artista em questão.

Marcuse salienta que ocorre uma forte diferenciação entre o considerado

concreto e o abstrato. Junto aquele, considera-se o conhecimento voltado a prática,

41

as necessidades econômicas e materiais da sociedade industrial. Já ao lado do

abstrato, considera-se justamente este conhecimento voltado ao prazer e a

contemplação não exclusivamente fetichista.

“Na medida em que a reprodução da vida material se completa sob o domínio da

forma mercadoria, renovando continuamente a miséria da sociedade de classes, nessa

medida o bom, belo e verdadeiro transcende esta vida. E quando sob esta forma se produz

tudo o que é necessário à conservação e a garantia da vida material, o restante naturalmente

é supérfluo”. (Marcuse, 1997. pg 91)

É de extrema importância o fato de que o jovem que vive a década de 60,

muitas vezes, ser um jovem mais politizado, com melhores condições financeiras do

que os que viveram uma geração anterior, que amargava os efeitos do pós-guerra,

inserindo-se em um movimento reconhecido como a “rebeldia sem causa”. Além do

que, justamente por estes fatores, este jovem pode se ligar muito mais claramente a

uma contemplação aproximativa com a música e seus produtos culturais, como o

próprio disco, os festivais musicais e mesmo a moda relacionada ao vestuário que

os principais artistas lançavam. Benjamin, no trecho que segue, já deixava

impressões que uma mudança no conceito de arte já estava ocorrendo:

“Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção (de obra de arte) já não

se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudência e precaução - mas

sem receio – renunciar a noção de obra de arte, caso desejamos preservar sua função dentro

da própria coisa como tal designada”. (Benjamin, 1975. pg 12)

O conceito de gravação de álbum implica em vários fatores além da simples

gravação e posterior comércio, principalmente quando levamos em conta a gravação

em discos de vinil, ou “Long Play”. O tempo reduzido de um álbum, no máximo

quarenta e cinco ou cinqüenta minutos, implica em uma seleção de faixas, sons,

instrumentação e vocais, fazendo com que o artista selecione aquilo que de melhor

produziu durante o processo criativo. Talvez por este motivo, a presença de

42

maestros na estética tropicalista seja de suma importância. Claro que as pressões

da gravadora, e do próprio mercado, acabam por arrochar as possibilidades do

músico, comumente limitando suas escolhas, adaptando-as de acordo com um

mercado consumidor padrão, estudado e, de certo modo, rotulado pela própria

gravadora.

Outro fator interessante está na disposição do disco de vinil, dividido em lado

A e lado B. Esta disposição tende a criar a possibilidade da criação em dois

conceitos distintos, divididos entre as faces do LP. É comum encontramos artistas

que dividem sua obra de acordo com esta disposição, diferenciando completamente

as faixas entre cada lado. Por fim, o disco de vinil também estimula uma apreciação

extra-auditiva. A capa do LP, normalmente um quadrado de 31X31 centímetros,

podendo ser dupla, permite a possibilidade de apreciação visual. Muitas vezes o

conceito da capa está diretamente ligada a temática das músicas, ou mesmo

tratando-se de uma obra do próprio artista ou de outro diretamente ligado à este (a

exemplo, o álbum “Legal”, lançado em 1970, por Gal Costa, que apresenta como

capa um trabalho de colagens de Hélio Oiticica). O encarte interno pode, muitas

vezes, trazer informações e imagens que estimulem a apreciação auditiva,

diretamente ligando esta à apreciação visual. Em se tratando de tropicalismo, é

interessante salientar que alguns artistas, como Caetano e Gil, aproveitaram-se até

do conceito de álbum-objeto, ou seja, o álbum vinha acompanhado de alguns

diferenciais que estimulavam seu uso, como dobraduras e pinturas que remetiam à

pop-art, e ao uso da arte no dia-a-dia.

Rogério Duarte, Hélio Oiticica e Décio Pignatari ficaram conhecidos por

criaram capas que até hoje instigam nossa imaginação, seja pela beleza de suas

43

obras, seja pela coragem de apresentarem aqueles trabalhos em um momento

político repressor, onde tudo era obrigado a passar pelo pente-fino da censura.

Vejamos como a estética tropicalista explorou fortemente todos estes

conceitos até aqui descritos, referentes à gravação em discos de vinil e a produção

musical em geral.

Apesar da grande riqueza da música popular brasileira, junto com o reflexo e

o reconhecimento internacional, foi com a Tropicália que estas possibilidades foram

exploradas com maior vontade e espírito experimental. Começando com o álbum

“Tropicália ou Panis et circenses”, de 1968, onde quase todos os artistas

tropicalistas se encontram representados de alguma maneira. A própria produção do

disco já é concebida no intuito de construir-se um álbum-manifesto, ou seja, algo

que pudesse representar os anseios e perspectivas daquela juventude que buscava

a inovação e o reconhecimento dentro do universo da música popular brasileira.

O manifesto é definido tal como um texto de natureza dissertativa e

persuasiva, uma declaração pública de princípios e intenções, que objetiva alertar

um problema ou fazer a denúncia pública de um problema que está ocorrendo,

normalmente de cunho político. O manifesto destina-se a declarar um ponto de vista,

denúnciar um problema ou conclamar uma comunidade para uma determinada

ação.

Neste sentido, o álbum “Tropicalia ou Panis et circenses” pode ser encarado

com a clara intenção de demonstrar aos ouvintes que, de maneira geral, a música e

o conceito de produção musical daquele momento estavam se transformando. Uma

boa parcela da juventude ligada à música já sentia a necessidade de entrar em

44

contato com uma arte não estritamente ligada a tradição do protesto. Não visando

exclusivamente uma denúncia contra algo em específico, as letras tropicalista

também não deixavam de lado a crítica, seja ela social, seja ela exclusivamente na

intenção de aplicar a renovação na tradição musical e artística nacional. É com os

tropicalistas que surge uma tendência a ligar o deboche ao protesto, antecipando

uma vertente que se tornaria comum a partir do lançamento do jornal “O Pasquim”,

que fazia justamente esta fusão.

Apesar de não estar diretamente ligado à música, Hélio Oiticica retrata bem

suas intenções ao criar a obra e o conceito de ‘tropicália”, refletindo, de certa

maneira, as intenções da nova safra de músicos e arranjadores, que procuravam a

criação do novo, sem desprezar a herança já alcançada e produzida. Diz Oiticica,

em maio de 1968 em um ensaio também intitulado “Tropicália”:

“na verdade, quis eu com a Tropicalia criar o mito da miscigenação – somos negros,

indios, brancos, tudo ao mesmo tempo -, nossa cultura nada tem a ver com a européia,

apesar de estar até hoje a ela submetida: só negro e o indio não capitularam a ela. Quem

não tiver a consciência disso que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura

brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita européia e

americana terá de ser absorvida antropofagicamente, pela negra e india de nossa terra, que

na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é

híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de significado próprio”. (CALADO, 1997. Pg 163)

Assim, a Tropicália prima por fazer uma fusão entre os ritmos tipicamente

nacionais e a tradição vinda de fora, seja do jazz, do blues, do rock e também dos

ritmos latinos, deixando de lado os preconceitos e, de certa maneira, as

preocupações exclusivamente mercadológicas, onde a criação da obra não ignora e

não deixa de lado o experimentalismo.

45

Vejamos outro detalhe que embasa as características avant-garde, ou de arte

de vanguarda apresentadas no teor tropicalista. Entre o final da década de 50 e

inicio da década de 60, a cidade de Salvador passou por algumas mudanças que

marcariam definitivamente sua história cultural. Vale lembrar que Gal Costa,

Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, assim como Maria Bethania, não ligada

diretamentente a estética tropicalista, apesar de não serem nascidos em Salvador,

foi nesta que se estabeleceram como músicos propriamente ditos, já que este era o

grande centro comercial e cultural da Bahia.

Voltando às mudanças, estas ocorreram através de revolucionárias

modificações ocorridas na estrutura didática da Universidade Federal da Bahia

(UFBA). Essas mudanças se efetuaram através do planejamento e dos esforços do

reitor Edgard Santos. Um novo planejamento trouxe novas perspectivas aos alunos

e educadores, aliando ao já tradicional ensino superior, novas perspectivas de artes,

música, teatro, filosofia, história e dança. Com estas novas perspectivas, o reitor

conseguiu aliar diferentes frentes de pensamento e ação cultural da cidade ao redor

da universidade. Claramente é sentida esta influência sobre os tropicalistas, que

assimilam toda aquela nova perspectiva a favor de um trabalho mais experimental e,

porque não, transgressor. Transgressor no sentido em que desafia aquele modelo

padronizado e de fácil assimilação, normalmente o modelo proposto pelo rádio,

poucas vezes democrático em sua programção.

Como salienta Tom Zé, a respeito do caráter liberto e experimental que

dominava a UFBA: “Na escola o estudo de cada estilo era exigido e observado com

rigor. Mas quando nós, alunos, entregávamos a Koellreutter ou a Ernst Widmer um

exercício de composição, eles pouco estavam se lixando se o trabalho era realizado

46

em linguagem dodecafônica, contraponto clássico à Palestrina ou qualquer outra

opção.” (Apud, Veloso, 1997. pg 125.)

Vale salientar que entre os maiores colaboradores desta reformulação na

UFBA, conhecida mais tarde como “Avant Garde na Bahia”, estão a arquiteta e

designer italiana Lina Bo Bardi, o diretor de teatro Martin Gonçalves, o músico e

artista plástico suiço Walter Smetak, o maestro alemão Walter J. Koellreuter, o

historiador português Agostinho da Silva e a professora de dança contemporânea

Yanka Rudzka, todos fortemente ligados a uma cultura vanguardista e inovadora.

Analisada a origem social dos artistas envolvidos com o movimento

tropicalista, percebemos que este provinham de famílias de classe média ou média

alta, ou seja, não estavam diretamente ligados aos verdadeiros problemas da massa

humilde, como a fome, o desemprego ou a reforma agrária. Por si só, este pode

representar um fator que os distacia da verdadeira música de protesto praticada no

Brasil da década de 60, apesar de que nem todos os diretamente relacionados com

este tipo de música também provirem das classes mais baixas.

Outro fator de distanciamento está no fato de que esta nova safra da música

popular brasileira ser um pouco mais jovem, não sendo exclusivamente herdeiros da

tradição da bossa nova, como os acima citados. Já foi dito que estes jovens estavam

fortemente influenciados pela nova cultura do rock`and`roll, e não desprezavam por

completo a tradição jovial, descomprometida e levemente ingênua da jovem guarda.

Jovens e provindos de famílias de classe média, a maioria dos artistas

tropicalistas tiveram grande contato com a cultura letrada e, de certa maneira, com

uma cultura um pouco superior ao da grande massa. Caetano, Gil, Bethania e Gal

47

frequentaram escolas de teatro desde a adolescência, conheceram música em

diversos estilos e tiveram contato com diferentes escolas artísticas e, como já dito

anteriormente, da vanguarda que surgia na Bahia daquele tempo, através da

modernização da Universidade Federal da Bahia. Todos estes, assim como o

também baiano Tom Zé, participaram de diversas peças de teatro montadas na

cidade de Salvador, durante o meio e fim da década de 60.

Além disso, grande parte destes artistas, concluiram ou ao menos iniciaram

um curso superior, como Gil, que se forma em administração de empresas e

Caetano, que deixou a faculdade de filosofia para se dedicar por completo a música.

Cabe ressaltar que no Brasil da década de 60, apenas uma mínima parcela da

juventude tinha condições de entrar em um curso superior, sendo que a

escolaridade do brasileiro era considerada bem abaixo do nível desejado.

Apesar de surgirem representando, além do sudeste, uma região considerada

marginal na economia brasileira, o nordeste, os tropicalistas baianos não tiveram

nenhum contato com a pobreza e os dilemas comumente associados ao nordeste.

Ao contrário, provinham de famílias relativamente abastadas e que podiam

proporcionar a seus filhos um bom contato com uma cultura considerada superior.

Deste contato surge o interesse em ligar a música a outras correntes artisticas, como

a literatura, o cinema e as artes plásticas. É justamente quando fazem a fusão desta

citada cultura, aceita aqui como sendo superior, com um outro modelo, mais popular

e simplista, que os tropicalistas produzem o impacto revolucionário dentro do cenário

musical brasileiro, rico musicalmente, mas limitado ao já aceito e proposto desde o

advento da bossa nova, em meados da década de 50.

48

Quando analisamos o conceito de Industria Cultural, Adorno nos leva a crer

que toda aquela fácil assimilação, todo aquele aparato, que torna a música pop (ou

ligeira, como o próprio prefere defini-la em sua época) uma música voltada

diretamente ao rápido consumo e a disseminação radiográfica e comercial,

percebemos que a padronização é uma constante. Adorno diz que “a técnica da

Indústria Cultural levou à padronização e à produção em série, sacrificando o que

fazia a diferença entre a lógica da obra e do sistema social”. (Adorno, pg. 118).

Desta maneira, a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa, fazendo com

que a manipulação seja cada vez mais eficiente e, consequentemente, a assimilação

cada vez mais passiva, tornando a arte um fator narcotizante. Assim, o detalhe é

visto como algo a ser apagado diante da obra, ou seja, o diferencial deve

desaparecer em prol de uma fácil assimilação do total. A parte e o todo vêm a se

confundir, e o detalhe é considerado como distoante, alheio à obra.

Diante disto, a música tropicalista sempre possuiu um diferencial, que estava

justamente nesta valorização do detalhe. Ela uniu o experimentalismo conceitual à

produção comercial da música. Seja a guitarra extremamente distorcida de Lanny

Gordin, em conflito direto com a suave voz de Gal Costa, que em certos momentos

chega a gritar, aparentando um duelo direto com a guitarra daquele, seja o

acompanhamento sonoro denso que os mutantes aplicam a também suave voz de

Rita Lee.

Um bom exemplo desta estética revolucionária e intrincada que surge com

os tropicalistas está na faixa “Panis et circenses”, presente no álbum-manifesto e

também no disco de estréia dos Mutantes, de 1968. Além da letra polêmica, que faz

uma crítica direta à tradicional família brasileira retrógrada, “que se sentam na mesa

49

de jantar e se ocupam em nascer e morrer”, ao final da faixa, nos deparamos com

um efeito de sonoplastia que nos leva a crer que a vitrola foi desligada da tomada,

com a agulha ainda sobre o vinil, já que o efeito representa uma diminuição da

rotação de um prato de vitrola. Após este efeito já estranho à continuidade da

música, nos deparamos com um diálogo à mesa de jantar, com direito a barulho de

talheres, pratos e pedidos de mais sal. Um autêntico happening, surgido de

improviso nas sessões de gravação e habilmente aproveitado por Duprat na

produção. Toda esta variedade de colagens e referências surge como algo

extremamente novo e moderno para a MPB.

Caetano Veloso, no álbum Araçá Azul, de 1973 abusa do experimentalismo

ao conseguir total liberdade e acesso aos estúdios da gravadora Philips. Convida a

sambista baiana Edith do Prato, conhecida pela característica voz estridente e pelo

acompanhamento ritmíco e excêntrico de uma colher e um prato de porcelana. Lado

a lado com esta legítima representante do samba primal e típico do Recôncavo

Baiano, Caetano insere a guitarra lisérgica e também estridente de Lanny Gordin

(este participa de vários álbuns do movimento tropicalista), aliando a inovação e a

tradição em um mesmo contexto fonográfico. Como resultado, Caetano emplacou

um curioso recorde: o de maior número de devoluções nas lojas de discos. O nível

de ruídos e experimentações desagradou inclusive seus antigos fãs, que o

acompanhavam desde as primeiras experimentações tropicalistas, até a volta do

exílio londrino, onde teve contato com a verdadeira cultura pop e universalista.

50

2.2. “GELÉIA GERAL E UNIVERSALISMO”

Sobre o caráter universalista do movimento tropicalista, nota-se que desde o

ínicio, Caetano e Gil, talvez os principais expoentes daquele, sempre fizeram

questão de produzirem um tipo de arte que não se prendia a nenhuma influência em

especial e, ao mesmo tempo, apresentava todas as influências e toda a bagagem

subjetiva de cada um deles. Este fator antecipará um termo que será cunhado

algumas décadas adiante, a “world music”, reconhecida como o tipo de música que

valoriza o folclore e as tradições populares de cada povo, promovendo a harmonia e

a valorização entre as culturas.

O trecho as seguir apresenta uma parte da longa entrevista que Caetano

cede ao informativo “O Pasquim”, em sua edição de número 84, que circulou entre

os dias 11 e 17/02/1971. Neste trecho Caetano deixa claro que nunca teve a

ambição de explodir como um artista pop e simplesmente banal, com

reconhecimento mundial, ao contrário, Caetano apresenta uma séria preocupação

no sentido de que sente maior importância em ver seu trabalho realmente

assimilado, e não simplesmente reconhecido:

“O Pasquim – O André Midani disse hoje que o seu grande drama foi ter nascido no

Brasil e não num país de língua inglesa, por exemplo, que é uma língua mais internacional.

Ele disse que se você tivesse nascido num país de lpíngua inglesa, você seria uma figura

conhecida mundialmente. Você gostaria de ser reconhecido mundialmente ou para você ter

sucesso no Brasil já é muito bom? Há essa ambição?

Caetano – Eu não tenho propriamente essa ambição, embora pareça, porque logo

antes de sair do Brasil eu compus duas canções em inglês. Talvez isso deixe parecer que eu

tinha uma ambição internacional, mas na verdade eu não tinha.

O Pasquim – Você não acha genial fazer sucesso no Brasil, já não é muito bom, não?

51

Caetano – Pra mim tanto faz, na verdade. O que aconteceu comigo no Brasil, o

trabalho que eu fiz aqui ter repercutido muito dentro do Brasil, para mim, é uma coisa de uma

força total. Algumas pessoas têm pouco a sensação de que fazendo as coisas no Brasil é

como se não tivessem chegado a atuar no mundo propriamente dito, é como se vivessem

num submundo. Eu não tenho essa sensação. Para mim, de alguma forma, eu, tendo tocado

na vida brasileira, toquei o mundo da maneira mais profunda que poderia tocar. Eu não tenho

esse problema.” (SOUZA, 2009. P. 157, 158)

Ao ouvirmos uma letra como a de “Alegria, Alegria”, sucesso de Caetano, e

presente em seu álbum de estréia solo, em 1968, nos deparamos com um quadro de

referências que nos remete à diversas lembranças do cotidiano, diversas imagens

comumente presentes na vida de qualquer cidadão nos meados dos anos 60. Esta

imagem nos referencia à um amalgama que traduz toda a modernidade de um páis

subdesenvolvido, frente as novas possibilidades do crescimento e do

desenvolvimento. Em consonante a desilusão do jovem frente a um regime militar

que se mostrava cada vez mais ferrenho e limitador, Caetano nos oferece um retrato

cheio de colagens que trazem referências ao cinema moderno (Cardinale e Brigitte

Bardot, atrizes européias e símbolos sexuais extremamente importantes para o

quadro cultural da década de 60), a luta armada e a guerrilha de esquerda (“sem

livros e sem fuzil”) ou mesmo a um dos maiores símbolos do capitalismo norte-

americano (Coca-Cola), ao lado de uma das mais sagradas tradições da igreja

católica, o casamento.

“Caminhando contra o vento

Sem lenço e sem documento

No sol de quase dezembro

Eu vou...

O sol se reparte em crimes

Espaçonaves, guerrilhas

Em cardinales bonitas

Eu vou...

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Em caras de presidentes

Em grandes beijos de amor

Em dentes, pernas, bandeiras

Bomba e Brigitte Bardot...

O sol nas bancas de revista

Me enche de alegria e preguiça

Quem lê tanta notícia

Eu vou...

Por entre fotos e nomes

Os olhos cheios de cores

O peito cheio de amores vãos

Eu vou

Por que não, por que não...

Ela pensa em casamento

E eu nunca mais fui à escola

Sem lenço e sem documento,

Eu vou...

Eu tomo uma coca-cola

Ela pensa em casamento

E uma canção me consola

Eu vou...

Por entre fotos e nomes

Sem livros e sem fuzil

Sem fome, sem telefone

No coração do Brasil...

Ela nem sabe até pensei

Em cantar na televisão

O sol é tão bonito

Eu vou...

Sem lenço, sem documento

Nada no bolso ou nas mãos

53

Eu quero seguir vivendo, amor

Eu vou...

Por que não, por que não...

Por que não, por que não...

Por que não, por que não...

Por que não, por que não...”

Analisando este quadro desenvolvido por Caetano, percebemos o quanto

aquilo tudo estava presente na vida de qualquer cidadão que vivia o ano de 1968,

mas que era propositalmente esquecido, ou mesmo apagado, em prol de uma

música mais politizada e orientada ao protesto. Era inadmissivel, ao menos para a

significativa ala da esquerda protestante, que a referência à Coca-Cola aparecesse

no mesmo álbum que fazia uma alegre homenagem ao revolucionário Ernesto “Che”

Guevara (“Soy loco por ti américa”). A verdade é que a música contida naquele

apresentava um teor universalista e sem fronteiras, como jamais fora visto em

qualquer outro artista brasileiro. Entretanto, todo este projeto chocou o governo

militar da mesma maneira que os reconhecidos cantores de protesto, como Geraldo

Vandré, chocavam com suas letras. Caetano sofreu perseguições e censuras,

culminando no exílio londrino, ao lado de Gil.

Em “Parque Industrial”, Tom Zé zomba desta mesma expectativa e ânsia que

a sociedade brasileira depositava no crescimento industrial e monetário nacional:

“É somente requentar

E usar,

É somente requentar

E usar,

Porque é made, made, made, made in Brazil.

Porque é made, made, made, made in Brazil.

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Retocai o céu de anil

Bandeirolas no cordão

Grande festa em toda a nação.

Despertai com orações

O avanço industrial

Vem trazer nossa redenção.”

Em verdade, a ironia e o sarcasmo presente em certas declarações de

Caetano ou de Gil continham críticas tão ácidas quanto, ou até mais, que as

presentes nas canções de protesto. De forma mais sútil e velada, eles tinham a

capacidade de tocar certas feridas do regime militar, ou mesmo de criticar o caráter

oportunista e ganancioso de uma cultura que foca seus objetivos exclusivamente no

caráter rentável das produções, assim como é feito segundo a crítica adorniana. É o

que podemos perceber nesta declaração de Caetano, feita logo após receber

severas vaias ao interpretar a canção “É proibido proibir”, na fase nacional do III

Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela TV Globo, em 1968:

“A vaia que recebi foi dada por um grupo que quis repudiar o que consideravam uma

agressão à música popular brasileira. Infelizmente foi uma atitude bastante reacionária. Entrei

no festival para destruir a idéia que o público universitário “soi disant” faz dele. Eles pensam

que o festival é uma arma defensiva da tradição da música popular brasileira. Mas a verdade

é que o festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram. (CAETANO VELOSO In:

SANTAELLA, 1986. pg 105).

Podemos perceber que ao fazer esta declaração, Caetano ataca diversos

aspectos da cultura nacional da década de 60. Os artistas de protesto com suas

utopias de mudança através da música, assim como os universitários apreciadores

ferrenhos desta vertente, e críticos cegos e vorazes de qualquer outro estilo musical.

A indústria fonográfica e os meios de difusão desta, como os festivais e seus

organizadores, as emissoras de televisão. Por fim, Caetano faz uma auto-crítica,

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onde podemos perceber até uma certa indignação por ter participado de todo este

processo, de ter se enquadrado em todo este sistema.

Paralelamente, Gilberto Gil apresentava um álbum que compartilhava do

mesmo ideal estético, onde o universalismo e a linguagem musical única eram o que

se destacava. Posando para a capa do álbum com um antigo fardão militar, Gil

apresenta uma sonoridade fortemente influenciada pela psicodelia que dominava o

cenário musical e cultural da década de 60, cenário em que o álbum “Sgt. Pepper`s

Lonely Hearts Club Band”, do grupo britânico “The Beatles”, era encarado como o

supra-sumo da miscelânea entre avant-garde e cultura pop.

Figurando na maioria das listas que retratam os álbuns mais influentes da

história da música, Sgt. Pepper`s caracterizou-se por inovar em aspectos como

modo de gravação e arte gráfica, além da utilização de instrumentos e mantras

orientais, caracterizando-se por unir e tornar mais acessível a apreciação ocidental

da cultura tradicional do oriente.

Para grande parte dos que se aventuravam pelos caminhos do

experimentalismo, eram nos Beatles que encontravam inspiração e o patamar de

ruptura necessário para extravazer os limites da música pop. Na edição de

26/02/1969 da revista Veja, podemos encontrar uma matéria sobre o lançamento do

segundo álbum do grupo Mutantes. Nesta encontramos a seguinte descrição: “Para

o `mutante que não aparece`, Cláudio Dias Batista, 23 anos - é o engenheiro

eletrônico responsável pelos sons novos dos Mutantes - `a influência dos Beatles

existe, mas é pequena: O resto é pesquisa nova, num caminho que os Beatles

abandonaram.” (Arquivos da revista Veja ?)

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Seguindo esta tradição, Gil não conservou preconceitos e uniu a tradição do

rock e da guitarra elétrica, com sonoridades típicas da cultura musical baiana e

nordestina em geral, características de ritmos como o baião, o forró, o maracatu e o

próprio samba.

Todo este universalismo agregado ao localismo era algo que já se destacava

na produção musical estrangeira, como a norte-americana ou a européia. Como já

foi dito, o conceito de “world music” ainda não fora algo difundido, ou mesmo

desenvolvido naquele momento, entretanto, a música já transcendia a simples

difusão comercial do produto musical, assumindo um caráter muito mais

experimental e, por vezes, até anti-comercial.

Àqueles grupos estrangeiros, e a partir daqui, a Tropicália, estavam

buscando suas origens musicais e culturais, inserindo um contexto folclórico e

popular à cultura de massa movida pelo rock`and`roll.

A Europa e os Estados Unidos se deparavam com um número cada vez maior

de grupos e artistas que assumiam o estilo “folk”, que caracterizava exatamente este

estilo popular e baseado nas raízes da cultura dita tradicional. Como já dito, o

movimento tropicalista vai fundo em suas origens e resgata ritmos nordestinos,

antigas influências do tradicional estilo cancioneiro popular, como músicas de

Orlando Silva e Vicente Celestino, toda a cultura deixada pelo samba e pela própria

música inspirada nos batuques da umbanda ou do candomblé.

57

2.3. MUDANÇA COMPORTAMENTAL NAS APRESENTAÇÕES TELEVISIVAS E

“AO VIVO”

Relacionado justamente ao momento de fluição e contemplação musical, é

que o tropicalismo também revolucionou a maneira em que os artistas se

apresentavam para seu público. Com o advento do movimento, torna-se mais

comum a utilização de fantasias, roupas espalhafatosa e incomuns.

Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, entre outros, chocaram ao se apresentarem com

fantasias, gestos e performances corporais que remetiam à sensualidade e mesmo à

violência, herdados de suas experiências teatrais. Em uma fase em que os festivais

de música popular e a televisão eram considerados como principais difusores de

entretenimento e cultura do país, foi justamente através destes que os tropicalistas

puderam aparecer e se mostrare como tais. Uma das principais características que

revolucionaram este tipo de apresentação, seja na televisão, seja nos festivais, foi

justamente o uso banalizado e massivo de estridentes guitarras elétricas. No trecho

a seguir, parte da mesma entrevista de Caetano ao informativo “O Pasquim”, já

citada anteriormente, Caetano expõe seu ponto de vista sobre a situação, e também

sobre a já citada influencia do grupo inglês “The Beatles” para o movimento

tropicalista como um todo:

“O Pasquim – Depois de “Alegria, Alegria”, cada vez mais começou a aparecer guitarra elétrica no Brasil. Você acha agora que a chamada música pop internacional pode ter alguma importância na evolução da música brasileira ou algum papel como o jazz teve na bossa nova? Se pode ser alguma coisa revitalizadora?

Caetano – Eu acho que sim, sem dúvida nenhuma. Eu posso dizer mesmo como um depoimento que o fato dos Beatles existirem, as coisas que eu ouvi dos Beatles foram muito importantes para mim. Eu não conhecia praticamente nada de música pop quando eu fiz “Alegria, Alegria”, que foi quando começou toda essa onda, todas essas coisas de música no Brasil. Mas de qualquer maneira, o fato de os Beatles existirem e o que eu pensei sobre eles quando eu comecei a pensar nas coisas que me levaram a fazer “Alegria, Alegria foram muito importante. Na verdade, eu cheguei a eles através do Roberto Carlos. O que me interessou a princípio foi o problema da música comercial no Brasil. Antes disso, o que me interessou foi

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quebrar o cerco de bom gosto então vigente, então todas as coisas que estavam fora desse cerco começaram a me fascinar mais do que o que estava dentro e eleito, o que estava dentro e eleito começou a me desinteressar.” (SOUZA, 2009. P.166,167)

Os festivais de música popular, organizados pela TV Record, principalmente

os realizados em 1967 e 1968, e o programa do apresentador Abelardo Barbosa, o

“Chacrinha”, foram os principais meios de difusão da nova estética visual dos

artistas tropicalistas. Vestidos com roupas alegres e coloridas, assim como as

utilizadas por uma significativa parcela dos jovens do país, usando cabelos

compridos e empunhando guitarras elétricas, os tropicalistas não se preocupavam

em chocar a ala mais retrógrada dos apreciadores da MPB, acostumados com

ternos e belos vestidos.

Sem se importarem com críticas, os tropicalistas conseguiram também

influenciar neste campo, causando uma revolução comportamental na juventude

brasileira. Foram eles os principais difusores da contra-cultura no país, e através

deles que esta parcela da juventude pode se fazer notar em meio a um regime

totalitário e repressor, e mesmo frente a uma musicalidade dominada pela

intervenção política focada na necessidade do protesto social. Assim como salienta

Heloísa Buarque de Holanda, “Na opção tropicalista o foco da preocupação política

foi deslocado da área da Revolução Social para o eixo da rebeldia, da intervenção

localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida, ao

corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo” (Hollanda & Gonçalves, 1982. p. 66).

Em determinado momento, as apresentações tropicalistas tornam-se

verdadeiras apresentações de “happening”. O termo “happening”, proveniente da

língua inglesa, refere-se a uma forma de expressão visual e comportamental que, de

certo modo, apresenta características das artes cênicas. Neste modelo, quase

sempre planejado, é comum os artistas improvisarem e inserirem características

59

espontâneas e subjetivas, fazendo com que as apresentações nunca se repitam do

mesmo modo.

Considerada uma das últimas reais inovações dentro da linguagem artística:

“o happening não se afirma somente na arte. Articula os sonhos e ações coletivas.

Nem abstrato, figurado, trágico ou cômico, ele se recria sempre. Todas as pessoas

presentes num happening dele participam. É o fim do conceito de atores, público,

exibicionistas e observadores da ação e passividade.” (Lebel, 1969. p. 87)

Prosseguindo, Lebel também nos salienta que “o happening cria uma relação

intensa com o mundo que nos cerca, pois faz prevalecer em plena realidade os

direitos do homem, na vida psíquica”. (Lebel, 1969. p. 87)

É o caso, por exemplo, do discurso apresentado por Caetano Veloso no FIC

(Festival Internacional da Canção) de 1968. Ao ser impossibilitado de continuar sua

apresentação da música “É Proibido Proibir”, devido a ensurdecedora vaia da

platéia, Caetano faz um acalorado discurso, enquanto seu grupo de apoio, “Os

Mutantes”, seguem tocando de costas para o público, em resposta a este, que

também se encontrava de costas para o palco. Misturando amistosidade e violência

verbal, Caetano e “Os Mutantes” deram seu recado, expressando toda a indignação

frente a falta de respeito com que a platéia os receptou. Segue um trecho do tão

conhecido discurso, que inflamou a platéia e, de certo modo, concedeu status de

amadurecimento para o movimento tropicalista:

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem

de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de

aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o

velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada,

absolutamente nada. (...) Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que

60

juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais

sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem

a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em

nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda

Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O

problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira”.

Exatamente neste contexto é que a Indústria Cultural é desafiada, e ao

mesmo tempo, utilizada pela estética tropicalista. Adorno salienta que a cultura

confere a tudo um certo ar de semelhança, entretanto, a partir da década de 60, o

estímulo a experimentação alcança um patamar onde o próprio valor da obra em si

perde-se para a performance individual ou coletiva.

Calado salienta que as sessões de gravação alcançavam um teor de

experimentações e irreverências que os próprios produtores e artistas

desconheciam. É comum percebermos frases e brincadeiras entre os músicos,

ocorrendo de maneira espontanea e descompromissada, mas que acabavam por se

encaixar perfeitamente nos moldes e nas ambições musicais, acabando por serem

utilizados como parte integrante da música. Estes recursos podem ser facilmente

encontrados nos álbuns de Caetano, Gil, dos Mutantes e no disco-manifesto, “Panis

et Circensis”.

No final da década de 60, o movimento tropicalista estava em alta, com seus

principais artistas sendo convidados frequentemente a participarem de programas

televisivos e mesmo em debates musicais. Cada apresentação destas mostrava uma

faceta diferente dos próprios artistas, figurinos espalhafatosos e arrojados e uma

atitude comportamental cada vez mais agressiva e original dentro do mainstream.

Como já dito, o mercado fonográfico parte para uma asimilação da construção

que antes dominava apenas o campo conceitual, é a partir deste ponto que a música

61

pop pode assimilar elementos até então estranhos. O próprio Adorno já previa isto

ao destacar que “a indústria cultural desenvolveu-se com o predomínio que o efeito,

a performance tangível e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora

o veículo da Idéia e com essa foi liquidada”. Na visão de Adorno, um tanto quanto

pessimista, esta seria uma maneira da arte se esvaziar continuamente, frente a um

domínio cada vez mais racional do capitalismo industrial. No entanto, com esta

maior liberdade artística e experimental, a harmonia entre ritmo e melodia adquire

um novo conceito, e a música acaba criando novos papéis sociais dentro do

contexto. Aquilo que antes era visto como transgressor, agora adquire um forte

potencial criativo e, por que não, rentável. Os papéis sociais que são criados e

definidos como transgressores pelo sistema social acabam sendo aceitos e

legitimados. Ao serem legitimados, estes novos papéis podem se definirem como

parte orgânica do próprio sistema e, tornarem-se necessários a própria reprodução

deste.

É o que ocorrerá no inicio da década de 70 com a chamada “geração do

desbunde”. Tendo em Gal Costa a principal representante do movimento tropicalista,

após o exílio de Caetano e Gil, esta geração leva aos extremos toda a influência

tropicalista e contra-cultural, fazendo-se notar como uma parcela ativa da juventude

brasileira. Consequentemente, é visando esta geração que os festivais de música

brasileiros adquirem um novo formato, seguindo os moldes dos grande festivais de

Woodstock ou Monterey. Também é visando a estes que uma nova moda se

instaura, com roupas e visuais mais despojados, o rock é definitivamente assumido

como forte influência e a indústria fonográfica se prepara diante de um novo público,

62

não tão ingênuo quanto os apreciadores da jovem guarda, nem tão politizados

quanto os apreciadores da música popular voltada ao protesto.

O músico Taiguara faz uma bela descrição desta geração, tardiamente

apresentada a contracultura no inicio da década de 70. Presente no álbum “Viagem”,

de 1970, a faixa “Geração 70”, acompanhada do grupo de música psicodélica Som

Imaginário, prega a seguinte mensagem:

“Nós estamos inventando a vida,

Como se antes nada existisse,

Porque nascemos hoje do nada,

Porque nascemos hoje pro amor.

Nós estamos descobrindo os corpos,

Como a manhã descobre as imagens.

Como o amor descobre a metade,

Como a canção descobre uma flor.

Nós queremos desvendar há tempo,

Esse mistério azul de oxigênio,

Esse desejo imenso de sexo,

Essa fusão de angústias iguais.

E nós vamos resistir sem medo,

A solidão de um tempo de guerras,

E nossos sonhos loucos e livres,

Vão descobrir e celebrar a paz!

63

É neste contexto que surge um grupo chamado “Novos Baianos”, que

assimilou toda a estética tropicalista e ainda inseriu uma grande gama de novas

influências. Unindo músicos diversos, influenciados por diversos estilos, chegam ao

ponto de criarem uma banda de apoio dentro da própria banda, o conjunto “A cor do

som”. Além do aspecto musical, os Novos Baianos acabam por realmente

assimilarem a estética de vida hippie, incomum no Brasil, vivendo em comunidades,

onde predominavam a coletividade entre os membros, sem se preocuparem com

dinheiro ou qualquer influência da vida externa.

No que se refere ao som, além da influência tropicalista, o conjunto assimila

toda a sonoridade brasileira, incluindo o baião, a bossa nova, o choro, o frevo e o

afoxé, criando um som original a alegre, também influenciado pela sonoridade

psicodélica e do rock`and`roll. Durante toda a década de 70, foram os Novos

Baianos os principais expoentes do que foi realmente a estética tropicalista.

Inovando em diversos aspectos comportamentais, estéticos e musicais, a

Tropicália tornou mais fácil a assimilação de aspectos e movimentos vanguardistas

na cultura brasileira. Tanto os movimentos literários, arquitetônicos e de artes

plásticas, como o que existia de mais inovador no campo da produção e composição

musical tornaram-se mais presentes e compreendidos em nossa cultura. Nomes

como o do compositor alemão Karlheinz Stockhausen, ou do também compositor e

escritor norte-americano John Cage tornaram-se mais comuns, bem como sua

apreciação auditiva, quase insignificante para os padrões brasileiros. Claro que a

Tropicália não foi a responsável direta por todo este processo, entretanto, a partir de

seus processo inovadores e sua ampla gama de influências, e mesmo a variada

64

gama de artistas envolvidos, acabou por tornar mais fácil a divulgação deste tipo de

vanguarda artística no Brasil.

Além disto, a Tropicália trouxe para o nosso país a verdadeira face da nova

cultura pop, já desde então globalizada e amplamente variada. Em um momento em

que o pop era quase desconhecido e execrado dentro da música popular brasileira,

visto como simplesmente comercial e inútil para a formação cultural de uma

civilização, os tropicalistas mostraram a outra face deste modelo pop e claramente

com tendências comerciais. Mostraram que dentro deste modelo é possível sim a

inovação e o uso de modelos não tão banais e descompromissados. Foram

incompreendidos por uns, amados e criticados por tantos outros, mas de fato

mudaram a face da música popular brasileira, em um momento em que os únicos

caminhos que esta poderia nos mostrar eram o protesto ou a simples cópia

“abrasileirada” do rock`and`roll britânico e norte-americano.

65

3. A INFLUÊNCIA DA TROPICÁLIA NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

A partir das mudanças comportamentais e toda a experimentação sonora e

visual do movimento tropicalista, uma série de artistas e mesmo de movimentos

musicais acabaram por levar adiante as heranças diretas dos tropicalistas. Alguns

consideravam-se ou consideram-se como herdeiros assumidos, outros apenas

utilizando-se de determinados aspectos, ou mesmo de toda a inovação e liberdade

que a Tropicália tornou mais comum para a música popular brasileira. Estes artistas

levaram a frente todas as características vanguardistas e experimentais, possíveis

graças aos esforços tropicalistas em criar uma verdadeira raiz brasileira na música

pop mundial.

Passando por nomes reconhecidos dentro da música popular brasileira, e

alcançando novos movimentos interessados na renovação desta mesma música

popular, o fato é que a Tropicália influencia até hoje uma série de novos nomes,

inclusive fora do âmbito musical, em campos como o da literatura, do teatro ou do

cinema.

Abaixo relatarei uma lista de alguns dos principais artistas e movimentos

influenciados pela música e estética tropicalista. Alguns deles podem não levar

diretamente esta influência, mas ao modo como experimentam dentro de suas

propostas, transgredindo padrões de produção e construção tradicionais, acaba por

os aproximarem de tudo aquilo que seminalmente a Tropicália propôs e realizou.

Como já dito anteriormente, os Novos Baianos foram os que mais

explicitamente assumiram esta influência, produzindo uma musica extremamente

rica e variada, vivendo em comunidades como aquelas que os primeiros hippies

66

instauraram nos Estados Unidos da década de 60 e valorizando sempre a

verdadeira cultura rítmica brasileira. Lançaram oito discos entre 1969 e 1979 e são

considerados como um dos maiores nomes da contra-cultura brasileira.

Tendo já participado do movimento tropicalista, mesmo que de maneira tímida

e marginal, Jards Macalé também segue a década de 70 produzindo uma música

também influenciada pelo blues e pelo soul, e influenciando um novo nome da

música popular brasileira, o compositor carioca Luiz Melodia. Outro participante ativo

da Tropicália, e que continuou produzindo trabalhos mais experimentais e criativos

ao longo da década, foi o baiano Tom Zé. Talvez seus principais álbuns foram

lançados nesta década (“Todos os Olhos”, “Estudando o Samba”, “Se o Caso é

Chorar” e “Correio Estação do Bráz”), e ainda sim promoviam a grande diversidade

de influências que encontravam-se presentes desde seus primeiros trabalhos, assim

como a alta dose de deboche e ironia, característicos à sua obra desde os primeiros

tempos.

A imprensa musical brasileira da década de 70 cunhou um termo para

designar alguns artistas brasileiros que produziam uma espécie de MPB que, apesar

da alta qualidade de ritmos e composições, acabava por não atrair o grande público,

sendo esquecida pelos programas radiográficos e, conseqüentemente,

desconhecida pelo grande público: os “Malditos” da MPB. Estes considerados

malditos, em sua maioria, tinham uma visão artística de vanguarda e, de certa

maneira, descomprometida com a imprensa e o próprio mercado fonográfico. Entre

eles podemos citar o cantor e compositor capixaba Sérgio Sampaio, o cantor,

compositor e escritor carioca Jorge Mautner, que tem composições em parceria com

artistas como Gilberto Gil e Caetano Veloso e o paulista Walter Franco, que faz uma

67

interessante fusão entre música e poesia concretista, utilizando ritmos variados que

vão do rock ao batuque tribal, passando pelo fado português e a música folclórica

tradicional.

Seguindo a tradição do deboche aliado à crítica social, em meados da década

de 70, surge um trio musical e humorístico que satiriza a tropicália, inclusive no

título, que brinca com o grupo Novos Baianos e o cantor Caetano Veloso. Formado

pelos humoristas Chico Anysio, Arnaud Rodrigues e Renato Piau, o trio privilegiava

as letras engajadas e divertidas, acompanhadas de um bom instrumental e a crítica

principalmente voltada ao regime militar brasileiro.

Em Minas Gerais, paralelamente ao período do movimento tropicalista, surgia

um outro movimento musical que trocava influências com a própria Tropicália, além

de nutrirem uma especial paixão pelo grupo inglês “The Beatles”. Tendo como

principais representantes o cantor Milton Nascimento, os irmão Borges (Lô, Marcio e

Marilton), Beto Guedes e o letrista Fernando Brant, o movimento reuniu alguns dos

maiores músicos brasileiros de todos os tempos, como Wagner Tiso, Flávio

Venturini, Tavinho Moura, Toninho Horta e Ronaldo Bastos. Reconhecido no Brasil e

também no exterior, o “Clube da Esquina”, como ficou conhecido o movimento, é

uma das mais originais e bem estruturadas fusões do rock e música regionalista que

surgiram na cultura brasileira, podendo serem reconhecidos mundialmente como

representantes de um autêntico “folk-rock”.

Praticamente toda a geração do rock nos anos 70 também foi influenciada

pela produção musical tropicalista. Alguns grupos, como “A Bolha”, chegaram a

acompanhar artistas tropicalistas, assim como este foi o grupo de apoio de Gal

Costa no início da década de 70, além do grupo formado pelo guitarrista Lanny

68

Gordin. “Casa das Máquinas”, “Bixo da Seda”, “Som Nosso de Cada Dia”, “Mutantes”

(que seguiu uma prolífica carreira sem Rita Lee, aproximando-se agora do rock

progressivo inglês), Barca do Sol, entre outros, foram os principais expoentes do

chamado rock nacional, seguindo um caminho que havia sido inicialmente trilhado

pelo tropicalismo. Cabe ressaltar que durante o período atuante do movimento

tropicalista (68-72), uma série de novos grupos de rock também surgiu, fundindo a

psicodelia e o experimentalismo a uma música pesada e rica em referências a

cultura nacional, e também apostando em novas versões de composições dos

principais artistas tropicalistas, como Caetano e Gil. Entre ele podemos citar o

próprio grupo “A Bolha”, que surge inicialmente como “The Bubbles”; “Os Brazões”,

que acompanharam Gal Costa em inicio de carreira; e um outro grupo, que

mesclava em sua formação representantes brasileiros e argentinos, os “Beat Boys”.

Longe do sudeste e do sul do país, onde aparentemente concentrava-se a

maior e mais representativa parcela da produção musical brasileira, também

surgiram interessantes movimentos influenciados pelo experimentalismo pós-

tropicalista. No Recife, em meados da década de 70, surgiu um movimento

conhecido como “Udigrudi”, embalado pela psicodelia e agregando esta ao

regionalismo tão fortemente arraigado em sua cultura. De caráter “underground”, o

movimento reuniu obras que transcendiam a música e chegavam ao teatro, as artes

plásticas, ao cinema e a já tradicional literatura de cordel. Fato interessante de se

destacar é a troca de influências entre os artistas relacionados ao movimento.

Lançando álbuns em dupla, ou em grupo, e participando de várias outras

empreitadas artísticas, estes se fortaleciam a partir da idéia de coesão, assim como

os artistas tropicalistas em seus primeiros anos de trabalho. Reunindo artistas que

69

posteriormente se tornariam conhecidos no cenário nacional, como Zé Ramalho, Zé

Geraldo e Alceu Valença, o movimento também conservou artistas mais conhecidos

no meio “underground”, como Lula Côrtes, Lailson, Zé da Flauta e o grupo “Ave

Sangria”.

Duas décadas depois, em meados da década de 90, um outro movimento

surgiu no mesmo Recife e reuniu toda a influência tropicalista presente no

movimento “Udigrudi”, inserindo a esta algumas novas influências, como o Hip-Hop,

o maracatu e a música eletrônica, além da forte presença da tradição das literaturas

em quadrinhos e de cordel. Conhecido como “Manguebeat”, este movimento teve

em Chico Science (morto precocemente em um acidente automotivo, em 1997) e

seu grupo “Nação Zumbi” o seu principal idealizador e difusor. Outro importante

grupo do movimento, e que segue produzindo bons trabalhos até hoje, é o “Mundo

Livre S/A”, assim como o já citado “Nação Zumbi”, ao lado de novos representantes,

como os grupos “Móveis Coloniais de Acaju” e “Cordel do Fogo Encantado”.

70

4. CONCLUSÃO

O movimento tropicalista surgiu em meio a um turbilhão político e

comportamental, onde a música popular brasileira não passava incólume pelas suas

conseqüências. Definindo-se não como um movimento coeso e bem estruturado,

percebemos que os envolvidos, sejam eles músicos, produtores, poetas ou artistas

plásticos, não se identificavam necessariamente com os mesmos valores. Claro que

havia um eixo de conexão e comprometimento entre eles, mas fica nítido que cada

um destes envolvidos aplicava suas influências de modo subjetivo e pautando-se em

sua realidade, trazendo para obra um forte caráter pessoal e crítico.

Talvez neste ponto resida a maior capacidade revolucionária e vanguardista

da Tropicália, já que renovou ao implantar a fusão do novo com o já tradicional, do

externo e “internacionalizado” com as influências brasileiras de raiz e suas

referências. O tropicalismo adiantou para o povo brasileiro o que seria a “world

music” e a globalização cultural presentes nos dias de hoje.

É justamente a heterogeneidade dentro do movimento que incentivou a

constante busca por estímulos musicais e visuais, caracterizando e diferenciando a

Tropicália em meio a um estagnado mercado musical, onde a bossa nova já não

evoluía e dificilmente conseguia trazer para o presente os êxitos do passado.

Neste mesmo cenário, a música de protesto, apesar de possuir seu séquito

de seguidores fiéis e radicais, já dava provas do vazio em que se afundava,

mergulhando em uma fase em que o futuro se mostrava nebuloso, seja pela forte

censura implementada a partir do AI-5, seja pela crise de criatividade e inspiração, já

71

que esta já dava mostras de repetição e estagnação, não conseguindo se recriar

dentro desta mesma proposta contestatória.

Renovando a estética e o universo musical, os tropicalistas trouxeram para o

cenário musical brasileiro uma série de inovações que, até o presente momento,

eram completamente estranhos a música popular brasileira. Arranjos inspirados em

compositores, músicos e movimentos de vanguarda, letras fortemente engajadas

politicamente e aliadas ao sentimento contra-cultural de uma juventude mais

politizada e desejosa de liberdades reais, o peso e a energia do rock`and`roll, o

resgate de canções e ritmos tipicamente brasileiros, a fusão de letras em português

com o universalismo propagado pela língua inglesa. Entre outros exemplos, foi com

a Tropicália que esta renovação se implantou na música brasileira, e estes podem

ser considerados os responsáveis por buscarem e, de certo modo, conseguirem,

superar um certo sentimento de inferioridade e subdesenvolvimento característicos

do povo e da cultura brasileira. A Tropicália uniu o primitivismo da música brasileira

de raiz e a uniu a mais avançada cultura proposta e defendida por uma juventude

sedenta de mudanças.

Caminhando em sentido contrário ao proposto pelo mercado fonográfico

brasileiro da década de 60, os tropicalistas inovaram e fortaleceram-se frente a um

retrógrado mercado não acostumado a novidades. Assumindo novos estilos visuais,

apresentando-se de maneira cada vez mais agressiva, visual e comportamental,

foram responsáveis por também renovarem o modelo de espetáculo e shows, já que

tornaram comum a apresentação de happenings criativos e improvisados.

Assimilando novos conceitos relacionados à produção musical, também se

responsabilizaram por elevar o nível de experimentalismo a patamares jamais vistos

72

na música popular brasileira, propondo uma nova forma de apreciação musical,

onde não apenas os ouvidos são tocados.

O estímulo à sinestesia do ouvinte é uma constante na estética tropicalista, a

utilização de cores, o conceito de álbum-objeto, referências literárias, políticas,

artísticas e históricas; toda esta série de influências vem a tornar a Tropicália uma

fonte única de criatividade frente ao estagnado cenário musical dos anos finais da

década de 60, dominado pela ingenuidade da jovem guarda ou pelo proselitismo da

música de protesto, já relativamente mergulhado em um vazio artístico e criativo.

Mesmo acusados de alienação e falta de comprometimento com a causa libertária e

anti-ditatorial, atraíram a atenção desta a ponto de serem censurados em diversas

letras, enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e posteriormente

exilados em Londres. Curiosamente, o exílio veio a enriquecer ainda mais a

sonoridade e a própria vivência tropicalista. Enquanto Caetano e Gil obtinham

contato direto com os resquícios da contra-cultura e as novas atitudes da juventude

européia, Gal, Macalé e Tom Zé elevaram a Tropicália a avatar da juventude

brasileira da década de 70, representando, tardiamente, a revolução que os Estados

Unidos da América e a Europa vivenciaram entre os meados e o final da década de

60.

Frente a todas estas características, é notável a capacidade que o movimento

tropicalista teve de inserir um sentimentalismo e toda uma subjetividade em suas

obras, desafiando um influente e massificante modelo industrial cultural, que

trabalha e se reproduz por meio de conceitos pré-fabricados e moldados

previamente, visando a reprodução de lucros cada vez mais substanciais. Neste

ponto, a Tropicália se aproxima do conceito habermasiano onde os mundos do

73

sistema e o da vida tem sim a capacidade de se aproximarem, fazendo com que

este acabe por amenizar os efeitos nocivos daquele.

Em uma trajetória conturbada e enriquecedora dentro do campo da música

popular brasileira, os tropicalistas puderam se fazer notar a partir de uma proposta

revolucionária e ainda não vivenciada pela juventude brasileira da década de 60,

unindo influências internas e externas, propondo uma música universal e que, ainda

sim, pudesse caracterizar o Brasil e toda sua história.

Desta maneira, unificando algumas das mais avançadas idéias estéticas,

artísticas e musicais de um dos períodos mais conturbados do século XX, a

Tropicália tornou-se um dos movimentos mais representativos da música popular

brasileira, obtendo reconhecimento e prestígio mundial, além de influenciar toda uma

série de novos artistas e novos movimentos musicais pelas décadas seguintes,

chegando aos dias de hoje, quarenta anos após sua explosão inicial, tão

representativa e instigante quanto nos seus dias iniciais.

Como já salientado anteriormente, alguns destes movimentos ou artistas

levam abertamente a influência tropicalista. Já outros, apesar de não trazerem a

influência aberta, conservam em seus trabalhos toda uma estética experimental que

a Tropicália tornou mais comum à nossa cultura. De uma maneira ou de outra, o

movimento se insere como desbravador da cultura brasileira, inserindo um espírito

de renovação até então inédito para a música popular brasileira.

74

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MUTANTES. A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (Polydor, 1970)

NARA LEÃO. Nara Leão (Philips, 1968)

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TOM ZÉ. Tom Zé (RGE, 1970)

TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENSIS (Philips, 1968)