tropicália, bananas ao vento

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Tropicália, bananas ao vento Beatriz Cossermelli "Nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas." Caetano Veloso O ano de 1967 seria definitivo para o cenário da cultura e da música brasileira, esta como reflexo de todas as outas artes que se faziam com menor ou maior intensidade no Brasil: as artes plásticas (os parangolés), a poesia, o teatro e o cinema. Após o golpe militar de 1964, os padrões do "bom comportamento" e do "bom gosto" do conservadorismo geral estavam levando a juventude a um estado de marasmo e alienação, entre o industrialismo que avançava, a invasão da cultura pop de massa e o subdesenvolvimento brasileiro. O primeiro âmbito da cultura a se manifestar e inserir no universo da vanguarda artística foi o das artes plásticas, especialmente a partir da exposição de Hélio Oiticica, Tropicália, manifestação ambiental, no MAM do Rio de Janeiro, em abril de 1967. O projeto foi apresentado na exposição "Nova Objetividade Brasileira", e consistia em um ambiente formado de duas tendas penetráveis, onde dentro havia um cenário tropical composto de areia, bananeiras, araras e, ao fundo, um aparelho de televisão ligado. Segundo o próprio autor: "(...) na verdade quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação - somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo - nossa cultura nada tem a ver com a europeia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disso que caia fora". Em maio do mesmo ano, Glauber Rocha, expoente do movimento cinematográfico do Cinema Novo, este importado do neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa, cujo lema era "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", lançou seu novo filme Terra em Transe, quatro anos após o mítico Deus e o Diabo na Terra do Sol. O roteiro se passava na fictícia República de Eldorado que era governada pelo tecnocrata Diaz, um ditador. O filme era uma exaustiva, mas alegórica crítica à Ditadura Militar e a seus participantes, e ele foi censurado. A relação entre teatro e Tropicalismo se estabeleceu através da encenação pelo Grupo Oficina, dirigido por José Celso Corrêa, da peça modernista escrita por Oswald de Andrade, em 1933, O Rei da Vela. A peça foi a única manifestação em texto do Manifesto Antropofágico, publicada por Oswald em 1928. O aspecto experimental do espetáculo de tom agressivo reunia figuras circenses, o deboche, o sexo e a pornografia, e despertava no público ao mesmo tempo fascínio e revolta. A estratégia foi adotada por José Celso para romper com o "teatrão" do TBC (Teatro Brasileiro de Comédias) e para levantar os jovens de classe média das poltronas confortáveis da alienação. No âmbito da música, foi nos festivais de MPB da TV Record de 1966 e 1967, em São Paulo, que o tropicalismo começou a tomar forma, ou melhor, som. Até o festival de 1966, o que se fazia em termos musicais era a canção de protesto, que passava uma mensagem muito clara da indignação com a desigualdade social brasileira e com a situação de hipocrisia geral. O Tropicalismo musical veio romper com a ortodoxia crítica que afirmava que o valor da produção de música popular no Brasil deveria estar vinculada

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O movimento do tropicalismo no Brasil entre 1967-69

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  • Tropiclia, bananas ao vento Beatriz Cossermelli

    "Nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades tcnicas."

    Caetano Veloso O ano de 1967 seria definitivo para o cenrio da cultura e da msica brasileira,

    esta como reflexo de todas as outas artes que se faziam com menor ou maior intensidade

    no Brasil: as artes plsticas (os parangols), a poesia, o teatro e o cinema. Aps o golpe

    militar de 1964, os padres do "bom comportamento" e do "bom gosto" do

    conservadorismo geral estavam levando a juventude a um estado de marasmo e

    alienao, entre o industrialismo que avanava, a invaso da cultura pop de massa e o

    subdesenvolvimento brasileiro.

    O primeiro mbito da cultura a se manifestar e inserir no universo da vanguarda

    artstica foi o das artes plsticas, especialmente a partir da exposio de Hlio Oiticica,

    Tropiclia, manifestao ambiental, no MAM do Rio de Janeiro, em abril de 1967. O projeto

    foi apresentado na exposio "Nova Objetividade Brasileira", e consistia em um ambiente

    formado de duas tendas penetrveis, onde dentro havia um cenrio tropical composto de

    areia, bananeiras, araras e, ao fundo, um aparelho de televiso ligado. Segundo o prprio

    autor: "(...) na verdade quis eu com a Tropiclia criar o mito da miscigenao - somos

    negros, ndios, brancos, tudo ao mesmo tempo - nossa cultura nada tem a ver com a

    europeia, apesar de estar at hoje a ela submetida: s o negro e o ndio no capitularam a

    ela. Quem no tiver conscincia disso que caia fora".

    Em maio do mesmo ano, Glauber Rocha, expoente do movimento cinematogrfico

    do Cinema Novo, este importado do neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa,

    cujo lema era "uma cmera na mo e uma ideia na cabea", lanou seu novo filme Terra

    em Transe, quatro anos aps o mtico Deus e o Diabo na Terra do Sol. O roteiro se

    passava na fictcia Repblica de Eldorado que era governada pelo tecnocrata Diaz, um

    ditador. O filme era uma exaustiva, mas alegrica crtica Ditadura Militar e a seus

    participantes, e ele foi censurado.

    A relao entre teatro e Tropicalismo se estabeleceu atravs da encenao pelo

    Grupo Oficina, dirigido por Jos Celso Corra, da pea modernista escrita por Oswald de

    Andrade, em 1933, O Rei da Vela. A pea foi a nica manifestao em texto do Manifesto

    Antropofgico, publicada por Oswald em 1928. O aspecto experimental do espetculo de

    tom agressivo reunia figuras circenses, o deboche, o sexo e a pornografia, e despertava no

    pblico ao mesmo tempo fascnio e revolta. A estratgia foi adotada por Jos Celso para

    romper com o "teatro" do TBC (Teatro Brasileiro de Comdias) e para levantar os jovens

    de classe mdia das poltronas confortveis da alienao.

    No mbito da msica, foi nos festivais de MPB da TV Record de 1966 e 1967, em

    So Paulo, que o tropicalismo comeou a tomar forma, ou melhor, som. At o festival de

    1966, o que se fazia em termos musicais era a cano de protesto, que passava uma

    mensagem muito clara da indignao com a desigualdade social brasileira e com a

    situao de hipocrisia geral. O Tropicalismo musical veio romper com a ortodoxia crtica

    que afirmava que o valor da produo de msica popular no Brasil deveria estar vinculada

  • a uma posio poltica de esquerda e nacionalista. Exceto pelo movimento da Jovem

    Guarda, liderado por Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Wanderlea, chamado tambm de

    "i-i-i", no se usavam as guitarras e nenhum outro componente eltrico na msica

    "intelectualizada". Seus sons deveriam fazer referncia unicamente ao folclore brasileiro.

    Foi ento que no festival de 1967, dois baianos introduziram em suas canes os

    instrumentos eltricos importados do rock 'n' roll e a guitarra distorcida, misturando com

    suas letras inteligentes e intelectualizadas: Caetano Veloso o fez em Alegria, Alegria, com

    a participao do grupo argentino Beat Boys, e Gilberto Gil em Domingo no Parque, com a

    participao da jovem banda paulistana, Os Mutantes. A influncia dos Beatles,

    principalmente das experincias psicodlicas de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band,

    lbum lanado no mesmo ano, ficaria da em diante sendo da maior importncia para o

    desenvolvimento do tropicalismo musical. O pblico reagiu de maneira hostil. Gritos, vaias

    e assobios eram ouvidos em meio aos versos cantados de Caetano Veloso: "(...) O sol nas

    bancas de revista/ Me enche de alegria e preguia/ Quem l tanta notcia?/ Eu vou (..)".

    Era um retrato da juventude de classe mdia burguesa alienada que povoava as ruas de

    So Paulo e do Rio de Janeiro.

    Caetano e Gil acabaram por se tornar os lderes do movimento tropicalista na

    msica, de tal forma que possvel sugerir que o movimento tenha se extinguido quando

    ambos foram presos e exilados, em 1969. Reuniram-se, ento, sob o mesmo projeto de

    disco, o Tropiclia ou Panis et Circenses, lanado em 1968, os dois baianos, Tom Z, Gal

    Costa, Nara Leo, Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Srgio Dias e Rita Lee) e os poetas

    Torquato Neto e Capinam. Para fazer os arranjos, foi chamado o maestro Rogrio Duprat,

    ex-aluno de Stockhausen e Frank Zappa.

    Se, na arte, o movimento tropicalista reflete uma transformao essencial nos

    critrios de produo e no consumo das obras de arte, situando o artista ao mesmo tempo

    no mundo e, principalmente, no Brasil, na msica trata-se da sntese da poesia concreta,

    da alegorizao e carnavalizao de um Brasil culturalmente confuso, que mescla Bossa

    Nova (e sua influncia do samba e do jazz), pop-rock ingls, ritmos regionais, movimentos

    burlescos, Coca-Cola e Brigitte Bardot. O que a cano tropicalista fez foi provocar um

    verdadeiro curto circuito na estruturao da cano at ento praticada. Movimento sem

    posio poltica definida, o tropicalismo na msica foi uma sntese do que estava ocorrendo

    no Brasil e no mundo, politicamente, mas, sobretudo, culturalmente. dito antropofgico

    porque admitiu as contradies da contemporaneidade.

    A arte da capa do disco Tropiclia funciona como uma espcie de pardia da capa

    do lbum Sgt. Pepper's, dos Beatles, tendo sido elaborada pelo artista plstico Rubens

    Gerchman, cuja obra A Bela Lindoneia influenciara a composio de Caetano Veloso

    cantada no disco por Nara Leo, "Lindoneia". Ao analisar a mise-en-scene da capa,

    possvel perceber alguns smbolos que definiam a salada mista dos gneros incorporados

    no lbum: Tom Z carrega na mo uma bolsa de couro, representando a alegoria da

    imigrao nordestina, os retirantes. Rogrio Duprat segura um pinico na mo como se

    fosse uma xcara gigante, fazendo referncia provavelmente ao modernismo de Duchamp

    ou ao psicodelismo; Gal Costa e Torquato Neto esto sentados lado a lado, ele com uma

  • boina e ela com um penteado modesto, simbolizando o casal recatado do interior. Atrs de

    todos, est Caetano Veloso com seu penteado estilo rock 'n' roll, segurando um retrato de

    Nara Leo (que no pde comparecer na sesso), vestida maneira de uma jovem

    burguesa. Os integrantes de Os Mutantes esto junto de Caetano, carregando as guitarras

    eltricas e, finalmente, frente est sentado, no cho, Gilberto Gil, vestido com uma

    espcie de toga com as cores da bandeira nacional.

    O disco possui 12 faixas, e elas esto dispostas na seguinte ordem: 1) "Miserere

    Nobis", com composio de Capinam e Gilberto Gil, 2) "Corao materno", Vicente

    Celestino, 3) "Panis et Circenses", Caetano Veloso e Gilberto Gil, 4) "Lindoneia", Caetano

    Veloso, 5) "Parque industrial", Tom Z, 6) "Geleia Geral", Gilberto Gil e Torquato Neto, 7)

    "Baby", Caetano Veloso, 8) "Trs caravelas" (Las tres carabelas), E. Moreu, A. Alguer Jr.

    e Gilberto Gil, 9) "Enquanto seu lobo no vem", Caetano Veloso, 10) "Mame coragem",

    Caetano Veloso e Torquato Neto, 11) "Bat macumba" (Caetano Veloso e Gilberto Gil) e 12)

    "Hino ao Senhor do Bonfim", Petion de Vilar e Joo A. Wanderley.

    A cano tropicalista ainda se caracterizou pela insero de elementos no

    musicais na sua forma de apresentao: mise-en-scene, figurino de cores extravagantes,

    roupas de plstico, colares de macumba, a maneira de colocar o corpo no palco como uma

    escultura viva, a dana etc. Afinal, como bem disse Oswald de Andrade, "A alegria a

    prova dos nove"; "S a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.

    Filosoficamente".*

    *Oswald de Andrade Em Piratininga Ano 374 da Deglutinao do Bispo Sardinha. (Revista

    de Antropofagia, Ano 1, No. 1, Maio de 1928)