tratado de direito civil português

Upload: maria-magalhaes

Post on 07-Jan-2016

26 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

*

TRANSCRIPT

  • \,V

    CO

    SPR

    ESSU

    PoSToS

    DA

    LEGTINIA

    I)EFESA

    6$.A

    agrcssio

    1.O

    spre

    ssuposto

    sda

    legtima

    defesaesto

    condensados

    no

    artigo

    337! 1.

    que

    passam

    os

    atra

    nscre

    ver,

    paraefe

    itos

    de

    anlise.D

    ispe:

    Considerasejustificado

    oacto

    destinadoa

    alasiarqualquer

    ag

    ress

    o

    actual

    eco

    ntrria

    leicontra

    apessoa

    ou

    patrimonio

    doagente

    OUde

    ter

    ceiro,desde

    queno

    sejapossvel

    faz-lopelos

    meios

    norm

    ais

    eo

    prejuzo

    causado

    peloacto

    noseja

    manifestam

    entesuperior

    aoque

    podere

    sultarda

    agresso.

    Tem

    os,com

    opre

    ssuposto

    s2:

    um

    aagresso

    actu

    ale

    co

    ntrria

    lei,

    contra

    apessoa

    ou

    patrimnio

    doagente

    ou

    deterceiro;

    um

    acto

    dedefesa

    necess

    rio;

    o

    prejuzo

    cau

    sadopelo

    actono

    sejam

    anifestam

    entesuperior

    ao

    quepode

    resultar

    daagresso.

    257A

    doutrinacivilista.

    impressionada

    pelodesenvolvim

    entoque

    am

    atriaalcana

    no

    Direito

    penal.evita

    aprotundaro

    tema

    dalegtim

    adetesa.

    Detodo

    om

    odo.

    referimos:JORGE

    RIBLIRODE

    FAiU.s.D

    ireitodas

    obrigaes1 (reimp..

    2001. 444-446.

    Jo4oANTLNi7S

    VA

    RELA. DoA

    obriae,vem

    geral1. 10

    cd. (2000).555558.

    MA

    IoJLIo

    DL

    AL

    sIEIa-\

    Co

    sG\.

    Direito

    dasobngae.

    9cd.

    (20t)-

    reimp..

    2005).522

    523.O

    i.isEIRA

    ASCESSO.

    OD

    ireito/)nfroduoe

    teoriageral,

    3cd, (2005),

    9395

    eLL;s

    MEN

    EZESLEITO.D

    ireitodas

    obrigaes1, 2

    cd.(2002).290292,3

    cd.(2003). 309311

    e4

    cd.(2005).290

    292.O

    maior

    desenvolvimento

    sobreo

    tema

    co

    ntinua

    aser

    ode

    FERNA

    NDO

    Pusso.sJO

    RG

    E.Ensaiosobre

    os

    flressuposro.sdo

    responsabilidade

    eiiilcit.. 226

    ss..tendo

    aindainteresse

    os

    trabalhospreparatrios

    deV

    .\zSER1i..\.C

    ansasjI(Sri/UO!ilOS

    do/aLto(/00050,

    BM

    J85

    (1959),13

    113(49

    ss.).

  • ti 1tte(I privada

    Com excepo do ltimo dos referidos pressupostos, esta frmulapode ser considerada semelhante legtima defesa presente no artigo 32.do Cdigo Penal.

    II. O primeiro requisito o de uma agresso ou comportamentoagressivo. Por definio, deve estar em causa uma conduta humana: nuncaum comportamento animal ou um evento natural258.Perante estas duasltimas eventualidades. poder-se- pr a hiptese do estado de necessidade: nunca o da legtima defesa. O comportamento agressivo toda aconduta que venha contundir com valores tutelados pelo Direito. O termoagresso , na linguagem comum, assimilado a um atentado integridade fsica das pessoas. Tecnicamente, no assim: o desrespeito porqualquer posio protegida, pessoal ou patrimonial, agresso:

    Em RCb ]7-Set.-2003 discutiu-se e decidiu-se (mal) o caso seguinte:num local de diverso e em pblico, um indivduo (o agressor) puxou, porduas vezes, as barbas do agente; este, procurando evitar confrontos, retira--se; novamente surpreendido pelo agressor, que lhe puxa novamente asbarbas; defende-se, ento, com um copo, provocando ferimentos na cara doagressor; o tribunal veio entender que a ofensa honra no estava includana legtima defesa, sendo a agresso demasiado insignificante para justificara reaco: negou a legtima defesa1259. Mas no: o problema foi, justamente, ter-se tomado letra a agresso. Ningum obrigado a suportaractos incorrectos ou desprimorosos podendo perfeitamente reagir em legtima defesa, dentro dos competentes pressupostos.

    A conduta humana s-lo-, apenas, quando voluntria. Disparar sobreum sonmbulo ou sobre uma pessoa totalmente embriagada no constituilegtima defesa ainda que. por ignorncia desculpvel desses elementos,possa haver equivalentes efeitos, como se alcana do artigo 338..Finalmente: a conduta agressiva poder ser uma aco ou uma

    omisso. Assim, ser legtima defesa coagir um mdico que se recuse atratar um paciente em perigo ou um motorista que no queira transportaro ferido grave para o hospital260.

    1258 LARENZ/WOLF, Aligemeiner Teu, 9 cd. cit., 336-337, OLAF WERNER, noStaudinger Ko,n,nentar 1. 164-240 (2001), 227, Nr. 3 (776-777) e TILMAN REPGEN,na verso seguinte do mesmo Staudingers Kom,nentar: 1, 164-240 (2004), 227, Nr.14 (783).259 RCb 17-Set.-2003 (OLIVEIRA MENDES). CJ XXVIII (2003)4, 39-42 (42/1).1260 FIGUEIREDO DiAs, Direito penal cit., 1, 386.

    43. Os pressupostos da legtima defitsa 419

    III. A agresso deve ser actual261.Fica excluda a agresso consumada e, logo, passada: contra esta j nada se poder fazer, em termos de aafastar. Admitir, contra ela, uma reaco seria um acto de vingana, estranho ao Direito civil262. Mas na hiptese de a agresso se prolongar notempo e at que cesse por completo, a legtima defesa tem cabimento. Ficaainda excluda a agresso futura: em princpio, perante uma agressoplaneada e de que o agente tenha conhecimento, cabe avisar as autoridadescompetentes. No consideramos futura a agresso iminente: se o agressorprocura sacar uma arma ou se prepara para desferir um murro, cabe alegftima defesa. O critrio ltimo da actualidade residir no perigo concreto que, no momento considerado, corra o bem jurdico protegido1263.

    Quanto a dispositivos automticos para disparar sobre intrusos ou aouso de ces amestrados para atacar: aplicam-se as regras gerais. Se tudoestiver preparado para operar, apenas, perante agresses ilcitas, h legtima defesa.

    IV. A agresso deve ser ilcita: contrria lei. FIGUEIREDO DiASdefende uma ideia ampla de ilicitude: ser relevante, para efeitos de legtima defesa, qualquer violao da ordem jurdica e no, apenas, de normaspenais.

    FIGuEIREDO DIAs admite, assim, legtima defesa destinada a fazercessar as emisses de rudo de um bar que funcione para alm do permitidoe sem insonorizao, de modo a impedir orepouso. S no haveria lugar alegtima defesa quando estiverem previstos procedimentos especiais, comoocorre com o cumprimento dos crditos1264.Parece-nos urna opo demasiado lata, pelo menos em termos civis: as condutas em causa sero violaes: mas no agresses.

    De facto, a legtima defesa no possvel, apenas, contra crimes.Exige-se, porm, que a ilicitude da conduta consista na violao de normasdestinadas a proteger o bem jurdico cuja defesa est em jogo. S assim hagresso.

    1261 HELMUT GROTRE, Mnchener Konimentar utn Brgerlichen Gesetcbuch, 1, 4cd. (2001), 227, Nr. 7 (2050) e STAUDINGER/OLAF WERNER cit., 227, Nr. 8 (777-778).

    1262 Em pocas histricas. designadamente no Direito germnico, admitia-se avingana de morte (Biutrache); cf. VOLKER KREY, Zur Einschrnkung des Noiwehrrechtsbei der Verteidigung von Sachgiitern, JZ 1979, 702-707 (704/1).

    1263 STAuDINGER/REPGEN cit., 227, Nr. 19 (785).1264 FIGUEIREDO DIAs, Direito penal clt.. 1, 392-393.

  • 420 A tutela privada

    Deste modo, no ser legtima defesa disparar sobre um baile nocturnono autorizado, porque as regras de tranquilidade pblica do azo a merosinteresses reflexamente tutelados1265.Tambm no ser possvel, sob invocao de legtima defesa, agredir o devedor inadimplente: o incumprirnentodetermina a aplicao de outras normas que mantm intacto o patrimnio docredor. Mas, em legtima defesa, j se poder impedir o devedor de destruiruma coisa no fungvel, que devesse entregar ao credor.

    Resulta deste requisito que no h legtima defesa contra agresseslcitas e, designadamente: contra actos de legtima defesa. De outro modo,teramos uma espiral de violncia, que o Direito no pode legitimar.

    V. Pergunta-se se, alm de ilcita, a agresso deve ser culposa e issocom urna subquesto: dolosa ou (meramente) negligente266?

    Do nosso ponto de vista, o juzo de culpa uma questo-de-direito.No vemos como exigir a algum que tenha, pelos seus prprios meios, deremover uma agresso, a formulao de um juzo de valor sobre a condutado agressor. Bastar, pois, que a conduta do agressor seja objectivamenteilcita. As dvidas quanto culpa sero, muitas vezes, interrogaesquanto prpria ilicitude.

    De todo o modo, poder suceder que a conduta agressiva seja patentemente (apenas) negligente. Por exemplo: um automobilista diverte-se apercorrer um parque frequentado por crianas em alta velocidade; de ummomento para o outro, poder ocorrer um grave atropelamento. Parecerazovel a legtima defesa contra tal atitude. Da mesma forma, ser possvelagir contra o caador descuidado que faa disparos junto a uma escola ouperto de uma residncia exposta.

    Nesses casos como em todos

    a defesa dever ser adequada aoperigo.

    Contra inimputveis profundos ou crianas de idade inferior a seteanos

    a idade civilmente relevante, perante o artigo 488./2 no cabe,

    em princpio, legtima defesa: no cometem factos ilcitos. Quando muito,haver estado de necessidade. Se a inimputabilidade no for aparente, alegtima defesa ser putativa.265 Mas j ser admitida a legtima defesa contra um fumador que persista emfumar num espao fechado livre de fumo: est a agredir a sade dos presentes: STAU0INGER/REPGEN cit., 227, Nr. 10 (781-782), com outras indicaes.266 Cf. ANDREAS H0YER, Das Rechrsinstitut der Notwehr, JuS 1988, 89-96.

    43. Os pressupostos da legtima defesa 421

    VI. A agresso respeita pessoa ou ao patrimnio do agente ou deterceiro. Na linguagem penal: deve reportar-se a interesses juridicamenteprotegidos do agente ou de terceiro.

    Supomos que, neste ponto, a lei civil ser de interpretar em termoslatos. A agresso relevante, para efeitos de legtima defesa, dever visar:

    ou direitos de personalidade, incluindo o direito honra; ou direitos patnmoniais; ou liberdades; ou valores jurdicos que no dem lugar a direitos subjectivos.

    A pessoa impedida de se exprimir livremente pode agir em legtimadefesa. E esta possvel contra quem, por exemplo, se prepare para matarilicitamente animais ou para lanar poluentes nos rios ou, at, no alto mar.O Direito deve acompanhar os problemas do Planeta. A chave da legtimadefesa est na ilicitude da conduta ou, se se preferir uma frmula maiscivil: na ilicitude do resultado. Na impossibilidade de recorrer aosrgos prprios, o Direito confia a cada um a sua preservao.

    169. A defesa necessria

    1. O segundo requisito da legtima defsa a prtica, pelo agente, deum acto de defesa, isto , um acto destinado a afastar uma agresso. Segundo a natureza das coisas, tratar-se- de um acto material, voluntariamente adoptado: na linguagem penal diz-se um facto. Excludas ficam,pois, meras actuaes reflexas, que no possam ser imputadas vontadedo agente. O acto defensivo poder, ainda, consistir no uso de armas,brancas ou de fogo, no recurso a tcnicas de luta pessoal ou numa actuaode fortuna. Cabe ao agente, de entre os meios disponveis, escolher o maisadequado. Adiantamos j que o Direito d uma indicao de proporcionalidade, se necessrio a derivar do princpio da boa f (334.0)1267. Todavia, tudo depende das concretas hipteses presentes: o agredido que noconhea tcnicas de luta mas esteja armado, poder servir-se de uma armade fogo; em princpio, apenas como aviso; se necessrio, procurando atin

    1267 Nesse sentido, HERMANN DILCOER, BestehrJiir die Notwehr nach 227 BGBdas Gebor (ler Verh/iltnismiissigkeit oder em Verschuldenserfordnis?, FS Hbner 1984,443-446 (464).

    111141

    4

  • 422 A tutela pri uda

    gir rgos no-vitais (p. ex., visando as pernas do agressor): se no tiveroutra hiptese, visar o tronco ou a cabea.

    II. A actuao do agente deve ser ditada pela necessidade1268.Podemos, aqui, distinguir1269:

    a necessidade da defesa; a necessidade do meio.

    A necessidade da defesa resulta, perante o artigo 337.Il, da perfrase... desde que no seja possvel faz-lo pelos meios normais .... Os meiosnormais so:

    meios pblicos;

    meios privados.

    Os meios pblicos consistem no recurso s autoridades de seguranae. designadamente, s foras policiais. Mais remotamente: no apelo aostribunais, quando a natureza da agresso seja compatvel com algumademora.

    Os meios privados abrangem todas as iniciativas particulares quepossam remover a agresso: fechar uma porta, dissuadir o agressor ouchamar amigos ou familiares, como exemplos.

    O juzo de necessidade deve ser formulado pelo agente, nas circunstncias em que se encontre1270.A lei no lhe impe que corra riscos,nem que abdique de direitos seus. Assim, se o agressor pretende evitar aentrada do agente num local pblico, no este obrigado a recuar, pararemover uma agresso iminente. Pode agir em legtima defesa.

    Ocorre, aqui. referir o problema clssico da fuga: perante uma agresso iminente, deve o agente pr-se em fuga, assim evitando ter de molestaro agressor? Tradicionalmente, a resposta era negativa: a fuga seria umadesonra, qual ningum teria de se submeter. Hoje, a resposta mantm-senegativa, por razes diversas: ou por se entender que, de outro modo, no

    266 GRO1HE. iv,ichener Konunentar cii., 1. 4 cd., 227, Nr. 10 (2052).1269 FIGLEIREDO DIAs, Direito penal cit.. 1. 395 ss. e 398 ss., embora noutra

    sequncia e TAIPA DE CARVALHO. A legtima defesa cit.. 311 ss..1270 RCb 12-Fev.-1998 (VIEIRA MARINHO). CJ XXIII (1998) 1, 53-56 (55/1): a

    necessidade deve ser aferida objectivamente, segundo a bitola do homem mdio, colocadona posio do agente.

    43. Os pressupostos da legtima defesa 423

    haveria legtima defesa, perdendo-se o efeito dissuasivo que esta representaou por na nossa ideia se abdicar, ad nutum, de um direito que a lei noretira: o de ficar.

    Evidentemente: a fuga ser a soluo mais indicada quando o agenteno tenha fora fsica, coragem ou armas para enfrentar a agresso; masessa a fraqueza estrutural da autotutela.

    III. Quanto necessidade do meio: ela no se confunde com a proporcionalidade da defesa, a qual depender do uso que, do meio em causa,se venha a fazer.

    Pode o agente ter vrios meios sua disposio. O meio maisnormal ser sempre o menos perigoso ou contundente. Pensamos que oinerente juzo se deve prolongar na prpria aco defensiva. Assim, a umaagresso a murro poder-se- responder com um esquivar, seguido decontra-ataque; na impossibilidade de o fazer, usar-se- a pistola. Um meioaparentemente dispensvel tornar-se- necessrio se no houver outrodisponvel. Uma pessoa frgil e sem treino de luta poder usar meios maisperigosos de defesa.

    IV. Problema interessante o da eventual necessidade de animusdefendendi. O agente, ao actuar, deve faz-lo com a inteno dedefender-se?

    A doutrina geral faz aqui uma distino algo subtil; separa271:

    elementos subjectivos das causas de justificao: o agente teriaconscincia de se mover no seu mbito;

    um especfico animus defendendi, prprio da legtima defesa e a

    A legtima defesa algo to natural e instintivo que nos parecefrancamente irreal operar tal distino. Ao agente ter de se exigir umcomportamento defensivo e, logo: uma inteno de repelir a agresso.Repare-se: esto em causa, muitas vezes, bens disponveis de que o agentepoder querer prescindir272.A legtima defesa ser, assim, uma oposua. Alm disso, o Direito no pode legitimar actuaes perigosas nodirigidas por qualquer razo humana.

    1271 FIGUEIREDO DIAs. Direito penal cit., 1. 370 e 408.1272 LARENZ[WOLF, Aligemeiner Teil. 9 ed. cit., 339: cf. JOHANN BRAUN.

    Subjektive Rechtsjrtigungselemente im Zivilrechr?, NJW 1998, 941-944 (944).

    11

    aditar ao primeiro.

  • 424

    ______

    A tutela privada

    Por exemplo: um particular decide disparar sobre a primeira pessoaque se apresente porta da sua casa; executa o plano, mas mata, porcasualidade, um ladro. No vemos, aqui, qualquer legtima defesa, aindaque, civilmente, possam ser minorados certos aspectos indemnizatriosdecorrentes da sua conduta.

    A inteno requerida , porm, muito elementar: normalmente, nohaver tempo para introspeco. Mesmo um inimputvel poder ter vontade suficiente para agir em legtima defesa.

    170. A (pretensa) proporcionalidade

    1. Perante uma agresso ilcita, o Direito permite o recurso tutelaprivada, em certas circunstncias que temos vindo a examinar. Pergunta--se, agora, at onde pode ir a conduta defensiva do agente. Pode-se matara tiro o mido que tire uma ma de um pomar? A resposta obviamentenegativa, obrigando a colocar o tema da proporcionalidade da defesa. Mascomo fixar essa proporo?

    Aparentemente, o final do artigo 337./1 daria a resposta: o prejuzocausado pelo acto no deveria ser manifestamente superior ao que poderesultar da agresso. Este preceito , porm, fortemente insatisfatrio:haver que interpret-lo com a maior cautela, tendo ainda em conta a globalidade do ordenamento e, em especial, as regras penais pertinentes1273.

    O artigo 337.I1, particularmente no seu final, no foi objecto dereflexes preparatrias. Donde as deficincias que se vieram a manifestar eque. hoje, so pacficas.

    Desde logo, lamentvel que o legislador no tenha adoptado, quanto legtima defesa, a mesma frmula contida no Cdigo Penal. O Direitoalemo, prevendo as imensas dificuldades que a vigncia, no mesmo ordenamento, de frmulas de legtima defesa diferentes civil e penal poderiacausar, adoptou, no BGB e no StGB274,precisamente a mesma norma227/2 e 32/2, respectivamente

    nos termos seguintes:Legtima defesa a defesa que seja necessria para repelir uma

    agresso actual e ilcita, contra o prprio ou contra um terceiro.

    1273 A exigncia da proporcionalidade remonta ao anteprojecto de VAZ SERRA,Causas justificativas do facto danoso cit., 111; todavia, a justificao de motivos , nesteponto, muito elementar ob. cit., 60 ss. no aprofundando o tema.

    1274 Sigla de Strafgeset:buch ou Cdigo Penal alemo.

    43 O Os pressupostos da 1egna defesa 42

    De seguida, a conteno do prejuzo causado pela legtima diferenapor referncia ao que possa resultar da agresso teve uma preocupaoordenadora perante os que resultem do estado de necessidade e da acodirecta, sem atentar nos problemas dogmticos subjacentes. Atente-se, porexemplo, em que o artigo 2044. do Cdigo italiano (no responsvelaquele que ocasiona o dano em legtima defesa, prpria ou alheia) nocontm qualquer delimitao.

    II. A legtima defesa a resposta, permitida pelo Direito, a uma

    agresso ilcita. Por coerncia: o quantum da resposta ter de ser o necessrio para, de todo, pr cobro agresso. No faz sentido permitir a tutelaprivada e, depois, recusar os meios necessrios para a sua efectivao.Repare-se que o agente, uma vez iniciada a conduta defensiva, ficar espe

    cialmente exposto ao agressor, caso a sua defesa no seja eficaz: ser deesperar uma agresso aumentada e, porventura, bem mais perigosa. Alegtima defesa um instrumento ao servio dos particulares e dos seusdireitos: no pode transformar-se numa acrescida fonte de riscos e deproblemas para quem se limite a fazer observar a lei1275.

    Quanto ponderao de prejuzos: a no poder haver uma manifestasuperioridade dos danos causados pelo agente perante os que poderiamresultar da agresso, no vemos defesa eficaz.

    Em face de um roubo: como responder com uma arma de fogo? evidente que o risco da supresso da vida surge muito superior dos bens ameaados. E mesmo perante um crime iminente de violao: como esfaquear,em defesa, o agressor? De novo o direito vida manifestamente superior autodeterminao sexual. Em qualquer destes casos, apenas a possvel (eprovvel) manifesta superioridade de danos a causar ao agressor d

    consistncia defesa.

    A possibilidade de legtima defesa s , portanto, eficaz se ospotenciais agressores souberem que podem contar com uma reacojuridicamente vlida muito superior ao dano que pretendiam infligir.Tomado nestes termos, o instituto da legtima defesa tutela, tambm, osfracos: os prevaricadores no sabem, de antemo, com o que poderocontar.

    1275 Criticando artigo 337.!l do Cdigo Civil: TAIPA DE CARvALHO, Legtinm defesacit., 57. No mesmo sentido. CONCEIO VALDGUA, CORTES ROSA e FIGUEIREDO DIAS,abaixo citados.

    1;

    1

    1

  • 426 A tutela privada

    Finalmente: no actual momento histrico, verifica-se uma deficincia flagrante, por parte do Estado, na defesa dos cidados. Cabe ao Direito(privado) dar uma resposta.

    III. Tudo aponta para a necessidade de restringir, quanto possvel, airreflectida meno final do artigo 337.!l. Neste cenrio, verifica-se quea exigncia controversa da no manifesta superioridade do dano a infligirao agressor no encontra correspondncia no artigo 32. do Cdigo Penal.Quer isso dizer que uma mesma conduta poderia ser consideradajustificada, por integrar legtima defesa, luz do Direito penal e ser ilcita,por extravasar a legtima defesa, perante o Cdigo Civil. Como resolver?

    Uma primeira soluo residiria em admitir legtimas defesas diferentes, no Direito civil e no Direito penal. Em rigor, isso seria possvel,uma vez que ambos os ordenamentos lidam com problemas distintos. Novemos, porm, a mnima vantagem em tais duplicaes: a legtima defesa algo de popular, no sentido mais profundo e autntico do termo; no secompreende a subtileza de uma duplicidade que os prprios especialistasno entendem nem explicam.

    Mas alm disso: tal duplicidade como demonstrou CONCEIO

    VALDGUA1276 iria provocar solues desconexas: imagine-se uma agres

    so, qual o agente pe cobro de modo a causar danos manifestamentesuperiores aos evitados; perante o artigo 32. do Cdigo Penal h legtimadefesa; perante o artigo 337./l, no h; como no h, o prprio agressorpassa, civilmente, a agredido, podendo usar de legtima defesa contra oagente: este, por seu turno, no se pode defender, em face da lei civil (noh legtima defesa contra legtima defesa), mas pode faz-lo perante a leipenal; fazendo-o, viola de novo a lei civil, permitindo nova agresso: tudoisso num crculo de violncia causado pelo prprio Direito! Alm disso,no meio da confuso, qualquer terceiro poderia legitimamente intervir emdefesa de um ou de outro dos contendores, sem que o Direito dessequalquer bitola de soluo justa. Haveria grave contradio axiolgica.

    IV. Queda uma segunda e radical soluo: o final do artigo 337./ldo Cdigo Civil foi revogado pelo artigo 32. do Cdigo Penal1277.Conse

    276 MARIA DA CoNceio SANTANA VALDGUA, Aspectos da legtima defesa noCdigo Penal e no cdigo Civil, em Jornadas de Homenagem ao Professor DoutorCavaleiro de Ferreira (1995), 235-285, especialmente 275.

    1277 Alm de CoNceio VALDGUA, Aspectos da legtima defrsa cit., 274 ss., tam

    43 Os pressupostOs da legtima defesa 427

    guimos, por esta via, uniformizar a ordem jurdica, adoptar a soluo queuma interpretao correcta das normas civis j aconselharia e preveniruma grave quebra sistemtica, num ponto da maior sensibilidade.

    V. Ultrapassado o qui pro quo provocado pela insensibilidade dolegislador de 1966 ao tema da legtima defesa, mantm-se, todavia, o temada proporcionalidade. At onde pode ir a defesa?

    A proporcionalidade assegurada, desde logo, pelos prprios pressupostos da legtima defesa, com relevo1278:

    para a necessidade de defesa; para a necessidade do meio.

    Isto posto, a aco defensiva deve apresentar-se, quando possvel,proporcionada natureza da agresso. A doutrina civil deixa claro que nose exige nenhuma ponderao de valor dos bens em causa1279.No entanto,se se determinar que, in concreto, o agente podia ter afastado a agressocom um meio moderado e, todavia, recorreu a um meio extremo, poderhaver excesso.

    VI. Na prtica, a pessoa constrangida a recorrer legtima defesafar, com o assentimento da ordem jurdica, tudo o que puder para sedefender. O problema da proporcionalida pe-se perante o uso deannas de fogo, principalmente quando o agressor no esteja armado ouquando a agresso seja dirigida a (meros) valores patrimoniais. Pode-sematar, em legtima defesa, a sangue frio?

    Entendemos que no caso das armas de fogo, h que observar regrasespecficas, abaixo referidas280.Fora isso, os limites da legtima defesa,perante a revogao do final do artigo 337.I1, pelo Cdigo Penal, tero deresultar da boa f281.

    bm TAIPA DE CARVALHO, Legtima defesa cit., 57, MANUEL CORTES ROSA, Die Funktlonder Abgrenzung von Unrecht und Schuld im Strafrechtsvsten, em Bausteine des curopdischen StrafrechtslCoifllbra Svrnposium flir Claus Roxin (1993), 183-211(197-198) eFIGUE1REDO DIAS, Direito penal cit., 1, 411-412.

    278 LARENZ/WOLF, Aligemeiner Teu, 9 ed. cit., 339.1279 STAUDINGER/REPGEN cit., 227. Nr. 55 (797). HELMUT GROTHE. Mnchener

    Ko,n,nentar cit.. 1, 4U ed., 227, Nr. 13 e MEDICUS. Aligemeiner Teil, 8 cd. cit., Nr. 156(67-68), todos com indicaes.

    1280 Infra, 434 ss..1281 Infra, 430-43 1.

    1111

    4A

  • 41 . O REGIME DA LEGTIMA DEFESA

    171. Aboaf

    1. A pessoa que actue em legtima defesa prolonga o exerccio de

    3 certas posies jurdicas, suas ou de terceiros, custa das do agressor.1 Todavia, mantemo-nos no campo do social e do jurdico. Particularmente

    num momento em que o Direito se reconhece incapaz de dispensar umatutela normal e adequada, ser pedido, Cincia Jurdica, um mximo decuidado analtico e valorativo.

    II. O exerccio em legtima defesa deve respeitar os valores fundamentais do sistema, classicamente referenciados atravs da boa f. Esta,designadamente atravs das suas vertentes da tutela da confiana e daprimazia da materialidade subjacente, permite enquadrar alguns dos temasclssicos da legtima defesa.

    Recordemos que a legtima defesa faculta, to-s e precisamente,repelir uma agresso ilcita e momentnea, quando necessrio, Assim, noh legtima defesa:

    quando a agresso tenha sido provocada pelo prprio agente;

    quando a defesa no vise afastar a agresso mas qualquer outroobjectivo.

    III. A hiptese da provocao282 traduz-se em, por parte do agente,ter havido uma actuao prvia

    p. ex., com injrias, comportamentosagressivos ou desafios tendente a desencadear uma agresso ou agresso aparente. Contra ela exerceria, depois, o agente uma legtima defesafulminante. Nessas circunstncias, a legtima defesa estaria a ser exercida

    1282Especialmente, considerada no Direito pena): cf. FJGUEIREDO DIAs, Direito

    penal cit.. 1.401 ss., com indicaes. O tema , porm, tambm civil: STAUDINGER/REPGEN

    cit., 227, Nr. 33 (790) e Nr. 59 (799).

  • 430.4 tutela privada

    ___________________________________

    fora da materialidade subjacente que a justifica. Haver abuso do direito(334.) e no urna legtima defesa eficaz1283.Tal o caso discutido e decidido em STJ 7-Dez.-1998: aps umaaltercao num estabelecimento, causada por um indivduo alcoolizado, odefendente retira-se; regressa, depois, para buscar gua quente para descongelar o vidro do automvel e acaba por a ficar mais algum tempo; sai,depois, na frente do agressor; este vai ao automvel buscar uma bengala;o defendente aproxima-se, de modo a ser agredido por uma bengalada;vai ao automvel prprio buscar urna arma; aproxima-se para levar novabengalada e, nessa ocasio, dispara a matar; entendeu o Tribunal que foipreparada a agresso, de modo a possibilitar a legtima defesa; decidiu-

    -se, pois. pela presena de um homicdio simples284.

    IV. A legtima defesa apresenta-se disfuncional quando o agenteaproveite o ensejo para prosseguir fins diferentes dos do afastamento daagresso. Os exemplos clssicos so os de um defendente motivado pordio, por cime ou por inveja1285.De todo o modo, a doutrina admite queesses sentimentos negativos se misturem com o animus defendendi, semprejudicar a legtima defesa. A pessoa que, por necessidade, tenha derecorrer legtima defesa est, em regra, numa situao de grande perturbao mental, sendo presa fcil da ira e do desforo.V. Ainda a boa f dever dar os limites da legtima defesa, designadamente no tocante aos bens jurdicos que, por ela, podem ser atingidos.Mau grado a recusa da proporcionalidade, temos de entender que apermisso normativa de usar a prpria fora s se justitica at um certolimite, ainda que varivel, de acordo com as circunstncias1286.Esse limite1283 Reclamando, aqui, a interveno da boa f (f 242 do BGB): I-IELMANN DILCHER,Besteht fOr die Notwehr nach 227 BGB das Gebot der Verhiiltnismdssigkeit cit., 464.1284 STJ 7-Dez.-1998 (MARTINs RAMIRES), BMJ 492 (1999), 159-168 (165).1285 caso de RPt 1-Mar.-1995 (FONSECA GLJIMARES), BMJ 445 (1995), 618(o sumrio): controlado o agressor, o agente, com ele prostrado em terra, pe-lhe os joelhos sobre o peito e desfere vrios murros, em atitude de desforo.286 Alm da bibliografia acima referida, a propsito da (pretensa) proporcionalidade, confrontmos: KLAUS HIMMELRE1CH, Nothilfe und Norwehr: insbesondere zur sogenunnten Jnteressenabwdgung, MDR 1967, 361-366, KLAUS AOOMEIT, Wahrnehmungberechtigter Interessen and NotivehrrechtlZur Dogmatik zivilrechtlicher Rechtfertigungsgrnde, insbesondere bei Eingr(ffen in Pers/inlichkeirsrechte und in Unternehmenrechte (usserungsdelikte), JZ 1970. 495-500, GNTER SPENDEL, Der Gegensatz rechtlicher and 2itllicher Wertung am Beispiel der Noiwehr. DRiZ 1978, 327-333.

    440 Oregiifle da legtima defesa

    ser ditado pelos valores fundamentais do ordenamento (a boa f), ficandoem especial relevo:

    o facto de poder estar ei3a jogo a vida do agressor ou de terceiros; a manifesta superioridade do agente, em funo, por exemplo, da

    arma ou do especial treino de que tenha beneficiado; a manifesta inferioridade do agressor, em funo do seu estado

    fsico, de embriaguez ou de factores circunstanciais visveis.

    Mas como conferir relevo a todos estes elementos?O juzo de adequao flO poder s-lo a posteriori. Terminado O

    momento crtico, tudo se toma sereno e evidente. Todavia, o agentedeve

    decidir antes. Podemos lanar mo da bitola do agente normal, colocado

    na posio do concreto agente, sob o circunstancialjslnbo reinante287.Essabitola ser, ainda, alargada, de modo a ter em conta a intensa

    perturbao

    que sempre reina em situaes de vias de facto. Tudo visto, teremos os

    limites da aco, forosamente latos, pois se trata de repelir uma agressoilcita, qual ningum, nunca, pode estar sujeito.

    172. O excessO e a legtima defesa putativa

    1. O artigo 337./2 do Cdigo Civil prev o excesso de legtimadefesa, nos termos seguintes:

    O acto considera-se igualmente justificado ainda que haja excesso delegtima defesa, se o excesso for devido a perturbao ou medo no culposo

    do agente.

    Na interpretao deste preceito devemos reter que o final do artigo

    337.Il foi, efectivamente, revogado pelo Cdigo Penal e que o excessono se confunde com a legtima defesa putativa regulada no artigo 338..

    II. H excesso de legtima defesa quando a aco do defendente sealongue para alm do que seria necessrio para deter eficazmente aagresso. O problema pe-se naturalmente, apenas para alm das margens

    alargadas que podem enformar a atitude do defendente.

    1287 Por exemplo: a hiptese de legtima defesa entre cnjugeS dever ser ponderada em funo da realidade do casal: cf. GERO GEILEN, Eingeschrdnkte Notwehr

    unler

    Ehegatefl, iR 1976, 3 14-318.

    A

    11

    1

    1

  • 432.4 tutela privada 44. O regime da legtima defesa 433

    Podemos distinguir288:

    o excesso intensivo; o excesso extensivo.

    No excesso intensivo, o agente ultrapassa, com a sua aco, o queseria razoavelmente necessrio para a sua defesa. Ser o caso de algumusar, em defesa, uma pistola de gs, fazendo-o demasiado perto e, comisso, cegando o agressor; no extensivo, o agente prolonga a aco depoisde neutralizada a agresso. Por exemplo: aplica golpes j com o agressorrendido. No Direito alemo, a hiptese no est contemplada no planocivil. Constatado o excesso, j no haveria legtima defesa: o agentepoderia, contudo, ver minoradas as consequncias, quando se pudesseestabelecer que, dadas as circunstncias, ele no teve culpa289.

    O Cdigo VAZ SERRA , porm, claro: estende a legtima defesa(... igualmente justificado

    ...) hiptese de excesso, desde que este semostre devido:

    a perturbao; a medo no culposo.

    Pelas regras gerais, tanto a perturbao como o medo tero de serno culposos: o agente no pode beneficiar de circunstncias que, eleprprio e censuravelmente tenha criado. Poderemos, para o efeito, utilizara bitola dc) bonus pater familias (487./2), colocado na posio do concreto agente.

    A perturbao natural: ela corresponde, em regra, descarga deadrenalina motivada pela situao extraordinria que o defendente teve deenfrentar. O agente poder perder o contacto com a realidade, ficandoimpossibilitado de avaliar as consequncias dos seus actos.

    Tambm o medo corresponde a uma reaco comum. O agente, assustado, tender a assegurar-se, para alm do necessrio, de que a agressono ir prosseguir ou no ir ser retomada.

    1288 GR0ri-ir. Mnchener Kommenrar cit., 1. 4 cd., 227. Nr. 21 (2058).289 STAUDINGER/REPGEN cit.. 227. Nr. 64 (801) e LARENZJWOLF, Aligemeiner

    Teil. 9 cd. cit., 342.

    jIII. Os tribunais portugueses so, por vezes, estritos demasiado

    estritos no julgamento de hipteses de excesso de legtima defesa1290.

    Anotemos alguns casos judiciainiente decididos:RCb 9-Dez.-] 993: h manifesto excesso de meios quando a agente

    desfere, com uma enxada, uma pancada na cabea de uma pessoa que se lhe dirigia com uma faca na mo com o.propsito dea agredir291;

    STJ 26-Mai.-1994: estando um grupo de pessoas a apedrejar umestabelecimento e a danificar um automvel, e saindo o agente,em defesa, com uma pistola, no h legtima defesa se, depoisde o grupo se dispersar, ele ainda perseguir e atingir a tiro umdos agressores1292;

    STJ 1O-Out.-]996: h legtima defesa se, aquando da resposta a umassalto e na impossibilidade de recorrer fora pblica, o agenteresponder, a tiro a um assaltante que o enfrentava empunhandouma faca1293;

    STJ21-Jan.-1998: num episdio ligado a questes de prostituio, umgrupo de agressores decide ir a determinada casa, na presena esem autorizao dos donos, procurar uma cidad estrangeira; provocam danos e chegam a agresses; retiram-se, regressando novamente, tendo sido chamada a GNR, que acalmou os nimos;retirada a fora da GNR, o grupo salta o muro e tenta nova invaso; a agente dispara um tiro mfrtal: houve legtima defesa1294;

    STJ ]3-Dez.-2001: existe uma relao degradada entre dois irmos;aps vrios acontecimentos, um deles espera outro e avana,contra ele, com uma forquilha; o agente dispara, em defesa, adois metros; o agressor foge com a forquilha, acabando por cair,de barriga para baixo; o agente persegue-o e usa a prpria forquilha para atingir o agressor, j prostrado, matando-o: no hlegtima defesa1295

    1290 Cf. a situao relatada em TAIPA DE CARVALHO, A legtima defesa cit.. 320,nota 554.

    1291 RCb 9-Dez.-1993 (ALMEIDA SANTOS). BMJ 432 (1994), 439.1292 STJ 26-Mai.-1994 (SousA GUEDES), BMJ 437 (1994), 296-302 (301).1293 STJ 10-Out.-1996 (S NOGUEIRA), BMJ 460 (1996), 359-368 (367).1294 STJ 25-Jan.-1998 (VIRGLI0 DE OLIVEIRA; vencido: JOAQUIM DIAs), BMJ 473

    (1998), 133-147 (143).1295 STJ 13-Dez.-2001 (PEREIRA MADEIRA), CJ/Supremo IX (2001) 3. 242-247

    (244-246); o tribunal entendeu, porm. que o agente. logo perante a ameaa da forquilha.deveria ter fugido ou procurado refgio no automvel: ora isso seria, j. legitimar oagressor.

  • 434 A tutela privada

    IV. No tocante legtima defesa putativa296,dispe o artigo 338.,em conjunto com a aco directa:

    Se o titular do direito agir na suposio errnea de se verificarem ospressupostos que justificam a aco directa ou legtima defesa, obrigado aindemnizar o prejuzo causado, salvo se o erro for desculpvel.

    Evidentemente: no havendo culpa, no h dever de indemnizar(483./2). De novo verberamos a atitude dos revisores ministeriais que,sem os necessrios estudos, decidiram embrenhar-se em matria de toelevada exigncia jurdico-cientfica.

    A questo que se pe a propsito da legtima defesa putativa resideno eventual alargamento da justificao do acto: seria, pois, um tema delicitude e no de culpa297.Entendemos que a legtima defesa correspondea um figurino humano, assente na confiana criada por certos actos e nonum exame naturalstico da realidade. Imaginemos um assalto mo armada,a um estabelecimento, em que os agressores esbofeteiam a empregada dacaixa e, sob ameaa de pistolas, exigem o dinheiro; o dono, perante operigo de uma retaliao mortal contra a empregada ou contra ele prprio,surge armado e atira cabea dos assaltantes; verifica-se, depois, que estesusavam pistolas de plstico. H legtima defesa plena, ainda que putativa.

    A lei diz, aparentemente, o contrrio, uma vez que obrigaria aindemnizar, salvo a clusula geral da culpa. O risco de situaes queaparentem agresses corre por quem as crie: no pelos defendentes.

    Interpretando, no seu conjunto, o artigo 338., diremos simplesmenteque a legtima defesa putativa justificante quando a aparncia justificativa no seja imputvel ao agente.

    173. As armas de fogo

    1. O grande bice da legtima defesa reside no uso de armas de fogo.O essencial da nossa jurisprudncia sobre os (efectivos) pressupostos dalegtima defesa e sobre o excesso de legtima defesa tem a ver com o usode tais armas: uma vez armado, o mais frgil ser humano pode matar umagressor. de pessoas ou de bens. Ora semelhante eventualidade, dado o

    296 MEDICUS, Aligemeiner Teu, 8 ed. cit., Nr. 160 (69).1297 Sobre o tema: EVA GRAUL, Notwehr oder Putatiinotwehr Wo ist der Un

    ierschied?, JuS 1995. 1049-1056.

    44. O regime da legtima defrsu 435

    artigo 24. da Constituio e, para mais, num Pas que h muito aboliu apena de morte1298,no pode ser encarada de nimo ligeiro299.

    II. Vamos sustentar que o detentor de uma arma de fogo deve seguir,em tennos de legtima defesa, um cdigo de conduta bastante estrito.Desde logo, estando armado, deve evitar locais movimentados, baresnocturnos e discotecas e, em geral, stios onde se consuma lcool ou ondeseja de esperar exaltaes ou rixas. De seguida e em princpio:

    s deve usar a arma para defender bens considerveis: a vida ou aintegridade fsica, prpria ou de terceiros ou bens patrimoniaiselevados; nunca perante bagatelas;

    deve, sempre, avisar o agressor de que est armado, em termosdissuasivos;

    deve disparar tiros de aviso; deve apontar a zonas no vitais; s esgotadas todas as hipteses poder visar o tronco ou a cabea:

    ainda nessa hiptese, tanto quanto as circunstncias o permitam,apenas para salvar vidas humanas ou bens de valor crtico.

    O detentor de arma de fogo tem o dever de saber servir-se dela,mantendo-se adestrado. Nas mos de um Jeigo, a arma de fogo podetornar-se intil: ser um perigo, antes do mais, para o prprio e para a suafamlia. O uso descuidado ou indevido de uma arma de fogo representa umilcito que nenhuma legtima defesa pode sufragar. Mas paralelamente:perante uma agresso, perpetrada ou iminente, com arma de fogo, legitimada fica uma defesa tambm com arma de fogo.

    III. As armas de fogo so, em princpio, usadas pelas autoridades eagentes policiais, no exerccio das suas funes. A delicadeza da matrialeva existncia de legislao especial sobre o uso de tais armas1300.Dispe, na matria, o Decreto-Lei n. 457/99. de 5 de Novembro.

    1298 Tratado 1/3, 123 ss.. Por ltimo: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS. ConstituioPortuguesa Anotada cit., 1, 221-266.

    1299 Cf. VOLKER KREY, Zur Einschrnkung des Notwehrrechrs cit.. 7 13/1, reclamando, neste ponto, uma interpretao conforme com a Constituio.

    1300 Vide TAIPA DE CARVALHO, Direito penal/Parte geral, 11 -. Teoria geral docrime (2004). 197 ss.. Fazendo um apelo ao legislador nesse sentido: REINHARD RUPPERT.Die tiidliche Abwehr des Angr(ffs ci uf ,nenschliches Leben, JZ 1973. 263-267 (267).

    41

    1

  • 436 A nada privada

    Para facilidade de consulta, vamos consignar, aqui, os artigos 2. e3. desse diploma. Assim:

    Artigo 2.Princpios da necessidade e da proporcionalidade

    1 O recurso a arma de fogo s permitido em caso de absoluta

    necessidade, como medida extrema, quando Outros meios menos perigososse mostrem ineficazes, e desde que proporcionado s circunstncias.

    2 Em tal caso, o agente deve esforar-se por reduzir ao mnimo asleses e danos e respeitar e preservar a vida humana.

    Artigo 3Recurso a arma de fogo

    1 No respeito dos princpios constantes do artigo anterior e semprejuzo do dsposto no n. 2 do presente artigo, permitido o recurso aarma de fogo:

    a) Para repelir agresso actual e ilcita dirigida contra o prprioagente da autoridade ou contra terceiros;

    b) Para efectuar a captura ou impedir a fuga de pessoa suspeita dehaver cometido crime punvel com pena de priso superior a trsanos ou que faa uso ou disponha de armas de fogo, armas brancasou engenhos ou substncias explosivas, radioactivas ou prpriaspara a fabricao de gases txicos ou asfixiantes;

    c) Para efectuar a priso de pessoa evadida ou objecto de mandado dedeteno ou para impedir a fuga de pessoa regularmente presa oudetida;

    d) Para libertar refns ou pessoas raptadas ou sequestradas;e) Para suster ou impedir grave atentado contra instalaes do Estado

    ou de utilidade pblica ou social ou contra aeronave, navio, comboio, veculo de transporte colectivo de passageiros ou veculo detransporte de bens perigosos;

    f) Para vencer a resistncia violenta execuo de um servio noexerccio das suas funes e manter a autoridade depois de ter feitoaos resistentes intimao inequvoca de obedincia e aps esgotados todos os outros meios possveis para o conseguir;

    g) Para abate de animais que faam perigar pessoas ou bens ou que, gravemente feridos, no possam com xito ser imediatamente assistidos;

    h) Como meio de alarme ou pedido de socorro, numa situao deemergncia, quando outros meios no possam ser utilizados com amesma finalidade;

    440 Q regime da legtima defesa 437

    i) Quando a manuteno da ordem pblica assim o exija ou os superiores do agente, com mesma finalidade, assim o determinem.

    2 O recurso a arma de fogo contra pessoas s permitido desde que,cumulativamente, a respectiva finalidade no possa ser alcanada atravs dorecurso a arma de fogo, nos termos do n. 1 do presente artigo, e se verifiqueuma das circunstncias a seguir taxativamente enumeradas:

    a) Para repelir a agresso actual ilcita dirigida contra o agente outerceiros, se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave integridade fsica;

    b) Para prevenir a prtica de crime particularmente grave que ameacevidas humanas;

    c) Para proceder deteno de pessoa que represente essa ameaa eque resista autoridade ou impedir a sua fuga.

    3 Sempre que no seja permitido o recurso a arma de fogo, ningumpode ser objecto de intimidao atravs de tiro de arma de fogo.

    4 O recurso a arma de fogo s permitido se for manifestamente

    improvvel que, alm do visado ou visados, alguma outra pessoa venha aser atingida.

    174. As consequncias; a natureza

    1. A actuao em legtima defesa lcita. Consequentemente, oagente no responde pelos danos que tenha causado: pessoais ou materiais.Quando a sua actuao envolva a realizao de um crime, to-pouco estese verifica: a conduta est justificada.

    Em compensao, o agressor, verificados os pressupostos, poder serresponsabilizado pelos danos, pelas despesas e pelos incmodos que anecessidade de desencadear a legtima defesa tenha causado ao agente oua terceiros.

    II. Quanto natureza da legtima defesa: cumpre ter presente que, naleitura actual, ela visa a proteco das pessoas, mas, sobretudo, a defesa doordenamento301.Trata-se, pois. de uma posio activa, mas sempre comum sentido funcional. Alguma doutrina fala, a seu propsito, de um quase

    1301 KRISTIAN KHL, Notwehr and Norhilfe. JuS 1993. 177-183 (17911), alm doselementos j referidos.

    :i

    111

    :

  • 435 A tutela privada

    ______________________________

    -direito subjectivo1302.Tecnicamente no podemos, porm, apontar, na

    Legtima defesa, um concreto bem cujo aproveitamento tenha sido previa-mente facultado ao agente.

    Tomaremos, pois, a legtima defesa como uma permisso genrica: a

    de repelir, quando necessrio e pela fora, qualquer agresso ilcita contravalores juridicamente protegidos.

    SECO IIIO ESTADO DE NECESSIDADE E A ACO DIRECTA

    450 O ESTADO DE NECESSIDADE

    175. Ideia e evoluo geral

    1. Com base no artigo 339./l, do Cdigo Civil, podemos apresentar

    11h o estado de necessidade como a situao na qual urna pessoa se veja constrangida a destruir ou danificar uma coisa alheia, com o fim de remover o

    1? perigo de um dano manifestamente superior, quer do agente, quer deterceiro. Adiantamos que esta noo dever ser alargada nalguns pontos.

    t Alguns exemplos: o agente v-se obrigado a matar um co que ata-cava uma criana; o agente quebra uma janela para salvar a vtima de umincndio; o agente lana o seu automvel contra outro, para evitar atropelarum peo.

    Antecipamos j que, ao contrrio do que sucede na legtima defesa,o estado de necessidade surge, no Direito civil, em termos diversos dos do

    1 Direito penal303.

    1 II. A necessidade de ter de provocar danos para salvar pessoas eraconhecida desde a Antiguidade304.

    1303 A matria consta dos artigos 34. e 35. do Cdigo Penal: cf. FIGUEIREDO DIAS,Direito penal cit., 1,413, TAIPA DE CARVALHO, Direito penal cii., 2,221 ss. e MARIA FERNANDA PALMA, O estado de necessidade justificante no Cdigo Penal de 1982. Est.Eduardo Correia 3 (1984), 173-206 (179 ss.).

    1 1304 Com indicaes: ANDREAS HATZUNG. Dog,.nengeschichtliche Grundiagen and13(i2 ROBERT HAAS. Norwehr und Nothilfe cii., 354. Entstehung des civilrechtlichen Notstands (1984), 41 ss..

  • 440 A tutela privada

    A situao mais conhecida a la Lex Rhodia de jacto, que permitia,para aligeirar um navio em perigo, lanar carga pela borda fora1305. Ostextos clssicos referiam j a eventualidade de danificar a casa vizinha paraenfrentas um incndio: a Lex Aquilia de damno no seria aplicada306.

    O estado de necessidade era conhecido, nalgumas aplicaes, noantigo Direito alemo, particularmente na defesa perante ataques deanimais307

    III. No usus modernus dos sculos XVII e XVIII veio a ser apresentado um ius necessitatis1308,patente na pandectstica, nas codificaesnaturalistas e em certas codificaes e projectos do sculo XIX30.

    Apesar desses antecedentes, quer o Cdigo NAPOLEO, quer o Cdigo Civil italiano de 1865 mantiveram-se mudos, quanto ao tema1310.Curiosamente, o nosso Cdigo de SEABRA antecipou-se, ainda que semtratas esta problemtica pelo prisma da justificao da ilicitude: apenaspelo da indemnizao.

    Vamos reter os preceitos em jogo31 1:Artigo 2396. Se, para evitar algum prejuzo imminente, que por outro

    modo se no possa impedir, se fizer algum damno em propriedadealheia, ser esse damno indemnizado por aqueile a favor de quem forfeito.

    tnico Se o damno for feito em proveito de mais de um individuo, aindemnizao ser paga por todos elies, na proporo do benefcioque cada um tiver recebido.

    1305 PAULO, D. 14.2.1 BEHRENDS e outros, Corpos iuris civi/is cit., III, 206.1306 ULPIANO, D. 9.2.49.1 = BEHRENDS e outros, Corpos iuris civilis cit., II, 763.307 HEINRICH TITZE, Die Notstandsrechte mi Deutsche Biirgerlichen Gesetzbuche

    und ihre geschichtliche Entsvicklung (1897), 37 ss. e 44.308 HATZUNG. Doginengeschjchtljche Grundiagen cit.. 57 ss..

    1309 HATZUNG, Dogrneiigeschjchtljche Grundiagen cil., 69 ss., 90 ss. e 102 ss., respectivamente.

    1310 AMALIA DI1JRNI. Notstund znd Norhilfr/ejne dogmatische Untersuchung aufder Grundiage des deutschen zind italienischeti Zivilrechis (1998), 1.

    1311 Jose DIAS FERREIRA, odigo Civil Portuguec Annotado, 4, 2 ed. (1905),303-304. com exemplos; assim:

    Se para obstar ao desenvolvimeito de um incendio (...) que ameaassedevorar uma casa ou uma povoao, fosse derribado algum predio, a fim de evitara communicao do fogo (...) pagariam esse damno os beneficiados (...)

    45. O estado de necessidade 441

    Artigo 2397. -. Quando o beneficio se estender a uma povoao inteira, ouquando o damno for ordenado pela auctoridade publica no exercicio

    das suas attribuies, a indenmizao ser paga pelas pessoas em

    favor das quaes o damno for feito, sendo distribuida e paga na confor

    midade dos regulamentos administrativos.

    IV. No domnio da segunda codificao avulta o BGB alemo, que

    deu uma dupla guarida ao estado de necessidade: nos 228 e 904,respectivamente atinentes aos chamados estados de necessidade defensivo

    e ofensivo312.O 228 surge na paste geral, logo aps a legtima defesa.Dispe:

    1. Aquele que danificar ou destruir urna coisa alheia, para evitar um

    perigo, por ela provocado, para si ou para terceiros, no age ilicitamente,

    caso o dano ou a destruio sejam necessrios para a remoo do perigo eos danos no estejam fora da relao com o perigo.

    2. Caso o agente tenha causado o perigo, fica ele obrigado repa

    rao.

    Por seu turno, o 904 aparece a propsito do direito de propriedade.Determina:

    1. O proprietrio de uma coisa no pode proibir a ingerncia de outra

    pessoa sobre a coisa, quando a ingerncia seja necessria para a remoo deum perigo actual e o dano iminente seja desproporcionadamente grandeperante o que resulte, da ingerncia, para o proprietrio.

    2. O proprietrio pode exigir uma indemnizao pelos danos que lhe

    sejam causados.

    Estas solues do BGB foram tornadas possveis pelos estudos que o

    antecederam e que procederam sua distino de outras figuras313.E urna

    vezconsagrado, o estado de necessidade suscitou um especial interesse da

    3 1312 EDwIN ALLGAIER, Zuni Verhdltnis und cur Abgrenzung voo defensivein und

    aggressivern Notstand, VersR 1989, 788-790, STAUDINGER/REPGEN cit., 228, Nr. 1(806)e LARENZ/WOLF, Aligemeiner Teu, 9 ed. cit., 342-343. Referimos ainda o clssi

    co de

    ALFRED HUECK, Notstand gegenber einer rnitgefiihrdeten Sache. JhJb 68 (1919), 205-232e, quanto origem desses preceitos, HATZUNG, Dogmengeschchtliche Grundiage

    n Cit.,

    134 ss..1313 Cabe referir a clssica habilitao de ANDREAS VON TUHR, Der Notstand iin

    Civilrechi (1888), especialmente 74 ss..

    E

  • ________

    - A tutela privada 45. O estado de necessidade 443

    doutrina1314, O estado de necessidade seria, depois, acolhido no artigo2045. do Cdigo italiano, mas em moldes unificados1315.

    O Cdigo Penal alemo de 1871 apenas conhecia um estado de necessidade desculpante, do tipo do do actual 35 StGB. A mera transposio,para o campo penal, dos 228 e 904 do BGB era insuficiente, uma vez queapenas tinham a ver com coisas. Assim e perante, em especial, o problemado aborto teraputico, a doutrina penal alem desenvolveu uma teoria decausas de justificao supra-legais. A matria foi, depois, acolhida no 34do StGB de 19751316.

    Tambm no Direito penal portugus, a matria s seria formalmenteacolhida no artigo 34. do Cdigo de 1982.

    De notar que, no Direito penal, o direito de necessidade permiteatentar contra direitos de personalidade, dentro de certas medidas: porexemplo: tirar sangue ( fora) a uma pessoa, para impedir a morte deoutra1317. Na hiptese de a prpria pessoa operar como fonte de perigo,colocam-se problemas de difcil soluo318.

    No Direito civil, teremos de encontrar uma soluo na base da colisode direitos (335.) e, sendo o caso, no da presena de causas de excusa.

    176. Os pressupostos

    1. Os pressupostos do estado de necessidade podem extrair-se doartigo 339./1. Temos319:

    1314 TITzE, Die Notsiandsrechte 1,11 Deurschen Brgerlichen Gesetbuch cit., 98 ss..1315 DIURNI, iVotstand e Nothilfr cit., VII e passim, sublinhando que o Direito

    italiano protege mais o bem ameaado, enquanto o Direito alemo opta pela defesa maismarcada do terceiro.

    1316 STAUDINGERIREPGEN cit., 228, Nr. 3 (806-807).1317 Cf. FIGULIREDO DIAS. Direito penal cit., 1,415 ss.. 423 ss. epassiin e TAIPA DE

    CARVALHO. Direito penal cit., 2. 221 ss. e, especialmente, 240 ss..1318 MICHAEL PAWLIK, Der recht.sfertigende Defensivenotstand, Jura 2002, 26-31(28/11 e 30/TI), recordando o clebre caso dos alpinistas: numa expedio, cai um deles,

    ficando pendurado nos outros, por uma corda; no h hiptese de o iar; todavia, a nadaser feito, todos cairo e morrero: pode um deles cortar a corda, sacrificando, para salvaros outros, o companheiro infeliz?

    1319 PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos cit.. 254, RIBEIRO DE FARIA,Direito das obrigaes cit., 1. 446, ANTUNES VARELA, Das obrigaes em geral cit.. 1, ioacd., 558, ALMEIDA COSTA. Direito das obrigaes. 9 cd. cit., 526 e MENEZES LEITO,Direito das obrigaes cit.. 1. 4 cd., 294.

    um perigo actual de um dano, para o agente ou para um terceiro; dano esse que seja manifestamente superior ao dano causado pelo

    agente; um comportamento danoso, destinado a remover esse perigo.

    A exigncia de perigo de um dano, para o agente ou para terceiro,constitui a base do estado de necessidade. Por aqui j se v a flagrantediferena em face da legtima defesa: no se lida, aqui, com uma agressoilcita nem, consequentemente, com a necessidade de preservar a ordemjurdica, perante tal eventualidade.

    O dano poder ser patrimonial, pessoal ou moral. A lei no distingue,caindo todas as hipteses na sua letra, no seu esprito e na sua teleologia.A lei refere um perigo actual. Ele poder traduzir um dano j em curso,mas minorvel ou um dano iminente. Subjacente ficar a impossibilidadede afastar o perigo, sem a actuao em necessidade. E, designadamente: ainviabilidade de avisar, em tempo til, as autoridades competentes pararemover o perigo.

    II. A proporcionalidade neste caso, em termos tais que o danoevitado seja manifestamente superior ao causado pelo agente faz, aqui,todo o sentido. No est em causa repelir urna agresso ilcita, a qualjustificaria uma reaco radical, mas, apenas, o distribuir os danos, numaperspectiva social solidria. A ponderao dever ser feita pelo prprioagente, de acordo com os elementos disponveis no momento. Assim, bastar que, nesse juzo, o dano a prevenir se apresente como muito provvel1320, na sua concretizao e no seu montante. Alm disso, a valoraodos danos em jogo dever operar de acordo com bitolas gerais devalor321:no segundo escalas privativas do agente. Estas ltimas poderoapenas, no plano da responsabilidade, operar como causas de exculpao.

    III. Finalmente, temos o comportamento do agente. A aco implicada dever ser a necessria: quer quanto sua efectivao, quer quantoaos meios utilizados. Ela deve ser objectivamente adequada remoo dodano1322,contendo-se nos limites aqui exigveis.

    1320 STAUDINGER/REPGEN cit., 228. Nr. 11(809).1321 STAUDINGER/REPGEN cit.. 228, Nr. 22 (803).1322 STAUDINGER/REPGEN cit., 228. Nr. 20 (812) e GROTHE, Koinmenrar cit.. 1.

    4 cd., 228. Nr. 7 (2063).

    11

  • 444 A tutela privada 5 45 O O estado de necessidade 445

    Ser um Comportamento danoso. Perante a letra do artigo 339./1,parece que apenas poderiam, em necessidade, ser causados danos acoisas1323. Trata-seda opo de VAz SERRA1324, retomada do Direitoalemo325.Este ltimo no pode, todavia, ser aqui tomado como modelo,uma vez que prev uma auto-ajuda mais lata do que a nossa acodirecta ( 229 do BGB), que resolve problemas deixados em aberto poruma interpretao estrita do artigo 339./l 1326 Pergunta-se, por exemplo:para evitar a morte de uma pessoa que se recuse a abandonar urna casa emchamas, ser civilmente lcito retir-la fora? Obviamente: sim.

    Dada a clara teleologia do artigo 339.!1 permitir um dano paraevitar um dano desmesuradamente maior no vemos qualquer dificuldade em alargar a referncia a coisa, a feita, a todo e qualquer bem,incluindo bens imateriais e bens de personalidade327.Alis, no Direitocivil portugus, coisa no , apenas e em rigor, a coisa corprea artigo202./l 1328 in casu haver, porm, que ir ainda mais longe, alargando opreceito s prprias pessoas.

    Contra uma actuao em estado de necessidade, no pode haverlegtima defesa: falta o pressuposto bsico da agresso ilcita.

    177. O regime; situaes de excesso e ocorrncias putativas

    1. Verificada a situao de necessidade, a aco do agente lcita.O dano causado no lhe .poder ser imputado a ttulo aquiliano329,isto :por via do artigo 483./l. Pergunta-se, porm, se ser justo que esse danoseja suportado pelo titular dos valores atingidos.

    1323 PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos cit., 256.1324 VAZ SERRA, Causas justificativas do J/zcto danoso cit., 24-25 e 109; VAZ

    SERRA parece apoiar-se em VON TUHR: demasiado antigo, j na poca..325 LARENZ/WOLF, Aligeineiner Teu. 90 cd. cit., 342.

    1326 LARENZJWOLF, Aligemeiner Teu, 9 ed. cit., 345, conseguem o mesmo efeitoadmitindo a eficcia civil do estado geral de necessidade previsto no 34 do StGB.

    1327 Trata-se de uma opo que tem vindo a obter a adeso tanto de penalistascomo de civilistas. Assim: TERESA QUINTELA DE BRITO, O direito de necessidade e a legtima defrsa no Cdigo Civil e no Cdigo Penal (1994). 78-80, MRIO JLiO DE ALMEIDACOSTA, Direito das obrigaes. 9 cd. cit., 525 e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penalcit., 1, 435.

    1328 Tratado 1/2, 2 cd.. 27 ss..1329 GROTHE, no Mnche,ier Kom,nentar cit., 1. 4 cd., 228. Nr. 10 (2064).

    II. O artigo 339./2 vem dispor sobre o destino ou a repartio dessedano. Prev:

    a sua imputao ao agente, quando o perigo tenha sido provocadopor sua culpa exclusiva;

    a sua imputao equitativa ao prprio agente, queles que tenhamtirado proveito do acto ou que hajam contribudo para o estado denecessidade.

    Temos situaes de imputao de danos por actos lcitos 1330 Quanto distribuio equitativa dos danos, haver que, quando possvel, seguiro Direito positivo. Por exemplo, no domnio rodovirio e seguindo CANA-RIS, teremos1331:

    se algum dos intervenientes causou o estado de necessidade demodo a lhe ser imputvel por culpa ou a ttulo de risco, responder;

    no sendo esse o caso, haver uma diferenciao na base do riscorepresentado pelos bens em presena.

    III. A lei no contempla a hiptese de excesso de estado de necessidade. Podemos configurar tal excesso concebendo uma situao na qual oagente, movido por excesso de zelo, atinja bens que no seria necessriodanificar, para esconjurar o perigo332.Pois bem: tendo em conta a teleologia do preceito e no havendo uma avaliao culposa por parte do agente,a situao deve ter-se por justificada. Tal como sucede na legtima defesa,tambm o estado de necessidade pode ocasionar situaes de grandetenso psicolgica, a que o Direito no deixa de atender.

    O Tribunal poder, depois, refazer a justia possvel, atravs do jogodas indemnizaes: por facto lcito.

    1330 Direito das obrigaes 2, 395.1331 CLAUS-WILHELM CANARIS, Notsiand und Selbstaufopferung ia Sirassen

    verkehr!Zugleich em Beitrag zur aligemeinen Probleynatik des Notstands ia Zivilrecht, JZ1963, 655-662 (662/lI). No Direito alemo, os 228/2 e 904/2 s incompletamente fixamo dever de indemnizar; este imputado ao causador do perigo, com as necessriascomplementaes; cf. NORBERT HORN, Der Ersatzpflichtige im 2ivilrechtlichen Notstand,JZ 1960, 350-354 (350/1 e 353/1).

    1332 Tambm aqui possvel distinguir um excesso extensivo (o agente atinge maisbens do que o necessrio) ou um excesso intensivo (o agente danifica mais os bens emjogo do que o necessrio); cf. GROTHE. Mnchener Kommentar cit., 1. 40 cd., 228. Nr.12(2065).

  • 446 A tutela privada

    IV. Quanto ao estado de necessidade putativo: o agente comporta-sena convico, no culposa, de se verificarem os pressupostos que levaram aco. No vemos qualquer razo material para no estender, a tal ocorrncia, o regime do artigo 338..

    Pelo contrrio: perante o estado de necessidade pode sempre haver,depois, uma (re)distribuio equitativa dos danos (339.12), de tal modoque ningum saia injustamente prejudicado, para alm do risco normal emque todos incorrem.

    179. Ideia geral; evoluo

    46. A ACO DIRECTA

    178. Fundamento e natureza

    1. O estado de necessidade pode, tal como a legtima defesa, serreconduzido a uma ideia ampla de autotutela. Todavia tem, perante ela,diferenas essenciais.

    Enquanto, na legtima defesa, domina uma ideia de proteco doordenamento e de integridade de direitos, o estado de necessidade enformado por um postulado de solidariedade entre as pessoas. No fundamental, o artigo 339./1 d abrigo natural ajuda mtua entre os seres humanos, capazes de sacrificar o imediato, para salvaguardar o essencial. Podeat falar-se, a tal propsito. num dever de suportao como dever decidadania institucional333.

    II. Em termos tcnicos, o estado de necessidade no pode reconduzir--se a um direito subjectivo: falta-lhe, para tanto, a necessria especificidade.

    Equivale. antes, a urna permisso genrica, tambm com um fortecontedo funcional: a de atingir bens juridicamente tutelados, quando issose mostre efectivamente necessrio para salvaguardar bens superiores.

    333 WILFRILD KPER, Von Kanr bis Hegel/Das Legiti,nationsproblem desiechcfertigenden Notstandes und tlie freiheirsphilosophischen Notrechtslehren, JZ 2005,105-115 (107/lI, l09/1I. 113/li e passim): este escrito recensiona a monografia dereferncia de MICHAEL PAWLIK, Der rechtjertigende Notstand/Zugleich em Beigtrag zumProblem strafrechtlicher Solidaritiitspfiichten (2002), 365 pp..

    1. Na legtima defesa, o Direito permite que o particular afaste, pelafora, uma agresso ilcita; no estado de necessidade, pode o mesmoatingir bens jurdicos, para prevenir um dano iminente. Queda, agora, umaterceira manifestao de autotutela: a possibilidade de recorrer fora pararealizar ou assegurar o prprio direito

    336./l: a aco directa.

    II. Em princpio, a aco directa coloca-se nas antpodas do modo deser do Direito. Ningum pode ser juiz em causa prpria: faltam a imparcialidade, a legitimidade e, at, um elementar conhecimento das circunstncias relevantes para decidir. Alm disso, o autojulgamento s podeser executado, pela fora, pelos fortes e contra os fracos. Ficam em causaas mais elementares necessidades da justia, da igualdade e da segurana.Posto isso: recorrer prpria fora para defender supostos direitos , emregra, ilcito; muitas vezes corresponder, mesmo, a um tipo legal decrime.

    Todavia, desde a Antiguidade e em regra como modalidade alargadade legtima defesa, foi-se admitindo, pontualmente, a possibilidade dorecurso prpria fora, para defesa, ainda que provisria, de direitosameaados.

    No Antigo Direito portugus, por exemplo, chegou a operar um costume pelo qual, no arrendamento, havendo mora do inquilino no pagamentodas rendas, podia o senhorio, por si prprio, entrar no local locado e fazerarresto de tudo o que a encontrasse

    HENRIQUE DA GAMA BARROS, Histria da Administrao Pblica etn Porugalnos sculos XII e XV, 2 cd. por TORQUATO DE SousA SOARES, VII (1949), 14 ss..

  • 448 A tutela privada 46.0 A aco directa 449

    III. O Cdigo NAPOLEO e os subsequentes cdigos da primeiragerao no consignaram, com generalidade, a hiptese de uma acodirecta, distinta da legtima defesa. O tema foi muito discutido, aquandoda preparao do BGB alemo. Acabaria por prevalecer a sua consagrao, ainda que com muitas cautelas e sem perturbar o esquema comum doprocesso civil1335. Este exemplo passaria a algumas codificaes subsequentes, como a sua336,sendo, todavia, estranho italiana.

    Na preparao do Cdigo Civil, VAZ SERRA considerou o tema comsimpatia, propondo o seu acolhimento337.A matria seria, depois, muitoalterada nas revises ministeriais, surgindo com a forma definitiva apenasna segunda338.Mereceu prevenes de cautela. Por exemplo, diz-nosRODRIGUES BASTOS

    Encaramos com alguma preocupao a admisso, entre ns, do recurso aco directa. em termos gerais. para realizao ou defesa do direito prprio.

    Na verdade, tomado letra e caindo nos hbitos dos nossos concidados, a aco directa poderia implicar graves perturbaes sociais.

    lv. Alm da consagrao geral de aco directa, no artigo 336., oCdigo VAz SERRA compreende diversas manifestaes pontuais dessefenmeno. Assim:

    artigo 1 322./l: o proprietrio de enxame de abelhas tem o direitode o perseguir e capturar em prdio alheio, ainda que respondendopelos danos;

    artigo 1349.0/1: o proprietrio de um prdio obrigado a consentirque, nele sejam levantados andaimes, colocados objectos ou feitospassar materiais, para reparar edifcios ou construes contguas;

    artigo l366./l: o titular de um prdio pode arrancar ou cortarrazes, troncos ou ramos que provenham do prdio vizinho, se odono da rvore, sendo rogado judicial ou extrajudicialmente, o nofizer dentro de trs dias;

    STAUDINGER/REPGEN cit., 229, Nr. 6 (822).1336 SIAUDINGERJREPGEN cit., 229, Nr. 41(832).1337 VAZ SERRA, Causas justificativas do facto danoso cit., 69 ss., especialmente

    76-77; VAz SERRA hesita; comea por proclamar a inadmissibilidade da aco directa, masacaba por aderir soluo do Cdigo Civil suo; cf. ob. cit., 111-112, a proposta dearticulado.

    1338 JACINTO RODRIGUES BASTOS, Das relaes jurdicas 5 (1969), 15.1339 Idem, 20.

    artigo 1427.: as reparaes indispensveis e urgentes nas partescomuns do edifcio podem ser levadas a cabo, na falta ou impedimento do administrador, por iniciativa de qualquer condmino.

    De notar que os artigos 1277 . e l314. prevem a aco directa comomeio de defesa da posse e da propriedade, respectivamente. A legtimadefesa tambm poderia ter cabimento.

    Finalmente, encontramos no Direito do trabalho um caso especial deaco directa, dotado de um regime especfico muito diferenciado: a greve artigos 591.0 e seguintes do CT.

    180. Os pressupostos; o concurso; outras causas justificativas1. Os pressupostos da aco directa merecem a maior ateno340.

    Podemos sumari-los em:

    a necessidade de realizar ou de assegurar o prprio direito; o recurso prpria fora; a conteno nos meios usados.

    A necessidade de realizar ou de assegurar o prprio direito afere-sepor dois parmetros

    336./1:

    a urgncia, de modo a evitar a inutilizao prtica do direito emcausa;

    a impossibilidade de recorrer, em tempo til, aos meios coercivosnormais.

    A referncia ao prprio direito deve ser tomada em termos latos: aaco directa tem cabimento para defender quaisquer posies activas,desde que suficientemente precisas para permitirem as conexes subsequentes. Pode, por exemplo e em aco directa, algum forar a entradanum leilo aberto ao pblico, para licitar em tempo til: defende-se, assim,a autonomia privada. Mas j no ser lcito fazer revistar, sada, todos os

    I340 PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil cit., 1,442-443, ANTUNES VARELA, Das obrigaes em geral cii, 1, 10 cd.. 554, ALMEIDACOSTA, Direito das obrigaes, 9, ed. cit., 521 e Lus MENEzES LEITO, Direito dasobrigaes cit., 1, 4 ed., 292-294.

  • 450 A tutela privada 46. A aco directa 451

    frequentadores de um supermercado: se no houver indcios concretos deque algum praticou um furto e apenas em relao a ele.

    A posio jurdica a defender dever ser susceptvel de coero jurdica. Assim, no ser possvel recorrer aco directa relativamente aobrigaes naturais ou a situaes jurdicas que, pela sua configurao,no possam ainda ser exercitadas1341.

    Finalmente: a necessidade pode ser ditada por um facto humano ounatural. Porm, se o facto humano for uma agresso, j estaremos perantea legtima defesa; se houver um perigo, a hiptese ser de estado denecessidade.

    II. O recurso prpria fora representa o cerne da aco directa.Exige-se uma especfica vontade de auto-ajuda ou aco directa1342: aaco directa, para alm de uma concreta forma privada de exerccio dosdireitos, requer um mximo de racionalidade, por parte do agente.

    A aco directa pode dirigir-se contra coisas1343 ou contra pessoas3,O prprio Cdigo Civil exemplifica as possibilidades da sua concretizao

    336./2:

    A aco directa pode consistir na apropriao, destruio ou deteriorao de uma coisa, na eliminao da resistncia irregularmente opostaao exerccio do direito, ou noutro acto anlogo.

    III. Como requisito muito visvel temos, por fim, os limites da acodirecta. A actuao por ela pressuposta deve ser duplamente contida:

    no pode exceder o que for necessrio para evitar o prejuzo(336.I1 , infine);

    no deve sacrificar interesses superiores aos que o agente viserealizar ou assegurar (336./3).

    IV. Ao contrrio do que poderia emergir de explanaes correntes,na nossa doutrina, as figuras da legtima defesa, do estado de necessidade

    1341 STAUDINGER/OLAF WERNER cit., 229, Nr. 6 (799-800).1342 JOHANN BRAUN, Subjektive Rechtsfertigungselernente im Zivilrecht? cit., 943

    e LARENZIWOLF, Aligemeiner Teu, 9 cd. cit., 346.1343 STAUDINGERJREPGEN cit., 229, Nr. 24 ss. (828).1344 STAUDINGERJREPGEN cit., 229, Nr. 27 ss. (829); no Direito alemo est

    especialmente em causa a deteno do devedor, pelo perodo estritamente necessrio paraevitar a frustrao do crdito.

    e da aco directa no foram racionalmente recortadas num universo planode tutela privada. Antes se foram desprendendo, pela Histria, de um panode fundo de monoplio estadual dajustia. Nessas condies, as fronteirasnem sempre so claras, entre as diversas figuras.

    A aco directa permite eliminar uma resistncia irregularmenteoposta ao exerccio de um direito; mas se essa resistncia tomar a formade agresso, pessoal ou patrimonial, j poder haver legtima defesa; e sedela resultar um perigo, teremos um estado de necessidade. A hiptese deindefinio entre a aco directa e a legtima defesa to patente que oartigo 338. optou por tratar em conjunto a hiptese de erro sobre os pressupostos dos dois institutos.

    No louvamos o legislador civil, neste ponto1345.Mas at sobreviradequada reforma, teremos de lidar com o quadro vigente. Perante este,havendo concurso entre formas de autotutela, pode o agente prevalecer-seda que mais lhe convier. Estamos no campo do Direito privado, de talmodo que, aos particulares, caber eleger os meios que lhes aprouver.

    181. O regime; concretizaes; excesso e situaes putativas

    1. A aco directa lcita. Verificados os seus pressupostos, o agenteno tem qualquer dever de indemnizar os danos que dela decorram. Elessero imputveis ou ao resistente ou a quem haja ocasionado a situaoou, finalmente, ao risco prprio dos circunstantes.

    II. A aco directa bastante mais aplicada pelos nossos tribunaisdo que a legtima defesa puramente civil ou do que o estado de necessidade. Repare-se que ela no tem equivalente penal, podendo, todavia,reconduzir-se ao conceito amplo de exerccio de um direito, como causade excluso de ilicitude

    artigo 31.!2, b), do Cdigo Penal. Eis umapanormica da sua concretizao:

    REv 8-Jan.-] 985: a aco directa excluda quando consistir numa condutaespecialmente tipificada como criminosa1346;

    1345 Cf. as apreciaes crticas dos penalistas em FIGUEIRcDO DIAS, Direito penalcit., 1, 467, com indicaes.

    1346 REv 8-Jan.-1985 (ORLANDO SARAIVA LIMA), BMJ 345 (1985), 468; este pontoter de ser objecto de maior indagao: se a aco for civilmente lcita, os bens penalmentetutelados estaro, em regra, protegidos: faltar, ainda, o desvalor da aco e a prpriaculpa.

  • 452 .4 tutela privada 46. A aco directa 453

    RPt 21-Jan -1986: lcito ao proprietrio de uma vinha colocar nela sardinhas envenenadas, para eliminar os animais que a invadam, paracomer as uvas1347;

    STJ 20-Abr -1 988: num caso de dano por destruio de uma coisa, entendeu--se que a aco directa s seria admissvel na impossibilidade derecorrer aos meios coercivos normais1348;

    STJ ]8-Mai.-J 988: admite que a aco directa civil possa integrar a causajustificativa penal do exerccio de um direito artigo 31.12, b), doCdigo Penal ainda que no no concreto caso a em jogo349;

    RCb 29-Mar.-]989: o abate a tiro de pombos alheios em prdio rstico s aco directa se eles estiverem a causar danos nas culturas e houversido feita uma preveno dona dos animais1350;

    REv 20-Jan.-]998: no pode, em aco directa, o proprietrio de um terrenodestruir uma barraca de madeira l erguida; estariam abertas as viasjudiciais351;

    RPt 12-Jan.-] 999: a aco directa facultativa; se o agente no quiser ouno puder recorrer a ela, lanar mo dos meios judiciais352;

    RCb 27-Out.-1999: age em aco directa a pessoa que, dentro de umapropriedade privada, abate a tiro uma cabra que, aps vrias tentativasde expulso, j causara danos de valor equivalente ao do prprioanimal; fica excluda a ilicitude penal, por via do artigo 31 .Il e 2, b),do Cdigo Penal1353.

    III. O excesso de aco directa verificar-se- quando o agente ultrapassasse, na sua aco, o que for necessrio para evitar a inutilizao prtica da posio a tutelar ou, em qualquer caso, quando sacrifique interessessuperiores aos que visava realizar ou assegurar (336./l, infine e 336./3).O excesso ilcito, com as devidas consequncias354.De todo o modo,tambm aqui podemos admitir que, ocorrendo os factos em ambiente deespecial tenso, o excesso possa ser desculpvel havendo, contudo, queprovidenciar quanto aos danos.

    RPt 22-Jan.-l986 (TEIXEIRA DO CARMO). CI Xl (1986) 1, 197-200 (199-200). STJ 20-Abr.-1988 (JOS SARAIVA), BMJ 376 (1988), 366-370 (369).1349 STJ 18-Mai.-1988 (MANSO PRETO). BMJ 377 (1988), 275-279 (277).-- RCb 29-Mar.-1989 (ANDRADE SAR.AIvA). CJ XIX (1989) 2, 87-89 (88/lI). REv 20-Jan.-1998 (SousA MAGALHES), BMJ 473 (1998), 578-579 (o sumrio).1352 RPt 12-Jan.-1999 (EMRICO SOARES), BMJ 483 (1999), 275 (o sumrio).

    RCb 27-Out.-l999 (FERREIRA DINIS), BMJ 490 (1999), 326 = BMJ 491 (1999),351 (o sumrio).

    1354 STAUDINGER/REtGEN cit., 229. Nr. 37 (831).

    IV. Ao contrrio do Direito alemo, o artigo 338. prev expressa-mente a aco directa putativa: o agente age na suposio errnea de severificarem os pressupostos que justificam a aco directa. Sintomaticamente, f-lo em simultneo com a legtima defesa putativa: a fronteiraentre as duas figuras tnue, havendo mesmo reas de sobreposio. Almdisso, pode ocorrer que o agente suponha agir em legtima defesa, quandoo caso seja de aco directa: e inversamente.

    O erro possvel perante qualquer um dos pressupostos da acodirecta. Assim, pode o agente, erradamente, representar-se: um direito ouposio que afinal, no detenha; uma impossibilidade insubsistente derecorrer aos meios normais; um bice ou uma resistncia de facto inexistentes; uma via de actuao inadequada, com prejuzos dispensveis ouque ultrapassem o dano a evitar. Sendo o erro desculpvel, a aco directa eficaz.

    O juzo de desculpabilidade seguir, nos termos gerais (487.!2) abitola do bonus paterfainilias, colocado na concreta posio do agente.Quando tal juzo seja negativo, o agente no tem cobertura jurdica: deveindemnizar.

    Na hiptese inversa: digamos que cada um corre o risco de ver,contra si, formar-se uma aparncia de aco directa.

    182. Fundamento e natureza

    1. Aparentemente, a aco directa funda-se na defesa dos prpriosdireitos. A Ordem Jurdica, reconhecendo que nem sempre a sua actuao eficaz, faculta aos particulares, em certas circunstncias, uma hiptese deautotutela.

    Todavia, podemos ir mais longe. Os efeitos conseguidos com a acodirecta bem sucedida so, no fundo, os que obteria a Ordem Jurdica, sepudesse funcionar na sua plenitude. No seu conjunto, os direitos subjectivos so o ordenamento de cuja preservao se trate. Por isso, tal como alegtima defesa, tambm a aco directa tem um fundamento supra--individual, situado na defesa global do sistema.

    A aco directa ainda uma forma de prevenir a violao de regrasjurdicas, embora no de modo to bvio como a legtima defesa. A inutilizao prtica de um direito , seguramente, algo que o Direito no quer.

  • 454 A tutela privada

    certo que. entre os pressupostos da aco directa, no se conta umaactuao ilcita da pessoa contra a qual se ir, depois, desenrolar a actuaodo agente. Mas h sempre uma qualquer falha. Para a questo paralela daresponsabilidade pelo risco, procurmos introduzir a ideia de ilicitudeimperfeita355:ao prever imputaes sem culpa (portanto: sem ilicitude),o Direito pretende evitar que os danos em jogo se produzam1356.A ideia ,aqui, aproveitvel: a aco directa visa dissuadir resistncias irregulares aoexerccio dos direitos.

    II. Poderamos ser tentados a procurar o fundamento da acodirecta no prprio exerccio da posio jurdica cuja defesa esteja emcausa. Assim, no contedo do direito de propriedade, inscrever-se-ia afaculdade de recorrer aco directa, para sua defesa (1314. e 336.).No chega. O que se inscreve nos direitos subjectivos apenas um dospressupostos da aco directa: a titularidade. Os demais pressupostos soexternos e do corpo a uma permisso genrica de actuao.

    Situamos, a, a natureza deste instituto.

    1355 Cf. o noSso Da responsabilidade civil dos administradores das sociedadescomerciais cit., 484.

    1356 Por exemplo: a imputao dos danos derivados de acidente de trabalho (artigo290.I1, do CT, a contrario) entidade empregadora, mesmo sem culpa desta, visa, indirectamente. a tomada, dentro da empresa. de todas as medidas necessrias para prevenirtais acidentes.

    470 O CONSENTIMENTO DO LESADO

    183. Aspectos gerais; pressupostos

    1. Na sequncia das trs examinadas formas de tutela privada, oCdigo VAz SERRA veio, no artigo 340., prever a figura do consentimentodo lesado:

    1. O acto lesivo dos direitos de outrem lcito, desde que este tenhaconsentido na leso.

    Trata-se de uma clara regra de responsabilidade civil1357, como talconsiderada pelos diversos estudiosos358.A sua presena no artigo 340.explica-se pelos acasos, acima relatados, da feitura do Cdigo359.De todoo modo, podemos dar-lhe um alcance substancial, no presente captulodedicado tutela privada: pela ndole do Dieito civil, as pessoas so livresde abdicar da tutela que a lei lhes confere, em certos casos. Ser, pois, umamanifestao de liberdade subjacente tutela privada.

    II. Pressupostos do consentimento do lesado so: um direito disponvel; um acto de consentimento; um acto lesivo.

    A disponibilidade do direito um requisito basilar. O artigo 340./2exprime-o dizendo:

    O consentimento do lesado no exclui, porm, a ilicitude do acto.quando este for contrrio a uma proibio legal ou aos bons costumes.1357 Direito das obrigaes, 2, 359-360.1358 Por todos: PESSOA JORGE. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade

    civil cit., 269 ss. e o clssico de ERNST ZITELMANN, Ausschluss der Widerrechtlichkeit,AcP 99 (1906), 1-130 (47 ss.).

    Supra, 402-403.