tratado das aÇÕes -pontes de miranda.tomo 3

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TRATADO DAS AÇÕES -TOMO III - Ações constitutivas Tábua sistemática das matérias Parte 1 Ações constitutivas em geral Capítulo único Conceito e natureza da ação constitutiva § 1. Conceito de ação constitutiva . 1. Fixação conceptual e ciência do direito. 2. Pretensão e ação. 3. Existência da constitutividade predominante. 4. Produção da constitutividade § 2. Elementos eficaciais . 1. Elemento declarativo.2.Ação condenatória e ação constitutiva. 3. Eficácia ex nunc e eficácia ex tunc. 4. Interesse jurídico. 5. Ações cautelares § 3. Espécies e subespécies de ações constitutivas positivas . 1. Precisões. 2. Ação incidental de falsidade em processo penal. 3. Ação de vistoria de fazendas ou bagagens avariadas. 4. Ação de apreensão de embarcações. Parte II Ações constitutivas positivas Capítulo 1 Ações de filiação § 4. Conceito e precisões . 1. Ações tendentes a provar; ações de turbação. 2. Impugnação. 3. Investigação de maternidade e da paternidade. 4. Eficácia da sentença § 5. Efeitos do reconhecimento dos filhos . 1. Eficácia do reconhecimento forçado e do voluntário. 2. Parentesco Capítulo II Ações de suplemento de idade e ações de suprimento de consentimento § 6. Ações de suplemento de idade . 1. Conceito e natureza. 2. Venia aetatis e Emancipatio. 3. Outras ações de suplemento de idade § 7. Ações de suprimento de consentimento . 1. Conceito e natureza. 2. Ratificação e suprimento Capítulo III Ações para nomeação de tutores e de curadores § 8. Conceito e natureza . 1. Pretensão constitutiva. 2.Precisões § 9. Ações de remoção . 1. Eficácia sentencial. 2. Remoção e suspensão. 3. Escusa

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TRATADO DAS AÇÕES -PONTES DE MIRANDA.TOMO 3

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TRATADO DAS AÇÕES -TOMO III - Ações constitutivas

Tábua sistemática das matérias

Parte 1

Ações constitutivas em geral

Capítulo único Conceito e natureza da ação constitutiva § 1. Conceito de ação constitutiva. 1. Fixação conceptual e ciência do direito. 2. Pretensão e ação. 3. Existência da constitutividade predominante. 4. Produção da constitutividade § 2. Elementos eficaciais. 1. Elemento declarativo.2.Ação condenatória e ação constitutiva. 3. Eficácia ex nunc e eficácia ex tunc. 4. Interesse jurídico. 5. Ações cautelares § 3. Espécies e subespécies de ações constitutivas positivas. 1. Precisões. 2. Ação incidental de falsidade em processo penal. 3. Ação de vistoria de fazendas ou bagagens avariadas. 4. Ação de apreensão de embarcações.

Parte II

Ações constitutivas positivas

Capítulo 1 Ações de filiação § 4. Conceito e precisões. 1. Ações tendentes a provar; ações de turbação. 2. Impugnação. 3. Investigação de maternidade e da paternidade. 4. Eficácia da sentença § 5. Efeitos do reconhecimento dos filhos. 1. Eficácia do reconhecimento forçado e do voluntário. 2. Parentesco

Capítulo II Ações de suplemento de idade e ações de suprimento de consentimento § 6. Ações de suplemento de idade. 1. Conceito e natureza. 2. Venia aetatis e Emancipatio. 3. Outras ações de suplemento de idade § 7. Ações de suprimento de consentimento. 1. Conceito e natureza. 2. Ratificação e suprimento

Capítulo III Ações para nomeação de tutores e de curadores § 8. Conceito e natureza. 1. Pretensão constitutiva. 2.Precisões § 9. Ações de remoção. 1. Eficácia sentencial. 2. Remoção e suspensão. 3. Escusa

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Capítulo IV Ação de curadoria de ausentes § 10. Bens de ausentes. 1. Conceito de ausência. 2. Ações relativas á ausência e sua natureza § 11. Arrecadação dos bens de ausentes. 1. Desaparecimento de alguém. 2. Pressuposto da arrecadação

Capítulo V Ação para alienação, arrendamento ou oneração de bens dotais § 12. Precisões. 1. Bens dotais. 2. Responsabilidade pela alienação, arrendamento e pela gravação. 3. Bens dotais, venda, arrendamento e oneração. § 13. Procedimento. 1. Legitimação ativa. 2. Autorização judicial. 3. Natureza das ações

Capítulo VI Ação de habilitação para casamento § 14. Preliminares. 1. Habilitação, ato preparatório do casamento. 2. Natureza da ação. 3. Casamento religioso. § 15. Habilitação para o casamento civil. 1. Habilitação para o casamento civil. 2. Certidão de idade ou prova equivalente. 3. Declaração de estado, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos. 4. Assentimento das pessoas sob cuja dependência estiverem, ou ato judicial, que o supra.5. Declaração de duas testemunhas. 6. Prova da inexistência de casamento anterior. 7. Residência alhures.8.Prova de sanidade. 9. Justificações requeridas. 10.Ministério Público

Capitulo VII Ações para pagamento das dívidas da herança § 16. Espécies de ações. 1. Solução de dividas passivas. 2. Dívidas líquidas e dividas ilíquidas § 17. Separação de bens inventariados. 1. Separação de bens para solução de dívidas passivas. 2. Tempo em que se há de pedir a separação. 3. Natureza da decisão. 4. Habilitação e vias comuns. 5. Recurso da decisão que defere o pedido. 6. Diferentes despesas. 7. Petição de separação. 8. Audiência dos interessados. 9. Bens que se podem separar. 10. Bens separáveis e ordem deles. 11. Destino dos bens separados. 12. Erro de terminologia. 13. Adjudicação e dação em soluto. 14. Execução da sentença. 15. Honorários de advogado. 16. Forças da herança e dividas. 17. Falta de impugnação. 18. Termo de acordo e inventário negativo . § 18. Reserva de bens. 1. Reserva de bens, em que se distingue da separação. 2. Insuficiência da impugnação da divida documentada

Capitulo VIII Ação de justificação para prova em processo § 19. Conceito. 1. Pretensão a provar e pretensão a assegurar prova. 2. Natureza da justificação para prova em processo. 3. Morte e justificação. § 20. Procedimento. 1. Legitimação processual ativa e petição. 2. Fato ou relação jurídica. 3. Acessoriedade da ação. 4. Natureza da sentença que julga a justificação. 5.Elementos probatórios. 6. Testemunhas, inquirição, re-inquirição e contradita. 7. Sentença. 8. Irrecorribilidade. 9. Justificações no segundo grau de jurisdição. 10. Parte interessada

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Capítulo IX Ação de apresentação e cumprimenta de testamento § 21. Ação de apresentação do testamento. 1. Conceito da ação de apresentação. 2. Natureza § 22. Ação para cumprimento do testamento. 1. Natureza. 2. Série de atos do testamenteiro

Capítulo X Ações de nomeação de inventariante § 23. Nomeação de inventariante. 1. Definição de inventariante. 2. Pretensão à inventariança. 3. Cônjuges e inventariança. 4. Herdeiro na posse e administração da herança. 5. Herdeiro escolhido. 6. Testamenteiro. 7. In-ventariante previsto em lei e inventariante dativo. 8. Legitimação à inventariança, feita abstração do interesse. 9. Recurso. 10. impugnação da nomeação de inventariante. 11. Legitimação ativa para a impugnação. 12. Prazo para impugnar. 13. Compromisso do inventariante § 24. Destituição e remoção de inventariante. 1. Remoção de inventariante. 2. Causas de remoção. 3. Desaprovação e falta de prestação de contas

Capítulo XI Ação de sonegados § 25. Conceito e natureza da sonegação. 1. Conceito. 2. Regras jurídicas explícitas. 3. Cônjuge sobrevivo e sonegação. 4. Distribuição de bens em vida do decujo.5. Partilha em vida. 6. Herdeiros do sonegador. 7. Herdeiro e inventariante. 8. Dualidade de penas § 26. Procedimento judicial. 1. Ação de sonegação e requerimento de inclusão de bens. 2. Eficácia da sentença proferida na ação de sonegação. 3. Cônjuge meeiro ou com parte em algum bem comum. 4. Tributos e sonegação § 27. Restituição e prestação de valor. 1. Restituição in natura. 2. Indenização § 28. Tempo para a argúição. 1. Herdeiro e inventariante. 2. Momento inicial para a arguição

Capítulo XII Ações relativas às fundações § 29. Conceito de fundação. 1. Fundação. 2. Estrutura jurídica da fundação. 3. Fiscalização das fundações § 30. Estatutos das fundações. 1. Estatutos da fundação. 2. Apresentação dos estatutos pelo Ministério Público. 3. Elaboração judicial ou extrajudicial dos estatutos. 4. Apresentação e autuação do pedido. 5. Aprovação dos estatutos. 6. Legitimação ativa. 7. Missão do órgão do Ministério Público. 8. Natureza da decisão do juiz § 31. Fiscalização das fundações. 1. Fiscalização das fundações. 2. Bens das fundações § 32. Extinção das fundações. 1. Nocividade, ilicitude, expiração do prazo de existência. 2. Provocação.3. Juízo competente § 33. Natureza das ações. 1. Ações de organização de fundação. 2. Ações de fiscalização da fundação. 3. Ações de extinção da fundação. 4. Ações de reajustamento ou de modificação da organização

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Capítulo XIII Ação de protesto de título cambiário ou cambiariforme § 34. Conceito de protesto de títulos. 1. Protesto de títulos cambiários e cambiariformes. 2. Pressupostos do protesto § 35. Protesto. 1. Intimação do protesto. 2. Intimação por edital. 3. Dúvidas do oficial. 4. Decisão favorável e decisão desfavorável, recurso

Capitulo XIV

Ações integrativas dos testamentos § 36. Conceito e surgimento. 1. Conceito. 2. Dados históricos § 37. Natureza da ação. 1. Precisões. 2. Questões eventuais

Capitulo XV Ações arrecadativas § 38. Arrecadação. 1. Conceitos. 2. Precisões § 39. Ação de achada de coisa perdida. 1. Perda de bens móveis. 2. Coisas esquecidas e coisas perdidas. 3. Dados históricos. 4. Perda de coisa, no sentido estrito. 5. Achada e elementos do suporte fático. 6. Pluralidade de donos e achadores. 7. Achador, o que é . § 40. Entrega do achado à autoridade pública e procedimento edital. 1. Entrega à autoridade pública. 2. Edital. 3. Achado em estabelecimentos públicos ou em transportes coletivos. 4. Relações jurídicas entre achador e dono da coisa. 5. Responsabilidade do achador. 6. Direitos do achador § 41. Entrega da coisa. 1. Dever de entrega. 2.Ladrão e entrega. 3. Quem faz entrega ao perdente da coisa § 42. Recompensa ao achador. 1. Conceito e história do achádigo. 2. Derrelicção da coisa achada § 43. Aquisição pelo Estado ou pelo achador. 1.Destino da coisa achada. 2. Explicações § 44. Decisões do juiz. 1. Decisões quanto à venda e quanto ao preço da coisa. 2. Decisões quanto à entrega ao dono ou possuidor legítimo. 3. Carga de eficácia da sentença de entrega. 4. Decisão de adjudicação § 45. Comparação entre as espécies. 1. Traços comuns. 2. Traços diferenciais § 46. Ações relativas à herança vacante. 1. Ação de arrecadação da herança vacante. 2. Ação constitutiva da curadoria. 3. Ação de devolução à Fazenda Pública

Capítulo XVI Ações para construção e conservação de paredes divisórias § 47. Vizinhança e construção. 1. Pretensão a usar parede divisória. 2. Pretensão a ir até meia espessura do terreno contíguo. 3. Pretensão a adquirir a meada no tapume do vizinho. 4. Presunção de ser comum o tapume e deveres dos vizinhos

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§ 48. Fundamentos das ações. 1. Pressupostos objetivos. 2. Contestação das afirmações do autor e natureza da ação. 3. Natureza da sentença. 4. Transito em julgado. 5. Resistência da parede

Capítulo XVII Ação de venda, locação e administração da coisa comum § 49. Precisões conceptuais. 1. Ações quanto a coisa comum. 2. Natureza das ações de comuneiro § 50. Procedimento judicial. 1. Administração, venda ou aluguel da coisa comum. 2. Indivisibilidade e inade-quabilidade ao destino. 3. Citação e prazo legal comum.4. Procedimento especial. 5. Venda da coisa comum. 6. Maioria absoluta, valor dos quinhões. 7. Natureza da sentença. 8. Manifestação de vontade dos comuneiros § 51. Administração do bem comum. 1. Votações. 2. Escolha do administrador. 3. Ação de imissão na posse. 4. Natureza da sentença. 5. Dúvida quanto ao valor dos quinhões ou de algum deles. 6. Procedimento que se há de seguir. 7. Comuneiros e estranhos,preferência

Capítulo XVIII Ação de registro Torrens § 52. Dados históricos e objeto. 1. Histórico. 2. Objeto do instituto § 53. Procedimento. 1. Petição. 2. Contestação.3.Eficácia das sentenças

Capítulo XIX Ação de especialização da hipoteca legal § 54. Conceito e pressupostos. 1. Hipotecas legais e especialização. 2. Ações exercidas pelos titulares da pretensão § 55. Procedimento. 1. Legitimação processual ativa. 2. Documento em que se funda a especialização. 3. Ar-bitramento. 4. Valor preestabelecido da responsabilidade. 5. Atos de constrição judicial. 6. Regra jurídica de cõmputo. 7. Falta de arbitramento e nulidade processual. 8. Citação da outra parte. 9. Audiência dos interessados. 10. Alegações do impugnante. 11. Individuação do imóvel. 12. Sentença. 13. Natureza da ação e da sentença. 14. Margem ao procedimento inquisitivo. 15. instrumento da especialização. 16. Especialização negocial. 17. Eficácia contra terceiros

Capítulo XX Ação de eleição, ou de nomeação, e ação de destituição ou dispensa de cabecel de bens enfitêuticos § 56. Conceitos e precisões. 1. Enfiteuse e seu papel histórico. 2. Cabecel. 3. Situação jurídica antes de ser feita a escolha. 4. Eleição do cabecel e século XX § 57. Procedimento judicial. 1. Comunhão enfitêutica.2.Contumácia dos foreiros. 3. Não-aceitação da pessoa proposta e nova proposta. 4. Custas. Natureza da sentença. 5. Custas. Não-eleição e eleição. 6. Pedido de nova eleição. 7. Inventariante cabecel. 8. Nomeação do cabecel pelo senhorio. 9. Forma da nomeação do cabecel pelo senhorio. 10. Destituição do cabecel

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Capítulo XXI Ação de renovação de contrato de locação § 58. Suporte fático e conceito. 1. Pretensão à renovação, inconfundível com a pretensão à prorrogação do contrato de locação. 2. Pressupostos do tempo de exploração. 3. Legitimação ativa. 4. Preclusão do prazo § 59. Procedimento judicial. 1. Pressupostos do tempo. 2. Espécies em que o demandado não contesta. 3. Diferença assaz relevante. 4. Natureza da sentença

Capítulo XXII Ação de remição de direito real de garantia § 60. Remição dos direitos reais de garantia. 1. Conceito de remição. 2. Legitimados à remição § 61. Ação de remição do imóvel hipotecado. 1. Conceito de remição. 2 Remição do imóvel hipotecado. 3. Natureza das ações de remição do imóvel § 62. Legitimação ativa l. Desmandantes. 2. Pretensão a remir. 3. Pretensão a sub-rogar-se § 63. Procedimento na ação de remição ou de sub-rogação. 1. Petição. 2. Atitudes que o adquirente do imóvel pode assumir. 3. Se há mais de um adquirente. 4. Credor que não se opõe e credor que não comparece. 5. Revelia e consignação da quantia proposta. 6. Devedor e remição do imóvel. 7. Impugnação do preço pelo credor. 8. Licitação. 9. Valor proposto pelo adquirente. . § 64. Sub-rogação pessoal legal. 1. Sub-rogação legal. 2. Eficácia de iure. 3. Quando é desnecessária a ação. 4. Adquirente e relação jurídica entre o alienante e o credor com direito hipotecário. 5. ius offerendi et succedendi. 6. Legitimação ativa. 7. Sub-rogação hipotecária.8. Pedido de remição. 9. Citação e contestação. 10. Devedor, não-comparência ou não-remição da hipoteca. 11. Desinteressamento do credor. 12. Litisconsórcio passivo; silêncio. 13. Ius solvendi et liberandi. 14. Remição pelo devedor e depósito. 15. Hipoteca do primeiro credor; remição. 16. Citação do devedor. 17. Cônjuge, descendentes ou ascendentes. 18. Ação e pré-exclusão das praças § 65. Remição de hipoteca legal. 1. Precisões. 2. Remição e sub-rogação da hipoteca legal. 3. Sub-rogação real com remição conseqúente § 66. Falência ou insolvência e remição. 1. Processo comum da arrematação e remição. 2. Falência e remição. 3. Insolvência e remição § 67. Arrematação e remição. 1. Situação do titular do direito de hipoteca, em caso de ter de ser posto em hasta pública o bem hipotecado. 2. Intimação e falta de intimação. 3. Concurso de credores. 4. Registro posterior à penhora. 5. Remição e dispensa da avaliação. 6. Cônjuge, descendentes e ascendentes

Capítulo XXIII Ações de protesto, notificação e interpelação § 68. Generalidades. 1. Medidas cautelares conservativas. 2. Diferentes conceitos (citação, notificação, intimação, protesto e interpelação). 3. Pressupostos de direito material § 69. Conceitos 1. Protesto. 2. Notificação. 3. Interpelação § 70. Protesto. 1. Manifestações de vontade pelo protesto. 2. Comunicação de vontade. 3. Fórmula geral. 4. Integração de forma. 5. Razões para indeferimento do pedido. 6. Cognição limitada e ato de cooperação judicial. 7. Impedimento psicológico. 8. Diferentes decisões, recursos respectivos. 9. Inadmissibilidade de contraprotesto. 10. Impulso implicito no protesto, comparação com a notificação e a interpelação. 11. Exaustão da função

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julgadora § 71. Notificações e interpelações judiciais. 1. Processo das notificações. 2. Processo das interpelações

Capítulo XXIV Ações de preempção ou preferência e ações de opção § 72. Conceitos. 1. Direitos de preferência nascimento. 2. Direitos de preferência e direitos de opção. 3. Pactos de preferência. 4. Direito de preferência § 73. Construção negocia! do condomínio e preferência. 1. Vontade dos sujeitos. 2. Direito de preferência de origem negocial. 3. Interpretação do negócio jurídico. 4. Direito de preferência de fonte legal. 5. Indivisibilidade natural e jurídica. 6. Comuneiro com direito de preferência. 7. Comuneiro ciente e comuneiro não-ciente. 8. Aluguel. 9. Direito de preferência e direito de opção § 74. Ação e direito de preferência. 1. Ação do dono do bem em caso de cláusula de preempção ou preferência. 2. Espécies e ações § 75. Processo das ações. 1. Notificação sine clausula. 2. Ações proponíveis. 3. Direitos formativos. 4. Petição. 5. Titular do direito formativo. 6. Efetivação da venda

Capítulo XXV Ações de autorização de venda, de aluguel e de gravação. § 76. Conceito e natureza. 1. Precisões quanto à sub-rogação e autorização de venda, de locação e de gravação. 2. Converter e sub-rogar § 77. Espécies. 1. Exame das espécies. 2. Eficácia sentencíal

Capítulo XXVI Ação de alienação judicial § 78. Precisão do conceito de alienações judiciais.1. Alienações judiciais por lei ou necessidade objetiva. 2. Ação de nulidade ou anulação de testamento e alienação judicial § 79. Procedimento. 1. Constrição judicial para alienação. 2. Alienação judicial, noutras espécies que as previstas. 3. Decisão de ofício quanto à alienação judicial. 4. Avaliação como pressuposto necessário. 5. Lanço igual ou superior ao valor estimativo. 6. Interessados e alienação sem ser em hasta pública. 7. Alvará. 8. Sub-rogação real. 9. Espécies apontadas. 10. Comunhão hereditária. 11. Condomínio. 12. Bens pertencentes a incapazes. 13. Adjudicação. 14. Eficácia da sentença favorável

Capítulo XXVII Ação de venda, locação e administração de título ao portador § 80. Conceitos e pressupostos. 1. Títulos ao portador.2. Ação de recuperação do titulo ao podador. 3. Conhe-cimentos de transporte por terra, água e ar

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L § 81. Ação de amortização. 1. Titulo ao portador de direito comum. 2. Direito cambiário e cambiariforme. 3. Amortização, em caso de perda e destruição. 4. Pessoas injustamente desapossadas. 5. Pretensão a não serem pagos a outrem capital e interesse. 6. Petição inicial. 7. Individuação do título. 8. Tempo e lugar da aquisição e recebimento dos últimos interesses. 9. Intimação quanto aos interesses. 10. Negociação dos títulos. 11. Réu ou réus § 82. Procedimento. 1. Justificação inicial do pedido.2. Tenedor desconhecido ou incerto, lugar ignorado ou inacessível. 3. Citação do tenedor. 4. Terceiro que compareceu. 5. Terceiro que se apresenta sem título e terceiro que se apresenta com título. 6. Rito ordinário. 7. Contestação ou contestações. 8. Tenedor com titulo e tenedor sem titulo. 9. Pluralidade de objeto. 10. Leilão público ou bolsa. 11. Heterotopia da regra de direito material? 12. Depósito da quantia apurada. 13. Início da demanda. 14. Morte do título. 15. Eficácia constitutiva negativa e positiva da sentença. 16. Não- cumprimento do mandado pelo subscritor ou emissor.17. Natureza da sentença na ação de amortização. 18. Título da dívida pública ao portador

Capítulo XXVIII Ação para nova cártufa por direito do portador § 83. Novas cártulas aos portadores. 1. Duplicatas ou exemplares a mais. 2. Sistema juridico brasileiro. 3. Técnica legislativa § 84. Pressupostos para exsurgimento da ação. 1.Pressupostos para a substituição. 2. Substituição.3. Bilhetes de loteria. 4. Cheques postais

Capítulo XXIX Ação de nova cártula por destruição de título § 85. Destruição completa dos títulos ao portador.1.Posição do problema. 2. Destruição completa e inexistência. § 86. Pretensão, ação e exercício da ação. 1. O problema e as atitudes da doutrina. 2. Exercício da pretensão a haver outra cártula. 3. Apólices da dívida pública. 4. Cheques postais. 5. Títulos ao portador sem dizeres. 6. Terceiro e oposição a pagamento

Capitulo XXX Ações de tomada de dinheiro a risco e de venda de mercadorias de bordo § 87. Conceito. 1. Dinheiro a risco. 2. Pretensão do capitão. 3. Prova das soldadas pagas. 4. Prova da falta de fundos. 5. Prova do pressuposto de estar ausente o proprietário, presentante, representante, ou consignatário § 88. Justificação dos pressupostos e decisão. 1. Competência judicial. 2. Eficácia da decisão. 3. Natureza da sentença

Capítulo XXXI Ação de abertura de concurso de credores, inclusive falencial § 89. Conceito. 1. Direito concursal. 2. Natureza do concurso de credores civil. 3. Insolvência civil § 90. Figura do liquidante. 1. Concurso de credores civil. 2. Sindico da falência § 91. Eficácia da sentença que admite o concurso de credores. 1. Eficácia da decisão decretativa do concurso de credores em relação às ações antes propostas. 2. Teorias a respeito da natureza e da eficácia da abertura do concurso de credores

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§ 92. Eficácia de atos do devedor e patrimônio. 1. Patrimônio e ineficácia relativa. 2. Concurso de credores civil § 93. Concurso de credores e poder de disposição.1. Execução forçada subjetivamente singular e execução forçada coletiva. 2. Poder de disposição processual-mente limitado. 3. Teoria subjetiva da perda do poder de dispor. 4. Teoria objetiva da perda do poder de dispor. 5. Posição processual do síndico no concurso de credores falencial. 6. Posição processual do liquidante nas liquidações coativas. 7. Eventual figura do liquidante no concurso de credores civil § 94. Caracterização do estado de falência e decretação da falência. Concurso de credores especial. 2. Comerciantes. 3. Falência e execução força da coletiva. 4. Procedimentos falenciais § 95. Decretação de abertura de falência. 1. Natureza da ação e da sentença de decretação de abertura da falência. 2. Vantagem da precisão § 96. Pressupostos do pedido de decretação de abertura de falência. 1. Legitimação ativa. 2. Credores com direito real de garantia § 97. Legitimação passiva. 1. Legitimação passiva, na decretação de abertura de falência. 2. Comerciante. 3. Herança e falência. 4. Menores relativamente incapazes. 5. Mulher casada. 6. interditos. 7. Nascituro. 8. Atividade comercial dos proibidos de comerciar. 9. Sociedades por ações. 10. Sócios solidária e ilimitadamente responsáveis. 11. Diretores de sociedades por ações e gerentes de sociedades por quotas, de responsabilidade limitada § 98. Competência. 1. Princípio geral. 2. Liquidação coativa e administração controlada. 3. Pessoas com domicilio incerto. 4. Prevenção de jurisdição. 5. Falência de empresa com sede do principal estabelecimento no estrangeiro. 6. Considerações finais § 99. Sentença de decretação de abertura da falência. 1.Natureza das sentenças que decretam abertura de con-curso de credores. 2. Requisitos da sentença de decretação de falência. 3. Eficácia sentencial. 4. Pluralidade de expedientes divulgativos. 5. Função e responsabilidade do escrivão. 6. Proteção recursal do devedor § 100. Eficácia em geral da sentença de decretação de abertura da falência. 1. Principios fundamentais. 2.Critica e classificação da sentença. 3. Carga de eficácia § 101. Capacidade processual do falido. 1. Conceito. 2.Incapazes processualmente. 3. Falido § 102. Encerramento da falência. 1. Terminação da liquidação e julgamento das contas do síndico. 2. Suspensão e encerramento do processo da falência. 3.Encerramento por sentença. 4. Prazo para o encerramento

Capítulo XXXII Ações de concordata § 103. Conceito e origem das concordatas. 1. Direito antigo. 2. Pacto de solver com menos. 3. Origem do instituto da concordata. 4. Ordenações afonsinas. 5. Suspensividade e preventividade. 6. Análise de decisões.7. Eficácia da concordata § 104. Política legislativa e concordata. 1. Dados do problema. 2. Soluções. 3. Evitamento, intervalo ou encerramento § 105. Concordatas concursais e falenciais. 1. Direito comercial e direito não-comercial. 2. Eficácia vinculativa. 3. Liquidações administrativas e concordatas. 4. Crises e concordatas § 106. Natureza da concordata. 1. Dados do problema. 2. Distinções com função de direito processual e de direito

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material. 3. Promessa do devedor. 4. Concepção do direito falencial brasileiro. 5. Críticas das teorias e das soluções legislativas. 6. Direito brasileiro e precisão conceptual. 7. Natureza da sentença de deferimento § 107. Pretensão à concordata. 1. Transformações da dilatação do tempo quanto às dívidas. 2. Concordata pre-ventiva. 3. Concordata suspensiva. 4. Concordata diminutiva, concordata dilatória e concordata mista § 108. Tempo e pretensão. 1. Preclusão do prazo para pedido de concordata. 2. Processo da concordata. . § 109. Exercícto da pretensão à concordata. 1.lnício do exercício da pretensão à concordata. 2.Competência judicial. 3. Petição na ação de concordata. . § 110. Tempo para se pedir a decretação da concordata. 1. Concordata preventiva. 2. Concordata suspensiva temporânea. 3. Concordata suspensiva extemporânea § 111. Despacho inicial. 1. Eficácia do despacho inicial. 2. Concordata preventiva. 3. Concordata suspensiva. 4. Declaração de conhecimento do estado de insolvabilidade § 112. Sentença concernente à concordata. 1. Posição do problema. 2. Eficácia das decisões nas concordatas § 113. Conceito e natureza de concordata preventiva. 1. Preventividade e pressupostos da concordata preventiva. 2. Mundo jurídico e concordata preventiva § 114. Natureza da concordata preventiva. 1. Mudança de natureza. 2. Direito brasileiro. 3. Referência histórica. 4. Direito brasileiro de hoje. 5. Credores sujeitos à exigência da declaração de crédito § 115. Natureza da sentença que decreta a concordata preventiva. Força sentencial. 2. Concordatas ex-trafalenciais § 116. Exercício da pretensão á concordata preventiva. 1. Titular da pretensão à concordata. 2. Eficácia da sentença que decreta concordata preventiva. 3. Processo da concordata preventiva. 4. Execução voluntária e procedimento constitutivo. 5. Estrutura do procedimento da concordata preventiva. 6. Autor da ação de concordata preventiva. 7. Poder do juiz § 117. Eficácia da concordata preventiva. 1. Efeitos pré-concordaticios. 2. Pedido de concordata preventiva e pedido de decretação de falência. 3. Sociedade concordatária e sócios solidários ou não. 4. Vencimento de todos os créditos concordatícios. 5. Ações contra o devedor. 6. Credores com direito real de garantia e credores privilegiados. 7. Prescrição e preclusão. 8. Consequências do início da ação com despacho de non plena cognitio. 9. Velamento. 10. Eficácia do cumprimento da concordata preventiva. 11. Pagamento dos credores concordatícios. 12. Credores e cumprimento da concordata preventiva. 13. Garantias de cumprimento da concordata. § 118. Decisões sobre os créditos e sua eficácia.1. Natureza das decisões. 2. Carga de eficácia § 119. Conceito e natureza da concordata suspensiva.1. Conceito. 2. Natureza da concordata suspensiva. 3. Dilatoriedade e extintividade parcial (diminutividade). 4.Preventividade e suspensividade § 120. Pretensão á concordata suspensiva. 1. Titular da pretensão à concordata suspensiva. 2. Precisões. 3. Execução voluntária, e não execução forçada. 4. Autor da ação de concordata suspensiva § 121. Pedido de decretação da concordata suspensiva. 1. Petição. 2. Garantias fidejussórias e garantias reais. 3. Despacho de processamento. 4. Embargos à concordata suspensiva § 122. Decretação da concordata. 1. Juízo falencial e concordata suspensiva. 2. Poder do juiz § 123. Eficácia da concordata suspensiva. 1. Efeitos prê-concordaticios. 2. Continuação do procedimento falencial, apenas suspenso § 124. Entrega dos bens. 1. Eficácia sentencial. 2. Falência de sociedade e concordata. 3. Limitação ao poder de dispor § 125. Tempo pós-sentencial. 1. Sentença de decretação de concordata suspensiva. 2. Credores com garantia real e credores com privilégio especial. 3. Credores da massa e credores com privilégio geral. 4. Credores retardatários.

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5. Desistência § 126. Sentença de cumprimento da concordata suspensiva. 1. Natureza da sentença que julga cumprida a concordata suspensiva. 2. Comparação com a sentença que julga cumprida a concordata preventiva. 3. Possível cumprimento fora do prazo § 127. Resoluçáo da concordata suspensiva. 1. Conceitos. 2. Resolução pedida e resolução ipso iure

Capítulo XXXIII Ação de sub-rogação de bens § 128. Conceito, natureza e eficácia. 1. Conceito e natureza. 2. Eficácia § 129. Construções de lege ferenda. 1. Exames das construções. 2. Dados históricos

Capítulo XXXIV Homologação de sentença estrangeira § 130. Considerações preliminares. 1. Sentença estrangeira e homologação. 2. Ação de homologação de sentença estrangeira. 3. Homologação de sentença estrangeira e rescisão de sentença § 131. Imprescindibilidade da homologação. 1. Eficácia de sentenças estrangeiras. 2. Qualificação das decisões estrangeiras. 3. Dados históricos. 4. Audiência das partes. 5. Procurador Geral da República § 132. Julgado estrangeiro, em caso de falência.1. Falência de comerciante brasileiro, domiciliado no Brasil. 2. Alcance da regra jurídica. 3. Direito concursal internacional. 4. Dispensa de homologação. 5. Concordatas § 133. Pressupostos da homologação. 1. Regras de direito interestatal. 2. Direito das gentes. 3. Regras juridicas processuais. 4. Forma da sentença estrangeira. 5. Competência do juiz estrangeiro. 6. Citação e revelia. 7. Coisa julgada formal. 8. Autenticação da sentença. 9. Tradução. 10. Sentenças. 11. Registro da sentença no registro de titulos e documentos. 12. Apreciação judicial de oficio quanto aos pressupostos § 134. Pré-exclusão da homologação. 1. Produção internacional de eficácia. 2. Regras jurídicas de ordem pública e ofensa aos bons costumes. 3. Precisões sobre o conceito de ordem pública. 4. Ordem pública e justiça interestatal. 5. Bons costumes. 6. Soberania nacional. 7. Fraude à lei e simulação. 8. Erros de conceituação § 135. Procedimento na ação homologatória. 1. Processo de homologação de sentença estrangeira. 2. Pedido de homologação e prazo para apresentação de resposta impugnativa. 3. Prazo para impugnação e prazo para contestá-la. 4. Procurador Geral da República. 5. Carta de sentença homologatória. 6. Requisição de homologação, por via diplomática.7. Não-comparência e incapacidade. 8. Sentença desfavorável e sentença favorável. 9. Processo de cumprimento. 10. Interpretação da sentença estrangeira. 11. Natureza das sentenças homologadas. 12. Sentença de homologação

Capitulo XXXV Cartas rogatórias § 136. Conceitos e dados históricos. 1. Conceito de cada rogatória. 2. Natureza da rogação. 3. Dados históricos. 4. Pressupostos de fundo e de forma § 137. Procedimento da rogação. 1. Competência e distribuição supra-estatal. 2. Pressupostos formais das cartas rogatórias. 3. Eficácia do exequatur. 4. Itinerário das cartas rogatórias

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Capítulo XXXVI Ação de restauração de autos § 138. Conceito. 1. Autos e restaurabilidade. 2. Autos extraviados ou destruidos. 3. Ação de restauração de autos. 4. Autos suplementares. 5. Aparição dos autos antigos § 139. Procedimento. 1. Petição inicial. 2. Elementos documentais. 3. Status causae. 4. Citação. 5. Negação pelo réu. 6. Contestação parcial, efeito da negação. 7. Reprodução de provas. 8. Depoimentos dos que serviram no processo. 9. Cópia da sentença. 10. Espécies em que tinha havido recurso § 140. Restauração de autos, no segundo grau de jurisdição. 1. Competência judicial se os autos se achavam no segundo grau de jurisdição. 2. Funções distintas dos juizes. 3. Nulidade não-cominada. 4. Responsabilidade pelo extravio ou destruição. 5. Natureza da sentença e recurso. 6. Prosseguimento do processo.7. Aparição dos autos originais. 8. Desaparição dos autos do recurso. 9. Livros de tabeliães, oficiais de registro, escrivães e outros 672

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Parte I

Ações constitutivas em geral

Capítulo Único

Conceito e natureza da ação constitutiva § 1. Conceito de ação constitutiva 1.Fixação conceptual e ciência do direito. A ação constitutiva é a que tem por fito geral modificar ou extinguir alguma relação jurídica. Quando se constitui não se faz estar dentro (não se institui), nem se substitui, nem se restitui, nem se destitui: ou se constitui positivamente, isto é, com (cum) o que se decide se põe plus, que diferencia o momento posterior; ou se constitui negativamente, isto é, se retira, com o ato, o que lá estava; ou se altera o que lá está, como se tem de alterar. A ação constitutiva ou constitui estrito senso, ou modifica; donde as três espécies: a)a ação constitutiva positiva; b) a ação constitutiva modificativa; e) a ação constitutiva negativa. Há atos jurídicos formativos geradores, modificativos e extintivos. Mas as ações, essas, não formam, nem geram; a sua constitutividade é que é positiva, negativa ou modificativa. Não se há de dizer que as ações constitutivas tendam à declaratividade. O elemento declarativo aparece como eficácia imediata (4), ou como eficácia mediata (3), ou mesmo sem tal relevância (2 ou 1), como se passa com ações de anulação (diferente do que se dá nas ações de nulidade), na ação revocatôria falencial, na ação de sub-rogação de bens inalienáveis, na ação de investidura de inventariante, na ação de sonegados, na ação de alienação ou gravação de bens dotais, nas ações de separação judicial, na ação de arrematação. O que mais acontece é a eficácia declarativa imediata ou a mediata. A ação constitutiva por vezes se liga a exercício de direitos formativos, porém não sempre (sem razão, Giuseppe Chiovenda, Principi di Diritto Processuale Civile, 180 s; Alessandro Raseili, Alcune Note in torno ai Concetti di Giurisdizione e d’Ammirn istrazione, 31). Não há direito formativo, dito potestativo, nas ações de nulidade, na de interdição e em muitas outras, posto que o haja para a ação do titular do direito de preferência, para a ação de obtenção de novo titulo, em caso de desapossamento ou de destruição, para a ação do pré-contraente vendedor ou do pré-contraente comprador para a assinatura da escritura definitiva e tantas outras. Houve tempo em que se negava a existência das ações constitutivas, apesar de a classificação tripartida (ações condenatórias, declarativas e constitutivas) ter vindo de Adolf Wach (Hondbuch des deutschen Ziuilprozessrechts, 1,11 sj, em 1885, e terem tido esclarecimentos nos livros de Paul Langheineken (Der Urteilsanspruch, 90 s. e 220 sj, em 1899, que foi a obra principal sobre a ação, e de Richard Schmidt (Lehrbucl-i des deu tschen Zivilprozessrechts, 2ª ed., 526 s.), em 1906. Quando alguns juristas põem a ação constitutiva entre os direitos formativos, ditos potestativos, estão a mesclar direitos e açoes, e não atendem a que os direitos formativos, quando deles resulta a ação constitutiva, podem não levar a ações constitutivas, e a que a distinção entre direitos, pretensões e ações não permite que se metam as ações na classe dos direitos. Deve-se a Konrad Hellwig (Wesen und subjektive Begrenzung der Rechtskraft, 1 s.) muito do que fez para mostrar a especificidade da ação constitutiva e da sentença constitutiva. Na Itália, cedo cogitou da ação constitutiva Giuseppe Chiovenda (Azioni na’ sistema dei dirittt, 116 s.), em 1903, porém o conceito era imperfeito. A opinião generalizada entre juristas estrangeiros, notadamente italianos, de ser executiva a sentença constitutiva, é de repelir-se. Quem só constitui não executa; quem só executa não constitui. Tais proposições supõem que se esteja a falar de eficácia preponderante, que é o que aqui nos interessa, de força sentendal.

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2.Pretensão e ação. Para Celso, nihil aliud est actio quam ius quod sibi debeatur iudicio persequendi. Com isso se abstraia da diferença entre a pretensão e a ação, entre a acho que pode existir a despeito de não ter havido violação do direito e a acho que supõe poder-se agir. Porém a confusão, com a palavra ação, foi mais longe, porque se falava de actio, em vez de pretensão, de actio (nata), isto é, de ação quando já se pode alegar falta ou ofensa, permanecendo-se no campo do direito material, embora se alegue em juízo, e “ação”, no sentido puramente pro-cessual, de Klagrecht, de remédio jurídico processual. Quando, hoje, procuramos classificar as ações, no sentido inconfundível com o de pretensão e o de remédio jurídico processual, vemos que há estrada entre o direito e o remédio jurídico processual, passando pela pretensão e pela ação. Tudo se ilumina quando percebemos que, no que concerne à classe dos direitos (pessoais e reais), as ações se classificam com os direitos (ações pessoais, ações reais); mas, no que toca à finalidade, através do remédio jurídico processual, a eficácia é a da sentença favorável que se espera. Assim, em vez de se ater a considerar a acho romana, prius em relação ao direito (o que não ocorria) ou apagar-se o que há de esperança na afirmação de ser titular de ação, a ciência jurídica dos nossos dias precisou os conceitos de direito, pretensão, ação e “ação” (no sentido processual, e. g., ação ordinária). De passagem, digamos que o fato de o Pretor poder não ter lançado o Edicto, antes de qualquer julgamento, ou de julgar sem haver regra juridica sobre a espécie, é sem relevância para as discussões romanisticas: havia, numa e noutra ocasião, as duas funções, a legislativa (reveladora do direito) e a judiciária. Com a noção de pretensão à tutela jurídica, que se exerce contra o Estado, que é o sujeito passivo, clareou-se o que, com os conceitos de direito, pretensão, ação e remédio jurídico processual, não se conseguia explicar. As discussões entre Berhard Windscheid e Theodor Muther, com a contribuição de tantos juristas, entre os quais, depois, Adolf Wach, levaram ao estado atual da ciência do direito. Gastou-se um século, para que se estendessem a outros países as conclusões definitivas. A ação não supõe, sempre, violação. Age-se sem que tenha havido ofensa a direito. Supõe-se que se tenha de agir. A fortiori, a pretensão, pois há pretensões que se exercem quando se quer, ou se quer. Quem tem direito de opção tem a pretensão respectiva e a ação. Muito têm preocupado os juristas as relações entre a sentença constitutiva e a coisa julgada material, e vemos a alguns, como A. Schónke, Horst Schrõder e Werner Niese (Lehrbuch der Zivilprozessrechts, 8ª ed., 352, 442 s. e 452), degradarem os efeitos constitutivos, as Gestaltungswirkungen a simples extensão de coisa julgada material, que aí seria erga omnes. Folga-se de ver que Friedrich Lent (Zivilprozessrecht, 6ª ed., 176) atacou a confusão, pois são distintas a eficácia declarativa e a constitutiva, que se pode dar ainda onde não há declaratividade, que baste à coisa julgada material e, até, onde não há coisa julgada formal. Conforme através de tantos anos temos dito, o momento b, na constitutividade, é diferente do momento a: dai constituir-se, em vez de declarar-se. Algumas vezes, a eficácia constitutiva, positiva, negativa, ou modificativa, pode ocorrer com a simples declaração de vontade. Outras vezes, é preciso que se exerça a ação constitutiva com prazo preclusivo, ou sem prazo preclusivo, conforme a lei que reja a espécie. Pense-se nas ações de anulação de casamento, que têm prazo. Deve-se evitar qualquer classificação das ações constitutivas como insertas na classe das ações declarativas, no que ainda incorreram Marco Tuílio Zanzucchi (Diritto Processuale CiuiIe, 1, 4ª ed., 133) e outros. A ação declarativa concerne à existência ou inexistência de relação jurídica; portanto, a qualquer efeito vinculativo, ou extintivo, ou modificativo. Ou se declara direito (ou dever), ou pretensão (ou obrigação), ou ação, ou exceção, ou algum ônus. Não se cogita de declarar a existência ou inexistência de algum negócio jurídico, ou de algum ato jurídico stricto sensu, ou de algum ato-fato jurídico, ou de algum fato jurídico stricto sensu. No que tange, por exemplo, com a usucapião, o que se declara é o direito que nasceu com a posse durante o tempo suficiente para se usucapir. Aliás, antes disso teria sido possível a declaração do simples direito de posse da pessoa que poderá usucapir, se o tempo for preenchido. A constitutividade, essa, tanto pode atingir negócios jurídicos, ou atos jurídicos stricto sensu, ou atos-fatos jurídicos (e. g., abandono da posse, auto-atribuição de nome ou pseudônimo, pagamento), ou fatos jurídicos stricto sensu (aquisição da propriedade de frutos, mistura, confusão). Daí surgirem problemas, que merecem exame e atenção. Se foi declarada a existência de direito, ou dever, ou

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pretensão, ou ação, ou exceção, ou alguns ônus, oriundo de negócio jurídico, pergunta-se se o demandado pode, depois, propor ação constitutiva negativa, se não houve preclusão de prazo, ou prescrição. Houve, ex hypothesi, a coisa julgada. Se houve declaração do direito ou do dever, ou da pretensão, ou da obrigação, ou da exceção, ou do ônus, inclusive a apreciação judicial da validade do negócio jurídico, a coisa julgada foi até aí; porém, se não houve tal apreciação judicial e o efeito podia existir sem ser válido o negócio jurídico (o que ocorre se se trata apenas de anulabilidade, ou se, excepcionalmente, a lei atribuiu eficácia a ato nulo), a ação constitutiva negativa pode ser proposta. O que se reconhecera, como efeito, declarado foi, mas a desconstituição do negócio jurídico tira toda a eficácia, pois não há contradição entre se declarar efeito de negócio jurídico inválido, que o sistema jurídico tem por eficaz a despeito da invalidade, e se decretar a desconstituição de tal negócio jurídico. Se está diante de negócio jurídico que, com a alegada invalidade, não teria nenhum efeito, a declaração de existência do direito, do dever, da pretensão, da obrigação, da ação ou da exceção, cria situação que não se tem examinado devidamente. Foi afirmada a existência do efeito, e esse, na hipótese, não existia. Ou a) se tem a declaração do efeito como abrangente, no fundo, do julgamento favorável da validade, o que produziria, por si, coisa julgada, ou b) se entende que não houve qualquer decisão sobre a validade. A solução b) permitiria que, para declarar existência de direito, dever, pretensão, obrigação, exceção, ou qualquer outro efeito, pudesse o juiz abstrair da incapacidade absoluta de quem se disse ter-se vinculado, da ilicitude, ou impossibilidade ou de falta da forma essencial, ou da solenidade essencial, ou se há nulidade ex lege do negócio jurídico. Ora, todos esses elementos invalidantes tinham de ser apreciados pelo juiz, e, se o não fez, o caminho, que há, é o da ação rescisória da sentença. Portanto, a solução a) é a que se impõe. Se a sentença declarativa foi negativa, não há problema. O que acima dissemos é também de atender-se a respeito de declaração de efeitos de atos jurídicos stricto senas.

3. Existência da constitutividade predominante. Houve tempo em que se negava a existência das ações constitutivas, o que revelava grave erro (cf. Donati, II Problema deite Lacune neil’ordinamento giuridico, 220). Os que não admitiam a classe dos direitos formativos, ditos direitos potestativos, repeliam a classe das ações constitutivas; e ignoravam que há ações constitutivas que não supõem, in casu, direito formativo. O elemento declarativo, nas sentenças constitutivas, é a eficácia mediata (anterior), ou, raramente, imediata. As ações de inexistência de alguma relação jurídica, ou mesmo de algum ato jurídico, são declarativas. Quando, hoje, se diz que a ação de nulidade é declarativa, desatende-se a que o nulo, quando começou a ser o inválido absoluto e não o inexistente, como era no direito romano, não se declara, se desconstitui, ex tunc. As sentenças, nas ações constitutivas ou constituem, ou modificam, ou extinguem. Ali, não se supõe que algo já exista, mas sim que ainda exista. O que pode existir, antes, é o direito, a pretensão, a ação que se exerce. Aqui, o que já existia sofre alteração, modificação, ou se desfaz, se apaga, se extingue. No plano do direito material, a constituição, a modificação, ou a extinção, pode resultar, se a lei com isso se satisfaz, de simples manifestação de vontade do interessado. Outras vezes, exige-se que o interessado exerça a ação, de que é titular, ingresse em juízo; portanto, com a pretensão à tutela jurídica, a ação e a “ação”, no sentido de remédio jurídico processual. Não se há de dizer (Marco Tuilio Zanzucchi, Diritto Processuale Chile, 1, 4ª ed., 132 s.) que as ações constitutivas, como todas as ações de cognição, tendem a uma declaração (“tendono ad un accertamento”). O elemento eficacial de declaratividade é anterior; antes há a declaração, e depois a constituição positiva, modificativa ou extintiva. Se o direito formativo pode ser exercido sem ação, cumpre saber-se se, com o exercício da ‘ação”, se constitui ou apenas se pede declaração. Diz-se, em geral, que a sentença aí, é declarativa, e não constitutiva. Mas tem-se de distinguir da eficácia da sentença na ação em que se declarou o que se tinha de declarar a eficácia da sentença na ação em que se pediu que se declarasse o direito formativo e se desse ao titular o ensejo para o exercício do direito formativo. A sentença só é constitutiva se a decisão do juiz é elemento do suporte fático do exercício do direito formativo. Por exemplo, o cônjuge requer a separação do dote. Se o interessado pode obter a constituição sem ser preciso que proponha ação, o que se há de entender é que a ação constitutiva não cabe, isto é, não há necessidade da tutela jurídica. Todavia, pode ocorrer que a lei permita a manifestação de vontade extrajudicial, ou através do juiz. Na ação, há a declaração de que existe o direito a

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constituir e o ato constitutivo judicial. 4.Produçâo da constitutiuidade. Seja constitutiva positiva (criativa), seja modificativa, seja constitutiva negativa (extintiva, desconstitutiva), a ação, o que se supõe é que o efeito provém da sentença, quer seja ele ex nunc, quer ex tunc. Há casos em que a constitutividade, positiva ou negativa, ou modificativa, resulta de simples atos de alguém interessado. Aí, não há ação constitutiva: ao interessado cabe praticar o ato, quase sempre declaração unilateral de vontade. Advirta-se que, quando se fala de ações como “direitos sancionadores” (e. g., L. Bonjean, Traitá des Actions, 1, 1; H. Blondeau, Chrestomathie, 1, 116; L. Etienne, Institutes de Justinian, II, 312; M. L. Domenget, Traité des Actions privées en Droit romain, 25), se está muito longe da discriminação essencial entre pretensão à tutela jurídica, ação (no sentido de direito material) e “ação” (no sentido de direito processual). Se a palavra “sanção” é empregada no sentido de atendimento, compreende-se que seja a prestação pelo juiz do que o Estado prometeu (alude a sacro, socer, sacire). A sanção dá-se em qualquer ação e não só nas ações constitutivas. Não se há de confundir a “ação” com a ação, que é de direito material, e vem — de ordinário — após o direito subjetivo. Se o Estado prometeu a tutela jurídica, perante ele é que se exerce a pretensão à sentença; mas o exercício da “ação” pode não corresponder à futura decisão que acolha a ação, razão por que a sentença pode ser desfavorável. O que muitos dizem sobre ação apenas pode concernir ao direito material (e. g., Giovanni Pugliesi, Acho e diritto subjetivo, 5). Tanto é erro terem-se como ação a ação de direito material e a de direito processual, como só a inserir no direito material, ou só a inserir no direito processual. A solução que desde muito encontramos foi a de pôr aspas na palavra, se se trata de conceito de direito processual, ligado ao conceito de pretensão, de direito pré-processual. A referência ao direito à sanção, que acima apontamos como conceito de juristas franceses do começo do século passado, reapareceu em Enrico Redenti (Profili pratici del Diritto processuale civile, 2ª ed., 39 s.; Diritto processuale civile,I, 5 s. e 23 s.). A pretensão à tutela jurídica não é pretensão à sentença favorável. Quem propõe a ação de nulidade ou de anulação, ou qualquer outra ação constitutiva negativa ou positiva, exerce a pretensão à tutela jurídica. Talvez não tenha a ação constitutiva, que propôs, observadas as exigências legais para a “ação” (ação de direito processual). Se o juiz nega a existência da ação constitutiva, e ela existe, violou a lei. A sentença desfavorável ao demandante declara o direito do demandado. A ação do autor, que teve sentença favorável, preexistia ao processo, e existiria, depois, mesmo se a sentença foi desfavorável e o autor vencido, propõe a ação rescisória, que é ação desconstitutiva da sentença. Há a legitimação à pretensão à tutela jurídica, a legitimação à ação constitutiva e a legitimação a ação . Dizer-se, como fez Francesco Camelutti (Sistema di Diritto Processuaie Chile, 1, 365 e 393), que não há legitimação à ação (que ação?), foi um dos seus erros. Na “ação” aprecia-se a legitimação à pretensão à tutela jurídica, à pretensão e à ação (de direito material) e à“ação” (há legitimação especial a “ações” de determinadas espécies, se o fim é a constitutividade). Quando se fala de direito subjetivo processual, está certo, se se alude ao direito processual de que resulta a “ação”. Não se deve fazer referência á teoria da ação de direito material e à teoria da ação de direito processual. São dois conceitos, inconfundíveis, e as duas teorias não se chocam: cada uma aparece no seu campo; se se apontam como em discordância, há confusão, como se houvesse uma teoria sobre a manga (fruta) e outra sobre a manga (de paletó). Nem se podem privatizar o processo, a “ação” e a prestação jurisdicional, nem se há de processualizar a ação, mesmo se a ação (de direito material) vai contra a sentença (e. g., ação rescisória de sentença ou outra decisão, ação de revisão criminal), mesmo se de embargos de terceiro. O que muito importa é que, na classificação das ações, não se descure de distinguir da pretensão à tutela jurídica e do exercicio de tal tutela o que apenas é remédio jurídico processual (a “ação”) e o que se pede, por existir a ação. § 2. Elementos eficaciais1. Elemento declarativo. Na ação constitutiva, há de haver declaratividade, porque se supõe que da incidência de alguma regra jurídica se haja irradiado efeito (direito, pretensão, ou ação, ou exceção), que algo constitua, ou desconstitua algo. A exceção de coisa julgada leva à declaração e à desconstituição do que se iniciara contra o excipiente. Na parte em que, em alguma sentença, se condena ao pagamento de despesas, há constitutividade, porque algo se criou, porém seria erro dizer-se que há força constitutiva (e. g., Giuseppe Chiovenda, Principii, 4ª ed., 180), porque o elemento declarativo passa a frente: há 5 de condenatoriedade, 4 de mandamentalidade ou 3 de executividade (isto é, se nos próprios autos se executa, ou se depende de ação), 3 ou 2 de declaratividade, 2 ou 1 de constitutividade.

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Em se tratando de direitos formativos (geradores, modificativos ou extintivos), se basta à constituição a declaração ou manifestação de vontade do titular, ou se depende de sentença que se prof ira na ação do titular, ou de sentença que aprecie a interpelação feita pelo interessado, é assunto que fica à lei. Se alguma sociedade foi constituída a tempo indeterminado, a extinção depende de declaração ou manifestação de vontade de algum dos sócios ou de alguns, conforme os estatutos e a lei ou de ação. Se a tempo determinado, ou se extingue conforme os estatutos, ou com a sentença em ação constitutiva negativa. Se nos estatutos ou em lei se previu a extinção ipso iure, a ação é declarativa. 2.Ação condenatório e ação constitutiva. Não se há de assimilar a ação condenatória à ação constitutiva sob o fundamento de que, naquela, também algo se muda. Não se pode dizer, como fizera Josef Kõhler (Die sogenannte Rechtsschutzanspruch, Zeitschrift fíiir deutsche ZI vilprozess, 33, 226; Die sogenannte Gestaltungsurteile, Rheiniche Zeitscrift JUr Zivil and Prozessrecht, 1, 39), que a mudança não se produz em virtude da sentença, mas sim da demanda judicial. Teria havido a constituição no momento do pleito e a sentença apenas teria declarado que a mudança se produziu. As ações de suprimento de consentimento são ações constitutivas. Quem devia consentir, ilegalmente, por falta de razão, se negou a consentir. As ações de resolução, de resilição e de rescisão são ações constitutivas negativas. As ações que têm por fito de julgamento do não existir algum ato, ou direito, ou pretensão, ou ação, são ações declarativas, e não constitutivas negativas. Se se pede a decretação da nulidade, ou da anulação, então sim: quer-se a desconstituição do ato jurídico lato sensu. O processo pode conter (ou somente conter) atos nulos ou anuláveis. O direito processual criou e cria regras jurídicas especiais, mas, também nele, não se há confundir com invalidade a inexistência. Por outro lado, a nulidade ou a anulação pode atingir toda a relação jurídica processual ou apenas a partir de determinado momento. A declaração de inexistência pode ser, pelo juiz, de oficio, e a lei pode estabelecer a decretabilidade, de ofício, de nulidades ou anulabilidades processuais. A sentença tem de ser dentro dos limites da petição, não pode ser extra petita, nem ri/tra petita; porque a sententici debet esse con formis libelio, admitido que a lei permita aumentos à petição, ou escolha de soluções. Já aí estamos a falar de “ação” no sentido de direito formal (processual), e não de ação, no sentido do direito material. 3.Eficácia ex nunc e eficácia ex tunc. A eficácia da sentença constitutiva é, quase sempre, ex nunc. Mas há eficácia ex tunc, como ocorre em se tratando de anulações, ou de decretação de nulidade. Quanto à legitimação ativa, nem sempre o legitimado à ação constitutiva é o titular do direito. Há legitimações ativas de terceiros, previstas em lei (e. g., representante do menor que se casou, ou algum parente). Pretendeu Crisanto Mandrioli (L’Azione esecutiva, 616 s., 619 s.) que em todas as ações constitutivas haja elemento de execução não forçada. Muitas ações constitutivas não têm executividade forçada (o que podemos exprimir por números: não têm 4 nem 3 de executividade); porém não todas. Algumas são mesmo constitutivas-executivas (= 5 de constitutividade e 4 de executividade). 4.Interesse jurídico. Tem-se dito que, quanto às ações constitutivas, o interesse jurídico é in re ipsa. Uma vez que se afirma que se tem direito a constituir, ou a desconstituir, o interesse jurídico está implícito (e. g., Giuseppe Chiovenda, Istituzione di Diritto Processuale Civile, 1,178; Piero Calamandrei, Istituzione di Diritto Processuale Civile, 1, 143; Marco Tuílio Zanzucchi, Diritto Processuale Civile, 1, 140). O interesse jurídico de modo nenhum se confunde com a legitimatio ad causam. Nem aquele basta a essa, nem essa àquele. Foi erro de Giuseppe Chiovenda (Istituzione di Diritto Processuale Civile, 1, 183) dizer que todo legitimado a provocar decisão do juiz de eficácia constitutiva tem, sempre, interesse jurídico (interesse ad agire). A existência de direito formativo, qualquer que seja, não significa que o titular de tal direito, mesmo se é necessária a decisão do juiz, tenha o interesse jurídico. Pode tê-lo, pode não no ter. 5. Ações cautelares. Algumas ações cautelares são constitutivas, mas a maioria é de ações cautelares

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mandamentais, razão por que deixamos ao Tomo VI o trato da classe, para evitarmos pôr frente aquelas que são constitutivas (ação de caução, ação de vistoria, arbitramento e inquirições, ação de alimentos provisionais, ação de arrolamento e descrição de bens, ação de separação de corpos). § 3. Espécies e subespécies de ações constitutivas positivas 1. Precisões. As ações constitutivas positivas, de que vamos tratar, separadamente, são apenas as ações constitutivas positivas de maior relevância. De muitas não cogitaremos, ou porque os princípios gerais bastam, ou por serem sem grande importância para a exposição científica. Passemos a alguns exemplos. 2. Ação incidental de falsidade em processo penal. A ação incidental de falsidade em processo penal supôe a arguição de falsidade, posto que possa o juiz proceder de oficio à sua verificação (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941-, art. 147). As ações sobre falsidade são, de regra, declarativas, mas, na comparação entre a ação declarativa típica, a respeito de falso, e a ação incidental de falsidade, o que mais se revela éque esta perde mandamentalidade (não tem, por isso, o efeito preceitual, que tem aquela) e ganha em constitutividade (quanto à constituição da prova na ação principal). Se as compararmos com as ações penais de falsidade, vemos que, nessas, aumenta o elemento condenatório, a ponto de ser de condenação a sentença na ação penal de falsidade e, na ação incidental, tornada constitutiva, vem em segundo lugar, com diminuição da declaratividade. 3.Ação de vis torta de fazendas ou bagagens avariadas. A ação de vistoria em caso de fazendas ou bagagens avariadas, qualquer que seja a espécie de transporte, é constitutiva, com eficácia imediata de declaratividade. A ação de protesto pelo destinatário é constitutiva integrativa de forma. 4. Ação de apreensão de embarcações. Sempre que a embarcação se diz brasileira sem no ser, ou se perdeu a nacionalidade brasileira, ou obteve sub-repticiamente o registro como navio brasileiro, cabe a apreensão. Se não obteve registro e se diz tê-lo, ou exerce atividade que não poderia exercer, a espécie éde direito penal; mas cabe a apreensão. O juiz julga por sentença a apreensão do navio e suas pertenças, que foram inventariadas e apreendidas com ele; e não a apreensão das mercadorias. O preço da venda e das pertenças do navio fica em lugar do navio e das pertenças (sub-rogação real). Da sentença, que é constitutiva integrativa da apreensão e mandamental da venda, cabe recurso. A alienação judicial é ação constitutiva, inserta no mesmo processo, e iniciada em virtude do mandamento da sentença de apreensão. Ação constitutiva. A alienação judicial não é ato executivo em sequência de atos executivos, como se passa com a arrematação e com a venda do bem a ser partilhado. O fato da conversão aparece, ai, em estado puro; o juiz não está a executar o que alguém não executou: a sua função parece-se mais, então, com a que exerce nos casos de venda de bens deterioráveis ou de guarda altamente dispendiosa. Efetuada a venda, deduzem-se as despesas; deposita-se o saldo, em que se dá a sub-rogação real; e somente pode levantar a quantia depositada, ou parte dela, quem tiver direito a isso, segundo o direito material, público e privado.

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Parte II Ações Constitutivas positivas

Capítulo 17

Ações de filiação § 4. Conceito e precisões 1. Ações tendentes a provar; ações de turbação. As ações tendentes a provar a filiação são imprescritíveis, mas privativas dos filhos. Delas só usam os filhos que podem ser reconhecidos, e não passam aos herdeiros deles. As de turbação podem ser usadas pelos herdeiros. Existe ação declarativa da existência ou não-existência da paternidade? Existe; é a ação típica do status de filho, que pode ser intentada como a ação de filho, abstraindo-se da legitimidade, porque os filhos havidos ou não da relação de casamento têm assegurada idêntica qualificação jurídica, já a nível constitucional, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (Constituição de 1988, art. 227, §6ª). A paternidade, como a maternidade, é relação jurídica. E certo que se tem querido ver, aí, somente fato, e admoesta-se não haver ação declarativa de fato. Porém, toda relação da vida, que a ordem jurídica fez relevante e dota de efeitos jurídicos, se torna relação jurídica. Se houve o reconhecimento pelo genitor, declara-se isso. Quanto à ação declarativa em geral, houve discussão. Negou-a E. Natter (Uneheliche Vaterschaft, Archív fúr die civilistische Praxís, 95, 129 si, que a viu somente como “algo de fático”; seguiu-o Eichbaum (Hessische Rechtsprechung, IV, 87,1. O zsaunto lei Estudado nor Geor& Kuttner (Die Klagen au Feststellung des Bestehens oder Nichtbetehens der uneheichen Vaterschaft, Jherinqs Jahrbúcher, 50, 412-532), que destruiu a argumentação de E. Natter, Rudolf Leonhard (Vortrdge de Eck, II, 514 e 516) e F. C. Ullersberger (Das Rechtsverháltnis derunehelichen Kindschaft nach dem BGB. und Code Civil, 34). Assim, ficou provada a proposição contrária de Heinrich Dernburg (Das Búrgerlíche Recht, IV, p. VI, correção à p. 221, nota 7, e 287), Eck (Vortrdge, II, 516), Konrad Hellwig (Anspruch und Klagrecht, 400, nota 4) e Peter Spahn (Verwandschoft, 43). Tem-se, portanto, de frisar que a expressão “reconhecimento da paternidade” ou “reconhecimento da maternidade” levou muitos juristas a falarem de ação declarativa (ação, entendiam, de reconhecimento). Ora, o juiz, quando julga procedente a ação de investigação da paternidade ou de maternidade, não só reconhece, constitui o ato que corresponde ao do pai ou da mãe. Sem dúvida, há declaratividade, porém não declaratividade preponderante. A eficácia declarativa foi apenas mediata e prévia; em vez de haver 5 de declaratividade, 3 de constitutividade, 2 de condenação, 4 de mandamentalidade e 1 de executiva, como ocorre nas ações (declarativas de filiação), .o peso 5 passou a ser de constitutividade e o peso 3 a ser de declaratividade. A ação de investigação de paternidade é legitimado, passivamente, quem quer que possa vir a ser tido como parente do autor, e. g., o irmão do falecido (4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 28 de setembro de 1944, RT 154/691). A ação de investigação da paternidade é imprescritível (Supremo Tribunal Federal, 18 de outubro de 1950, RF 138/114: “As ações do estado são imprescritiveis: não me parece possível que o estado da pessoa possa estar sujeito a prescrição. A ação de estado é meramente declaratória; não envolve condenação a sentença proferida nessa ação. Assim, a ação declaratória do estado de filiação é imprescritível, como o próprio estado de filiação, que pode ser sempre reconhecido, a qualquer tempo. O que cumpre, entretanto, distinguir é a ação declaratória do estado de filiação e a ação condenatória pertinente aos efeitos patrimoniais resultantes desse estado de filiação. A ação pertinente aos efeitos patrimoniais é que prescreve no prazo de x anos. A ação declaratória do estado da pessoa, essa jamais prescreve; a pessoa pode ter sempre esse estado reconhecido por sentença. No caso, entretanto, o que se verificou foi a prescrição da ação para obter o reconhecimento dos efeitos patrimoniais; o que prescreveu foi a ação de petição de herança, e não a ação declaratória de estado, a qual é imprescritível. Como as ações são, em geral, exercidas cumulativamente, é comum estender-se à ação declaratória efeito que apenas se verifica com respeito à ação patrimonial”; 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 1ª de junho de 1948, AJ 89/412, RT 185/1.003; sem razão, a 1ª Turma, que, a 8 de abril de 1946 e a 2 de janeiro de 1950, RF 108/488, e 144/108, a considerou prescritível em x anos, a 2ª Turma, a 26 de novembro de 1946, 109/416, e a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 8 de maio de 1942 92/433; confuso, o acórdão da 1ª Câmara Cível do

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 17 de agosto de 1950, 143/324; cf. Q Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 1º de março de 1945, RT 159/156, e 2ª Câmara, a 17 de agosto de 1948, 176/622). 2.Impugnação. Qualquer pessoa justamente interessada pode impugnar a ação, quer seja de investigação da paternidade, quer seja de investigação da maternidade. A lei concedia ação aos filhos, então ditos ilegítimos, de pessoas que não cabiam na regra jurídica que vedava a atribuição de prole, que se qualificava ilegítima, a mulher casada, ou, caracterizada como incestuosa à solteira, contra os pais ou seus herdeiros, para que fossem re-conhecidos; a fortiorí, na sistemática atual, em que não há esse odioso discrime quanto à filiação (Constituição de 1988, art. 227, § 6ª). Pode opor-se à ação de investigação de paternidade ou maternidade qualquer pessoa que justo interesse tenha. Há de atender-se assim ao interesse econômico como ao moral. Herdeiros, são os legítimos, ou os testamentários, pois também os herdeiros testamentários podem impugnar a ação. 3.Investigação da maternidade e da paternidade. Na ação de investigação da maternidade, quando a prova não conste do termo de nascimento, deve provar o reclamante: o) o parto da mulher que pretende seja sua mãe; b) sua identidade com o filho então nascido dela. A primeira prova não implica a segunda: é possível que a mulher, de que se trata, tenha dado à luz um filho na época referida, sem que o reclamante seja esse filho. A lei não fixou dados e provas especiais para a verificação da maternidade. Ao juiz compete a apreciação das provas, que podem ser todas as admitidas em direito; mas é preciso o máximo cuidado com a prova testemunhal em assunto tão melindroso. O direito francês exige o começo de prova por escrito, quando se pretenda usar de testemunhas. Tal prevenção não na aceitou o legislador brasileiro. A ação de investigação da paternidade só é admitida quando existe alguma das provas mencionadas na lei. 4.Eficácia da sentença. Quando a sentença, em ação de investigação decide em favor do filho reclamante, produz os mesmos efeitos que o reconhecimento voluntário; pode, porém, ordenar que o filho se crie e se eduque fora da companhia daquele dos pais que negou essa qualidade. A eficácia da sentença favorável na ação de investigação da paternidade, como se dá na ação de investigação da maternidade, é erga omnes; mas, é ineficaz contra quem teria justo interesse para contestá-la e não teve ciência (não se estende a essa pessoa a eficácia); salvo a partir da averbação, mas isso mesmo só permite que o terceiro recorra: não passou em julgado contra ele a sentença. O terceiro que considerou não ser filho do pretendido pai a pessoa com quem tratou pode proceder contra o filho, se tem alguma ação, como se o reconhecimento forçado não tivesse existido, pois que o ignorava. Após o registro, não: os atos são com a pessoa cuja ascendência consta do re-gistro, salvo se o terceiro ainda pode recorrer e recorre. O juiz manda que se registre e, após o registro, a eficácia constitutiva ex tunc se produz. O escrivão não precisa de provocação para a expedição do mandado do juiz ao oficial do registro, ou, se ele exerce a mesma função, para que o cumpra. Responde pelo retardamento. Quanto à eficácia declarativa, essa, por ser a de coisa julgada material, se produz com o transito em julgado. Em recurso em ação própria, a 23 de agosto de 1924, o Supremo Tribunal Federal (relator Hermenegildo de Barros) apreciou a alegação de não ter ação de investigação da paternidade a autora, “por ter nascido antes do Código Civil” e decidiu: “Esta questão é controvertida na doutrina, mas os escritores em maioria sustentam que a ação para investigação da paternidade é regulada, não pela lei anterior, sob cujo domínio nasceu o filho; mas pela lei nova em vigor ao tempo em que a ação foi proposta. E a solução mais razoável, por não haver no caso qualquer ofensa a direito adquirido, que só se verifica depois da abertura da sucessão” (RJ 44/588 sj. Tratava-se de pessoa nascida a 17 de março de 1898, tendo falecido depois do Código Civil o pai, que em testamento declarara não ter outros filhos, “para evitar explorações futuras”. O acórdão revela que o relator se deixou levar pelo caso concreto; daí a alusão à abertura da sucessão, que nada tem com a discussão do problema da eficácia ex tunc, ou ex nunc, do ato do reconhecimento ou da sentença favorável na ação de investigação da paternidade, ou da maternidade. Proposta a ação de filiação ou de investigação de paternidade ou maternidade, a sentença, que a julgar procedente, produz a eficácia jurídica que no caso caberia: reconhecimento. Então, pode o juiz ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia daquele dos pais, que negou esta qualidade. A competência, nas espécies que acima apontamos, é, de regra, do juiz que profere a sentença condenatória do pai ou da mãe, na ação de investigação da paternidade ou da maternidade. Se o pai ou a mãe propõe ação de anulação

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ou de nulidade do reconhecimento, ou se o homem casado intenta ação denegatória da filiação de sua mulher, ou se a mulher casada litiga quanto à filiação materna da pessoa que se tem como seu filho, o juiz que condena o autor ou a autora pode ordenar a medida de criação e de educação. Se o juízo competente é o juízo de órfãos, pode determinar a providência de criação e educação, ou quaisquer outras medidas, inclusive de suspensão do pátrio poder; se o não é, o poder é restrito: pode ordenar, ou não, que o menor se crie e eduque fora da companhia do genitor vencido na ação, porém falta-lhe a competência para qualquer outra medida. § 5. Efeitos do reconhecimento dos filhos 1. Eficácia do reconhecimento forçado e do voluntário. O reconhecimento voluntário e o forçado ou judicial têm os mesmos efeitos. Ambos provam erga omnes a filiação. O filho reconhecido, enquanto menor, fica sob o poder do genitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai. Se o genitor, que o reconheceu, está casado, o filho não pode residir no domicilio conjugal sem o consentimento do outro cônjuge. Se um dos cônjuges negar consentimento para que resida no lar çonjugal o filho reconhecido, caberá ao pai, ou mãe, que o reconheceu, prestar-lhe, fora do seu lar, inteira assistência, assim como alimentos correspondentes à situação social em que vivia, iguais aos que prestar ao outro filho, se o tiver. Quanto ao pátrio poder, permite-se que o juiz, no interesse do menor, decida de outro modo que aquele que está na lei. O interesse do menor pode ser o de ficar com a mãe, ou com algum parente, ou com outrem, inclusive colégio. Porém, nada disso tem a ver com o pátrio poder, que, para passar à mãe, tem de sair do pai, e, para haver tutela, tem de extinguir-se. Pátrio poder e guarda não se confundem; mas, para qualquer alteração, num e noutro, épreciso que haja razão para a decisão desconstitutiva do juiz. Tirar a guarda é desconstituir. A fortiori, tirar o pátrio poder. A jurisprudência ganharia em atender à precisão dos conceitos, em vez de permitir ambiguidade (e. g., Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, lide agosto de 1949, RF 132/175). 2.Parentesco. O reconhecimento prova o parentesco em todas as suas consequências: impedimentos matrimoniais; alimentos; pátrio poder; múnus público, em que os parentes preferem aos estranhos etc.

Capítulo II Ações de suplemento de idade e ações de suprimento de consentimento § 6. Ações de suplemento de idade 1. Conceito e natureza. As ações de pedido de suplemento de idade são ações constitutivas; uma delas, a que se baseia em concessão de pai, ou, se morto, da mãe, constitutiva integrativa de forma e de fundo. Não só de forma: o juiz pode entrar na apreciação da inoportunidade ou temeridade da concessão, e. g., se o pai, ou a mãe, que concedeu a emancipação, que a homologação completou em venha aetatis, apenas quis fugir à prestação de contas, ou se o menor é um retardado e o suplemento de idade lhe seria perigoso. Essa a concepção tradicional, em boa hora retomada pela lei. Mas, depois, conspurcada. 2. Venia aetatis e emancipatio. Desde logo, lamentamos o erro de terminologia, que se repete no Código de 1973. O instituto do suplemento de idade é ato judicial que se completa, se suplementa, a idade de quem já atingiu os dezoito anos. Alguns juristas se enganaram na caracterização do suplemento etário e da emancipação. A emancipação é ato divestitivo do titular do pátrio poder, que permite continue pessoa sob a tutela de outrem. A venia aetatis não é instituto de direito de família; mas de Parte Geral do direito civil, originariamente de direito público, como privilégio por serviço militar, ou outro mérito. Paz pena comparar a precisão dos velhos escritores de outrora, que tanto discutiam essas coisas, e os de hoje, pouco atentos à lição anciã e à terminologia dos povos de alta cultura jurídica. Quem emancipa (de emancupo) põe fora do seu poder, por mancipatio. Não pode suplementar idade, porque isso

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pertence ao Príncipe, ao Estado. Essa confusão foi responsável pelo esquecimento de se exigir a homologação à concessão pelo pai ou pela mãe, titular do pátrio poder, e contra a interpretação lutamos sempre, até que o Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1939, art. 16, § 2ª, foi explícito: ... deverá ser homologada pelo juiz togado a que estiver sujeito o oficial competente para a anotação. Dentro de processos de inventário, há quase meio século, tivemos o ensejo de consignar muitissimos casos, pertubadores, em que os pais e as mães, fiscalizados na administração dos bens e dos filhos, se livraram do incômodo, emancipando-os. A alguns casos chamamos suplementos de idade in fraudem leqis; outros eram abertamente dolosos e contrários aos interesses dos filhos, como dois, ou três, feitos nas vésperas de começar a correr o prazo para interposição de recursos, perdendo-o os suplementados. Falta outro texto, que reponha a terminologia exata, velha de tantos séculos, e expressiva. Sobre a critica ao direito anterior, além de decisões nossas, quando juiz, o nosso Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro (160). O suplemento de idade completa a idade do menor para a tornar maioridade. Tal o que diz a expressão (suplemento) e tal o conceito jurídico. E a venia aetatis, que nem sempre ocorria com a emancipatio; nem o nosso direito as confundia. A troca de nomes afetou o Código Civil, que trocou os conceitos, na ânsia de copiar leis de países estrangeiros, em vez de aprender a ciência do direito, seja onde for, e aplicá-la ao aperfeiçoamento da nossa técnica legislativa. Se procuramos descer ao fundo do instituto, o que encontramos é o critério da apreciação a pos teriori da capacidade, em vez do critério da quantitatiuidade fixa (vinte e um anos, no Código Civil). À tese da qualificação (julgamento a posteriori da capacidade), para que o homem apto entrasse na classe dos do pátrio poder é ao mesmo tempo declaração de vontade e comunicação de conhecimento (afirmação da capacidade do menor): negócio jurídico unilateral. O suplemento de idade por sentença é eficácia da decisão judicial, após exame do desenvolvimento do menor. Embora nao seja preponderantemente declarativa, não se pode dizer, como disse a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 25 de outubro de 1951 (RT 197/247; RF 146/319), que não há direito, não há pretensão à decretação. Há pretensão à tutela jurídica e há pretensão à decretação. Quem tem mais de dezoito anos e satisfaz os pressupostos do art. 9º, § 1ª, 1 do Código Civil tem direito e pretensão à decretação. A 3ª Câmara Civil sublinhou as expressões concessão e sentença, mas a expressão concessão está, no art.9º, § 1º, I, em lugar de conferimento, o que é vulgar na redação das leis, posto que, em boa terminologia, reprovável. Dá-se o mesmo a respeito de invenções e outras criações industriais, a respeito das quais impropriamente se fala de concessão e até, de privilégio, reminiscência regaliana. As testemunhas não são indispensáveis. A prova pode ser documental. A audiência do tutor e do órgão do Ministério Público é independente de terem, ou não, assistido. Tutor e Ministério Público podem impugnar o pedido, alegando a falta de idoneidade do menor e provando-a. Se aquele ou esse impugna, há novo dia para as provas do órgão do Ministério Público e do tutor. Basta que haja alegações ou provas, para que se ouça o menor; porque, tratando-se de comunicações de conhecimento, se aplica o art. 334 do Código de Processo Civil. Os artigos 1.107, 2ª parte, e 1.109, ambos do Código de 1973, são expressivos. O procedimento rege-se por princípios do processo inquisitivo. A sentença, que concede o suplemento, tem de ser enviada, por cópia, ao registro civil. Os seus efeitos, entre pai ou mãe, titular do pátrio poder, que recusou o suplemento, entre tutor e tutelado, começam do transito em julgado. A força erga omnes, somente do registro. Depois de feito no livro especial, é de proceder-se à anotação no registro de nascimentos e nos mais a que interesse. Quanto à necessidade de haver sentença, no tocante ao suplemento de idade, a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, afastou qualquer discussão, pois, no art. 89, explicitamente está dito que têm de ser registrados, em livro especial, as sentenças ditas de emancipação, como os atos dos pais que a concedem. Assim, as únicas espécies em

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que se não cogita de sentença são os suplementos de idade que os pais concederam. A capacidade começa, pois, com o ato do titular do pátrio poder, que tem de ser registrado para a eficácia erga omnes. Com o casamento ou com o exercício do emprego público efetivo, ou com a colação de grau científico em curso de ensino superior, com o estabelecimento civil ou comercial, com economia própria, ou com o serviço militar se o menor completou dezessete anos (Lei nº 4.375, de 19 de agosto de 1964, art. 73; Decreto n0 57.654, de 20 de janeiro de 1966, art. 239), é exigida a sentença registrada. Na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 91, parágrafo único, enuncia-se que antes do registro, a emancipação, em qualquer caso, não produzirá efeito. Mas a eficácia aí, é da sentença, pois o art. 91 estabelece: Quando o juiz conceder emancipação, deverá comunicá-la, de oficio , ao oficial de registro. se não constar dos autos haver sido efetuado este dentro de oito dias. Aí é posta em evidência a responsabilidade do juiz que proferiu a sentença, ou quem o substitui. Quem teve ciência da sentença não pode invocar o art. 91, parágrafo único, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, porque efeito sentencial houve, - o que não houve, se ao registro não se procedeu, foi a eficácia erga omnes. É o que se passa com os figurantes do contrato de transmissão da propriedade imóvel, antes de se proceder ao registro do contrato. As vezes, a alienação é, até, em hasta pública, e o registro serve a efeitos que o edital não produzira. Na ação de suplemento de idade, o menor, que já alcançou dezoito anos, ou em caso de serviço militar, dezessete, tem capacidade processual. Não se invoquem os arts. 8º e 9º do Código de Processo Civil, em que se diz que os incapazes serão representados ou assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da lei civil, e que o juiz dará curador especial ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se com os interesses colidirem o do representante legal. O que o menor de vinte e um anos e maior de dezoito anos (ou de dezessete, no caso de serviço militar) exerce é a sua pretensão à tutela jurídica, em ação de suplemento de idade. Aí, a própria lei supõe que haja a capacidade processual, porque o que se pede é a declaração da capacidade de direito material. Se não há prova do elemento suficiente para o suporte fático de alguma das regras juridicas do Código Civil, art. 9º, §1º, l-V e § 2º. Temos de entender que hão de ser ouvidos os interessados e o Ministério Público (art. 1.105). Por exemplo: o titular do pátrio poder ou o tutor do maior de dezoito anos (ou de dezessete, em caso de serviço militar), que aí não assistem, — são citados. A decisão do juiz favorável ou desfavorável, é declarativa, positiva ou negativa. Se se trata de ação de suplemento de idade em que é citado o titular do pátrio poder ou o tutor, que se recusa à concessão (Código Civil, art. 99, § 1ª, 1), então tem o juiz de verificar se quem se negou a conceder não tinha razão. A sentença é de força constitutiva (3 de declaratividade, 5 de constitutividade, 1 de condenatoriedade, 4 de mandamentalidade, e 2 de tividade). Diferentes as outras ações de suplemento de idade (5 de declaratividade, 3 de constitutividade, 1 de condenatoriedade, 4 de mandamentalidade e 2 de executividade). O recurso é o de apelação (Código de Processo Civil, art. 1.110), inclusive do indeferimento do pedido de venha aetatis (cf. 4ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 30 de janeiro de 1945, DJ de 14 de março, 1936). Há casos em que não se precisa de constituir a capacidade, isto é, quando essa decorre de fato (casamento, exercício de emprego público efetivo, colação de grau científico em curso de ensino superior, estabelecimento civil ou comercial, com economia própria, cf. Código Civil, art. 9º, § 1º, II-V), de exercício de serviço militar, se completos os dezessete anos de idade (Código Civil de 1916, art. 9º, § 2º). Se há interesse em prova, basta justificação com documentos e testemunhas; se alguém a nega ou está em causa alguma relação jurídica, é intentável a ação declarativa típica (Código de Processo Civil, art. 4º). 3. Outros ações de suplemento de idade. As ações de suplemento de idade fundadas em simples pedido do menor, com invocação da lei sobre pressupostos, são ações declarativas, porque aí a suplementação é eficácia da lei, e não da sentença, que poderia declarar, isto é, dizer o que é ou não é.

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§ 7. Ações de suprimento de consentimento 1. Conceito e natureza. As ações de suprimento de consentimento, todas ações constitutivas, podem ser a) por indevida denegação, ou b) por falta. Não são as mesmas. Ali, a tutela dos interesses fica em reexame, de modo que a ação é para destruir a eficácia de declaração de vontade de quem deveria consentir, ou não; aqui, a lei atribuí ao juiz, diretamente, essa tutela. Ali, há sempre contenciosidade; aqui, não há, pelo menos no primeiro grau de jurisdição, pois só discordância eventual, ou o recurso, e. g., pelo órgão do Ministério Público, cria a contenção. Não se pense, portanto, que, nos casos b), a jurisdição seja, sempre, voluntária. 2. Ratificaçâo e suprimento. Nos casos em que se pode ratificar o negócio jurídico, a denegação de ratificação dá ensejo a que nasça a ação de suprimento da ratificação. A ratificação e o consentimento são duas espécies de ligação a negócios jurídicos de outrem. Nas espécies em que o assentimento é revogável, a revogação suscita a ação de suprimento do assentimento, ou da ratificação, conforme os conceitos do direito material. Uma vez que o Código de 1973 não contém as regras jurídicas do Código de 1939, arts. 625-628, como se há de proceder diante da omissão atual? O interessado pede ao juiz que supra o consentimento ou assentimento. Há a citação. O prazo é de dez dias (Código de Processo Civil, art. 1.106), porque não se trata de jurisdição contenciosa (a despeito da recusa), mas sim de jurisdição voluntária, tendo-se de atender aos arts. 1.104-1.111 do Código de Processo Civil.

Capítulo III

Ações para nomeação de tutores e de curadores § 8. Conceito e natureza 1. Pretensão constitutiva. As ações, pelas quais quem tem pretensão constitutiva à nomeação de tutor, ou curador, para alguém, pede que se nomeie tutor, ou curador, de acordo com a lei, ou o testamento, são ações constitutivas, algumas constitutivas integrativas. 2. Precisões. Os tutores exercem poder conferido pela lei para proteger a pessoa e reger os bens dos incapazes por idade, que estão fora do pátrio poder. São ditos testamentários, quando nomeados em testamento, legítimos quando forem apontados pela lei, e dativos, quando de escolha do juiz. Os curadores exercem poder conferido pela lei para proteger a pessoa e reger os bens, ou somente reger os bens, ou algum interesse, de quem não tenha capacidade para fazê-lo, sem ser pela razão da menoridade, ou não possa, no momento, reger os bens ou o interesse. Há a curatela do insano (louco), a do surdo-mudo, a do pródigo, a dos viciados pelo uso de entorpecentes, a dos ausentes, a do nascituro; e a dos curadores especiais, — a da herança, vacante, as processuais (nosso Direito de Família,3ª ed., III, 273 s.), como do incapaz que não tem representante legal, ou os interesses desse colidem com os daquele, do réu preso, ou revel citado por edital ou com hora certa, o defensor matrimonii, que, aliás, é parte per se. Sempre tivemos a essas curadorias como de direito processual e argúimos a falta de sistema do Código Civil (Direito de Família, 1ª ed., 408, nota 5). Também quanto aos curadores, há a distinção entre testamentários, legítimos e dativos, A nomeação de tutor ou do curador é ato constitutivo. A resolução judicial, pela qual se investem das funções, posto que de conteúdo diferente conforme se trate de tutor legitimo, ou de tutor testamentário, ou de tutor dativo, é sempre constitutivo, de força erga omnes: constitutiva, apenas integrativa, nos casos de tutores legítimos ou

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testamentários; constitutiva, de conteúdo e de forma, nos casos de tutores dativos. Se alguma questão foi decidida, declarativamente, aí há força material de coisa julgada. Essa nomeação, assunto de direito material (Código Civil, artigos 407-417, 454, 460, 462, parágrafo único, e 463-468), é ato judicial, a que estão sujeitos todos os tutores, como elemento integrativo da forma das nomeações pelo titular do pátrio poder, ou pelo avô paterno ou materno, de um e de outro sexo, em testamento, ou como aplicação de regra completa da lei, nos casos de tutela legítima (Código Civil, art. 409), ou como aplicação de regra jurídica de arbítrio judicial, nos casos de tutela dativa (Código Civil, art. 410). As diferenças concernem mais, portanto, ao direito material do que ao direito processual. A resolução judicial é de carga diferente de elemento declarativo (mais nas testamentárias e nas legítimas, muito menos nas dativas) e de elemento constitutivo (assaz forte, nas dativas). As mesmas observações cabem quanto às curatelas. Tal nomeação judicial do tutor ou do curador testamentário, legítimo ou dativo, precisa ser feita logo que ocorra a causa da tutela ou da curatela, para que não haja lapso de irrepresentação ou de defesa. Se inevitável, supre-se com a nomeação do tutor interino ou do curador interino. Se se trata de tutor ou curador testamentário, há derivação de testamento; mas testamento é ato que exige, para a sua eficácia, a integração de forma (do cumpra-se). Deve-se, pois, aguardar o cumpra-se, para que tenha eficácia a nomeação pelo testador. Nada obsta à nomeação da mesma pessoa, pelo juiz, como tutor ou curador dativo, até a investidura do tutor ou curador testamentário. O nomeado no testamento é legitimado ativo para a provocação do art. 1.129 do Código de Processo Civil (verbo “interessado”). (“Mandar” está, no art. 1.187,11, por “ter sido aposto o cumpra-se”.) O tutor ou curador é intimado a prestar o compromisso no prazo de cinco dias contados da nomeação, ou da intimação do despacho de cumpra-se, aposto no testamento. O prazo não é atingido pela superveniência das férias. O art. 179 do Código de Processo Civil não é invocável. As decisões de nomeação de tutor e a de curador, frise-se, são constitutivas. Enquanto, a respeito da tutela e de certas curatelas, o elemento constitutivo é sozinho, sendo a questão de idade do menor mera prejudicial, observa-se, no tocante à curatela dos interditos, a sua secundariedade em relação ao elemento constitutivo da interdição. Primeiro se há de decretar a interdição (sentença constitutiva); depois, nomeia-se o curador (sentença constitutiva intimamente ligada à decretação da interdição). A nomeação tanto é separável da interdição que, não se provendo no cargo o nomeado, se nomeia outra pessoa, e o mesmo ocorre se o nomeado exerce e morre, ou deixa, por alguma das causas previstas em lei, o cargo. A qualidade da nomeação varia: ora a) é nomeação de tutor ou curador legítimo, ora b) de tutor ou curador testamentário, ora c) de tutor ou curador dativo. Em a), o elemento declarativo é tão forte que a nomeação é constitutiva integrativa da indicação legal; em b), constitutiva integrativa da indicação negocial; em e) constitutiva pura, pois o elemento declarativo desaparece, pela aparição da vontade do juiz. Qualquer ataque vitorioso à decisão, que constitui a interdição, ou ao elemento declarativo, a que acima se aludiu, da prejudicial das tutelas e de cedas curatelas, atinge a nomeação, por onde se vê que a união de sentenças não basta para fazer uma delas dependente da outra, ou as fazer interdependentes, nem a separação ou a separabilidade basta para livrar uma delas de ser dependente, ou para as livrar de serem interdependentes. O tutor ou o curador tem o dever de prestar contas por períodos; todavia, qualquer que seja a época em que as tenha prestado, tem de prestá-las até a data da remoção e entrega dos bens. A decisão que desconstitui a investidura no cargo não tem carga de mandamentalidade, que bastasse à saida de mandado sem qualquer provocação (a carga de mandamentalidade seria 4) ou após ela (a carga de mandamentalidade seria 3). Daí não ser preciso haver regra jurídica, que estabeleça dever ao juiz e ao escrivão. É o dever de suscitar a prestação de contas. Se o juiz e o escrivão não o cumprem, têm responsabilidade segundo os princípios de direito material. As despesas do processo de prestação de contas de bens de incapaz, no caso de aprovação de contas, são levadas a débito do tutelado ou do curatelado. Ainda que a sentença não o explicite, têm de figurar no cálculo de ativo e passivo, que se levante depois, se antes o não foram (7ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 23 de maio de 1947, OD 51/306).

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O tutor ou o curador presta compromisso perante o juiz; porque se trata de cargo, múnus; e a nomeação judicial e o art. 1.193 do Código de Processo Civil são outros sinais de seu cargo. O direito material, a respeito da hipoteca legal, está no Código Civil, arts. 418, 419 e 453. A suficiência da garantia e outras questões semelhantes, eventuais, não pertencem ao direito processual. No Código Civil, o art. 827, IV, ao falar-se da hipoteca legal, diz que se confere tal garantia em imóveis dos tutores e curadores. Aliás, quanto aos bens de menores, já cogitara o art. 418. Há a possível dispensa a que se refere o Código de 1973, art. 1. 190, novidade em relação ao direito anterior. No Código Civil, art. 420, há a seguinte regra jurídica: O juiz responde subsidiariamente pelos prejuízos, que sofra o menor em razão da insolvência do tutor, de lhe não ter exigido a garantia legal, ou de o não haver removido, tanto que se tomou suspeito. E o art. 421: A responsabilidade será pessoal e direta, quando o juiz não tiver nomeado tutor, ou quando a nomeação não houver sido oportuna. Não se diga que a omissão de tais regras jurídicas no Código de Processo Civil de 1973 tem como consequência a derrogação dos arts. 420 e 421 do Código Civil. Trata-se de regras jurídicas de direito material, e o que mais importa, no tocante às tutorias, é o que se estabelece no Código Civil; ao direito processual civil incumbe regras jurídicas de direito processual. Se ele invade, às vezes, o campo do direito material, tal invasão tem de resultar de regra jurídica expressa. Não se pode, por simples interpretação, acolher heterotopia. Aliás, sob o Código de 1973, no art. 1.190, deu-se amplo poder para a dispensa de garantia. Aos próprios pais, nomeados curadores, não se poderia, dispensar a especialização de bens do incapaz e o termo de que fala o art. 1.188 (Código Civil, art. 423). Se o tutor ou curador não requereu no prazo de dez dias, de que fala o art. 1.188 do Código de Processo Civil, a especialização de bens imóveis para a hipoteca legal, é dever do orgão do Ministério Público promovê-la. Se algum prejuízo advier pela falta, ou pelo retardamento, responsável é a entidade estatal, invocáveis as regras jurídicas do art. 37, § 6ª, da Constituição de 1988, com a ação regressiva nelas prevista, se houve dolo ou culpa. Sob o Código de 1939, já frisávamos ser dever do juiz, na falta de especialização de bens imóveis para a hipoteca legal, se não o haviam requerido. Hoje, atribui-se ao órgão do Ministério Público, se o tutor ou curador não o requereu no prazo de dez dias, promover a especialização de hipoteca legal. Não significa isso que, se a não promove o órgão do Ministêrio Público, não toque ao juiz o dever de exgí-la. Um dos argumentos a mais éo de que o Código de 1973, no art. 1.199, permite ao juiz que a) admita a entrada em exercício depois da garantia, ou b) até mesmo que a dispense. Se a), é curial que marque prazo, mesmo ligado a circunstàncias, seria inadequado retirar-lhe o dever de exigir o cumprimento. No intervalo entre o compromisso e o julgamento da especialização, é ao órgão do Ministério Público que incumbe representar ou assistir a pessoa e administrar-lhe os bens. A regra jurídica é nova em relação ao direito anterior e não pode o órgào do Ministério Público ficar desatento ao que se passa entre o compromisso prestado pelo tutor ou curador, principalmente no tocante à administração dos bens. Surge a questão de ser responsável o ôrgão do Ministério Público pelo que ocorre entre o ato da nomeação (art. 1.187, 1) ou da intimação do cumpra-se e os cinco dias para o compromisso. A priori, responsável é, porque a missão que lhe deu o artigo 1.189, excelente novidade do Código de 1973, é indiscutivel, pois que se diz, claramente, que tal incumbência é” enquanto não for julgada a especialização”. Assim, se o juiz não dispensou o tutor ou curador da especialização dos seus bens para a garantia (hipoteca legal), o órgão do Ministério Público exerce a administração dos bens do tutelado ou interdito (art. 1.189), tendo de, nomeado o tutor ou curador, promover a especialização dos bens e, se não a advém, requerer a remoção. A sentença, de interdição, que produz efeitos desde logo, embora sujeita a apelação, contém a nomeação do curador, de modo que não se pode pensar, aí, em agravo de instrumento. De nomeação de tutor também não, porque, a ação foi para a própria nomeação. A nomeação pode ter constado de testamento ou de qualquer outro documento autêntico (Código Civil, art. 407, parágrafo único). Na falta, há a ordem estabelecida pelo art. 409, 1-111: o avô paterno, depois o avô materno, ou, na falta deles, a avó paterna, ou a avó materna; algum irmão, preferindo-se os bilaterais ao unilateral, o de sexo masculino ao de sexo feminino, o mais velho ao mais moço; o tio, sendo preferido o de sexo masculino ao de sexo feminino, o mais velho ao mais moço. Na falta de tutor testamentário ou legítimo, ou quando esses forem excluídos ou escusados da tutela, ou quando removido por não

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idôneo o tutor legítimo ou testamentário, cabe ao juiz nomear o tutor idôneo e residente no domicílio do menor (art. 409). O art. 413 fala de quem não pode ser tutor e dos que têm de ser exonerados. Se o tutor ou curador é de reconhecida idoneidade, há exceção, para cujo atendimento há de haver alegação e prova. Não basta a simples opinião do juiz, principalmente se, em vez de apenas admitir a entrada em exercício, prestando depois a garantia, a dispensa desde logo. Em princípio, o tutor ou curador tem de requerer a especialização da hipoteca legal. Se o não faz, pois que houve o prazo legal para o requerimento, fase em que o órgão do Ministério Público assume a responsabilidade, a nomeação fica ineficaz, salvo se ocorre uma das duas espécies previstas no Código de 1973, art. 1.190 (entrada em exercício antes da prestação da garantia, dispensa da garantia). O juiz, a propósito, assume dever de exame da situação e deve proferir despacho fundamentado. Não há arbítrio do juiz em apenas dizer que a pessoa nomeada tutor ou curador é pessoa de “reconhecida idoneidade”. Pode mesmo ocorrer que algum interessado impugne a atitude do juiz, por ser sem fundamento o seu despacho de dispensa, ou mesmo de adiamento da prestação da garantia. “Idoneidade reconhecida” é a idoneidade que o público ou o meio social reconhece, e não a idoneidade que só o juiz reconhece. Se o tutor ou curador é de reconhecida idoneidade, pode o juiz admitir que entre em exercício, tendo, depois, de prestar a garantia, ou dispensando-a desde logo. Se o juiz não admite uma das duas soluções, a nomeação passa a ser ineficaz. Se entrou em exercício, devendo prestar depois a garantia e não a presta no prazo marcado, não se trata de nomeação que fica sem efeito, mas sim de remoção. É um dos casos em que incumbe do órgão do Ministério Público ou a quem tenha interesse legítimo requerer a remoção do tutor ou do curador. § 9. Ações de remoção 1. Eficácia sentencia!. As ações pelas quais se pede a remoção dos tutores ou curadores são constitutivas negativas, quer se trate de tutores ou curadores legitímos, testamentários ou dativos (a diferença foi exaurida ao se nomear; depois, todos os tutores e curadores são iguais e subordinados aos mesmos deveres e com os mesmos direitos). A remoção de causa acidental, como a moléstia grave, é de carga condenatória menor. A remoção do tutor ou do curador é conteúdo de resolução judicial constitutiva negativa, ainda se por incapacidade superveniente, caso em que a eficácia (força) da sentença constitutiva negativa é ex tunc. O elemento condenatório é menor ou maior, conforme se trata de remoção simples ou de destituição propriamente dita. 2.Remoção e suspensão. Remover é retirar da função, mover para fora. A função não cessou: continua, mas deixou de estar ligada a quem dela foi removido. Sob o Código de 1973 há suposição de que em alguns casos se haja fixado prazo para a função, razão por que se inseriu no texto da Seção II o art. 1.198, que não existia no direito anterior. A remoção não se refere a ter terminado a tutela ou a curatela em relação ao tutor ou ao curador e ao menor (capacidade superveniente do menor), cair o menor sob o pátrio poder, nem à escusa, nem à expiração do termo em que era obrigado a servir. Diz respeito à incapacidade para ser tutor ou curador, sobrevinda, ou descoberta, e à prevaricação ou negligência (Código Civil, art. 413). O processo a que se referem os arts. 1. 194-1.197 do Código de Processo Civil é o processo da remoção de tutores ou curadores. O juiz pode a) fazer intimar o tutor ou o curador e não o suspender, desde logo, das funções concernentes aos bens, ou b) suspendê-lo desde logo, antes de qualquer intimação, ou e) fazer intimá-lo e suspendê-Lo desde logo. Ocorrendo a), pode dar-se que nunca seja decretada a suspensão. O procedimento de suspensão é de oficio, ou mediante provocação do órgão do Ministério Público, ou de quem tenha legitimo interesse. De qualquer pessoa, que represente ao juiz, deve ser aceita a representação como informação ao juiz e começo de prova testemunhal, ou arrolamento como testemunha. A atendibilidade depende do juiz, que ai dirige a prova e a pode provocar de modo inquisitivo, além dos poderes dos arts. 130 e 131 do Código de 1973. A remoção mesma também pode ser pedida pelos parentes ou por pessoa que

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tenha legítimo interesse. Essa remoção do tutor ou do curador tem de ser com fundamento na lei civil. O Código de Processo Civil, no art. 1.194, remete, explicitamente, à lei civil, mas apenas em se tratando de remoção pedida pelo órgão do Ministério Público e por pessoa que tenha interesse legitimo. Se é o juiz que decreta a remoção, o fundamento pode ser algum dos que constam da lei civil, ou como a solução que reputa mais conveniente e oportuna. O Código Civil, art. 445, amplamente aponta as razões para a remoção: ‘Será destituído o tutor, quando negligente, prevaricador ou incurso em incapacidade.’ Pode ter ocorrido ou sido descoberto alguma das causas para não se ser nomeado tutor ou curador (Código Civil, art. 413). Por vezes, diante de regra jurídica de direito material, pode o juiz atender ao que ocorreu e, em vez de remover o tutor ou curador, dar importânçia à sua atitude, no interesse do tutelado ou curatelado. Para pagar dividas, por exemplo, precisa o tutor ou curador de autorização do juiz, mas aconteceu que a conta só chegou (e. g., nota promissória incluída no passivo da herança em que foi herdeiro ou legatário o menor ou o interdito) no dia antecedente ou no dia do vencimento e não havia tempo para requerer a autorização judicial. São legitimados ao pedido de remoção dos tutores ou cura-dores o órgão do Ministério Público e quem quer que tenha interesse legitimo. Por exemplo: o tutor ou curador está praticando atos que podem expor o patrimônio do tutelado ou do curatelado a prejuízos e tais prejuízos podem atingir credores ou prováveis sucessores dc curatelado. O tutor ou curador, tem de responder à arguição em cinco dias. Tal resposta é contestação (Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 10 de janeiro de 1947, J 29/80). Tendo havido contestação, há de o juiz designar dia para a audiência, se houver prova a ser nela produzida, sem ser preciso qualquer ato dele para que os autos Lhe subam. E dever do escrivão. O art. 1.196 do Código de 1973 diz que, findo o prazo, tem-se de observar o art. 803. Portanto, se não houve contestação, presume-se que o tutor ou curador considerou verdadeiros os fatos alegados pelo ôrgão do Ministério Público, ou quem tem interesse legitimo, e o juiz há de decidir dentro de cinco dias. O art. 803, a que remete o art. 1.196, é relativo às medidas cautelares, razão por que teria sido mais acertado dizer, aqui, o que ali se disse. No Código de 1939, art. 605, estava explícito: “A sentença que remover o tutor, ou curador, nomeará outro”. Devemos seguir o mesmo rumo. Mas pode ser que o juiz, com a urgência da remoção, ainda não tenha escolhido o substituto, espécie em que “em caso de extrema gravidade”, pode o juiz nomear tutor ou curador interino. Quanto à suspensão, o Código de 1973, no art. 1.197, supõe extrema gravidade para que se suspenda das funções o tutor ou o curador, com nomeação de substituto interino. Um dos supostos é que seria tardio o julgamento da medida de remoção, razão por que se permite que haja a suspensão. Outro, a gravidade extrema do caso. A gravidade extrema do caso pode consistir, por exemplo, em ter o juiz recebido informe de infração do tutor ou do curador e não haver tempo para a apuração da verdade e a remoção do tutor ou do curador. Nos casos do art. 1.197, o procedimento para a remoção é o dos arts. 1.194-1.196. O art. 1.197 apenas concerne ao exercício pelo tutor ou pelo curador, com a substituição interina. Adianta-se eficácia, posto que condicionalmente. A suspensão tem efeitos dependentes do alcance efetivo do despacho do juiz, no caso do art. 1.197. Normalmente, desde a intimação; às vezes, desde que tenha o juiz conseguido impedir o ato ou suprir a omissão do tutor ou curador suspenso, e. g., telefonando ou telegrafando ao colégio ou asilo em que se acha o tutelado ou curatelado, ou a quem esteja em trato com o tutor ou com o curador. Em certos casos, é conveniente ordenar notificações ou intimações a terceiros, ainda que antes da intimação do tutor, ou curador. O ato judicial de suspensão é suscetível da apelação. Removido o tutor ou curador, tem o órgão do Ministério Público de exercer a incumbência de reger a pessoa do

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incapaz e administrar-lhe os bens, até que, transita em julgado a decisão de remoção, seja nomeado o substituto, sem que se afaste, invocando-se analogia, a nomeação de substituto interino. Não se estabeleceu no Código de 1973 a nomeação de outro tutor ou curador na mesma decisão que remove (antes, sim, com o art. 605 do Código de 1939 e alguns Códigos estaduais). As funções de tutor ou de curador podem ser sujeitas a determinado termo, ou não no serem. Se havia o prazo e expirou, mas o tutor ou o curador não requereu a exoneração, passados dez dias seguintes à expiração, tem-se como aceita a recondução, mas, ainda assim, pode o juiz, se entender que é acertado, dispensar o tutor ou curador que fora omisso. Mesmo se houve a recondução e o tutor ou curador não foi dispensado, nada obsta a que ocorra remoção, com ou sem a suspensão. 3. Escusa. A tutela e a curatela, sendo múnus, o tutor e o curador têm de servir enquanto dele não são dispensados, quer dizer —enquanto o juiz não admite a recusa ou demissão (excusatio voluntaria). Aliás, o art. 1.192 do Código de Processo Civil, fixando o prazo de cinco dias, derroga a regra jurídica dos dez dias, conforme estava no Código Civil, no Código de 1939, art. 603, e no direito anterior ao Código Civil, congloba a escusa antes do compromisso e a escusa depois do compromisso, que supõe superveniência do motivo escusatório. A preclusão é presunção iuris et de iure da renúncia à escusa (nosso Direito de Família, IA ed., 390; 3ª ed., III, 319 s.). A petição de escusa (recusa) é exercício de pretensão de direito material; e a ação, indiferentemente processada em apenso, ou nao, tem natureza constitutiva negativa. Diz o Código Civil, art. 417. “Se o juiz não admitir a escusa, exercerá o nomeado a tutela, enquanto o recurso interposto não tiver provimento, e responderá desde logo pelas perdas e danos, que o menor venha a sofrer”. Só se pode entender, hoje, quanto à escusa posterior à investidura, porque, se ainda não foi assumido o cargo, o órgão do Ministério Público é que representa ou assiste a pessoa tutelada ou curatelada e lhe administra os bens. O prazo é contado a partir da intimação para prestar compromisso, ou, se já houve a entrada em exercício, do dia em que acontece o motivo para a escusa. No Código de 1973, o art. 1.192 concerne à escusa, não à incapacidade para ser tutor ou curador (excusatio necessaria), que se aprecia por ocasião da nomeação, ou que sobrevém. Também não se alude no art. 1.193 (antes, no Código de 1939, art: 603, parágrafo único), à cessação da tutela, por ter expirado o prazo para o dever de servir (Código Civil, art. 444), nem à remoção. O direito à escusa tem de ser exercido no prazo de cinco dias. Se não foi exercido, precluiu. O “reputar-se-á renunciado o direito de alegá-la” não é regra jurídica de presunção, mas sim de preclusão. Outro motivo pode sobrevir, mas, aí, nasce outro direito de alegação. O juiz decide de plano, isto é, prontamente, o pedido de escusa. Se não a admite, não tendo ainda assumido o cargo o nomeado, o órgão do Ministério Público é que exerce a tutela ou a curatela. Se o nomeado já havia entrado em exercício, continuará na função até que transite em julgado sentença que o dispense. Supõe-se ter havido a apelação. O Código Civil, art. 414, diz que “podem escusar-se da tutela: 1. As mulheres. II. Os maiores de sessenta anos. III. Os que tiverem em seu poder mais de cinco filhos. IV. Os impossibilitados por enfermidade. V. Os que habitarem longe do lugar, onde se haja de exercer a tutela. VI. Os que já exerceram tutela, ou curatela. VII. Os militares, em serviço”. O art. 1.193 refere-se a que o juiz “decidirá de plano o pedido de escusa”, isto é, de imediato, prontamente, de modo que o art. 414 do Código Civil não foi atingido e continua como direito imperativo. Nem o art. 1.109 do Código de 1973 permite que o juiz afaste o texto do direito material. A escusa antes da aceitação do encargo (no prazo de cinco dias a contar da intimação) tem de ser julgada e a decisão da nomeação do curador é elemento inserto na sentença de interdição, aí apelável com os dois efeitos, devolutivo e suspensivo, bem como a decisão na nomeação do tutor, é sentença na ação de tutela, em que o conteúdo é só esse, Aí, portanto, o recurso é o de apelação. Diante do art. 1.193, que se choca com o art. 1.189, o que havemos de entender é que o art. 1.193 somente se refere ao art. 1.192, II (“depois de entrar em exercício, do

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dia em que sobrevier o motivo da escusa”). Se já entrou em exercício o tutor ou curador, ao órgào do Ministério Público éque incumbe reger a pessoa do incapaz e administrar-lhe os bens. Enquanto pende o julgamento do recurso, pode acontecer que outro motivo surja para a escusa. Há novo exame e nova decisão. Se transita em julgado o que favoravelmente se decidiu em recurso concernente ao primeiro motivo, tollitur quoestio: não há mais razão para o procedimento relativo ao novo motivo. Se foi desfavorável a decisão, aguarda-se o que se liga ao novo motivo.

Capítulo IV Ação de curadoria de ausentes § 10. Bens de ausentes 1. Conceito de ausência. O conceito de ausência de ordinário se refere ao domicílio da pessoa — é a negativa da presença, no lugar em que é ela domiciliada, mais a falta de noticias. (Excepcionalmente, pode dar-se que faltem noticias, posto que a pessoa se ache no lugar, e. g., falta de notícias mais falta de identificação). O conceito de ausência pode ser mais largo: dispensa a falta de noticias; é negativa de presença, somente. O ausente, que se cita por precatória, não é ausente no sentido de que aqui falamos, e no direito civil, a respeito de curadoria de ausentes. No mesmo sentido, há, porém, casos em que o domicílio não é o ponto de referência. Dai termos dito que, de ordinário, o conceito de ausência alude a ele. Então, para que se fixe o conceito e se mantenha o de domicilio, ou se corrige aquele ou esse. Pela palavra “domicílio”, dizíamos em 1917 (Direito de Família, V ed., 454), deve entender-se o lugar onde a pessoa possui bens; porque a curatela do ausente é cura rei, e não cura personae. Cf. M. A. Coelho da Rocha (Instituições, 1, 269) e nosso Tratado de Direito de Família (3e ed., IlI 330 s.). Cf. Tratado de Direito Privado, IX, §§ 1.050-1.058. 2. Ações relativas á ausência e sua natureza. A ação dita declarativa de ausência é constitutiva, e não declarativa; tal como a ação de interdição. Os juristas costumam põ-la entre as ações declarativas, porque a eficácia da sentença cessa com o comparecimento do ausente, ou com a certeza da morte do que estava ausente. Não basta isso para classificá-la, com rigor, de ciência. Que a sentença que nela se profere não é como as sentenças com fundamento na equidade, não há dúvida; nem há dúvida em que se trata de sentença com reserva (condição reso-lutiva); tanto que a chamada “declaração de morte” do direito alemão, não no sendo, fica de pé, enquanto não passa em julgado a sentença na ação de nulidade. A sentença, na ação alemã, é declarativa; a sentença, na ação brasileira, não o é. O que levou ao erro os juristas foi exatamente o falar-se, no direito material, de “declaração de ausência”. A palavra influiu no ato de classificação, que desprezou (ou negligenciou) o exame do conteúdo dela. Se a lei se refere á “sentença declaratória da ausência”; mas claro é que não se empregou o adjetivo no sentido técnico da classificação quinária das sentenças. Se comparamos a ação de bens de ausentes com a de arrecadação de bens de defunto e julgamento de vacância, temos: (A) a ação de arrecadação e julgamento de vacância tem de comum com a ação de bens de ausente, a) o terem ambas, na primeira fase, a medida cautelar da arrecadação, 1,) haver, em ambas, quanto à entrega dos bens, sentença com reserva, c) a resolução da cognição provocada pela aparição dos donos dos bens; (B) a ação de arrecadação e julgamento de ausência possui, a mais, a) o elemento lógico e sentencial sobre estado de pessoa (a ausência), em vez de se restringir a julgamentos sobre os bens e a sua pertinência a alguém, 14 duas, em vez de uma sentença de cognição incompleta, isto é, com reserva (sucessão provisória; sucessão definitiva, aliás também provisória). A sentença na ação de arrecadação e julgamento de vacância é mandamental. A sentença na ação de bens de ausentes contém duas sentenças — uma, sobre status (a ausência) e éconstitutiva, outra, sobre os bens, que é a de entrega provisória, ou, melhor, em virtude de sentença com reserva. A última émandamental. Cessando a ausência, cessa a presunção de morte; cessando a presunção de morte, cessa a sucessão que nela se fundou.

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A ação de que cogitamos, a do art. 1.159 do Código de Processo Civil de 1973, é ação arrecadativa. A decisão sobre status é inclusa, como questão prévia, na decisão mandamental. Tal ação é inseparável da questão prévia, mas a questão prévia pode ser concebida como questão separada, correspondendo-lhe a ação de decretação de ausência, como ação constitutiva. Funda-se no art. 52, IV, do Código Civil. O rito tem de ser, não o especial dos arts. 1.177-1.193 do Código de Processo Civil de 1973, mas o ordinário, nomeado, ad instar do que se fez nas interdições, curador. O ausente pode não ter deixado bens e ter-se-lhe de declarar a ausência e nomear curador (ação constitutiva declarativa), ou só declarar-lhe a ausência (ação declarativa, que aparece inclusa em todas as questões em que se declare ausência sem se nomear curador, e. g., na espécie em que se dão ao cônjuge os poderes por estar o outro em lugar remoto ou não sabido). A ação constitutiva declarativa tem de ser proposta no foro do domicilio do ausente, ou, na falta de domicílio, no da última residência (Tribunal de Justiça de São Paulo, 3 de fevereiro de 1948, RT 173/423). Sob o Código de 1973, temos de precisar as regras jurídicas sobre competência, em se tratando de bens de ausentes. O foro do último domicilio é o competente para a arrecadação (arts. 1.159 e 97). Se o ausente não tinha domicílio certo, competente é o da situação dos bens (art. 96, parágrafo único, 1). Mas a ação arrecadativa também pode ser proposta no lugar da situação dos bens arrecadáveis. § 11. Arrecadação dos bens de ausentes 1. Desaparecimento de alguém. Desaparecendo alguém do seu domicílio, sem deixar representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz fará a respectiva arrecadação. Igualmente procederá, quando o ausente deixar mandatário que não queira ou não possa exercer o mandato. Lugar em que se acham os bens — tal o conceito de domicilio, em casos de arrecadação de bens de ausentes. O quinhão hereditário do herdeiro ausente ou o legado (ou benefício) do legatário (ou beneficiado modal) ausente arrecada-se como bem de ausente, e não como bem de defunto. A nomeação de curador é no próprio inventário, até que se dê a arrecadação. Sendo estrangeiro, a comunicação à autoridade consular não se dá, salvo se sobrevém a morte. A ausência de pessoa pode ser danosa para ela e para outras pessoas, inclusive para o Estado. Daí a regra jurídica do Código Civil, art. 5ª, IV, onde se diz que são absolutamente incapazes, ao lado dos menores de dezesseis anos, dos loucos de todo o gênero e dos surdos-mudos que não puderem exprimir a sua vontade, os ausentes declarados tais por ato do juiz. O elemento declarativo, apesar de referir-se ao tempo em que se iniciou a ausência, nada mais poderia produzir que a declaração; daí, só o elemento constitutivo, que é a força sentencia!, criar a incapacidade. Diante de tal situação, tinha o Estado de estabelecer a tutela jurídica. No Código Civil, art. 463, apenas se fala do requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público. Sob o Código de 1973, o art. 1.159, depois de referir-se ao desaparecimento, sem deixar representante a quem caiba administrar-lhe os bens, ou, se o deixa, não quer ele exercer o mandato ou continuar no exercício, declarar-se-á a sua ausência. Além disso, há o art. 1.160, que remete ao Capítulo antecedente, onde o artigo 1.142 estabelece dever do juiz (o juiz procederá sem perda de tempo à arrecadação de todos os seus bens). 2. Pressupostos da arrecadação. Os pressupostos são os seguintes: a) haver bens na jurisdição do juiz; b) não se ter notícia do proprietário ou possuidor; c) não ter deixado procurador para administrar esses bens, ou, se o deixou, não querer ou não poder exercer a procuração (evitamos falar de mandato, porque a procura abrange outros negócios jurídicos). Quanto à letra b), observe-se que, se o ausente partira em navio, ou avião, de que não se tem notícia, a arrecadação é regida pelas regras jurídicas de que estamos a falar, e não pelas regras jurídicas sobre bens de defunto. Mas o Decreto nº 2.433, de 15 de junho de 1859, depois de aludir à Ordenação do Livro 1, título 62, §

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38, acrescentará, na alínea 2ª do art. 47, inciso 1ª: “Os Juizes de Orfãos, quando tiverem de julgar as habilitações dos herdeiros do ausente, atenderão sempre aos motivos da ausência e às causas que obstam à falta de notícias, embora tenha decorrido qualquer dos referidos prazos’. Daí ter-se insinuado, na prática, que, no caso do navio desaparecido, se havia de admitir que os herdeiros presuntivos recebessem os bens sob fiança. Não se deve acolher essa exceção. Ou se faz prova da morte, segundo os princípios de prova quando não há a comunicação normal, ou não se faz, e o caso é de arrecadação de bens de ausente, e não de arrecadação de bens de defunto. Ocorrendo que se saiba que o navio naufragou, ou o avião caiu, e tudo indique que nenhum se salvou, ou que não se salvou a pessoa cujos bens estão na situação do art. 1.159 do Código de Processo Civil, então tem o juiz de proceder à arrecadação. Os bens podem ser de pessoa que se ausentou, ou bens cuja propriedade se passou a pessoa já ausente.

Capítulo V

Ação para alienação, arrendamento ou oneração de bens dotais § 12. Precisões 1. Bens dotais. Dote é a porção de bens que o cônjuge, ou alguém por ele, transfere ao outro, a fim de contribuir com os frutos e rendimentos para os encargos do casamento, com a cláusula de restituição ao se dissolver a sociedade conjugal. E incomunicável, ainda que se dê a transferência do domínio —figura jurídica especialíssima, que examinamos no livro Direito de Família (1ª ed., 201 s., 205-208; 3ª ed., II) e no Tratado de Direito Privado, Tomo VIII. Não se procura, com o dote, garantir a subsistência dos filhos, mas apenas subsidiar, na constância do matrimônio, a obrigação conjugal de prover a mantença do lar (Álvaro Valasco, Praxis Partitionum, 141). Concerne, pois, à sociedade conjugal, e não ao vinculo. Ainda que esse persista, deve o dote ser restituido, qualquer que seja a causa da dissolução da sociedade conjugal: morte de um dos cônjuges, divórcio, nulidade ou anulação do casamento, separação consensual ou separação judicial. No pacto antenupcial pode ser incluída cláusula que limite ou amplie os direitos do cônjuge quanto à alienação e quanto ao gravame dos bens dotais. Na falta de cláusula expressa, presume-se transferido ao cônjuge o dominio dos bens dotais móveis e não transferido o domínio dos bens dotais imóveis. Os imóveis, em princípio, não podem ser alienados; de modo que só a expressa exceção no pacto antenupcial os faz transferíveis ao domínio do cônjuge. Quando os bens dotais, imóveis ou móveis, são inalienáveis, cedas circunstâncias e a necessidade de certos fins podem permitir que se alienem, dependendo a alienação, em tais casos excepcionais, de ser autorizada pelo juiz e em hasta pública. Os sete casos legais são os seguintes: a) se, de acordo, mulher e marido quiserem dotar as filhas comuns; b) havendo extrema necessidade, por faltarem outros recursos para a subsistência da família, fundando essa exceção na obrigação conjugal de alimentar a família; c) para pagamento de dividas do cônjuge, anteriores ao casamento, se o dote foi constituído pelo cônjuge, quando não houver ou não bastarem os seus bens extradotais e os móveis que por ele ou por outrem foram constituidos em dote; d) para reparos indispensáveis à conservação de outro imóvel ou imóveis dotais donde se conclui que não podem ser alienados ou onerados para a conservação de bens móveis, nem para o conserto e reparação de bens extradotais, quaisquer que sejam; e) quando se acharem indivisos com terceiros, e a divisão for impossível ou prejudicial, mas, nessa hipótese, o preço deve ser aplicado em outros bens, em que ficarão sub-rogados, e tais bens recém-adquiridos, ou do cônjuge, quer sejam móveis quer imóveis, ficam, como os anteriores, sujeitos a inalienabilidade; 1) havendo desapropriação, por utilidade pública, em que se terá, igualmente, de empregar o preço em outros bens, que se sub-roguem aos antigos para todos os efeitos; g) quando estiverem em lugar distante do domicilio conjugal, e for manifesta a conveniência de aliená-los, devendo-se, como nos dois casos anteriores, substituir por outros, que entrarão no dote com sub-rogação. 2. Responsabilidade pela alienação, arrendamento e pela gravação. O cônjuge responde pela alienação: a) se a fez fora dos casos acima referidos; b) se usou de simulação, invocando alguma daquelas exceções; c) se deixar de empregar o preço. O juiz tem, se composto o suporte fático, responsabilidade subsidiária (Código de Processo Civil, art. 133, 1 e II).

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O que se disse sobre a alienação, arrendamento ou oneração dos imóveis dotais vale sobre a alienação, arrendamento ou oneração dos móveis dotais; e não vale para os imóveis que o pacto antenupcial exclui da intransferibilidade. 3. Bens dotaís, venda, arrendamento e oneraçâo. Para vender, arrendar ou gravar bens dotais, o interessado pede autorização judicial, justificando desde logo o pedido. Entenda-se: bens dotais inalienáveis. As apólices da divida pública que foram deixadas em dote, sem expressa declaração de serem inalienáveis, ou sem se excluir a transferência ao cônjuge, presumem-se transferidas. Fora daí, são inalienáveis e imóveis. A cláusula de não-transferência contém a de inalienabilidade, porém só no caso excepcional do pacto dotal. § 13. Procedimento 1. Legitimação ativa. O interessado é o marido, ou a mulher, ou, no caso de desapropriação, qualquer dos dois ou o poder público desapropriante. No caso de dividas da mulher, ou do marido, anteriores ao casamento, se o dote foi constituído por ela, ou por ele, qualquer deles ou credor. 2. Autorização judicial. A autorização judicial é indispensável em qualquer dos casos referidos, previstos no direito material (Código Civil, art. 293, 1 a VII). Não são mais as mesmas a responsabilidade do marido, que requereu a venda, e a do juiz que a permitiu, porquanto este só responderá por perdas e danos quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude, ou recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte (Código de Processo Civil, art. 133, 1 e II). Serão citados, sob cominação de nulidade, todos os interessados e o órgão do Ministério Público (Código de Processo Civil, art. 1105). Se não há dúvida quanto a ser de deferir-se o pedido de autorização, quer se trate de alienação, arrendamento ou de oneração ou gravame, o juiz pode ordenar as providências necessárias, inclusive as de avaliação, e decidir no prazo de dez dias sem observar o critério de legalidade estrita (e g., Código Civil, art. 294), podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna (Código de Processo Civil art. 1.109). 3. Natureza das ações. As ações são constitutivas integratívas; bem assim, as sentenças favoráveis; se desfavoráveis, declaratórias negativas.

Capítulo VI Ação de habilitação para casamento § 14. Preliminares 1.Habilitação, ato preparatório do casamento. O periodo de preparação do casamento vai da habilitação à celebração, exclusive; mas a celebração mesma não torna existente o casamento: a situação é semelhante à de quem adquire, por escritura pública, uma casa, e não a faz registrar no registro de imóveis; outro, que a adquiriu antes, ao mesmo tempo, ou depois, pode registrar a sua, e o direito real daquele adquirente nunca terá sido. A existência civil de um casamento depende do registro, posto que, por força da natureza do ato, sejam retroativos os efeitos do registro, matéria que terá de ser examinada.

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2. Natureza da ação. A habilitação para casamento é ação constitutiva de prova, com forte dose de declaratividade. Faz-se perante o oficial do registro civil, salvo se houver oposição de impedimento (cognição pelo juiz). Há recurso. No Código de 1939, havia os arts. 742-745, a que se refere o art. 1.218, IX, do Código de 1973. Adveio a Lei n0

6.015, de 31 de dezembro de 1973, com os arts. 67-76. 3.Casamento religioso. Posto que tudo aconselhasse a perfeita uniformidade entre o processo preparatório do casamento para a celebração civil e a preparação formal do casamento para se efetuar a celebração religiosa, não foi isso seguido de começo, o que nos obrigou, àquele tempo, a destinar Capitulo especial ao casamento religioso, na sua fase de preparação, de celebração e de registro. Na Lei nº 1.110, de 23 de maio de 1950, houve a habilitação prévia perante o oficial do registro público, ou a posterior, também perante ele. A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, dedicou os arts. 71-75 ao registro do casamento religioso para efeitos civis. § 15. Habilitação para o casamento civil 1. Habilitação para o casamento civil. A habilitação para o casamento faz-se perante o oficial do registro civil, apresentando-se os documentos que a lei exige: a) certidão de idade ou prova equivalente; b) declaração do estado, do domicilio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; c) autorização das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra; d) declaração de duas testemunhas maiores, parentes, ou estranhos, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento, que os iniba de casar; e) certidão de óbito do cônjuge falecido, da anulação do casamento anterior, ou do registro da sentença de divórcio. Se algum dos contraentes residiu a maior parte do último ano em outro Estado, tem de apresentar prova de que o deixou sem impedimento para casar, ou de que cessou o existente. Entenda-se o mesmo se residiu em Estado estrangeiro. 2. Certidão de idade ou prova equivalente. Qual a certidão de idade que os esposos devem apresentar? Qual a prova equivalente, a que, na falta da certidão, poderão recorrer os nubentes? Não se fez tábua rasa de todo o direito civil anterior, no que ele tem de compatível com os princípios da nova lei. Os últimos estudos tendentes a perfeita investigação metodológica do direito firmaram, como critério essencial, a rejeição de qualquer teoria que considere a lei escrita e imposta como o único direito positivo em vigor. Assim, continuaram eficazes (como as certidões de registro civil as certidões extraídas dos livros eclesiásticos de registro de nascimento, casamento e óbito, quando relativos a fatos ocorridos antes de instituir-se, na República, o registro civil. Trata-se de matéria de direito material, porque o é, incontestavelmente, tudo que concerne à admissibilidade e à virtus probandi de atos ou documentos, constituindo matéria de direito processual apenas o modo de se produzirem tais provas. Dizia o Decreto nº 773, de 20 de setembro de 1890, art. 1º, que a prova de idade, na falta ou impossibilidade de apresentação do registro civil ou certidão de batismo, podia ser suprida por alguns dos seguintes meios: a) justificação, pelo depoimento de duas testemunhas, perante juiz; b) titulo ou certidão com que se prove a nomeação, posse ou exercício, em qualquer tempo, de cargo público, para o qual exija a lei maioridade, ou de ma-trícula, qualificação ou assento oficial de que conste a idade; o) atestado dos pais ou tutores, não havendo contestação; d) qualquer documento que em direito comum seja aceito por valioso para substituir a certidão de idade; e) atestado de qualquer autoridade que em razão do ofício tenha perfeito conhecimento da pessoa, não estando esta sob poder ou administração de outra; 1) exame de peritos nomeados pelo juiz competente para conhecer da capacidade dos pretendentes. De acordo com seu art. 2ª, o processo de justificação da idade dos nubentes era sumariíssimo, dispensando-se todos os termos que não forem rigorosamente essenciais e a citação das testemunhas que espontaneamente comparecerem. Se ambos os nubentes a requeressem perante o mesmo juiz, corria a justificação em um só processo.

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A interpretação, que déramos na 1ª edição do Direito de Família (1917), sobre continuar em vigor o Decreto nº 773, de 20 de setembro de 1890, depois de algumas vacilações da doutrina, foi adotada, definitivamente, pela jurisprudência (6ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 1ª de outubro de 1931, AJ 21/154). Clovis Bevilacqua (Código Civil comentado, 4ª ed., II, 8) disse: “A verdadeira doutrina foi estabelecida por PONTES DE MIRANDA, Direito de Família, § 24, que encontra apoio na razão e no art. 143 do Código Civil”. No mesmo sentido, J. M. de Carvalho Santos (Código Civil brasileiro interpretado, IV, 23 s.). A certidão mesma, se o nascimento foi antes do registro civil (1ª de janeiro de 1889), era a dos assentos eclesiásticos, chamada certidão de batismo; se posterior, a do registro civil de nascimento. Na habilitação para o casamento entre contraentes nascidos na vigência da Lei do Registro Civil, quando a prova de idade não for feita com a certidão do nascimento, e sim por meio de justificação, determinará o juiz de casamentos: a) que seja lavrado o termo de nascimento de acordo com a justificação e na forma do texto da lei de registros no cartório em que se estiver processando a habilitação; b) que a justificação se processe, independentemente de outras formalidades, nos próprios autos da habilitação; c) que seja junta aos autos de habilitação a certidão desse registro. Estatula o Código de 1939, art. 743, que as justificações requeridas tinham de ser feitas com a ciência do órgão do Ministério Público e julgadas pelo juiz. O órgão do Ministério Público acompanhava os processos de habilitação e requeria o que fosse conveniente à sua regularidade. A matéria, hoje, é regrada pela Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 68, §§ 1ª e 2ª. 3. Declaração do estado, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos. Estado civil, domicilio e residência são conceitos de direito civil, que não precisam de ser lembrados. Na expressão “estado” compreendese toda situação jurídica estabelecedora de status de direito de família, segundo a lei regedora do status de cada um dos nubentes. Se se trata de domiciliado no Brasil, basta que diga ser menor, ou maior, solteiro, viúvo ou divorciado. O separado judicialmente não pode casar. Se um dos cônjuges esteve ligado por casamento nulo, ou anulável, é de mister declarar ser solteiro, por se já haver pronunciado a nulidade, ou a anulação, do casamento, em sentença passada em julgado e devidamente anotada no registro civil. Quando domiciliado alhures, ou, em geral, subordinado à lei estrangeira, o nubente dirá que é menor, maior, solteiro, ou viúvo, ou, se a sua lei permite o divórcio, divorciado. As expressões “domicílio” e “residência atual”, quer em relação aos contraentes, quer em relação aos pais, são, em quaisquer casos, conceitos de direito brasileiro. O domicilio e a residência atual dos pais somente são de mister quando conhecidos, isto é, quando, conhecidos os pais, se lhes conhecer o domicílio, ou a residência. Não se exige, aí, nenhuma prova do estado civil, nem do domicílio. Satisfaz a simples declaração. Na habilitação para casamento, os interessados apresentam atestado de residência, firmado pela autoridade policial, se o exige o órgão do Ministério Público. 4. Assentimento das pessoas sob cuja dependência estiverem, ou ato judicial, que o supra. O assentimento deve constar, desde logo, dos papéis da habilitação. A necessidade do assentimento dos pais, ou tutores, ou curadores, é determinada pela lei que rege a capacidade do nubente. E sempre a lei brasileira quando se trata de juiz ou escrivão e seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, que pretendam casar-se com órfá, ou viúva, da circunscrição territorial onde um ou outro tiver exercicio, casos em que é preciso licença especial da autoridade judicial superior. De ordinário, as leis de direito administrativo, que exigem aos militares e a certos funcionários permissão da autoridade superior para o casamento, nada têm com o direito civil, de modo que, se outra coisa não estatuem, o oficial do registro civil não tem poder para exigir na habilitação para casamento a permissão de que se trata. 5. Declaração de duas testemunhas. A declaração de duas testemunhas, maiores (a maioridade, aí, é sempre regida pela lei brasileira, porque se trata de capacidade para testemunhar), parentes, ou estranhos, que atestem conhecer os nubentes e af irmem não existir impedimento, que os iniba de casar, faz-se por escrito, quer particular, quer público, e tem por fim a atestação da identidade e a afirmação da inexistência de impedimento matrimonial, conforme o sabem os declarantes. 6. Prova da inexistência de casamento anterior. E indispensável a certidão de óbito do cônjuge falecido, da

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decretação de nulidade, ou anulação do casamento anterior, ou do registro da sentença de divórcio; pois que o casamento existente, embora nulo, é obstáculo, enquanto se lhe não decreta a nulidade, à convolação de novas núpcias. Aliás, além de tal argumento, há o de que explicitamente se impede o casamento da mulher antes de se passarem trezentos dias, quando o casamento se desfez por invalidade, salvo se, antes de findo esse prazo, der à luz algum filho. A certidão de óbito é a do registro civil, ou, se o óbito ocorreu antes da vigência da lei que estabeleceu o registro civil, a dos assentos eclesiásticos. A prova pela certidão não é insuprível. Seria absurdo impor perpétua viuvez àqueles cujos registros, eclesiásticos ou civis, se perderam, queimaram, ou roubaram. “Já depois de composto este livro” (Direito de Família, 59, 28 s.) escrevíamos em 1917 apareceu o fascículo nº 1 do Tomo V do Manual do Código Civil Brasileiro, cuja primeira parte foi escrita pelo Conselheiro Cãndido de Oliveira. Há nesse trabalho, p. 28 s., afirmativa com a qual não podemos concordar: dizer que a certidão de óbito para habilitação de casamento é insuprível. Seria optar pela in-terpretação absurda, vexatória, arbitrária, desatendendo ao sistema jurídico, que admite o suprimento da prova, nos casos similares (idade; casamento).Não está — portanto — revogado o Aviso do Ministério da Justiça, de 14 de janeiro de 1891, em que o Ministro Campos Saies, em resposta a oficio do Governador do Rio Grande do Sul, afirmava que, na impossibilidade de se conseguir a certidão de óbito de cônjuge falecido, “pode essa ser suprida por justificação, como acontece com a certidão de idade”. Outro argumento em favor do suprimento da certidão de óbito pela prova testemunhal temo-lo em regra jurídica em que se fala de ascendentes como testemunhas em questões em que se trate de verificar o nascimento ou óbito dos filhos (Código Civil, art. 143; similar e mais largamente, Código de Processo Civil, art. 405, §§ 2ª e 4º) 7. Residência alhures. O contraente, se houver residido a maior parte do último ano em outro Estado (basta residência, portanto; não é preciso domicílio), tem de apresentar prova de que o deixou sem impedimento para casar, ou de que cessou o existente. Qual a prova a fazer-se? A mesma que se faria em relação à cessação do impedimento, se ele existia; por exemplo: se estava casado, a prova do óbito do cônjuge falecido. Mas, dada a generalidade, a prova de não haver impedimentos deve versar sobre a inexistência de quaisquer impedimentos legais, e pode consistir em quaisquer meios legítimos de prova, sendo uma delas a declaração de duas pessoas maiores que atestem conhecê-lo, bem como ao outro pretendente, e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar. Tal justificação deve ser feita no lugar em que resida o contraente, ou por pessoas ali residentes na mesma época. O Conselheiro Cândido de Oliveira incidiu em outro engano quando aplicou regra juridica de direito internacional privado aos casos de prova feita nos Estados que compõem a República do Brasil. A admissibilidade das provas é ato decisorium litis, e não ordinatorium: pertencia, portando, à União. O modo de produzir tal justificação rege-se pela lei processual. 8. Prova de sanidade. A lei pode exigir a apresentação pelos nubentes dc provas de sanidade fisica e mental, tendo em atenção à condição regional do país. No plano do direito constitucional, o art. 145 da Constituição de 1934 representou regra jurídica da natureza daquelas a que por vezes nos referimos noutros lugares: prometeu a legislação a propósito de algum assunto. Significou que o legislador constituinte quis que isso entrasse nos programas de política legislativa. No caso do art. 145, teve isso o valor de excluir o que, sob a Constituição de 1891, não raro se afirmou: que seria inconstitucional, que violaria a liberdade individual, que se chocaria com os princípios morais, a exigência de proxas de sanidade física e mental. Entre tais provas está o exame pré-nupcial, em torno do qual, por volta de meio século atrás, tamanha grita se levantou. 9. Justificações requeridas. As justificações requeridas são feitas com a ciência do órgão do Ministério Público e julgadas pelo juiz. O órgão do Ministério Público acompanha os processos de habilitação e requererá o que for conveniente à sua regularidade. Uma das justificações é a que se faz para prova contrária ao impedimento. A justificação contra oposição do impedimento do art. 184, parágrafo único, do Código Civil, faz-se em segredo de justiça. Todas hão de ser feitas com a ciência do órgão do Ministério Público, não necessariamente com a presença. 10.Ministério público. Além de ter ciência das justificações, o órgão do Ministério Público acompanha todo o processo de habilitação.

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Capítulo VII

Ações para pagamento das dívidas da herança § 16. Espécies de ações 1. Solução de dívidas passivas. A palavra “pagamento” está aí no sentido de “solução”. Os credores do monte têm de apresentar-se, se pretendem que o processo do inventário lhes aproveite, ou para receber do inventariante as dívidas, ou para a separação de bens suficientes para as solver. Tal separação evita que se entreguem os quinhões aos herdeiros, sem que fiquem bens que bastem. E a velha reminiscência do benefício de representação. 2. Dívidas liquidas e dívidas ilíquidas. Quaisquer dividas, e não só as liquidas. Há dois procedimentos de solução: a) um, quanto às dividas não impugnadas pelos herdeiros; b) outro, o das dividas impugnadas, mas constantes de documento. O caso das dividas impugnadas e não constantes de documento ficou fora do procedimento judicial da inventariança: nem se separam, nem se reservam bens. § 17, Separação de bens inventariados 1. Separação de bens para solução de dívidas passadas. Antes da partilha, os credores do monte podem requerer ao juiz a solução da dívida. Aí não se está a requerer que se reservem bens para solução futura. Não se confundem as duas espécies, ambas de separação de bens, com a reserva de bens, que supõe guarda provisória para o caso de vencer a ação o beneficiado pela reserva. A separação de bens para solução não é datio in solutum (puseram isso bem claro, em pareceres profissionais de 1858, Caetano Alberto Soares e Urbano Sabino Pessoa de MelIo, juristas do século XIX; na literatura José Pereira de Carvalho, Primeiras linhas, 1, 75). Pela separação, os herdeiros não se “demitem do domínio” (expressão de Manuel de Almeida e Sousa, Ações Sumárias, 1, 225), nem cabe adjudicarem-se ao inventariante, para que pague as dívidas. Antônio de Paiva e Pona falou de apartarem-se bens e “assinarem-se” a algum herdeiro que pagasse as dividas (Orfanologia Prática, 1, 36) e por isso lhe foi arguido “erro crasso” (Manuel de Almeida e Sousa, 1. 226; José Pereira de Carvalho, 1, 74). Manuel de Almeida e Sousa viu nessa separação um transeat. A construção é boa, porque distingue do benefício da separação o fato jurídico da solução. O que requer a separação pode preferir as vias comuns para a cobrança (2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Goiás, 6 de junho de 1944, AJ 59/301). O credor de dívida vencida, exigível (portanto, certa), de regra pede-lhe a solução, e não a separação de bens para essa solução. Se há dinheiro suficiente, tem de ser satisfeito o credor, e não se precisa de separação de outros bens. 2. Tempo em que se há de pedir a separação. O pedido de separação tem de ser feito antes de a partilha ser lançada (não antes de ser julgada, salvo para pagamento das despesas com a partilha lançada); e dirige-se à herança, somente cabendo a credores da herança (“do monte”, conceito mais largo do que o de “credores do falecido”). Não são legitimados os credores do herdeiro: nam licet alicui adiciendo sibi creditorem creditoris sul facere deteriorem condicionem (L. 1, § 2, D., de separationibus, 42, 6). A Fazenda Pública pode ser contra a separação (1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 29 de março de 1943, RT 145/600). 3. Natureza da decisão. A resolução judicial de separação, como a da solução em dinheiro, é constitutiva, integrativa de forma do ato comum, que em verdade é o que determina a separação, ou a solução. A sua eficácia é constitutiva, como a do ato dos “interessados” que separasse, ou solvesse, com a diferença de que, ali, a resolução judicial estataliza a separação, ou a solução. 4. Habilitação e vias comuns. O fato de habilitar-se algum credor no processo de inventário e partilha, para que se

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separem, ou se reservem bens para solução, ou que se solva a divida, não impede que procure a via comum, ainda que não haja desistido do pedido de separação ou de reserva (cf. 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 1º de julho de 1947. AJ 83/248: ‘.. maxima deferida pelo juiz a desistência por ele requerida, com a restituição dos títulos creditórios que o instruem”), ou a solução. 5. Recurso da decisão que defere o pedido. Se o juiz do inventário e partilha defere o pedido de pagamento de divida, que se lhe fez, por vias ordinárias, sendo autor da ação o credor, ou o inventariante, que se apressou em pagar, há julgamento do merito. Alguns acórdãos, a respeito, são lamentáveis (e. g., o do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 11 de junho de 1951, JM V/468, que considerou tais despachos como interlocutórios; o da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a 25 de janeiro de 1949, que entendeu poder o juiz mandar incluir, na falta de acordo dos interessados, as dívidas privilegiadas). O recurso é o de apelação. Quem paga, entrega. 6. Diferentes despesas. As despesas feitas com o tratamento e o enterro do decujo são dívidas do espólio, ou do monte, em caso de comunhão de bens com o cônjuge sobrevivente (7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 19 de dezembro de 1947, OD 56/306, Ai 87/340; 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, 26 de setembro de 1947). O crédito do cônjuge ou do herdeiro, homologado por sentença o pedido, inclui-se nas dívidas atendidas a que se refere a regra jurídica sobre pagamento de dívidas do espólio. Errada-mente, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a 22 de outubro de 1951, falou de inclusão no pagamento da meação do quinhão. As despesas com o mausoléu e outras obras do túmulo do decujo são despesas de tal natureza (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 5 de dezembro de 1950, RT 190/932). 7. Petição de separação. A petição, devidamente instruída, é distribuída por dependência e autuada em apenso aos autos do processo do inventário e apresentada a cada um dos interessados, que, nela mesma, ou em folha apensada, com a ressalva de ligação, concordam com o pedido, ou discordam, sem precisarem dizer porque o fazem. Trata-se de processo para a constituição da separação de bens, no qual não se têm de contestar as afirmações do credor, posto que qualquer dos interessados possa fazê-lo. A determinação do juiz possui apenas o elemento de julgamento necessário à verificação do “ato coletivo”. Aliás, quaL quer dos interessados pode requerer que se deposite em consignação quantia suficiente ao pagamento de alguma dívida; e ouvidos os demais, deve o juiz, diante da concordância, ordená-la. Quando o interessado tem de falar na petição de separação, ou de reserva de bens, ou de pagamento de divida, não articula, não exerce pretensão á tutela jurídica. Apenas tem de assentir, ou não. Ou assente, considerando devido o que se pede, ou não assente. Ali, há comunicação de conhecimento (“é devido”); aqui, comunicação de conhecimento (“já está pago”) e prova de pagamento, ou somente comunicação de conhecimento (“não é devido”). No sentido do que escrevemos na IA edição dos Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, a Seção Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 4 de abril de 1951 (RT 192/ 339), expendeu: “... nenhum dos interessados, ao falar sobre o pedido de habilitação, é obrigado a motivar e, muito menos, comprovar a sua impugnação. O simples “não concordo” de qualquer deles torna impossível ao credor receber seu crédito no inventário, ainda mesmo que conste de documento que seja prova bastante da obrigação. “A petição”, comenta PONTES DE Mi-RANDA, “devidamente instruída, é apresentada a cada um dos interessados que, nela mesma, ou em folha apensada, com a ressalva de ligação, concordam com o pedido, ou discordam, sem precisarem dizer porque o fazem. Trata-se de processo para a constituição da separação de bens, no qual não se têm de contestar as afirmações do credor, posto que qualquer do interessados possa fazê-lo.” (Comentários, II, 68). Discordando qualquer dos interessados, deverá o requerente da habilitação ser remetido às vias ordinárias, podendo, na hipótese do já citado art. 497 do Código de Processo Civil, quando a dívida constar de documento que seja prova bastante da obrigação e a impugnação não se fundar em prova de pagamento, requerer ao juiz que mande reservar, em poder do inventariante, bens suficientes para a solução da dívida impugnada. Se nenhum dos interessados, inventariante e herdeiros, é obrigado a motivar e provar a sua impugnação, com maioria de razão não o será também a Fazenda Pública, pois que a impugnação desta, nos termos do parágrafo único do art. 494, visando apenas a efeitos fiscais, não obsta ao pagamento do credor, desde que ele ou algum outro interessado satisfaça, antes do julgamento da partilha, o imposto correspondente à dívida” (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de

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São Paulo, 27 de abril de 1950, RT 186/278). As partes falam na própria petição. Depois, é juntada aos autos, onde o juiz decide (1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 24 de março de 1941, RT 131/189). A concordância é ato coletivo, exigindo unanimidade, inclusive dos órgãos do Ministério Público. 8. Audiência dos interessados. São ouvidos todos os interessados. A unanimidade é pressuposto para o pagamento no inventário. Naturalmente, os herdeiros concordantes, ou alguns deles, podem solver, como interessados, a dívida; porém com dinheiro ou bem seu, não com bens da herança indivisa. A Fazenda Pública é interessada (e não só pelo imposto de transmissão da propriedade); mas o Código de 1939 estabeleceu meio de afastá-la da relação jurídica processual do incidente, se pago o imposto correspondente à dívida. Se ela era interessada por outros impostos, não ficaria dispensado o seu assentimento. Em verdade, a lei apenas permitia afastar-se a Fazenda Pública, obtendo-se-lhe a quitação. Se o monte deve imposto de renda, multas etc., o afastamento, pela ratio legis, supunha quitação. O Código de 1973 nada disse a respeito, mas havemos de entender que os impostos devidos têm de ser pagos. O que o monte deve paga o monte. O que deve o quinhão, paga-o quem o recebe. A audiência na própria petição é minus. Pode o juiz fazer intimar os interessados para que falem. A unanimidade de assentimentos é pressuposto necessário para o pagamento. “Basta, portanto”, disse a 5ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara, a 10 de janeiro de 1961 (DJ de 2 de maio de 1963), depois de reproduzir, no texto e na ementa, o que escrevêramos, “que haja oposição de um dos interessados, para que se remetam as partes às vias ordinárias de apuração da dívida.” Na habilitação de crédito em inventário, ouvidos na própria petição os interessados, ou em separado, com intimação e prazo, a sentença, depois do transito em julgado, é decisão que se não pode reformar. Discute-se se, tendo falado na petição o interessado, ou tendo falado nos autos, pode revogar a declaração de concordância, antes da sentença. O 2ª Grupo de Câmaras Civis do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 11 de setembro de 1947 (RT 170/595), entendeu que tais declarações são revogáveis (podem ser retiradas, disse) até a partilha. E absurdo. O problema consiste em se saber se é possível revogar-se até que se julgue, ou se não no é. Nada tem ele com a partilha. Sobre revogação de tais declarações, que são comunicações de conhecimento (nada há que opor-se ao pagamento do crédito), Tratado de Direito Privado, Tomos 1, §§ 34 e 36, V, § 507, VIII, §§ 855, 8 e 864, Xl, § 1.244, 3, e XV, § 1.428, 2, principalmente Tomo 11, § 238. Têm-se de distinguir: a) a declaração na petição, que é irrevogável à recepção da petição pelo juiz (no momento do despacho de autuação); b) a declaração em resposta à intimação, com ou sem cominação, que é irrevogável desde o momento em que foi apresentada ao juiz ou em que expirou o prazo para falar. Os argumentos a favor da revogabilidade até julgar o juiz a habilitação são frágeis; não os há que mereçam critica a favor da revogabilidade até a partilha. 9. Bens que se podem separar. Separa-se dinheiro; se não há dinheiro, separa-se algum bem, ou bens, que bastem. No momento em que o dinheiro separado, ou o produto da venda dos bens, for entregue ao credor, então se dá a solução da dívida. 10.Bens separáveis e ordem deles. Há ordem de separação: móveis e semoventes; imóveis. Dentre eles os que não tenham sido escolhidos pelos herdeiros e couberem nos seus quinhões. 11. Destino dos bens separados. Os bens separados são vendidos em hasta pública, ou terão o destino da adjudicação. 12. Erro de terminologia. Havia erro de terminologia no Código de 1939, art. 495, § 1º, saldo não “volta” ao monte; é do monte. A separação foi apenas expediente de destinação provisória, sem qualquer “demissão de domínio”, para usarmos da expressão que ocorreu ao advogado de Lobão. 13. Adjudicação e dação em soluto. Se todos os credores concordam com o pagamento da dívida e com a adjudicação, há pretensão do credor à adjudicação. Se há adjudicação sem se ter feito a praça, e sem que em se pré-excluir a praça houvessem concordado todos os interessados, ou o único interessado, a sentença é rescindível por violação da lei.

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Há a carta de arrematação e a carta de adjudicação. Há de conter a autuação, a sentença exequenda (se é o caso disso), o auto de penhora (se penhora houve), a avaliação, a quitação dos impostos, a certidão do maior lanço oferecido (se é o caso disso) e a sentença de adjudicação. Portanto, nas espécies de adjudicação a credor, em inventário, hão de constar o pedido de adjudicação, a avaliação, a quitação dos impostos e a sentença da adjudicação. A carta de adjudicação não é sentença; contém a sentença da adjudicação. Se a adjudicação é a credor que teve o assentimento dos interessados no inventário, após a separação dos bens para pagamento, o negócio jurídico é contido na sentença, porém nada tem com a manifestação de vontade de cada um dos interessados, porque esses apenas se pronunciam sobre a adjudicação, em vez da arrematação. Já haviam concordado com a separação dos bens. Após isso, ou eles permitem ou não permitem a adjudicação (afastam, ou não, a exigência da hasta pública). O juiz é que aceita a oferta da adjudicação, que fez o credor, ou não a aceita. Tal sentença constitutiva é sentença, transita em julgado, que somente pode ser desconstituida por meio de ação rescisória mas ocorre que não é simplesmente homologatória a decisão, pois o negócio jurídico está incluso. A situação é diferente da que ocorre no caso de ter havido praça ou leilão, porque, aí, houve o negócio jurídico da arrematação, que ficou exposto ao pedido de adjudicação, que então independe de qualquer assen-timento dos interessados. Em todo o caso, há duas atitudes que o intérprete pode assumir: a) a de se afastar, nos casos de adjudicação sem antecedência de hasta pública, qualquer invocabilidade da regra jurídica sobre rescindibilídade de atos jurídicos homologados ou não; b) a de se considerarem proponíveis as duas ações desconstitutivas. A solução verdadeira é a solução b). A datio in solutum é permitida, processualmente; e não se justificaria que o direito processual discrepasse, nesse ponto (externa, como é a relação da dívida), do direito material. Depende de aceitar o credor a oferta, pois que se trata de sucedâneo da execução. Se o credor é herdeiro, dá-se contrato consigo mesmo. Não se permite a adjudicação ao inventariante para pagar, salvo na venda em hasta pública. A regra jurídica sobre adjudicação sem hasta pública só se aplica se todos os interessados são capazes. A adjudicação de que se cogita, é antes da praça. Se todos os interessados concordaram, há pretensão do credor à adjudicação (cf. 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 14 de junho de 1948, RF 125/2 19). Dai não se tire, como fez a 2ªCâmara Cível, a 9 de agosto de 1948 (MF 11/155), que o inventariante possa ser autorizado a vender os bens pelo preço da avaliação sendo o espólio insolvente. Se houve adjudicação antes da praça, a despeito de discordância de interessado, ou de interessados, a sentença é rescindível por violação de lei. Antes de transitar em julgado a sentença, há nulidade do ato processual (Câmaras Civis Conjuntas do Tribunal de São Paulo, 5 de novembro de 1947, RT 17 1/324). O cônjuge credor ou o herdeiro credor é credor que pode pedir a adjudicação com a concordância de todos os interessados. 14. Execução da sentença. As regras jurídicas aplicáveis são as sobre arrematação e adjudicação. Portanto, qualquer dos herdeiros tem a pretensão à adjudicação. Lendo-se “herdeiro”, em vez de “executado”, e “credor”, em vez de “executante , as regras jurídicas sobre adjudicação e remição são de observar-se. 15. Honorários de advogado. Quanto a honorários de advogado para acompanhar o inventário e a partilha, pelo inventariante, somente são devidos se, apresentado o contrato, ou o pedido para se permitir a assinatura do contrato, todos os interessados concordam. Interessados são os herdeiros, inclusive herdeiros dos remanescentes e os legatários de remanescentes. Se não houve a concordância de todos e as circunstâncias mostram que nao seria dispensável o serviço de advogado, por ser leigo o inventariante, tem de ser arbitrado, em ação própria, o máximo para se prometer ao advogado, em pedido feito pelo inventariante, com os recursos a que as decisões dêem ensejo. Se o inventariante promete mais, responde pelo excesso ao advogado; porque não tinha poderes para isso, e pois, não obrigou o espólio (obscuro, o acórdão da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 18 de novembro de 1947, AJ 85/523). A ação para se obterem poderes para contratar advogado, ou para a aprovação de contrato, é ação constitutiva, de rito ordinário. Ou há a concordância de todos, ou não há. Se há, pode o juiz julgar favoravelmente o pedido. Se não há, tem de observar o procedimento adequado para deferir ou indeferir o pedido, fixando cláusula e honorários (cf. 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 5 de fevereiro de 1948, RT

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173/230). Não tem alcance dizer-se que os honorários do advogado correm por conta do espólio. Serviços prestados, se eram precisos, têm de ser pagos, mas no inventário e partilha só se há de atender ao que foi acordado entre os interessados, que teriam de ser ouvidos, isto é, se houve negócio jurídico, contrato ou outorga de poder para contratar. Assim, é de pôr-se de lado a jurisprudência que diz que os honorários hão de correr por conta do espólio (e. g., 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 13 de abril de 1948, RI 174/202), ou que entende ter poderes para contratar advogado o inventariante (e. g., 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 31 de janeiro de 1947, RF 113/13 1), ou que, havendo discordância, se possa dar arbitramento. Há circunstâncias em que a nomeação do inventariante foi para que prestasse os serviços de advogado (função inclusa), ou em que lhe cabe, por outra razão, arcar com as despesas (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 4 de maio de 1948, RF 174/694). O acórdão da T Turma do Supremo Tribunal Federal, a 5 de junho de 1951 (DJ, de 2 de março de 1953, 721), afasta-se dos princípios, por violar as regras jurídicas sobre separação dos bens inventariados, que não admitiu exceção à regra jurídica de ser dependente de concordância qualquer solução de dívida, salvo sob responsabilidade do inventariante, o que só se pode apurar em ação de rito próprio. A tendência dos tribunais para supor com poderes de contrair dívidas o inventariante não tem base em lei e é abuso que se deve cortar cerce (e. g., 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 11 de maio e 11 de junho de 1950, O Diário de Belo Horizonte, 22 de junho de 1950, RF 142/302; 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 26 de outubro de 1951, DJ, de 29 de abril de 1954). Absurdo o acórdão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 20 de setembro de 1950 (RF 145/321), que, além de supor com outorga o inventariante para contratar advogado, lhe viu dever de contratar, dizendo que “é obrigado por lei” (que lei?) “a constituir advogado, cujos honorários, por isso, se compreendem nas despesas judiciais Se os herdeiros e demais interessados convêm em que se vendam os bens, separados, sem ser em hasta pública, ou leilão, por preço que dê para a solução imediata da dívida, ou para que separada fique a quantia necessária a isso, é de deferir-se o pedido. A regra jurídica sobre hasta pública tem a sua ratio legis na segurança do credor, e a regra jurídica sobre adjudicação ao credor, se todos os interessados acordam, abre exceção ao princípio. A analogia impõe-se. Convindo todos os interessados, pode um solver a divida, sendo-lhe adjudicados os bens separados. Se, sem ter havido acordo, algum deles paga a dívida, são invocáveis as regras jurídicas sobre pagamento por terceiro interessado e sobre sub-rogação. 16. Forças da herança e dívidas. Se as dividas não-impugnadas excedem as forças da herança — ou a) os credores acordam sobre o rateio e as preferências (concurso convencional de credores), ou b) não acordam. No primeiro caso, a não-impugnação, que é entre herdeiros e credores, não vale entre credores. Esses têm de intentar as ações adequadas (“vias ordinárias”, brevitatis causa), estabelecendo-se, depois, o concurso de credores. Foi repelida a prática anterior a 1939, abusiva, de concurso de credores no processo de inventário, onde o juiz não tinha (nem tem) cognição das questões e apenas verifica se os interessados concordaram com as dívidas. A Relação de Minas Gerais, a 29 de maio de 1907, entendia que era admissível, mas esquecendo-se de que impunha aos credores a admissão de dívidas que não foram discutidas e talvez só se tenham deixado de impugnar, por negligência, ou conluio. De Iege lata, a solução é contrária ao concurso de credores no processo de inventário, salvo se houve acordo entre os credores. A regra jurídica especial afasta o pedido que pode fazer o credor com preferência, ou o rateio, sem que haja a concordância (Supremo Tribunal Federal, 17 de outubro de 1940, RE 86/360). 17. Falta de impugnaçâo. Se os interessados deixarem de impugnar dívidas além do valor dos bens da herança, esses têm de ser depositados, em virtude do benefício da separação; não em virtude do concurso. Os efeitos peculiares ao concurso são outros e somente se produzem quando for aberto 18. Termo de acordo e inventário negativo. Como se levará a cabo essa observância? Mediante termo de acordo, que tem de ser julgado pelo juiz, encerrando o inventário negativo. Algumas cláusulas do acordo têm de ser afirmações admitidas, mas o seu todo é convencional (declarações de vontade em conjunto).

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A sentença, no inventário negativo, é declarativa, quanto ao seu objeto, de modo que a aparição de bens não ofende a coisa julgada material. O recurso é o de apelação, e não o de agravo, porque o “mérito” do processo de inventário e partilha é julgado pela sentença que o considera negativo e distribui os bens. § 18. Reserva de bens 1. Reserva de bens, em que se distingue da separação. A lei distingue a separação e a reserva de bens. Aliás, essa reserva de bens foi criada para o caso de haver impugnação. Quando, antes da partilha, for requerido no inventário o pagamento de dividas constantes de documentos, revestidos de formalidades legais, constituindo prova bastante da obrigação, e houver impugnação, que se não funde na alegação de pagamento, acompanhada de prova valiosa, o juiz manda reservar, em poder do inventariante, bens suficientes para solução do débito, sobre os quais venha a recair oportunamente a execução (Código Civil, art. 1.796, § ,1º) Em tal caso, o credor será obrigado a iniciar a ação de cobrança dentro do prazo legal, sob pena de se tornar de nenhum efeito a providência indicada. “Execução” é a execução forçada, ou a voluntária, se os impugnantes preferirem, depois da reserva, solver a dívida. 2. Insuficiência da impugnação da dívida documentada. O juiz apenas examina se há prova documental da obrigação e não há prova de pagamento (cognição superficial): as outras questões são apreciadas no juízo ordinário (2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, 18 de junho de 1941, RF 88/486). Sentença passada em julgado, embora sujeita à liquidação (3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 4 de março de 1942, RT 140/145), ou declarativa, é titulo bastante para a reserva. Mesmo, aí, apenas se reserva. Só se exige “prova bastante da obrigação”; não, o ser dívida líquida (Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1947). O credor, preferindo a reserva à separação, pode pedi-la desde logo, independente de submetê-la à impugnação, ouvidos, porém, os herdeiros. Esses podem impugnar a própria reserva. Mas o juiz decide. A ação é mandamental. (cf. Supremo Tribunal Federal, 6 de janeiro de 1953, DJ, de 4 de fevereiro de 1957: “Cuida-se, na hipótese, não de pedido de reserva de bens, a que aludem os mencionados preceitos e em que, aliás, o exame da prova é efetuado sem sondagem mais profunda, tratando-se de cognição superficial, como observa PONTES DE MIRANDA. Versam os autos caso de ação ordinária de cobrança, que pode ser ou não precedida da providência a que aludem os preceitos citados”). Essa reserva é preventiva (Rudolf Pollak, Svstem, 1.041). Ação cautelar, apensados os autos do processo, da decisão cabe apelação.

Capítulo VIII

Ação de justificação para prova em processo § 19. Conceito 1. Pretensão a provar e pretensão a assegurar prova. A pretensão a provar, ou a assegurar a prova, existe independentemente da pretensão correspondente à relação de direito material, ou formal, que se quer provar. Ao exercício em juízo da pretensão a provar ou a assegurar a prova chama-se justificação, ou produção antecipada de prova, ou exibição. Na sua perspicácia, Antônio de Morais e Silva (Dicionário da Língua Portuguesa, 1º, 137)

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definiu justificação a prova judicial de alguma coisa. Afonso III, D. Dinis e Afonso IV de Portugal mandaram proceder a “justificações” de posses, no interesse público (Manuel de Almeida e Sousa, Discurso jurídico, histórico e crítico sobre os Direitos dominicais, 16). O Regimento de 10 de dezembro de 1613 falou das justificações dos herdeiros dos defuntos e ausentes, no sentido de prova da identidade, não dos títulos (Alvará de 14 de outubro de 1766, § 5). O Alvará de 12 de janeiro de 1619 cogitou de justificações para finalidade fiscal (isenção de impostos sobre açúcar, dos engenhos novos, no Brasil). Veio-se tateando através desses séculos, sem se saber bem porque se estava a distinguir do processo da ação principal o processo acessório de justilicação. Acessório, ou ás vezes autônomo, a despeito da destinação abstrata, O mais alto grau de caracterização obteve-se na Consolidação das Leis do Processo Civil de Antônio Joaquim Ribas. Os juizes municipais processavam e julgavam as “simples justificações” (sic.) “produzidas para documento e sem caráter contencioso” (Antônio Joaquim Ribas, Consolidação, art. 10, alínea 1ª); mas já se advertia que, “quanto, porém, às que forem meios regulares de processo para prova de fatos ou relações jurídicas, se consideram como causas, e a competência para elas se regulará pelo seu valor”. Não se deixaria traslado, salvo quando a parte pedisse (Consolidação, art. 984). Assim, a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, art. 27, § 2ª. Nota-se bem a imprecisão da distinção de Antônio Joaquim Ribas. As simples justificações também eram para prova. Aquelas seriam as que asseguram a prova sem se estar a pensar em processo em que fossem juntadas. Essas, as que se destinariam a fazer prova em processo. Se queremos saber do que é que estamos a falar, éóbvio que temos de procurar o em que se distinguem das justificações em vistorias, arbitramentos e inquirições ad perpetuam rei memoriam, as de restauração, suprimento e retificação do registro civil, as de habilitação para casamento, e as justificações para prova em processo. Sem a discriminação, o falarmos dela seria equívoco. Todas são relativas à prova. As primeiras, à asseguração da prova; as outras, todas, à formação da prova. A diferença está entre prevenir e produzir desde logo, sem o elemento subjetivo da prevenção. As justificações que não cabem nas primeiras independem da pretensão à segurança da prova. A produção desde logo é em processo autônomo, quando se trata de justificações para prova em processo; dentro de outro processo, de que são parte integrante, as de restauração, suprimento e retificação do registro civil, e de habilitação para casamento. 2. Natureza da justificação para prova em processo. A justificação para prova em processo é ação constitutiva de prova, e não ação declarativa. Ponto, esse, que é assaz importante. Não se pode pensar em força de coisa julgada material, ainda que se tenha discutido sobre a relação jurídica cuja existência se pretende provar em justificação. O mais que pode ocorrer é conceber-se como constitutiva de prova para ação declarativa, talvez para a ação declarativa típica. Nunca, desde logo, como ação declarativa da relação jurídica. Certa, a 3ª Câmara Civel do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 26 de março de 1942 (RF 91/190). Constituir prova de relação jurídica e declarar essa relação são coisas distintas. A justificação antes da lide, com exibição de livros, para determinada ação de direito comercial, é preparatória; rege-se, pois, pelo que especialmente se estatui (2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Minas Gerais, 5 de abril de 1943, OD 22/408). A eficácia da sentença na justificação é limitada à pretensão a provar ou a assegurar a prova, sem a utilização dessa eficácia em enunciados de mérito de outra ação. Não basta, por exemplo, para provar o domínio oriundo de usucapião. Na ação de usucapião é que a justificação, com o seu julgamento específico, tinha de ser utilizada, antes da reforma operada com a Lei n0 8.951, de 13 de dezembro de 1994, que a aboliu. Assim, andou bem a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 26 de março de 1942 (RF 91/190), quando negou mandado de segurança a quem invocou domínio apenas juntando, como prova, justificação. Falta algo a essa prova. Não quer dizer isso que a justificação, no sistema jurídico brasileiro, não faça a prova que foi objeto do pedido, ou não a segure. O que a sentença, na ação de justificação, não dispensa é a ação própria para a defesa, ou constituição de estado, que seria preciso propor. Há diferença entre a justificação segundo o Código de 1939 e a justificação segundo o direito anterior a 1939, diferença para mais, em eficácia; porém não se cometeu o absurdo de se dispensarem ações adequadas, declarativas, constitutivas, condenatórias, executivas, ou mandamentais, que teriam de ser propostas. A justificação concerne à prova ou à sua segurança, contém enunciados sobre fatos que o juiz aprecia como prova; não concerne a direitos, pretensões, ou ações, nem contém enunciados sobre esses direitos, pretensões ou ações. A justificação, por exemplo, de que A coabitara com B durante três meses e dentro desse período fora concebido o filho de B pode ser julgada procedente, sem se excluir, na ação de investigação de paternidade, a procedência da exceção de impotentia generandi de A.

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Processo para o qual se faz a prova é qualquer processo que não seja a justificação, o protesto, a interpelação e mais processos sem julgamento do mérito. Portanto, pode haver justificação para processo de segurança. A justificação, de que se trata, ainda quando não seja fim em si, basta-se a si mesma, como processo, e como sentença. Não é preparatória, no sentido estrito; não é provisória, porque o julgado na ação em que se discute a res in iudicium deducta, ainda quando aprecie a prova que por ela se produziu, não reforma, não atinge a sentença de justificação. O que ela faz é constituir instrução, sem se levar em conta o periculum in mora, que pode ter sido considerado pelo justificante, porém do qual, na justificação para prova em processo, se abstrai. Não se segura, propriamente, a prova; produz-se, fora de processo em que a instrução seria instrumentalidade intercalar, isto é, em que seria para a sentença no processo sobre o direito, ou a pretensão, ou a ação. A justificação, no direito brasileiro, fez-se processo autônomo, constitutivo de prova, utilizável, porém não, especificamente, para a utilização noutro processo. A cisão é chocante para os que não estão atentos à diferença e à independência entre a pretensão a provar e a pretensão à tutela jurídica dos direitos. Há direitos a que falta essa pretensão a provar; há pretensão a provar, que pode ser exercida sem se exercer a pretensão à tutela jurídica dos direitos. Por isso mesmo, a mesma justificação pode servir em instrução de processos diferentes, a propósito de ações diferentes. E. g., a justificação de que E espancou C pode servir em processo de ação de indenização contra E ou em processo de ação de deserdação ou em processo de ação de separação judicial entre A e B, por ser C mãe de A e considerar-se espancamento da mãe de A injúria grave a A. O “interesse”, que dá a ação de justificação, não exige a especifi-cidade, que ligue o pedido de justificação a certo pedido específico futuro. (A justificação para se verificar, testemunhalmente, a escrita, ou para se verificar a autenticidade de documentos, ouvindo-se as testemunhas instrumentárias, é exemplo da desnecessidade do interesse específico. Pode mesmo ser principal, ainda que se lhe queira notar alusão implícita à finalidade probatória em algum possível processo futuro). A finalidade genérica é sem redução da justificação a mera medida preventiva, ou, a fortiori, preparatória. A justificação baseada em interesse genérico é tão independente do processo de ação futuramente proposta quanto é independente da futura propositura da ação condenatória a ação declarativa da relação de direito. (Tecnicamente, há ainda dois passos a serem dados pelos legisladores futuros: estender a ação de constituição de prova a qualquer meio de prova; permiti-la, em todos os casos, como principal, vale dizer: permitir que se abstraia da própria “alusão” a processo futuro). 3. Morte e justificação. A morte é fato, que há de ser alegado e provado. A prova do registro civil vem em primeiro lugar. Depois, a prova por presunção, à semelhança do que ocorre noutros sistemas jurídicos; ou por indícios. No direito inglês, a presunção é após sete anos sem notícias (mas sem se presumir ter morrido em algum momento antes, “at any particular time during the seven years”, Edward Jenks, A Digest of Enqlish Civil Law, 1, nº 12, 4). Para os casos de morte em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto, ou outra catástrofe, há no direito brasileiro duas regras jurídicas sobre justificações: podem os juizes admitir a justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágios, inundações, incêndio, terremoto ou outra catástrofe, quando não for possível encontrar-se o cadáver para exame, tempo previsto pela lei, e estiver provada a sua presença no local do desastre (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 88, caput); para os desaparecidos em campanha, a justificação pode ser também produzida em juízo, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro segundo as regras do art. 85 dessa lei e os fatos que convençam da ocorrência do óbito (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 88, parágrafo único). Cada justificação nova desconstitui, no todo ou em parte, a anterior. Tal a natureza de toda justificação, como ação constitutiva de prova. Em conclusão: a justificação, a qualquer tempo, rege-se pelo art. 861 do Código de Processo Civil, e é constitutiva de prova, com eficácia declarativa e certa dose de mandamentalidade; a justificação para o assento é perante o juiz togado competente para mandar ao oficial do registro, porque se trata de ação mandamental (força), envolvendo forte carga de constituição de prova e elemento declarativo.

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§ 20. Procedimento 1. Legitimação processual ativa e petição. A pessoa que pretende justificação para prova em processo tem de dizer, na petição, qual a sua intenção. Nem sempre quem vai justificar já é parte em processo. As Ordenações Filipinas, Livro 111, Título 20, § 5, e Título 54, eram hostis a provas antes da litiscontestação, conforme a interpretação que se lhes dava. Mas já a Ordenação do Livro III, Título 55, § 7, admitia a inquirição ad perpetuam rei memoriam, e a do Título 55, § 8, a justificação, fora dos casos do § 7, se pedida pelo réu; e Agostinho Barbosa, bem como, mais tarde, Manuel Gonçalves da Silva (Commentaria, 11, 136 s4, explicitou os textos quanto a outros casos, antes e depois das Ordenações. A fonte da justificação avulsa (porém não in perpetuam rei rnemoriarn), correspondente à pretensão de constituir prova e não a assegurá-la, está no § 8 do Titulo 55 das Ordenações Filipinas, Livro 111. Ali só se falava do réu; em 1939, falou-se, no art. 737, de “parte”. No Código de 1973, art. 861, de “quem”. Em tais casos, não são precisos os motivos para as medidas cautelares, e aí está a diferença entre a justificação cautelar dos arts. 846-851 e a justificação para prova em processo, dos arts. 861-866. A justificação é constitutiva de prova e declarativa de prova. Ação cautelar, possivelmente, acessória. Não induz litispendência (5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 25 de outubro de 1946, RF 110/128), mas, da competência do juízo da ação principal previne a jurisdição. Há sentença sem recorribilidade. Tal sentença não é a meramente homologatória, pois há contraditabilidade das testemunhas, reinquirição e apreciação dos documentos. 2. Fato ou relação jurídica. A referência a fato ou relação jurídica vem-nos de Antônio Joaquim Ribas (Consolidação, art. 10, que, aliás, só aludia a ato). Já observamos anteriormente que a relação jurídica, ai, é só objeto de prova, não de declaração (no sentido de ação declarativa). A declaratividade há de referir-se ao mundo jurídico, e não ao puro mundo fático. Aí, só á prova. A justificação sem haver periculum in mora já estava nas Ordenações Afonsinas, como direito assente e codificado (Livro III, Titulo 61, § 8): “E se por parte do Reo for feito semelhante requerimento, ainda que as testemunhas nam sejam velhas, nem enfermas, nem esperem ser absentes, seram perguntadas em todo caso, sendo a parte citada, pera ver como juram, em sua pessoa, ou em sua casa, e as Inquirições sarradas, assy como dito he no requerimento feito por parte do Autor; porque elIe Reo nom he certo quando lhe será feita a demanda, nem está em seu poder de lhe ser feita tarde, ou cedo, e se lhe assy nam fossem perguntadas as testemunhas em todo tempo por elIe requerido, poderiam falecer ao tempo da demanda feita, e assv ligeiramente pereceria seu direito”. O texto passou às Ordenações Manuelinas, Livro 111, Título 42, § 7, e às Ordenações Filipinas, Livro III, Título 55, § 8. A evolução operou-se no sentido de se abstrair do pericuIum in mora, quer quanto ao réu quer quanto ao autor. Note-se, portanto, que, em vez da pretensão à asseguração da prova, em verdade se criava a pretensão à constituição da prova. 3. Acessoriedade da ação. A acessoriedade ou instrumentalidade pode ser genérica. O processo para o qual se quer a prova é algum processo, que se possa prever, sem ser preciso dizer-se qual há de ser a ação. Desaparece, aqui, a exigência de se tratar de medida preventiva; abstrai-se do periculum in mora. Mas ainda resta a “alusão” ao processo em que se pleiteie algum direito, pretensão ou ação. Aliás, desde que se apresente o interesse do autor, a ação é previsível. Não pode ser justificada a prova da dívida de jogo, porque é inacionável. Nem as dívidas em que o direito do credor esteja desprovido de pretensão e de ação, ou só de ação. Basta a ação futura. 4. Natureza da sentença que julga a justificação. A natureza da sentença proferida na justificação é de sentença constitutiva integrativa da prova feita. A sua força não é declarativa; e a constituição integrativa da prova somente tem eficácia segundo os princípios, posto que a sentença do processo da ação principal possa estendê-la, como conteúdo da sua própria eficácia. Faltalhe, então, a imediatidade; mas isso não a diminui. A justificação é ação constitutiva de prova. A eficácia da sentença, que o juiz profere, julgando a justificação, é constitutiva, embora subordinada em seu peso

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e valor ao critério do juiz do processo para que se faz, juiz que continua com o princípio do livre convencimento. 5. Elementos probatórios. A justificação é produção de prova testemunhal, mas permite-se que se juntem títulos ou documentos que comprovem a inquirição. A juntada há de ser a tempo de serem examinados pela outra parte, no prazo legal (Código de Processo Civil, art. 864); portanto, antes ou durante a inquirição. Finda essa e recebidas as alegações da parte citada sobre os títulos e documentos, o juiz dá a sentença, diante da prova feita e das afirmações de uma e de outra parte. A parte citada pode alegar; não pode produzir prova. Para que o justificante junte títulos e documentos não precisa tê-los individuado, nem mesmo mencionado na petição. 6. Testemunhas, inquirição, reinquirição e contradita. Há a inquirição das testemunhas sobre os fatos alegados e a reinquirição pelo interessado, ou pelos interessados, se o querem. Diante do que foi ouvido, pode o interessado, ou podem os interessados, separadamente ou em conjunto, contraditá-las, quanto ao que foi respondido, quer na inquirição, quer na reinquirição. O que o citado diz é afirmação submetida ao juiz, sem se tratar de contestação. O processo das justificações apanha quaisquer justificações para a constituição de prova, uma vez que não se trata de preparatória de ação e se não há lei especial em que se trace o processo. havido inexatidão material, ou erro de cálculo, casos em que se pode pedir a correção, ou o próprio juiz, de oficio, corrigir. 7. Sentença. O juiz profere sentença, na qual aprecia a prova, sem, porém, ligar o juiz da futura causa a seus enunciados sobre a atendibilidade da prova no caso concreto. O justificante propõe a prova, segundo o princípio dispositivo; isto é, designa os fatos que pretende provar (tema probatório) e as pessoas que têm de ser inquiridas. Após isso, vêm a assunção da prova, devido aos despachos in limine, e a produção das provas, segundo o princípio de imediatidade. Se o princípio dispositivo (proposição das testemunhas, inquirição e reinquirição), o de imediatidade, as regras sobre a verificação da capacidade das testemunhas, sobre a autentificação, sobre o procedimento da produção da prova, dever e escusa de depor foram observados, é assunto da sentença. O resultado obtido pertence ao juiz da causa em que vai ser utilizada a justificação. A proposição e a execução da prova pertencem ao juiz da justificação; não, porém, a declaração da relação jurídica, ou do fato, ou a condenação da futura parte ré. Na justificação não se pede declaração, nem condenação, nem execução, nem mandamento; pede-se constituição de prova. Somente isso. Assim como se cinde a utilização da prova testemunhal pelo juiz e a proposição, assunção e a produção perante ele, fiscal da observância das regras jurídicas a respeito, nas justificações o juiz utiliza a prova testemunhal proposta perante outro, assumida e produzida perante esse outro, que a julgou em tudo que se referia à observância daquelas regras jurídicas. A justificação não é ação declarativa. O juiz da ação futura, dita processo regular, só fica ligado à constituição da prova, um pouco mais do que ele mesmo, após a instrução, quando se dá, nos processos de audiência, a conclusão. O elemento declarativo não chega a ser força. Por isso mesmo, não basta, por exemplo, para declarar filiação (4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 13 de janeiro de 1944, RF 98/642). A sentença na ação de justificação não tem força mandamental, nem efeito suficiente, para se obter, com ela, por exemplo, a retificação do registro do imóvel (4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 11 de fevereiro de 1943, RT 143/208; ou o que seja) ou do registro civil (casamento nulo, 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1945). Nem força constitutiva além da prova, e. g., decretação de nulidade ou de dissolução de sociedade. A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 25 de outubro de 1946 (RF 110/128), disse que a sentença que julga a justificação não é declarativa, mas puramente homologatória (!), e dela não resulta efeito algum (9. Não é preponderantemente declarativa, mas tem dose de declaratividade; a sentença aprecia provas, porque exerceu o justificante pretensão à segurança; e os seus efeitos emanam da força constitutiva, para segurança da prova. Por onde se vê que o julgado da 5ª Câmara Cível, em menos de duas linhas, cometeu dois erros graves. A declaratividade é de prova.

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8. Irrecorribilidade. Da sentença não cabe recurso, a despeito de ter havido alegações da parte contrária sobre os títulos e documentos. No entanto, a justificação preparatória de ação, que é mais estreita (Código de Processo Civil, arts. 849 e 850), permite recurso. A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 23 de março de 1942 (RF 91/190), tendo o juiz reconhecido o domínio em justificação, não conheceu de pedido de mandado de segurança, mas (é prática abusiva e contraditória que se deve exprobrar) entrou no mérito, dizendo que tal justificação era “inócua”. Ou havia de conhecer, ou de não conhecer. Melhor fora conhecer, e julgá-lo procedente ou improcedente. 9. Justificações no segundo grou de jurisdição. Ainda hoje, como após 1939, são de admitir-se justificações no segundo grau de jurisdição (antes, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 24 de maio de 1905, .SPJ VllI/96; 15 de agosto de 1908 e a 16 de outubro de 1909, 17/503; 21/200). A jurisprudência anterior a esses julgados conhecia as justificações quanto a fatos posteriores à sentença ou à instrução (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 19 de maio de 1931); e não há razão para se excluir, em tais casos, a justificação. Acrescente-se que, no grau de apelação, ainda se podem suscitar questões de fato (art. 517). 10. Parte interessado. O Código de 1939, art. 738, dizia que, proferida a sentença, os autos seriam entregues ao justificante, quarenta e oito horas depois, independentemente de traslado, mas ressalvava: se dentro do prazo, a parte interessada houvesse requerido expedição de certidão. Portanto, essa expedição podia ser requerida, mas só dentro de quarenta e oito horas. Parte interessada era quem foi citado para a justificação (Corregedor da Justiça do Distrito Federal, DJ de 5 de janeiro de 1945), ou quem tivesse interesse, posto que não houvesse sido citado, ou quem quer que fosse ou pudesse ser atingido pela prova feita, segundo os principios de direito material e processual. Por outro lado, não se havia nem se há de invocar força de coisa julgada material por parte da sentença nas justificações, porque lhes falta elemento declarativo suficiente (cf. Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 3 de fevereiro de 1942, DJ de 13 de agosto). A sentença desfavorável também não declara; deixa de constituir. Por isso mesmo, o pedido de justificação é renovável. Não há recurso, qualquer que seja a decisão; mas há a responsabilidade civil do juiz, se incorreu em dolo, ou fraude, ou recusou, omitiu, ou retardou providência, sem justo motivo (Código de Processo Civil, art. 133, I e II). O que acima dissemos põe em evidência quanto é indispensável distinguir-se da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica (direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações, exceções) a justificação, enquanto declaração de prova. A justificação de posse é declaração de prova da posse. Não de relação jurídica.

Capítulo IX

Ação de apresentação e cumprimento de testamento § 21. Ação de apresentação do testamento 1. Conceito da ação de apresentação. Existe ação de apresentação do testamento, porque há dever de apresentar o testamento e pretensão a tutela jurídica. A apresentação não é simples materialidade; o apresentante cria entre ele e o Estado relação jurídica processual, para o cumprimento de um dever: a sua prestação é essa; a do Estado, receber-lhe a prestação em processo inquisitivo, que não estende esse dever até a incoação do processo para o cumpra-se. O legitimado para o pedido de cumpra-se pode não ser o legitimado para a apresentação, que é, tipicamente, pré-processo. Talvez o próprio órgão do Ministério Público, e não o apresentante, tenha de promover o processo de cumprimento. A regra é que seja promovedor o testamenteiro. Por isso mesmo, a sua presença insere-se automaticamente, a qualquer tempo, na relação jurídica processual.

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2. Natureza. A apresentação pode ser consequência de notificação cominatória, provocatio ad agendum, à semelhança, por exemplo, do que se passa na cominação do fiador ao credor para que acione o devedor. Pode apresentá-lo e desde logo não aceitar a testamentária. Apresentar, obter cumpra-se e cumprir são três atos distintos. A cominação ao testamenteiro, para que inicie a execução testamentária, é possível. § 22. Ação para cumprimento do testamento1. Natureza. A ação para cumprimento do testamento é constitutiva integrativa de forma; a sentença firma-se em ter havido cognição superficial pelo juiz (razão por que pode ser atingida pela sentença que acolheu o pedido na ação de nulidade de testamento). A decretabilidade das nulidades que se pronunciam de ofício bem mostra que se não responde à pergunta: Existem ou não relações jurídicas provenientes de testamento? (elipticamente: Existe ou não testamento?); e sim a outra pergunta: Vale, ou não, o testamento que me foi apresentado e examinei? Seja positiva, ou negativa a resposta, o juiz constitui integrando a forma de negócio jurídico do testamento, ou desconstitui, de ofício. A ação de cumpra-se ainda apresenta a particularidade de ser a cognição superficial, se favorável a sentença, mas de cognição completa, se desfavorável. Conclusão: se favorável, ainda podem vir os interessados com as ações de nulidade (constitutivas negativas); se desfavorável, isto é, denegatória do cumpra-se, passando em julgado a sentença, a ação rescisória é o único remédio contra a eficácia da decisão. A ação de deserdação não obsta ao cumprimento do testamento ( 5ª Câmara Civel do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, lº de dezembro de 1942, DJ de 8 de fevereiro de 1943): uma é constitutiva integrativa; a outra, constitutiva negativa. O testamento militar do art. 1.160 do Código Civil (Código de Processo Civil, art. 1.134, 11) é, de certo modo, o testamento público em circunstâncias especiais; o testamento do art. 1.661 simplifica o testamento cerrado, ou o particular. No plano processual, tudo se passa ad instar daquelas formas. Sentenças constitutivas integrativas. 2. Série de atos do testamenteiro. A “execução do testamento” contém série de atos que o testamenteiro tem de praticar desde que aceitou o cargo. Esses atos ele os pratica por si só, ou com pedidos intercalados de meios e de formalidades, até que tenha de prestar contas desses atos e das omissões. Tem ele, a esse respeito, pretensão e obrigação de prestar, tal como acontece a outras pessoas que exercem cargos de confiança. Entre os seus atos estão o de propor ação declarativa da existência de relação jurídica testamentária, se o juiz se recusou a considerar a apresentação como apresentação de testamento o de defender o negócio jurídico do testamento, ou as disposições testamentárias, nas ações de nulidade, o de propor ação declarativa de alguma relação jurídica oriunda de testamento. A cobrança da vintena é em ação de condenação, que pode ser incidente no processo, com arbitramento pelo juiz. Eventualmente, com acordo solutivo, homologado.

Capítulo X

Ações de nomeação de inventariante § 23. Nomeação de inventariante 1. Definição de inventariante. Inventariante é o que faz a relação dos bens e dos herdeiros, administra os bens da herança e representa-a, até que passe em julgado a partilha. 2. Pretensão à inventariança. O sistema jurídico cogita da pretensão à inventariança e aponta as pessoas que a têm, conforme a ordem em que as classifica.

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Na classificação, cada classe pode, ao tempo da abertura do inventário, estar vazia (não há a pessoa, ou não há as pessoas, a que a regra jurídica se refere), ou haver incapacidade da pessoa ou das pessoas que compõem a classe, ou não ter idoneidade qualquer dos herdeiros, ou ter renunciado a pessoa ou terem renunciado as pessoas, a que se atribuiria a inventariança (renúncia à pretensão à nomeação). O próprio cônjuge meeiro, ou herdeiro, na posse e administração dos bens, pode renunciar ( 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, 24 de fevereiro de 1947, Paraná J 45/231). Se nenhuma existe, ou não é capaz, ou a que existia renunciou, a inventariança é dativa. Há a pretensão à inventariança ex Iege e a pretensão do inventariante judicial. Na falta de qualquer dos legitimados, a nomeação é dativa. 3. Cônjuges e inventariança. O inventariante há de ser o cônjuge sobrevivente se o regime matrimonial de bens é o da comunhão e convivia com o outro. A função de inventariante era e é mais ampla do que aquela a que se reportava a expressão “cabeça de casal”, porque o cônjuge tem a posse imediata dos próprios bens particulares do cônjuge falecido e tem de suscitar o inventário e a partilha. Pode dar-se que, a despeito de ser de comunhão de bens o regime matrimonial, não haja bem ou bens comuns, como ocorre se o marido ou a mulher herdou bens inalienáveis e não portanto, comunicáveis, e nenhum bem se comunicou; o cônjuge é o inventariante, porque o Código de Processo Civil, art. 990, 1, só se referiu ao regime. Se a morte do marido ocorria, pendente a ação de separação judicial, após a separação de corpos pedida pela mulher, autora da ação, não estava excluída da posse imediata e das funções de “cabeça de casal” a mulher, pois não se lhe pode atribuir culpa em não estar convivendo com o marido (conforme sustentamos, a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 17 de fevereiro de 1947, RT 173/353); a fortiori, na sistemática atual, em que se deu a supressão da assimetria entre os cônjuges. Outrossim, se a mulher está na posse imediata e na administração dos bens comuns, por ter o marido abandonado o lar, ou estar preso, ou desaparecido. Se a mulher ou o marido morre antes da homologação da separação judicial, o sobrevivente meeiro é o inventariante (8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 27 de janeiro de 1947, RF 114/406). Se o decujo, a despeito de não viver com a mulher meeira, a nomeia inventariante, passa ela à frente de quaisquer herdeiros e do testamenteiro (nosso Comentários ao Código de ProcessoCivil de 1939, VII, 2ª ed., 29). Se o regime matrimonial não era o de comunhão de bens e não há herdeiros, pode o testador nomear inventariante a mulher. Se o casamento fora com separação de bens e o cônjuge sobrevivente herda, pode pedir a nomeação com fundamento de que é herdeiro e estava na administração dos bens, ou por ser o herdeiro mais idôneo. Se não há testamenteiro, o cônjuge sobrevivente, que não é herdeiro, nem era casado sob o regime matrimonial da comunhão de bens, pode ser nomeado pelo juiz. Os pressupostos, se os cônjuges vivem juntos, são os mesmos. Se estão vivendo em separado, não pode ser nomeado inventariante, salvo se é herdeiro ou testamenteiro. O Código de 1939, art. 469, 1, distinguia do homem a mulher (salvo se, sendo a mulher, não estivesse convivendo com o marido ao tempo da morte deste). Exprobramos ao Código de 1939 tal erronia e escrevemos (Comentários, VII, 2ª ed., 28): “Se estão vivendo em separado, ao tempo da morte da mulher o marido é o inventariante; se quem faleceu foi o marido, a lei exclui a mulher culpada. (De iure condendo, sem razão aceitável, pois a culpa pode ter sido só do marido e não estar, sequer, interessado pelos bens comuns, ao tempo em que morreu. Aliás, não se justifica entrar-se em indagações, tais como a separação de fato, se essas pessoas podiam pedir a separação judicial, ou o divórcio. De lege lata, para se legitimar alguma das pessoas dos incisos 11-VI do art. 990 do Código de 1973 é preciso que a mulher reconheça o fato excludente ou se dê prova, ou anua em que outrem a substitua, sob a forma discreta da renúncia à pretensão de inventariar. Em todo o caso, pode o legitimável, após o marido, impugnar a nomeação desse, principalmente se tem, como inventariante, de ser testamenteiro, se não mereceria nenhuma confiança da mulher e, apesar de casado sob o

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regime da comunhão de bens, não tem bens comuns (nosso Tratado dos Testarrientos, V, 252). Felizmente, o Código de 1973 corrigiu o que constava do Código de 1939. A alegação de ser de separação o regime matrimonial, ainda ex lege, faz-se nesse momento; não exige ação em que se declare (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 12 de julho de 1943, RF 98/67). Exige-se o regime de comunhão; mas basta o de comunhão limitada. Se houve separação judicial, regime de bens não há. De modo que são impertinentes disputas (e. g., 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de junho de 1950, RT 188/832) em que pleiteie inventariança cônjuge separado judicialmente, salvo, é claro, se ainda não transitou em julgado a sentença de separação judicial, porque então não há falar-se de cônjuge separado judicialmente. Questão delicada surgia quando a morte do marido ocorria, pendente a ação de separação judicial, após a separação de corpos pedida pela mulher, autora da ação. Então, não se podia invocar a regra jurídica, que supunha culpa da mulher em não estar convivendo com o marido (Certa, a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 17 de fevereiro de 1947, RT 173/353). Outrossim, se era a mulher que estava na posse e administração dos bens comuns, por ter o marido abandonado o lar. Sob o Código de 1973, temos de dar soluções mais exatas e, mesmo de iure condendo, mais acertadas. No Código de 1939, art. 496, a nomeação do inventariante recaía no cônjuge sobrevivente quando de comunhão o regime do casamento, salvo se, sendo a mulher, não estivesse, por culpa sua, convivendo com o marido, ao tempo da morte deste. Exprobramos, energicamente, o texto então vigente. O Código de 1973, no art. 990, 1, diz que o juiz há de nomear inventariante o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão, desde que estivesse convivendo com o outro ao tempo da morte dele. Não mais há qualquer limitação quanto ao sexo, nem se desceu à apreciação da culpa. O que importa é que o cônjuge sobrevivente, ao tempo da morte do outro, estivesse com ele convivendo. Se não havia a convivência (vida em comum), falta o segundo pressuposto, pois o primeiro é o de tratar-se de casamento com comunhão de bens. Se o cônjuge morre antes da homologação da separação judicial, o outro cônjuge, meeiro, é o inventariante (8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 27 de janeiro de 1947, RF 114/406). Se o decujo, a despeito de não viver no lar o outro cônjuge meeiro, o nomeia inventariante, cabe a esse a preferência em relação a quaisquer herdeiros e ao testamenteiro. Se o regime não é o da comunhão de bens, pode o testador nomear testamenteiro e inventariante o outro cônjuge, se não há herdeiro ou legatário. Se o casamento fora com separação de bens e o cônjuge sobrevivente herda, pode pedir a nomeação de inventariante. Idem, se é testamenteiro. E nada obsta a que seja nomeado se o juiz tem de nomear pessoa estranha, idônea. A decisão da 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a 25 de julho de 1947, que disse ser “principio consagrado em lei que, embora instituída herdeira, não pode a viúva, que foi casada com separação de bens, ser inventariante”, errou, imperdoavelmente. Tais afirmações levianas desprestigiam a justiça. A posse dos bens dos cônjuges, se há comunhão de bens, é com posse. Trata-se de posse própria, quer seja mediata ou imediata a posse, quer seja posse integral. Dizer-se, como fez em voto junto ao acórdão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 21 de outubro de 1949 (AJ 94/263; OD 71/173), que a mulher “continua na posse de uma parte, e assume a posse da outra, presumindo-se que tenha conhecimento dos negócios, pela convivência com o marido”, é de repelir-se. Quanto à espécie da regra jurídica sobre a exigência de estar o cônjuge convivendo com o outro, premorto, seria preciso, de iure condendo, que se apurasse a culpa; mas, de iure condito, não foi a lei até ai. Se o cônjuge era casado com estrangeiro, sob o regime da separação de bens, e ê herdeiro de usufruto vitalício, deve ser nomeada inventariante, de modo que se afasta nomeação do testamenteiro (4ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 25 de fevereiro de 1944, RF 99/420) ou a de algum herdeiro.

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Não se trata só de herdeiro que residia com o decujo. Não basta isso. Nem o que esteja na guarda ocasional dos bens: guarda as coisas indivisas, como qualquer condômino; ou papéis, valores, como servidor da posse comum, ou outra figura. Trata-se de administrador. Mas a administração pode ter começado antes ou depois da abertura da sucessão. O direito de administrador transmite-se a todos os herdeiros, de modo que é preciso que se prove ter existido a administração em vida do decujo, ou ter-se estabelecido, à semelhança da gestão de negócio, ou outra figura, pelo interesse de proteger a herança, ou resultar de acordo dos herdeiros. O cônjuge sobrevivente, herdeiro, legítimo ou testamentário, é legitimado, ainda que casado sob o regime da separação de bens (3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1941, AJ 57/373). A 5ªa Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 27 de fevereiro de 1941, RF 88/436, entendeu que o herdeiro procurador do decujo não pode ser inventariante. A V Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 1ª de junho de 1950, RF 133/175, excluiu da legitimação à inventariança o herdeiro que tenha de prestar contas. Mas exatamente quem administra os bens e deles tem posse prefere aos outros herdeiros. O argumento, para o afastamento, de ser pessoa que tem de prestar contas é improcedente. Há quem administre bens alheios, fora dos pais usufrutuários, sem ter de prestar contas? 4. Herdeiro na posse e administração da herança. Herdeiro na “posse” e “administração” dos bens é o herdeiro que, sendo administrador dos bens, tem a posse imediata. Porque a posse mediata, dita indireta, essa se transmitiu a todos os herdeiros, sem distinção. Não se trata do herdeiro que somente residia com o decujo. Não basta isso. Nem o que esteja na guarda ocasional dos bens: guarda as coisas indivisas, como qualquer condomino; ou papéis, valores, como servidor da posse comum, ou outra figura. Trata-se de administrador. Mas a administração pode ter começado antes ou depois da abertura da sucessão. O direito de administrador transmite-se a todos os herdeiros, de modo que é preciso que se prove ter existido a administração em vida do decujo, ou ter-se estabelecido, à semelhança da gestão de negocio, ou outra figura, pelo interesse de proteger a herança, ou resultar de acordo dos herdeiros. O cônjuge sobrevivente, herdeiro, legitimo ou testamentário, é legitimado, ainda que casado sob o regime da separação de bens (3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1941, AJ 57/373). A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 27 de fevereiro de 1941 (RF 88/436), entendeu que o herdeiro procurador do decujo não pode ser inventariante. A 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a de junho de 1950 (RF 133/175), excluiu da legitimação à inventariança o herdeiro que tenha de prestar contas. Mas exatamente quem administra os bens” e deles tem “posse” prefere aos outros herdeiros. O argumento de ser pessoa que tem de prestar contas é improcedente. Há quem administre bens alheios, fora dos pais usufrutuários, sem ter de prestar contas? No direito anterior ao Código de 1939, disputava-se quanto a vir primeiro o testamenteiro, ou vir primeiro o herdeiro. O argumento a favor daquela solução era a existência de textos legais como o das Ordenaçôes Filipinas, Livro IV, Título 96, pr., e do Decreto nº 422, de 27 de junho de 1845, art. 1º, § 2ª, por ilação um tanto forçada (cf. Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, art. 1.142; Carlos de Carvalho, Nova Consolidação, art. 1.840). A favor da segunda o de terem os herdeiros a saisina; mas com isso se confundiam a posse recebida do decujo, por lei, com a posse imediata, que algum ou alguns dos herdeiros podem não ter (e. g., Hermenegildo de Barros, Manual, 18, 120 s.). A posse imediata e a administração são elementos distintivos, que servem para se preferir um herdeiro a outro, embora todos tenham a posse mediata (Tratado de Direito Privado, cf. Tomo X, §§ 1.067, 4, 1.092, 2, e 1.093, 1). O herdeiro prefere ao testamenteiro; entre herdeiros, prefere-se o que tem a posse e a administração, ou o mais idôneo. O testador pode, se não há cônjuge ou herdeiro necessário, atribuir a posse e a administração ao testamenteiro, preterindo os herdeiros legítimos não necessários e os testamentários. Se o testador nomeia testamenteiro e lhe dá posse e administração dos bens, havendo cônjuge meeiro ou herdeiro necessário, vale a cláusula de nomeação e é nula a de atribuição da posse e administração ao testamenteiro que não é cônjuge, nem herdeiro. Se há herdeiros necessários e a posse e a administração tocavam e tocam a herdeiro testamentário, prefere esse, porque a lei não distinguiu. Pode ocorrer que tenham a posse e a administração dois ou mais herdeiros, e outros, não. Dentre os que as têm escolhe o juiz, pela maior idoneidade. As regras jurídicas sobre inventariante, de modo nenhum se referem a grau de parentesco. O elemento diferenciador, em que se estriba a preferência, numa delas, é o estar o herdeiro na posse e administração dos bens; na outra, a maior idoneidade. Assim, é preciso ler-se com cuidado o acórdão da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de 28 de novembro de 1950 (DJ de 7 de agosto de 1952), em que se diz ter preferência a irmã, que está na posse e administração dos bens do decujo, em relação à sobrinha. Se fosse a sobrinha que es-tivesse na posse e administração dos bens, preferiria à irmã do decujo.

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A posse e a administração podem já pertencer, antes da morte do decujo, ao herdeiro, ou podem ter sido atribuidas por ele. Uma das cláusulas com que usualmente se dá ao herdeiro a posse e administração é aquela em que o testador diz “nomeio inventariante o herdeiro A”. Se o herdeiro já as tinha e o testador as dá a outrem, pode tal ato de testador conter infração de relação jurídica entre ele e o herdeiro (que era e é, por exemplo, locatário dos bens), mas o efeito para a nomeação de inventariante persiste. O herdeiro testamentário é tratado, pela lei, como o legitimo, como os herdeiros legítimos, inclusive necessários. Por isso mesmo, feriu a lei a decisão da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 1ª de outubro de 1946 (RF 112/152), ao preferir-lhe o inventariante judicial, por ser diminuta a parte do herdeiro testamentário na herança e haver dissídio entre os interessados (dois argumentos estranhos ao sistema jurídico). Não se pode pretender a inventariança o cessionário do herdeiro, nem o do cônjuge sobrevivente, porque se está em juízo Iam iliae erciscundae, e a qualidade hereditária é intransferível (5ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 4 de abril de 1941, RF 88/173). A 3ª Cãmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 8 de agosto de 1941, reputou incompatibilizado para o cargo de inventariante o herdeiro cujo advogado tem interesses contrários ao espólio (RF 89/479). Também isso não está na lei, nem é, de iure condendo, justo. Os herdeiros necessários somente por serem necessários não têm preferência em relação aos outros herdeiros. Podem não ter a posse e a administração dos bens, nem idoneidade, ou ser menos idôneos que os outros. Por isso, foi lapso da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, a 14 de outubro de 1947 (RT, da Bahia, 39/335), referir-se a herdeiros necessários. Há preferência para o herdeiro que se acha na posse imediata, ou mesmo mediata, e na administração dos bens. Não se distinguem os herdeiros, sejam legítimos e testamentários, ou só legítimos, ou só testamentários. Se nenhum dos herdeiros tinha a posse e a administração, o que importa é a idoneidade, isto é, a conveniência e a aptidão para o exercício do cargo (6ª Câmara Civel da Corte de Apelação do Distrito Federal, 1 º de setembro de 1933 ? Câmara Civel do Tribunal de Apelação do Estado do Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1939, AJ 52/46). Se o herdeiro tem de prestar contas à herança, sem ser em virtude da posse e administração do espólio antes da morte do decujo, não deve ser nomeado inventariante ( 1ª Câmara do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, IA de junho de 1950, com generalidade demasiada, RF 133/175). Se o herdeiro cedeu a herança, não mais pode ser nomeado inventariante (1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 21 de outubro de 1947, AJ 29/693). Idem, o herdeiro que está em lugar ignorado (1ª Câmara Cível, 4 de janeiro de 1944, RT 170/744). A lei não distingue, para a nomeação de inventariante, herdeiros necessários e herdeiros legítimos não necessários ou testamentários (sem razão, o Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, 12 de janeiro de 1944, RT 170/742). Se há duas ou mais pessoas que sucedem ao decujo, é indivisível o direito à posse e à propriedade, ou, mais largamente, à titularidade de direitos, pretensões e ações. Terceiros não podem opor a parcialidade do direito de cada herdeiro. Trata-se de universalidade. O direito à sucessão aberta é considerado direito sobre bem imóvel. Temos, pois, que a herança é bem imóvel e indivisível até que se ultime a partilha. Por isso, segundo a regra jurídica do art. 1.139, o herdeiro há de ser considerado condômino, ou, melhor, comuneiro, e o outro herdeiro ou os outros herdeiros têm o direito de preferência: qualquer deles que venha, ou alguns deles, ou todos os outros, que venham a saber da alienação da quota, ou de parte da quota, podem, com o depósito do preço, haver a parte que foi alienada a estranho, se o requerer dentro do prazo legal. O direito de preferência só se extingue com o transito em julgado da sentença sobre a partilha, ou com a assinatura da partilha amigável feita por escritura pública, ou por instrumento particular, com o termo de ratificação e a homologação pelo juiz. Dá-se o mesmo a respeito de bens compreendidos em sobrepartilha. O direito de preferência do herdeiro ou dos herdeiros foi reconhecido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 21 de janeiro de 1951 (RF 137/73). Herdeiros menores não podem ser nomeados inventariantes (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo,

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19 de dezembro de 1946, RT 167/168). Não afasta isso que o juiz possa dar o suplemento de idade antes da nomeação e após a morte do decujo. O tutor ou o curador somente pode ser nomeado inventariante como inventariante dativo. Se é tutor ou curador e herdeiro, na qualidade de herdeiro pode ser nomeado. A distinção entre o poder de nomear inventariante, que tem o juiz, e o de poder o testador nomear testamenteiro, com posse e administração da herança, é relevante, porque o testador só tem um óbice à nomeação de testamenteiro com posse e administração dos bens: haver cônjuge ou herdeiro necessário. Se há herdeiros não-necessários, o juiz não tem a escolha de inventariante dativo (cf. 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 9 de dezembro de 1946, RT 166/126). Se o inventário é dos bens dos dois cônjuges, um dos quais deixou herdeiro necessário e outro não, por tudo haver deixado em legados, a nomeação pode ser de qualquer dos herdeiros (sem razão, mesmo antes, no tempo de se falar de herdeiro necessário, a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 9 de outubro de 1939, RT 125/106). Se o herdeiro necessário reputa inconveniente, o que lhe cabe é pedir a separação dos processos. 5. Herdeiro escolhido. No Código de 1973, art. 990, III, fala-se de qualquer herdeiro, nenhum estando na posse e administração do espólio. Não mais se aludiu à idoneidade (Código de 1939, art. 469, III: “no herdeiro mais idôneo, se nenhum estiver na posse dos bens”). Porém, conforme já dissemos, a escolha pelo juiz tem de ser com exame da idoneidade. O Código de 1973 apenas abstraiu de referência ao critério do juiz, cujo dever de escolher bem está implícito na sua função. “Mais idôneo” (“preferência pela idoneidade”) significa o que tem maiores indicações para o cargo de inventariante, —morais, econômicas, de trato dos negócios que concernem à administração de herança, ou forenses, de confiança, ou simplesmente de estima ou respeito dos outros herdeiros. A escolha do mais idôneo não é o de puro arbítrio; no escolher, o juiz decide, julga. Cumpre advertir-se que a regra jurídica sobre herdeiro mais idôneo, sob a aparência de um só caso, contém dois: se algum dos herdeiros está na posse material dos bens, sem ter a administração — presumindo-se todos idôneos, antes de se indagar da idoneidade, como é a regra, e pede a abertura do inventário, dentro do prazo, esse deve ser nomeado, se não for provado que é menos idôneo. As preferências em virtude de sexo são de direito estrito; só se leva em conta a esse quando a lei o permite ou impõe. Em consequência desse princípio, o sexo não é elemento para se apurar a idoneidade. E tradicional no direito brasileiro só se escolher pela verificação da idoneidade maior se os herdeiros, em sua totalidade (não maioria, nem sequer todos menos o escolhido e mais um, ou menos um que não seja o escolhido), não elegeram inventariante (Alberto Carlos de Meneses, Prática dos Inventários, 3ª ed., 1, 17; não assim, José Pereira de Carvalho, Primeiras Linhas, V ed., 32, nota 59). O ser mais velho o herdeiro também não basta. A falta de herdeiro, que possa ser inventariante, é que permite nomear-se inventariante o testamenteiro, ou, se também falta testamenteiro, que se nomeie, nomear-se pessoa estranha. Se não há herdeiro, nem inventariante judicial, tollitur quaestio. Se há herdeiro, mas é incapaz, e não há inventariante judicial, nomeia-se o testamenteiro ou chama-se à inventariança pessoa estranha. Pergunta-se: se o herdeiro é pessoa domiciliada no estrangeiro, apode ser nomeado? O inventariante é autor, na ação de inventário e partilha, e pode ser-lhe exigida caução às custas, inclusive se, domiciliado no Brasil, se ausenta; salvo se tem bens imóveis que assegurem o pagamento das custas. Quanto a dinheiros e valores do espólio, pode o juiz ordenar o depósito. Escusado é advertir-se em que o juiz pode apreciar a idoneidade e, portanto, dela exigir provas. Todavia, não há, no sistema jurídico brasileiro, regra juridica que estabeleça incapacidade do estrangeiro ou do brasileiro, domiciliado no estrangeiro, para ser nomeado inventariante, quer se trate de pessoa que caiba na regra jurídica sobre cônjuge, quer na regra jurídica sobre herdeiro mais idôneo, quer na regra jurídica sobre testamenteiro. A nomeação de pessoa estranha, que seja domiciliada no estrangeiro, ou fora da jurisdição do juiz do inventário e partilha, apenas édesaconselhável. Daí serem sem razão a argumentação e a conclusão da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 7 de novembro de 1950 (DJ de 23 de agosto de 1951). Bem andou a 5ª Câmara Cível, de outra feita, dizendo: embora pudesse ter estabelecido a restrição, o legislador não a formula, e onde lei não distingue não é lícito fazê-lo ao intérprete. A ordem de transferéncias do art. 469 do Código de Processo Civil deve, em qualquer caso, ser observada’. 6. Testamenteiro. Se não há cônjuge, ou ele não tem legitimação, nem há ou não tem legitimação o herdeiro, cabe a inventariança ao testamenteiro, se o testador lhe confiou a posse e administração dos bens de herança. Sobre a posse do testamenteiro, nosso Tratado dos Testamentos, V, 184-207. Não basta que o testador haja ordenado a

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entrega imediata (portanto, posse e administração) de parte dos bens da herança. A regra jurídica sobre herdeiro mais idôneo, também se aplica se o testador distribuiu toda a herança em legados. Se há cônjuge meeiro ou herdeiro necessário, somente na falta acidental deles pode ter validade a cláusula de posse e administração do testamenteiro. A falta (incapacidade para ser inventariante, ou certeza de que não aceitará a inventariança) tem de ser antes da morte; porque, no dia da morte, se o cônjuge meeiro pode ser inventariante, ou se o pode ser o herdeiro, a cláusula testamentária é nula. Deve-se entender que a cláusula “nomeio-o testamenteiro e inventariante” implica “nomeio-o testamenteiro e dou-lhe a posse e administração da herança” (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 27 de junho de 1950, AJ 96/387). 7.Inventariante previsto em lei e inventariante dativa. A escolha do inventariante, dito, por isso, dativo, obedece ao critério das nomeações; não há ficção (vontade do decujo ou dos herdeiros) nem presunção de ter sido o preferido, ainda que recaia em legatário, ou em testamenteiro sem a posse e administração da herança. Não é, além disso, igual aos atos do juiz nas nomeações de cônjuge ou de herdeiro, cuja discutibilidade é fora de toda dúvida. Esses são atos de resolução: o juiz, aí julga. O que há de comum entre todos esses atos é serem atos constitutivos (formadores) judiciais, com maior, ou menor, elemento declarativo. A questão está em se saber até que ponto o elemento declarativo permite a impugnabilidade. Ponhamos de parte a alegação de ter o juiz pulado um dos legitimados, porque, ai, a sentença é injusta (iniqua sententia), por igual, em qualquer dos casos. Examine-se apenas a injustiça interna (e.g., convivência ou não-convivência com o cônjuge, não ter o herdeiro a admi-nistração, não ser o mais idôneo, não ter o testamenteiro a posse e a administração da herança, não ser idônea a pessoa estranha escolhida). Não há qualquer diferença entre as apreciações do juiz, nem entre as apreciações eventuais e a impugnabilidade desses diferentes atos do juiz, pois a única está na origem delas (partes, juiz). (a) Toda nomeação de cônjuge sobrevivente só se dá se o regime é o da comunhão de bens; portanto, não há a indicação legal se o regime é o da separação de bens, qualquer, ou o dotal. Comunhão, na espécie, entenda-se “comunhão universal” ou “parcial”. Se o cônjuge está separado judicialmente, comunhão não há, porque não há sociedade conjugal, e não seria possível pensar-se em nomeação com fundamento na lei. No Código de 1939, art. 469, 1, estava a regra assimétrica (marido, estivesse, ou não, vivendo com a mulher; mulher somente se estava vivendo com o marido) proveio do Código Civil de 1916, art. 1.579, §1ª. Devia-se interpretar que a nomeação tem de ser excluida se não estava vivendo com o marido, sem reger os bens, porque, se a mulher estava na direção e administração do casal, cessa a ratia legis. Mas tudo se apagou. O tratamento é igual. Também não se pode afastar da inventariança a mulher, se ela propusera ação de separação judicial ou de anulação, ou reconvenção, e apenas a separação preventiva fora decretada. Convivência, no caso previsto na lei (cuja assimetria, de lege ferenda, era condenada e, de lege lata, foi afastada), está por “habitação no mesmo lar” e não por “existência de relações sexuais entre os cônjuges”. Se o cônjuge não tem legitimação ativa para inventariante, como cônjuge, mas satisfaz requisito (herdeiro ou legatário, ou cessionário daquele, ou desse, ou o de ser testamenteiro, ou credor do herdeiro, munido de sentença executória ou de título de crédito certo e líquido), pode requerer o inventário e, se satisfaz algum dos requisitos, pode ser nomeado inventariante (no mesmo sentido, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 17 de outubro de 1950, DJ de 5 de agosto de 1952). (b) Não sendo o caso de se nomear cônjuge, um, dois, ou mais de dois herdeiros podem achar-se na posse e administração dos bens do decujo. Se somente um se acha com tal pressuposto, tem de ser nomeado; mas, nomeando-o, ou deixando de nomeá-lo, o juiz emite comunicação de conhecimento ou enunciado de fato (julgamento): “A está na posse e administração dos bens do decujo” ou “A não está na posse e administração dos bens do decujo”; e a verdade ou falsidade desse julgamento pode ser discutida em recurso. Se há dois ou mais nas situações exigidas, só a maior idoneidade pode decidir. E ai novamente emite o juiz comunicação de conhecimento ou enunciado de fato, com a possibilidade do recurso. (c) Se nenhum dos herdeiros está na posse e administração dos bens do decujo e há dois ou mais, qualquer nomeação contém o enunciado explícito ou implícito de que o nomeado é o mais idôneo. Também nesse caso a verdade ou falsidade da comunicação de conhecimento é discutível no recurso. (d) Se o testamenteiro não tem, pelo testamento, a posse e administração da herança, porém não há cônjuge nem herdeiro, ele é que deve ser nomeado. Há os seguintes enunciados de fato:

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não há cônjuge; não há herdeiro; o testamenteiro está em situação de exercer o cargo. Se o testamenteiro tem, pelo testamento, a posse e administração dos bens do decujo, pois que não há cônjuge sobrevivente nem herdeiro necessário (isto é, podiam ser-lhe concedidas a posse e a administração), deve ser nomeado. Os enunciados, em escala de questões prejudiciais, são, pois, os seguintes: a) o testador não tinha (ou não deixou) cônjuge ou herdeiro necessário; b) o testador concedera ao testamenteiro a posse e administração dos bens da herança; c) o testamenteiro está em situação de exercer o cargo. (e) A nomeação de pessoa idônea somente se dá se no lugar não há o inventariante judicial. Portanto, os enunciados são os seguintes: a) não há qualquer das pessoas mencionadas no art. 990; b) não há inventariante judicial, ou há, porém é impedido; c) o nomeado é pessoa idônea. Todos esses enunciados podem ser discutidos no recurso. A 1ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 21 de outubro de 1941 (RF 90/464), entendeu que o juiz pode nomear inventariante além do caso que a lei prevê, se há grave divergência entre os herdeiros com risco de entorpecer a marcha do processo de inventário. Não está isso na lei. 8. Legitimação à inventariança, feita abstração do interesse. Cada uma das pessoas indicadas na lei somente é inventariante, na falta do cônjuge e das referidas no outro ou nos outros textos legais. Falta, ou por não existirem, ou não estarem legitimadas, ou por serem incapazes. Qualquer delas, mencionadas como legitimadas, tem pretensão a postular, — pode, assim, pleitear a nomeação, e impugnar, antes de ser nomeada; o testamenteiro tem a pretensão a defender a sua posição e atacar a de quem o substituir. Há recurso de agravo de instrumento contra as nomeações e as destituições. A ordem legal tem de ser respeitada e a enumeração é exaustiva (1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 4 de agosto de 1941, RT 133/140; 2ª Câmara Civil, 12 de setembro de 1944, 152, 135). Não se introduza a exigência do interesse de exercer o cargo, que seria contra os princípios. A lei somente cogita, para a nomeação de inventariante, de legitimação, e qualquer alusão a interesse especifico seria absurda. Quanto ao cessionário da pretensão ou da ação (cessionário, que não é do direito, como o cessionário da pretensão reivindicatória), pode requerer o inventário; porém não tem pretensão a ser nomeado inventariante, porque não é legitimado a isso o próprio cessionário do direito (sem razão, a 4e Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 10 de agosto de 1951, DJ de 29 de abril de 1954; certas, a 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a 10 de dezembro de 1951; e a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 25 de setembro de 1952, RT 206/339). É pessoa estranha, como o próprio cessionário do direito, e somente pode ser inventariante dativo. A 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 11 de setembro de 1952 (RT 205/261), decidiu que, se há cessionário de herdeiro, ou de herdeiros, contra cuja idoneidade nada se articula e se revelou diligente no ativar o andamento do inventário, não se justifica a nomeação de pessoa estranha. Tem-se de pôr isso em termos de técnica jurídica: se há cessionário ou cessionários de algum ou de alguns herdeiros, o cônjuge meeiro ou o herdeiro prefere a ele ou a eles; se há cessionário ou cessionários de todos os herdeiros e há testamenteiro, o testamenteiro prefere; se há cessionário ou cessionários de todos os herdeiros, o que se pode dizer é que tal situação o recomenda ou os recomenda para a inventariança dativa. Não há pretensão do cessionário à inventariança. O credor do herdeiro pode suscitar a abertura do inventário e, provavelmente, obtém penhora no resto dos autos. Se, na ação executiva contra o herdeiro, o credor arremata a quota do herdeiro, a posição dele é de cessionário, que tem interesse em requerer a partilha e nela figurar. A incompatibilidade entre os herdeiros não justifica, de si só, nomear-se pessoa estranha para o cargo de inventariante (sem razão, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 28 de janeiro de 1947, RF 115/131, a 7ª Câmara Cível, a 17 de maio de 1947, 114/134, e a Câmara do Tribunal de Justiça de Sergipe, a 30 de setembro de 1952, DJ de Sergipe, 18 de outubro, e o Procurador-Geral da República, a 19 de novembro, Di de 2 de fevereiro de 1952). Com razão, a 4ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 17 de outubro de 1950 (RF 136/131: “... a ordem legal tem de ser respeitada e a enumeração é exaustiva (vede PONTES DE MIRANDA, Comentários, III, 1, 25). E, rigorosamente, a divergência entre herdeiros não abre ensejo ao juiz de nomear

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inventariante. Somente quando não possa o juiz encontrar inventariante dentro do quadro legal e na ordem que a lei estabelece, possível será a convocação de estranho”). Se sobrevém discórdia entre os interessados no andamento do processo, não pode o juiz nomear outro inventariante sem remover o que se achava exercendo o múnus. Discórdia não é causa de destituição, nem basta para se aplicar a regra jurídica sobre inventariante. É ilegal nomear o juiz o advogado do cônjuge meeiro ou do herdeiro, ou do testamenteiro, em vez de nomear quem pela ordem legal havia de ser nomeado. Para que se nomeasse pessoa estranha seria preciso que já se pudesse invocar a regra jurídica sobre inventariante dativo, isto é, que não houvesse qualquer legitimado das classes mencionadas na lei. Se há uma ou algumas pessoas, que possam ser nomeadas, só a renúncia ou as renúncias podem abrir o branco para a nomeação de estranho (cf. V Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, 24 de setembro de 1947, RT, da Bahia, 39/201). Sem razão, a 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, que a 28 de maio de 1948 (RT 175/305), destituiu viúva meeira, por ter idade avançada (mas estava no cargo, nomeada) e nomeou pessoa estranha, “por haver inimizade entre herdeiros” (não é causa de exclusão da legitimação à inventariança). Pergunta-se: jo cônjuge meeiro ou o herdeiro que está na posse e administração da herança, mas é incapaz, pode ser nomeado inventariante? A resposta é negativa. ~Em vez dele, pode ser nomeado o representante legal ou a pessoa que a ele teria de assistir? Responderam afirmativamente a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 4 de outubro de 1946 (AJ 81/61) e a T Câmara Cível, a 19 de agosto de 1947 (OD 50/274), mas sem razão. Seria difícil conceber-se que o herdeiro, sendo pessoa incapaz, tivesse a posse e a administração; de jeito que incidisse a regra jurídica sobre prioridade; outro herdeiro ou as teria, ou estaria em igual situação e seria mais idôneo. A nomeação do representante legal, ou da pessoa que teria de assistir, somente caberia como nomeação de inventariante dativo. O que se pode alegar é a recomendabilidade de tal estranho dentre os estranhos, pela função que exerce. Cresce de ponto a recomendação se os outros herdeiros o indicam ou se o indica o testamenteiro, que teria de ser nomeado (cf. 5ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 22 de outubro de 1946, RF 110/123). A nomeação para inventariante, a que alude a lei, é a nomeação que tem de ser feita pelo juiz. O testamenteiro só há de ser nomeado, se falta cônjuge, com os pressupostos legais para isso, ou algum herdeiro. Nada tem isso com a atribuição ao testamenteiro pelo testador: o testador somente pode fazê-la se lhe dá” a posse e a administração da herança por não haver cônjuge ou herdeiro necessário”. Confuso, e in causa injusto, o acórdão do Supremo Tribunal Federal, a 27 de junho de 1950 (AJ 96/387). O testador tem de reputar, ou não, necessária a nomeação, por ele, de testamenteiro. Pode nomear um, dois ou mais testamenteiros, conjuntos ou separados, e atribuir a todos, ou a alguns, ou a um a posse e administração dos bens da herança (se não há herdeiro necessário). As funções podem ser distintas, inclusive quanto a bens sob a posse e a administração. Se o testamenteiro é nomeado inventariante, por ser testamenteiro, com a posse e administração da herança, porque não há cônjuge legitimado à inventariança, nem herdeiro necessário, é como testamenteiro que o nomeia o juiz. Se não ocorre um dos pressupostos legais para que se prefira o testamenteiro a terceiro, trata-se o testamenteiro como pessoa estranha. Há apenas coincidência em ser testamenteiro e inventariante. Dai poder haver, em qualquer das espécies, duas remunerações, uma de inventariante, e outra, de testamenteiro, salvo se o testador previu a unidade da remuneração (cf. 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 22 de maio de 1939, RT 120/167). Não se pode dizer que não haja arbítrio do juiz na nomeação do inventariante, como fez a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 14 de junho de 1938 (RT 114/ 667). Somente não há arbítrio se há cônjuge, ou herdeiro legitimado à nomeação, ou se há testamenteiro com a posse e a administração da herança, ou nomeado pelo testador, se não há cônjuge nem herdeiro legitimado. Fora daí, a nomeação é pelo juiz, a seu Libito, apenas com a exigencía da idoneidade. Discute-se se pode a situação entre os herdeiros e o inventariante, ou a pessoa que havia de ser nomeada inventariante, ser tal que se justifique não se nomear quem está com os pressupostos para isso. Referem-se como causas para essa atitude omissiva haver dissidio que impeça a marcha do inventário ou a extrema necessidade (3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 19 de novembro de 1937, RT 112/596). É perigosa essa atitude do juiz. Mais acertado é que nomeie o inventariante, conforme a lei, e diante de alegações e provas o

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destitua. 9. Recurso. Pode agravar de instrumento contra a decisão de nomeação de inventariante quem quer que tenha pretensão ànomeação, o testamenteiro, a Fazenda Pública (2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, 24 de setembro de 1947, RT, da Bahia, 39/201) e o Ministério Público, os representantes legais dos herdeiros e legatários, em nome desses. 10. Impugnação da nomeação inventariante. Diversamente do que se passa na atual sistemática, no Código de 1939 havia regras jurídicas específicas pertinentes à impugnabilidade da qualidade de inventariante. Todas as nomeações eram igualmente impugnáveis, posto que os pressupostos de cada uma delas fossem diferentes. Além da impugnabilidade, havia o ataque à atendibilidade do despacho que nomeava, e. g., se o juiz nomeasse dois inventariantes. (a) Qualquer nomeação continuava impugnável até a avaliação dos bens. (b) Casos havia em que, removido ou substituído o inventariante, outro assumia o cargo nas vésperas da avaliação, e da nomeação só tiveram conhecimento os interessados nos cinco dias anteriores à juntada do laudo de avaliação: então, a preclusão não se dava. (c) Se a nomeação era posterior à avaliação, o ato do juiz, ainda que se tratasse de reposição cuja impugnabilidade não precluía, era impugnável, enquanto não se dava a expiração do prazo para o recurso. Nomeada alguma pessoa para a inventariança, era da data em que se rejeitasse ou acolhesse a impugnação que se contava o prazo para o recurso (1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 14 de abril de 1941, RT 131/582; Ad 58/437). Não havia recurso do despacho que “não reconsiderava” (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 4 de fevereiro de 1941, RF 87/440), ainda se não houvesse a impugnação formal. A impugnação, tal como concebida no Código de 1939 art. 470, §§ 1ª e era ação constitutiva negativa da nomeação; e não defesa, em ação de adiantamento de constituição. A qualidade de inventariante podia ser impugnada até a data da avaliação dos bens. Portanto, ainda depois de nomeado o inventariante, havia o lapso até a avaliação de bens para se oferecer a impugnação, pois que o juiz não mandou ouvir antes, os interessados. O recurso de agravo de instrumento era interponível da decisão que nomeava como da que mantinha; portanto, tivesse ou não havido oposição. Depois de feita a avaliação, ou à data em que se ia fazer, não mais havia impugnabilidade. Havia pedido de remoção, que tinha de ser fundado em texto legal. Tinha-se, pois, de prestar toda a atenção ao que estabelecia o sistema jurídico. Ou o juiz (a) nomeava, desde logo, o inventariante, que assinava o termo, ou (b) mandava que fossem ouvidos os interessados. Se (a), isto é, se nomeava desde logo, podia haver impugnação até a data da avaliação (se foi adiada, até a nova data). a) Se não havia, toilitur quaestio. b) Se havia, o juiz tinha de decidir. Se (b), isto é, se mandou fossem ouvidos os interessados, ou nomeava, ou não nomeava o que se apresentara. Em caso de (a), a), não havia mais recurso. Em caso de (a), b), havia recurso porque se tratava de nomeação ou de destituição. Em caso de (b), qualquer que fosse o despacho, havia recurso, mas continuava a impugnabilidade até a data da avaliação. Se falecia, ou renunciava, ou se tornava incapaz o inventariante, depois da data da avaliação, tudo se passava como se tivesse sido a primeira nomeação: ou o juiz ouvia (b) os interessados, antes de nomear, ou (a) nomeava e havia a impugnação. Do despacho que nomeava cabia recurso, ou impugnação, se ocorria (a); ou recurso, se ocorria (b). Foram equivocas as decisões que não desceram ao exame das espécies, como as da 2a Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 8 de abril de 1947 (RT 168/204), da 5ª Câmara Civil, a 14 de novembro de 1947 (172/273; RF 118/173), da 2ª Câmara Civil, 21 de novembro de 1948 (RT 177/339), e da 4ª Câmara Civil, a 14 de outubro de 1948 (RT 177/794 e 798). Cabia recurso do despacho que rejeitava ou julgava improcedente a impugnação, porque tal despacho, que mantinha, se considerava confirmação do despacho que nomeara (cf. 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 16 de janeiro de 1951, RF 142/154 e 30 de agosto de 1951, 144/168; 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 28 de setembro de 1950, DJ de 7 de agosto de 1952).

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O reclamante podia recorrer do despacho que nomeava sem serem ouvidos os interessados, ou sem ele ter sido ouvido,em vez de impugnar. Tanto mais quanto tal nomeação podia ter sido nas vésperas da data da avaliação. Se não recorria, podia fazê-lo até essa data; não, depois. Depois, somente podia recorrer ou impugnar, com recurso do despacho que rejeitava ou julgava improcedente a impugnação, se a nomeação mesma fora àquela data ou posterior. Se a nomeação fora anterior, não havia mais impugnabilidade; havia possibilidade de pedido de remoção ou destituição, e do despacho, que mantinha, não cabe recurso (sem razão, a 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 5 de dezembro de 1952, que admitiu recurso de agravo de instrumento). Era preciso não se confundir a decisão que se proferia no julgamento da impugnação, com a decisão que se proferia no julgamento de pedido de remoção ou destituição: daquela cabia agravo de instrumento, quer se negasse, quer se afirmasse a procedência da impugnação; desta, somente cabia agravo de instrumento se se deferisse o pedido. Por outro lado, se, acolhendo a impugnação, ou julgando o pedido, o juiz removia ou destitula e nomeava, havia dois despachos, com o recurso quanto àquele e o recurso ou a impugnação quanto a esse — o que a 5e Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 31 de janeiro de 1947 (RT 171/749) lamentavelmente não viu. Quanto à primeira nomeação ou a nomeação posterior, antes da data da avaliação, podia o interessado recorrer desde 1090 ou impugnar, uma vez que o fizesse antes da data da avaliação. Se não recorria desde logo, podia aguardar outro momento, antes da data da avaliação. Se recorria e perdia, a coisa julgada limitava-se à matéria do agravo de instrumento, de modo que ainda podia impugnar por outro fundamento, desde que o fizesse antes da data da avaliação. Se impugnava e perdia, recorrendo e perdendo, dava-se o mesmo. Se impugnava, perdia e não recorria, idem. Se a nomeação fosse posterior à data da avaliação, havia o agravo de instrumento, ou impugnação, que havia de ser tempestiva (isto é, no prazo para o agravo de instrumento), produzindo a coisa julgada no tocante ao fundamento, mas sem que se dilatasse o prazo para o agravo. Se o inventariante cabia numa das classes dos que a lei apontava, e, destituído, não recorria, mas recorriam os outros interessados, alguns ou um deles, podia ser reconduzido ao cargo. AIiter, em se tratando de inventariante dativo (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 8 de abril de 1948, RT 174/258). Ali, o interesse era o da observância da ordem legal. Sempre que havia impugnação, a rejeição, e não só o julgamento de improcedência, dava ensejo a agravo de instrumento (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 5 de agosto de 1949, RT 201/581). 11. Legitimação ativa para a impugnação. Legitimado a impugnar era qualquer dos “interessados”, ainda que não legitimável à inventariança, tal como o cônjuge sobrevivente, ou o herdeiro, que não cabia nas menções legais. Também o inventariante dativo, quanto à pessoa que o substituisse, se ainda lhe assistia pretensão ao cargo, isto é, se não fora removido. Todos os legitimados à provocação do inventário, inclusive o credor do herdeiro, munido de sentença com eficácia executiva, ou de titulo de crédito e líquido, eram interessados na boa inventariação, administração e partilha dos bens da herança, e eram legitimados a pedir a remoção, não necessariamente a impugnar a nomeação, por falta da qualidade. Havia de ser apurado o “interesse”. A regra jurídica só se referia à impugnação da qualidade de inventariante; não à remoção. O órgão do Ministério Público, se intervinha no processo com função de velar por incapazes ou ausentes, era autorizado a impugnar. Também o curador especial. O inventariante dativo, que fora substituido sob alegação de existir pessoa nas situações que a lei previa, podia impugnar: era legitimado para o agravo. O inventariante dativo, que fora removido, tinha a pretensão processual para recorrer, defendendo-se; não podia, todavia, impugnar a nomeação de outrem. Salvo se tinha outra legitimação (e. g., era herdeiro). A impugnação era ação constitutiva negativa, e não defesa em ação de adiantamento de constituição, razão por que, se desfavorável a decisão, o recurso era o de apelação. 12. Prazo para impugnar. O prazo para impugnar era até à avaliação, de modo que nenhuma intimação valia para a preclusão antes disso. Feita a impugnação, dava-se vista ao cônjuge inventariante, ou testamenteiro não-herdeiro inventariante, ou ao estranho inventariante, e aos herdeiros, ou ao herdeiro inventariante e aos outros herdeiros, O órgão do Ministério Público era ouvido; se interessado era o Estado, o representante da Fazenda Pública. O

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curador especial, sempre. 13.Compromisso do inventariante. O inventariante, intimado da nomeação, qualquer que seja a razão para o nomeá-lo, tem de prestar o compromisso de bem e fielmente desempenhar o cargo dentro de cinco dias. Tal regra jurídica não estava no direito anterior. O prazo é de grande relevância, porque dentro de vinte dias, contados da data em que prestou o compromisso, tem de fazer as primeiras declarações, cujo termo é assinado pelo juiz, pelo escrivão e pelo inventariante, com os requisitos do art. 993, pois, se não o faz, é removido. Pergunta-se: 2pode, por motivo de força maior, suspender-se o prazo (cf. arts. 265, 111, e 180)? A resposta é afirmativa. Para tais soluções concorre o art. 187, se foi o juiz que esteve privado de assinar o termo. § 24. Destituição e remoção de inventariante 1. Remoção de inventariante. A remoção de inventariante é a eficácia sentencial que retira o cargo ao inventariante, por haver esse incorrido em falta, no exercício do cargo. Não abrange todos os casos de destituição, porque essa pode ocorrer por ato fora do exercício, como consequência de condenação criminal, por exemplo. A lei enumera, quase cronologicamente, os casos de remoção. Em todos eles, nasce a qualquer dos interessados a pretensão de exigir a remoção do inventariante. A lei estatui sobre o pressuposto subjetivo e sobre os pressupostos objetivos, cada um dos quais é suficiente, 2. Causas de remoção. O inventariante pode ser removido a requerimento de qualquer interessado: a) quando não prestar, no prazo legal, as primeiras e últimas declarações; b) quando não der ao processo do inventário o andamento regular, suscitando dúvidas infundadas ou praticando atos meramente protelatórios; c) quando deixar culposamente que os bens se deteriorem, sejam danificados, ou dilapidados; d) quando não defender o espólio nas ações em que for citado, deixar de cobrar dívidas ativas, ou não promover as medidas necessárias para evitar o perecimento de direito; e) quando não prestar contas ou as que prestar não forem julgadas boas, aprovadas; f) quando sonegar, ocultar, ou desviar bens do espólio. A remoção pode ser pedida a qualquer tempo, desde que o faça algum interessado. A lei fala de requerimento (Código de Processo Civil, art. 996), e havemos de entender que o pode fazer qualquer interessado. Por isso, foi absurda a decisão da 6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 16 de março de 1951 (RT, 190/785), que negou legitimação ativa ao credor habilitado no inventário, ao pré-contraente comprador e ao comprador de bens do espólio. O Ministério Público e a Fazenda Pública podem ser interessados (e. g., 8ª Câmara Cível do Tri-bunal de Justiça do Distrito Federal, 21 de julho de 1950). A lista do Código de Processo Civil, art. 995, suficientemente vasta, é exaustiva, no tocante a atos do inventariante que sejam bastantes para afastamento dele. A colisão de interesses entre o espólio e o inventariante não impõe a remoção (sem razão, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 26 de novembro de 1946, RF 110/449). É preciso que haja uma das causas previstas na lei. A solução é a nomeação do inventariante ad hoc, se tem de funcionar noutro juízo ou no mesmo o inventariante. Tampouco basta o ter perdido a confiança no inventariante dativo o juiz, conceito que impertinentemente se insinuou no acórdão da 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 29 de abril de 1947 (RT 168/212). A complexidade do processo não é causa para remoção (sem razão, a 1) Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, 30 de novembro de 1950, Paraná J 54/20). Sê—lo-ia a falta, ou a menor idoneidade, em relação aos outros herdeiros, arguida pelos interessados. A enumeração legal é taxativa (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de março de 1951, RT 192/283). a) e b) A 5ª Câmara Civel do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 24 de janeiro de 1941 (RF 86/615), removeu o inventariante, porque, após alguns meses de abertura, ainda se achava o inventário na “fase das declarações iniciais”, em “consequência de divergências e lutas entre os interessados” (aliena culpa!). Cumpre distinguir: se ainda não tinha assinado o termo de descrição dos bens, a culpa era dele, e o caso estaria na lei; se já havia descrito os bens, a culpa de outrem de modo nenhum poderia justificar a sua remoção. Somente seria de se

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remover em algum caso acima mencionado em a) até f). c) O inventariante não pode transigir, sem alvará do juiz (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 24 de fevereiro de 1950, RT 186/225; 2ª Câmara Civil, 13 de fevereiro de 1951, 192/149); nem alienar, nem hipotecar, nem empenhar ou praticar quaisquer atos que exorbitem da administração, sem que o autorize o juiz. d) O inventariante representa a herança, de modo que a sua revelia provaria que não está a exercer, como cabia, os seus deveres de representante processual por força de lei. No terreno técnico legislativo das sanções, ou o legislador adotaria a perda da representação, se não constituiu advogado, ou a perda do cargo. Preferiu a segunda solução. Resta saber se a negligência, ou dolo do advogado, infração dos deveres de postulação, acarreta a do inventariante. Se ele prova ter tomado todas as providências e uma vez que o advogado tem contrato aprovado, ou foi contratado por todos os herdeiros e está o inventariante isento de qualquer culpa, a lei é inaplicável. Diga-se o mesmo no caso de não se promover a cobrança das dívidas ativas, ou não se empregarem os meios para lhes interromper a prescrição. Quanto ás dívidas ativas, são descritas no termo de inventário; bem assim as ações a serem propostas. Se essas, concernentes a dívidas, ou as que depois nascerem, não forem intentadas, incorre em responsabilidade o inventariante. Os pressupostos são (a) de tratar-se de pretensões consistentes em exigência de valor patrimonial (b) de que tenha conhecimento o inventariante, e (e) ter havido prejuízo em não serem propostas as ações. A obrigação de indenizar danos ao falecido ou à herança é dívida ativa, como as demais que não caibam na usual expressão “dívida de dinheiro”, ou de prestação pecuniária ou de “quantia”. Portanto, a expressão “dívidas ativas” está em sentido geral (de dar, de fazer, de não fazer, incluídas as de prestar declaração e a de “comunicar”, isto é, a obrigação de prestar contas, espécie que aos juristas esqueceu classificar como espécie autônoma de obrigação); e não só de dívidas de prestação de dinheiro, menos ainda de dívidas líquidas, ou em documento. O inventariante tem de estar atento aos prazos que extinguem pretensões ou ações, quaisquer que sejam; e pode ser responsabilizado e removido pela não-interrupção da prescrição ou pela simples perda de certa forma do processo. f) Prevê-se a sonegação, que é a ocultação em parte de quem tenha obrigação de comunicar quais os bens do defunto (obrigação que têm o inventariante e o herdeiro), a ocultação, que é o simples escondimento, como se alguém esconde frutos percebidos depois da abertura da sucessão, o desvio, que é o de participar ou ser cúmplice em fazer constar como sendo de outrem o que pertence à herança, e a dilapidação, que abrange esbanjamento, despender inútil ou supérfluo, excesso de generosidade com os bens da herança ou seus frutos; inclusive transações ou abatimentos. A ação de sonegados nasce com a ocultação ou conhecimento da ocultação. São legitimados ativos todos os que têm direito aos bens sonegados, inclusive os legatários. São legitimados passivos os que têm o bem em seu poder, sabendo disso, e não cumpriram o dever de os dar a inventário, todos os que, sabendo da ocultação, não deram a inventário os bens ocultados, e todos os que teriam de colacionar. A ação é constitutiva e executiva; com a pena de sonegados obtém-se a desconstituição do direito à herança, respeito a esses bens. Se não houve ocultação, nem conhecimento de ocultação, por parte do que tinha dever de inventariar, ou dar a inventário, não cabe pensar-se em ação de sonegados (que é constitutiva executiva); tem-se, apenas, de pedir sobrepartilha, ação executiva loto sensu. É de discutir-se a ação, no que concerne à desconstituição (perda do direito), se exerce contra os herdeiros de quem deveria dar a inventário ou colacionar, e não no fez. Manuel Mendes de Castro (Practica Lusitana, II, 206) deu a solução: Actio de sonegados non datur contra haeredem haeredis, nisi in quantum ad eum pervenit. José Homem Correia Teles (Doutrina dos Ações, § 156, 180) não o entendeu e generalizou. A sonegação ou provém do inventariante, que faz as declarações, ou do herdeiro, que não é inventariante, ou de terceiro, se o inventariante ou o herdeiro ou o legatário tem ciência disso. Quem deixa de apontar à colação bem dotado ou doado sonega. Quem, herdeiro, legatário ou inventariante, se nega a restituir bens que são da herança é sonegador. Se alguém, herdeiro, legatário, ou credor do espólio, afirma e prova existir algum bem, ou existirem alguns bens, e o inventariante o nega, esse está a sonegar. Quem quer que, herdeiro ou legatário, tenha consigo bem pertencente ao espólio, ou que sabe que está com outrem, e não o declara, ou se recusa a isso, incorre em pena de sonegação. Quem quer que tenha de figurar no inventário, inclusive o inventariante dativo, tem o dever de apontar e descrever o bem. As penas constam do direito material e, tratando-se de inventariante, a da remoção, a da restituição e, se não podem ser restituidos os bens, a indenização.

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Temos de distinguir da ação de sonegação, regida pelo Código Civil, art. 1.782, de que pode resultar a remoção do inventariante, conforme o art. 1.781. Não se fala, no Código Civil, da promoção da ação de sonegação pelo inventariante, mas cabe-lhe representar o espólio, ativa e passivamente, e trazer à colação os bens recebidos pelo herdeiro ausente, renunciante ou excluído (Código de 1973, art. 991, 1 e VI). 3. Desaprovação e falta de prestação de contas. e) A obrigação de prestar contas entra na classe das obrigações de fazer e, dita de “comunicar”, é subclasse, como a de “declarar a vontade”. Portanto, pode ser removido o inventariante ou pelo fato de não as comunicar no tempo devido; ou por prestá-las de modo incompleto, ou falso (mas prestá-las, enfim). Não basta, para a remoção, que tenham sido impugnadas. A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 24 de janeiro de 1941, removeu inventariante pelo simples fato de lhe terem sido impugnadas as contas; mas sem razão alguma: os juizes, removendo-o, prejulgaram, de certo modo, a impugnação. O inventariante não está sujeito a prestar contas somente ao terminar a administração (sem razão, a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 19 de setembro de 1950, RT 189/664); tem de prestá-las à medida que se faça mister que as preste, como se teve de liquidar sociedade, ou receber anuidades, ou aluguel, ou se, diante de situação que se caracteriza, o juiz lhe marca prazo para as prestar.

Capítulo XI

Ação de sonegados § 25. Conceito e natureza da sonegação 1.Conceito. Diz-se sonegado o que deveria ser descrito e entrar na partilha, porém não o apresentou o herdeiro, ou, tendo sido doado ao herdeiro algum bem, não o levou à colação, ou o inventariante, que sabia ser o bem elemento da herança, não o descreveu. 2.Regras jurídicas explícitas. A regras juridicas atendem a que sonegar vem de sub-negare (subnegare). Quem sonega nega por baixo, disfarçadamente, dissimuladamente. Tanto sonega o herdeiro que deixa de comunicar que tem a posse, ou a tença de bem ou de bens da herança, para que se inclua no inventário, como aquele herdeiro que, sabendo que outrem está com a posse ou a tença do bem ou dos bens da herança, não o comunica, como aquele que deixa de levar à colação o que lhe cumpria levar, e como aquele que tinha de restituir o bem ou os bens, e não no fez. Sonega quem herda, ou é inventariante. Há três atitudes que foram assumidas para a interpretação das regras jurídicas sobre a sonegação: a) a de se entender que existe sonegação sempre que se não dá ao inventário para se incluir no monte aquilo que devia mencionar quem sabe existir (cf. Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Esboço de um dicionário Jurídico, II, verbo “Sonegar”: “não dar ao inventário para se empadroar aquilo, que quem sonega deve manifestar”); b) a de se considerar sonegação o que se deixou de mencionar com dolo,, ou má-fé; c) a de se ter por sonegador quem ocultou, ciente ou não de ser da herança o bem. Em a) supõe-se o dolo, ou a má-fé, ou a culpa, pois que o herdeiro sabia que tinha de apontar, ou de colacionar, ou sabia que outrem tinha a posse ou a tença. Por isso, o demandado pode provar que não sabia (ônus da prova ao demandado), ou cabe ao demandante alegar e provar (o que seria menos acertado, pois que já provou a posse ou a tença do demandado); salvo se a posse ou a tença era de outrem, porque, aí, o demandante tem de alegar e provar que o demandado disso tinha conhecimento (ônus da prova ao demandante). A solução interpretativa b) tornaria pressuposto necessário para a aplicação das regras juridicas sobre sonegação a alegação e prova do dolo, ou da má-fé. O demandante teria de alegar, na petição, o dolo, ou a má-fé, e prová-lo. No sentido da solução a), que dera Clovis Bevilacqua e que sempre defendemos, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal a 1ª de agosto de 1948 (RF 123/403) e a 24 de abril de 1951 139/174, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de

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Justiça do Paraná, a 15 de março de 1949 (Paraná J 49/400), a V Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 26 de junho de 1945 (J 26-27/542), e a 27 de julho de 1939 (AJ 53/58), a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 3 de outubro de 1944 (RT 156/599) e antes, ambiguamente, a 10 de novembro de 1942 (143/153), e a 4ª Câmara Civil, a 13 de agosto de 1941 (135/141). No sentido da solução b), a 1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 9 de abril de 1945 (RT 158/219). O sentido da solução c) é indefensável diante das regras da lei. 3. Cônjuge sobrevivo e sonegação. O cônjuge meeiro, não herdeiro, não está incluído como pessoa que tem o dever a que se refere a lei (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 17 de dezembro de 1945; 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 14 de junho de 1939; 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Minas Gerais, 13 de agosto de 1945, RT 121/198, e 159/817; 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 23 de maio de 1950, 187/201; 5ª Câmara Civil, 20 de abril de 1951, 192/695; sem razão, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, a 17 de julho de 1939, AJ 53/58, e as Câmaras Conjuntas do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 23 de setembro de 1938, 116/713). A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 24 de julho de 1951 (DJ de 6 de agosto de 1951), confundiu “cônjuge meeiro” com herdeiro. 4. Distribuição de bens em vida do decujo. Se o decujo distribuiu, em vida, bens, inclusive dinheiro, aos filhos, ou outros descendentes, ou a algum herdeiro necessário, ou houve doação, ou adiantamento de legitima. Se houve doação, não há pensar-se em pena de sonegação (3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 4 de agosto de 1943, RT 147/167). Se há dever de colação, a regra jurídica incide. 5. Partilha em vida. Se houve partilha em vida, o inventário, que se faz após a abertura da sucessão, e a partilha dos bens posteriormente adquiridos têm de referir-se ao que foi partilhado em vida. Se fora feita partilha amigável de alguns bens, sem qualquer discrepância, e depois se inventariaram outros bens e se fez outra partilha, o fato de se não mencionarem, no inventário e na nova partilha, alguns bens ou algum bem ou todos os bens amigavelmente partilhados, não é sonegação (Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Ceará, 30 de julho de 1953, JD 11/158). 6. Herdeiros do sonegador. Discutiu-se se a pena de sonegação atinge os herdeiros do sonegador (afirmativamente, com razão, a Q Câmara Civil da Corte de Apelação de São Paulo, a 2 de outubro de 1935, RT 103/305; negativamente, a 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 14 de setembro de 1943, 148/236, mas apenas quanto aos herdeiros do inventariante não-herdeiro). 7. Herdeiro e inventariante. Para o sistema jurídico, há sonegação se o herdeiro deixa de dar a descrição dos bens que tinham de figurar no inventário, se estão em sua posse ou tença, ou, com ciência sua, na posse ou tença de outrem, ou bens que tenham de ser levados à colação, ou restituidos. Não se falou de inventariante; falou-se em não haver descrição no inventário. Alude-se à sonegação pelo inventariante, apenas como uma das hipóteses. A sonegação pode ser de um bem, ou de dois ou mais, ou de todos (e. g., o decujo só deixou pedras preciosas no cofre e o herdeiro, sabedor disso, não o comunicou ao juizo, ou ao inventariante, ou aos outros herdeiros). Qualquer herdeiro é atingido pelas regras jurídicas sobre sonegação; e não só, como no direito romano, heredes sui et necessaru. 8. Dualidade de penas. A pena cominada é a de perda do direito relativo ao bem sonegado ou aos bens sonegados. Uma vez que há a universalidade, a perda é do valor do bem sonegado, ou dos bens sonegados, valor que se deduz do quinhão do herdeiro sonegador. O bem sonegado volta ou os bens sonegados voltam, mas o sonegador somente recebe o que seria o monte sem o bem sonegado ou sem os bens sonegados. Se sonegou toda a herança, nada recebe. Pode coincidir que seja herdeiro sonegador a pessoa que exerce a inventariança. Será removido o inventariante herdeiro, se houve prova da sonegação, e o mesmo acontece se alguém indicou algum bem e ele negou a existência do bem. A regra jurídica é abrangente dos casos de negar o inventariante que o bem seja do monte hereditário.

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Não há pena de sonegação para o inventariante que não é herdeiro, não se poderia entender que incorre em sonegação o inventariante que não é herdeiro. A remoção do inventariante, que não é herdeiro, rege-se pelos princípios do direito processual civil. Para que se possa invocar a regra juridica sobre remoção em caso de sonegação, é preciso que o inventariante seja herdeiro e tenha havido a sentença na ação de sonegação. Se transitou em julgado tal sentença, removido, destituído, está, automaticamente, tal inventariante (cf. 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 3 de outubro de 1944, RT 158/688). § 26. Procedimento judicial 1. Ação de sonegação e requerimento de inclusão de bens. A regra jurídica sobre a ação de sonegados de modo nenhum afasta que se requeira ao juízo a inclusão de algum bem ou de alguns bens que estão na posse ou tença do herdeiro, mesmo inventariante, ou de terceiro. A penalidade pela sonegação é que somente pode ser decretada em sentença que se profira em ação ordinária. Não há decretação de sonegação, de que resulte pena, sem ter havido sentença em que se aprecie a omissão da pessoa. Se o herdeiro não deu para descrição o que tinha consigo, como possuidor, ou como tenedor, ou o que, com ciência sua, estava na posse ou tença de outrem, entende-se que o fez de má-fé. Se ciente estava, tinha o dever de dá-lo para a descrição, ou comunicar ao inventariante ou ao juízo. O ônus da prova de que não tinha ciência ou de que não deixara de comunicar sem má-fé, dolo, ou culpa, é do demandado, e não do demandante. 2. Eficácia da sentença proferida na ação de sonegação. A ação de sonegação é ação constitutiva, com eficácia mediata de declaração e eficácia imediata de executividade (constitutividade, 5, executividade, 4, declarativídade, 3). Não é preciso, portanto, propor-se ação executiva de sentença. A constitutividade atinge o sonegador. A executividade apanha o bem sonegado ou os bens sonegados. Qualquer dos efeitos pode ser alegado pelo demandante ou qualquer dos interessados. O próprio credor de outro herdeiro que tem interesse no aumento do quinhão do devedor, em consequência da perda pelo sonegador, tem legitimação ativa. A ação de sonegação é constitutiva. Quando se diz que a sentença, que se proferir na ação de sonegados, movida por qualquer dos herdeiros, ou credores, aproveita aos demais interessados, não se redige regra jurídica de extensão da eficácia da sentença (e. g., fazendo excepcionalmente atingente dos outros interessados a coisa julgada material da sentença “declarativa”, ou condenatória”): a regra jurídica apenas explicita a eficácia própria da ação constitutiva. No direito civil alemão, a ação é apenas de condenação; no direito civil francês, constitutiva. 3. Cônjuge meeiro ou com parte em algum bem comum. O cônjuge que não tem comunhão matrimonial de bens, seja ou não universal, está fora da legitimação ativa para a ação de sonegação. A dúvida surgiu no tocante ao cônjuge que tinha bens comuns com o falecido e agora os tem com os herdeiros. Mas a solução é, diante do texto da lei, no sentido negativo. Se o cônjuge sobrevivente não é herdeiro, nem credor, falta-lhe legitimação ativa para a ação de sonegados. E legitimado, como qualquer comuneiro, às ações de vindicação e de restituição (e. g., ação reivindicatória, ação de vindicação da posse, ações possessórias). Cf. 1ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Goiás, 26 de fevereiro de 1945 (RGJL 1/35). 4. Tributos e sonegação. A ocultação de bens pelos herdeiros somente para evitamento de paga de tributos não dá legitimação à ação de sonegação (1ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Goiás, 17 de julho de 1944, RT 157/305; e 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 24 de abril de 1945, 156/683; contra, a 3e Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 20 de novembro de 1940, 134/171). O que se há de entender é que incidem as regras juridicas fiscais de penalidade.

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Se a Fazenda Pública é credora de algum herdeiro e pode executar bens do herdeiro, ou cobrar-lhe a dívida, é credor como qualquer outro, e pode propor a ação de sonegação. Se era credora do decujo e ainda o é dos herdeiros, pode propor a ação condenatória contra esses, ou a ação executiva. Se algum herdeiro retira da herança bem ou bens, bastam à Fazenda Pública a alegação e a prova de que o bem ou os bens são da herança, e contra eles exercer a ação executiva. Não se há de confundir a espécie com a de sonegação pelo herdeiro (cf. 1ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Goiás, 17 de julho de 1944, RT 157/305). Se, em vida, o decujo distribuiu bem, ou bens, inclusive ações, apólices ou dinheiro, não cabe à Fazenda Pública a ação de sonegação (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 24 de abril de 1945, RT 156/683). O imposto de transmissão é pago pelo herdeiro. Se esse não tem bens suficientes, conforme a partilha, e houve sonegação de bens, pode ser proposta a ação de sonegação pelos co-herdeiros (cf. 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 20 de novembro de 1940, RT 134/171). § 27. Restituição e prestação do valor 1.Restituição “in natura”. Com o transito em julgado da sentença que condenou o sonegador, tem de ser restituido o que foi sonegado. Para isso, basta o requerimento ao juiz da ação, porque há eficácia imediata executiva na sentença proferida e transita em julgado. Se a restituição in natura não pode ser feita, por tê-los alienado, ou perdido, ou destruído o sonegador, ou outrem por ele, há de ser pago o valor, mais as perdas e danos. 2.Indenização. A restituição ou é in natura, ou em dinheiro. Quem, com a posse ou a tença, causou perdas e danos, mesmo se in natura a restituição, tem de prestar perdas e danos. Não se trata apenas de prestação de valor e juros de mora. A restituição há de ser feita ainda que a sentença tenha decidido que não houve má-fé (e. g., que o herdeiro não sabia que o bem ou os bens eram de herança). Quanto à indenização, aí, não se rege pela regra jurídica sobre sonegação, se os bens não mais estão com o sonegador, mas sim pelos princípios de direito das coisas, concernentes à restituição de bens alheios. Cf. Tribunal de Justiça de Alagoas, 26 de agosto de 1940 (OD 65/264). § 28. Tempo para a arguição 1.Herdeiro e inventariante. Só se pode arguir de sonegação o herdeiro inventariante depois de encerrada a descrição dos bens, com a declaração, por ele feita, de não existirem outros por inventariar e partir, e o herdeiro, arguido a sonegação, depois de declarar no inventário que os não possui. O demandante, se o demandado é o inventariante, há de referir-se ao encerramento da descrição dos bens, de que não consta o bem que entende ter sido sonegado, ou de que não constam os bens que entende terem sido sonegados. Se houve decretação de invalidade da descrição, não se extinguiu o tempo para o inventariante incluir o bem que se tem como sonegado, ou os bens que se têm como sonegados (cf. Tribunal de Justiça do Ceará, 2 de abril de 1943, JD VII/243). O herdeiro somente pode ser tido como sonegador depois de declarar, no inventário, que não os possui, ou não os tem, ou que outrem os possua, ou tenha, com ciência sua. Daí ser aconselhável a interpelação, se o herdeiro não se manifestou. 2. Momento inicial para a arguição. O herdeiro inventariante somente se expõe à ação de sonegação depois de se ter encerrado a descrição, com a declaração, que é pressuposto necessário do encerramento, de não haver outros bens para inventariar. O herdeiro, que não é inventariante, ou teve ocasião de declarar que os não possui, ou deles não há tença, ou que outrem não tem posse nem tença, ou fez a declaração por ter havido interpelação, ou pergunta

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em depoimento. Somente após a negativa é que pode ser proposta a ação de sonegados. De modo nenhum se permite que se acuse de sonegação o inventariante que não é herdeiro. Se não é herdeiro e omite, o caso não é regido pelas regras jurídicas sobre sonegados, sim pelas regras jurídicas sobre atos ilícitos e as de direito penal. O efeito da sentença é de remoção, não de perda de bens, pois que, ex hypothesi, não herdara. Se alguém renunciou, sem dizer qual o bem ou os bens, que lhe tocariam e de modo nenhum se pode considerar herdeiro, a ação de sonegados não cabe: o renunciante fez-se terceiro.

Capítulo XII

Ações relativas às fundações § 29. Conceito de fundação 1. Fundação. Na fundação há patrimônio atribuído a um fim, porém isso só por si não a explica. O bem de família é afeto a um fim; o bem de fideicomisso, ou o bem em fidúcia, também o e. Demais, o bem, aí, é meio, porque o fim de tal maneira importa que a personalidade é implícita no conceito. Tanto assim que L. Enneccerus (Lehrbuch, 1, 1, 12ª-14ª ed., 284) e Andreas von Tuhr (Der Aligemeine Teil, 1, 593) não reputam essencial a existência do bem, do patrimônio. Em parte, com razão. O elemento “vontade humana criadora” (dos instituidores) é o dado genético mais importante (E. H. Behrend, Die Stiftungen, 394), mas isso não esclarece a distinção entre as fundações autônomas e as não autônomas fiduciárias (e.g., o prêmio Pedro Lessa, da Academia Brasileira de Letras). A organização, o destinar, a direção afetiva da vontade, é comum a muitos institutos, a despeito de diferença de dosagem. A personalidade dirigida a um fim só, ou só a alguns fins, que o instituidor escolhe, específicos — tal o que distingue a fundação. Não se tire das regras jurídicas argumento contra a secundariedade do patrimônio suficiente, porque de ordinário são dispositivos. Nem o art. 30 do Código Civil exclui a fundação que continua sem outros bens da vida que a ação dos membros da sua administração. As fundações a que se referem as leis são as fundações autônomas, personificadas, ou em via disso; não as que consistem em bens atribuidos a fins, mas entregues a alguma pessoa física ou juridica, ou administrados pela própria pessoa. 2. Estrutura jurídica da fundação. Na fundação, falta a pluralidade de pessoas, que está por baixo (sem ser causa) da personalidade jurídica, nas sociedades. As pessoas que aparecem são membros da administração, tal como ocorreria a qualquer administração de negócios alheios. A fundação tem a sua personalidade, distinta da personalidade dos seus administradores. A sociedade também a tem, distinta da personalidade dos seus sócios; porém, no caso da fundação, nem sequer se pode ter a ilusão de que a aliança de pessoas encha, na realidade, a personalidade jurídica. A organização, acima dos administradores, personifica-se. Daí a relevância do processo organizatório das fundações, que é “engendrante”, em vez de ser “resultante”, como nas sociedades. Um dos elementos mais ressaltantes, pela condição da economia individualística, é a vinculação do patrimônio ao fim; mas, ainda sob o sistema econômico vigente, não é essencial. As teorias que falam de personificação de pa-trimônio, se não caíssem no terreno epistemológico e doutrinário, cairiam no terreno prático, diante da fundação

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que continua vivendo de dádivas ou de esmolas. O erro é tão grande quanto o de se personificar a vontade (sobrevivente) do fundador (Otto von Gierke, Deutsches Privatrecht, 1, 645), ou, o que passa de toda medida, revelando primitivismo psíquico, a vontade “sempre presente e imutável” do fundador (Carl Crome, System, 1, 234). Erro também é atribuir-se a personalidade aos destinatários (àqueles a quem o instituidor entendeu beneficiar), como queria, a todo pano, Christian Meurer (Die juristischen Personen, 43 ou utilizar o Estado, como encarregado, para explicar a ficção da personalidade da fundação (Wilhelm Henle, Lehrbuch, 1, 442 s.). Distinguem-se nas fundações: a) o negócio jurídico fundamental; b) a personificação; c) o seu funcionamento. Porém, atenda-se a que a declaração de vontade, nesse caso, perfaz, por si, o negócio jurídico. A aquisição dos bens pela fundação antes de ser personificada é problema de técnica legislativa a que os sistemas jurídicos dão soluções diferentes: a) somente regra especial, sobre a disposição testamentária ou do nacional, pode servir a essa aquisição fora das regras de direito; E» a regra jurídica sobre a instituição permite que se destinem bens à fundação, não aquisições de outrem; c) a fundação, desde a instituição, ato de direito privado ou público, é como o nascituro. A solução do direito brasileiro é a solução b). O registro é formalidade integrativa, para a eficácia erga omnes e para a personificação. A aprovação dos estatutos pertence à fase negocial, e não à da personificação; é integrativa do negócio jurídico. A personificação é posterius. 3. Fiscalização das fundações. O papel do Estado, na fiscalização das fundações, não se confunde com o que ele tem na regra jurídica sobre aprovação dos estatutos ou de suprimento judicial de aprovação. Ali, é a função de fiscal; aqui, a de declarante (ato constitutivo integrativo, sucedâneo do ato constitutivo integrativo). § 30. Estatutos das fundações 1. Estatutos da fundação. O dever de formular os estatutos da fundação cabe àquele, ou àqueles, a quem o fundador cometeu a aplicação do patrimônio, se os estatutos não foram elaborados pelo próprio instituidor. Esse dever há de ser exercido dentro dos moldes que a escritura pública, ou o testamento, traçou, quer quanto à finalidade, quer quanto à organização, e antes de expirar o prazo que o instituidor marcou. Sob o Código de 1939, se não cogitou o prazo, ao órgão do Ministério Público tocava constituir em mora o incumbido, ou os incumbidos. Nem o Código Civil nem o Código de Processo Civil de 1939 com tinham regra jurídica dispositiva, quanto a prazo, que pudesse incidir na falta de prazo fixado pelo instituidor. 2. Apresentação dos estatutos pelo Ministério Público. No Código de 1973, o art. 1.202, 11, prevê que haja o instituidor marcado o prazo para a pessoa encarregada cumprir o que se estabeleceu, ou que se não haja cogitado isso, caso em que se espera o cumprimento durante seis meses, findos os quais é o órgão do Ministério Público que elabora o estatuto e o submete à aprovação pelo juiz. Duas funções diferentes: a do orgão do orgão do Ministério Público quando aprova ou desaprova o estatuto (art. 1.201) e a do órgão do órgão do Ministério Público quando os elabora e os submete à aprovação pelo juiz. 3. Elaboração judicial ou extrajudicial dos estatutos. Além dos casos de elaboração dos estatutos por via judicial, quando o órgão do Ministério Público se substitui, por lei, às pessoas incumbidas, há a elaboração por via extrajudicial. Entendamos o art. 1202,11: após a expiração do prazo de que fala o art. 1.202, II, o orgão do Ministério Público, sic et sim pliciter, faz o estatuto, e leva-o à aprovação pelo juiz e a registro. Aos interessados, que lhe quiserem atacar o ato, se perderam na apelação, não lhes resta senão propor a ação rescisória da aprovação. 4. Apresentação e autuação do pedido. Se os estatutos foram elaborados e submetidos à aprovação do órgão do Ministério Público, tem esse de verificar se foram observadas as exigências do instituidor e das leis e se os bens

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bastam aos fins a que se destinam. A data da autuação do pedido é de grande importância, porque daí começa o prazo para o ato do órgão do órgão do Ministério Público. Havemos de entender que as modificações têm de ser ordenadas dentro do prazo de quinze dias (Código de Processo Civil, art. 1.201). Todavia, se o interessado demora, cabe ao orgão do órgão do Ministério Público outro prazo, uma vez que o primeiro se extinguira. No Código de 1973, o art. 166 estatui que, ao receber a petição inicial de qualquer processo, o escrivão o autuará, mencionando o juízo, a natureza do feito, o número do seu registro, os nomes das partes e a data do início. Não se diga que éimpróprio exigir-se a autuação. Não se falou, no art. 1.201, de entrega ao órgão do Ministério Público: falou-se de pedido (portanto, de petição) e de autuação. O pedido é a apresentação ao escrivão, que o autua e, logo após, o remete ao órgão do orgão do Ministério Público. Advirta-se que junto ao pedido é que vai o estatuto. Dissemos logo após, pelo fato de começar da data da autuação o prazo de quinze dias para o órgão do órgão do Ministério Público se manifestar: ou aprova, ou desaprova, ou indica as modificações que entender necessárias. Quando, diante da desaprovação, ou da modificação ou das modificações, o interessado requer ao juiz, a aprovação, tal requerimento já é nos autos em que estão o pedido, o estatuto e a resolução do orgão do Ministério Público. 5.Aprovação dos estatutos. A aprovação pelo orgão do Ministério Público é função constitutiva integrativa, semelhante àde certos notários, sucedâneas ambas, historicamente, da função euremática dos iudices chartularii. O orgão do Ministério Público é, no Código de Processo Civil, art. 1.201, “juiz” cartular, coopera na ultimação do negócio juridico e a sua “resolução” (aprovação ou desaprovação), que supõe cognição e julgamento, está sujeita a impugnatividade e reexame pelo juiz. Sociologicamente, o ato integrativo volta à sua fonte, ao juiz. Vêem-se os dois momentos históricos, o de hoje (art. 1.201) e o de outrora (art. 1.202). É interessante observar-se que se concebeu o reexame como sendo ação, em vez de recurso. Ação de suprimento, à semelhança do que se passa nas regras jurídicas sobre a outorga judicial de consentimento (suprimento). Quer dizer: não fez juiz o “juiz” cartular. 6.Legitimação ativa. A legitimação ativa para ação dos arts. 1.199-1.201 é diferente da legitimação do direito material para elaborar os estatutos. O “interesse” opera como pressuposto objetivo-subjetivo ainda que não se trate de incumbido de formular estatuto, ou de destinatários (beneficiados); e. g., a Fazenda Pública, o incluido como administrador nos estatutos desaprovados. A exigência da aprovação do estatuto das fundações pelo órgão do órgão do Ministério Público é acertada. Está em mira o interesse público, que passa à frente de qualquer interesse particular, mesmo do instituidor. Trata-se de tutela jurídica. Ou o juiz ou o órgão do órgão do Ministério Público que tenha de aprovar, ou não, o que se pôs no estatuto. A preferência pelo órgão do órgão do Ministério Público, com o possível suprimento pelo juiz, foi bem concebida. Quando se trata de modificação, há a força do juiz. O que mais importa para a aprovação é que se resguarde o interesse público, que nada haja de ilícito e os meios econômicos sejam suficientes. 7.Missão do orgão do Ministério Público. O interessado submete o estatuto ao órgão do orgão do Ministério Público, que, de início, tem de verificar se foram observadas as regras jurídicas a respeito das fundações ou da sua espécie, as bases da fundação e se os bens são suficientes para aquilo que com a fundação se colima. 8.Natureza da decisão do juiz. Sob o Código de 1973, art. 1.202,1 e 11, a decisão do juiz é constitutiva, positiva ou negativa. Dela cabe o recurso de apelação. Se alguma lei estabelece que o estatuto de determinada fundação, ou de alguma espécie de fundação, seja feito pelo órgão do órgão do Ministério Público, chama-se tal elaboração judicial. A elaboração de acordo com o art. 1.202, 1 e II, não é judicial: a submissão à aprovação pelo juiz é a mesma, seja elaborado o estatuto pelas pessoas indicadas pelo instituidor ou por ele mesmo. Qualquer que tenha sido a forma do ato jurídico de que provelo a norma sobre a elaboração do estatuto (testamento, escritura pública), tem de haver exame e aprovação ou desaprovação pelo órgão do orgão do Ministério Público ou aprovação com modificações. Pergunta-se: se o estatuto feito pelo instituidor não foi aprovado pelo órgão do órgão do Ministério Público, quem há de fazê-lo? Posto que, no art. 1.202, só se haja cogitado de o instituidor não ter feito o estatuto e de não haver nomeado quem o fizesse, havemos de entender que o estatuto feito pelo instituidor e desaprovado, se não suscetível de modificações, é estatuto inválido. Ao órgão do orgão do Ministério Público cabe elaborá-los.

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§ 31. Fiscalização das fundações 1.Fiscalização das fundações. O papel do estado, na fiscalização das fundações, não se confunde com o que se regra nos arts. 1.200-1.204 (cp. Código Civil, art. 27). Ali, é a função de quem auxilia o juiz a dar sentença justa, aqui, a de declarante (ato constitutivo integrativo, sucedâneo do ato constitutivo integrativo do Código Civil, art. 27). O órgão do Ministério Público vela pelas fundações existentes na comarca, fiscalizando os atos dos administradores e promovendo a anulação dos atos praticados sem observância dos estatutos. Reconhece-se a legitimação ativa do órgão do Ministério Público, ainda quando se trata de anulabilidade, casos em que é excepcional por princípio. Uma das conseqúências é não precisar alegar e provar “interesse público” para intentar ações de anulação; a fortiori, de nulidade. (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 23 de novembro de 1943, RF 98/377). 2.Bens das fundações. Os bens não podem ser retirados. Fundação não doa; o órgão do Ministério Público é fiscal da destinação dos bens (2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 23 de novembro de 1943, RF 98/377). Fundação de caridade pode fazer doações. § 32. Extinção das fundações 1.Nocividade, ilicitude, expiração do prazo de existência. Tornando-se ilícito ou impossível o objeto da fundação, ou vencido o prazo da sua existência, o órgão do Ministério Público ou qualquer interessado lhe promove a extinção, citados os administradores. Se a ação foi proposta por qualquer interessado, em todos os seus termos é ouvido o órgão do Ministério Público; se esse a propuser, dar-se-á à fundação curador in litem. 2.Provocação. No direito processual miudeiam-se os casos: a) se proposta por algum interessado, o órgão do Ministério Público funciona para auxiliar o juiz a dar sentença justa; b) se proposta pelo órgão do Ministério Público, nomeia-se curador especial para a fundação. Note-se a diferença entre a função do curador especial, e a do órgão do Ministério Público, que é a da letra a), acima. Em técnica legislativa, a regra de direito material que permita a verificação pela maioria vencida na modificação dos estatutos era reprovável; de modo que há vantagem no art. 1.204 do Código de Processo Civil. Assim, o Código Civil suiço, art.89, entendendo que são interessados, além dos administradores e destinatários, os credores da fundação e dos próprios destinatários (Emst Hafter, no Kommentar de Max Omúr, 2ª ed., 1, 320). Nas regras juridicas há duas ações: uma constitutiva negativa (ilicitude ou impossibilidade do fim); outra mandamental (expiração do prazo de existência), que não se confunde com a declarativa. 3. Juízo competente. O juízo competente é o do domicílio, da sede da fundação, mesmo que haja sucursais, para qualquer ação de extinção. § 33. Natureza das ações 1. Ações de organização de fundação. a) A primeira ação de organização de fundação é a exercida pela “pessoa”

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incumbida da “aplicação do patrimônio”. Se, no ato em que instituiu a fundação, o instituidor não elaborou os estatutos, a pessoa incumbida do aplicação do patrimônio o fará, judicial ou extra-judicialmente, sob pena de fazê-lo o órgão do Ministério Público (Código de Processo Civil, art. 1.202, 1 e II). Historicamente, o iudex chartularius, que seria o aprovador dos estatutos, deixou de ser o juiz, porém o seu ato ficou subordinado ao exame do superior hierárquico do orgão do Ministério Público. Isso teve de ser feito dentro do princípio de separação de poderes estatais, razão por que não se concebeu o exame como recurso, e sim como ação. O registro é efeito mandamental da sentença constitutiva. Não se pense em sentença mandamental, mesmo se a lei fala em mandar o juiz que se modifiquem os estatutos, pois o “mandar fazer” estaria aí por “fazer”: é o juiz quem dita ou escreve as alterações e ordena que se faça a inserção. Todo o seu ato sentencial é incluso, e não imediato. b) A segunda ação de organização de fundação nasce o momento em que o Ministério Público recusa aprovação aos estatutos. Até aí, tudo se passara em plano que não é o do direito processual; fora no plano do direito material privado e do direito público (registro e funções de Ministério Público). A pretensão a organizar sofreu ofensa, que suscita a ação. O to de aprovação pelo órgão do Ministério Público é integrativo da constituição, ou, segundo a lei, da organização da fundação. Uma vez que ele falta, tem de ser suprido. Esse suprimento que não se afasta do tipo comum, quando se trata de “recusa” (não de impossibilidade, impossibilidade do consentimento por lei exigido), é sentença constitutiva integrativa, como a aprovação pelo órgão do Ministério Público teria sido ato administrativo integrativo. A lei que fala de pedir-se ao juiz que suprimento da aprovação é feliz na expressão, porque é de suprimento, em verdade, que se trata. c)A terceira ação de organização de fundação é a que tem por fito a decretação da nulidade total ou parcial dos estatutos elaborados pelo órgão do Ministério Público, ação constitutiva negativa. 2.Ações de fiscalização da fundação. As ações de fiscalização da fundação não são especificas. São as ações que caibam na função fiscalizadora do órgão do Ministério Público. Uma delas é a de prestação de contas; outra, a cominatória, quando satisfeitos os pressupostos. Outras, ainda, as ações de invalidade absoluta ou relativa dos atos praticados sem observância dos estatutos (ações constitutivas negativas). 3.Ações de extinção da fundação. a) A ação de extinção da fundação, por ilicitude ou impossibilidade do fim, que é constitutiva negativa, e não declarativa, dirige-se à desconstituição da fundação, um de cujos efeitos é o mandamental do cancelamento do registro. Força, constitutiva; efeito, mandamental. Posto que, segundo o direito material, seja nulo o negócio jurídico se ilícito ou impossível o seu objeto e decretável de ofício a nulidade, excluiu-se a decretação de oficio, em se tratando de fundação, o que importa exceção ao princípio geral (cf. Max Húrlimann,Die Stiftungen, 126). Mas a ação sobre existir, ou não, a fundação é declarativa. Disso resulta dizer-se que se concedeu às fundações quase o mesmo que se concedera ao casamento (aliás, também às sociedades por ações): a forma da ação de constituição negativa. É a pretensão à ordinariedade do rito, ou a pretensão à exclusão da sentenciação sem forma processual e de ofício, sentenciação que se permite, em geral, tratando-se de nulidade absoluta, e aí se exclui. b) A ação declarativa da extinção da fundação não é mais do que a ação declarativa típica; não é ação peculiar às fundações. A pretensão, que está à base dela, é apenas a pretensão a que o juiz declare a existência (ou inexistência) de relação jurídica. Os pressupostos subjetivos e objetivos são os da ação declarativa tipica. Porém, por ela não se pode pedir a extinção da fundação: supõe, se é negativa, que a fundação esteja extinta; se é positiva, que a fundação não esteja extinta. E. g.: o instituidor fé-la a termo ou sob condição resolutiva; lei de ordem pública considerou-a extinta desde certo dia (aliter, se deixou à Justiça a apreciação de cada caso). Tal ação declarativa não podia ter, só por si, força mandamental; daí não se confundir com a ação de extinção por estar vencido o prazo da existência. Nem a lei lhe deu força mandamental, uma vez que só lhe conferiu o praeceptum que se irradia da sentença favorável na ação declaratória, e fez dependentes de regras jurídicas especiais a propositura e certas formalidades.

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c) A ação de extinção da fundação, por ter acabado o tempo de vida, é ação mandamental. O elemento declarativo, que produziu, por seu isolamento, sem força declarativa da sentença em ação declaratória típica, é insuficiente para o cancelamento do registro. Passa, na ação mandamental, a ser produtor de efeito declarativo, como simples questão prejudicial. Diferentes, mas merecedores de comparação, os casos de mudança de estado civil e de retificação de assentamento relativo a filiação. 4.Ações de reajustamento ou de modificação da organização. a)A ação de reajustamento ou de modificação da organização é ação constitutiva, que tem por fim obter do juiz a adaptação dos estatutos às novas circunstâncias, de modo que seja como se a ela houvesse procedido o próprio fundador. Aprovado o estatuto, qualquer alteração posterior precisa de aprovação pelo órgão do órgão do Ministério Público. Se alguém propôs ação contra a fundação por ilegalidade ou infração do ato institutivo e transitou em julgado a sentença, não se precisa de ato do órgão do orgão do Ministério Público. No direito material, encontram-se regras jurídicas sobre essa alteração do estatutos (Código Civil, art. 28, 1, li, III). Não se derrogou com o Código de Processo Civil, art. 1.203, o que ai está. Quanto à competência para a aprovação, incumbe ao órgão do órgão do Ministério Público. Se os fins da fundação são a, b e c e ocorre que algum deles foi considerado, por lei, ou por sentença com força de coisa julgada, ilícita, ou impossível a continuação, a alteração do estatuto que elimine tal fim tem de ser precedida de julgamento judicial, porque, acima da aprovação do estatuto, que é função do órgão do órgão do Ministério Público, está a decisão que extinga, parcialmente, a finalidade da fundação. Qualquer interessado ou o órgão do Ministério Público pode promover a extinção apenas relativa a um fim. O Código de 1973, com pleno acerto, pôs em seu texto o art. 1.203, parágrafo único; e essa inovação aplaudível concebeu a submissão da reforma, se não houve deliberação por votação unânime, ao órgão do orgão do Ministério Público, podendo a minoria vencida impugná-la no prazo de dez dias. Há, antes da remessa ao órgão do órgão do Ministério Público, a autuação do pedido de aprovação e é nos autos que se fazem as impugnações, no prazo de dez dias. Não se falou do prazo para o órgão do órgão do Ministério Público deliberar, mas, por analogia, havemos de entender que é o de quinze dias (artigo 1.203), mas contados da preclusão do prazo para as impug-nações, e não da autuação do pedido de reforma. O que se requereu ao juiz é o suprimento da aprovação, se o órgão do órgão do Ministério Público não aprovou a reforma, mas havemos de assentar que também cabe ao juiz examinar e julgar, contra a aprovação pelo órgão do orgão do Ministério Público, o que os impugnantes alegaram, se o requereram ao juízo. b) A ação de modificação do fim não existe como ação oriunda da lei em direito brasileiro. Existe no direito alemão (Código Civil alemão, § 87, alínea 3ª) e no direito suíço (Código Civil suiço, art. 86, cf. E. Huber, System und Geschichte, 1, 175 s.; Max Húrlimann, Die Stiftungen, 115 s). Somente pode resultar do ato de instituição, como cláusula rebus sic stantibus, não tácita.

Capítulo XIII

Ação de protesto de título cambiário ou cambiariforme § 34. Conceito de protesto de títulos1. Protesto de títulos cambiários e cambiariformes. O protesto, de que se trata, tem molde legal, dito protesto cambiário. Tenha-se todo o cuidado em se não confundir esse protesto com os protestos conservativos e preventivos. O protesto de títulos é probatório, ou seja precedido da apresentação, ou seja simultâneo a ela, conforme a natureza do titulo. O protesto cambiário é o ato formal, no sentido de ter forma necessária, pelo qual se salvaguardam os direitos cambiários, solenemente feito perante oficial público. Prende-se ele ao exercício e à cautela dos direitos cambiários. Nos atos cambiários, não é só interessado o ego, mas, também, o alter, a generalidade. Os atos jurídicos cambiários não poderiam, salvo casos excepcionais, como se o titulo não circulou,

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passar-se entre duas pessoas, em silêncio, como ocorre a atos do direito comum. Pelo protesto, dá-se conhecimento ao público do que acontece a titulo cuja vocação é caminhar, atando a si pessoas que talvez não se conheçam, mas talvez se tenham ligado à mesma sorte. Em relação ao próprio obrigado principal, o protesto ameaça-o de lhe desonrar o titulo cambiário e, pois, a firma. As consequências extracambiárias são conhecidas. Daí ter tido ele os seus amigos e os seus inimigos (J. Stranz, Em Protest gegen den Wechselprotest, Berlin, 1903; G. Cohn, Der Kampf um den Wechselprotest, p. li; W. Bernstein, Die Reform des Wechselprotests, 4 s.). Seria difícil e prejudicial exclui-lo. Em todo o caso, o direito uniforme (Convenção de Genebra, 1930), que, no art. 44, o conservou, permitiu, no art. 46, a liberdade de estipulação: “Le tireur, un endosseur ou un avaliseur peut, par la clause “retour sans frais”, “sans protêt”, ou toute autre clause équivalente, inscrite sur le titre et signée, dispenser le porteur de faire dresser, pour exercer ses recours, un protêt faute d’acceptation ou faute de paiement. Cette clause ne dispense pas le porteur de la présentation de la lettre de change dans les délais prescrits, ni des avis à donner. La preuve de linobservation des délais incombe à celui qui sen prévaut contre le porteur. Si la clause est inscrite par le tireur, elIe produit ses effets à l’égard de tous les signataires; si elie est inscrite par un endosseur ou un avaliseur, elIe produit ses effets seulement à l’égard de celui-ci. Si, malgré la clause inscrite par le tireur, le porteur fait dresser le protêt, les frais en restent à sa charge. Quant la clause émane dun endosseur ou d’un avaliseur, les frais du protêt, sil en est dressé un, peuvent être recouvrés contre tous les signataires.’ Essa cláusula, tão bem regulada no direito uniforme, sem quebra dos princípios sistemáticos do direito cambiário, foi expressamente vedada no direito brasileiro, pois se considerou não-escrita a cláusula proibitiva do protesto. Posto que solene, perante oficial público, o protesto é feito, no Brasil, extrajudicialmente. Também na literatura brasileira se esboçou movimento de protesto contra o protesto. A respeito, escrevia J. X. Carvalho de Mendonça que o protesto cambiário está cercado de exigências e formas exageradas e perfeitamente dispensáveis: “a reforma prendeu-se à velha tradição e é chegado o momento de modificar-se esta parte do direito cambial. Para as letras de câmbio internacionais, a simplificação do protesto está pedindo urgência. Cada nação tem regras especiais, e no regresso exercido de um para outro país é dificil saber se o protesto foi tirado na confor-midade da lei do lugar do pagamento”. Não pensou assim o Instituto dos Advogados Brasileiros, por sua Comissão de Justiça e Legislação, a 16 de agosto de 1915: “Não há razão para alterar o nosso direito nesse particular. O protesto deve ser ato público e constar de um instrumento da lavra do respectivo oficial. E esse o sistema do nosso direito cambial, que não convém alterar, sob fundamento de simplificar e baratear o ato do protesto”. O protesto fora do prazo é ineficaz (Tribunal de Apelação de São Paulo, 27 de maio de 1939, RT 120/76). Ato formal, o protesto cambiário, é, ainda, essencialmente probatório (E. Leist, Der Wechselprotest, 151). Fora do titulo, não se lhe atribui constituição de direito, nem por ele alguma das partes presentes dispõe. O seu papel único é o de documentar o exercício do direito constante do titulo. O que faz perder o direito é a não-apresentação, no dia do vencimento, mesmo sem protesto. No direito uniforme, é a expiração dos termos, que causa a perda do regresso, e não o protesto. Trata-se, pois, hoje em dia, de simples ato formal do exercício do direito cambiário, e só pelo fato da conservação. Tais considerações, de fundo teórico seguro, são, na prática, de grande importância. Não se diga que, no caso de intervenção para pagamento, o protesto é ato constitutivo ou dispositivo. De modo nenhum: continua ele a ter função só probatória. Cumpre que se não confunda o protesto, que é prova, com o protesto necessário a exercício processual do direito. No direito brasileiro, tem-se entendido que não é necessário o protesto para se intentar a ação cambiária contra o aceitante, ou contra o avalista do aceitante, ou contra o avalista do avalista do aceitante, o que mostra não se tratar de ato de exercício processual de direito, posto que deixe em grande dificuldade o tratadista para explicar como se lhe dá prova do não-cumprimento da obrigação pelo avalizado, pois que ao aceitante se apresentou a letra de câmbio e ao avalista não se apresenta, nem se prova, pelo protesto, a apresentação ao aceitante. Dispensa-se tudo e, convenhamos, pois que se conhece o instituto, c’est trop fort. Mas, se é difícil, não o seria muito achar-se a explicação à atitude da jurisprudência: o processo executivo começa com um “pague ou dê bens à penhora”, de modo que não se precisa provar a mora do obrigado cambiário. Em mora fica se, citado, não paga, e dai correm os juros legais. Desde que não se estenda ao processo ordinário a dispensa da apresentação, que tanto vale dizer a dispensa do protesto, os princípios permanecem de pé. (Já vimos que a citação, aí, contém interpelação).

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Como ato formal, o protesto não permite sub-rogação, se a lei cambiária, por si mesma, não o previu. Todas as regras jurídicas sobre o ato unitário do protesto e sobre cada um dos seus requisitos formais são de direito cogente: porém não se lhe aplicam os princípios do rigor cambiário, que é limitado ao titulo. Um protesto, em que não há dúvida sobre ter sido praticado o ato que se quis provar com ele, não deve ser julgado ineficaz, máxime se sem culpa do que protestou, desde que a sua publicidade não tenha sido sacrificada com a irregularidade. O direito uniforme deixou aos sistemas jurídicos estatais legislar sobre a forma do protesto, de modo que podem eles ter o protesto em ato separado da letra de câmbio, ou ele e o protesto lançado na própria letra de câmbio ou somente esse. O Brasil só tem o protesto em separado, instrumento que, depois de registrado no livro de protestos, é entregue ao detentor ou portador da letra, ou àquele que houver efetuado o pagamento. A Itália tem os dois, porém, sem que se possam tirar consequências diferentes, porque o protesto é sempre inscrito na letra de câmbio. Também em separado (“faits par un notaire ou par un huissier”) é o protesto do direito francês. O protesto coincide ser, quase sempre, prova da apresentação, ou ser, ele mesmo, apresentação. Mas é preciso atender-se à diferença entre apresentação não seguida de protesto e apresentação a que se segue protesto. As apresentações da primeira espécie são às vezes ineficazes ou supérfluas (e. g., mora antecipada, comunicação prévia de não-pagar). De modo que há apresentações supérfluas, apresentações inutilizadas, por se lhes não ter dado a prova única, que é o protesto, e apresentações provadas. Aliás, as apresentações podem ser inúteis, e não no serem os protestos: não é preciso apresentar-se o título ao avalista do aceitante, mas é necessário o protesto para que fluam os juros da mora. Ao protesto de títulos não se pode atribuir efeito do protesto comum (3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo 23 de fevereiro de 1944, RT 149/146). Titulo, há de ser título de crédito “protestável”. O conceito é dado pelo direito material, e somente por ele. Certa, a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, no acórdão citado. 2. Pressupostos do protesto. O protesto cambiário é estendido por leis especiais a outros títulos que os cambiários. Mas os títulos suscetíveis de protesto podem admitir outros pressupostos do protesto cambiário. As regras jurídicas sobre protesto comum são, nesses casos, plenamente invocáveis. Todo cuidado, porém, se há de ter no se atenderem os pressupostos de direito material, ainda que “materialize” algum pressuposto formal. § 35. Protesto 1. Intimação do protesto. A intimação do protesto de titulos, ou contas judicialmente verificadas, faz-se por meio de carta do oficial competente, registrada ou com entrega do aviso ao intimando (entregando-lhe em mãos o aviso). Quando não for encontrado o devedor na comarca, ou se tratar de pessoa desconhecida ou incerta, a intimação faz-se por edital. No Código de 1973 art. 882, diz-se que o protesto de titulos e contas judicialmente verificadas tem de ser com observância da lei especial. Com isso, fica ressalvada a incidência de alguma regra jurídica de Iex specialis, que já existia. 2. Intimação por edital. Intimação por edital tornou-se, aí, necessária. Mas somente se a pessoa é desconhecida ou incerta. Se os que têm de ser intimados são domiciliados fora, não se tira precatória: envia-se carta registrada. Atinge isso assim a títulos cambiários e contas assinadas ou judicialmente verificadas como a quaisquer títulos que tenham de ser protestados. A pessoa, a que se remeteu carta e não a recebeu, devido a não ter sido encontrada, tem de ser intimada por edital. 3. Dúvidas do oficial. Se o oficial opõe dúvidas ou dificuldades à tomada do protesto, ou à entrega do respectivo instrumento, a parte pode reclamar ao juiz, que tem de ouvir imediatamente o oficial e decidir. A decisão é transcrita no instrumento. A abstenção do oficial tem de ser submetida, previamente, ao juiz, restabelecendo-se a cognição judicial que já havia em 1850. Hoje, o art. 884 do Código de Processo Civil de 1973, como ontem o art. 731 do Código de Processo Civil de 1939, não miudeou os casos, e foi bem que assim procedesse, mesmo porque

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um daqueles que se apontavam, o de ilegitimidade, pouco se coadunaria com o sistema cambiário brasileiro e da Lei uniforme. Quaisquer dúvidas, que ele tenha, podem ser expostas ao juiz, por ele ou pela parte. No caso de abuso no levantá-las, responde o oficial pelo abuso do direito, que, dada a sua função, sucedânea da função dos juizes-notários e regida pelo direito judiciário material, deve ser qualificado como abuso do direito material, posto que o levantamento de tal dúvida leve à decisão, suscetível de recurso. O abuso do direito, por parte do oficial, não poderia ser abuso do direito processual. Não se exclui a própria ação de indenização, pelo ato ilícito, contra ele. parte e do oficial já constituem atos processuais em ação de mandamento, embora, à primeira vista, pareça ação declarativa. 4.Decisão favorável e decisão desfavorável, recurso. A decisão favorável à parte transcreve-se no instrumento do protesto, e dela não cabe recurso. Há o recurso da decisão desfavorável, por se tratar de ação de alguém contra ato do oficial, em vez de simples incidente do funcionamento da administração dos registros (certa, a 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 11 de novembro de 1952, RT 207/285). Na ação de protesto cambiário ou cambiariforme, há 5 de constitutividade, 4 de mandamentalidade, 3 de executividade, 2 de declaratividade e 1 de condenatoriedade. Ai se ressalta a diferença entre ela e a comum ação de protesto, onde há 3 de declaratividade e só 2 de executividade. Não se diga que o oficial público é adstrito a fazê-lo, ainda que fora de tempo. O que ele não pode é recusar-se, se, alegando estar fora de tempo, o portador replica haver razão de caso fortuito ou força maior, ou tratar-se de protesto facultativo, como o que somente tem por fim provar a apresentação para efeitos da mora. Nos processos em que se traz a flux a não-veracidade ou a má-fé do oficial público não pode esse apresentar-se como assistente (Tribunal de Justiça de São Paulo, 31 de maio de 1889, OD 85/91 s.). A sentença não pode condená-lo. Defender-se-á ele na ação que se propuser para o ressarcimento dos danos ou na ação criminal.

Capítulo XIV

Ações integrativas dos testamentos § 36. Conceito e surgimento 1. Conceito. Há as ações integrativas dos testamentos, que são publicizadoras dos testamentos não-públicos (constitutivos, integrativas de forma), as de cumprimento de quaisquer testamentos, as declarativas de existência ou não-existência de relações oriundas de testamento e as constitutivas negativas (ações de nulidade ou de anulação). 2. Dados históricos. A ação publicizadora do testamento particular tem por fim publicizar (evitemos a ambigtiidade de “publicar”, comunicar ao público e dar valor de forma pública ou estatal) o testamento hológrafo: o testamento oriundo do Ei-eviarium Alarician um, que o recebera da Novela de Valentiniano III, do ano 446, sofreu o influxo romanizante justinianeu, contrário à exigência das testemunhas, a assimilação ao testamento cerrado, bem como ao nuncupativo, que se “publicava” nas cúrias segundo o Breviarium Alaricianum e, segundo o Código Visigótico, perante o sacerdote, na presença das testemunhas. A confusão com o testamento nuncupativo foi perniciosa à evolução do instituto no direito luso-brasileiro. Houve atalho para a reinstrumentação, a que não se achava a base histórica. Em vez de ser só publicação, introduziu-se o elemento de reinstrumentação, mais adequado às formas nuncupativas. § 37. Natureza da ação 1. Precisões. A ação é, ainda assim, integrativa de forma, posto que mais intensa e mais profunda do que a ação,

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com decisão do cumpra-se, que se cumulou com a ação de publicação do testamento particular. Não é de mais insistir-se em se profligar essa anomalia, histórica e dogmática, do testamento particular, disciplinado até hoje (cf. Supremo Tribunal Federal, 7 de abril de 1943, RF 96/324). Na ação de publicização são citados os interessados; não nas outras ações puras de cumpra-se. 2. Questões eventuais. O interessado levanta, desde logo, a questão da inaptidão do testamento a ser confirmado, fora dos casos de negabilidade do cumpra-se, comuns a todos os testamentos. Não é outra ação proposta, no mesmo processo, pelo interessado, é questão prejudicial, que ele postula. Matéria de defesa, que transforma em ordinário o rito, para que seja de cognição completa a decisão. Podendo-se tratar a demanda do réu como reconvenção (outra ação), tratou-se como defesa, a despeito de ser a sentença de cognição completa. E importan-tíssimo não confudir essa sentença, que, favorável ou não, é de cognição completa, com a sentença do cumpra-se nos outros processos para cumprimento (não publicização mais cumprimento) dos outros testamentos ordinários. Essa pode ser de cognição superficial, se favorável, ou de cognição completa (constitutiva negativa), se desfavorável.

Capítulo XV

Ações arrecadativas § 38. Arrecadação 1. Conceitos. O conceito de arrecadação ficou assaz preciso no direito luso-brasileiro e no brasileiro. É ato mandamental, se parte do juiz; e é óbvio que dele parta, pela constrição que vai implícita em todo arrecadar. E anterior ao inventário e à administração, porque é constrição pura. O depositário guarda, sem ter arrecadado; o juiz arrecada (ou manda arrecadar), e não guarda. Quando alguém, que vai ser depositário, tem por missão prévia arrecadar, então arrecada e guarda. Mas o inventariar é tão indispensável à prova da arrecadação, ou das suas extensões, que, ao se arrecadar, de regra se inventaria. É fazer um ato só arrecadar e inventariar, seguido da guarda ou depósito. 2.Precisões. Nas ações arrecadativas, a arrecadação é o ato inicial, como a penhora o é de certas ações executivas. Porém esse ato não é só, nem fim em si; é ato de sequência de atos que vão terminar pela entrega dos bens. Na ação de arrecadação de herança vacante, o ciclo é da constitutividade (curadoria) para a mandamentalidade (cheia, aliás, de declaratividade), quando se devolvem os bens. O elemento executivo não é suficiente para fazer executiva a ação, porque, embora o juiz seja órgão do Estado, ele não transmite domínio e posse à Fazenda Pública: declara que se transmitiram. Na ação de arrecadação de bens de ausentes, o ciclo é de constitutividade e mandamentalidade para declaratividade. Na ação de arrecadação de bens vagos, o ciclo é da declaratividade à constitutividade, o que assaz a distingue das ações arrecadativas de herança vacante e de bens de ausentes. Há declaração, no devolver; porém há mais constituição. § 39. Ação de achada de coisa perdida 1. Perda de bens móveis. Temos apenas, neste Capítulo, de dar exemplos de ações arrecadativas. Se se perde a coisa, isto é, se não se tem a tença, não se sabendo onde a coisa está, diz-se que a coisa está perdida, o que de modo nenhum importa perda da propriedade. Se o dono perdeu a coisa e a acha, readquire a posse imediata; se alguém a encontra e a apanha, tem o achador a posse imediata. Leis põem entre as espécies de ocupação a invenção. Leia-se: achada. Primeiro, ao mais breve exame das regras jurídicas, sabe-se que não se fez da achada caso de ocupação, salvo se o dono da coisa vem a derrelinqúi-la antes

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de precluso o prazo legal. Segundo, o abandono, que ocorre se o dono prefere perder o bem a ter de recompensar e pagar as despesas feitas pelo achador para conservação e transporte, é derrelicção posterior à posse de achador, de jeito que precisa haver, para a ocupação, a superveniente posse própria, o que desloca para a ocupação não-específica a aquisição por força do abandono. (RF venho, invenire, é expressão que se pôs em vez de achar-se no lugar da coisa; venio, venire, em vez de vir ver, vir tocar, vir cheirar, vir escutar, vir gostar). Nem todas as ações de que vamos falar são constitutivas, mas era indispensável a exposição geral, apontando-se as que o são. A achada ou ato de achamento não é negócio jurídico (G. Planck, Kommentar, III, 447); nem, tampouco, ato juridico stricto sensu: é a soma de encontrar, que é fato puro, e de tomar posse, que é ato-fato jurídico (sem razão, G, Planck, III, 447 e Otto Warneer, Kommentar, II, 187). Não há qualquer elemento a mais que faça o achamento ser mais do que ato-fato jurídico, no que se distingue da negotiorum gestio, ato jurídico stricto sensu. O achador não quer gerir; o achador, pelo fato de se tornar achador de coisa perdida, assume deveres, por força de lei. A diferença é gritante. Não pode abandonar a posse imediata que tomou, pela apanhação, porque, com a tomada da posse, assumiu deveres e obrigações (Johannes Biermann, Das Sachenrecht, 252; Friedrich Endemann, Lehrbuch des BúrgerIichen Rechts, 11, 1, 569; sem razão, G. Planck, Kommentar, III, 450). Tem de entregar a coisa, que achou, ao dono ou possuidor legítimo, ou à autoridade pública. Se o achador émenor, somente responde se relativamente incapaz; se absolutamente incapaz, incidem as regras jurídicas sobre terceiros responsáveis. 2. Coisas esquecidas e coisas perdidas. Coisas esquecidas são as que se puseram em lugar escolhido, ou não, ou se achavam em determinado lugar, e não mais se sabe onde era. Perdidas são as de que se ignora o lugar a que foram parar, ou em que ficaram. Não é o mesmo perder e esquecer, nem o mesmo coisas perdidas e coisas esquecidas. Mas, se alguém encontra coisa de que o dono se esqueceu e a apanha, trata-se tal coisa como se perdida tivesse sido, pois que o achador, tomando posse imediata, a tirou do dono (Karl Oesterreich, Das Recht des Finders ver-lorener Sachen, 9). A opinião do achador sobre se tratar de coisa perdida ou esquecida, ainda de boa-fé, é sem relevância, porque a coisa, o lugar e as circunstâncias é que decidem sobre se ter de considerar como coisa de que alguém se esqueceu, ou coisa perdida, ou como coisa que esquecida como foi (lugar, tempo, natureza ou qualidade da coisa) se há de ter por perdida (cf. F. Walther, Uber den Funddiebstahl, 77 s.). O ter, ou não, o dono ciência de ter perdido a coisa é sem relevância; aliás, pode-se perder vendo-se perder, como se o chapéu ou a caixa cai no rio, ou se o relógio cai do trem em marcha. Em geral, é indiferente se houve negligência, ou não, do dono da coisa. Quem brincava de jogar pela janela do trem, ou da casa, algum objeto, ou fingia que o ia atirar fora, e o objeto escapole, ou cai, se não o pode ir buscar, ou se o não encontra, por certo que se entende tê-lo perdido. 3. Dados históricos. No direito romano, quem encontrava coisa perdida não se tornava proprietário (L. 67, D., de rei uindicatione, 6, 1: “Tendo alguém comprado ao tutor casa do pupilo, mandou a ela mestre-de-obras para reparação e esse encontrou dinheiro; pergunta-se a quem pertence. Respondi que, se não foram tesouros, mas dinheiro acaso perdido, ou por erro não recolhido por aquele a quem pertencia, é, a despeito disso, de quem havia sido” — “respondi, si non thesauri fuerunt, sed pecunia forte perdita vel per errorem ab eo ad quem pertinebat non ablata, nihilo minus eius eam esse, cuius fuerat”). Donde, se o achador se apossava, como se dono fora, do achado, cometia furtum (cf. L. 43, §§ 4-9, D., de furtis, 47/2; L. 31, § 1, D., de adquirendo rerum dominio, 41/1). Se tinha o intuito de entregar a coisa ao dono, ficava na posição de gestor de negócios alheios e os seus deveres e direitos eram os que se irradiassem da negotiorum gestio. Entre os deveres havia de estar o de dar notícia pública do achado, desde que não exigisse tal noticia, despesa ou serviço considerável (Schútze, Zur Lehre von dem sogenannten Funddiebstahl, Archiu fúr praktische Rechtswissenschaft, II, 178 s.). Tentou B. Delbrúck (Vom Finden verlorener Sachen, Jahrbúcher for die Dogmatik, III, 1 s.) mostrar que ou o achador, se sem consequências a notificação, se tornava proprietário, ex tunc (desde o momento da achada), ou, se o dono reclamava a coisa, só lhe cabia o direito à recompensa. Não convenceu, nem convencera Schútze (II, 376, nota 125) quanto à aquisição da propriedade. Th. Gimmerthal (Von Finden verlorener, derelinquirter und herrenloser Sachen, Archiu for die civilistiche Praxis, 52, 533 s.) aludiu à usucapião, dando-se abandono ficto (!). Também isso é de repelir-se. Após a notificação poderia correr o tempo para usucapir, se sobreviessem os pressupostos. Passemos a examinar os dados dos séculos XIII, XV e XVI. No caso de perda da coisa, quem a acha deve restitui-la ao dono ou possuidor, logo que o descubra. Se não o descobre, tem de entregá-la à autoridade competente. O

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dever de entregar preexiste ao conhecimento do nome, ou da pessoa, a quem pertence a propriedade ou a posse. Se há razão para, pelas circunstâncias, se crer na derrelicção, a obrigação de entregar somente nasce com a informação de que não se trata de coisa derrelicta. Nas Ordenações Afonsinas, Livro V, Titulo 54, § 4 (adendo à lei de Dom Dinis), estabelecia-se: “... declarando e adendo acerca della dizemos que todo aqueile, que achar ave alhea, ou outra cousa qualquer, tanto que souber cuja he, deve-lhe logo de entregar, posto que requerido nom seja; e nom lha entregando, e usando-se della sem vontade daquella cuja he, comete furto, e deve ser costrangido que torne a seu dono essa coisa que achou, com duas vezes tanto quanto vai”. No § 5: “E nom sabendo cuja he essa cousa que assy achou, deve-a mandar apregoar em Concelho ante de trinta dias passados; e nom a mandando assy apregoar, usando-se della depois do dito tempo, seu dono lha poderá demandar com dobro, como dito he; ca bem se mostra que vontade teve de contrautar o alheo, pois que caíladamente se usava delie, sabendo que nom era seu, e nom o querendo denunciar per tanto tempo”. No § 6: “E vindo seu dono demandar essa cousa achada, no caso honde o achador furto nom cometeo, deve primeiramente pagar do achador todalas custas e despezas que fez, por achar e conservar essa cousa que assy achou, e mais, se for caçador, deve-lhe pagar achadego, como na Ordenaçom he declarado”. O essencial passou às Ordenações Manuelinas, Livro V, Título 41, § 1, e às Ordenações Filipinas, Livro V, Título 62, § 3: “E todo aquele, que achar ave alheia, ou outra qualquer coisa, tanto que souber cuja é, lha entregue logo, posto que requerido não seja. E não a entregando, e usando dela sem vontade de seu dono, seja constrangido que lha torne, e mais seja punido, como se a princípio lha furtara. E não sabendo cuja é, a mandará apregoar per espaço de trinta dias em lugares públicos e costumados. E não mandando apregoar, e usando dela depois do dito tempo, seu dono lha poderá demandar, e lhe será julgada: e será outrossim punido de furto. E vindo seu dono a demandar essa coisa achada, no caso onde o achador não cometeu furto, pagará primeiro ao achador todas as custas e despesas, que fez por achar. e guardar essa coisa que achou e mais, se for caçador, pagar-lhe-á o achádego No § 4: “E nas outras coisas, que achadas, forem, o achador será obrigado geralmente em todo tempo (a) entregar isso, que achou, sem poder demandar achádego, salvo se lhe for prometido”. No direito alemão, o ato de achar não é modo de adquirir a propriedade, apenas dele se irradiam direitos e deveres, pretensões e obrigações (5. Gizynski, Der Besitz und der Eigentumserwerb des Finders, 72 s.); mas o achador faz seu, ipso iure, após tempo, o achado, o que de modo nenhum ocorre no direito brasileiro. 4. Perda de coisa no sentido estrito. Perder a coisa entende-se em sentido técnico. Não é perder a propriedade da coisa. Nem é, sempre, perda da posse mediata. No sentido técnico, só se perdem coisas móveis, não se perdem terrenos, nem edificios; nem, tampouco, direitos (cf. B. Delbrúck, Vom Finden verlorener Sachen, iahrbticher fur die Dogmatik, III, 19). O ato material de perda tanto pode partir do dono, como do possuidor próprio, ou do possuidor imediato não-próprio, ou do servidor da posse, ou do tenedor (Schiitze, Zur Lehre von dem sogennanten Funddiebstahl, Archive for praktische Rechtswissenschaft, 11/157). Mas é preciso que a coisa pertença a alguém; quem perde a coisa nullus não se pode crer achador de coisa perdida. Quem acha coisa alheia perdida há de restitui-la ao dono ou legitimo possuidor. Se a coisa é sem dono, ou não, quase sempre ressalta do valor, ou da aparência de estimação pessoal; porém, se há dúvida, o achador há de ter por perdida, e não por sem dono, a coisa (E. Delbrúck, Vom Einden verlorener Sachen, JahrbUcher for die Dogmatik, III, 20 5.; Karl Oesterreich, Das Recht des Finders verlorener Sachen, 20 s.). E preciso que a pessoa que tem a coisa dela fique privada (perca a posse imediata) sem intenção, ainda que negligente tenha sido: portanto, que, ao tempo em que percebe que não a tem, não saiba onde se encontra, ou pense, erradamente, que o sabe. Se houve intenção, não houve perda da coisa, posto que possa ter havido perda do direito de propriedade, pela derrelicção. O que do navio ou da aeronave se joga para alivio da carga, ou para se evitar algum perigo, não é coisa perdida. Na L. 9, § 8, D., de adquirendo rerum dominio, 41/1, diz-se que não são derrelictas, nem perdidas: não foram lançadas ao mar porque alguém não as quer, mas sim para melhor se fugir, com o navio, de perigo (magis cum ipsa nave periculum maris effugiat). Não basta que o tenedor não saiba onde está, se bem que somente possa estar dentro do imóvel que possui, ou em posse de quem é dono da coisa (“Não encontro; mas não está perdida”; “Não o acho; mas deve estar por aí”). Se não se ignora onde está, não se perdeu a posse imediata, salvo outra causa de perda (cf. Pompônio, L. 23, D., de adquirenda vel amittenda possessione, 41/2). dizia, segundo Paulo (L. 3, § 13, D., de adquirenda vel amittenda possessione, 41/2), dizia que, se se perde a posse do vaso, perdido está ele, à diferença de quando a coisa está sob minha custódia e não se ençontre, porque está presente (quia praesentia eius sit). Apenas o direito romano exigia o corpus á posse, o de que abstraiu o direito brasileiro, de modo que o perdedor mesmo pode continuar de ter posse, mediata, sendo imediata a posse do achador, ou da autoridade pública, a que o achador entregou o achado. a) A coisa, que outrem esqueceu onde pusera, é coisa perdida, se o dono não a pode encontrar. Se o ladrão, fugindo, deixa cair, em lugar diferente, a coisa, ou a joga fora, perdeu-a o dono, pois que encontrá-la não pode. Se

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quem jogou fora, ou deixou cair, foi o depositário, ou o servidor da posse, dá-se o mesmo. Não há, ai, derrelicção. Também, se o dono a derrelinqiliu, mas, antes de alguém ocupar a coisa, declara que errara, ou que houve dolo de alguém, ou violência, tal declaração tem eficácia ex tunc, porque opera como se tivesse havido decretação da invalidade do negócio jurídico da derrelicção. Ai, a coisa nulluis converte-se em coisa perdida (Razão por que foi infeliz o Código Civil alemão, § 935, em falar de coisas extraviadas, “abhanden gekommen”). Não há, porém, pensar-se em revogação; a derrelicção é irrevogável. Pode haver a ocupação, ou a declaração de vontade quanto à invalidade, que desconstitui no plano jurídico, como se fora distrato, não no plano fático, no plano da vox. b) O que se perde dentro de casa, sem que se possa considerar achável por outrem que não seja pessoa da casa, ou visitante, não é coisa perdida. Porém, não poderia ir ao extremo dos que afirmam que “O que está em casa não está perdido” (sem razão, G. Planck, Kommentar, III, 446; Schliewen, em Busch e outros juizes, Das Burgerliche Gesetzbuch, III, 293 s.). Dentro do lar pode perder-se moeda, ou pedra, ou outra coisa pequena, que entrou por algum escoadouro de água, ou anfratura do soalho, de modo que só se pode encontrar quando se haja de arrancar o cano, ou mudar o soalho, ou consertá-lo (cf. F. Bernhóft, Rechtsfragen des táglichen Lebens, 1, 13). Tanto se pode perder em casa alheia, ou em carro particular de outrem (sem razão, os que vêem posse do dono da casa ou do carro, como óbice a considerar perdida, como Schãfer, Uber Pundrecht, Seu fferts Blátter, 68/1 s.; Wilhelm Silberschmidt, Der Fund in Privat- und Gasthàusern, Seu fferts Blâtter, 68/109 s.; cp. Wilhelm Chr. Francke, Ràumlichkeiten aIs Orte des Verlierens und Pindens, Hirths Annalen, 36/310 s.). c) Se o ladrão enterra ou esconde a coisa, para ocultar o crime, ou antes ou após a condenação, para ir buscá-la mais tarde, não há coisa perdida, mas coisa furtiva. Quem a encontra, encontra coisa furtada, possuída pelo ladrão. d) Se o achador esconde a coisa, ou a deixa no lugar, para dela se apropriar mais tarde, furta coisa perdida. Perdida é também a coisa que se enviou em nome do destinatário e terceiro encontra no chão... Aliter, se a jogou fora aquele cujo nome consta do pacote, ou da própria coisa, ou alguém que a conduzia e tinha poder de disposição. Não é coisa perdida a pérola que o hóspede encontra na ostra: ou o hotel ou estalajadeiro adquire a posse, ou o hóspede; e a razão não está em que não tinha dono (sem razão, F. Endemann, Lehrbucb, II, 1, 8ª e 9ª eds., 568, nota 3), mas em que o hotel ou estalajadeiro vendeu a comida, e o hóspede pode ter posse própria de qualquer parte dela, salvo ressalva, que, na espécie, não se costuma fazer (cf. Julius Gierke, Das Recht an der in einer Auster gefundenen Perle, Deutsche Juristen-Zeitung, X, 396 s.; Siegmund Schlossmann, Zum Wirtshausrecht und zur Lebre von den herrenlosen Sachen, Jherings Jabrbticher, 49/139 s.). Se o visitante se esquece de levar o chapéu, ao sair da casa de pessoa visitada,’ não o perdeu. Quando se entende perdida a coisa? Os que confundem perda da coisa com perda da posse simplisticamente dizem: “Quem perde a posse perde a coisa”, “Quem perde a coisa perde a posse”. Mas é ilusória a precisão de tal coincidência, ainda mesmo para aqueles que adotam tal teoria chamada “teoria da posse (“Besitztheorie”) do perdimento, ou, melhor, teoria do perdimento pela posse. Uns exigem a coincidência, sem exigirem a adespotia possessória em seguida; outros, exigindo-a; outros, ainda, satisfazendo-se com a coincidência com a possível perda da posse. Outros há, como Ernst Blãnkner (Die rechthche Stellung des Finders, 14), que não levam em conta o ficar objetivamente sem posse e supõem o ponto de vista subjetivo do perdente. Contra tal teoria, em seus diferentes matizes, estão os que admitem que, às vezes, com a perda da coisa se perca a posse, mas advertem em que tal perda da posse e a apossessoriedade (Besitzlosigkeit) posterior não são elementos necessários (cf. Fischer-Henle; depois, H. Buhl, Das Recht der beweglichen Sachen, 53; Arthur Brtickmann, Der Begriff der verlorenen Sache, Archiu fijr Búrgerliches Recht, 23/322 s.). Assim, tem de pensar em outro momento, razão por que Arthur Brflckmann o fixou naquele em que o dono ou possuidor da coisa não mais tem poder econômico sobre a coisa, o que é vago. E. Endemann aludiu àquele em que a coisa não está mais ao alcance da mão, ao momento da perda da custódia. A teoria da involuntariedade seduziu a muitos, como G. Planck (Kommentar, III, 445), Wilhelm Silberschmidt (Der Eund in Privat- und Gasthãusern, Seufferts Blàtter, 341), Pierre Siméon (Recht und Rechtsgang, 1, 602 s.) e Wilhelm Mohr (Der Fund verlorener Sachen, 14). Ainda houve quem dissesse somente estar perdida a coisa de quem não se sabe quem é o dono (cp. Hans Pfleiderer, Der BegrifJ der verIorenen Sache, 9), que também acentua o elemento da achabilidade, como se não estivessem perdidas as coisas, que se perderam e não se podem achar. 5.Achada e elementos do suporte fático. Achar é encontrar. Tecnicamente, acha quem encontra a coisa perdida, se bem que, na linguagem vulgar, também se diga que se acha o que não está perdido, mas de que apenas se havia

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esquecido ou se ignorava o lugar preciso em que estava. O achador pode encontrar (ver, ouvir, tocar, experimentar o sabor, cheirar), e não se apossar da coisa. Juridicamente, o que é relevante é a tomada de posse não-própria, como posse de achádigo (Schútze, Zur Lebre von dem sogenannten Funddiebstahl und der Unterschlagung, Archiu fOr praktische Rechtstvissenschaft, 11, 173). Se o achador fez esforços, investigações, pesquisas, ou ordenou, com despesas, pesquisas, ou organizou serviço para encontrar a coisa perdida, ou se a encontrou por acaso, é indiferente (E. Delbrtick, Vorn Finden verlorener Sachen, Johrbúcher for die Dogmatik, III, 24). 6. Pluralidade de donos e achadores. A coisa perdida pode pertencer a duas ou mais pessoas, ou ser achada por duas ou mais pessoas. Se duas pessoas disputavam a propriedade no momento em que a coisa se perdeu, ambas têm de comparecer no prazo fixado pelo edital, tendo-se de depositar a coisa, a expensas de ambas, até que se decida, no processo adequado, a questão. Idem, se disputavam a posse, e sobrevém ou já havia litígio possessório, ou de vindicação da posse. A disputa entre pessoas que dizem terem sido o achador único não impede que o tenedor da coisa comunique à autoridade pública e promova o procedimento edital. A questão de quem primeiro tomou posse da coisa é de decidir-se noutro processo. Todavia, se alguém encontrou e caminhou ou se movimentou para apanhar a coisa, e outrem, que a percebeu depois, mais cedo chega, tem-se por achador aquela pessoa (Ernst Eck, Outachten des 16. deutschen Juristentags, 63; Karl Oesterreich, Das Recht d’es Finders verlorener Sachen, 10). Donde se tira que as circúnstâncias têm de ser examinadas. 7. Achador, o que é. Achador é o que apanha coisa perdida. E preciso mais do que encontrar, porém destoaria do sistema jurídico brasileiro que se reduzisse a apanha à apanhação material, exigindo-se o corpus. Se A e 8 vêem e A não tem qualquer movimento para apanhar, ainda que tenha intenção de volver depois, mas B apanha, B é o único achador, ainda que A houvesse visto primeiro. É preciso algo que se interprete como tomada de posse, ainda à distância. Por isso não basta a intenção, se bem que possa bastar dizer A a B que volverá ao lugar para apanhar. Se B discorda, ou os dois tomam posse, ao longe, ao mesmo tempo (co-achadores), ou se estabelece luta que se há de dirimir, juridicamente, com o reconhecimento de que o primeiro ato para ir apossar-se ou a declaração não reprovada por tardia foi que determinou o achador. Evite-se a opinião que dá ao animus, à intenção, à preferência, ainda para a indenizabilidade, que imaginou Martin Wolff (Lehrbuch, III, 262, nota 5). É preciso que na pessoa se complete o suporte fático, que tem dois elementos necessários: encontrar e apanhar, no sentido que tem no sistema jurídico brasileiro. Os princípios concernentes à tomada de posse imediata é que hão de ser observados, quer própria, quer não-própria. É achador tanto o que acha e recolhe a coisa para entregar ao dono, ou à autoridade pública, quanto o que dela se apossa como sua. Aliás, se alguém encontra a coisa, a toma para examinar e depois a solta, não se fez achador. Se foi o servidor da posse, que achou a coisa, ou alguma pessoa que está em relação com outra, tal que a tomada de posse imediata implique tomada de posse mediata pela outra, achador é essa outra pessoa. O Achador não precisa saber se a coisa é nullus, ou perdida. Donde poder-se dizer que a posse imprópria basta. Se a coisa é coisa perdida, achador é. Se é coisa sem dono, não éele achador: se a cria nullus e o era e tomou posse própria, ocupou-a; se a cria perdida e era nullus, tendo tomado apenas posse imprópria, precisa passar a possuí-la como própria para que se dê a ocupação. Foi erro de Otto von Gierke (Deutsches Privatrecht,II, 534) entender que se torna automaticamente dono. Como, se não houve posse própria, elemento necessário do suporte fático da ocupação? O achador pode ser o incapaz, absoluta ou relativamente. Porque a achada não é negócio jurídico nem ato jurídico stricto sensu; nela, há o encontrar, elemento puramente fático, e a tomada de posse, que é ato-fato jurídico (cf. Tratado de Direito Privado, Tomos II, §§ 159, tabela, 212, 2 e 217, 3; IV, §§385, 2, 386, 3; V, 542, 1; X, §§ 1.068, 2, 1.080, 1.084, 7, 1.087, 1, 1.090, 2, 1.092, 2). § 40. Entrega do achado à autoridade pública e procedimento edital

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1. Entrega à autoridade pública. A entrega há de ser imediata, após as pesquisas pelo achador para descobrir quem é o dono ou possuidor. Autoridade competente, para receber, é a autoridade judiciária ou policial, que a arrecadará, mandando lavrar o respectivo auto com inserção da descrição do bem e da comunicação de conhecimento do inventor. E assaz relevante saber-se qual a autoridade judiciária competente, porque a coisa pode ser entregue, diretamente, desde logo, a ela, ou, se a arrecadação foi feita pela autoridade policial, tem ela imediatamente (logo) de remetê-la ao juiz competente. Se a entrega foi a algum juízo não-competente, tem ele de remetê-la ao juízo competente. A remessa é sempre com o auto de arrecadação. Depositada a coisa, o juiz mandará publicar edital, por duas vezes no órgão oficial, com intervalo de dez dias, para que o dono ou legítimo possuidor a reclame. Se o dono, ou legítimo possuidor comparece dentro do prazo do edital, provando o direito, depois de ouvidos o presentante do Ministério Público e o representante da Fazenda Pública recebe a coisa, pagas as despesas e a recompensa do inventor, se devida. Se não for reclamada, a coisa será avaliada e vendida em hasta pública; deduzidas as despesas e a recompensa do achador, se foi devida, o remanescente pertence ao Estado (União, Estados ou Distrito Federal). Se o achador comunica ao dono da coisa a achada, não precisa entregá-la à autoridade pública para o procedimento edital. Aguarda que a venha buscar, salvo se prometeu enviá-la, ou disse que entregaria à autoridade pública. 2. Edital. O edital há de ser publicado, com o intervalo legal e as vezes que a lei fixe. Nesse edital marca-se o prazo da lei para a comparência. Quem, dentro do prazo legal para a apresentação, se apresenta, alegando e provando o direito sobre a coisa, recebe-a. Após ele, ainda pode apresentar-se, mas tem de justificar porque não compareceu no prazo legal e expõe-se a que, corridos para a apresentação, se haja vendido a coisa, ou adjudicado ao achador ou ao Estado. A descrição dos bens, que há de ser feita, tem a finalidade de tornar identificável pelo perdente da coisa aquela que se descreve. Donde ser mais relevante marca ou sinal que a própria descrição. As circunstâncias de lugar e de tempo auxiliam essa identificação. O edital que omita o que identificaria é ineficaz. Se o terceiro, que devera ter sido notificado publicamente, não o foi, por se não ter, por exemplo, mencionado a marca ou o número do objeto achado, a decisão do juiz, atribuindo o remanescente ao Estado, é ineficaz contra ele. Daí ter a ação de enriquecimento injustificado, contra o Estado. Se o achador entregou a coisa achada a quem lhe pareceu ser o dono ou legitimo possuidor, há responsabilidade dele. 3.Achado em estabelecimentos públicos ou em transportes coletivos. Se o achado foi em estabelecimento público, ou em transportes coletivos, o achador deve entregar, imediatamente, à administração, ou a empregado que lhe pareça ser habilitado a receber, ou, se há razão para que o prefira (e. g., extraordinário valor da coisa), comunicar à administração e levá-la imediatamente à autoridade competente, ou entregar à administração, exigindo recibo em que se descreva a coisa. Tal regra jurídica, não escrita, faz parte, como uso, do sistema jurídico brasileiro. Não há dever de entrega se o achador conhece a pessoa ou a pode reconhecer. A repartição ou administração assume, com o recebimento, os deveres de achador. O achador, que mal procedeu, perde direito à recompensa, posto que possa cobrar despesas (cf. E. 1(.Neubecker, Zum Fund in eine Droschke, Deu tsche Juristen-Zeitung, 16/143 s.). 4. Relações jurídicas entre achador e dono da coisa. O achador guarda a coisa alheia até que a entregue ao dono, ou à autoridade pública para que se proceda à publicação do edital e se dê destino à coisa. A figura da relação jurídica é, diz-se, a da negotiorum gestio (B. Windscheid, Lehrbuch, 1, 9ª ed., 945; Schtitze, Zur Lehre von dem sogenannten Funddiebstahl, Archiu for pra ktische Rechtswissenschaft, II, 178 s.; E. Delbrúck, Vom Finden ver-lorener Sachen, iahrbúcher for die Dogmatik, III, 25). Discordava Rudolf von Jhering (Der Besitzwille, 422 s.), por não ter encontrado nas fontes razão para se pensar em negotiorum gestio: ou leva o achador a coisa ao dono; ou não a leva; se não procede como deve, não tem o dever de ir até o fim, como o gestor de negócios, tanto que pode recusar-se a ficar com a coisa como achador e repô-la onde achou (com ou sem razão, e.g., a coisa mancharia o vestido, a coisa é pesada, ficaria feio andar com ela pelas ruas). Em verdade, obra para si, e não para o dono da

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coisa. As ações que o direito romano dava ao dono da coisa eram a actio, ou a condictio furtiva, e a actio ad exhibendum. Aliás, a questão somente tem importância para o caso de comunicar o achador ao dono que tem consigo a coisa, o que dispensa a comunicação edital (cf. Emst Leo Weiss, Das Recht des Finders, 13 s.). Não se pode dizer mais do que, se o achador pratica atos de gestão, ser gestor. Se cria ser nuílius a coisa, gestor não se fez. Quanto à situação possessória do achador, não se podem dar respostas às questões com os olhos fitos em velhos textos, nem sob influência de leituras estrangeiras. O direito alemão pôs-se na linha das novas teorias da posse, mas superou-o o direito brasileiro. As discussões em torno de conceitos de detenção e de posse jurídica são impertinentes, por mais adequadas ao problema que tiverem sido (cf. Max Spittel, Besítz und Ersitzung, 16 5.; Ernst Hass, Die K/agen des Verlierers, 18; Alfred Sieveking, Der Fínder und die gefundene Sache, 15; Otto Freitag, File Besitzuerhàltnisse mi der gefundenen Sache, 15s.; Wilhelm Morh, Der Fund verlorener Sachen, 19 s.). O achador toma posse; se toma posse própria, não é achador: porque o achador supôe que a alguém cabe a posse mediata, ele só tem posse imediata imprópria, posse que se mediatiza quando ele entrega à autoridade pública o achádigo (Tratado de Direito Privado, Tomo X, § 1.081, 6). 5. Responsabilidade do achador. a) O achador somente responde por dolo. É o que está no direito brasileiro, embora se afaste de outros sistemas jurídicos. Mais acertado teria sido, de iure condendo, que bastasse a culpa; mas havemos de entender que a regra jurídica somente concerne ao achador que se não apossou, propriamente, da coisa (passando a ter posse própria, deixou de ser achador, e responde como o ladrão), nem infringiu o dever de entregar à autoridade competente a coisa achada, porque a posse, que dai em diante se estabelece, é contrária a direito. b) O dever de custódia que tem o achador compreende a guarda e, se é o caso, a mantença. Não é a ele que cabe apreciar se menos vale a coisa achada do que as despesas. Se essas são grandes e maiores, ou assaz pesadas para ele, o caminho que tem é desembaraçar-se dela, entregando-a à autoridade pública. Se, porém, se trata de coisa que se deterioraria antes de ser entregue à autoridade pública, ou tal que a autoridade pública não a receberia, deve o achador comunicar à autoridade pública, se não sabe quem a perdeu, e consumi-la, respondendo pela indenização, em virtude do enriquecimento injustificado. 6. Direitos do achador. a) O achador tem direito, primeiramente, ao ressarcimento dos gastos que tenha feito com a guarda, ou com a guarda e a mantença da coisa achada, e para descobrir quem éo dono da coisa ou o seu legitimo possuidor. As circunstâncias é que determinam se tais gastos são necessários; todavia, se, sem dolo, os teve como necessários sem o serem, são de ressarcir-se. Se não eram necessários os gastos para o descobrimento do perdente, mas lhe parecem necessários, hão de ser ressarcidos. b) O achador tem direito à recompensa. c) Também lhe assistem pelos gastos e recompensa: o direito de retenção da coisa achada; a ação condenatória, se o dono ou possuidor recebeu a coisa achada, ou se ratificou os gastos e a recompensa; a ação cominatória para que o dono ou possuidor legítimo pague as despesas e a recompensa, ou declare se prefere derrelinqui-la. As duas primeiras atitudes somente se podem dirigir contra o dono ou possuidor que se prontificou a receber a coisa, ou a recebeu (posse imediata, mediatizada pelo constituto possessório). d) O achador tem o ônus de alegar e provar que o é. Se tem a coisa perdida, presume-se (presunção hominis) que a achou: ou é coisa perdida, que está em mão de outrem, ou foi achada, ou furtada, ou por outro modo retirada ao dono ou possuidor. Se terceiro que se disse dono, ou legitimo possuidor, paga as despesas e o achado, o dono ou legitimo possuidor está liberado perante o achador que a entregou, ainda que tenha havido reivindicação, vindicação da posse, ou restituição possessória. Se o dono ou possuidor legitimo paga as despesas e a recompensa à pessoa que lhe trouxe a coisa achada, fica liberado em relação ao achador. O achador pode vir a usucapir a coisa achada, como o poderia o ladrão. Desde o momento em que começou de ter posse própria, achador deixou de ser, para ser possuidor de má-fé, ou possuidor de boa-fé, se cria em que se tratasse de res nullus. No sistema juridico brasileiro, a sentença é declarativa. Não temos, porém, a aquisição pelo silêncio, com eficácia ex nunc. Se o dono da coisa a derrelinquie, pode adquiri-la o achador conforme mais adiante se exporá.

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§ 41. Entrega da coisa 1.Dever de entrega. Quem acha coisa alheia perdida há de entregá-la ao dono ou ao legítimo possuidor. Ao dono, ou ao legítimo possuidor; ou à autoridade pública. a) O dono da coisa tem direito a receber a coisa. Mas pode dar-se que a entrega haja de ser a outrem que o dono, e. g., o credor com direito pignoratício, o mandatário do dono, inclusive a quem tenha pretensão à entrega, ou a quem seja de interesse do dono que se entregue. Tudo isso nada tem com as regras jurídicas sobre achamento. O ladrão que perdeu a coisa roubada tem pretensão a que se lhe entregue. b) Se dois ou mais foram os perdedores, com direito a receber a coisa, ou se uma só pessoa perdeu, mas há mais de um titular do direito de receber a coisa, há de atender o achador ao grau em que, no tocante à posse imediata, têm de ficar. Nem sempre se há de pensar em solidariedade (sem razão Otto von Gierke, Deu tsches Priuatrecht, 11, 534, e E. Brodmann, em G. Planck, Kornmentar, III, 452): se a coisa estava empenhada, ao credor pignoratício é que há de ser entregue; se o dono empenhante pediu ou assentiu em que o credor pignoratício mostrasse ou emprestasse a coisa a terceira pessoa e essa a perdeu, é a essa, ou, em segundo lugar, ao credor pignoraticio, que há de ser entregue, embora qualquer das três pessoas tenham pretensão à entrega. O que está à frente pode declarar não querer a entrega, ou achar-se em situação de não a poder receber. Entendeu Hans Otto de Boor (Die Kollision von Forderungsrechten, 93) que a mora é que decide — tem de entregar a quem o constituiu em mora, ou, se ainda nenhum o interpelou, a qualquer dos legitimados. Sem razão; a mora fixa; porém, antes da mora, tem de examinar a quem há de entregar. c) Vendida em hasta pública a coisa, dá-se sub-rogação real. Se o dono ou possuidor legitimo reclama o remanescente, por ainda ser tempo para isso, a autoridade pública não lhe deve entregar a coisa sem ser ouvido o achador, porque tem esse posse intermédia (posse mediata, superior à posse imediata do Estado). 2. Ladrão e entrega. O ladrão também tem direito e pretensão à entrega da coisa, se não há possuidor que se apresente; mas, se se sabe que é ladrão e cabe a ação penal, só o inicio dessa o torna “possuidor ilegítimo”, devendo-se depositar a coisa, até que se decida a questão penal. A declaração dele de que quer a coisa para entregar ao dono, ou legitimo possuidor, ou à polícia, tem eficácia para entrega, sob as cautelas necessárias. O perdente da coisa é o dono ou legitimo possuidor a que foi furtada, se o ladrão a perdeu. 3. Quem faz entrega ao perdente da coisa. A entrega pode ser feita: a) pelo achador, que sabe quem seja, ou venha a saber quem é o dono ou legítimo possuidor da coisa; b) pela autoridade policial ao ser-lhe entregue e antes de remeter ao juiz, se não há fundada suspeita de subtração dos bens achados, caso em que a autoridade policial converte a apreensão em inquérito e, havendo reclamação, o remete ao juiz, se lhe é duvidoso o direito da parte; c) pelo juiz. Fundada suspeita é suspeita com razões de suspeitar-se. § 42. Recompensa ao achador 1. Conceito e história do achádigo. Quem, achador, restituiu a coisa achada, tem direito à recompensa e à indenização pelas despesas que houver feito com a conservação e transporte da coisa, se o dono não prefere abandoná-la. E o achádigo, ou prêmio, dito também alvíssaras. Com ele, recompensa-se o ato da apanha, não o de achamento, porque o que acha a coisa e não a apanha não tem direito ao achádigo. Todavia, desde muito, mas, principalmente, quando o sistema jurídico abstraiu do animus e do corpus, na teoria da posse, quem encontra a coisa e a deixa no lugar em que estava, por entender que outrem dificilmente a pode achar, ou a cobre, ou toma qualquer providência de resguardo da coisa, tomou posse da coisa como achador e tem jus à recompensa. Praticamente, quem comunica, eficientemente, ao dono ter encontrado, pode cobrá-la. Entende-se que houve apanha, porque o sistema jurídico, no tocante à posse, abstrai do corpus. No direito romano não havia a pretensão à recompensa. Na L. 43, § 9. D., de furtis, 47/2, Ulpiano pergunta: “Quid

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ergo, si anptrpa quae dicunt petat? nec hic videtur furtum facere, etsi non probe petat aliquid’. Logo ~que se dirá se pede o que se diz enpetpct (prêmio de achada)? Quem tampouco se considera que esse comete crime, ainda que sem probidade algo peça. A passagem depõe, decisivamente, contra a existência do direito e da pretensão ao prêmio. Em manuscritos jurídicos sírio-romanos aparecem prêmios por achada, porém não tem qualquer funda-mento em direito romano (cf. Ludwig Mitt eis, Ciber die drei neuen Handschriften des syrisch-rómischen Rechtsbuchs, Abh. der Preuss. Akart., 1905, 41 s.). Na Lex Visigothorum já havia a recompensa ao achador, porém só em certos casos (e. g., se não morava no mesmo distrito judiciário). Noutras leis germânicas, também (Sachsenspiegel, li, 37, §§ 1-3; Rudolf Gerber, Der Finderlohn, 10). Nas Ordenações Afonsinas, Livro V, Titulo 54, § 6, está a regra juridica sobre direito e pretensão a achádigo (prêmio pela achada, praemium inuention is), “como na Ordenação é declarado’ (cf. Ordenações Manuelinas, Livro V, Titulo 41, § 1; Ordenações Filipinas, Livro V, Título 62, §§ 3 e 4). O achádigo (alvíssaras) a princípio só se devia ao caçador, e não ao que achasse outras coisas. A recompensa aparece no Preussisches Alígemeines Landrecht, mas o prêmio de achado teve seus inimigos, sendo o maior deles G. Pfizer, que na Aligemeine Zeitung de 8 de maio de 1893, o reputava “direito imoral’,” direito para nação de criados”, “mancha do direito alemão”, prêmio que não fica bem à “pátria do imperativo categórico”. A recompensa ao achador é de lege lata. Também de lege ferenda não seria admissível deixar-se a libito do dono da coisa, como gorjeta. Em verdade, as legislações seguiram a trilha da pretensão à recompensa e ainda onde falta texto legal doutrina e jurisprudência a apontaram (cf. Rudolf Gerber, Der Finderlohn, 15 s.). O fundamento da recompensa é o prêmio ao cuidado e responsabilidade do achador (Heinrich Dernburg, Lehrbuch des preussischen Privatrechts, 1, 5ª ed., 559, nota 2; Ernst Eck, Wie die Behandlung gefundener Sachen civilrechtlich einheitlich zu regem?, Gutachten des 16. deutschen iuristentags, 54; AIfred Sieveking, Der Fin der und die gefundene Sache, 21; Ernst Leo Weiss, Das Recht des Finders, 25; em parte, Rudolf Gerber, Der Finderlohn, 24; Max Dolezych, Die Rechtsuerhàltnisse arn Fund und Schatz, 25; Roland Behrend, Der Begriff der verlorenen Sache, 21; Berthold Chaffak Fundsache und Schatz, 35; W. ElIer, Die rechtliche Stellung des Finders, 59; Hans WedeIl, Die rechtlichen Beziehunqen zwischen Verlierer und Finder, 41 5.; H. Hermann Krause, Der Anspruch des Finders aul Finderlohn, 10 s.). Sem razão, os Motive (III, 381) referiam-se a prêmio pela honestidade; Wilhelm Mohr (Der Fund verlorener Sachen, 38), à torna da coisa perdida (jmas a recompensa é devida ainda que não apareça do dono!); P. Daude (Outachten, 89) e, em parte, Rudolf Gerber (Der Finderlohn, 24). Se o achador perde de novo a coisa, o segundo achador tem direito à recompensa; se a recebe do dono, pode o primeiro achador, não-negligente, cobrar a sua, se a teria do dono, se não a tivesse perdido (cp. H. Hermann Krause, Der Anspruch des Finders aul Finderlohn, 18 s.). 2. Derrelicção da coisa achada. A coisa achada pode ser pelo dono derrelinquida. A derrelicção pode ser antes da entrega à autoridade, somente vindo a conhecê-lo o achador após a entrega; ou depois da entrega e durante o prazo da lei, contado da última publicação do edital; ou após terminar esse prazo de comparência, até se julgar a entrega do remanescente ao Estado. Antes da entrega à autoridade, a situação do achador, que vem a saber da derrelicção, é a de quem encontra coisa nullus: possuia imediatamente, como achador, passa a possuir, ainda imediatamente, como quem encontrasse coisa sem dono; ou entende que lhe convém ocupá-la e torna posse própria a posse imprópria que era e continuou de ser a sua, ou que lhe não convém ocupá-la, esperando que outrem ocupe (e. g., parente ou cônjuge do derrelinqtiente). Se a derrelicção se opera após a entrega, durante o prazo de comparência dos interessados, tem o achador de comunicar à autoridade pública a derrelicção e declarar que quer ocupá-la, tendo tal declaração de vontade eficácia de tomada de posse mediata própria; o pedido à autoridade é para que lhe volte a posse imediata, pagas as despesas que acaso foram feitas pelo Estado. Se a derrelicção só se operou depois do prazo de comparência e antes da prolação da sentença que adjudicaria o remanescente ao Estado, tudo se passa como a propósito da derrelicção durante o prazo da comparência. Se a derrelicção só se operou após a sentença, embora antes do transito em julgado, é intempestiva, salvo se em grau de recurso. Qualquer das comunicações de derrelicção pode ser feita pelo próprio derrelinqúente, ou qualquer interessado, em vez de o ser pelo achador, mas, em tais casos, o juiz há de mandar ouvir o achador, que tem de manifestar-se sobre a ocupabilidade. Se o dono da

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coisa transferiu a outrem a propriedade da coisa, não repercute no processo esse fato, senão para, habilitando-se o sucessor, assumir a posição processual do ex-dono. § 43. Aquisição pelo Estado ou pelo achador 1. Destino da coisa achada. Ou o dono ou possuidor legítimo aparece e recebe a coisa achada; ou não aparece, e prossegue o processo de pós-destinação; ou o dono, que se fez conhecer, antes do edital ou comparecendo a juízo, derrelinque a coisa, que o achador pode adjudicar (Código de Processo Civil, art. 1.174), ou não; ou ocupa a coisa, então derrelicta, o Estado; ou há o ato do Estado de pagamento das despesas e recompensa, para ficar com a coisa (em sub-rogação real dos remanescentes); ou o achador solve as despesas e presta o valor da coisa, assentindo o Estado; ou a coisa perece, ou se torna de tão exíguo valor que o Estado, assentindo o achador, a destrói ou derrelinque. A aquisição da propriedade em qualquer das espécies acima mencionadas é ex nunc, e não ex tunc, a partir do achamento ou de qualquer outro fato posterior (cf. E. Strauss, Das Rechtsverhàltniss am Fund, 52). 2. Explicações. Deduzidas do preço as despesas, mais a recompensa do achador, pertence o remanescente ao Estado (União, Estados, Distrito Federal). Não obsta isso a que a entidade pública prefira a coisa mesma, e não o que se deduza de seu valor, desde que assuma as despesas e pague a recompensa. O achador pode, antes, pedir a adjudicação, se paga o valor, menos o que lhe cabe. No sistema jurídico brasileiro, o achador não tem direito expectativo à propriedade, nem direito formativo à aquisição (no direito alemão, há direito à aquisição da propriedade, portanto direito expectativo cf. Otto von Gierke, Deu tsches Privatrecht, II, 538, e os demais; contra, G. Planck, Kommentar, III, 457, que aí vê mera expectativa, a despeito das expressões da lei). § 44. Decisões do juiz 1. Decisões quanto á venda e quanto ao preço da coisa. A decisão em que o juiz manda vender em hasta pública contém, explícita ou implícita, a declaração de ter precluído o prazo, ou estará precluido ao tempo da hasta pública. Após a venda e feito o cálculo das despesas, a sentença — sujeita ao prazo legal — que manda pagar as despesas e a recompensa e adjudica ao Estado o remanescente, é sentença constitutiva, com forte dose declarativa e mandamental, mas está unida a ela (duas sentenças em duas ações na mesma sentença formal) a ação de condenação e a ação de execução da condenação às despesas e à recompensa. 2. Decisões quanto à entrega ao dono ou possuidor legítimo.A eptrega ao dono ou possuidor legítimo, que se apresentou e provou a sua qualidade, que é a de titular da pretensão à entrega, é por sentença que declara tal titularidade e manda o depositário entregar a coisa. Tal sentença, executiva (entrega), contém em si mesma a eficácia mandamental (manda), por ter declarado ser aquela pessoa, que se apresentou, o sujeito ativo da relação jurídica de direito das coisas ou pessoal de que resulta a pretensão à entrega. 3. Carga de eficácia da sentença de entrega. A entrega ao dono ou possuidor legítimo, que se apresentou e provou ser, épor sentença que manda prestar a coisa, após declaração da legitimação à entrega. Tal sentença é executiva-declarativa. A carga pode ser expressa em 5 de executividade, 4 de manda-mentalidade e 3 de declaratividade. A sentença pode ser após o pagamento das despesas e da recompensa, ou antes. Se antes, é com ressalva: entrega após solução da dívida. 4. Decisão de adjudicação. A adjudicação ao achador, se foi deferida, é em negócio jurídico processual. Ao Estado, também, porque, se ele tem direito aos remanescentes, nela se lhe atribui o dever de arcar com as despesas

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e pagar a recompensa. É sentença constitutiva positiva. § 45. Comparação entre as Espécies 1. Traços comuns. Em todas as espécies de caça ilegal ou de pesca ilegal e de achado de coisa alheia, há o fato de não se tratar de aquisição por ocupação, nem por especificação, nem por confusão, comistão, ou adjunção, nem por sucessão, ou comunhão, nem por usucapião, ou ato do Estado. A sentença que se profere a respeito da entrega à entidade estatal é constitutiva, porém deriva de dever do juiz, que arrecadou, e não se pode equiparar à aquisição por desapropriação. A lei é que em todas as espécies acima referidas determina a aquisição. 2. Traços diferenciais. Enquanto a aquisição, nas espécies de caça em terreno alheio ou de pesca em águas alheias, se opera ipso iure, de modo que qualquer sentença que sobrevenha não pode ser mais do que declarativa, ou executiva com forte dose de declaratividade, a aquisição em caso de achada resulta de sentença constitutiva, negativa e positiva — negativa, porque julga precluso o prazo legal (declaração) e perdida a propriedade (constutividade negativa), e positiva, porque atribui a propriedade ao Estado (constitutividade positiva). Não há sucessão do Estado ao dono da coisa, se ele a tinha, nem ocupação, se a não tinha, ou se o dono, sem se saber, a derrelinqilira. A aquisição é originária, ex lege. § 46. Ações relativas à herança vacante 1.Ação de arrecadação da herança vacante. Em vez de duas fases, pode-se falar de duas ações, que é, em verdade, o que ocorre; e essas duas ações (em cumulação objetiva sucessiva) têm naturezas diferentes: 2.Ação constitutiva da curadoria. A ação constitutiva da curado ria é ação de constituição positiva, dotada de elemento mandamental, cautelar, e seguida de procedimento edital com provoca tio ad agendurn — ação que se extingue com a eficácia da sentença de outra ação, a de habilitação de herdeiros, ou com a absorção dos bens pelas dívidas, ou pelo concurso de credores. Em tal ação, há adiantamento de constituição (uma das espécies de adiantamento de cognição, como nas ações executivas de títulos extrajudiciais, há adiantamento de condenação e de execução, e, nas ações cominatórias, só de condenação). O processo é inquisitivo. Ainda se há testamento, uma vez que não se conheçam os herdeiros, ou não existam, arrecadam-se os bens (sem razão, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 13 de maio de 1943, DJ de 15 de janeiro de 1944). A validade, ou não, do casamento não pode ser apreciada em processo de inventário, ainda quando se trate de arrecadação — não, porém, porque seja questão de alta indagação, como pareceu à 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal (15 de setembro de 1942, DJ de 31 de dezembro), e sim por força da regra jurídica que exige a propositura da ação sempre que se trate de invalidade de casamento. Nulidade de casamento pode não ser, in casu, questão de alta indagação. A publicação dos editais com a provocatio ad agendum, é posterior à arrecadação e à entrega dos bens ao curador; a fortiori, à nomeação e investidura desse; não é ato independente, mas um dos atos do processo das ações sucessivamente cumuladas. Não se chama à relação jurídica processual, dissemos, que se iniciou com o processo inquisitivo da arrecadação, e sim a propor a ação de habilitação. Essa provocatio ad agendum contêm em si cominação implicita. 3.Ação de devolução á fazenda pública. A ação de devolução á Fazenda Pública é de cognição incompleta. Se não houve habilitação de herdeiros, o juiz “julga vacante os bens da herança dita jacente, expressões detrituais que revelam permanências de conceitos já obsoletos e insuficiência intelectual para as sinteses. Que dizer: o juiz lavra sentença mandamental em ação manda-mental, com a advertência legal de que se devolve apenas enquanto não se produzir a coisa julgada material de sentença proferida em ação de petição de herança, que é ação declarativa, na

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espécie, sem cumulação com a de reivindicação, ou com a de partilha, o que lhe daria a força executiva dessa sentença. A ação de devolução à Fazenda Pública, de cognição incompleta, é mandamental, sendo insuficiente para a caracterizar o elemento declarativo que pertence à questão da não-existência de herdeiros (relações jurídicas de direito das sucessões). Em verdade, o juiz apenas devolve os bens à Fazenda Pública, firmado em presunção que pode ser elidida pela coisa julgada material da ação de petição de herança, cumulada, ou não, com a de rescisão da sentença que negou cumpra-se a testamento.

Capítulo XVI

Ações para construção e conservação de paredes divisórias § 47. Vizinhança e construção 1.Pretensão a usar parede divisória. A ação para indenizar parede divisória é baseada na pretensão a usar a parede divisória. Frise-se a preponderância da eficácia constitutiva da ação. Nas Ordenações Filipinas apareceu no Livro 1, Titulo 68, § 35, como exceção ao princípio de que ninguém pode usar da propiedade alheia: “E ninguém poderá meter trave em parede em que não tiver parte: porém se quiser pagar a metade do que a dita parede custou ao senhor dela, poderá nela madeirar, sendo a parede para isso”. Pagava-se a metade do custo da parede. Depois, o direito brasileiro estatuiu que se há de pagar a metade da parede e do chão correspondente. No direito anterior, era entendido tratar-se de servidão (Lafaiete Rodrigues Pereira, Direito das Coisas, 1, 336), da servidão tigni immittendi. Dídimo Agapito da Veiga (As Servidões Reais, nº 206) e Virgilio de Sã Pereira (Manual, 8/292) construiram-no diferentemente: como compropriedade da parede, aquele; e compropriedade da parede e do fundo, esse. A opinião que exclui a servidão e admite a comunhão faz nascer a questão da causa (venda e compra, R. Pothier, F. Laurent, 1h. Huc; desapropriação; ou misto de uma e outra, Marcel Planiol). Venda sem consentimento é aberrante dos princípios; desapropriação em texto geral, a favor de alguém, para que se explique a irresponsabilidade pelos vícios redibitõrios, falha em se não exigirem pressupostos de interesse público. A velharia da servidão tigni immittendi, elevando-se a condomínio de superfície (Dídimo Agapito da Veiga) e de superfície de fundo (Virgílio de Sã Pereira), cria questões delicadíssimas, como a de reconstrução do prédio serviente. Quando os edifícios eram feitos para séculos, a servidão dependia de exigências óbvias; ao se tornar fácil a construção e renováveis por força das circunstâncias, são tantas as complicações que a servidão tigni immittendi (icom maioria de razão, a comunhão legal!) suscita, que se tornou de todo destoarite das situações econômicas de hoje. No sistema jurídico, é a meação que se estabelece; de lege ferenda, continuação brasileira do direito histórico. As consequências são as seguintes: a demolição rege-se pela comunhão; destruida a parede, quem depois construiu tem a metade do chão correspondente a ela. Mas a comunhão é pro diviso, só para o destino da parede — o que perdeu a metade do chão pode construir sobre o que perdera e, até, exercer a pretensão a haver metade do valor. O art. 451 do Código de Processo Civil de 1939 referia-se à ação do segundo proprietário para construir. 2. Pretensão a ir até meia espessura do terreno contíguo. Além da pretensão a usar da parede divisória, há, da parte de quem primeiro constrói, a pretensão a ir até meia espessura do terreno contíguo, pretensão enantiomórfica à de quem constrói depois, utilizando a parede divisória do prédio contíguo (porém nem sempre!). A ação não concerne a essa pretensão, mas já à pretensão de haver a metade do preço, se antes usou da pretensão de ir até a espessura do imóvel contíguo. Só então o confinante réu adquire a metade da parede. Se a lei não fala da ação para tal pretensão, quid iuris? Ou o vizinho se opõe, e cabe aplicar~se regra jurídica sobre preceito cominatório; ou não se opõe, e ação para arbitramento é a adequada, pela enantiomorfia das pretensões. Há exceptio: se a parede divisória pertence a um dos vizinhos, e não se presta a ser travejada por outro, esse não pode fazer, nem fazer alicerce ao pé, sem prestar caução àquele, pelo risco a que a nova obra exponha a construção anterior. 3. Pretensão a adquirir a meada no tapume do vizinho. A ação para adquirir a meada no tapume, feito pelo vizinho, funda-se na pretensão a adquirir a meada. Tal pretensão é de comunhão forçada, à semelhança da comunhão pela necessidade de se aproveitar da parede do vizinho e do fundo, em que ela se assenta. Esse tapume é só a parede, não a cerca de pouca duração; e a pretensão de direito material é a de edificar, utilizando-se do que

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já estava como parede divisória. 4. Presunção de ser comum o tapume e deveres dos vizinhos. Os tapumes presumem-se dos vizinhos, em partes iguais. A pretensão a que o vizinho concorre, em partes iguais, para as despesas de construção e conservação, cabe quando exercida pelo obrigado a concorrer (ação ligada à comunhão). Se exercida pelo que pede a contribuição, ou ele lança mão da justificação preparatória, ou propõe desde logo a ação em processo ordinário, ou a ação para pagar a metade do importe. A ação para se haver a contribuição, ou a indenização, éa ação de preceito cominatória (2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 28 de maio de 1952, RF 144/335; RDI 14/104), ou a de condenação, respectivamente. § 48. Fundamentos das ações 1. Pressupostos objetivos. Nas cidades e vilas e nos povoados, cuja edificação está adstrita a alinhamento, o dono o erreno vago, que pretende construir na parede do prédio contíguo, pode fazê-lo requerer que se nomeie perito, citado o proprietário vizinho para acompanhar o arbitramento do meio valor da parede e do chão correspondente. São pressupostos objetivos: a) haver construção a fazer-se, apoiando-se na parede do vizinho; 14 ter a parede do vizinho resistência para suportar o apoio. Se, a despeito da sentença sobre a pretensão a usar da parede, rui essa, ou se racha,ou de qualquer modo se estraga com o peso, a sentença (constitutiva, conforme se dirá adiante) não é obstáculo à indenização pelo comuneiro. O julgado opera como operaria o negócio jurídico (Rudolf Pollak, System, 23) com pressuposto objetivo (condicio iuris) de fato material; mas não estabelece, no futuro, a verdade do fato material, que foi, no passado, condicio iuris. Daí a possibilidade de se requerer a caução para o alicerce ao pé se a parede divisória não puder ser travejada. A parte de terreno que se adquire não produz comunhão pro indiviso, mas comunhão pro diviso (meio-chão). Em todo o caso, a figura é a da parede-meia ou do muro-meio, e escritores superficiais, ou desatentos ao direito brasileiro, lamentavelmente confundem com as paredes indivisas e os muros indivisos, chamados paredes comuns ou muros comuns. Nas paredes comuns e nos muros comuns, cada vizinho tem parte ideal (há, pois, condominio); nas paredes-meias e nos muros-meios, não, porque há linha vertical que divide pelo meio a parede ou muro e, com ela, o terreno que lhe fica por baixo e a coluna de ar, segundo os principios. A parede-meia certamente tem de sofrer o fato da indivisibilidade material da “parede”, com algumas conseqúências desse fato; porém, o que está à base e no cerne da construção jurídica, da categoria, é a propriedade até a meia espessura, isto é, até ao plano vertical que divide, na idéia, a corporeidade indivisível da coisa. Sem aquele elemento da idéia não se poderiam levar ao direito, divisas, as “metades” da parede-meia. Convicções filosóficas e sugestões econômicas presidiram a isso. Há duas meadas. A nota mais característica da doutrina luso-brasileira foi a probidade das convicções, a lealdade às fontes. Os velhos livros refletem a honestidade científica dos pesquisadores de outrora, a elegância enérgica nas criticas recíprocas, o propósito de aceitar, com todo o respeito, a ciência, que é de todos os povos, e o direito positivo interno, que é de cada Estado. Já é tempo de voltarmos a essa linha histórica. Nunca é demais insistir-se em que não é possível construir-se qualquer coisa de sólido, em ciência, sem se policiarem devida-mente os conceitos e as proposições, porque é com eles que trabalha a lógica da ciência. É aí justamente que cada investigador vem colaborar na obra de todos e servir às gerações seguintes, sem falsas aparências. A ação para se exercer o direito de madeirar ou travejar refere-se à pretensão do segundo proprietário a construir (Tratado de Direito Privado, XIII, §§ 1.555, 4 e 8, e 1.559). Outra ação é do primeiro proprietário a construir para haver o valor da parede divisória que foi madeirada ou travejada. Outra, a do vizinho que, antes de madeirar ou travejar, quer adquirir metade da obra e do tapume. Se a parede já é parede-meia, ou por ser parede construída pelos dois confinantes por partes iguais nos respectivos

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terrenos, ou por ter o vizinho adquirido a parte que lhe tocaria construir, ou se é comum, não há de pensar-se em ação do confinante para poder madeirar ou travejar (cf. 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 29 de setembro de 1950, RT 189/797). A ação para haver o meio valor e a ação para adquirir a meação do tapume, supõem que o confrontante não tenha pars indivisas nem pars divisa (cf. 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de abril de 1951, RT 193/224: “Os condôminos de uma parede-meia, sujeitos às regras da comunhão pro diviso, podem dela utilizar-se até o meio de sua espessura, não pondo em risco a segurança nem a separação dos dois prédios. Exige-se consentimento expresso para a demolição da parede-meia”). Na dúvida, a parede divisória presume-se meeira (Turma Julgadora do Tribunal de Justiça de Alagoas, 4 de dezembro de 1951, AJ 102/111; OD 79/250). Se o autor construiu primeiro que o réu, tem, por isso, pretensão a há ter o valor da parede, que há de fazer até meia espessura no terreno contíguo. Do direito material resultou que, ao ter de murar, ou construir paredes, é erro murar ou construir só no seu terreno. Toda conveniência existe em que se exerça, desde logo, a pretensão a construir a parede divisória até meia espessura do terreno contíguo, para que, vindo o vizinho com a ação para edificar a parede, não adquira metade do terreno que fica por baixo da parede ou muro. A ação para haver metade do valor é de condenação, e de condenação a sentença. A ação de quem tem direito a extremar o imóvel com cerca, muros, valas e valado, é semelhante à de quem pretende utilizar-se da parede do prédio contíguo; a sentença, constitutiva. Qualquer dano resultante do aproveitamento se rege pelos princípios jurídicos sobre danos em limites. A sentença é sentença de condenação. 2. Contestação das afirmações do autor e natureza da ação. Quid iuris se houve contestação das afirmações do autor? Exemplo: se o citado alega que o réu não tem direito ao uso e à aquisição, ou à indenização. Tem-se de aplicar o rito comum, porque incide o art. 272 do Código de Processo Civil. Não se deixou ao juiz, sem maiores cuidados de procedimento, dirimir tais dúvidas. Como se trata de relação entre vizinhos, decide o título do autor, ou, melhor, o seu direito de construir ou de usar. O elemento executivo não chega a caracterizar a ação, prepon-derantemente constitutiva, ou no caso de dano resultante do aproveitamento, de condenação; mas existe. A sentença que afirma a pretensão não é de cognição superficial, e faz segundo os princípios coisa julgada (Código de Processo Civil, art. 467). O recurso sobre essa pode apreciar as questões de mérito suscitadas pelo réu, ainda que constantes da decisão que dirimiu as dúvidas. 3. Natureza da sentença. A sentença não é homologatória, pelo menos não-no é sempre; ocorre às vezes que o juiz aceite o arbitramento, homologando o laudo, sem a sentença deixar de ser, por isso, no caso de dano, sentença de condenação. A confusão, encontradiça em julgados e livros, é de se evitar. Nem toda sentença que homologa é simplesmente homologatória (isto e, só constitutiva integrativa, pelo elemento de ato oficial necessário à constituição do negócio jurídico). 4. Trânsito em julgado. Trânsita, formalmente, em julgado a sentença que homologou o arbitramento, se foi a hipótese, deposita-se em juízo a importância da indenização, quer se tenha utilizado a parede do prédio contíguo, quer para adquirir a meação do tapume, expedindo-se, no primeiro caso, mandado para que o autor possa utilizar-se da parede. No caso de pedido de meio valor da parede, o direito, que ao réu assiste, de travejar a parede do autor, fica dependendo da indenização de metade do valor apurado. As sentenças para o vizinho utilizar-se da parede existente, ou para a aquisição da meação do tapume são constitutivas; a de indenização de danos, de condenação. Essa tem força de coisa julgada material. Quem quer travejar a parede, construída pelo vizinho, tem ação de aproveitamento comum, diferente da ação de haver a prestação, que supõe já ter o vizinho usado a parede divisória, que não é sua, posto que seja seu o terreno sobre o qual metade dela repousa, ex hypothesi. 5. Resistência da parede. O arbitramento não se faz sem que se dirima qualquer dúvida sobre se a parede divisória suportará a nova construção. Suportar a parede a nova construção, travejamento, ou madeiramento, ou o que for, é condicio iuris das pretensões dos vizinhos em caso de construção da parede divisória, ou de construção com utilização até meia espessura do terreno contíguo. Não da pretensão a haver o meio valor da parede divisória. Verifica-se isso por meio de perícia, anterior ao arbitramento. Sobre essa perícia têm de ser ouvidas as partes. É supêrflua, se não há dúvida sobre a suportabilidade da construção. É perícia para prova de afirmações dos interessados.

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Capítulo XVII

Ação de venda, locação e administração da coisa comum § 49. Precisões conceptuais 1.Ações quanto a coisa comum. Quando a indivisibilidade da coisa comum a torna imprópria ao seu uso em comum (o), ou quando a divisão da coisa (naturalmente divisível) a faz imprópria ao seu destino (b), pode o condômino pedir a citação dos demais condôminos para resolverem sobre a matéria — ou entregando-a à administração de alguém, ou vendendo-a, ou alugando-a. Os dois casos estão Longe de exaurir as dificultações e impossibilitações do uso comum. Somente se focalizam as impossibilitações objetivas, que mereçam os cuidados do legislador quanto à vendo (não quanto à administração, ou à locação). Em vez de, nesses casos, (a) e (b), pedir-se a venda, o sistema jurídico concebe o pedido normalmente como “de administração, ou de locação, ou de venda”. Naturalmente, cabe a alternatividade de dois pedidos ou de três, ou de qualquer deles, dos dois ou dos três com outro que se não mencione na lei (e. g., comodato a um dos condôminos, reconstrução, demolição e novo aproveitamento etc.). Não se inovou, porque os condôminos, no direito anterior à Legislação, já possuíam, para a administração, para a locação etc., a pretensão a’’ decisão” sobre o uso, nesses e noutros casos. Fora do caso da venda, a pretensão existe, existe a ação; apenas essa não tem qualquer procedimento especial. Esse ponto tem sido postergado, de maneira grave, pelos juristas que desejariam, ao que parece, que se houvessem previsto todas as ações (são elas milhares!) das Leis civis e houvesse impecável ajustamento numérico entre as pretensões, as ações e as formas processuais. De ordinário, somente se conferiu o rito especial às ações entre condôminos que tenham fundamento em impossibilitações objetivas. E isso o que ele estatui. E isso o que devemos explicitar. Advirta-se, porém, em que não é tão inaceitável, de lege ferenda, quanto se diz, o critério acolhido. As impossibilitações subjetivas podem esperar o rito ordinário. 2.Natureza das ações do comuneiro. As ações do comuneiro para venda, locação ou administração do bem comum são ações constitutivas; a sentença constitui o titulo que habilita aos contratos de venda e compra, locação ou administração. Não tem importância discutir-se a diferença entre a declaração de vontade da deliberação acorde e o caráter que há de ter o desempate, se não houve maioria absoluta. Diga-se o mesmo quanto à diferença entre a declaração de vontade e a resolução judicial. Essas distinções “interiores” ao processo de constituição não transformam em declarativas as ações constitutivas de que falamos, erro em que incorrem tantos juristas. A ação somente é declarativa, em vez de constitutiva, quando há declaração sentencial da existência de declaração de vontade ocorrida antes do pedido. Ai, sim, a sentença seria declarativa, e não constitutiva. Desde, porém, que se pede ato ou negócio jurídico que a ação vai provocar, a sentença é constitutiva, não declarativa, ainda quando o juiz se limite a homologar a declaração de vontade das partes. Esse ponto, na ciência e na prática, é de extrema importância. § 50. Procedimento Judicial 1. Administração, venda ou aluguel da coisa comum. Quando impossível o uso e gozo comum de coisa por ser indivisível, ou quando, em virtude de divisão, se tornaria imprópria ao seu destino, pode o condômino pedir a citação dos demais para resolverem se deve ser administrada, vendida ou alugada. Na petição inicial, o autor tem de declarar o valor de todos os quinhões e a providência legal que prefere. A regra jurídica é taxativa quanto aos dois fundamentos do pedido (indivisibilidade, divisão sacrificante do destino do prédio). A causa da dificultação pode ser subjetiva (e. g., quando, por circunstância de fato, ou por desacordo, não for possível o uso e gozo comum); mas, se não ocorre algum dos dois fundamentos, não se admite o rito especial do Código de Processo Civil, arts. 1.104-1.111. E sem relevância a questão de se saber se exclui qualquer outra pretensão à venda da coisa comum. O que é importante saber-se é que se concebe a ação do comuneiro como ação para resolução de destino, conservada a divisão, ou para a venda da coisa. O pedido de venda, sem alternativa, pode ser feito porque

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o autor tem, por direito material, a sua pretensão, independente da audiência dos outros condôminos para a venda. Não há contradição entre o que se disse e a regra jurídica sobre desacordo quanto à adjudicação a um dos comuneiros, porque essa só se refere às alienações judiciais acessórias. Aqui, a ação é principal, autônoma. Por outro lado, é lícito pedir-se, por exemplo, administração ou venda. Se há contribuição a gastos que não correspondem às quotas por acordo entre comuneiros, o preço tem de ser dividido, de modo que se atenda aos valores das quotas e das contribuições que se refletiram no preço (cf. 4e Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 16 de novembro de 1950, RT 190/810: “Tratando-se de propriedade comum e indivisível de terreno adquirido por todos os condôminos, em quotas ideais, de diferentes valores e representando o trabalho encetado, igualmente, contribuições pecuniárias de todos os interessados, de maior ou menor importância, deve, no caso de paralisação da construção e desentendimento entre os condôminos, ser feita a venda do prédio, em hasta pública, para rateio do produto entre os mesmos, proporcionalmente à contribuição de cada um”). A quarta solução é a de ser administrada, vendida, ou alugada, ou ter outra solução. O autor tem de dizer, desde logo, qual a solução que prefere; aliás, pode pedir a venda, simplesmente. 2. Indivisibilidade e inadequabilidade ao destino. Somente quando a coisa é indivisível ou se tornaria, com a divisão, imprópria ao seu destino, tem o condômino preferência na aquisição. (Cf. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 11 de agosto de 1950, RF 136/100). As regras jurídicas sobre venda do bem comum ou da quota não dizem respeito à herança aberta, porque a expressão “indivisível”, no que se refere à herança, não tem o sentido de “indivisível”, que tem naquelas regras jurídicas: naquelas, a indivisibilidade é do objeto; na regra jurídica sobre herança, é do direito. A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 12 de janeiro de 1951 (RF 137/72), confundiu as espécies, levado por comentadores irrefletidos. Se a coisa não é indivisível, não há direito de preferência (Turma Julgadora do Tribunal de Justiça de Alagoas, 28 de abril de 1952, DO de 18 de maio). Não basta notificação ou comunicação do condômino para que exerça o direito de preferência; é de mister a propositura da ação (1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 15 de maio de 1952, O Diário, de Belo Horizonte, 28-29 de outubro de 1952). A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 18 de novembro de 1949 (RT 199/608), entendeu que a divisibilidade do prédio só se aprecia economicamente, e não pelo aspecto jurídico. Mas isso é de se repelir: se o uso em comum é ou se tornou impossível, e o bem é juridicamente indivisivel, a ação do art. 1.112,1V, exsurge (cf. 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 18 de setembro de 1952, RT 208/266). 3. Citação e prazo legal comum. Na ação, cada interessado tem o ônus da prova da sua propriedade, O prazo comum de dez dias corre depois de citado o último réu, se forem vários, e o orgão do Ministério Público. A citação inicial é para todos os atos do processo. A superveniência do casamento de uma das partes não torna nulos os atos que se processaram depois sem o assentimento do outro cônjuge, mas, se tem ele parte no bem, como cônjuge meeiro, tem de ser citado, para se inserir na relação jurídica processual. Sem distinguir, erradamente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 26 de janeiro de 1951 (DJ de 10 de novembro de 1952). 4. Procedimento especial. Sob o Código de 1939, art. 406, § 12, contestada, portanto trazidas a exame afirmações contrárias às afirmações do autor, seguia a demanda com o curso ordinário. Era possível que na contestação estivessem votos (declarações de vontade). Era como votos que se tratavam, e não como enunciados de fato. O Código de 1973 concebeu a ação com rito especial, ainda se no prazo comum de dez dias há resposta dos interessados. Produzidas provas a seu requerimento ou de ofício, decide o juiz no prazo de dez dias, não sendo obrigado a observar o critério de legalidade estrita; pode adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna. Da sentença, que poderá ser modificada se circunstâncias supervenientes o motivarem, sem prejuízo dos efeitos

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produzidos, caberá apelação no duplo efeito. 5. Venda da coisa comum. Se não há contestação e se algum dos comuneiros requer a venda, a discordância é irredutível, e vende-se a coisa. (Se não houve contestação e nenhum deles requereu a venda, ou o bem será alugado ou entregue a administração). A decisão, ordenando a venda, é de mandamento; a sentença julgando a final, é constitutiva, com efeitos ex tunc (desde a venda). Não há ficção de terem querido a venda os comuneiros que não consentiram: a pretensão deles era a pretensão a declarar em unanimidade e essa unanimidade falhou. Não se pode pensar em ficção para substituir declaração que não mais cabia, por se ter esgotado. Para se dividir, basta o mandamento (e. g., oficio). (Se todos (os comuneiros) concordarem que se não venda” significa que, se um entende que se deve vender, a maioria não pode deliberar sobre a administração ou locação da coisa comum? Ora, se a coisa é indivisível, a coisa será vendida, a despeito de algum ou alguns não quererem. Se divisível, qualquer deles pode requerer a divisão. Se dois comuneiros querem que não se venda e um só deseja que se venda, nem por isso se há de vender a coisa comum divisível: a maioria é que decide sobre o aluguel ou a administração, se algum deles não pede a divisão. A exigência de todos concordam que se não venda faria supor-se que se tem de vender se um só o quer. Ora, isso depende da propositura da ação de venda da coisa comum, em que se há de deliberar se há de ser vendida, administrada ou alugada, e aí é que qualquer dos comuneiros pode requerer a venda. A deliberação por maioria quanto à administração ou locação é para o caso de ninguém pedir a alienação judicial. Não é preciso que haja unanimidade na intenção de não vender, mas sim que nem todos estejam de acordo com a venda. Se algum quer vender e não quer adjudicar aos outros ou a alguém, porém não promove a ação para que se decida quanto à locação, à venda ou à administração, o que se há de fazer é deliberar a administração ou a locação. Se o uso e gozo é comum e possível, ainda que todos queiram não vender, nem por isso se procede segundo as regras jurídicas sobre a ação por ser impossível o uso e gozo em comum. 6. Maioria absoluta, valor dos quinhões. A maioria absoluta dos comuneiros, calculada pelo valor dos quinhões, pode determinar o destino da coisa. Pergunta-se: to pedido pode ser alterado? E. g., se não se pediu locação, gesolver-se locar? Não há, no caso, mudança, nem acréscimo do pedido, mas simplesmente exercício do direito dos réus em suas declarações de vontade. Em tais demandas, os votos e soluções proferidos pelos citados dilatam ou restringem o pedido do autor. Por isso, permite-se, sempre, a deliberação unânime, ainda que antes o comu-neiro se houvesse manifestado em contrário. Resolveu-se o problema técnico do silêncio do comuneiro escolhendo-se o segundo dos três meios à sua escolha: (a) considerá-lo a favor da venda; (b) contra a venda; (c) não computável como voto. Se nenhum dos comuneiros opina a favor da venda, presume-se ser contrário o voto do que se não manifestou. Não se deve supor a discórdia. Não tem o verbo “presumir” valor de técnica jurídica. Aí, a regra Qui tacet consen tire videtur, ubi loqui potuit ac debuit, de emprego resultante de lei, tem aplicação. O voto é então declaração de vontade, sem qualquer necessidade de efeito (constitutivo) de resolução do juiz. Vale por si. Se a resolução judicial o omite, ou o conta mal, infringiu a lei e deixou, ao mesmo tempo, de atender à declaração de vontade (cp. Eugen Ehrlich, Die stillschweigende Willenserklàrung,173). Se, porém, o autor pediu a venda, o comuneiro, que deixa de se manifestar, entende-se que concorda, pelo mesmo princípio de que, podendo manifestar-se e devendo fazê-lo, não se manifestou. Nem se poderia interpretar o seu silêncio como contestação, ou como declaração em sentido contrário. Essa é a solução. Aliter, art. 1.112, V(Côdigo Civil, art. 1.139) em alienação de quinhão em coisa comum. 7. Natureza da sentença. Contestada a ação, tem de haver a sentença, que é declarativa, devendo ser repelido, ou não, o pedido. Dela cabe apelação em ambos os efeitos. Se favorável ao autor, ordenará que se venda a coisa, ou que opinem sobre o destino da coisa, conforme tenha sido pedida a venda, ou não, quer pelo autor, quer por um, que seja, dos comuneiros.

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8. Manifestação de vontade dos comuneiros. Maioria absoluta, isto é, mais de metade da soma do valor dos quinhões. Se algum dos comuneiros não se manifestou, cumpre distinguir: a) o autor pedira fosse alugada (ou administrada); b) algum dos comuneiros requerera; c) nem o autor nem qualquer dos comuneiros requerera. No caso a), qualquer comuneiro que é contumaz se tem como favorável à medida proposta pelo autor. No caso b), o comuneiro que é contumaz tem-se como favorável ao requerimento de que foi ciente. No caso c), deve o juiz, ordenando que se manifestem, formular a cominação, sem o que o seu ato cai no vácuo. § 51. Administração do Bem Comum 1. Votações. As votações podem ser separadas, uma, para o destino da coisa, e outra, para a escolha do administrador; ou juntas, se há base para a eleição. A lei ordena que, ao se resolver sobre a administração, não se adie a escolha de quem administre; o ato judicial é um só, a despeito de duas partes. 2. Escolha do administrador. Se opinam os comuneiros a favor da administração, escolhem também o administrador. Se há empate (metade por metade do valor dos quinhões, sempre computado como favorável à medida proposta o quinhão do contumaz), decide o juiz por um nome ou por outro. Cabe-lhe o desempate, não como declaração de vontade sua, e sim como resolução judicial. Ouve, antes, os comuneiros, sobre as causas das suas preferências. Em casos tais, as leis atribuem ao juiz colher dos informes dos declarantes afirmações, que possam ser aferidas e conferidas, para que a sua decisão seja certa. O art. 1.109 do Código de Processo Civil é invocável. Não há arbítrio puro, o que só se dá quando a lei concede ao juiz “declarar”. Se o juiz erra na apreciação das razões que os comuneiros tiveram para votar, o seu erro é ontológico; se erra por haver crido poder declarar, em vez de “decidir”, o erro é nomológico, infringiu a regra jurídica sobre a decisão do juiz, em caso de empate, e cabe ação rescisória, se o cometeu em decisão. A votação é negócio jurídico (Andreas von Tuhr, Der Aligemeine Teu, II, 1ª parte, 234, contra, Otto von Gierke, Josef Kohler e J. E. Kuntze); tem de ser construída como ato uno, declaração comum, sendo o ato do juiz elemento constitutivo integrativo (efeito constitutivo da resolução). Sobre o ato coletivo, J. E. Kuntze (Der Gesamtakt, Festgabe ftir Otto Muíler, 72). 3. Ação de imissão na posse. O administrador tem ação de imissão na posse contra o possuidor, inclusive o administrador substituido. 4. Natureza da sentença. A sentença sobre a administração ou sobre a escolha do administrador é sentença em demanda de estado modificável, de forma que depende de permanência das circunstâncias, segundo as consequências de direito material respectivas. Se, por direito material, pode ser retirado o poder do administrador, claro que outra resolução judicial é provocável, inclusive nos casos de responsabilidade do administrador, ou de novo uso da coisa. Nessa parte da decisão, a força específica e a coisa julgada formal não são obstáculo. (Não pelo motivo, que se assoalha por aí, de ser de jurisdição voluntária o feito). O pedido mesmo fora feito como subordinado a nascerem ações de modificação. 5.Dúvida quanto ao valor dos quinhões ou de algum deles. Se há dúvida sobre a fração dos quinhões, ou de alguns deles, a solução técnica pertence ao direito material. Nada tem com o processo. Tratando-se da administração do condomínio, após a regra jurídica sobre a repartição dos frutos na proporção dos quinhões, se não há em contrário estipulação ou disposição de última vontade, estatui-se, em regra jurídica interpretativa, que, nos casos de dúvida, se tenham por iguais os quinhões. No Código Civil alemão (§ 742), a regra jurídica é geral; também no Código Civil suíço (art. 646, alínea 2ª). Tem-se de entender que a regra jurídica interpretativa sobre frutos se aplica a outros casos que o da divisão dos frutos (e. g., deliberação sobre administração, locação). Havendo dúvida quanto ao valor de qualquer quinhão, será esse avaliado. A regra de direito material incide antes de qualquer demanda sobre o valor. O direito conhece pretensão à tutela jurídica nascida de se não concordar em que haja dúvida sobre o valor dos quinhões, por erro ontológico das partes, de ordem objetiva (não foi feita a avaliação) ou subjetiva (má apreciação do juiz). Portanto, pode ser disputada a própria incidência da regra jurídica para o caso de dúvida.

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A dúvida é a dúvida sobre o tamanho ou as dimensões do quinhão — dúvida sobre a quantidade, a fração de cada condômino. Se, em vez de se determinarem as quotas por tamanho, e.g., A tem 1/3, B 1/6, C 1/6, D 1/3, foi estabelecido que essas frações seriam sobre o valor, qualquer diferença entre o valor pelo tamanho é inoperante: cada comuneiro tem a fração do valor, e não a do tamanho. Então, é possível que algum ou alguns comuneiros entendam que há diferença entre o valor global do bem e a soma dos valores dos quinhões, considerados de per si. Quando essa controvérsia pode ser dirimida mediante avaliação, ordena-se que se avaliem os quinhões, porém não se pode, hoje, deixar de respeitar o art. 1. 109 do Código de Processo Civil. Ao exemplo. A fração 1/3, por circunstâncias de ser suscetível de aproveitamento separado, ou pelo que importa como peso, nas deliberações, vale 10; a fração 1/6, menos de 5. Aí, tem de fazer-se-a avaliação; porque não se tem a igualdade entre a soma dos valores das quotas e a do bem, ou porque não coincidem as frações do bem com as frações do valor. 6. Procedimento que se há de seguir. A locação tem de ser escolhida por mais de metade dos quinhões (Código Civil, arts. 635, § 1ª, e 637). O processo é o mesmo que se estabelece para a venda da coisa comum, com o procedimento traçado nos arts. 1.104 a 1.111 do Código de Processo Civil. 7. Com uneiros e estranhos, preferência. O comuneiro prefere ao estranho. Entre comuneiros, rege a regra jurídica sobre a preferência que tem o comuneiro, em caso de igualdade de ofertas, ou o comuneiro que tem benfeitorias, ou a mais valiosa, ou o que tem maior quinhão. Igualdade de condições, e não só de preço, ou de prazo, apreciada, pelo juiz ouvidos os interessados, se há vantagens numas cláusulas e desvantagens noutras. A discussão das desvantagens traz à baila enunciados de fato — não declarações de vontade. A sentença, que decide sobre a locação, é constitutiva (homologatória); sujeita, portanto, a ser feito algum pedido se as circunstâncias mudarem, relativamente ao contrato. A demanda é de estado modificável, como a de alimentos.

Capitulo XVIII

Ação de Registro Torrens § 52. Dados históricos e objeto 1. Histórico. O Decreto nº 451-B, de 31 de maio de 1890, estabeleceu o registro de transmissão de imóveis pelo sistema de Robert Torrens, proveniente da Austrália. O Decreto nº 955-A, de 5 de novembro, regulamentou-o. Sobrevindo a Constituição de 1891, entenderam alguns juristas, como Silva Costa (RD 60/450), que era inconstitucional, em parte, a legislação (e. g., Decreto nº 451-B, art. 75), e o Supremo Tribunal Federal, a 3 de agosto de 1895 (OD 69/191), acolheu essa interpretação reacionária da Constituição. Clovis Bevilacqua (Código Civil comentado, III, 58) e alguns tribunais reputaram-na revogada pelo Código Civil. A Lei orçamentária nº

3.446, de 31 de dezembro de 1917, considerou-a em vigor. Ainda quiseram julgá-la inconstitucional, por ser lei anã. Contra todas essas tentativas simplistas, por parte de gentes que não viam o campo, a terra, com os seus problemas próprios, reagíamos. O Código de Processo Civil de 1939 somente conheceu (artigo 457) o sistema Torrens dos imóveis rurais. O Código de1973, no art. 1.218, IV, manteve, com a remessa aos artigos 457-464 do Código de 1939, o instituto, e a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, arts. 277-288 disciplinou o assunto. A lei é lex specialis; mas, havemos de interpretá-la dentro do sistema jurídico brasileiro, com a sua nítida concepção do direito de domínio e dos modos de aquisição da propriedade.

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Aliás, o regime, que se estabelece, é resultante do registro, para o qual se tinham, desde muito, os princípios. 2. Objeto do instituto. Na legislação processual civil de 1939 somente se conheceu do sistema Torrens dos imóveis rurais (art. 457), a exemplo do que ocorre com a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 277. Disse-se que o proprietário do imóvel rural podia requerer-lhe o registro no Registro Torrens. Entenda-se: a) O proprietário de imóvel que tivesse o seu nome no registro de imóveis. b) Rural, portanto fora derrogado o Decreto nº 451-B, art. 12, que era mais amplo. Acrescentou-se que, em caso de condomínio, o imóvel podia ser registrado no Registro Torrens, a requerimento de todos os condôminos. O imóvel sujeito a hipoteca, ou outro, direito, ou ônus real, não seria admitido a registro, sem consentimento expresso de credor hipotecário ou da pessoa em favor de quem se tivesse instituido o direito real, o que também se observa no regime da atual Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Na lei falou-se de credor hipotecário ou pessoa em favor de quem se tivesse instituido o ônus. Melhor: hipoteca, qualquer direito real; ou o direito expectativo do pré-contraente comprador. Se havia condomínio, o pedido tinha de ser feito por todos os condôminos. Não havia meio legal para se conseguir a declaração de vontade do condômino, nem a presunção de haver declarado. Era preciso que todos os condôminos assinassem o pedido, por intermédio de seus procuradores. De modo que o condômino ausente impedia que se pedisse o registro. No art. 279, a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, não se referiu ao condomínio; mas, de qualquer maneira, o principio é inafastável. § 53. Procedimento 1. Petição. A petição é instruída com: a) Os documentos com-probatórios do domínio do requerente: título de aquisição inter vivos, registrado; ou de aquisição causa mortis, já registrada a sentença; sentença em ação de usucapião; sentença executiva em caso de pré-contrato (qualquer delas há de estar registrada, devidamente). 14 A prova de quaisquer atos que modifiquem ou limitem a sua propriedade, isto é, qualquer negócio jurídico, inter vivos ou causa mortis, que modifique ou restrinja o direito de propriedade, inclusive o direito expectativo de outrem quanto ao imóvel. c) O memorial de que constem os encargos do imóvel, os nomes dos ocupantes, confrontantes ou quaisquer interessados, e a indicação das respectivas residências. d) A planta do imóvel, cuja escala poderá variar entre os limites: 1 5OOm (1/500) e 1:5.0OOm (1/5.000), obedecendo-se no levantamento as regras da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 278, § 1ª, a, 1, e c. Título de aquisição inter vivos registrado; ou de aquisição causa mortis, já registrada a sentença; sentença em ação de usucapião; sentença executiva no caso de pré-contrato, se expedida a carta de adjudicação e cancelada a hipoteca. Qualquer delas há de estar registrada, devidamente. O foro é o da situação do imóvel (art. 96 do Código de 1973, antes, art. 136 do Código de 1939), ou o do lugar em que se proponha, se o imóvel é situado nos territórios de dois ou mais Estados, ou comarcas, art. 107 do Código de 1973. O art. 8º do Decreto nº 955-A ficou em vigor, por ser regra legal de organização judiciária, e o fato de haver o Código de 1939 invadido o direito das organizações judiciárias não levou a aplicar-se tal matéria a regra jurídica do Código de 1939, art. 1ª, processo civil e comercial (se as legislaturas estaduais podiam derrogar o art. 8° do Decreto nº 955-A, dependia de se saber qual a rotio legis; e essa, evidentemente, foi a da uniformidade da competência em todo o território nacional, à semelhança do que ocorreu com o art. 10 do Código de 1939 (hoje, art. 207 do Código de 1973). No que concerne aos atos jurídicos relativos ao imóvel (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 278, II), alude-se a atos que modifiquem ou limitem a propriedade. Qualquer negócio jurídico, inter vivos ou mortis causa, que modifique ou restrinja o direito de propriedade, ou o onere. Inclusive o direito expectativo de outrem quanto ao imóvel. Os encargos do imóvel não são os direitos reais sobre ele nem direitos expectativos a ele; são obrigações que tenham por objeto uso do imóvel, como locação, parcerias, contratos com lavradores etc. Além disso, os nomes dos ocupantes, qualquer que seja a causa de aí permanecerem, os nomes dos confrontantes e de quaisquer interessados, como o que pleiteia a respeito de contrato de locação. Sempre que se nomeia alguém, tem-se de dar a residência, ou justificar que se acha numa das situações previstas para a citação edital.

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A petição é entregue ao oficial do registro, que, após o protocolamento e autuação, a submete a despacho, se a acha em termos. Na hipótese contrária, pode conceder o prazo de trinta dias para que o interessado proceda à regularização, lançando a dúvida que tenha se o requerente não estiver de acordo com sua exigência. Particularidade dessa regra jurídica processual, a petição é apresentada, não ao juiz, mas ao oficial do registro, que a examina antes, entregando-a ao juiz para despacho, se nenhuma dúvida tem, depois de ouvido o órgão do Ministério Público. Em caso de dúvida, é devolvida à parte, que impugna a nota do oficial, ou satisfaz, desde logo, a exigência feita, reentregando a petição ao oficial, que a remete ao órgão do Ministério Público. A dúvida e a impugnação da parte são afirmações, isto é, comunicações de conhecimento. Toda dúvida é comunicação de conhecimentos ambígua ou equivoca. Em qualquer hipótese, tem de ser ouvido o órgão do Ministério Público, que pode impugnar o registro por falta de prova completa do dominio ou preterição de outra formalidade legal. O processo” corresponde à pretensão a registrar no sistema Torrens. E procedimento edital, com citações, donde preferirmos chamar petição, em vez de requerimento, à postulação. O que torna especial esse processo é exatamente a fase prévia, de contraditório eventual, de plena cognição, entre proprietário, oficial, órgão do Ministério Público e juiz. Ação constitutiva, típica. Se o próprio oficial do registro é o escrivão, depende da lei de organização judiciária. Tem de ser distribuído o processo, antes de ser entregue ao oficial. O efeito manda-mental é assaz forte (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, arts. 285, § 2ª, e 286). Segundo o art. 282 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, quando os documentos justificarem a propriedade do requerente, o juiz mandará lavrar editais, que serão afixados no lugar de costume e publicados, uma vez, no órgão oficial do Estado e três na imprensa local, se houver, marcando-se prazo, não menor de dois meses, nem maior de quatro, para a matrícula, desde que não surja oposição. Não se trata de prazo a expirar-se, mas prazo a começar, de modo que o dies a quo há de ser posterior à última publicação. A distância entre o dies a quo e o dies ad quem é que há de ser de, pelo menos, dois meses e, no máximo, quatro meses, para que se ofereça oposição. Se houve contestação, aplica-se o art. 286. A lei fala em prazo para contestação. Entenda-se: “prazo para, depois de expirar, sem ter havido contestação, proceder-se ao registro”. Se surge contestação dentro dele, o procedimento é ordinário, cancelando-se a prenotação. O juiz ordenará, de ofício, ou a requerimento da parte, que à custa do peticionário se notifiquem do requerimento as pessoas nele indicadas. As pessoas indicadas são as do art. 278, III, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Tais custas se pagam segundo o art. 283 da Lei ~g 6.015, de 31 de dezembro de 1973, ad instar do art. 19, § 2ª, do Código de 1973 (antes Código de 1939, art. 58). O prazo para as impugnações, por parte dessas pessoas, é comum, de quinze dias. As pessoas, de que trata o art. 283, são assistentes eventuais, ou intervenientes, talvez mesmo opoentes, eventuais, que a lei, por precaução, devido à natureza constitutiva da ação, entende devam ser avisadas. O Código de 1939 dizia notificadas (assim, também, no art. 95, § 1ª). O art. 225 do Código de 1973 (antes, Código de 1939, art. 170) é aplicável. As notificações são arquivadas no cartório do oficial do registro; não se incluem no procedimento. Tal separação material não importa em serem tidas como estranhas ao processo: pertencem a ele como todo. O direito processual conhece processos unos e íntegros a despeito dessas distinções físicas. Feita regularmente a publicação dos editais, a pessoa, que se julgar com direito ao imóvel ou parte dele, pode opor-se ao registro, no prazo de quinze dias, por meio de contestação, em que serão mencionados o nome e a residência do réu, a descrição exata do imóvel, os direitos reclamados e os títulos em que se fundarem. A pessoa que se apresenta insere-se na figura de réu; e é con-siderada como tal desde a data em que se teve por feita a citação edital, ou em que foi pessoalmente notificada. A ação continua ação constitutiva, a despeito da contestação e do rito processual que toma. 2. Contestação. A contestação há de mencionar o nome e a residência do réu, fará a descrição exata do imóvel e indicará os direitos reclamados e os títulos em que se fundarem (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 285, § 1ª). Contestando-se, o registro fica suspenso, cancelando-se mediante mandado a prenotação que havia sido feita. O Código de 1939 distinguia o recebimento da contestação e o julgamento dela. O juiz não recebia a contestação: a) se essa não mencionasse o nome e a residência do réu (art. 463, § 1ª), porque se tratava de procedimento edital, cabendo ao réu individuar-se; b) se não contivesse exata descrição do imóvel (ou da parte dele, art. 463 e § l~); c) se apenas agisse não estar provada a capacidade de qualquer dos anteriores proprietários ou possuidores (art. 463, § 3ª), d) se fora do prazo dos arts. 461 e 463; e) se não indicasse a causa de pedir, nem os títulos em que se fundava (art. 463, § 1ª).

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Então, sendo contestado o pedido e recebida a contestação, a ação tinha curso ordinário (art. 464). Mas, uma vez contestado, dentro do prazo, o registro, — que poderia fazer-se, findo o prazo, mediante a sentença do artigo 463, § 42, — já não podia ser feito. O juiz tinha de receber, ou não, a contestação. Sob o regime da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 286, a sistemática é diversa: o procedimento será ordinário se houver contestação, e não se ela for recebida. Se há contestação, É fora do prazo do art. 285 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a hipótese, que não seria de rito ordinário no direito anterior, é-o no direito atual. A condição anterior à ordinariedade era o recebimento da contestação (Código de Processo Civil de 1939, art. 464); hoje, ali ter, a existência dela (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 286). 3. Eficácia das sentenças. Se o juiz defere o pedido é dado apelar-se da sentença, apelação que, aliás, tem duplo efeito, por força do art. 287. A expressão “julgado que determinou a submissão do imóvel aos efeitos do registro Torrens” (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 288) apenas revela o elemento de mandamento da sentença constitutiva. Trata-se de sentença, como expressamente fala a lei (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 287). Constitutiva é a sua força; o efeito mandamental é aquele que encontramos, a cada passo, nas ações constitutivas, cavando a separação entre as ações e sentenças constitutivas mandamentais e as sentenças constitutivas não-mandamentais, como as ações para constituição de cedos negócios jurídicos de direito privado em que o elemento mandamental é ínfimo. Se não houve contestação, a sentença, no procedimento edital, tem os mesmos efeitos que produziria se tivesse sido contestada por todos os citados (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 285, § 2ª). E extremamente importante esse ponto, por se tratar de sentença constitutiva com incerta pessoa, ou com pessoas certas e incertas. E sentença suscetível de apelação em ambos os efeitos. O registro só se efetua depois de passar em julgado. O processo desse registro é o processo administrativo do registro de ordem, mais material que jurídico.

Capítulo XIX

Ação de especialização da hipoteca legal § 54. Conceito e Pressupostos 1. Hipotecas legais e especialização. A especialização da hipoteca legal é conteúdo de ação constitutiva, de eficácia contra terceiro, que o obrigado a ela pode exercer. Não se confunde com a ação de interessado na especialização da hipoteca legal, provavelmente usando a forma de preceito cominatório. A ação e a sentença de especialização de hipoteca legal são constitutivas daquela eficácia. As hipotecas legais são as de que cogita o direito material. Também a lei permite, em vez dos cinquenta por cento, à vista, do licitante, nas arrematações, a segurança do pagamento mediante hipoteca sobre o imóvel — e esse seria um dos raríssimos casos de processo acessório de especialização, se precisasse de ser especializada tal hipoteca. Seria supérfluo, pois é o Estado que está a dispor do bem arrematado e a hipoteca apenas garante a arrematação. A regra jurídica sobre a ineficácia, contra terceiros, da hipoteca legal, se não houve especialização e registro, não se aplica a essa hipoteca erroneamente dita legal. As regras jurídicas somente dizem respeito à ação do obrigado a especializar. Tais regras jurídicas nada têm com a ação para obrigar, direta ou indiretamente, a especializar bens. Se os obrigados à hipoteca legal, ou os incumbidos de velar pelo cumprimento da lei a respeito, não se desempenham dos seus deveres, incorrem nas sanções legais. Nada impede que se use do preceito cominatório, de modo que o obrigado tenha de pedir a especialização dos

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bens, dentro no prazo, ou sofrer as sanções. 2.Ações exercidas pelos titulares da pretensão. As ações para se obter a especialização, exercidas pelo não obrigado, são também constitutivas, posto que os legisladores as pudessem ter concebido como ações mandamentais. Se a ação de preceito cominatório for usada pelo que pode obrigar alguém à especialização, esse obrigado deve responder com o pedido de especialização. Se o não faz, aplica-se-lhe a pena cominada. Quando se trata de pretensão do juiz ou do orgão do Ministério Público, correspondente ao seu dever de vigilância, basta o mandado judicial de plano, para que se especialize. A ação do interessado na especialização da hipoteca legal, exercida pelo que não é obrigado à hipoteca, tem rito comum, de regra ordinário. § 55. Procedimento 1.Legitimação processual ativa. A especialização das hipotecas legais, para o respectivo registro e eficácia perante terceiros, há de ser requerida pelo que vai sofrer a hipoteca legal, que tem de declarar a estimativa da responsabilidade e indicar o imóvel sobre que se constituirá a hipoteca. A petição será instruída com o documento em que se fundar a estimação da responsabilidade e com a prova do domínio, livre de ônus, do imóvel oferecido em garantia. Responsável é, aí, o que sofre essa hipoteca legal, tanto que lhe cabe indicar o imóvel sobre que se há de constituir a hipoteca. Portanto, o cônjuge, a favor do outro, o ascendente, a favor do descendente, cujos bens administra, o pai, ou a mãe, que passa a segundas núpcias, antes de fazer inventário dos bens do casal anterior, os tutores e curadores, os tesoureiros, coletores, administradores, exatores, prepostos, rendeiros, contratadores de rendas e fiadores, a favor da Fazenda Pública, o responsável pelo dano causado por delito, o delinquente, nos casos de hipoteca legal a favor da Fazenda Pública, o herdeiro reponente a que se adjudicou o imóvel. O licitante pode ser responsável na hipótese do art. 690 do Código de Processo Civil, mas, ai, não se trata de hipoteca legal, nem é obrigado a especializar (não exige o processo típico). O curador especial do art. 411, parágrafo único, do Código Civil é obrigado a especializar. 2. Documento em que se funda a especialização. O documento em que se funda a estimação da responsabilidade é, nos casos da hipoteca legal: a escritura antenupcial, a de doação, ou a da verba testamentária; a certidão do pagamento da legítima ou dos bens do descendente sob a administração do autor; a certidão dos bens que deveriam ter sido inventariados; a certidão da relação de bens do tutelado ou curatelado; a sentença ou o alcance por outro meio verificado; a sentença de condenação do delinquente; certidão da partilha onde se dá ao herdeiro a obrigação de repor. Também são esses títulos os de que se há de servir quem peça a execução da obrigação de especializar, pela ação inversa à dos arts. 1.205-1.210 do Código de 1973. A ação, para que o oficial público cumpra o que se estatui na lei, é mandamental, e sem outras exigências que a de pedido e cognição de ofício. 3. Arbitramento. Distribuído e registrado o feito, é autuada a petição. O juiz ordena o arbitramento do valor da responsabilidade e a avaliação do imóvel a ser especializado, obedecendo-se aos arts. 421 e 680-685 do Código de Processo Civil. E dispensado o arbitramento do valor da responsabilidade nas hipotecas legais em favor: a) da mulher casada, para garantia do dote, caso em que o valor será o da estimação constante da escritura antenupcial; b) da Fazenda Pública, nas cauções prestadas pelos responsáveis, caso em que será o valor caucionado. Nesse procedimento, a primeira fase, que é a do arbitramento, corre inaudita altera parte; somente mais tarde se ouvem os interessados (relação jurídica processual em ângulo). Não se aplica a regra jurídica sobre bens existentes em jurisdição diversa de pequeno valor, ou conhecidos pelo avaliador (Código de Processo Civil, art. 1.006), que tem outro intuito de política jurídica; posto que, nas hipotecas legais, possa haver interesse público. 4. Valor preestabelecido da responsabilidade. Casos há em que o valor da responsabilidade está preestabelecido, e. g., no caso de hipoteca legal em garantia de dote (o valor é o da estimação constante da escritura antenupcial), ou se houve caução prestada pelo responsável perante a Fazenda Pública. A regra juridica sobre dispensa de

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arbitramento é concernente aos casos em que o juiz deve dispensar. Não abrange aqueles em que pode dispensar por existir prova do valor da responsabilidade. Nem, sequer, tal regra jurídica é exaustiva. Se há prova com força probatória material, seria supérfluo exigir-se outra. 5. Atos de constrição judicial. Note-se que os atos do juiz —antes de ouvir a parte — não são constritiuos; são atos sobre o bem que o interessado em especializar indicou. Se o processo não foi promovido pelo que devia dar bens à especialização da hipoteca legal, então a constrição começa com a avaliação (que de regra exige entrada no prédio) e a citação é indispensável, sem haver, nesse caso, a fase processual inaudita altera parte. No valor da responsabilidade não se computam os bens imóveis do beneficiado (Tribunal de Justiça de São Paulo, 16 de dezembro de 1906, GJ 43/172, e 3 de agosto de 1908, ISPJ 17/474; Tribunal da Relação de Minas Gerais, 11 de dezembro de 1920, RF 33/439); porém inclui-se o valor da responsabilidade quanto à conservação e administração desses bens. Ainda que se trate de bens de incapazes (Tribunal de Apelação de Minas Gerais, 19 de junho de 1939, RF 79/477). 6.Regra jurídica de cômputo. O valor da responsabilidade, para a especialização das hipotecas legais dos menores e pessoas a eles equiparadas, é calculado de acordo com a importância dos bens e dos saldos prováveis dos rendimentos que devam ficar em mãos dos tutores e curadores, até findar a gestão ou administração da tutela, ou curatela, não computado naquela importância o valor do imóvel. A regra jurídica é sobre o cômputo. No caso de hipotecas legais dos incapazes, que em tanto importam as expressões “menores” e “pessoas a eles equiparadas”, calcula-se o valor da responsabilidade levando-se em conta o valor dos bens e os saldos prováveis dos rendimentos. O valor dos imóveis não se computa, porque dificilmente pereceriam por ato do responsável e só se alienam com autorização judicial. Computa-se o valor dos bens móveis e atende-se ao valor dos bens imóveis, quanto, e. g., à conservação, à deteriorabilidade, à desvalorizabilidade. 7. Falta de arbitramento e nulidade processual. O arbitramento do valor da responsabilidade é requisito essencial (Tribunal da Relação de Minas Gerais, 10 de julho de 1929, RF 53/290). A nulidade, somente concernente ao ato é sanável, pois que se trata de nulidade não-cominada. 8. Citação da outra parte. Ultimada a primeira fase do procedimento, inaudito altera parte, com arbitramento do valor da responsabilidade e avaliação do imóvel, o juiz manda que se cite a outra parte e se ouçam os demais interessados, para no prazo comum de cinco dias dizerem: a) sobre o valor da responsabilidade; b) sobre a avaliação e qualidade do imóvel indicado para a constituição e especialização da hipoteca. A expressão “ouve” refere-se ao quod plerum que fit da existência de outro processo, de que esse procedimento seja acessório. Fora daí, a petição tem de ser conhecida da parte beneficiada e dos que são interessados, mediante citação. 9. Audiência dos interessados. Os interessados, inclusive o beneficiado, têm de falar sobre o valor da responsabilidade, o valor do imóvel e a qualidade desse, porque nem sempre o valor exprime o grau da segurança do valor material ou jurídico do objeto (e. g., bem próximo a ser desapropriado, valor suscetível de repentina desvalorização por lei especial, ou por obras públicas). 10. Alegações do impugnante. Tem-se procurado ver na enumeração dos arts. 1.207 a 1.209 do Código de 1973 matéria exaustiva da impugnação. As alegações ter-se-iam de limitar aos casos contidos no texto legal (valor da responsabilidade, avaliação e qualidade do bem), uma vez que, na primeira fase, já o juiz verificou a procedência do pedido. Esse não é o estatuído pela lei. A admissão do procedimento, inaudito altera parte, apenas atende a que, tratando-se de pretensão a constituir, para cumprimento de dever jurídico, nenhum prejuízo poderia advir em se adiantar a instrução do processo, a fim de se simplificar o procedimento. Naturalmente, por ocasião da comunicação de conhecimento sobre aqueles, podem os interessados arguir: a incompetência do juízo, a inutilidade da medida, porque as contas estão prestadas e removido o tutor ou o curador, não ser caso de especialização de hipoteca legal, estar o autor de má-fé. De regra, nesses processos em que há duas fases, uma inaudita altera parte, a outra abre à cognição da parte ou partes todo o feito, desde o início.

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11. Individuação do imóvel. A indicação do lugar e dos característicos do bem imóvel bastam à individuação desse (Corte de Apelação do Distrito Federal, 21 de janeiro de 1907, RD 6/366). A individuação das partes divisas obedece à lei especial sobre apartamentos, ou, se a ela não está sujeito o bem imóvel, de acordo com os princípios jurídicos e técnicos, gerais, sobre individuação de partes divisas. 12. Sentença. O juiz, à vista das alegações dos interessados, homologará ou corrigirá o laudo pericial. Se considerar livres e suficientes os bens designados, julgará por sentença a especialização e mandará proceder ao registro da hipoteca, que indicará o valor da responsabilidade, o nome do responsável, a descrição do imóvel e o nome do proprietário. Se verificar que o imóvel não é livre, ou é insuficiente, e que o responsável possui outro, além do designado, o juiz mandará proceder-lhe à avaliação. Avaliado, o juiz julgará por sentença a especialização e ordenará o registro da hipoteca. À vista das alegações dos interessados, o juiz ou deixa de homologar, ou homologa, ou corrige o laudo pericial e julga constituída a especialização. Qualquer das três decisões permite o recurso de apelação, com efeito devolutivo e suspensivo, porque a ação de especialização não é ação cautelar. 13. Natureza da ação e da sentença. A ação e a sentença são, evidentemente, constitutivas, mas o elemento mandamental aparece se o juiz considera livres e suficientes os bens designados, julga a especialização e manda proceder-se ao registro, como complementar da especialização. Assim é que o juiz manda que se proceda ao registro. Não é preciso que as partes requeiram e a responsabilidade do juiz pode resultar da sua omissão. Há dever do cartório em providenciar para o registro, pois o mandado é efeito da sentença, constitutiva-mandamental. A provocação pela parte trata-se como reclamação ao juízo. 14. Margem ao procedimento inquisitivo. No correr do processo, tendo-se revelado o dever de especialização da hipoteca legal, ganha terreno o principio inquisitivo. A própria audiência dos interessados é determinada pelo juiz, que, antes da autuação, pode ordenar diligências. Se o bem imóvel não é livre, ou é insuficiente, vem à tona a inquisitividade de que falamos: verificando que não é livre o imóvel, ou não é suficiente (inclusive por sua qualidade), o juiz “manda” proceder à avaliação de outro que o obrigado tenha. Julgará, depois, a especialização e ordenará (mandamento) que se proceda ao registro. Note-se que cresce, aí, a intervenção constitutiva do juiz, pois “indica” o imóvel. 15. Instrumento da especialização. Julgada a especialização e precluso o decisum, o interessado (beneficiado ou outrem que tenha o dever de vigilância) tem direito ao instrumento (note-se a constitutividade), em que se há de conter a sentença. Se foi interposto recurso, o instrumento somente se pode extrair quando for julgado, devendo conter a sentença e a decisão do recurso, ainda que de desistência. Esse instrumento é título suficiente para legitimar o beneficiado como terceiro nas execuções contra o bem especializado. O Código de 1973 retirou o art. 702 do Código de 1939; mas a regra jurídica é implícita. Também se aplica isso às hipóteses em que a ação não se rege pelos arts. 1.205-1.209, isto é, não for promovida pelo responsável, obrigado à especialização. 16. Especialização negocial. Não depende de intervenção judicial a especialização de hipoteca legal, se o interessado, sendo capaz, a convencionar com o responsável, por escritura pública. A constituição da especialização pode ser convencional, se capaz o beneficiado, desde que o faça por escritura pública, Sendo capaz, tem o responsável a escolha entre propor ao beneficiado e interessados, indicando o bem, que se proceda no plano do direito material, e lançar mão da ação de especialização. 17. Eficácia contra terceiros. Durante algum processo, ou, ainda, após o pedido de especialização, pelo beneficiado capaz ou pelo responsável, pode ser convencionada por meio de requerimento, tomando-se por termo nos autos e feita a homologação pelo juiz. As formalidades registárias são indispensáveis para a eficácia quanto a terceiros. Entre as partes, a eficácia é desde a homologação ou a escritura (Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 5 de julho de 1907 e 16 de julho de 1909, Rel. de 1910, 81).

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O oficial público que lavrar a escritura não tem, a respeito do registro, o dever no que concerne à escritura pública de dote, ou termo de tutela ou curatela, salvo se ele mesmo é o oficial do registro de imóveis em cujo cartório se deve proceder ao registro, pois aí o dever é de registrar.

Capítulo XX Ação de eleição, ou de nomeação, e ação de destituição ou dispensa de cabecel de bens enfitênticos § 56. Conceitos e precisões 1. Enfiteuse e seu papei histórico. Cabecel, encabeçado ou cabeceiro, é o cabeça dos co-enfiteutas. Enquanto se tiver, no sistema jurídico, a enfiteuse, ter-se-á o cabecel, pois a incapita tio, encabeçamento, é operação jurídica de que se precisa, ainda se há cabeça de casal, porque esse sucede na administração do que tocava ao co-enfiteuta, não na administração do direito enfitêutico em comunhão com outros co-enfiteutas. Uma vez que o prédio pertencia ou vem a pertencer a duas ou mais pessoas, tem-se de eleger o cabecel. Contra ele é que irão todas as ações do senhorio. No Código de Processo Civil, art. 275, II, f), só se cogitava de eleição de cabecel. A ação podia ser proposta por algum dos co-enfiteutas, ou pelo senhorio. Cabecel, é o pessoeiro, o cabeceiro, o cabedeleiro, é consorte, comuneiro em direito real, que encabeça e que dá o quinhão das vendas aos achegas, aos comuneiros. Perguntava-se, antes do advento da Lei nº 9.245, de 26 de dezembro de 1995: jo art. 275, II, J), só se referia ao cabecel de bens enfitêuticos? O art. 275, II, 1), não dizia quais os bens em comum, à diferença do art. 690 do Código Civil, que está no Capitulo sobre enfiteuse. Tínhamos de interpretar o art. 275, II, como relativo a qualquer espécie em que, por lei, ou em virtude de negócio jurídico, se fazia obrigatória para os comuneiros a nomeação de cabecel. A enfiteuse, instituição típica de certos estados da evolução econômica — desde muito em resistência à era industrial — chocase, hoje em dia, como resquício de reacionarismo peninsular europeu, com o problema conjunto das regras jurídicas civis do Brasil. Abolidos foram os reguengos, as jugarias, os coutos e honras, que traduziam o medievalismo dos reis portugueses, os morgados (com que a nobreza, na confissão de Jorge de Cabedo e Álvaro Valasco, se mantinha com o poder, acumulando e conservando as fortunas) e as capelas, forma eclesiasticízada do morgado. O escalracho enfitêutico resistiu mais, por estar menos ligado ao fator político. Na península, as suas origens são remotas (cf. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidório, 2ª ed., 1, 284). Os “grandes do Reino” e os “mosteiros” já” incomunhavam”, pelo menos desde o século X, as terras, para que outros as cultivassem e pagassem foros ou pensões. Chegou-se à deturpação de serem devidas, ainda que do prédio não pudesse tirar proveito o foreiro, contra o que reagiram os juristas (Manuel Álvares Pêgas, Resolutiones Forenses, 1, 254; Pascoal José de MeIo Freire, Institutiones, 111, 128), tal como estava no Preussisches Aligemeines Landrecht, Parte II, Livro III, Título 3, § 29. O nome revela que as terras se destinavam a plantação (nunca a edificação). A lenta formação da burguesia foi dilatando o conceito, esquecendo-se o primeiro fim político do instituto, que era o de melhorar a economia. Aliás, a enfiteuse começou por ser feita pelos municípios e colégios de sacerdotes (Otto Karlowa, Rômische Rechtsgeschichte, II, 1269; antes do jurista e historiador alemão, Lafaiete Rodrigues Pereira, Direito das Coisas, 1, 369). 2. Cabecel. Se o prédio emprazado pertence a várias pessoas, têm elas, dentro do prazo legal, de eleger um cabecel, sob pena de se devolver ao senhorio o direito de escolha. Feita a escolha, todas as ações do senhorio contra os foreiros são propostas contra o cabecel, que tem o direito regressivo contra os outros enfiteutas pelas respectivas quotas. Se, porém, o senhorio direto convêm na divisão, cada uma das glebas em que for dividido constitui enfiteuse distinta. Assim se entende tanto se há comunhão pro indiviso quanto se há comunhão pro diviso, se essa não foi considerada, pelo senhorio, de modo regular, divisão. A comunhão pro diviso pode existir para os co-enfiteutas

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sem existir para o senhorio. Ou existir divisão, isto é, haver glebas distintas, sem existir entre os co-enfiteutas (= haver, entre eles, comunhão pra indiviso ou comunhão pro diviso). A contribuição por inteiro ao senhorio supõe a indivisão perante o senhorio, ainda que entre si tenham os enfiteutas comunhão pra indivisa, comunhão pra divisa, ou sociedade. Então, o que é preciso é que eles se encabecem numa só pessoa (cf. Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 96, § 23; Lei de 9 de julho de 1773, §§ 5, 10 e 15). Cabecel, encabeçado ou cabeceiro, é o cabeça dos co-enfiteutas. Se houve sucessão hereditária, as regras jurídicas acima referidas incidem. Já as Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 96, § 23, previam: E porque tais bens, segundo a natureza dos foros, não se hão de partir, e hão de andar em uma só pessoa, mandamos que se encabecem em um dos herdeiros, em que se todos ou a mor parte deles concordarem, do dia, em que se o foreiro finar, até seis meses”. Era o encabeçamento, a incapitatia, operação jurídica de que se precisa, ainda se há cabeça de casal, porque esse sucede na administração do que tocava ao co-enfiteuta, não na administração do direito enfitêutico em comunhão com outros co-enfiteutas. Se o inventariante foi escolhido pelos herdeiros, ou é um deles, é cabecel, durante o inventário ou enquanto não se eleja esse. Aliter, o inventariante dativo. A faculdade de dividir o prédio, ou aliená-lo a duas ou mais pessoas em comunhão, não divide o dever de prestar a pensão. 3. Situaçâo jurídico antes de ser feita o escolha. Quaisquer ações do senhorio contra os enfiteutas têm de ser propostas contra o cabecel. E antes de haver cabecel? Antes o senhorio ou procede de acordo com o que lhe atribui a lei, se não foi nomeado pelos co-enfiteutas o cabecel, isto é, a nomeação por ele, ou executa os co-enfiteutas. A pretensão e a ação são reais: quem adquire o bem responde pelas dividas anteriores, salvo se o senhorio se deu por pago, assentindo na alienação sem referência a dívidas anteriores. 4. Eleição do cabecel e século XX. A coisa aforada e divisível por sua natureza: são terras para cultivo. (Abstraiamos dos casos em que o destino, ou a espécie do aproveitamento, a faça indivisível). Mas, para evitar ao “senhor” ou ao mosteiro” o incômodo de cobrar a muitas pessoas, a lei lançou mão de ficção da indivisibilidade (Ordenação do Livro IV, Titulo 36, § 1: “... por se não confundir a pensão dele Alvará de 6 de março de 1669: “... do qual costume ... resultava tão notável prejuizo aos senhorios ). O Brasil reagiu, a despeito da força dos senhores e mosteiros, como antes haviam reagido as gentes de Entre Minho e Douro (Pascoal José de Meio Freire, Institutiones, III, 144), e passou a dividir, nas partilhas entre herdeiros, ou por glebas, os prazos. Mas permaneceu a pressão impeditiva da divisão, que o interesse dos senhores e mosteiros representava, na exigência da pessoa do cabecel. O Código Civil, obra do século XX, manteve (a) a indivisibilidade, salvo consentimento do senhorio, e (IJ) o cabecel, eleito dentro do prazo de seis meses contados da comunhão, sob pena de ser escolhido pelo senhorio. E dessa coisa bolorenta que cogitam regras juridicas processuais, quase no meado do século XX. § 57. Procedimento judicial 1. Comunhão enfitêutica. Estabelecida a comunhão enfitéutica, qualquer dos foreiros comuneiros (titulares do condomínio útil) é legitimado para pedir a citação dos demais, a fim de se proceder à eleição do cabecel. O foro é o da situação do imóvel. O valor da causa é o do foro a ser pago. Na petição inicial diz-se qual o nome proposto. Não há audiência obrigatória, posto que a possa marcar o juiz. O sistema brasileiro é o de declaração de vontade, em forma de propostas e contrapropostas, até que se configure, pela maioria absoluta, o ato comum ou coletivo (declaração de vontade global). A pessoa proposta há de ser aceita por mais de metade dos foreiros, conforme o cômputo admitido pelos foreiros, no caso de divisão em glebas; e a regra jurídica dispositiva (não escrita) é ser per capita a votação (à diferença do que se passa no condomínio comum). A razão é consistir em imposição exterior, alheia, e não oriunda de condomínio. Não há condomínio, nem comunhão, salvo por ficção em favor do senhorio. O cabecel não é administrador; é um responsável por todos, com direito regressivo contra os outros. Outrossim, não cabe ao juiz desempatar.

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2. Contumácia dos foreiros. Se algum dos foreiros deixa de responder, há contumácia, e não declaração de vontade pelo silêncio (Manuel Álvares Pêgas, Commentaria ad Ordinationes, Livro 1, Título 67, Capítulo 11, nº 24; Manuel de Almeida e Sousa, Direito enfitêutico, 1, 429). O seu voto não se conta, nem ele mesmo é unidade para se calcular a maioria absoluta. A comunhão, de que se fala no direito material, não existe senão como indivisibilidade do prazo; não da coisa. Se não comparece nenhum, nenhum impugnou; e vale o cabecel proposto. 2 Não-aceitação da pessoa proposta e nova proposta. Se não é aceita e outra fora proposta, então têm de ser contados os votos, excluídos os contumazes. A pessoa cujo nome tiver maioria absoluta será o cabecel. A proposta do autor pode ser substituida, se nas primeiras respostas não foi eleito o indicado. O eleito não pode escusar-se (Manuel de Almeida e Sousa, Direito enfitêutico, 1, 429). 4. Custas. Natureza da sentença. Eleito o cabecel, as custas são pagas por todos os interessados, proporcionalmente aos seus quinhões, sem se excluirem os contumazes. A sentença, se favorável à pretensão deduzida em juízo, é constitutiva: a ação para eleição de cabecel é ação constitutiva. Cabe o recurso de apelação nos dois efeitos. Não importa ter havido eleição, e não-participação do juiz. 5. Custas. Não-eleição e eleição. Se nenhuma pessoa foi eleita as custas são pagas pelo autor. Se a causa de não ter sido eleito foi a contestação de algum dos enfiteutas à necessidade de eleger-se cabecel, então houve afirmações de parte a parte e a sentença contêm elemento declarativo preponderante e faz coisa julgada material, nesse ponto. Eleito o cabecel, as custas são pagas por todos os interessados, proporcionalmente aos seus quinhões, sem se excluirem os contumazes. 6. Pedido de nova eleição. Se foi improfícua a tentativa de eleição e o prazo legal do art. 690 do Código Civil ainda está a correr, pode repetir-se o pedido, sem qualquer dificuldade de coisa julgada material. (As sentenças negativas não constituem se não exaurem a pretensão de direito material; e valem, como “atos falho?’ valeriam, no plano dos negócios jurídicos). Se, porém, houve oposição do senhorio e se discutiu o esgotamento do prazo preclusivo, então há coisa julgada material de tal sentença; e não pode renovar-se o pedido. 7. Inventariante cabecel. No caso de sucessão causa mortis, a saisina por dois ou mais herdeiros ou legatários não estabelece a data inicial do prazo, tendo-se como cabecel o inventariante enquanto está em função. Feita a partilha, começa de correr o prazo legal dos seis meses (Código Civil, art. 690, capud). 8. Nomeação do cabecel pelo senhorio. Se não foi feita, por ato extrajudicial, a eleição do cabecel, ou não foi proposta, utilmente, a ação para eleição, ou para nova eleição, ou se o prédio aforado passou aos foreiros atuais, a ação para nova eleição, ou se o foi mas não se conseguiu eleger o cabecel — há infração da regra jurídica sobre eleição, que, na falta, dá ao senhorio a escolha, e nasce o direito do senhorio à nomeação. A lei processual dá a qualquer dos enfiteutas a pretensão à tutela jurídica para obter a nomeação. 9. Forma da nomeação do cabecel pelo senhorio. A nomeação do cabecel pelo senhorio, pode ser feita por ato extrajudicial, em que tomem parte os enfiteutas, ou comunicando-se a eles. Processualmente: (a) Em ação provocatória, de rito comum, do enfiteuta, devendo ser citados o senhorio e os enfiteutas (verbis por petição”). Se não há contestação, a sentença homologatória é constitutiva. A nomeação é declaração de vontade; as afirmaçoes do senhorio e dos enfiteutas são sujeitas à regra jurídica sobre ter-se como verídica a alegação. (b) Se houve ação dos comuneiros e faltou eleição, nos autos pode ser feita a nomeação pelo senhorio, porque eles mesmos cogitaram de eleição de cabecel. Se algum deles, porém, contestou a necessidade de eleição, e o juiz proferiu sentença, sem ter havido intervenção do senhorio, a coisa julgada material não é obstáculo ao seu pedido de nomeação, por termo nos autos, nem a que se rediscuta com ele a questão. Os enfiteutas, citados, podem contestar.

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10. Destituição do cabecel. Qualquer foreiro pode requerer a destituição do cabecel, nos casos e na forma estabelecidos para a remoção dos tutores e curadores. O cabecel pode ser dispensado pelos foreiros, ou pelo senhorio direto, da mesma forma por que foi eleito, ou nomeado. A sentença de eleição do cabecel é de estado modificável; a sua eficácia é rebus sic stantibus... Daí, a proponibilidade da ação de destituição, à semelhança, quanto aos pressupostos, da ação de destituição nos casos apontados na lei, e da ação de dispensa, que se exerce por simples citação ou se cumula com a de prestação de contas ou de imissão. Aquela ação de destituição, ação constitutiva negativa, contém condenação, com afirmações de parte a parte. Essa, de dispensa, é simplesmente constitutiva. O autor apenas presta declaração de vontade. Havendo ou não afirmação do citado quanto ànão-existência da pretensão do autor, é comum o rito. A ação de destituição e a ação de dispensamento, aquela com forte dose de condenatoriedade, esta sem carga forte de condenatoriedade, são constitutivas e têm sempre esse rito. A sentença na ação de dispensa é constitutiva, embora haja declaração concordante de todos. Aliás, as vontades dos interessados não são ai comunicações de vontade, mas declarações de vontade, ainda que expressas por maioria. A destituição do cabecel, sem que outro se nomeie, opera desde logo, ao passo que a dispensa pode ser dada com prazo para o afastamento (e. g., véspera de viagem), ou para certo dia, ou para o dia em que outro cabecel seja eleito ou nomeado, ou assuma. Falamos da constitutividade negativa, posto que estejamos, neste Tomo III, a cogitar somente da constitutividade positiva, mas, conforme antes dissemos e repetimos, isso decorre da ligação conceptual da matéria. Nas Tabelas o assunto torna-se claro.

Capítulo XXI

Ação de renovação de contrato de locação § 58. Suporte fático e conceito 1. Pretensão á renovação, inconfundível com a pretensão à prorrogação do contrato de locação. Ação renovatória, ou, melhor, ação de renovação, é a que corresponde à pretensão a novo negócio jurídico de locação do prédio destinado a fins comerciais ou industriais, no que se distingue da ação ligada à pretensão à prorrogação do contrato. A lei pode criar outras pretensões à renovação de contrato. Tem ela de criar os pressupostos; e. g., tratar-se de prédio, rústico ou urbano, destinado pelo locatário a fim comercial ou industrial, ser por prazo deter-minado a locação; ser pelo mínimo legal o prazo de contrato; terem decorrido pelo menos tempo ininterrupto, fixado pela lei, de exploração do comércio, ou da indústria, no mesmo ramo. 2. Pressupostos do tempo de exploração. A priori, a estipulação de prazo inferior ao prazo legal de cinco anos não é in fraudem legis; nem a prorrogação por força de incidência de alguma lei especial, ou emergencial, integra o prazo legal de cinco anos, que é pressuposto de direito material (cf. 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 30 de maio de 1949, RF 126/443). Somam-se os lapsos de tempo ininteruptos dos contratos escritos de locação anteriores, de modo a operar-se a totalização do prazo de cinco anos, ou mais, sem solução de continuidade. A IA Turma do Supremo Tribunal Federal, a 28 de janeiro de 1952 (RDI 14/28), considerou não ser fraude à lei o prazo diminuído de 2x; mas que o é o diminuído de x (2 de agosto de 1951, DJ de 6 de julho de 1951),: contra, as Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 14 de outubro de 1948 (RF 128/145). Em verdade, qualquer contrato diminuído de 3x ou 2x, ou de x, se há de ter por in fraudem legis; salvo se houve razão para tal termo, e. g., se termina, então, contrato de locação de outro prédio, ou no mesmo edifício, em que é locatário o proprietário do prédio locado. A 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 11 de junho de 1951 (RT 139/869), admitiu a fraus legis sempre que, por “força das circunstâncias”, o locatário foi obrigado a assinar contrato de tempo inferior ao referido pela lei. O contrato escrito é requisito para a prova de ser a prazo determinado a locação (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 21 de novembro de 1949, RF 129/443).

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3. Legitimação ativa. O locatário é o legitimado ativo, ou ele e a sociedade que integre, se o uso do bem imóvel por ele é autorizado para as atividades dela, titular do fundo de comércio. Os sucessores, entre vivos e a causa de morte, do contraente-locatário são legitimados ativos à ação de renovação, material e processualmente, ainda que não se tenha cogitado de tal direito no inventário do decujo (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 24 de janeiro de 1950, RF 132/391), ou no negócio jurídico concernente à sucessão na firma individual ou social. Na hipótese de sublocação, a acionabilidade é pelo sublocatário se a ela assentira o locador; se não, não. Parcial a sublocação assentida, a legitimação ativa é dele e do sublocador. 4. Preclusão do prazo. Se o locatário deixa escoar-se o prazo da ação de renovação, sem a propor no interregno de um ano no máximo, até seis meses no mínimo, anteriores à data da finalização do prazo de contrato em vigor, preclui o direito à renovação coercitiva, isto é, por ação (aliter, a pretensão à renovação que conste de cláusula contratual, que somente dá ensejo à ação do art. 641 do Código de 1973, antes, art. 1.006 do Código de 1939). Por isso mesmo, não pode, na ação de pedido do prédio para uso próprio, pedir, em reconvenção (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 24 de janeiro de 1952, RF 147/113), a renovação (o direito precluiu). § 59. Procedimento judicial Na atual sistemática, a ação constitutiva de renovação de negócio juridico de locação pressupõe, materialmente, contrato escrito a prazo determinado e mínimo de cinco anos, insulado ou totalizado com a somatória de lapsos temporais inferiores e ininterruptos. Nesse lapso de tempo tem o locatário, pessoa física ou não, de estar na exploração de atividade empresarial urbana no mesmo ramo pelo mínimo de três anos sem solução de con-tinuidade. Óbice negocialmente pactuado é ineficaz, porquanto absolutamente inválido. O prazo de exercitabilidade da pretensão irradiada do direito é preclusivo. A petição inicial há de atender aos requisitos comuns traçados no Código de Processo Civil, art. 282, 1 a VII. Quanto ao inc. 1, exerce-se essa pretensão à relocação no foro da situação do bem imóvel, salvo eleição válida de outro foro. No que respeita ao inc. II, a legitimação ativa é a observada, podendo-se dar litisconsórcio passivo necessário entre o sublocador e o locador se a ação é pelo sublocatário do bem imóvel ou de parte dele, salvo se o sublocador dispuser de prazo para, dentro dele, operar-se a renovação da sublocação. Acerca do libelo, aos incs. III e IV reportam-se os pressupostos de direito material indicados, enquanto o inc. V se preenche com uma anualidade dos aluguéis. No que respeita ao inc. VI, a petição inicial há ser instruida com o que se prevê na lei especial (Lei nº 8.245, de 8 de outubro de 1991, art. 71, 1 a VI); o défice acarreta ordem judicial ao complemento sob cominação de extinção do processo sem apreciação da pretensão de direito material. No que se refere ao inc. VII, prevista no contrato, a citação — como, a fortiori, intimação e notificação — pode ser feita mediante correspondência com aviso de recebimento, ou, tratando-se de pessoa jurídica ou firma individual, mediante telex ou fac-símile, sem nexo de prejudicialidade quanto às modalidades do Código de Processo Civil, art. 221, 1,11 e III. A ação de direito processual, “ação”, flui nas férias forenses, sem suspensividade por sua superveniência. Na contestação, não existe pré-diminuição às argúiçôes que concernem à pré-processualidade, à processualidade e à res in ludicium deducta, salvo quanto às objeções materiais fáticas (Lei nº 8.245, de 8 de outubro de 1991, art. 71, 1 a IV). Tem-se previsão explícita acerca das exceções, e.g. a de retomada em face da melhor proposta de terceiro, hipótese em que a sentença, constitutiva, pode encher-se de efeito relevante de condenatoriedade, com a fixação da indenização devida ao locatário em conseqúência da “não-prorrogação” (leia-se no art. 75 da Lei nº 8.245, de 8 de outubro de 1991, “não-renovação”) da Iocatio. O demandado pode postular o) a fixação de aluguel

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provisório, a vigorar a partir do primeiro mês do prazo do contrato a ser renovado, não-excedente a oitenta por cento do pedido, se produzido suporte probatório à aferição do justo valor do locativo, e b) modificação da periodicidade de seu reajustamento. A sentença, se constitutiva porquanto procedente a pretensão do legitimado ativo, contêm elevado peso de condenatoriedade, propiciando executabilidade da diferença dos aluguéis vencidos nos próprios autos, com pagamento de uma só vez. Se declarativa negativa, porquanto improcedente a pretensão do legitimado ativo, poderá conter sensível peso mandamental, e ordenará, se o contiver, a desocupação do prédio em até seis meses após o trânsito em julgado, se houver pedido na contestação. A apelação é somente no efeito devolutivo. 1.Pressupostos do tempo. Quando, para a pretensão à renovação do contrato, a lei exige que o locatário esteja durante mínimo de tempo na exploração do comércio, ou da indústria, no local, há pressuposto de direito material. A falta da prova, junta à petição, é causa para se indeferir a petição ainda inicialmente, porque se fez de tal prova pressuposto processual. Se não foi indeferida a petição, nem o juiz mandou suprir a falta, tem ele de pronunciar-se, na sentença final, sobre a existência, ou não, do pressuposto de direito material. 2.Espécies em que o demandado não contesta. Bastaria dizer-se “não-contestação”, pois os casos são os seguintes: a) o réu comparece e contesta; b) o réu comparece e não contesta, levando os autos e voltando-os sem contestação; c) o réu não comparece, sem ser caso de nomeação de curador especial, e, pois, não contesta; d) o réu não comparece, mas há contestação por seu curador especial; e) o réu não comparece e o curador especial não contesta. Aqui, cabe discutir-se a) se se tem por aceita a oferta, o que faz da renovação, no caso de não comparecer ou de o demandado comparecer e não contestar, renovação negocial (dita amigável), feita em juízo; ou b) se ocorre declaração de certeza mediante preclusão, devido a contumácia. A revelia, aí, é de tratar-se como igual à comparência sem contestação: o que importa, para o efeito previsto, é o silêncio como manifestação de vontade. A sentença é apenas homologatória. 3. Diferença assaz relevante. Pré-exclui-se a aplicação das regras jurídicas sobre a conclusão dos autos se não há contestação, ou em caso de revelia, dá à não-contestação efeito mais forte que o de ser tido como verdadeiro o que a outra parte alegou, se não houve contestação. Note-se a diferença, que é essencial: enquanto as afirmações de se ter como verídico o alegado são manifestações de pensar sobre fatos, enunciados de fato, comunicações de conhecimento, a omissão de contestar, no caso de ação de renovação de contrato, é manifestação de vontade. Aí, o silêncio manifesta a vontade, por saber o citado que a contumácia importaria assentimento, posto de lado o valor da intenção. (Evite-se falar de declaração tácita, por ser equívoco o termo, é o mesmo que se emprega para as declarações por atos. Sobre a discussão, Eugen Ehrlich, Die stillschweigende Willenserklàrunq, 286 5.; Gustav Hartmann, Werk und Wille, Archiu fúr die ciuilistische Praxis, 72, 255; Siegmund Schlossmann, Der Vertraq, 47-50). O que é relevante é não se confundirem as afirmações relativas ao alegado por uma das partes com as manifestações de vontade do locador nas ações para renovação de contrato de locação. Ali, alude-se a “verdade”; aqui, a “vontade”. 4. Natureza da sentença. A sentença é constitutiva. O momento formativo é o instante após a data que a lei aponta; e não o da sentença, como se dá nos casos de ação executiva de declaração de vontade, o que é de considerável importância prática, nem o da contraprestação na referida ação, porque a prestação dependente fica suspensa até que a contraprestação se faça. Conclui-se contrato, não pré-contrato. A ação de renovação do contrato de locação é caso típico de ação constitutiva, mas há elemento que pode parecer estar à frente: o elemento mandamental. Ainda assim, é precipua a força constitutiva, e a eficácia mandamental está cumulada à constitutividade, sem a pôr em segundo plano. A sentença que julga procedente a ação é constitutiva; a que a julga improcedente, declarativa. Uma e outra têm

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forte elemento executivo mandamental. O recurso é o de apelação com efeito somente devolutivo.

Capítulo XXII

Ação de remição de direito real de garantia § 60. Remição dos direitos reais de garantia 1. Conceito de remição. Remir é recomprar, readquirir, afastar pagando. Apaga-se, com algo que equivalha, a mancha que o direito real limitado deixou sobre o domínio, embora sem o atingir na substância, conforme o termo romano. Redimem-se pecados; redimem-se gravames (Tratado de Direito Privado, Tomo XX, § 2.428). Cogita-se da remição do penhor e da hipoteca, como se algum principio houvesse, a priori, de remição que tocasse aos adquirentes do bem gravado. Os sucessores do devedor —entenda-se do dono (ou enfiteuta) ou possuidor próprio do bem gravado — não podem remir parcialmente o penhor, ou a hipoteca na proporção dos seus quinhões. Esse era um dos pontos em que mais se aludia a indivisibilidade da hipoteca e do penhor; qualquer deles, porém, pode fazê-lo no todo. O adquirente do imóvel gravado ou do bem móvel empenhado pode remir o gravame. Se há dois ou mais adquirentes, qualquer deles pode remir, totalmente, e não em parte. Com a remição, extingue-se o gravame. Se há duas ou mais hipotecas, pode-se remir uma ou mais de uma, sem se remirem todas. A remição foi criação do direito pós-romano. O texto passou às Ordenações Manuelinas, Livro IV, título 34, e às Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 6. Não se pode dizer que a ratio legis seja a completa liberação do bem gravado, pois, se há duas ou mais hipotecas, a remição não precisa ser de todas, nem só ao adquirente do prédio gravado é dado remir: o titular do direito de hipoteca posterior pode remir a anterior. 2. Legitimados à remição. São legitimados à remição: a) qualquer adquirente, a causa de morte ou entre vivos, e — embora os textos falem de “sucessores” — o que usucapiu o domínio, sem extinção do gravame; b) o titular de direito de hipoteca posterior, se a anterior se vence. Ressalta dos princípios jurídicos. Não se deu ao dono (ou enfiteuta) que constituiu o gravame a faculdade de remir, porque isso importaria pôr-se à mercê do contraente o prazo do gravame: e. g., constituiria por x anos a hipoteca e remi-la-ia no mês seguinte, ou meses após. O prejuízo para quem investe em negócios jurídicos pignoratícios e hipotecários capitais seria enorme, uma vez que podem ser elementos de peso o prazo e segurança das inversões. Assim, quem é devedor na relação jurídica da divida garantida ou quem constituiu sobre bem seu hipoteca, ou penhor, não pode remir. O que se teve de levar em conta foi o interesse do adquirente do bem gravado, e não o do constituinte da hipoteca, ou do devedor, ou do sucessor do devedor; ou o interesse de titular de outra hipoteca, posterior, se a anterior se vence. E interessante observar-se que se pesaram interesses e se atendeu à extraneidade do adquirente à relação jurídica da dívida garantida e à relação jurídica da gravação. Só o adquirente pode remir, porque o ser adquirente é

lus. p Não pode remir o devedor, cuja dívida foi garantida, nem seu sucessor, quer o gravame seja de bem próprio, ou de bem de terceiro. E de repelir-se a velha opinião que tirava ao devedor que adquirira o bem gravado o direito de remir o gravame (por exemplo, Lafaiete Rodrigues Pereira, Direito das Coisas, II, 310, nota 6). O devedor, que adquire a propriedade e redime o gravame, torna-se, enquanto não se dá o cancelamento, livre da dívida e não da hipoteca. Com o cancelamento, também da hipoteca. Foi como adquirente que ele remiu. Se adquirisse o domínio

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do bem e o gravame, tornar-se-ia dono da propriedade gravada, persistindo a hipoteca de proprietário (portanto, cessível) enquanto não se desse o cancelamento. O crédito teria, segundo os princípios que o regem, desaparecido. Volveremos ao assunto. O adquirente do bem gravado que não era devedor, se redime o gravame, adquire crédito e direito real de garantia; enquanto não se dá o cancelamento, é titular de hipoteca de proprietário. E preciso atender-se a que o terceiro, que paga o crédito, se sub-roga pessoalmente ao credor a que pagou. A sub-rogação pessoal opera-se automaticamente; a extinção da hipoteca depende do cancelamento. Os fiadores do devedor não podem remir o gravame, que é real. Se o fiador paga integralmente a dívida, que a ele corresponde, fica sub-rogado nos direitos do credor; se há cofíadores, por quotas, pode demandar cada um dos outros, pela respectiva quota. Essa sub-rogação pessoal nada tem com o gravame. Fiador não pode remir; pode solver. O terceiro que constitui gravame por dívida alheia não tem poder de remir: é figurante do acordo de constituição. Mas o sucessor, a causa de morte ou entre vivos, quanto ao bem gravado, sim. A lei fala de sucessores, sem qualquer distinção. O herdeiro ou outro sucessor que fizer a remição fica sub-rogado nos direitos do credor pelas quotas que houver satisfeito. Repeliu-se, portanto, a doutrina francesa, que Lafaiete Rodrigues Pereira (Direito das Coisas, II, 310) acolhera. E repeliu-se, acertadamente. A Lei nº 1.237, de 24 de setembro de 1864, art. 10, §§ 39 e 49, não falava de remição pelo que estava em curso de usucapir; mas Lafaiete Rodrigues Pereira (Direito das Coisas, II, 309) admitia-o. Seria, então, a remição durante a ação publiciana (Tratado de Direito Privado, Tomo Xl, §§ 1.264-1.269), porque a ação de usucapião é declarativa (o autor já usucapiu). Pode remir o dono, ou o enfiteuta, ou, se não há domínio, nem enfiteuse, o possuidor próprio, porque pode usucapir. Tem de ser proposta a ação publiciana, com o requerimento inicial, ou pendente a lide, da remição. Se corre ação de usucapião, o juiz pode deferir o requerimento de remição se há prova da posse própria. Todavia, durante a lide, qualquer deferimento de remição é provisional. Tudo se passa como em adiantamento de liberação do bem, o que pode ser preventivamente averbado (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 167, II, 12)). Não se pode mandar cancelar o registro antes de se julgar a ação, trânsita em julgado a sentença. O que importa é que se frise a ratio legis: quem constituiu o gravame não pode remir. A remição só tem direito o terceiro adquirente do bem, seja sucessor entre vivos ou a causa de morte. É verdade que o devedor não pode remir, nem o dado da hipoteca. Mas, se aquele adquire o bem, não é só devedor, é, agora, o adquirente do bem, e é como tal que redime a hipoteca. Também o adquirente do bem que se faz sucessor do devedor, ou lhe sucede, passivamente, a causa de morte, não fica privado de remir. Adquiriu o bem. Noutros sistemas juridicos poder-se-ia discutir se a coincidência de ser devedor e dono, por assunção posterior, herança, ou aquisição do bem que outrem dera em hipoteca, seria de interpretar-se contra o pretendente à remição; não, no sistema jurídico brasileiro. Nesse, há a regra jurídica que alude à remição pelos sucessores do devedor e apenas regula a remicibilidade. Os sucessores do devedor não podem remir parcialmente o penhor, ou a hipoteca, na proporção dos seus quinhões; qualquer deles, porém, pode fazê-lo no todo. Os que afirmam o contrário leram livros estrangeiros; não leram lei brasileira. Passemos a outro problema, que não é de somenos relevo. Fala-se de penhor e de hipoteca. E a anticrese? Não há remição da anticrese? Não há qualquer razão para que, tratandose de anticrese, se se satisfazem os pressupostos legais, não se permita que o terceiro, dono do bem, por aquisição posterior, ou o enfiteuta ou o possuidor próprio, o venha a remir. Remição é favor; mas os fundamentos para a sua admissão são comuns aos três institutos.

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§ 61. Ação de remição do imóvel hipotecado 1. Conceito de remição. Conforme já dissemos, remir é recomprar, readquirir, afastar, pagando, livrar-se, solvendo. De remir vem remição, que os inexpertos confundem com “remissão”. Se alguém r(ed)ime a hipoteca, prestando o que corresponde à garantia, dela fica livre o prédio. Remitir é que vem de remittere e a remissio é que corresponde remissão. Não se remitem pecados, redimem-se, rimem-se, a despeito do milenar erro de latim. Redentor redime, rime; não remite. É difícil compreender-se que, com tantos alardes oratóricos e polêmicos nos meios legislativos, tenham escapado aos chamados lingúistas erros como esse, de língua portuguesa, que atingem, fundamente, a terminologia mesma do direito. 2. Remição do imóvel hipotecado. Há três pretensões ao desinteressamento do credor com direito hipotecário: uma, a), de remição; outra, b), só de desinteressamento, sem remição do imóvel hipotecado, concernentes ambas ao imóvel que ainda não sofreu execução, ou que está a sofrê-la, e é demandante o titular do direito da hipoteca posterior, se vencido o crédito que corresponda à hipoteca anterior, ou o adquirente do imóvel; e c) a de remição do imóvel que está a sofrer a execução da divida com garantia hipotecária. Trata-se, ou da purga hipotecária, a parte creditoris, unilateral, ou da remição propriamente dita, antes, ambas, de se ultimar a execução (aliter no direito suíço, Código Civil suíço, art. 828, “antes de qualquer demanda”). (a) O caso do demandante que é titular de crédito com direito oriundo de posterior hipoteca supõe existam duas hipotecas, pelo menos, uma das quais se vença primeiro, sem que o credor se ofereça para solver a dívida, ou liberar o imóvel executado. Constrói-se a pretensão como própria do credor com posterior hipoteca, mediante ato, não liberatório, de terceiro, mas de ato de terceiro solvente tendente à sub-rogação pela consignação da importância dos débitos e despesas judiciais do depósito, que correm por conta do credor que intervém. (Caso se esteja executando a dívida, há despesas judiciais do depósito e do processo da execução hipotecária). Não há propriamente remição; há desinteressamento do credor e sub-rogação subjetiva legal; porque de modo nenhum se libera, se redime o imóvel hipotecado. Se a lei chamou remição ao que apenas consiste em mudança de credor com direito hipotecário, por força da sub-rogação, estendeu o sentido. O segundo credor, desinteressando o outro credor com a garantia de hipoteca anterior, ipso facto se sub-roga nos direitos dessa, sem prejuízo dos que lhe competirem contra o devedor comum. Não se dá o mesmo no caso do imóvel hipotecado que o adquirente redime. Remição há no art. 828 do Código Civil suíço, e não no direito brasileiro, porque, lá, os direitos hipotecários não passam ao que usou da pretensão de remir. (b) O caso do terceiro, que adquire o imóvel, é o do direito do adquirente do prédio a remi-lo. Aqui, há, em verdade, remição, pois que a purga tem o efeito de extinguir a dívida e a hipoteca. Forra-se o adquirente aos efeitos da execução da hipoteca, ainda que se não tenha iniciado. A lei tem de cogitar da pretensão a remir, da ação e, em parte, do processo da remição. (c) O caso c) é especial, porque está em andamento ação executiva. Fique, pois, assente (porque o uso exato dos conceitos e o escoimá-los de ambiguidades e equívocos auxiliam à interpretação e aplicação escorreita das leis), que há remição no caso do credor posterior. Há remição justamente se a ação falha in limine. Se o devedor redime o imóvel! A pretensão do credor posterior foi sempre estudada à parte da pretensão de remição pelo adquirente. Sempre que se dá sub-rogação pessoal na hipoteca, não pode haver remição; há desinteressamento de certo credor. Há remição no caso de demandante adquirente, porque a sub-rogação pessoal é na dívida, não na hipoteca. Não há de confundir-se o ius offerendi et succedendi (L 1 e L. 12, § 9º, D., qul potiores in pignore vel hypotheca habeantur et de his qui in priorum creditorum locum succedunt, 20, 4) do terceiro com o ius libenandi do proprietário devedor ou adquirente. A falta de noção de sentença constitutiva e a multiplicidade de dizeres romanos (transferre, in ius succedere) levaram a pensar-se em novação necessária, em cessão fingida etc. (cp. Voss, Zur Lehre vom ius offerendi, fherings Jahrhúcher, 15, 332-383). Construímos as duas espécies, segundo o estado atual da doutrina. 3. Natureza das ações de remição do imóvel. As ações de remição do imóvel são ações constitutivas negativas, típicas. § 62. Legitimação ativa

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1. Demandantes. A ação de remição do imóvel hipotecado pode ser proposta pelo adquirente do imóvel hipotecado, dentro do prazo legal, contado do registro do título de aquisição; a de sub-rogação, pelo credor com posterior hipoteca, em qualquer tempo depois do vencimento da anterior. 2. Pretensão a remir. A pretensão do adquirente é pretensão de “remir’, no exato sentido; a ação tem por fito liberar o imóvel; o processo toma um dos possíveis caminhos — o do acordo ou o da licitação. Claro que o credor com direito hipotecário pode ser pago da dívida, integralmente, se, em vez de pedir remição, o adquirente do imóvel paga a dívida (pagamento com sub-rogação). O que a lei regula é a ação de remição (não a consignação do débito, pelo terceiro adquirente). 3. Pretensão a sub-rogar-se. A pretensão do credor com hipoteca posterior é a de sub-rogar-se (ius succedendi) na pretensão obrigacional e no direito real de garantia do credor da primeira hipoteca (aliás, da anterior, ou anteriores): o imóvel continua gravado duas ou mais de duas vezes. § 63. Procedimento na ação de remição ou de sub-rogação 1. Petição. Se o adquirente quer evitar os efeitos da execução da hipoteca, tem de requerer a citação dos credores hipotecários no prazo legal e a remição, total, ou com proposta do mínimo, que é o do preço por que adquiriu o imóvel. 2. Atitudes que o adquirente do imóvel pode assumir. O adquirente do imóvel tem três atitudes a assumir: a) ou deixar que passe o prazo legal para o pedido de remição, podendo ver ser executada a hipoteca sobre o imóvel que adquiriu, com as consequencias previstas em lei (e. g., perdas e danos aos credores com hipoteca, custas e despesas judiciais); b) ou depositar a importância da divida, exatamente nos casos em que o devedor o poderia fazer c) ou propor a remição. Tal remição supõe: a) prova documental de que o autor adquiriu o imóvel, com o que simultaneamente prova achar-se dentro do prazo legal de trinta dias; b) a indicação da importância pela qual se propõe resgatar o imóvel, não podendo ser inferior ao preço por que adquiriu esse bem. (Se o preço do imóvel excede a dívida, não se trata de ação de remição, e sim de pagamento com sub-rogação, simplesmente). 3. Se há mais de um adquirente. Adquirente, entendamos; e não só comprador. Se há mais de um adquirente e só um exerce a pretensão de remir, sub-roga-se nos direitos dos outros adquirentes com a hipoteca sobre o prédio próprio, remido em parte indivisa. 4. Credor que não se opõe e credor que não comparece. Se o credor, citado, não se opõe à remição, ou não comparece, lavra-se termo de pagamento e quitação e o juiz manda na sentença que se cancele a hipoteca. No caso de revelia, consigna-se o preço à custa do credor. Distingamos os dois casos. Se não se opõe, lavra-se o termo com a quitação, mandando o juiz, na sentença de homologação, que se faça o cancelamento da hipoteca. Sentença com eficácia de mandamento, e não só constitutiva. A não-oposição significa, aí, aceitação, ato de declaração de vontade, sujeito a regras jurídicas sobre capacidade, defeitos etc. Se não comparece, a sentença é constitutiva, com forte dose de elemento mandamental, pela contumácia do credor hipotecário citado. Não há ficção da lei, classificação errônea; há declaração de vontade, pela não-comparência. Há tantas declarações de vontade quanto os credores citados. 5. Revelia e consignação da quantia proposta. No caso de revelia, consigna-se a quantia que fora proposta, e, agora, se tem por aceita. Tal consignação não é consignação preparatória ou para solução. Não importa ação de consignação em pagamento. É depósito em execução de sentença proferida em ação constitutiva; quer dizer: não

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suscetível de ser “contestada”. Vale tanto quanto o depósito dos bens de ausentes, ou dos saldos do réu revel. Antes dele, está uma sentença; à diferença do depósito nas consignações em pagamento, que só têm sentença no fim. 6. Devedor e remição do imóvel. O devedor não é ouvido, menos ainda citado. O imóvel a ser remido não é dele; é, agora, de outrem, ou sempre o fora (aliter, em se tratando de remição de bem imóvel constrito). A remição pelo adquirente não lhe interessa; nem mesmo, pois, se ele paga a divida: não lhe advêm qualquer interesse. Note-se que o credor sofre as despesas. O elemento ai é declarativo, e não condenatório. Portanto, não se inquire da culpa. 7. Impugnação do preço pelo credor. Se o credor, citado, comparece e impugna o preço oferecido, o juiz manda promover a licitação entre os credores com direito hipotecário, os fiadores e o próprio adquirente, autorizando a alienação judicial a quem oferecer maior preço. Na licitação, é preferido, em igualdade de condições, o lance do adquirente. Na falta de arrematante, o valor será o proposto pelo adquirente. O credor notificado pode, no prazo assinado para a oposição, requerer que o imóvel seja licitado. Havendo oposição, está implícito o pedido de licitação. 8. “Licitação”. Licitação está em sentido próprio, tal como se usava nas ações divisórias romanas. O circulo dos licitantes não compreende mais do que os credores com direito hipotecário, os fiadores e o adquirente. A venda do prédio faz-se, então, a quem der maior preço pelo imóvel. Em igualdade de valor, prefere-se o lance do adquirente. Se não há licitante, os credores têm de receber o valor proposto pelo adquirente, e a sentença é constitutiva, com o elemento de mandamento para que se cancele a hipoteca. Preferido o adquirente, ou porque licitou pelo valor proposto, ou porque ofereceu lance maior, dá-se a remição por aquele ou por esse valor, e a sentença é constitutiva, com o elemento de mandamento. 9.Valor proposto pelo adquirente. Desde que o credor ou os credores deixaram de aceitar a proposta do adquirente (que é declaração de vontade, como outra qualquer), ela desapareceu, para os efeitos de oferta de remição; de modo que o adquirente fica livre para licitar ou não. Daí não se tire poder remir por menos daquilo que ofereceu, in limine. E certo que, na falta de licitação, se toma como base da remição o valor que fora proposto pelo adquirente. Como se há de construir esse “reviver” do valor proposto? a) Há nova declaração de vontade do adquirente, pelo fato de não licitar? b) Ou se entende que continuou a declaração de vontade do adquirente como lance mínimo? c) Ou é processual o critério legal, para que seja útil o processo? A verdadeira construção é a da solução a), de modo que, na espécie, pode acontecer algum defeito de vontade do adquirente na declaração nova. Outra solução, que é d), a de existir simples enunciado de fato sobre o valor (comunicação de conhecimento afirmação sobre a exatidão do preço), poderia parecer a verdadeira: não se trataria de contrato com unus ex publico, mas de licitação, no sentido estrito, para se apurar o verdadeiro valor do imóvel. O credor “impugnaria” o valor oferecido, e a licitação seria meio de prova. A despeito do “impugnar”, que aparecia no Código de Processo Civil de 1939, art. 396, e está na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 268, não era esse o entendimento da lei: “impugnar” foi tomado em sentido não-técnico, por lapso do legislador; tanto assim que o seu contrário seria “não se opor”. Não há impugnação de afirmações; mas recusa de proposta. A lei, tal como ocorreu com o direito romano (§ 5, 1., de officio iudicis, 4, 17; L. 3, § 1, C., de communz dividundo, 3, 37), a respeito do bem comum, teve de dar essa solução ao problema de técnica legislativa. E interessante consignar-se que 1 H. Correia Teles (Digesto português, II, § 1.097) viu o problema sutil e de grande valor prático, faltando-lhe apenas a ciência posterior, debulhadora de conceitos. Disse ele, falando de corrigir a má avaliação dos bens entre herdeiros: “corrigir a má avaliação dos bens, por meio da licitação” (sic); portanto, nenhuma declaração de vontade, apenas prova, O que os herdeiros alegaram contra as avaliações foram afirmações. Ao contrário do que se passa na competição em caso de remição de hipoteca, que consulta interesses múltiplos dos declarantes. § 64. Sub-rogação pessoal legal 1. Sub-rogação legal. Com a licitação, depositado o preço, profere o juiz a sentença (se a lei não é explícita, decorre menos de analogia com regras jurídicas do que da natureza da relação jurídica processual) e, se vence o adquirente, manda cancelar a hipoteca (efeito constitutivo negativo da sentença). O credor hipotecário, que vence,

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assiste à sub-rogação legal dos seus direitos no produto da licitação, sem ter havido remição do bem, e a sentença terá sido executiva, tendo-se dado conversão legal do processo. Se forem dois ou mais credores, procede-se pro rata, ou segundo a relação entre eles. 2. Eficácia “de iure”. A sub-rogação opera-se de pleno direito, com efeitos desde o momento em que o juiz ultima a licitação, embora a hipoteca só se cancele depois de proferida a sentença. 3. Quando é desnecessária a ação. Não há a ação se o credor concordou com a escritura de venda do imóvel e a assinou com o comprador. Trata-se da solução da dívida, ou pelo devedor hipotecário, ou pelo adquirente, ou por liberalidade do credor com direito hipotecário. Abstrai-se da causa. Desde que o credor com direito hipotecário é um dos figurantes da escritura de venda e a assina, o cancelamento da hipoteca pode ser exigido ao oficial do registro. A regra jurídica é mais de direito material do que de direito processual. Não só no caso de bastar o preço se redime com o consentimento do credor a hipoteca. A regra jurídica subentendia-se, porque, se há solução da divida, nenhuma idéia há de ação, de remição, de justiça. Já houve. Aliás, a pretensão a remir que tem o adquirente só lhe nasce se recebeu gravado o imóvel. O Decreto nº 370, de 2 de maio de 1890, falava de “ação de remição”, que “não é necessária”. Na verdade,tal ação, aí não existe, porque não existe a pretensão. Sempre foi assim, pela definição mesma de remição. Se o credor adquiriu o imóvel e não fez cancelar-se a hipoteca, ou se lhe foi outorgada procuração em causa própria, e aliena o imóvel, entende-se, interpretativamente, que o alienou sem a hipoteca. Aliter, se, sem ressalva, ou sem afastar, de qualquer modo, a incidência do ius interpretativum, assina a escritura de hipoteca, com o alienante e o adquirente. Tem-se, ai, a sua atitude como de renúncia à hipoteca. 4. Adquirente e relação jurídica entre o alienante e o credor com direito hipotecário. Nenhuma exigência de depósito é de se fazer. O adquirente nada tem com a relação jurídica entre o alienante e o credor com direito hipotecário. Tudo se passa, a despeito da co-participação formal na escritura, segundo os princípios. No fundo, há duas operações, uma entre o alienante e o credor, e outra, entre o alienante e o adquirente. Considera-se isento de gravame hipotecário, desde esse momento, o imóvel. A questão que pode surgir (e tem importância prática) é a de se saber se a regra jurídica é de direito cogente, dispositivo ou interpretativo (valendo, pois, em caso de dúvida). É de direito interpretativo. É preciso que o adquirente peça ao juiz expedição de alvará para o cancelamento da hipoteca? De modo nenhum. O oficial do registro, examinando a escritura e sabendo que a regra jurídica é jus interpretativurn, cancela; se tem dúvida que mereça apreciação do juiz, procede de acordo com os princípios do direito dos registros públicos. Sem razão, Antônio Luís da Câmara Leal (Comentários, V, 213). 5. “ius offerendi et succedendi”. O credor de posterior hipoteca pode solver a divida garantida por hipoteca anterior, se vencida. Para que isso se dê, é preciso que o devedor não se houvesse oferecido para solvê-la. Não há, aí, remição; mas exercício do ius offerendi et succedendi, solução pelo terceiro, com os efeitos de sub-rogação pessoal. Não se cria novo caso de solução da divida hipotecária pelo credor de outra dívida hipotecária (posterior): é preciso que esteja vencida a dívida, para que o credor com direito hipotecário requeira a solução e a consequente sub-rogação. A primeira, a anterior, tem de estar vencida; a do demandante, não. 6. Legitimação ativa. Qualquer dos credores ou quaisquer de todos os credores posteriores são legitimados ativos. Havendo concorrência de pedidos de desinteressamento e sub-rogação, não há rateio; cada credor mais antigo prefere ao menos antigo. O fundamento é o de se evitar que as hipotecas mais antigas cheguem a exaurir o valor do imóvel, com os juros e as despesas de execução. Por isso mesmo, se a mais nova se vence antes da mais antiga, a pretensão nasce ao se vencer a anterior, ou alguma das anteriores, ou ao se vencerem algumas, ou todas as anteriores. O vencimento da divida hipotecária de que é credor aquele que obteve a solução e a sub-rogação faz nascer nos credores de hipotecas posteriores a pretensão a solver pelo devedor e conseguir sub-rogação (ius offerendi et succedendi). A concentração num só apenas depende dos vencimentos das anteriores, se o credor mais novo intenta todas as ações que lhe forem nascendo.

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7. Sub-rogação hipotecária. Se o credor de segunda hipoteca pede a sub-rogação pessoal, junta o titulo e a certidão do registro da anterior e deposita a importância devida ao primeiro credor, com a citação desse para levantar o depósito e a do devedor para, dentro do prazo legal, remir a hipoteca, sob pena de ficar o requerente sub-rogado nos direitos creditórios, sem prejuizo dos que lhe couberem em virtude da segunda hipoteca. O erro está em se chamar remição à sub-rogação pessoal de que ai se fala. No direito anterior, sempre se caracterizou, e bem, o instituto (3. H. Correia Teles, Digesto Português, 1, § 1.101); foi o Projeto de Coelho Rodrigues, art. 1.708, o culpado de se dar ao negócio jurídico nome inadequado, que se deve corrigir quanto antes. O instituto da sub-rogação hipotecária nada tem de remição. Também se opera quando o dono do imóvel, que o submeteu a hipoteca para garantir divida de outrem, ou o possuidor, exerce a sua pretensão de evitar que se lhe execute o bem (B. Windscheid, Lehrbuch, 1, 9ª ed., 1190). 8. Pedido de remição. O caso não é de requerimento, mas de pedido. Se a hipoteca a ser remida está sendo executada, antes da primeira praça, não se admite a solução da divida e conseqUente sub-rogação pessoal, nem depois de assinado o auto de arrematação. Os dois documentos a serem juntos são a certidão da sua hipoteca e a da hipoteca do credor anterior. Se pede a sub-rogação quando no juízo da execução da hipoteca anterior, é dispensável a certidão dessa. 9. Citação e contestação. A citação é para que o outro credor levante o depósito (consignação de termo em solução) e para que o credor preste a declaração de vontade que é de mister (em escritura pública de quitação ou quitação por termo nos autos). O depósito não pode ser levantado pelo depositante dentro do prazo legal, porque o credor citado pode estar providenciando, ou ter providenciado para cumprir a alternativa “quitar ou sofrer o processo de constituição negativa. Vindo a juizo o contestando, o credor da pretensão a se sub-rogar pode desistir da demanda e levantar o depósito. A consignação em depósito é suscetível de ser contestada. Na contestação, pode alegar o citado: a) que ao credor que faz o pedido falta legitimação, por ser nula a sua hipoteca, ou por ser anterior à do citado, ou por ter renunciado à sua pretensão; b) que o citado tem outra hipoteca posterior à do pretendente à sub-rogação, de modo que cabe, nesse e noutros casos, a regra Nemo subrogat contra se (a velha regra não precisa estar em lei para que incida: assim se entende, por exemplo, a despeito de não se ter o § 268, 3ª alínea, do Código Civil alemão, no direito suíço, no qual se vê a aplicação de H. Leemann, Das Sachenrecht, no Kommentar de Max Gmur, IV, II Parte, 853, e de Hermann Becker, Das Obligationenrecht, na mesma obra, VI, nota 8 ao art. 110); c) que a divida da primeira hipoteca não se venceu; d) que se dá o caso de haver execução de hipoteca pelo credor anterior e só se exercer a ação após a primeira praça; e) que o depósito não é integral e o que pretende desinteressá-lo deseja todo o crédito. (Alguns comentadores não atenderam a que o fundamento da lei é estar o segundo credor interessado em que sobre valor para garantir o seu crédito e ser a divida divisível, nem a que existem regras jurídicas sobre os pedidos na ação de execução, regras juridicas, essas, sempre aplicadas, nos diferentes sistemas jurídicos, ao caso da sub-rogação hipotecária, ainda em falta de texto. Daí não ter fundamento o que sustentam alguns comentadores). a) Se não houvesse a regra jurídica protectiva, o titular da posterior hipoteca não poderia executar a sua hipoteca e teria de assistir à execução da hipoteca anterior ou das anteriores hipotecas. Ainda que se vencesse a sua, estaria privado de ir contra o bem na ação executiva, enquanto não se vencesse a anterior, ou não se vencessem as anteriores. Vencida a anterior, ou vencidas as anteriores, teria de estar sujeito à execução pelo titular ou pelos titulares das hipotecas anteriores. A lei permite-lhe que chame a si, com sub-rogação pessoal, a hipoteca vencida ou as hipotecas vencidas, e aguarde o vencimento da sua para a execução, ou como titular por sub-rogação pessoal execute o bem, pois que vencida — ex hypothesi — está a hipoteca. Posto que, se já iniciada a execução pelo titular da hipoteca anterior ou pelos titulares das hipotecas anteriores, possa o titular da hipoteca posterior remir a hipoteca, o fito da regra jurídica é evitar a execução por outrem (cf. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 4 de agosto de 1944, AJ 72/336). O vencimento da dívida, em caso de ação do credor com hipoteca posterior, é qualquer vencimento, e não só o que

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resulta de expiração de prazo (3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 14 de fevereiro de 1933, RT 85/604; sem razão, o Juiz de Direito de Botucatu, São Paulo, a 31 de maio de 1932, 90/173). b) Se a alienação se faz sem a presença do titular da hipoteca, entende-se que a hipoteca continua de gravar o imóvel, tornando-se hipoteca em garantia de dívida alheia. As ações reais têm de dirigir-se contra o adquirente, por ser, no momento, o dono, ou contra ele e o possuidor próprio. Se alguém se diz dono e possuidor, em vez do adquirente, a ação vai, também, contra ele, ou pode ele apresentar-se com embargos de terceiro, ou propor ação de reivindicação. Não é preciso citar-se o alienante, pois não figura como interessado, posto que real a ação executiva (cf. 5ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 1ª de junho de 1939, RT 122/77, RF 80/133). O depósito da quantia devida, pelo devedor, ou pelo dono do prédio gravado, quer se haja iniciado a execução, quer não se haja iniciado, afasta a pretensão do titular da hipoteca posterior (cf. 2e Turma do Supremo Tribunal Federal, 4 de agosto de 1944, RF 101/310). Devedor, ou do dono do imóvel, ou herdeiro do devedor, ou do dono do imóvel, ou inventariante (Câmaras Cíveis do Tribunal de Apelação de Minas Gerais, 4 de junho de 1938, RF 75/616). Se a hipoteca anterior foi feita pelo enfiteuta, só o titular de posterior hipoteca feita pelo enfiteuta tem pretensão à remição, não o titular de hipoteca feita pelo titular do domínio. Se a hipoteca anterior foi feita pelo dono do prédio, só o titular de hipoteca posterior feita pelo dono do prédio tem pretensão à remição. Se a anterior hipoteca tem prazo maior do que a posterior, falta interesse jurídico ao titular da hipoteca anterior para remir a posterior, que se venceu, salvo se ocorre a insolvência do devedor, ou do dono do prédio. 4 Os sucessores do devedor não podem remir, parcial-mente, o penhor ou a hipoteca na proporção dos seus quinhões; qualquer deles, porém, pode fazê-lo no todo. O sucessor do devedor, e não o adquirente do bem gravado. O adquirente da parte indivisa é terceiro adquirente, se é um dos sucessores do devedor, embora também o seja na parte indivisa, e está sujeito à exigência quanto ao total. Se os devedores são solidários e a hipoteca foi feita pelos condôminos, tem-se de saber, pela interpretação do acordo de constituição, ou do negócio jurídico unilateral de constituição da hipoteca, se foi hipotecado o todo, ou se o foram as partes indivisas, separadamente. Não se pode dar solução a priori, como fez a 4ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 5 de agosto de 1936 (RT 104/471). 10. Devedor, não-comparência ou não-remição da hipoteca. Se o devedor não compareceu, nem se manifestou por ato extrajudicial bastante, o que depende de informação dele, do credor hipotecário citado, ou do próprio credor que pretende a sub-rogação no crédito do outro — são os autos conclusos ao juiz, que julga o desinteressamento do primeiro credor para os fins pedidos. Esse desinteressamento é solução da dívida ativa do primeiro credor sem que se extinga a dívida do dono do prédio, ou do que obteve prédio de outrem em garantia do seu crédito. Não há qualquer descontinuidade entre os dois momentos, pois a sub-rogação se opera de pleno direito. O que o juiz julga é o desinteressamento do credor citado. A sentença é constitutiva. A sub-rogação não é constituída por ela; mas pela lei. Por isso mesmo, se houve vontade contrária do credor autor, não importa, se não desistiu da demanda; desde que se profira a sentença, a sub-rogação é efeito acessório da sentença, pleno iure. Se o credor autor não quer a hipoteca, tem de renunciar a ela, por forma legal. Qualquer ato no registro do imóvel, depois de passada em julgado a sentença, tem efeito somente acautelante: a substituição subjetiva ativa se operou com a sentença, no momento mesmo em que se publicou. 11. Desinteressamento do credor. O ato de desinteressamento do credor réu pode ser por termo nos autos, se comparece, por si, ou por procurador. 12. Litisconsórcio passivo; silêncio. O devedor é litisconsorte passivo. Se não comparece, nem solve a divida, desgravando-se o imóvel, com a necessária comunicação ao juízo, O juiz há de ter o seu silêncio como declaração de vontade, ou como contumácia? A primeira construção é que é a certa, com todas as consequências que daí resultam. 13. “ius solvendi et liberandi’. Se o devedor comparece e quer efetuar a remição, notifica-se o credor para

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receber o preço, ficando sem efeito o depósito realizado pelo autor. O lus solvendi et liberandi do devedor exerce-se para excluir a sub-rogação; em vez de ser o credor autor que desinteressa o credor réu, é ele, devedor, litisconsorte passivo, que o desinteressa, solvendo a dívida. Na sub-rogação voluntária evite-se dizer “convencional”, porque há a sub-rogação por declaração unilateral de vontade, a substituição depende da vontade do devedor. Na sub-rogação legal, o devedor não tem qualquer atuação na constituição do desinteressamento ou do efeito sub-rogativo. Pode, apenas, excluí-la de antemão, solvendo a dívida. Como a posterioridade das hipotecas não prejudica, pode o devedor hipotecar de novo, ao mesmo credor, o prédio. 14. Remição pelo devedor e depósito. O devedor é litisconsorte e tem de se submeter à quitação por termo nos autos, julgando-se a causa para se levantar o depósito, ou ordenando o juiz que fique à disposição do depositante. O credor que foi citado está inibido de receber do devedor, sem ser em juízo, devido á pendência da lide. Foi citado e tem de se desinteressar. Se recebe do devedor, sem ser em juízo — em vez de levantar o depósito ou receber em juízo — responde pelas despesas que forem feitas pelo credor autor desde o seu ato; e arrisca-se a que, proferida a sentença constitutiva, o autor obtenha a sub-rogação e o devedor proponha a ação para haver a quantia com que pensara solver a dívida, se pagou, a despeito de haver sido citado, para evitar prejuízo maior, sob pressão do credor. Aliás, em qualquer juízo, a alegação da litispendência basta para que não possa ser eficaz qualquer atividade processual noutro juízo, ou no mesmo, do credor citado. 15. Hipoteca do primeiro credor; remição. Se o primeiro credor está promovendo a execução da hipoteca, a ação que abrange a importância das custas e despesas realizadas, não se efetua antes da primeira praça, nem depois de assinado o auto de arrematação. O caso é o de já estar sendo executada a hipoteca do credor anterior. Tem-se de pedir o desinteressamento desse credor no tempo que medeia entre a primeira praça e a assinatura do ato de arrematação. Trata-se somente de ação de desinteressamento do credor com direito hipotecário; não se aplica ao pedido do adquirente do imóvel. Se o pretendente adquiriu o imóvel, sem se haver dado o caso de ter o credor assinado a escritura, e sobreveio a execução ao tempo de propor a ação, cabe observar-se a exigência de ser até a assinatura do auto de arrematação. 16. Citação do devedor. A citação do devedor é indispensável para que solva a dívida. Alguns juristas criticam a lei por permitir a ação de desinteressamento do credor, pendente a execução, porque, se a execução hipotecária está sendo processada, é “exatamente porque o devedor, citado, deixou de executar o resgate’ (e. g., Antônio Luís da Câmara Leal, Comentários, V, 227). Sem razão. Seria absurdo reduzir-se a pretensão do credor posterior a direito de concorrer à execução. Ele tem pretensão ao desinteressamento, como se fosse o devedor que estivesse pronto a pagar, a liberar o imóvel; por isso mesmo, enquanto o devedor pode pagar, tem de ser citado. A regra jurídica está certa. As questões únicas são as de se saber onde corre o feito e como se processa. Textos legais respondem ã primeira: pendente a execução, a ação quando pende a ação executiva é acessória. As leis permitiriam processar-se dentro da execução, porém aconselhável é que se processe em separado, apensando-se quando for preciso. O despacho suspende a segunda praça ou qualquer ato que se tenha de praticar depois da primeira praça e antes da assinatura do auto de arrematação, até que o juiz decida sobre o pedido feito pelo credor. 17. Cônjuge, descendentes ou ascendentes. Há a pretensão do cônjuge, descendentes, ou ascendentes do executado á remição. Uma vez que a pretensão nasce do fato de haver execução, tem-se de entender que podem eles intervir, remindo o bem. 18.Ação de primeiro credor e pré-exclusão das praças. A propositura da ação pré-exclui as praças. Desde que se deposite a importância da divida (principal, juros, multa, custas e despesas realizadas), nenhuma competição pública se dá: desinteressado fica o credor executante; e sub-roga-se nos direitos dele o outro credor, que pode continuar a execução. A sub-rogação pessoal é de direito material e de direito processual, inclusive para o efeito da automática substituição subjetiva ativa na relação jurídica processual.

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§ 65. Remição de hipoteca legal 1.Precisões. Na remição das hipotecas legais intervém o orgão do Ministério Público, se há interesse de incapaz. Nos casos de hipoteca legal, que é a resultante do favor conferido, pela lei, acertos créditos, ou pretensões (de origem histórica, múltipla, digna de exame, mas estranha ao direito das ações), é a lei que subordina o bem à garantia. Chamá-las “tácitas”, como se em tendeu por muito tempo, e. g., Lei de 20 de junho de 1744, §38, e ao mesmo tempo “legal” (“... sua tácita e legal hipoteca’), denunciava a confusa passagem de uma para outra concepção — a da vontade presumida, ficta, ou semelhante, e a que excluiu a referência a tacitude (cp. Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, art. 1.270). A hipoteca legal registra-se e especializa-se para que se satisfaça exigência da lei. Não se pode pôr de lado essa exigência, que já estava satisfeita com o registro e a especialização, sem por outro modo se atender à lei. Só há remição de hipoteca legal se há sub-rogação real. As regras jurídicas concernem à ação de remição do adquirente do imóvel e à de desinteressamento do credor anterior. 2. Remição e sub-rogação da hipoteca legal. A regra juridica (a) regula a remição e conseqúente sub-rogação legal na hipoteca legal, bem como o desinteressamento do credor anterior e conseqUente sub-rogação legal na hipoteca legal. Subsume-se no princípio geral da remição ou desinteressamento e conseqUente sub-rogação legal das hipotecas. São outros princípios subsumidos (b) o da remição ou desinteressamento e conseqUente sub-rogação legal das hipotecas convencionais, de que tratamos até agora, como caso mais vulgar; e (c) o da remição ou desinteressamento e consequente sub-rogação convencional ou negocial unilateral nas hipotecas convencionais ou negócios unilaterais e legais, que escapa ao assunto. São casos de hipoteca legal os que as leis apontam. O adquirente do imóvel ou o credor posterior, quando tiver de propor a ação, ali de remição e aqui de desinteres-samento, não precisa citar o órgão do Ministério Público — esse “intervém”, por força de regra jurídica completa, e não de arbítrio. Se não se observou a exigência quanto ao Ministério Público, dá-se a nulidade “não-cominada”. O órgão do Ministério Público, uma vez citado, ou tendo-se-lhe dado vista, exerce aquela função de que antes falamos. Pode opor-se ao pedido, ainda quando surjam as espécies em que o demandado não compareceu, ou não contestou; mais: deve ser ouvido antes de qualquer ato do credor a ser substituído ou devedor citado. Bom é, portanto, que o autor peça a citação, uma vez que toda remição ou todo desinteressamento será nulo sem a sua audiência. Se não comparece, ou não fala, não há declaração de vontade dele; e sim contumácia, com infração de deveres funcionais. A sua audiência não dispensa a citação do curador do incapaz a que a hipoteca legal beneficia. 3. Sub-rogação real, com remição consequente. Se a pessoa, cujo bem imóvel foi registrado e especializado como hipotecado ex lege, quer substitui-lo por outro, tem de pedir a sub-rogação real, com invocação das regras jurídicas que a essa concernem (Código de Processo Civil de 1973, art. 1.112, 11). § 66. Falência ou insolvência e remição 1. Processo comum da arrematação e remição. No processo comum da arrematação, realizada a praça, há a remibilidade do bem, em geral, a) pelo executado, ou b) pelo cônjuge, ascendente ou descendente; mas, ocorrendo falência do devedor hipotecário, o direito de remição transfere-se à massa. 2.Falência e remição. Se houve decretação da falência, os bens gravados de hipoteca são levados a leilão, notificado o credor, por despacho do juiz. O direito de remição devolve-se à massa em prejuízo da qual não pode o credor impedir o pagamento do preço por que foi avaliado o imóvel. O restante da dívida hipotecária entra em concurso com as quirografárias. No caso de insolvência, cabe aquele direito aos credores em concurso. Pode o credor com direito hipotecário, no caso de insolvência ou falência do devedor, para pagamento de sua dívida, requerer a adjudicação do imóvel, avaliado em quantia inferior a esta, desde que dê quitação pela sua totalidade.

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Primeiramente, observemos que a referência a devedor com gravame do bem, não é o devedor do crédito garantido por hipoteca de prédio de propriedade de outrem, ou de que outrem é enfiteuta: é o dono do prédio hipotecado, ou o enfiteuta, se a hipoteca é de enfiteuse. Por outro lado, “credor com direito hipotecário é o titular do direito de hipoteca. O direito de remição transfere-se, ipso iure, à massa; mas, se o imóvel foi avaliado em menos do que é a importância da hipoteca, tem o titular do direito de hipoteca a pretensão à adjudicação, dando quitação pelo total da dívida. Tanto no caso de direito de remição transferido à massa (2ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 18 de janeiro de 1929, AJ 11/46) como em se tratando de pretensão à adjudicação, o exercício das pretensões independe de existir hasta pública. A pretensão à remição, que tem o cônjuge, ascendente ou descendente do executado, é ao lado da pretensão do próprio executado, Se é julgado falido o executado, o direito dele, que passa a massa, é o direito dele e do cônjuge, ascendente, ou descendente, ou só o dele? A solução certa é a de se tratar o direito do cônjuge, do ascendente, ou do descendente, como ao lado, e não em lugar do direito do executado, conforme expusemos nos Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, XIII, 2ª ed., 439. No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 8 de abril de 1918 (RT, 25/443, e 54 Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 1ª de novembro de 1933, 93/357). 3.Insolvência e remição. Se há concurso de credores não-falencial, o dono do bem hipotecado, ou o enfiteuta, se se trata de hipoteca de enfiteuse, não tem pretensão à remição, porque essa se transfere, ipso iure, aos credores em concurso. Todavia, se o bem foi avaliado em quantia inferior à dívida garantida (= valor da hipoteca), tem o titular do direito de hipoteca pretensão à adjudicação. § 67. Arrematação e remição 1. Situação do titular do direito de hipoteca, em caso de ter de ser posto em hasta pública o bem hipotecado. Os credores com hipoteca sobre os imóveis têm de ser intimados da arrematação dos imóveis hipotecados, desde que não sejam partes na ação executiva de título ou de sentença. Os senhorios são intimados da arrematação do domínio útil dos bens enfitêuticos, bem assim os titulares de hipoteca da enfiteuse. Em ambos os casos, a intimação é anterior à arrematação, pois que é para que possam assistir à praça. 2. Intimação e falta de intimação. (a) Discute-se se, intimado o credor e ficando inativo, perde o direito à hipoteca. O próprio Clovis Bevilacqua (Código Civil Comentado, III, 3ª ed., 464) mudou de opinião, reputando indiferente a inação. A alienação judicial é válida (se não tivesse havido a intimação, não no seria); porém a presença, a atividade ou a ausência do credor com direito hipotecário não o prejudica. Não foi intimado com a cominação, que seria absurda, de perder o direito real. (b) Entendia Amilcar de Castro (Comentários, X, 293) que, não havendo a intimação do credor com direito hipotecário, nem sequer é nula a arrematação, ainda em face do Código Civil. Mas o Código Civil foi explícito: “Não será válida a venda judicial No terreno do direito processual, a alienação não é válida; não se opera a sub-rogação do bem no preço: o ônus real no bem não se extingue. Se a intimação é quanto à penhora mais a alienação do bem livre e desembaraçado, vai-se alienar o que é o do devedor e o que não é (o gravame), de jeito que na intimação se contém preceitação. Tal intimação não é somente para que o titular do direito real de garantia exerça a pretensão à remição ou ao resgate: é para que sofra a alienação, e só receba o que, no preço total, corresponda ao seu direito real de garantia, ou lhe caiba segundo os princípios. As soluções para o caso de arrematação do bem hipotecado ou anticretizado são, de leqe ferenda, entre si discordantes: a) permanência inexcetuada do direito real de garantia (tese), de modo que o preço da arrematação seria, sempre, x menos y o valor da hipoteca, sendo z o da dívida; b) a execução importa em verter-se o valor do bem, portanto x, do qual se haveria de tirar o quanto, y, para a solução da divida garantida (antítese); c) uma vez que se penhorou o bem, menos o valor da divida, mas se vai alienar todo ele (= livre e desembaraçado), há de intimar o credor com direito hipotecário ou anticrético, que sofrerá a substituição do seu crédito real pelo depósito

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do equivalente, em virtude da notificação, que, ai, devido à referência ao propósito de alienação total, é preceitação. Aqui, ou se tem por nula a arrematação em que não houve a intimação, a despeito de só se ter penhorado x menos y, ou por ineficaz. A lei reputou-a nula (não-válida), de modo que, no caso de intimação, se dá a extinção da hipoteca validamente, mas, no caso de se não intimar, a extinção se opera nulamente, ficando sempre em depósito o quanto da dívida. A hipoteca não permanece, porque a nulidade é pleno iure - e, ainda quando é pleno iure a nulidade, algum ato judicial, mesmo que seja de plano, é necessário para ser decretada. A arrematação ou adjudicação é nula, porém a nulidade não é inexistência, nem, sequer, ineficácia. Se o juiz assinou o auto e o credor com direito hipotecário não interveio, a arrematação vai produzir os seus efeitos enquanto não se desconstituir. Inclusive, o juiz terá de ver desenrolarem-se os atos de sub-rogação do bem quanto ao registro; salvo se a arrematação foi feita, detracta a hipoteca, isto é, reconhecendo o arrematante que o bem continua gravado. Se a sub-rogação se operou, embora nula, por ser nula a arrematação, então será preciso que se desconstitua o ato nulo. Ora, para se desconstituir o ato nulo, ou se propõe a ação de nulidade, ou a ação mandamental negativa, de elemento constitutivo negativo envolvido (embargos do executado ou embargos de terceiro), enquanto é tempestivo propô-la. Se fora da execução, a ação constitutiva negativa é exercível, isto é, fora dos embargos, é outra questão que merece trato à parte. Se o credor com direito hipotecário foi intimado (melhor: preceitado) a alienação vale, e dá-se, eficazmente, a sub-rogação no preço, ou a substituição do devedor. Se o credor tem direito anticrético, os mesmos princípios incidem. O executado e, pois, o juiz, que lhe expropriou o poder de dispor eficazmente, não pode transferir ao arrematante mais do que aquilo que o executado tem. Miguel de Reinoso (Observationes Practicae, 386 s.) exprimiu isso em enunciados transiácidos: “addictio venditio iudicialis est; ... pro venditore reputatur debitor per sententiam condemnatus, ob cuius debitum bona distrahuntur, ut sententiae satisfiat: quia factum iudicis, vel superioris iubentis rem sub praeconio vendi, ut satisfiat creditori, censetur factum debitoris”. O exeqúente somente pode pretender que se lhe pague pelo que é do executado, excetuado, pois, o que nos bens não pertence ao executado, de modo que, a respeito de ônus impostos pelo executado, ou fato dele, como a hipoteca, o preço responde pelo gravame do bem, para o quê é intimado o credor com direito hipotecário. Gabriel Pereira de Castro (Decisiones, 302) explicou a contento a razão disso; quando, excluindo a ação hipotecária contra o terceiro, observou que “per hypothecam rei, quae accessoria est, non immutatur natura primae obligationis, imo pacto personali manente in sua natura accedit, ex qua contra tertios agi non potest”. Se o credor com direito hipotecário não foi intimado, infringiu-se a lei. A novidade do direito processual de hoje, desde muitos decênios, é a da intimação. Ao tempo das Ordenações, não era necessário intimar-se para que o bem se liberasse e o direito dos credores com direito hipotecário ou outros incidisse no preço. A Ordenação do Livro IV, Titulo 6, § 2, só se referia às vendas extrajudiciais. Foi como cautela superabundante que se insinuou a praxe da intimação (Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Primeiras Linhas, III, 68). A intimação passou a ser necessária. O gravame cola-se ao preço, porque se dá a sub-rogação real. A intimação é para isso. Portanto, não havendo intimação, ainda que se sane a nulidade processual da arrematação, o bem continua gravado. Não se confunda a falta de intimação de arrematação de bens nos quais, em processo executivo, principalmente nos editais, se reconhece a existência de ônus, com a falta de intimação, se o executado nomeou, ou lhe foram penhorados bens de cuja penhora e mais atos não conste o direito real ou a restrição de eficácia. Aqui, o caso é diferente: houve, com o mandamento judicial, invasão da esfera jurídica do terceiro, e a ação a propor-se seria a de embargos de terceiro. Esses embargos podem ser opostos antes da assinatura da carta de arrematação, ou adjudi-cação, ou na ocasião de se querer eficácia à carta, contra o terceiro. (c) A arrematação extingue o ônus real do bem arrematado, transferindo-se para o seu preço, se o ônus foi imposto pelo executado, não os que não foram impostos por ele ou por fato dele (Silvestre Comes de Morais, Tractatus de Executionibus, VI, 221; Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria, III, 411,412). Se o ônus constava do edital, o lançador pagou o preço do bem com o ônus, e então a avaliação o levou em conta como elemento diminutivo do preço, se o ônus há de ser daqueles que se não podem extinguir tirando-se do preço para pagar. Esse ônus, imposto pelo executado, ou por fato seu, como é o da enfiteuse, continua: “fies emphyteutica’, dizia Manuel Gonçalves da Silva (Commentaria, III, 408, 411, 412), “debet addici et subhastari cum omni canone et onere et transit cum eo in queincumque successorem. Nec pactum valet, ne fundus in

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emptorem transeat cum onere 3. Concurso de credores. O concurso estabelece-se quando as dívidas excedem a importância dos bens do devedor, ou quando haja protesto por preferência ou rateio. Os titulares de direito de hipoteca têm de ser intimados das alienações judiciais de imóvel ou móvel hipotecado; mas por intimado se tem o que compareceu espontaneamente, sem nada opor, ou pediu vista dos autos e nada opôs (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 23 de janeiro de 1945, RF 105/505). Não os que tiveram ciência fora dos autos, portanto sem serem, de qualquer modo, partes na execução (cf. 2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Minas Gerais, 22 de abril de 1946, RT 168/740). A comparência com alegação da falta de intimação não é sucedâneo da intimação (Câmaras Civis do Tribunal de Justiça de São Paulo, 28 de novembro de 1930, RT 76/344). Se embargou de terceiro, a sorte da falta de intimação depende da sorte dos embargos (4ª Câmara Civil, 28 de fevereiro de 1932, 81/501). Sana-se a nulidade da praça se o titular do direito de hipoteca comparece e apenas pede a instauração do concurso de credores (2ª Câmara Civil, 4 de agosto de 1933 87/565). Exige-se a intimação dos respectivos credores com direito hipotecário, se há hipotecas registradas. Note-se: hipotecas registradas. Não se disse, no sistema jurídico, que não será válida a alienação judicial dos imóveis gravados por hipoteca devida-mente registrada sem que tenha sido intimado o titular do direito de hipoteca, mas sim que não será válida a alienação judicial dos imóveis gravados por hipotecas registradas, sem que tenham sido intimados, judicialmente, os respectivos credores com direito hipotecário. Não se falou do grau da hipoteca. O registro é meio de publicidade, para efeito real. O titular do direito de hipoteca que está no primeiro grau, com prioridade portanto, conhece, por força de lei, as hipotecas posteriores, embora a sua tenha prioridade. Tem-se procurado rebaixar os outorgados por registros posteriores à situação de credores quirografários (e. g., 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 3 de dezembro de 1931, RT 76/344; 3e Câmara Civil, 18 de novembro de 1932, 85/344; 4ª Câmara Civil, 21 de fevereiro e 2 de junho de 1934, 93/92, todas baseadas em parecer de Clovis Bevilacqua, RD 77/34 s.); mas sem razão: os titulares de posteriores hipotecas têm de ser ouvidos, para se poderem opor, alegando inexistência, ou invalidade, ou ineficácia da hipoteca anterior, que se está a executar (certa, a 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 21 de fevereiro de 1934, RT 89/565, que todavia só apreciou a espécie depois de assinado o auto de arrematação sem prejuízo para os titulares de posteriores hipotecas; e a 16 de outubro de 1935, 108/572). Ainda é tempo de corrigir-se o atentado ao princípio de publicidade. Não está em causa prioridade, ou preferência; está em causa a fé pública do registro. Aliás, costuma-se falar, em geral, de credores com hipoteca registrada. 4. Registro posterior à penhora. Se o bem foi penhorado antes de se registrar a hipoteca, não fica sem ação executiva no vencimento, ou quando houve deterioração ou depreciação do bem dado em garantia, ou insolvência ou decretação de falência, ou inadimplemento de prestações, o titular do direito real de hipoteca. Apenas sobre o que corresponde à penhora, como divida, não tem prioridade o titular do direito de hipoteca posteriormente registrada. Tal titular do direito de hipoteca tem de ser intimado (sem razão, a 2ª Câmara do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, a 14 de julho de 1932, RF 59/127; 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 7 de março de 1930, RT 74/62, que confundiu não ter prioridade e não-validade). 5. Remição e dispensa da avaliação. Podem os interessados fazer constar das escrituras o valor entre si ajustado dos imóveis hipotecados, como base para as arrematações, adjudicações e remições, dispensada a avaliação. As remições não são permitidas antes de realizada a primeira praça, nem depois da assinatura do auto de arrematação. Aproveita ao adquirente do bem gravado, quer alienante tenha sido o devedor dado da hipoteca quer tenha sido o terceiro dado. O pedido de remição só se permite depois de realizada a primeira praça e antes da assinatura do auto de arrematação. Nada tem tal regra jurídica com as remições pedidas pelo credor posterior ou pelo adquirente do bem gravado, nem se o titular do direito de hipoteca requere a licitação. Realizada a praça, o executado pode, até a assinatura do auto de arrematação, ou até que seja publicada a sentença de adjudicação, remir todos os bens penhorados, ou qualquer deles, oferecendo preço igual ao da avaliação, se não tiver havido licitante, ou ao maior lanço oferecido. Igual direito cabe ao cônjuge, aos descendentes ou ascendentes

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do executado. Na falência do devedor hipotecário, o direito de remição transfere-se à massa. Entenda-se: na falência do devedor, que é dono do bem gravado, ou enfiteuta que constituiu a hipoteca, ou na falência do terceiro dador da hipoteca, ou do adquirente do bem gravado, ou da enfiteuse gravada. A remição é até à assinatura do auto de arrematação, e não até à assinatura da carta de arrematação, que é ato sentencial (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 15 de abril de 1941,RT 144/802; 23 de janeiro de 1948, Ad 87/161; 5ª e Câmaras Civeis do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 12 de novembro de 1937, RF 74/288; 2ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 27 de maio de 1941). A dispensa da avaliação só se refere à avaliação. Se ela foi feita, não há mais invocá-lo, salvo se foi alegada a dispensa do tempo de se ordenar a avaliação, ou antes de se haver junto aos autos o laudo de avaliação, ou antes de se falar sobre ela se dela não se tinha ciência, ou se pende decisão sobre matéria de repetição da avaliação, caso em que, julgado procedente o requerimento de nova avaliação, é dispensada, ou, se o requerente da dispensa foi quem alegou erro ou dolo dos avaliadores, ou que se verificou haver ônus, ou defeito, se dispensa, decretando-se a invalidade, ou a ineficácia. A pretensão à dispensa da avaliação é renunciável (2ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, 2 de dezembro de 1937, Decisões, 1937, II, 896). Entende-se que a ela renunciaram os interessados se a ela não se opuseram a primeira vez em que tiveram de falar sobre ter de ser feita, ou sobre o laudo junto (2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 10 de fevereiro de 1931, RT 77/329, por se haver tomado parte em louvação; V Câmara Civil, 30 de novembro de 1942, 145/193). 6.Cônjuge, descendentes e ascendentes. De modo nenhum se limita ao executado a remição durante o processo de execução, mesmo se na lei se não falou de cônjuges, descendentes e ascendentes. Antes da instalação da relação jurídica processual de execução, somente pode remir a hipoteca o credor da segunda, ou o adquirente do imóvel hipotecado. A regra juridica sobre transferência da data da arrematação não se pode invocar, porque seria intempestiva. Depois da instalação da relação jurídica processual de execução, nasce a pretensão à remição por parte do cônjuge, descendente ou ascendente. A discussão que se travou a propósito de regra jurídica de direito material sobre legitimação ao pagamento por sub-rogação, foi levada pelos dois intérpretes por invios caminhos: não se poderia fazer tábua rasa do direito processual, sustentando-se que o cônjuge, o descendente e o ascendente estariam pré-excluídos da pretensão à remição, em quaisquer circunstâncias; nem se poderia deixar de atender ao direito material, no que concerne à remibilidade antes da formação da relação jurídica processual de execução. A distinção, que acima se fez, embora não explícita, é seguida pela jurisprudência, quase toda adstrita às remições durante o processo executivo (cf. Câmaras Civeis do Tribunal da Relação de Minas Gerais, 11 de fevereiro de 1931, AJ 17/486).

Capítulo XXIII

Ações de protesto, notificação e interpelação § 68. Generalidades 1. Medidas cautelares conservativas. Trata-se de medidas conservativas. As vezes, o elemento cautelar ou preventivo se introduz, sem que prevaleça como ocorre com as medidas cautelares. Porém aqui não se tem por fito tratar de medidas provisórias. O exercício de qualquer das pretensões conservativas (Código de Processo Civil, arts. 86T873) vale per se. Se acessoriedade existe, é à pretensão ou à obrigação de direito material. Tanto o processo protestativo quanto o notificativo e o interpelativo são produtivos de efeitos jurídicos no plano do direito material, raramente no processual. As vezes, a sua falta produz efeitos; mas a construção de cada caso depende do direito material que fez ser preciso ou facultado o protesto, a notificação ou a interpelação. De regra, são formas de exteriorização de vontade, ou de representação ou idéia (emissão perante autoridade), porém não negócios judiciais, muito embora se subordinem às normas de direito material relativas às declarações de vontade em geral e às de capacidade processual. Assim, também, quanto à parte 4, contrária. Atos processuais, cuja eficácia é, quase

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s empre, conservativa. De modo que: a) se a exteriorização de vontade ou representação tende a ser recebida por alguém que não é juiz (protesto receptício, notificação ou interpelação), com que se compõe a relação jurídica em ângulo, observam~se as regras de direito material; b) se dispensa a recepção, o protesto não é recepticio,e entende-se que a lei exigiu apenas a forma judicial para a exteriorização de vontade, e nesse caso não se há de cogitar da capacidade processual daquele contra quem se desejam os efeitos do protesto; c) se ocorre algum dos pressupostos da citação com hora certa, ou por edital, pode ser adotada essa forma, e as leis de direito material por vezes criam a pretensão à declaração por meio de procedimento edital, ou o dever disso. É de grande importância saber-se que a eficácia do protesto, da notificação ou da interpelação é, quanto ao declarante, a do momento em que se despachou a petição; portanto, não importa se morreu, ou se caiu em incapacidade, depois. A exteriorização a alguém só é eficaz quando feita ao representante legal, ou se, ao recebê-la, já é capaz. Mas, tratando-se de oferta de contrato ou outras declarações de vontade dirigidas a relativamente in-capazes, têm elas eficácia imediata. A doutrina entende que tal principio não precisa, por sua evidência, estar em lei expressa. Não raro, o procedimento edital é exigido pela própria natureza da relação a ser constituída, ou desfeita, ou extinta (e. q., constituição ou revogação de procuração para tratar com o público). A notificação, ou o protesto, ou a interpelação edital, vale, então, quanto a quem quer que esteja na situação de receber a declaração, inclusive qualquer terceiro. A comunicação feita ao terceiro não é outorga, é notificação; mas é permitido em direito o outorgamento público de poderes para negócios jurídicos (e. a todos os negociantes de diamantes a comprar para o outorgante pelo preço x diamantes industriais). a) Característica do protesto (judicial) é ser ato processual que supõe que o protestante declare o direito a respeito de si próprio, ou a emissão de manifestação de vontade complementar de outra, ou delimitadora da esfera jurídica do protestante, ou manifestação de vontade, ou comunicação de vontade de exercer alguma pretensão. Não tem efeitos que dependam de outrem; são seus. Tem por fim constituir para a prova (pro-testar) da intenção do agente, ou conservar algo com ela: preventivo ou não, preparatório, ou não preparatório, incidente ou não incidente, o protesto pode também ser principal, autônomo, e assim estar fora de relação com outro processo. O chamado “protesto pela prova o ou era apenas indicação das provas. b)Características da notificação são o ser ato processual que contém exteriorização de acontecimento do espírito (vontade, representação) e o produzir-se o seu efeito ex lege, ou ex voluntate. A notificação, encarada do plano do direito material, não é negócio jurídico, posto que seja ato jurídico e semelhante àquele, tal como acontece à constituição de domicílio; encarado do plano do direito processual, é negócio jurídico, de eficácia ex voluntate, criador da relação jurídica processual entre o notificante e o Estado. Muitas vezes tais atos são praticados para que os seus efeitos se produzam, de modo que o elemento intencional dessa finalidade obriga a serem tratados como se fossem declarações de vontade. A notificação supõe “nota”, que se leva ao conhecimento de alguém, e não, de regra, declaração de vontade. Não há, pois, confundirem-se protesto e notificação. c)Característica da interpelação é consistir em exteriorização de vontade que não tem consequências jurídicas per se. A eficácia depende do ato ou omissão do interpelado. (Essa eficácia, nas notificações com alternativa, se produz com a so notificação, embora possa ter o conteúdo o) ou o conteúdo b). 2.Diferentes conceitos (cita çáo, notificação, intimação, protesto e interpelação). A diferença de conceito, entre a citação, a notificação, a intimação, o protesto e a interpelação, é de grande importância, porque traduz o elemento irredutível entre esses cinco atos processuais. Cada um deles é distinto, na sua concepção e na sua eficácia. Alguns institutos mudaram de natureza, através dos séculos, porque transformaram em citação o ato inicial somente notificatório (por exemplo: litis denunciatio, nomeação à autoria). A citação é, de regra, requerida, espontaneamente, pelo autor. Nos casos de nomeação de autoria, é o autor obrigado a promovê-la (isto é, a requerê-la). Nos casos de litisconsórcio, quando se tem de chamar ao processo alguém que se deva litisconsorciar, cita-se. Melhor: adcita-se. Mas, historicamente, foi da prática mesma de se (ad) citarem os litisconsortes e os interessados in consequentiam (Código de Processo Civil, art. 50) que surgiu o litisconsórcio necessário integrativo, como da

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prática de se (ad) citarem os terceiros que tenham direito sobre a coisa litigiosa resultou a intervenção principal hodierna, com caráter de provocatio ad agendum, que a praxe conserva sempre que se quer estender a terceiros a eficácia da futura sentença. A integração iussu iudicis, tratando-se de litisconsorte do autor, é provocatio ad agendurn; a citação, a adcitatio do processo germânico. A Austria aboliu-o (A. Skedl, Das ósterreichische Zivilprozessrecht, 32 s.), mas o direito processual brasileiro, quer no Código de Processo Civil de 1939, seja no Código de Processo Civil de 1973, não lhe seguiu o exemplo. O direito romano não conheceu a intervenção necessária, forçada. Apenas regulou a denúncia da lide (litis denunciatio), com que se dava ensejo à sucessão do vendedor ao comprador na relação jurídica processual (posteriormente, certa intervenção do vendedor, Leopold Wenger, Institutionen, 82). A denúncia, segundo os arts. 70-76 do Código de Processo Civil, não é simplesmente notificatória, como seria no direito romano. Há citação. Bem assim, no caso de nomeação à autoria. A transformação da notificação romana em citação romano-germânico-canônica traduziu a evolução da litisdenunciação em chamada à autoria, com os elementos históricos indubitavelmente germânicos. A ação, nos casos de litisconsórcio necessário, é mal intentada sem a citação dos outros litisconsortes, de modo que a lei permite a integração. O adcitado ou entra na relação ou se opõe como terceiro. A citação dá-lhe a oportunidade de escolher a posição processual efetiva: a de litisconsorte, ou a de terceiro. Naturalmente, a eficácia da sentença na ação principal se estenderá a ele desde que a repulsa da sua pretensão como terceiro, julgada antes, importa, de regra, declaração da sua legitimação (forçada) na ação principal. A concepção de Giuseppe Chiovenda (Principii, 1.114 e 1.117), que reduzia a adcitação do litisconsorte necessário a simples excitação do terceiro a vir ser parte, deve ser repelida. O adcitado, com a citação, faz-se parte — não é apenas o “notificado” que, devido à ciência do que se passa, fique sujeito à eficácia do que se vai decidir. O jurista italiano afastou-se do fio histórico, confundindo a intervenção ad adiuvandum e a ex coaequali interesse. As considerações que aí ficam mostram que é relevante distinguir-se entre citar e notificar. 3. Pressupostos de direito material. As espécies de protesto, notificações e interpelações dependem, quase sempre, do direito material, porém os textos legais hão de ser lidos como se acham redigidos — em toda a extensão dos seus termos, para que se não componham pressupostos para o recurso especial ou extraordinário, ou para ação rescisória. Podem não valer, nem, portanto, ser eficazes, os atos de protesto, notificação e interpelação se o procurador não tinha poderes especiais; mas, se a ratificação adveio, validam-se e tornam-se eficazes (cf. 1ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 29 de agosto de 1950, RT 189/499). Todavia, se não houve ratificação, não a dispensa o fato de se ter notificado a pessoa (sem razão, a V Turma do Supremo Tribunal Federal, a 19 de novembro de 1951, RF 148/180), posto que a qualquer tempo possa dar-se a ratificação. § 69. Conceitos 1. Protesto. O protesto supõe eficácia ex lege; raramente ex voluntate. O protesto do titulo cambiário, por exemplo, além de ser extrajudicial, apenas é a forma de prova do ato do protestante; mas entre ele, os outros protestos extrajudiciais e os judiciais, existe de comum serem todos alusivos a outro ato, que deve produzir efeitos ou não os deve produzir. A regra é que o protesto seja recepticio; mas os protestos judiciais também podem ser não-receptícios (e non audita altera parte). Para a interrupção da prescrição é receptício. Não se confundam recepticiedade e angularidade. E preciso que o protesto seja conhecido pela outra pessoa; porém a outra pessoa não é ouvida, nem, sequer, chamada a juízo. Conforme o étimo, o protesto é em voz alta, ao ar aberto, “palam testat”. Grita-se, para que se ouça; e só isso. Mas o protesto é ineficaz se não corresponde à intenção do agente ou é contra os fatos, inclusive jurídicos (protestatio facto contraria).

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Certos protestos passaram à competência dos notários quando parte da jurisdição dita voluntária lhes foi atribuida, ao diferenciar-se em duas a antiga função do juiz (juizes, juizes-notários, notários; juizes, notários), de modo que continuou a cooperação integrativa do Estado, sem ser através do juiz (protesto cambiário, de letras de risco, conhecimentos de fretes à ordem e endossados, apólices de seguro endossadas etc.). Outros ficaram aos juizes, sem ser devido, como se tem pretendido, à preventividade ou incidência. Alguns são ações autônomas. A causa histórica está no tempo mesmo em que se criou o protesto. Os protestos criados depois da diferenciação quase sempre pertencem aos notários. O chamado “protesto por prova” e o inexatamente dito por precatória ou rogatória são exercício do dever de indicar prova e estão ligados à propositura da ação (2ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 6 de setembro de 1912, RD 27/157; Supremo Tribunal Federal, 7 de outubro de 1911, 13 118/491). O “protesto por preferência” é incidente da execução e tem a função de conservação da pretensão e explicitação da vontade do credor concorrente. O protesto preparatório da falência é notarial, apenas qualifica a interpelação do devedor: é interpelação mais protesto, isto é, no caso, comunicação de vontade de exercer a pretensão à execução em concurso falencial. Esse último elemento é quase só no protesto incidental da execução concursal, de direito processual comum. A esse, como a outros protestos, extrajudiciais não se aplicam as regras jurídicas processuais comuns (Código de Processo Civil, arts. 867-873). Note-se que as leis processuais falenciais costumam conceber o protesto para falência como protesto recepticio. 2. Notificação. A notificação pura comunica conhecimento; não admite impugnação, mas estabelece plano sobre o qual se têm de exercer, eventualmente, os deveres de afirmação e de prova, bem como hão de apurar as conseqúências da ciência do notificado e da sua conduta. A notificação que comunica vontade émenos frequente, porém suscita atitude do notificado. 3. Interpelação. A interpelação apenas comunica que se exerce a pretensão: adverte o devedor; é ato do credor, por exemplo, entre a pretensão e a ação que vai nascer da mora. E a interpeliatio das fontes romanas. Se o interpelado nada deve, é de todo ineficaz; outrossim, se deve outra coisa. § 70. Protesto 1.Manifestações de vontade pelo protesto. Há três espécies de manifestação de vontade pelo protesto: a) a delimitativa ou de ressalva, que supõe a existência de certo estado da esfera jurídica de alguém e o exercício do processo de precisão de linhas em relação à esfera jurídica de outrem; b) a conservativa, no senso estrito, que apenas impede que aquele estado mude; c) a criativa (negativa ou positiva). Uma das consequências de as leis aludirem a manifestar-se, de modo formal, qualquer intenção, é permitir que se exteriorize, através de ato judicial, qualquer vontade (não de representação), trate-se de declaração de vontade, ou de atos de direito (em sentido estrito) semelhantes aos negócios jurídicos ou “atos reais”, ou de exteriorizações de sentimento (remissão e perdão, nas quais, advirta-se, existe elemento volitivo, portanto entram na classe das declarações de vontade; e o chamado “perdão de adultério”, que é apenas causa de caducidade). Qualquer exteriorização de vontade (não de representação), ou de sentimento, desde que a pessoa mostre o interesse em usar da forma processual, pode ser manifestada com fundamento no art. 876 do Código de Processo Civil. É isso de enorme importância na vida prática. O protesto tomou, assim, amplitude processual que não tinha o direito anterior a 1939, limitado, como era, à conservação, à ressalva e a alguns casos de exteriorização autônoma, formal, de vontade. A prática incumbe ex-plicitá-lo, precisá-lo, escandi-lo; principalmente, despregá-lo dos limites angustos do direito anterior a 1939. Quando o povo enunciava que “o protesto não dá nem tira direitos” atendia a que o protestante não se obrigava por ele em declaração de vontade, nem o protestado. O brocardo, que aparecia na jurisprudência (Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de setembro de 1893, GJSP IV/253; Corte de Apelação do Distrito Federal, 29 de agosto de 1932, RCIB 17/95), perdeu o seu valor no sistema jurídico vigente a partir de 1939 e não o recuperou na sistemática do Código de 1973. Além dos casos de ressalva quando dependiam de declaração de vontade (e o direito anterior já os tinha), há hoje, todos os de criação, positiva ou negativa. Não se pode dizer, por exemplo, que o protesto pela imprensa não cria direitos (Tribunal de Justiça de São Paulo, 27 de julho de 1899, GJSP 22/71), ou que o protestante não se obriga pelo protesto. Por isso mesmo, são anacrônicos acórdãos como o da 54 Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 14 de maio de 1943 (DJ 18/2630). A 34 Câmara Cível

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incidiu no mesmo erro (11 de junho de 1943, RF 96/96), confundindo as espécies b) e c). O protesto interrompe a prescrição, se intimado a quem de direito, ainda que incompetente o juiz perante o qual se protestou. Se o protesto é de título cambiário, ou cambiariforme, há de satisfazer as exigências de competência, porque oficial de protestos não é juiz e seria contra os princípios estender-se aos protestos perante oficial “incompetente” a lex specia lis que abstrai da competência judicial. A notificação, como a citação, pode ser pelo correio, por mandado, com hora certa, por precatória ou rogatória, ou por edital. Pode ainda ser por despacho, independente de mandado, quando não for o caso de precatória ou rogatória. A regra jurídica sobre prazo para a promoção da citação pelo interessado apanha as notificações. O protesto em juízo, sem a notificação, não interrompe a prescrição (4ª Câmara do Tribunal de Apelação de São Paulo, 27 de abril de 1938, RF 75/329 s.). Também não na interrompe o protesto cambiário com ou sem a “intimação”, ou a certidão conforme a lei, seguida da publicação, se possível, porque o protesto cambiário é para nascer pretensão, ou para efeitos de direito cambiário. 2. Comunicação de vontade. Uma das aplicações mais usuais do protesto é a de comunicar a outrem, inclusive a terceiro, a vontade real do protestante, se de alguma ação sua, ou omissão, seria de inferir-se outra vontade, O ônus da prova fica de certo modo invertido, e o que recebeu o protesto, para se prevalecer da inferência, tem de provar que o protesto não corresponde à realidade dos fatos (protestatio facto contraria). Isto é: que a intenção que se tinha por assente existiu, ao contrário do que se teve por fito com o protesto. 3. Fórmula geral. Cabe manifestar-se qualquer intenção. A fórmula é a mais geral, mais abrangente. Toda declaração de vontade a que a lei possa atribuir eficácia jurídica, ou por ser elemento de negócio jurídico, ou do ato jurídico que não seja, só por si, negócio jurídico, pode ser objeto de protesto, no sentido amplo. Porém não só as declarações de vontade. A manifestação de qualquer intenção: as manifestações de vontade, que não entram na classe das declarações de vontade, não são excluídas. Sempre que a omissão da exteriorização de uma intenção (vontade) poderia ser causa de prejuízo para alguém, e sempre que a exteriorização de uma intenção (vontade) seria de vantagem para essa pessoa, pode ela invocar a regra jurídica sobre protesto. Protesto é a exclusão prévia de alguma vontade, de conteúdo determinado, que se poderia inferir de alguma declaração, ou da falta ou incompletitude de alguma declaração, ou, mesmo, de alguma outra manifestação da vontade (e. g., comunicação de vontade), que não seja declaraçâo. Ao protesto que colima obstar à admissão de renúncia reconhecimento ou desistência, chama-se reserva. Ao que delimita, ressalva. 4. Integração de forma, O protesto, a notificação e a interpelação só têm antes (isto é, inicialmente) a cognição pelo juiz: não há julgamento depois. O deferimento é integrativo de forma, tendo sido dispensado o termo, superfluidade que de certo modo duplicava o ato de protesto (na petição e no termo) e, pois, também o mandado de intimação. Protestor, ou protestante, é o que em voz alta, para todos, mostra o que entende lhe cabe precisar (“palam declaro animum”, dizia Matias Martinio, Lexicon philologicum et praecipue etymologicum, coluna 2930). 5. Razões para indeferimento do pedido. O juiz indefere o pedido se o requerente não demonstrou interesse e o protesto, dando causa a dúvidas e incertezas, pode impedir a formação de contrato ou a realização de negócio lícito. A extensão com que se admitiu o protesto tinha de ser circunscrita pelo balancear dos interesses em causa. Exige-se que o protestante demonstre o seu interesse no uso da forma processual para a sua exteriorização de vontade, bem como a não-nocividade efetiva do protesto. O mesmo havemos de entender quanto às notificações e às interpelações. O autor tem o ônus de afirmar e o de provar. A tendência a admitir-se a impugnativa nos atos de protesto, notificação e interpelação, e a de se admitir, sem ela, ceda cognição, de oficio, observaram-se no direito luso-brasileiro, em diferentes épocas. Essa obtém o máximo que pode, excluindo-se aquela. Aquela levara Joaquim José Caetano Pereira e Souza (Primeiras Linhas, IV, 88) a permitir impugnação e embargos, com intimação do autor. A causa passava a ser de cognição quase completa. Joaquim Inácio Ramalho e Augusto Teixeira de Freitas acompanharam-no. Depois uniformizaram-se o processo

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civil e o comercial, cortando-se essa dilatação da cognição (Cf. Decreto nº 763, de 19 de setembro de 1890, e Regulamento nº 737, art. 392, verbis estes protestos não serão julgados). Quanto às notificações, até a metade do século se processavam embargos às notificações (2e Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 17 de janeiro de 1922, R,STF 50/183), confusão com o preceito cominatório. E a corrutela às vezes se contagiou às interpelações. Eram e são três espécies espúrias. 6.Cognição limitada e ato de coopera ção judicial. A resolução do juiz, no protesto, na notificação e na interpelação, é ato de cooperação judicial, mas de cognição limitada; não admite impugnação às comunicações de vontade ou de conhecimento feitas pelo protestante, notificante, ou interpelante; nem mesmo embargos à resolução (Tribunal de Justiça de São Paulo, 13 de fevereiro de 1905, SPJ VI/9 1; Corte de Apelação do Distrito Federal, 4 de janeiro de 1917, RD 46/363). No fundo, tais atos judiciais são os que ficaram ao juiz quando passou aos notários a voluntaria iurisdictio. No deferir o pedido de protesto, não pode o juiz manifestar-se sobre a existência ou inexistência dos direitos, inclusive futuros (2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 18 de agosto de 1947, RT 171/366); salvo se há inépcia da petição, ou ilegitimidade de parte. 7. Impedimento psicológico. Seria erro ver-se permissão de exame de má-fé no processo do protesto, da notificação ou da interpelação. Pense-se em dúvidas e incertezas criadas pelo ato judicial, “impedindo” a formação de contrato ou a realização de negócio lícito. Ora, nem o protesto, nem a notificação, nem a interpelação, tem efeito jurídico impeditivo. Trata-se pois, de impedimento psicológico, quer pela sugestão ao devedor, quer pela sugestão ao terceiro, ou aos terceiros. Se é certo que a lei permite certa cognição limitada, não se infira que mandou o juiz julgar o mérito de questão que não lhe foi posta (cp. Supremo Tribunal Federal, 27 de agosto de 1892, OD 161/227). Se é evidente que o protestante, ou notificante, ou interpelante, é estranho à relação jurídica em que a outra pessoa, ou outras pessoas, ainda o público, se diz estarem, ou se é evidente que ocorre caso de se servir o protestante para simulação, ou fim proibido por lei, ou má-fé, o juiz pode repelir o pedido; mas a sua cognição limitada é inextensível à apreciação, porque, se o fosse, importaria ação declarativa. Ora, nenhum desses processos (ações constitutivas) tem elemento de declaração ou de condenação suficiente para tal extensão. Já é muito que se per-mita ao juiz o que se permitiu, tanto mais quanto não se admitiu à outra parte afirmar. Fora dos casos evidentes, o juiz tem de entregar a sua prestação jurisdicional constitutiva — e só. Se o ato não teria efeitos porque lhos nega a lei, ou resulta das circunstâncias dos fatos, sabe bem ele que Non valet protestatio facto contraria e os prejudicados têm ação de dolo e ação de abuso do direito contra o protestante, notificante ou interpelante. Mas essa matéria pertence a outras ações, a outra cognição. A exigência da contentio inter partes veio do direito canônico (Adolf Wach, Handbuch des deu tschen Zivilprozessrecht, 48, nota 4); já não corresponde à concepção hodierna, e cada vez mais se distanciará dela. A angularidade, no estado atual do direito processual, somente é essencial a alguns processos, devido à eficácia especifica que se espera da sentença, atendido o princípio político de dever de ser ouvida a outra parte. A função e o interesse de realização do direito objetivo, postos à frente da função e do interesse de pacificação (Ne cives ad arma veniant), tornaram secundário o requisito de ser inter partes o processo. Concomitantes com essa evolução foram as tendências á estruturação social mais justa, pelo valor intrínseco das regras editadas, e a discriminação das diferentes pretensões pré-processuais, das diferentes “eficácias” das sentenças (e. g., a) coisa julgada material, sempre inter partes ou inter omnes, na sistemática do art. 472 do Código de Processo Civil; b) coisa julgada erga omnes e c) ultra partes, nas ações coletivas em que se versam IA) direitos difusos, c) coletivos e b2) individuais homogênos, bi) e c) se não improcedente a pretensão por falta de prova, b2) se procedente o pedido) e da natureza publicística do processo. 8. Diferentes decisões, recursos respectivos. O indeferimento inicial do protesto é indeferimento de formação de relação jurídica processual ou do mérito. Há recurso de apelação. Não há recurso do deferimento, porque o processo é inaudita altera parte. Sem razão, o Corregedor da Justiça do Rio de Janeiro (27 de maio de 1939, RI 28/45), que para o caso de indeferimento só admitia correição parcial. No direito anterior a 1939, o recurso era o de agravo (Supremo Tribunal Federal, 3 de setembro de 1910, OD 113/213).

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9. Inadmissibilidade de contraprotesto. O protesto, a despeito da largueza das aplicações, não admite contraprotesto, ainda que contenha certa afirmaçaõ. Trata-se como simples exteriorização de vontade; porque à notificação é que cabe a exteriorização de representação ou de idéia sobre qualquer acontecimento. Nas notificações, não se trata de regra, de declarações de vontade; e o reconhecimento da dívida em notificações tem-se como assentimento à verdade da relação jurídica, e não como declaração de vontade. Porém a impugnativa não foi admitida. Ainda em embargos de declaração, ou outros (2ª Cãmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 7 de novembro de 1911, RD 380 s.). As exteriorizações de resultado de fato (atos fáticos, “atos reais”), que não sejam por si, atos juridicos, escapam à notificabilidade, quando o elemento volitivo é presente e preponderante, ou, pelo menos, o elemento operacional. Assim, pode ser objeto de protesto de A o ter ele adquirido a posse, ou transmitido, ou estar a escrever a 2ª edição do seu livro; mas a notificação seria sobre o ter adquirido, ou o ter transmitido, ou o ter ou estar a escrever. Pode-se protestar quanto a ter ou não ter domicílio na cidade tal; e notificar-se de ter ou não ter domicilio em tal cidade. Essas exteriorizações notificatórias não se tratam como declarações de vontade (Peter Klein, Die Rechtshandlungen, 29 e 42). Temos, pois, que as notificações se baseiam em comunicações de conhecimento, permitindo, alhures, a aplicação do art. 319 do Código de Processo Civil. Note-se bem: alhures, noutro processo. 10. Impulso implícito no protesto, comparação com a notificação e a interpelação. O protesto é impulso do protestante, que pára nele; a notificação e a interpelação são impulsos do notificante ou do interpelante que suscitam impulsos do notificando ou do interpelado. As afirmações, se as há, do protestante e as do notificante ou do interpelante são tão ligadas à demanda que possa vir, ou à relação jurídica que se crie, ou modifique, ou extinga, tão fora do exame à parte, que não se admite, na relação jurídica processual (de regra), angularidade, isto é, contraprotesto, contestação ou impugnação, todas afirmações em contrário. O art. 319 é inaplicável ao destinatário do protesto, salvo excepcionalmente. Não havendo afirmação na interpelação, falta razão para ser aplicado. Quanto às afirmações do notificante, essas operam como afirmações, que prendem aquele que as fez. Para que se admita contraprotesto, é preciso que a lei abra exceção: tal lex specialis se trataria, então, como as demais leis especiais. Porém a proibição do contraprotesto não impede que aquele, contra quem se protestou, por sua vez proteste. E o contraprotesto. O protesto do que teve ciência de protesto e, com o seu, quer restringir, precisar, excluir ou manifestar alguma vontade, não é contraprotesto. E outro protesto. As suas manifestações é que podem ser contrárias, ou, até, complementares, alternativas, ou substitutivas das outras. E o protesto daquele que foi atingido por protesto (contraprotesto). 11.Exaustão da função julgadora Não há julgamento final do protesto, notificação ou interpelação. Toda a função julgadora se exaure com o deferimento ou indeferimento (cf. Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, art. 392). § 71. Notificações e interpelações judiciais 1. Processo das notificações. A notificação contém necessariamente, afirmações (comunicações de conhecimento). O que as fez cria a si mesmo a ligação ao que afirmou; talvez ligação ao que declare. Quanto à outra pessoa, tem a conseqúência de não poder ignorar o que se lhe notificou, desde que seja verdade. Aqui, o problema desce a pesquisa sutil: a) se o notificante faz comunicação de conhecimento verdadeiro, o notificado acarreta com todas as conseqúências de ter tido ciência da comunicação; b) se o notificante lhe comunica alguma proposição falsa, o notificado fica exposto às conseqúências de alguma preclusão ou prescrição de pretensão á sentença, que estabelecesse a falsidade, e em todo o caso não pode alegar não ter tido ciência do que, embora falso, se lhe comunicou. Na terminologia do Código, o ato processual, pelo qual se dá conhecimento de algum ato ou fato, é a intimação. Nela, não há outro elemento que a comunicação de conhecimento, razão por que se intima, não se notifica da sentença, nem se cita para os prazos da sentença. A notificação, sem dúvida, comunica e contém a intimação; mas há o plus, que é a provocação de atividade, positiva ou negativa, de outrem. Tanto as intimações quanto as notificações podem ser por editais (por exemplo, pluralidade de sujeitos). Em toda notificação há, como plus,

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comunicação de vontade, ou, às vezes, comunicação dirigida ao notificado. Esse é, na lei, o elemento notificativo, distinto e sobrejacente ao elemento intimativo, mas subjacente ao elemento citatário. Quando por exemplo o locador notifica o locatário de que dá por finda a locação, denuncia (exercício de direito formativo extintivo) e notifica. É preciso prestar-se toda a atenção a esses atos compósitos. O direito comercial não torna o protesto maritimo elemento insuprível. Apenas ao transportador passa o ônus de provar que não foi responsável (5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 12 de novembro de 1946, RF 113/413). 2.Processo das interpelações. Interpelação é exercício, ou pedido, ou exigência efetiva (efflagitatio). Só se dirige ao devedor; não se interpela o credor; ao credor, faz-se oblação. Quando a mora não se estabelece de plano, desde a exigibilidade do crédito, a interpelação é indispensável para que se produza: desde o momento em que o credor interpela o devedor é que começa a mora. Se a lei ou a convenção dá ao devedor o ônus dos riscos, ou outras consequências, e a mora do credor não se inicia de plano, a oblação serve ao devedor. A interpelação é meio de se exercer a pretensão que deriva do crédito: a oblação é o convite, da parte do devedor, ao credor, para que aceite a prestação. De regra, a oblação é real; pode ser verbal, em certos casos (dividas de vir buscar, ou se o credor declarou não receber a prestação). Se, porém, o credor tem de praticar atos preparatórios, que lhe incumbem e indispensáveis à execução pelo devedor, o devedor não pode interpelá-lo; bem assim se o credor tem obrigação de receber a prestação. Pode depositar em consignação, protestar etc. Se a mora do devedor não se estabelece sem interpelação, essa se diz necessária. Fora daí, é supérflua,%u tem intuito probatório. Por exemplo: se a lei estatui que haja denúncia regular, ou aviso. Não se exige que o credor interpele, nem se autoriza o devedor a esperar interpelação, se as circunstâncias fazem ser o devedor, em vez do credor, quem pode saber quando deve executar a obrigação. No direito brasileiro há a regra Fur sernper in mora (Código de 1916, art. 962). A interpelação também é inútil se o devedor declarou, sem dúvida de interpretação, que não executa a obrigação exigível; portanto, supérflua. O juiz da interpelação não entra na apreciação da inutilidade ou superfluidade da interpelação, porque julgaria extra petita. Nem, sequer, se lhe dá examinar a culpa do devedor, ou se, no caso, há exceção ao princípio de ser automática a mora, ou de ser objetiva a responsabilidade, não regida, então, pelo principio da irresponsabilidade do devedor em mora, se isento de culpa o devedor em mora. Porém é irrecusável que o principio de ser exigido o interesse do autor também se aplica às notificações e interpelações. O indeferimento da petição dá ensejo a recurso de apelação. A 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 13 de abril de 1947 (RF 114/427), entendeu caber ação anulatória, a requerimento do sócio prejudicado, se a notificação foi para se abster o notificado do arquivamento e registro de atos sociais. O assunto precisaria ter sido mais claramente exposto. A decisão do juiz não é sentença, e a rescisão é a de ato judicial que não depende de sentença ou em que essa é simplesmente homologatória (Código de Processo Civil, art. 486), isto é, como se decreta invalidade dos atos jurídicos em geral, conforme o direito material. Poder-se-ia discutir, diante de regra jurídica que permite o exame do interesse ou das possíveis conseqUências danosas, se há de considerar sentença o indeferimento. Tal decisão é sentença, e dela cabe recurso de apelação. Se foi deferido o pedido e o protesto, notificação ou interpelação, é ineficaz (e. g., não sendo o devedor o interpelado, a interpelação não o constitui em mora), pode o interessado propor ação declarativa negativa de ineficácia.

Capítulo XXIV

Ações de preempção ou preferência e ações de opção § 72. Conceitos 1.Direitos de preferência; nascimento. Os direitos de preferência nascem da vontade de alguém (contrato,

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declaração unilateral de vontade), ou da lei. As vezes, regras jurídicas permitem que a justiça use deles, a favor de alguém, por equidade, ou outro fundamento. A regra é que cada um é livre para constituir, modificar ou extinguir os negócios jurídicos. O vendedor vende o que quer e a quem quer, pelo preço que quer. Nada o obriga a escolher, excluir, ou pôr em escala os compradores. Nem, ainda, a vender determinada coisa, ou a não vender o que tem. O direito de preferência é direito, com a pretensão a estar, antes, em algum negócio jurídico, ou a praticar o ato que ponha quem o tem em ceda posição jurídica melhor do que a de outrem, ou a única. Não é possível preverem-se todas as suas espécies. A preferência pode ser constituída sem direito subjetivo, ou sem pretensão, ou sem ação. Quando o direito de preferência resulta de negócio jurídico — declaração unilateral de vontade, contrato, estatutos — as regras sobre a fixação do preço ou sobre como se hão de resolver as questões de concorrência entre preferentes, pertencem à interpretação dos atos jurídicos. Indaga-se qual a vontade das partes ou do declarante. O método e a técnica são os de exploração da vontade que se manifestou insuficientemente, ou sem a necessária claridade. Tenta-se explicitá-la. Se provém de texto legal, o que se procura é o ditame da lei, o seu valor em extensão, a sua abrangência conceptual. Têm-se de buscar as soluções ao método de fontes e interpretação das leis e à técnica de determinação do conteúdo das regras jurídicas. 2. Direitos de preferência e direitos de opção. Aos direitos de preferência e aos direitos de opção corresponde ação específica. Não só o comprador e o vendedor podem ser figurantes, nem só condôminos, nem só se exerce a ação em processo de alienação judicial. Direito de opção é o direito de constituir ou desconstituir relação jurídica contratual, ou negocial unilateral, mediante simples manifestação. Não só a relação jurídica do contrato de venda e compra pode ser constituída com o exercício do direito de opção. No direito de opção, quando se refere a contratar, há condição de contrato, que sô depende do exercício do direito, sem que haja, pendente, a oferta. Tudo se passa unilateralmente. Trata-se de direito formativo, à vezes criativo, às vezes modificativo, às vezes extintivo. A diferença entre o direito de opção e o direito oriundo do pré-contrato está em que, à base do direita de opção, não há crédito ou débito do outorgado e do outorgante, como há no pré-contrato. Quanto à outorga de opção, nem sempre os juristas examinam com atenção a figura. Pretendendo-se mesmo, e absurdamente, que se tratasse, apenas, de oferta irrevogável (e. g., Lorenzo Mossa, Diritto commerciale, 1, 300; Enrico Hedenti, Dei Contratti di alienazione a titolo oneroso, 69). Estar-se-ia diante da oferta com prazo, ou sem prazo, mas irrevogável por cláusula contratual. Primeiramente, a outorga de opção pode ser em contrato unilateral, ou em contrato bilateral, ou em negócio juridico plurilateral, ou em negócio jurídico unilateral. O contrato de opção é espécie. A outorga de opção é que é o gênero. Daí a falha do Código Civil italiano, art. 1.331, de só se referir ao contrato (verbis “le parti convengono”), aliás essa alusão descabida à aceitação. Primeiramente, é de admitir-se que o direito de opção. efeito, como é, pode resultar de negócio jurídico unilateral ou de contrato bilateral, ou, até, de negócio plurilateral. O que importa é que alguém tenha o direito a que corresponda outro direito do outro interessado, nem sempre outro contraente. A opção pode ser efeito de pacto adjecto, porém isso nada tem com a sua estrutura essencial. Tampouco se pode dizer que se origine sempre de contrato. Em comparação com o pré-contrato, há, na opção, direito a contrato, que se exerce unilateral-mente, porque já se quis o contrato pelo qual se opta, ao passo que, no direito formativo, ou modificativo, do pré-contrato, o que se pode querer é a conclusão ou modificação de contrato, atos futuros. Direito de preferência é o direito que alguém tem de preferir a outrem. Quem opta não prefere. Não há outra pessoa com quem se enfrente, com o mesmo intuito, e a que ela fira antes (pré-fira). 3.Pactos de preferência. O assunto refere-se a mais do que está no conteúdo das regras jurídicas em que só se fale de vendedor e comprador. Não basta que tenha maior generalidade se supõe pretensão de direito real (condomínio, enfiteuse). Temos, pois, de cogitar de ações de que no Código de 1973 se não falou. O que se há de regular é a notificação para exercício do direito de preferência. Nos casos de alienação de bens em conjunto, havendo três ou mais condôminos, o processo quanto a quinhões é o processo especial, com a citação para a apresentação das ofertas. Se a preferência é quanto ao bem todo, pela alienação judicial, o processo é outro.

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4. Direito de preferência. Se a coisa é divisível, nenhum direito à preferência têm os outros condôminos no caso de alienação da parte de algum deles, Tratando-se de prédios, a regra é a divisibilidade, tanto mais quanto, se a casa é em meio de terreno e é ela que parece fazer indivisível o terreno, sendo inferior ao terreno, ou estando em estado tal que melhor seja demoli-la, não se pode dizer que a divisão material do prédio atinja a substância. Naturalmente, se a lei tornou mínimo cedo tamanho de terreno que as partes “divididas” não satisfariam, então divisibilidade não há. Indivisibilidade é a indivisibilidade natural ou jurídica; mas, quando se trata de bem sujeito a constituição de renda, é só a jurídica. É principio básico que não pode o comuneiro em coisa indivisível alienar a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. Se são muitos os comuneiros, prefere o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se os quinhões forem iguais, haverão a parte vendida os comproprietários que a quiserem, depositando, previamente, o preço. O comuneiro, a quem não se der conhecimento da alienação, pode, depositando o preço, haver para si a parte alienada a estranhos, se o requer no prazo legal. § 73. Construção negocial do condomínio e preferência1.Vontade dos sujeitos. A regra é que os negócios jurídicos só dependam da vontade dos sujeitos de direito. As regras juridicas imperativas são excepcionais. O vendedor, ou doador, ou testador, vende, dá, ou deixa a quem quer. No caso de venda, o vendedor vende o que quer, a quem quer e pelo preço que quer. Nada, em principio, o obriga a escolher, excluir, ou pôr em escala os compradores. Tampouco, a vender determinada coisa, ou a não vender o que tem. Assim, existe arbítrio quanto ao objeto, quanto ao preço e quanto aos adquirentes, sujeitos da venda e compra. Tal principio abstrato é o primeiro princípio que se encontra em qualquer exame da atividade humana, se liberdade existe e se, no terreno econômico, se adota a autonomia da vontade. Mas: a) O vendedor mesmo, ou outro contraente, com a sua liberdade de declaração de vontade (contrato, declaração unilateral), pode, e muitas vezes é do seu interesse, voluntariamente se subordinar à obrigação de vender certa coisa, ou de vender só a alguém, ou de vender certa coisa a alguem, ou de preferir, em igualdade de condições, a alguém, a outrem, ou a quem quer que seja, ou a vender por cedo preço, ou por preço certo a alguem etc. b) A lei pode impor a obrigação de só vender a alguém, querendo esse, ou de se preferir a alguém etc. O direito de preferência é o direito que tem alguém a que, se outro quer vender, ou transferir algum direito, ou criar algum direito, a venda se lhe faça, ou consigo seja o negócio jurídico, ou a criação do direito, em vez de o ser com outrem, com o mesmo conteúdo (e. g., prazo, preço, condição). A referência aos mesmos pressupostos é de fazer-se, porquanto, se se conhecem direitos de comprar sob previstas cláusulas, são eles oriundos de promessas de venda e compro, ou de opções, no sentido estrito da palavra, e não direitos de preferência. 2. Direito de preferência de origem negocial. O direito de preferência é direito subjetivo; dele irradiam-se pretensões, possivelmente ações. Em consequência disso, o titular do direito de preferência, se esse não foi concebido como condicionado ou dependente de aviso prévio, não precisa pedir ao vendedor que lhe venda a coisa, nem propor ação, nem o seu advento depende de algum fato. Pode-se obter a coisa sem a cooperação do vendedor, desde que hajam concorrido todos os pressupostos que a convenção ou negócio jurídico unilateral, ou a Lei, haja fixado. Do óbice nasce a ação. Não há principio o priori, nem imperativo, que dê aos comuneiros direito de preferência às outras partes indivisas; nem, tampouco, aos consortes da comunhão pro diviso. Pode surgir direito de preferência de origem negocia1 ou de origem legal, ambos excepcionais e estritos. Seja como for, entra ele na classe dos direitos formativos geradores, a que, na terminologia alemã, se chamou “begrúndende Gestaltungsrechte”, pois que, por seu exercício, se tem por fito a formação de nova relação jurídica, ou a inserção do sujeito em relação jurídica já existente. De regra, é pessoal, e não real. 3. Interpretação do negócio jurídico. Os que compram em condomínio podem, entre si, convencionar algum direito de preferência, que se regerá pelo direito das obrigações. Outrossim, o que doa ou deixa em condomínio,

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inter vivos ou mortís causa. Tais direitos de preferência, resultantes de contrato, ou de declaração unilateral de vontade, ou de estatutos, são negociais, e a interpretação das proposições que os enunciam pertence à interpretação dos negócios jurídicos, a cujas regras — e não ás regras de interpretação das leis — se submetem. Indaga-se qual foi a vontade do declarante, ou dos declarantes. O método e a técnica são o de exploração do querer que se manifestou insuficientemente, ou sem a claridade necessária. Tenta-se explicitá-lo. 4. Direito de preferência de fonte legal. Quando o direito de preferência provém de texto legal, seria erro recorrer-se a quaisquer regras de interpretação dos negócios jurídicos, do querer. O que se procura, o que se explora, o que se quer fixar e colher, é o ditame da lei, o seu valor em extensão e a sua abrangência conceptual. Têm-se de buscar as soluções no método de fontes e interpretações das leis e na técnica de determinação do conteúdo das normas jurídicas. Por isso, o elemento histórico do direito passa à frente dos trabalhos parlamentares. Regra jurídica que dá ao comuneiro direito de preferência se outro comuneiro quer alienar é excepcional. Resta saber se é ius cogens, isto é, de direito imperativo, de direito que impede que se negocie em sentido contrário. Se o é, qualquer contrato, ou obrigação ou grupo de obrigações por declaração unilateral de vontade, que o infrinja, é nulo. Se é regra dispositiva, o criador ou os criadores do condomínio ou os próprios comuneiros podem dispor diversamente, e a regra jurídica não incidirá. Claro que não cabe discutir-se se é apenas interpretativa. Não no é, evidentemente. O direito conhece regras sobre direito de preferência que são imperativas. E. g., se a lei atribui direito de preferência aos acionistas nos casos de outros perderem pressupostos para serem titulares de ações ou de sucessão por pessoas que os perderem. As regras jurídicas de direito de preferência ex lege exigem exame à parte. É ele ius dispositivum, e não ius cogens, pois que o seu fundamento é o interesse dos comuneiros em que não entre na comunhão quem não lhes agrade, ou o de unidade e consolidação da propriedade. A venda a outro comuneiro exclui a incidência da regra jurídica; as benfeitorias de maior valor e o quinhão maior pesam a favor dos comuneiros, entre si. 5. Indivisibilidade natural e jurídica. A indivisibilidade, que é elemento do suporte fático da regra jurídica, é a física (natural), ou a jurídica, seja legal ou negocial (e. g., se foi deixada, com a cláusula de indivisibilidade, a casa ou a fazenda). As casas não são, a priori, divisíveis; e o quod plerumque fit é a indivisibilidade. A respeito da divisibilidade das coisas o problema é mais grave do que podem pensar os juristas sem preparo filosófico, O Código Civil brasileiro de 1916 (arts. 52 e 53) ousou edictar a definição: “Coisas divisíveis são as que se podem partir em porções reais e distintas, formando um todo perfeito’; mais: “são indivisíveis: 1. Os bens que se não podem partir sem alteração da sua substância. II. Os que, embora naturalmente divisíveis se considerem indivisíveis por lei, ou vontade das partes”. A respeito, nossos Comentários ao Código de Processo Civil, sob o art. 410. (No direito português de agora, depois do Decreto português nº 19.126, de 16 de dezembro de 1930, o direito de preferência, que têm os comuneiros, cabe, qualquer que seja a coisa, “indivisível ou indivisa”. Corrigiu-se para o errado. Copiamos o certo, e a crítica sem razão que aqui se fez à nossa fonte, que foi o velho art. 1.566 do Código Civil português, refletiu-se em Portugal. A redação de 1930 é indefensável, no fundo e na forma). 6. Comuneiro com direito de preferência. O comuneiro que tem direito à preferência não precisa ser notificado judicialmente— basta que se efetive a notificação extrajudicial, qualquer que seja o meio (telegrama, carta missiva, intermediário, memorando, telefonema), desde que, segundo as circunstâncias, seja em forma e fundo que ponha o comuneiro a par do lugar e tempo em que deve usar da preferência e saiba ele exatamente de que objeto se trata. A jurisprudência andou acertada em explicitar que a notificação judicial é desnecessária (Tribunal de Justiça de São Paulo, 25 de maio de 1923 e 14 de março de 1924, RT 46/ 408; 49/509). 7.Comuneiro ciente e comuneiro não ciente. Se ao comuneiro foi dado conhecimento da venda, ou da execução, tem de depositar o preço para haver a parte da coisa, ou as partes, que vão ser vendidas ou executadas. O prazo posto na lei, contado do conhecimento da venda, é somente para o caso de não ter o vendedor ou executado dada conhecimento — judicial ou extrajudicialmente — ao comuneiro. Se o comuneiro teve ciência, dada pelo outro

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cabe-lhe reclamar a preferência antes de assinado o auto de arrematação, ou de ser publicada a sentença de adjudi-cação. O pedido de remição afasta o de preferência. Se algum comuneiro quer haver a parte alienada sem lhe ter sido dada ciência da alienação, cabem-lhe o ônus de afirmar que é comuneiro, que o alienante foi omisso em notificá-lo e que ainda não passou o prazo, e o ônus de provar essas afirmações, principalmente a de não ter recebido o aviso, com a oportunidade para exercer o seu direito de preferência. Se foi informado, porém não exerceu a pretensão que era sua, a regra jurídica não o protege (Tribunal de Justiça de São Paulo, 10 de maio de 1930, RT 74/542). A publicidade não basta, se não há razão para editais de citação, ou se trata de simples publicação de editais de hasta pública, ou leilão. No acórdão da Corte de Apelação do Distrito Federal, de 18 de dezembro de 1912 (RD 47/598) julgou-se bem, posto que se houvesse usado de dois argumentos, um falso e outro verdadeiro (ter havido publicidade; ter estado presente à venda o comuneiro a que cabia direito de preferência). O prazo é preclusivo. Ou o comuneiro, que quer vender, dá conhecimento do seu propósito ao outro ou aos outros comuneiros, ou esse ou esses tinham, pelas circunstâncias, de conhecer o que ia ocorrer (e. g., foi o intermediário ou o mediador entre os futuros contraentes), ou o interessado ou os interessados desconheciam o que se passou. O ônus da prova de que o comuneiro interessado conhecia o negócio jurídico, que se concluiu, cabe ao comuneiro alienante. O prazo legal somente corre da data em que o interessado teve ciência. Cumpre que se não confunda o ônus de provar se não houve comunicação por parte do comuneiro alienante com ônus de provar que, a despeito disso, o interessado estava ciente. O registro do contrato de venda e compra ou o registro de qualquer outro negócio jurídico transíativo ou de pré-contrato não basta para que se tenha como ciente o interessado (1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 9 de outubro de 1958). O procedimento da ação do comuneiro há de respeitar preferência do outro comuneiro e afasta a invocabilidade do prazo preclusivo para a ação do comuneiro com direito de preferência. E sem razão dizer-se que a regra jurídica concernente a ação do alienante torna necessária a citação para todos os casos de ciência; apenas a exigiu, e não podia deixar de exigi-la, na ação do comuneiro que quer alienar. Não tendo havido ciência, se o comuneiro da coisa indivisível deposita o preço, cabe-lhe requerer que se avise o locatário de que a ele, e não mais ao vendedor, ou ao que adquira, se deve pagar o aluguel (Tribunal de Justiça de São Paulo, 28 de maio de 1931, RT 79/167), e pode usar desde esse momento das ações de posse ou de propriedade relativas à parte, ainda que o registro em seu nome dependa do julgamento da ação de depósito para aquisição, que é executiva-mandamental. Surge o problema do exercício do direito do comuneiro se o outro vendeu a sua parte a estranhos, sem se dar ao comuneiro notícia da venda. Ora, não pode um comuneiro em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quer, tanto por tanto. O comuneiro, a quem não se dá conhecimento da venda, pode, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requere no prazo legal. 2 Desde quando se começa de contar esse prazo? As soluções possíveis são as seguintes: o prazo preclusivo inicia-se a) no momento em que se vende o bem comum; b) no momento em que se transfere a propriedade; c) no momento em que o comuneiro tem ciência da venda, ciência, ex hypothesi, posterior à venda. A solução a) é de afastar-se, porque ainda não se operou a alienação (o contrato de venda e compra é consensual, o acordo de transmissão só tem efeito transíativo com o registro). Seria a opinião de Antônio Luís da Câmara Leal (Comentários ao Código de Processo Civil, V, 272 e 281). A ciência há de ser antes da venda e compra. Se não a houve, pode vir a dar-se após a assinatura da escritura, e desde ai se conta o prazo; se não ocorreu por ato judicial, há a publicidade oriunda do registro de imóveis, de modo que o prazo tem de ser contado desse dia. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 9 de outubro de 1958, reformou acórdão em que se contava o prazo conforme a solução a). Adotou a solução c), por ter lido o relator Luís da Cunha Gonçalves; mas é preciso advertir-se que, se é certo que o art. 1.139, 2ª parte, do Código Civil de 1916 fora inspirado pelo art. 1.566, § 1ª, do Código Çivil português, a lei brasileira, exatamente no que se refere o texto português ao inicio do prazo, não o importou. Lê-se no art. 1.556, § 1ª, do Código Civil português: “O comproprietário, a quem se não der conhecimento de venda, poderá haver para si a parte vendida a estranhos, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que tenha conhecimento da venda, depositando, antes de efetuada a entrega, o

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preço que, segundo as condições do contrato, estiver pago ou vencido’. Não são idênticas as duas regras jurídicas. Evitou-se, no texto brasileiro, qualquer alusão ao início do prazo, porque cai em sistema jurídico cujo regime de aquisição da propriedade imobiliária é peculiar e rígido. No direito português, Luís da Cunha Gonçalves, não podia dizer outra coisa que aquilo que escreveu; mas é fora de toda pertinência invocá-lo no direito brasileiro, que riscou, precisamente, a alusão ao “conhecimento da venda”. Não só. A afirmação de que o negócio jurídico é sem importância para o começo do curso do prazo não pode ter acolhida em sistema jurídico que dá eficácia aquisitiva à transmissão do título. Houve, na ação julgada pela IA Turma do Supremo Tribunal Federal, caso em que tinha havido arrematação (precedida portanto, por editais), tinha saido carta de arrematação, que é sentença, e se havia feito o registro. Quando a lei dá sanção à falta de notificação judicial a respeito de credor hipotecário, di-lo, explicitamente. Pode tratar-se de alienação de parte do bem, que pertence ao alienante, e apenas se cogitou de regular o exercicio do direito de preferência que tem o comuneiro. Não há nenhuma nulidade de aquisição da arrematação, se o comuneiro não teve conhecimento: apenas a lei lhe confere a ação para haver o bem, depositado o preço, se o faz no prazo legal. Se teve conhecimento antes, dessa data começou de correr o prazo;salvo se tal conhecimento foi em citação na ação proposta pelo comuneiro que vai alienar, porque então não há pensar-se em prazo, para ação de depósito para havet a parte alienada. Se a lei processual civil não trata de ação especial do comuneiro para haver a coisa cuja propriedade já se transferiu, a ação há de ser de rito ordinário. Se o registro foi de titulo sentencial, de que o comuneiro não teve notícia, a ineficácia é relativa e só enquanto não preclui o prazo legal para a ação de depósito e aquisição. 8. Aluguel. Há também direito de preferência do comuneiro se estranho pretende alugar a coisa comum. Se dois comuneiros ou mais querem a locação — ou um deles propõe mais, ou se disputa em juízo. Regras jurídicas não há que resolvam o problema se todos se conservam nas mesmas situações. O juiz não tem, aí, como aliás é assente, arbítrio puro: examina as garantias resultantes das pessoas dos interessados, a maior conveniência de todos, ou da maioria. Se a coisa é divisível em seu uso, pode o juiz decidir por esse aluguel de partes, que correspondem aos comuneiros, ou seja em proporção dos seus quinhões, salvo se há razões para se afastar a divisão da locação, a despeito da sua praticabilidade. Se os comuneiros não pretendiam arrendar o prédio, e um dos comuneiros se apresenta para ocupar parte que corresponda à sua fração, ou menos, e só então o outro ou os outros comuneiros reclamam o aluguel de todo o prédio, defere-se ao comuneiro o que pediu (Manuel de Almeida e Souza, Tratado histórico, enciclopédico, crítico, prático sobre todos os direitos relativos a Casas, 145), e só se aluga o resto que, ex hypothesi, é separável. Os discordantes podem, em todo o caso, pedir a divisão da coisa, segundo os princípios. No caso de executar-se a coisa ou parte indivisa, persiste até a assinatura do auto de arrematação, ou a publicação da sentença de adjudicação, o direito de preferência, tanto por tanto. 9. Direito de preferência e direito de opção. Direito de preferência é o que se cria a favor de alguém, no caso de alienação de parte indivisa ou de apartamento, que é composto de parte divisa e de parte indivisa, em igualdade de termos de oferta. O de preempção, ou preferência a favor do alienante, é a favor do alienante do apartamento, não se pode ceder, nem é, sequer, hereditário. Não se pode pensar nele ao interpretar-se o regulamento, pois nesse não figuram alienantes. Quanto aos direitos de opção ou empção e de preferência a comuneiros, que são direitos formativos geradores (begrúndende Gestaltungsrechte), a inclusão deles no regulamento tem valor de direito pessoal e não de direito real. Nem se confundem com a promessa de venda e compra ou de venda, que há de ser registrada; porque essa não é direito formativo gerador. Alienada a coisa, tem o preferente ação para exigi-la de terceiro que a haja adquirido, ou para reclamar a indenização correspondente. Não se estabeleceu alternatividade de pretensão do prejudicado no seu direito de preferência (exigir a coisa ao terceiro ou pedir ao alienante perdas e danos); apenas figura-se o caso de ser direito real o de preferir, ou de ser pessoal. No direito processual civil a primeira proposição é inútil, porque repete, apenas, o direito material, sem ter estabelecido, como fora de esperar-se, a forma do processo para a ação de reivindicação em tais espécies. A

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segunda não o é menos. A interpretação que atribui a texto de tal conteúdo ter elevado os direitos pessoais de preferência, tal como se criam no direito material, à categoria de direitos reais, aberra dos princípios, porque a reivindicação não é efeito colável aos efeitos materiais, pela lei processual: é sanção de direito material que se exerce erga omnes, contra os efeitos do negócio jurídico que o violou. Aquela interpretação (Ataliba Viana, Ações especiais, 43; Jorge Americano, Comentários ao Código de Processo Civil, II, 117) não vale, ainda para se dizer que o legislador processual não podia fazê-lo (J. M. de Carvalho Santos, (código Civil brasileiro interpretado, IV, 289). O legislador podia fazê-lo; apenas, quanto a legislador processual, não devemos, ainda na dúvida, entender que redigiu regras de direito material: temos de supor que não as formulou, salvo se são expressas. Nesse momento, seria legislador de direito material, e não processual. A preferência entre comuneiros tem de ser conforme o valor maior ou menor dos quinhões, ou segundo outro critério, inclusive a sorte. § 74. Ação e direito de preferência 1. Ação do dono do bem em caso de cláusula de preempção ou preferência. Quem é dono do bem ou titular de direito, a respeito do qual há a cláusula de preempção ou de preferência, se quer alienar a propriedade, ou o direito sobre o bem, pode notificar a pessoa que é titular do direito de preempção, ou de preferência, para que exerça o seu direito. A petição tem de mencionar o nome da pessoa a que se vai transferir o direito, o preço ajustado, as cláusulas negociais e o lugar, dia e hora em que se há de concluir o negócio jurídico de alienação. Se a alienação exige a escritura pública, há de ser designado o Cartório de um dos tabeliães do lugar, ou do tabelião, ou, se o negócio jurídico de alienação não depende de assinatura pública, basta indicar-se o cartório do juiz em que se pediu a notificação. Se um dos interessados não comparecer, o escrivão dará certidão ao outro, que lhe peça. 2. Espécies e ações. a) O direito de preempção é pessoal, razão por que o terceiro adquirente é incólume, e o prejudicado só tem contra o alienante a ação de perdas e danos. O negócio jurídico não é condicional. b) Também existem direitos de preempção de origem legal, como aquele que se estabelece a favor da pessoa a quem se desapropria o bem se ao bem desapropriado não se dá o destino para o qual se desapropriou. Em verdade, uma vez que o preço é o mesmo pelo qual se fez a desapropriação, na retrocessão há plus em relação ao direito de preempção oriundo de cláusula incerta no contrato de venda e compra. Ao titular do direito desapropriado não cabe ação de reivindicação do bem desapropriado se a entidade estatal desapropriante lhe não respeita o direito — pessoal — de retrocessão: a ação é a de perdas e danos. Antes da alienação pode o desapropriante propor a ação para que o titular do direito à retrocessão exerça o seu direito. c)A ação também, pode ser proposta, contra o senhorio direto, pelo enfiteuta, ou pelo senhorio direto, contra o enfiteuta. Idem, contra senhorio, contra o enfiteuta e contra subenfiteuta, ou vice-versa. Tem ação o condômino contra o outro condômino se indivisível o bem, ou que se tornaria, com a divisão, imprópria ao seu destino, preenchidos os pressupostos legais para tal ação. O notificante tem, na petição, de mencionar: o nome da pessoa a quem vai ser alienado o bem; o preço ajustado e as cláusulas do contrato; o lugar, o dia e a hora em que vai alienar, tempo que não pode ser inferior ao que se fixa na lei, a contar da notificação. § 75. Processo das ações 1. Notificação “sine-clausula”. Ponhamos de lado a questão de koa terminologia para se designarem•~as situações jurídicas em que alguém se acha para “poder’ criar, modificar, ou suprimir direito, a seu próprio favor, ou de terceiro. Ou daqueles, subespécie dos direitos formativos, Gestaltungsrechte, em que se tem por fito excluir outros que desejam o mesmo direito. A linguagem jurídica do pais está a generalizar a expressão “direito de preferên cia”, para significar esse passar à frente dos outros, com fundamento jurídico (direitos formativos geradores). Alguns deles são ditos “de opção”, em linguagem comercial, mas em opção só se há pensar se não há verificação de potior. O que importa ésaber-se se a notificação, dita interpelação, pode ser estendida, diante de referências e “ações de preempção ou preferência” e do “direito de opção”, àquelas preferências similares à da venda e compra,

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adjectas a outros contratos, e. g., ao de locação de prédios. A resposta é afirmativa. Aliás, o processo é mera notificação sem cláusula”. Foi pena que os legisladores não houvessem criado, a respeito, solução nova, à semelhança do preceito cominatório. E aqui surge a segunda questão: às pretensões de que resulta atividade constitutiva de direitos (= exercício de direito formativo) correspondem obrigações de fazer? Se correspondem, cabe aplicar-se o que concerne ao preceito cominatório; se não correspondem, está excluido. 2. Ações proponíveis. Praticamente, as obrigações de emitir declaração de vontade dão ao titular da pretensão três ações: (1) a de preceito cominatório; (2) a de emissão de declaração de vontade; (3) se há direito de preempção ou preferência, ou opção, alguma das que a lei prevê. a) Na promessa de venda e compra, há promessa de contratar: declara-se, prometendo-se venda e compra; de modo que se promete propor. Tanto o promitente vendedor quanto o promitente comprador concluem promessa de contratar venda e compra, nem aquele vende, nem esse compra. Se temos o negócio jurídico como em linha ABC, podemos dizer que ambos param em B. Não é isso, de maneira nenhuma, o que se observa quando alguém, em vez de prometer, vende, e outrem, em vez de prometer, compra; nem, sequer, o que ocorre quando alguém presta, desde logo, toda a sua declaração de vender, sem que o outro contraente preste toda a sua declaração de comprar. b) No contrato de opção, tudo se passa como se, na ocasião da assinatura da escritura de venda e compra, em vez de o tabelião dizer que os contraentes estavam de acordo em que um vendesse e outro comprasse, apenas escrevesse que o vendedor declarou vender e o comprador se reservou somente declarar depois, querendo: concordou em que o vendedor vendesse e em que lhe ficasse o direito de opção, no que também concordou o vendedor. Um vende, porém o outro ainda não compra, e talvez não chegue a comprar. À promessa de venda e compra faltam duas declarações, que são objeto da promessa, isto é, das declarações de agora. No contrato de opção, não: o que deu a opção já emitiu toda a sua declaração de vontade e nada mais lhe resta fazer; o que tem o direito de opção é que pode, dentro do prazo, emitir a sua. E exatamente essa declaração de vontade, que falta; e essa declaração de vontade não foi, sequer, como a declaração de vontade do promitente comprador, na promessa de venda e compra, prometida. O que opta pode não declarar, porque não prometeu. A diferença também se manifesta quando ocorre desapropriação pelo Estado. O promissário comprador não mais pode exigir a execução da obrigação de declarar; ao passo que o titular do contrato de opção pode, ainda, optar, e contra ele é que se dá a desapropriação, passando a ser o legitimado na relação jurídica processual. Como construir-se a ação do titular do direito de opção, que as leis às vezes encambulham com a de preferência, e não tem nem precisa ele de ação contra o vendedor? Ele opta, e basta. A “notificação” não teria sentido. Que quereria ele que o vendedor fizesse? Nada prometera fazer, ou declarar. A notificação só teria sentido para se lhe entregar a coisa. Por outro lado, não precisão titular do direito de opção protestar pela preferência. Ele opta, não prefere. 3. Direitos formativos. (a) Se a lei, quase definindo o “direito de preempção”, verbis “o comprador de coisa adquirida com cláusula de preempção”, restringe, literalmente lido, o seu objeto ao contrato de venda e compra, a respeito do qual se diz que a preempção impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que esse use de seu direito de preleção na compra tanto por tanto. Direito pessoal. O terceiro adquirente é incólume; e o prejudicado somente tem contra o alienante a ação de perdas e danos. O negócio jurídico não é condicional; é puro. (b) Existem também as preempções de origem legal, como a preempção a favor do que foi expropriado se o bem desapropriado não tiver o destino para o qual se desapropriou. Em verdade, uma vez que o preço é o mesmo por que se desapropriou, a retrocessão possui plus em relação às preempções do contrato de venda e compra. Não cabe ação ao desapropriado para reivindicar a coisa desapropriada se o desapropriante lhe não respeita o direito pessoal de retrocessão: a ação é a de perdas e danos. Antes da alienação pode o desapropriante usar do processo especial à preempção para que o desapropriado use de seu direito à retrocessão. (c) O processo também pode ser usado, antes da alienação contra o senhorio direto, pelo enfiteuta quanto ao seu direito, ou pelo senhorio direto, contra o enfiteuta, no caso de querer vender o direito real. Contra o terceiro adquirente, não cabe o processo. Idem, em se tratando de terceiro, quanto ao senhorio, ao enfiteuta e ao subenfiteuta. (d) O comuneiro pode usar do processo especial contra o outro comuneiro para que ele

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exerça o seu direito com base nas regras jurídicas em caso de bem indivisível. 4. Petição. O notificante é obrigado a oferecer, e na petição tem de mencionar: o nome da pessoa a quem vai ser vendida ou dada em soluto; o preço ajustado, as cláusulas do contrato; o lugar; o dia e a hora em que vai alienar, que não pode ser antes de expirar o prazo legal a contar da notificação para os bens móveis e para os bens imóveis. 5. Titular do direito formativo. O titular do direito formativo tem a faculdade de notificar; o comprador, o dever de notificar, dito, às vezes, acertadamente, de interpelar. A notificação, que é feita, aliás, por meio de citação, tem os efeitos de constituir em mora, prevenir a jurisdição, interromper a prescrição. Aqui, mais se justificaria falar-se de interpelação. Não o de tornar litigiosa a coisa, porque esse efeito depende de litígio sobre a coisa. Não é, pois, inútil. 6. Efetivação da venda. Pode o preferente impedir a efetivação da venda ao terceiro? Mediante simples interpelação, de modo nenhum. Seria simples “interpelação” sine clausula. Tratando-se de ação para a emissão de declaração de vontade, sim. As vendas, em tais casos, não são nulas; são ineficazes. As considerações que acima fizemos servem a que se analise e se meça a eficácia dos julgados, cuja constitutividade positiva é preponderante. Mas o que é essencial é que se atenda às consequências dos pesos eficaciais das decisões proferidas, conforme as espécies.

Capítulo XXV

Ações de autorização de venda, de aluguel e de gravação § 76. Conceito e natureza 1. Precisões quanto a sub-rogação e autorização de venda, de locação e de gravação. Quem primeiro trata da ação sub-rogação e passa a tratar das ações de venda, aluguel e gravação, logo percebe que há um plus naquela. Indo-se do mais simples para o mais composto, ter-se-ia de primeiro falar dessas do que daquela. A autorização judicial tem conteúdo diferente, ali e aqui. A comparação é interessante para se classificarem as ações dos dois grupos, porém não suficiente, uma vez que o plus não as desloca de classe. As ações de sub-rogação não só substituem um bem por outro: substituem uma coisa por preço, ou por outra coisa, ou, em duas operações, uma coisa pelo preço e o preço por outra coisa, e submetem essa substituição a juridicização. A sub-rogação é substituição patrimonial no plano jurídico, e não só no material (econômico). Quando alguém vende um prédio, o preço não sucede ao prédio: a substituição só se passa no plano fático, e não no jurídico. Ora, nos processos das referidas autorizações há menos do que isso: se há substituição, é somente no plano material. 2. Converter e sub-rogar. Converter não é sub-rogar. Sub-rogando-se, converte-se; porém não vice-versa. Aliás, converter constitutivamen te não é converter executivamente § 77. Espécies 1. Exame das espécies. Vejamos um por um dos processos: a) A ação de autorização de venda ou ação de licença de venda é ação constitutiva, que consiste em se autorizar a venda e compra (negócio jurídico bilateral); portanto, a se contrairem as obrigações decorrentes do contrato de venda e compra e a cumpri-las. O juiz não manda vender, autoriza a venda (constituição integrativa prévia de negócio jurídico alheio). b) A ação de autorização para arrendamento ou aluguel é, como a ação a), ação de constituição, e a autorização integra o negócio jurídico, embora seja prévia a decisão do juiz. Aí a diferença entre autorizações ou licenças, que integram previa-mente, e as homologações, que integram posteriormente.

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c) As ações de autorização para hipotecar, ou, em geral, gravar, são constitutivas integrativas, mais próximas da ação de sub-rogação, porque apanham a coisa e a submetem; porém não se confundem com a ação de sub-rogação: falta-lhes a substituição. d) As ações de venda ou de gravação dos bens dotais ou são ações de sub-rogação ou ações de venda ou gravação. 2. Eficácia sentencial. A constitutividade preponderante aparece em todas as sentenças favoráveis que se proferem em tais ações.

Capítulo XXVI

Ação de alienação judicial § 78. Precisão do conceito de alienações judiciais 1. Alienações judiciais por lei ou necessidade objetiva. A despeito da generalidade do nome, as alienações judiciais de que aqui se trata não compreendem todos os casos de alienações judiciais, nem a arrematação dos bens executados. Aos casos apontados falta a razão suficiente da execução. Uns supõem “fácil deterioração”, ‘avaria”, “grande despesa para a guarda” dos bens; outros, não caber no “quinhão de um herdeiro”, ou “não admitir divisão cômoda”, o bem a ser partilhado; outros, “ser indivisível a coisa comum”, ou se tornar “imprópria ao seu destino”, outros, terem de ser vendidos, com a autorização judicial, os bens de incapazes. A arrematação tem outra motivação, que lhe é intrínseca, converter, para executar o Estado a obrigação. 2. Ação de nulidade ou anulação de testamento e alienação judicial. A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 27 de julho de 1945 (RF 107/495), decidiu que, proposta a ação de nulidade ou de anulação de testamento, começa o interesse do autor nos bens do espólio e pode opor-se à alienação de algum bem. E muito vago. O que o autor pode requerer é a assistência segundo os arts. 50-54 do Código de Processo Civil, ou a medida cautelar dos arts. 798, 822 e 826. A alienação do imóvel, no processo de partilha, por se não pôr no quinhão de um herdeiro, ou de dois ou mais herdeiros, que o queiram em comum, é alienação para se levar por diante a partilha. Há alienação para a finalidade de ação executiva lato sensu. Idem, nas de ações para que os condôminos deliberem sobre administração, venda ou locação ou adjudicação da coisa comum, ou de ação quanto ao bem herdado indivisível. As alienações de bem de incapazes também supõem necessidade para a venda e obedecem a pressupostos de direito material. Não quer dizer isso que bens de incapazes (e. g., quotas hereditárias) não possam achar-se entre bens em condomínio ou em herança ou necessitados de reparos ou de cuidados, que induzam à venda. Se os bens de que se cogita pertenceram a incapazes, não se dispensa a autorização judicial para a venda, se exigida pelo direito material. Passa-se o mesmo quanto às espécies de coisa comum indivisível, ou que se tornaria, com a divisão, imprópria ao seu uso. A respeito da quota hereditária, o juiz do inventário e partilha é que decide enquanto não há adjudicação do bem do incapaz. § 79. Procedimento 1.Constrição judicial para alienação. Nos casos expressos em lei e sempre (Código de Processo Civil, art. 1.113, caput) que ocorra fácil deterioração, avaria, despesa excessiva, cabe a alienação judicial. Esses motivos são exemplificativos. A premente conveniência da alienação, fazendo-a necessária, basta a compor o motivo; nunca a simples conveniência ou vantagem, ainda de vulto e extraordinaria.

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Nos casos expressos em lei entram, por exemplo: a venda imediata em leilão de coisas vendidas com reserva de domínio; a alienação de bens móveis e semoventes, das heranças arrecadadas; a venda por necessidade do que foi arrecadado como herança jacente; a venda de bens de incapazes; a venda de bens dotais, em hasta pública, mediante edital; a venda do achádigo. 2. Alienação judicial, noutras espécies que as previstas. A alienação pode ser judicial sem que se trate dos casos expressos em lei e dos de arresto, seqúestro, depósito ou penhora. Outros há em que o juiz mantêm sobre a coisa poder de vedar a disposição ou de dispor da coisa, e a alienação é judicial. O Supremo Tribunal Federal, a 10 de abril de 1929 (AJ 10/374), decidiu que a venda, realizada em juízo, de embarcação atingida por dívidas privilegiadas, a requerimento do proprietário, era venda voluntária, pois que a coisa não se achava penhorada, nem sequestrada, nem depositada. De modo que, segundo o raciocínio do Supremo Tribunal Federal, os créditos acompanhariam a embarcação vendida, gravando-a. Sem razão. Ou a venda prescindia de motivação e era livre de fazê-la o proprietário, desconhecendo o direito brasileiro a venda em juízo a líbito dos donos, o que rebaixaria os juizes à função dos notários, empurrando-os para o tempo da velha voluntaria iurisdictio; ou a venda foi deferida, após cognição de motivo para vender e com as cautelas judiciais, e. g., depósito do preço, e então se operou a sub-rogação real, segundo os princípios. Se a alienação tem de ser judicial, ou se é permitido não ser em basta pública, responde, primeiro, o direito material. Se há divergência de regras no direito processual e no direito material, entende-se que as daquele são gerais, e essas, especiais, se na hipótese, exigem a hasta pública. 3. Decisão de ofício quanto à alienação judicial. Os casos em que o juiz pode ordenar de ofício a alienação são aqueles em que: a) a lei lhe dê responsabilidade pela guarda da coisa e sua conservação; b) tendo-lhe sido aberta a cognição, estaria prejudicado, sem ela, interesse de incapaz ou de público (e.g., perigo para a saúde pública: doenças contagiosas de animais, deterioração de certos gêneros etc.), sendo de notar-se que, aí, a determinação da venda é que é de ofício, sem ser provocado pelo juiz o processo; c) quando a alienação judicial seja ordenada em lei dirigida aos juizes; d) nos casos expressos em lei e naqueles em que, sem a alienação, o processo mesmo, com prazo para terminar, não andaria sem ela. 4.Avaliação como pressuposto necessário. Exige-se sempre a avaliação para servir de base à venda, salvo se os bens foram, antes, avaliados judicialmente. Não se estabeleceu tempo em que valha essa avaliação anterior. Entenda-se, porém, que se exclui o seu valor se ocorre alguma das espécies em que se há de proceder à reavaliação (erro ou dolo dos avaliadores, descoberta de gravames ou de defeitos). Quid iuris, se for provada a sua imprestabilidade pelo tempo decorrido? Essa imprestabilidade tem na hasta pública o ensejo de ser confirmada; e nada obsta a que o preço antigo sirva de base para a hasta pública. Atende-se sempre à correção monetária. 5.Lanço igual ou superior ao valor estimativo. Há o princípio que rege as vendas ao público: “a quem der mais”. Sempre que há estimação de valor, toma-se por base esse. Se não houve lanço igual ou superior, outra comunicação de vontade expressa o juiz, mandando que se venda pelo preço obtido. O orgão da alienação não tem autoridade para emissão dessa vontade, essencial à declaração de vontade que vai constituir o negócio jurídico da alienação judicial, qualquer que seja, nela, o papel do juiz. Pode ser a de simples elemento de cooperação (constitutiva integrativa), como acontece nas vendas de bens de incapazes; ou constitutiva, como se dá nas vendas de bens penhorados, que é feita pelo Estado mesmo, sem qualquer declaração de vontade dos donos dos bens. O poder de conversão passara ao Estado. 6.Interessados e alienação sem ser em hasta pública. Os “interessados”, que podem preferir a alienação “particular”, quer dizer, a alienação sem ser em hasta pública são os donos dos bens arrestados, sequestrados, depositados ou penhorados, ou, por outra razão, subordinados ao processo de alienação judicial, desde que capazes e concordantes. A construção, pelo menos em que, sem a alienação, o processo mesmo, com prazo para terminar, não andaria sem ela. 4. Avaliação como pressuposto necessário. Exige-se sempre a avaliação para servir de base à venda, salvo se os bens foram, antes, avaliados judicialmente. Não se estabeleceu tempo em que valha essa avaliação anterior. Entenda-se, porém, que se exclui o seu valor se ocorre alguma das espécies em que se há de proceder à reavaliação (erro ou dolo dos avaliadores, descoberta de gravames ou de defeitos). Quid iuris, se for provada a sua

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imprestabilidade pelo tempo decorrido? Essa imprestabilidade tem na hasta pública o ensejo de ser confirmada; e nada obsta a que o preço antigo sirva de base para a hasta pública. Atende-se sempre à correção monetária. 5. Lanço igual ou superior ao valor estimativo. Há o princípio que rege as vendas ao público: “a quem der mais”. Sempre que há estimação de valor, toma-se por base esse. Se não houve lanço igual ou superior, outra comunicação de vontade expressa o juiz, mandando que se venda pelo preço obtido. O órgão da alienação não tem autoridade para emissão dessa vontade, essencial à declaração de vontade que vai constituir o negócio jurídico da alienação judicial, qualquer que seja, nela, o papel do juiz. Pode ser a de simples elemento de cooperação (constitutiva integrativa), como acontece nas vendas de bens de incapazes; ou constitutiva, como se dá nas vendas de bens penhorados, que é feita pelo Estado mesmo, sem qualquer declaração de vontade dos donos dos bens. O poder de conversão passara ao Estado. 6. Interessados e alienação sem ser em hasta pública. Os “interessados”, que podem preferir a alienação “particular”, quer dizer, a alienação sem ser em hasta pública são os donos dos bens arrestados, sequestrados, depositados ou penhorados, ou, por outra razão, subordinados ao processo de alienação judicial, desde que capazes e concordantes. A construção, pelo menos a respeito dos bens penhorados, não é fácil: a penhora invade a esfera jurídica do executado, tirando-lhe a disposição eficaz dos bens, que passa ao Estado. Se ocorre algum dos motivos para a venda necessita tis causa dos bens penhorados, a constrição desses bens não muda: a alienação “particular” é de bens de que só o Estado pode dispor, de modo que a declaração de vontade é a do Estado, a despeito de ser feita, fora da hasta pública, a alienação. O legislador, deslizando pela superfície dos conceitos, não percebeu quanto estava, por baixo deles, de realidade juridica. Interessados, na venda de bens penhorados, não são somente o exequente e o executado; são outros credores que se apresentam com preferência, ou de outras penhoras. Feito o alvará para essa venda fora de juízo, é inelidível que esse alvará contém a declaração de vontade do Estado, os bens continuam penhorados (arrestados, sequestrados, depositados etc.), até que se alienem e sejam entregues. Enquanto não se deposita o preço, para que a sub-rogação real se opere, a do bem persiste. Sempre que o negócio jurídico, como é o caso dos bens penhorados, é negócio jurídico do Estado, e não do dono dos bens, o dono coopera com esse, ainda que se lhe permita vender, particularmente, bens que estão à disposição do Estado e só o Estado os pode converter. Daí deriva, por exemplo, a responsabilidade do Estado e, eventualmente, do juiz, nas alienações judiciais que foram feitas contra a lei (e. g., sem ocorrência de suficiente motivo) ou com dolo. Cumpre não se pensar que a venda dita, no Código de 1939, particular, em lugar de alienação em juízo, é a alienação não-judicial. Acertadamente, o Código de 1973, no art. 1.113, § 2ª, riscou a referência a venda particular, que estava no Código de 1939, art. 704, § 2ª. As alienações não se dividem em alienações judiciais e alienações particulares. A alienação particular é apenas o oposto à praça e ao leilão: a alienação que não é ao público. Não se dispensou a judicialidade de venda. Termo mais técnico seria a alienação fora de hasta pública, ou “nãopública”, ou “não ao público”. A alienação em hasta pública é combinação da venda e compra com a declaração unilateral de vontade. A outra é por declaração bilateral. À “alienação judicial” o que se opõe é “alienação extrajudicial”, alienação de direito material puro. 7. Alvará. E indispensável o alvará, pois que o Estado chamou a si o poder de dispor, ou de autorizar, e a alienação judicial, posto que “alienação particular”, isto é, sem hasta pública. Hasta pública e judicialidade não são conceitos coextensivos. É de toda importância não se confundir com a alienação “particular” a alienação “por iniciativa particular” nas ações executivas, quanto a bens penhorados. A alienação particular é limitada, de ordinário, aos casos de fácil deterioração, avarias ou grandes despesas para a sua guarda, ou de evidente vantagem. Fora daí, ela não cabe. Após a alienação, deduzidas as despesas, deposita-se o preço em que fica sub-rogado o arresto, sequestro, penhora, ou qualquer gravame ou destinação. 8. Sub-rogação real. Nos casos de arresto, sequestro, depósito, penhora etc., o bem está sob as ordens do Estado, a que, de regra, porém não em todos os casos, exceto os de penhora, passou a disposição do bem. Até que se opere a

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sub-rogação, o bem continua sob essa constrição estatal. O depósito do preço, deduzidas as despesas, tem função apenas cautelar, para que se evite a perda ou o desvio do objeto em que se dará a sub-rogação real. Nenhum ato é preciso, a mais, para que se efetue. A sub-rogação acontece ipso iure no momento da alienação judicial ou da chamada alienação particular. Quer nessa, quer naquela, o preço, deduzidas as despesas, é depositado antes de se entregar a coisa, ou de se instrumentar a transferência. Não há transferência sem a sub-rogação da coisa pelo preço, deduzidas as despesas; porque somente com a sub-rogação cessa a constrição estatal. Nos casos de outras vendas em que o bem não está constrito pelo Estado, o poder de vigilância do juiz toma a intensidade que a espécie exige. Sempre, porém, que a sub-rogação real se tem de dar, o depósito prévio é necessário. O preço fica in locum rei; e ai termina a eficácia das sentenças de alienação judicial; não é esse ato, em seqUência de atos — como a arrematação, que é ato de conversão, como os outros, mas em seqUência de atos executivos. A simples autorização do juiz, ou o suprimento do assentimento de pessoa que deveria assentir ao ato de outrem, não faz judicial a alienação, se se trata de ato do juiz integrativo de negócio jurídico de direito privado, sem a constrição estatal, ou sem a vigilância do Estado quanto ao ato da venda. Tudo se passa em três momentos: a) permissão da alienação; b) alienação e sub-rogação no preço; c) sub-rogação na coisa adquirida. Ou só em dois: a) e b), se é caso de poder ficar o preço sob a constrição. 9. Espécies apontadas. Há ação de alienação judicial, exemplificativamente: a) quanto ao imóvel que, na partilha, não cabe no quinhão de um só herdeiro, ou não admite divisão cômoda, salvo se adjudicado a um, ou mais herdeiros acordes; b) quanto a coisa comum, indivisível, ou que, pela divisão, se tornaria imprópria ao seu destino, verificada previamente a existência de desacordo entre os condôminos, quanto à adjudicação a um só; c) quanto aos bens móveis e imóveis dos órfãos, nos casos em que a lei o permita e mediante autorização do juiz. O art. 1.117 é exemplificação do art. 1.113, pr. Submete os casos dos incisos 1-111 ao procedimento dos arts. 1.113-1.116. No caso de alienação judicial de coisa comum, prefere-se em elementos iguais de oferta: o condômino ao estranho; entre condôminos, o que tem na coisa benfeitorias mais valiosas, e, à falta, o que tiver quinhão maior. Se feita sem observância das preferências legais, a alienação de coisa comum, o condômino prejudicado pode requerer, antes da assinatura da carta, o depósito do preço e a adjudicação da coisa, citados os demais condôminos e o adquirente para dizerem de seu direito, observando-se o art. 803 do Código de Processo Civil quanto ao procedimento. O preço reparte-se proporcionalmente entre os herdeiros ou condôminos. 10. Comunhão hereditária. O imóvel, que, na partilha, não cabe no quinhão de um herdeiro, nem admite divisão cômoda, nem a respeito dele, se chega a acordo quanto à reposição pelo herdeiro, nem quanto à inclusão no pagamento de dois ou mais herdeiros, que fiquem em comum, tem de ser vendido, necessitatis causa. A equiparação aos casos do art. 1.113 do Código de Processo Civil é fácil de compreender-se. A regra jurídica pertence ao direito material (Código Civil, art. 1.777), a que a lei processual apenas atende, com os princípios de direito formal. No mesmo sentido, com citação da IA ed. dos Comentários ao Código de Processo Civil de 1939, IV, 159 (2ª ed., VIII, 493), a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 23 de outubro de 1952 (DJ de 5 de setembro de 1955). A alienação dos bens necessários ao pagamento do passivo da herança obedece às regras de alienação em execução de sentença. Se há quotas ideais e contribuições diferentes para a construção, que se paralisou, sem entendimento entre os con-dôminos, vende-se o prêdio para se dividir o preço conforme as quotas e as inversões (4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 16 de novembro de 1950, RF 138/172). 11. Condomínio. A alienação de coisa comum, nos casos de indivisibilidade, ou de se tornar imprópria ao seu destino, pode ser qualquer intervenção do Estado, desde que os condôminos estejam de acordo: é venda para divisão do preço, com a pluralidade subjetiva de vendedores, sem qualquer processualidade civil. Há pretensões, para cada um dos condôminos e, eventual-mente, ações. A espécie não se confunde com a da sua possibilidade ou impossibilitação do uso e fruição da coisa comum. A alienação, a que se refere o art. 1.117, 11, do Código de

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Processo Civil, é a que supõe a ação nascida do desacordo entre os condôminos (elemento que pode não existir na ação por impossibilidade ou impossibilitação do uso e fruição da coisa comum quanto à adjudicação a um só). Pode dar-se que todos, menos um, prefiram vendê-la; devido a esse um, não se estabelece a possibilidade de ser vendida em ato de direito material ou durante o processo correspondente aos arts. 632 e 635 do Código Civil. Entendamos o art. 1.117, II: se um, ou dois, ou alguns pedem a adjudicação, e os outros não concordam, tem-se de alienar a coisa, judicialmente. 12. Bens pertencentes a incapazes. Sempre que a autorização judicial é necessária à alienação de bens de incapazes, tal alienação se rege pelo que se estabelece quanto às ações de alienações judiciais (Código de Processo Civil, arts. 1.013-1.016), excluída a alienação dita particular. Se a autorização judicial é necessária, responde o direito material. Afirmativa a resposta, aplica-se o art. 1.117,111, onde órfãos está por incapazes, uma vez que seria absurdo só se cogitar da alienação de bens de órfãos. O direito material é que dá a solução. Sempre exprobramos a expressão imprópria órfãos, que estava no Código de 1939, art. 706, III, e se conservou sob o Código de 1973, art. 1.117, 111. Temos de entender hoje, como entendíamos, que a regra jurídica se refere a quaisquer incapazes, sejam pela menoridade ou sejam pela interdição. 13. Adjudicação. A adjudicação pedida pelo condômino é conteúdo de comunicação de vontade mais a comunicação de conhecimento de que não lhe foi respeitada a preferência, ainda que algum outro condômino, acima do requerente, houvesse sofrido com a inobservância das regras legais. Os pressupostos gerais e necessários são: infração do direito de preferência que tem o condômino; ser o requerente um dos condôminos, com preferência em relação ao comprador. Pretensão à adjudicação, tem-na ele sempre, porque, sendo condômino, se a alienação foi feita a estranho, a sua pretensão é evidente. Quando a alienação foi feita a outro condômino, então muda de figura: tem-se de apurar quem vem em primeiro lugar, depositando-se o preço. Não cabe discutir-se se esse condômino conhecia, ou não, a alienação. O art. 1.118, III, nada tem com a espécie do art. 1.139, 2a parte, do Código Civil (essa regra juridica deve ser lida, como se fosse § 2ª, depois do parágrafo único do mesmo artigo): se o condômino não teve conhecimento da alienação, cabe-lhe a pretensão, não firmada no art. 1.118, III, mas no art. 1.139, 2a parte, do Código Civil, de haver para si, depositando o preço, a parte vendida a estranhos, preclusível em seis meses. A essa pretensão corresponde ação autônoma, quer tenha havido, ou não, a sentença na espécie do art. 1.139, 2ª parte, do Código Civil, pois que, ex hypothesi, não foi citado. Discutiu-se que os têm preferência, como condôminos, têm de comparecer à praça, ou se basta que peçam a adjudicação até ser assinada a carta de arrematação. Se não se exige o lanço, porque o exercício é antes da assinatura da carta, conforme diz o art. 1.119, e o texto era e é claro, dispensa-se o lanço (nesse sentido, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 31 de outubro de 1950, RF 135/88, 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 27 de agosto de 1952, DJ de 9 de julho de 1953; 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1951). Temos de corrigir a conclusão a que se chegara, porque o art. 1.119 diz que verificada a alienação de coisa comum sem observância das preferências legais, o condômino prejudicado poderá requerer, antes da assinatura da carta, o depósito do preço e adjudicação da coisa. Se o condômino não lançou, nem se manifestou, desde logo, que está a exercer a pretensão à preferência, o que é lançar, por estar implícito o lanço, não pode, depois da alienação a outrem, requerer o depósito do preço e a adjudicação do bem, porque não verificou a alienação de coisa comum sem observância das preferências legais. O elemento do lanço igual é indispensável. O condômino foi intimado para o leilão, com a data certa (art. 687, § 2º), e tinha de se manifestar para que, diante da igualdade, o direito de preferência surgisse. O condômino foi intimado, por edital, para a licitação, de cuja data teve ciência (art. 687, § 2º). O condômino tem de manifestar a sua pretensão à preferência a e, se acaso lançou com o mesmo valor que outrem lançou, evidente está que já exerceu a sua pretensão à preferência. O que importa em todas as espécies do art. 1.118,1, II e 111, é que se parte do princípio da igualdade de lanços. Se o lançador ou lançadores são estranhos, basta a invocação de tal principio. A igualdade não basta se o outro lançador ou os outros lançadores são condôminos. Ai, tem-se de

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observar o art. 1.117, 11 ou III, que atende a existirem benfeitorias feitas pelo preferente, ou benfeitorias de maior valor feitas por ele. O pressuposto da igualdade é comum a estranhos e a condôminos, razão por que, diante dela, é que se têm de verificar os outros pressupostos. Pode haver benfeitorias de maior valor, feitas por um dos condôminos , e, até mesmo, haver quinhão de maior valor, e ter faltado o que mais importa, que é a igualdade dos lanços. Então, não há direito de preferência. O art. 1.139, 2ª parte, do Código Civil só se refere a venda de parte a estranho, não a venda da coisa comum. O art. 1.139, 2ª parte, também alcança os co-herdeiros, se algum deles aliena a parte hereditária (Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1953). A ação de consignação é adequada (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 12 de maio de 1950, RI 187/304). Temos agora de cogitar do conteúdo dos incisos 1, II e III do ar. 1.118. No inciso 1, dá-se preferência na alienação judicial do condômino diante do estranho. O elemento essencial é a igualdade dos lanços, e havemos de entender que é indispensável a manifestação de vontade do condômino diante da manifestação feita pelo estranho. Não pode o condômino que nada disse diante do lanço do estranho pretender a preferência. Para que ele, antes da assinatura da carta, requeresse o depósito do preço e a adjudicação da coisa, seria preciso que a alienação de coisa comum tivesse sido sem observância das preferências legais e, uma vez que ele não lançou, ou, talvez, nem sequer tenha comparecido ao leilão, nenhum desrespeito houve à sua pretensão à preferência. Não se pode exercer preferência sem que se haja produzido algo que pré-fira outra pretensão. Não é a sua qualidade de condômino que gera a sua possível preferência, é a de condômino que faz lanço igual. Se a espécie é a do art. 1.118, II, a preferência resulta de ter sido o mesmo o valor do lanço, de serem condôminos os dois ou mais lançadores e um deles ter feito benfeitorias na coisa, que foram as únicas ou as de valor maior do que o que outro condômino fez, ou que os outros condôminos, de per si, fizeram. Se as benfeitorias do condômino foram do valor 3 e as dos outros, respectivamente, 2 e 2, prefere o condômino das benfeitorias de valor 3. Não se somam os valores das benfeitorias dos outros condôminos. Surge um problema: se o lanço foi pelos dois, que tinham, respectivamente, as benfeitorias de valor 2, podem-se somar os dois valores? A resposta, devido à unicidade da figura de lançador, é afirmativa; porém não devemos afastar a invocação, pelo juiz, da regra jurídica do art. 1.109, 2ª parte. Quanto à espécie do inciso 111, em que há concorrência de condôminos com quinhões de diferentes valores, o condômino cujo quinhão é de maior valor tem direito de preferência. Mas o problema que apontamos a respeito do inciso II surge para a pretensão à preferência, em se tratando de condôminos cujos quinhões têm valores diferentes. Se o lanço foi feito por dois ou mais como único lançador, ~como se há de tratar o assunto? ~Somam-se os valores dos quinhões ou não se somam? A solução é a de atender-se a que houve um lanço por dois ou mais, que de certo modo mantiveram entre si a comunhão. Todavia, o juiz pode invocar e aplicar o art. 1.109, 2ª parte. Se ocorreu o leilão sem ter havido a intimação do condômino, houve violação da lei. O interessado pode pedir a decretação da nulidade do leilão (arts. 247-249). Qualquer exercício da pretensão a que se deposite o preço e se adjudique a coisa só é permitido antes que se assine a carta do ato de arrematação ao estranho, ou a a carta de adjudicação ao condômino. 14. Eficácia da sentença favorável. A sentença na ação de alienação judicial necessitatis causa tem 4 de declaratividade, 5 de constitutividade, 1 de condenatoriedade, 3 de mandamentalidade e 2 de executividade. Na ação de alienação judicial necessitatis causa, a necessidade” da alienação é estado de fato que está à base do nascimento do dever — e não só faculdade, ou direito de Estado —de ordenar a alienação; esse elemento declarativo é que faz possível, noutros processos, inter partes, o cabimento da alienação judicial, cuja decisão é de força constitutiva. Não há, nela, a mesma carga de executividade que na alienação da coisa comum e na alienação do quinhão comum. O elemento mandamental é maior do que na ação de autorização de alienação e na alienação de salvados marítimos. Comparando-se com a ação de arrematação, vê-se quanto, nessa, é escasso o elemento declarativo —pois tudo desliza em série de atos executivos — e forte o elemento executivo. O levantamento do

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preço da arrematação tem 3 de declaratividade, 1 de constitutividade, 2 de condenatoriedade, 4 de mandamentalidade e 5 de executividade.

Capítulo XXVII

Ação de recuperação ou amortização de titulo ao portador § 80. Conceitos e pressupostos 1.Títulos ao portador. Titulo ao portador é a declaração unilateral da vontade pela qual a quem apresente o escrito se promete prestação. A pretensão nasce com a apresentação, porque, antes disso, existe apenas a declaração de vontade ao público, ligada ao papel ou outra substância, que se possa transmitir de mão a mão, brevi manu, com as duas qualidades de “instrumento de declaração” e de “coisa”. Nenhuma teoria que suponha o vinculo direto entre o subscritor (ou o emissor) e o unus ex publico pode servir à solução das dificuldades imensas, que surgem, desde a assinatura do titulo até à sua apresentação, ou da reentrada em circulação e nova apresentação ao subscritor (ou emissor). O assunto pertence ao direito material, e dele tratamos, em 1921, no livro Dos Títulos ao portador, em 1921, e, depois, no Tratado de Direito Privado, Tomos XXXII e XXXIII. As principais pretensões ligadas ao titulo ao portador são as seguintes: a) do subscritor, para haver o titulo que lhe foi subtraído, portanto titulo não-emitido; b) do possuidor, para reaver o título de que foi injustamente desapossado (titulo perdido ou furtado, em senso lato); c) do que foi injustamente desapossado do título, para a substituição; d) do possuidor, para, mediante a apresentação e em consequência dela, ser-lhe entregue a prestação prometida; e) do possuidor, para que, apresentado o título, lhe sejam entregues os outros títulos, ou o outro titulo, em caso de substituição cartular, ou de titulos-filhos, em virtude de bonificação, ou sorteio. A ação que corresponde à pretensão c) é a de recuperação da posse do título ao portador; e a ação que corresponde à pretensão b) é a de vindicação da posse. A pretensão a que se não pague a importância do capital ou seu interesse entra no caso da letra c): é conexa à pretensão à substituição da cártula. A substituição do titulo ao portador ocorre ou a) porque alguém o furtou ou se perdeu o titulo ao portador e se tem de matar (amortizar) o que está em circulação, ou poderia estar em circulação, ou b) porque resta em mãos do possuidor o que permite que se considere sem eficácia o que com ele não está (e. g., menos de metade), de modo que se troca uma cártula por outra, ou c) o titulo ao portador foi totalmente destruído e se precisa da prova disso para que se dê a substituição. Na primeira espécie, há amortização; na segunda, substituição por troca; na terceira, substituição do título ao portador destruído. 2. Ação de recuperação do título ao portador. A ação de recuperação do titulo ao portador é ação constitutiva, que se pode transformar em ação de condenação. A diferença é assaz importante, na prática, porque não há, com a contestação, novo elemento condenatório que se some ao inicial, constitutivo. Há, no sentido preciso, transformação: a ação deixa de ser constitutiva para ser de condenação; não há mais o propósito de se constituírem novos títulos, mas apenas o de se apurar se o detentor tem, ou não tem razão. Se não tem, os títulos que foram apresentados com a contestação, são restituidos ao autor. No caso de só ser a contestação sobre parte dos títulos reclamados, a transformação da ação constitutiva em ação de condenação é parcial, prevalecendo para os demais títulos a constitutividade da ação. A sentença, no caso de não haver detentor que apresente a contestação acompanhada do titulo reclamado, é constitutiva, de eficácia erga omnes, ao passo que, se houve tal contestação, a sua eficácia é a da sentença de condenação. (Atenda-se ao efeito de coisa julgada material contra o responsável pelo desapossamento, ainda nos casos de não ter comparecido, se houve citação edital.). A constituição é só de instrumento.

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3. Conhecimentos de transportes por terra, água e ar. A retirada das mercadorias por extravio ou destruição dos conhecimentos de transporte tem trato especial. Devido à curta vida do conhecimento de transporte, mais importa a retirada das mercadorias do que a substituição do título representativo. Amortiza-se sem se substituir: implicitamente se amortiza, porque também aí se atende à legitimação do autor. Todavia, pode dar-se que se tenha de amortizar e substituir o titulo extraviado, ou de se substituir o título destruído. São duas espécies distintas, que merecem trato separado: (a) Retirada das mercadorias, sem substituição do título. O conhecimento de transporte é título representativo de mercadorias que foram entregues para transporte e hão de ser entregues mediante a apresentação e recepção dele. Com a entrega das mercadorias e do conhecimento de transporte cessam toda representatividade e a posse imediata, que se achava com a empresa de transportes ou com o transportador, e passa a quem lhe entregou o conhecimento de transporte. E indiferente se a empresa de transportes faz por si mesma a transportação, ou in-cumbe outra de a levar a cabo: o título é representativo das mercadorias, ainda que a empresa de transportes mediatize a sua posse, confiando a outra empresa a viagem. As relações jurídicas e possessórias que se estabelecem entre o transportador e a empresa de transportes, ainda que tal mediatização da posse seja acidental (e. g., o veículo da transportadora teve de parar na estrada), são indiferentes às relações jurídicas e possessórias entre o remetente e o subscritor e emissor do conhecimento de transporte. Trata-se de titulo representativo. O domínio e os direitos reais limitados transferem-se com a transferência do domínio ou dos direitos reais limitados sobre o título. Não há de pensar-se em título de crédito, a despeito dos erros de alguns juristas, brasileiros e estrangeiros. O titular do direito de domínio, de usufruto, ou de penhor sobre o conhecimento de transporte tem as ações dominicais, as do usufrutuário, as de titular de direito de penhor e as possessórias. As empresas de estradas de ferro são tratadas como transportadoras, e não como empresas de transportes. Os “conhecimentos” ou “despachos” ou “notas de embarque” que emitem, inclusive as notas de bagagem, não são conhecimentos de transporte para os efeitos de lei especial. Todavia, se essas empresas podem assumir e assumem a função de empresas de transportes, o que é plus em relação à sua qualificação comum, os seus deveres e os seus direitos passam a ser os da legislação especial sobre empresas de transportes. O conhecimento de transporte é titulo representativo abstrato. Não importa que nele se aluda à causa, que foi o transporte: a causa concerne ao negócio jurídico subjacente, não ao título (cf. Lorenz Brútt, Die abstrakte Forderung, 281). Em povos que só recentemente tiveram a abstração dos próprios títulos cambiários, povos cuja mentalidade resistiu por muito tempo a essa técnica que revela o grau de evolução da cultura e da técnica, compreende-se que ainda se tenham como causais os títulos da natureza dos conhecimentos de transporte. O que não consta do título nem se entende, por lei, constar, não é oponível ao endossatário de boa-fé, ainda que se trate de endossatário pignoratício. A circulação do conhecimento de transporte pode ser ao portador ou por endosso. A cláusula ao portador tem de ser inserta no contexto do título. Se nominativo o titulo, entende-se, na falta da cláusula à ordem, que está implícita, de modo que circula por endosso. O endosso em branco permite a posterior circulação ao portador, até que alguém endosse em preto. Em caso de perda, ou de extravio, do conhecimento, qualquer interessado pode avisar a empresa de transporte no lugar do destino, para que retenha a respectiva mercadoria. O aviso de que se trata é comunicação de conhecimento. (cf. Tratado de Direito Privado, Tomos 1, §§ 8, 1, 26, 1, e 44, 4 e II, §§ 233-237). Qualquer interessado pode avisar, mas o aviso, feito pelo remetente ou pelo destinatário, tem importância maior para a atitude da empresa de transporte. Se endossável o título, ou se ao portador, tem-se como dono o endossatário, ou quem no momento o possui, de modo que o aviso pela pessoa que se diz endossatário ou portador é aviso por pessoa que se diz dono. O remetente e o destinatário têm maiores razões para serem cridos. Daí a diferença de tratamento, na técnica legislativa. Principalmente porque, no sistema jurídico brasileiro, antes do endosso, o remetente e o destinatário, se o conhecimento de transporte foi concebido à ordem, com o nome do destinatário, o que mais importa é a posse do conhecimento de transporte: o destinatário, sem o conhecimento de transporte, ainda não tem a posse do conhecimento de transporte, nem, portanto, a das mercadorias; o remetente, se fez tradição do conhecimento ao destinatário, perdeu a posse que tinha.

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Se o aviso provém do consignatário, ou do remetente, a empresa anuncia o fato em vezes consecutivas, conforme a lei, à custa do comunicante, pela imprensa do lugar do destino, se houver; se não, pelo da Capital do Estado, ou da localidade mais próxima que a tenha. Não havendo reclamação relativa à propriedade, ou ao penhor, do conhecimento durante os dias do anúncio e mais outros imediatos, que a lei exija, a mercadoria será entregue ao notificante, de acordo com as regras legais ou regulamentares. Se o aviso proveio de outrem, que não o con-signatário, ou o remetente, vale como reclamação contra a entrega da mercadoria, para ser judicialmente processada na forma da lei. O comunicante presta o que é indispensável às despesas, ou de acordo com a empresa de transportes, promete, ou promete e dá caução de as prestar. Havendo reclamação, a mercadoria não será entregue e o reclamante, exibindo outra via ou certidão do conhecimento, fará, no foro da comarca do lugar do destino, justificação do fato e do seu direito, com intimação do órgão do Ministério Público, publicando-se em seguida editais conforme a lei, e afixando-se como de costume. Onde houver Bolsa de Mercadorias e Câmara Sindical de Corretores, fazem-se público pregão e aviso a quem interessar possa. Findo o prazo, aguardar-se-á o tempo que a lei fixe. Se não aparece oposição, o juiz profere a sentença, no prazo legal, e, uma vez passado o prazo para o recurso, pode ordenar a expedição de mandado de entrega da mercadoria ao reclamante. A reclamação ou oposição pode ser feita com a exibição do original do conhecimento de transporte, que legitima o exibente e tem o efeito suspensivo das diligências judiciais e extra-judiciais. Se o foi com outra via ou certidão do conhecimento, tem o reclamante de promover a justificação judicial do fato e do direito, com audiência do Ministério Público e editais. Resta a espécie em que o reclamante não tem o original, nem via, nem certidão. Então, desapossado também foi, e tem de propor a sua ação. Havendo oposição, o juiz marca o prazo legal para prova, arrazoam as partes, afinal, no prazo legal. Conclusos os autos, o juiz profere a sentença. Da sentença, tenha, ou não, havido oposição, cabe interpor-se recurso de apelação. A exibição do conhecimento original suspende as diligências judiciais e extrajudiciais, continuando o titulo a produzir plenamente os seus efeitos. A exibição do conhecimento original, que se disse ter sido perdido ou extraviado, tem como conseqUência a suspensão do procedimento. Ou o exibente mostra o seu direito à posse do titulo, ou outro processo se instaura contra o esbulhador, ou o falsificador do endosso. As medidas constritivas terão de ser noutro processo. O procedimento cessará definitivamente com a sentença. Se o conhecimento de transporte foi emitido nominativamente, não à ordem, em caso de perda, destruição, furto ou roubo, a entrega da respectiva mercadoria faz-se ao destinatário por segunda via, ou certificado do despacho, de acordo com os regulamentos em vigor. Se a empresa de transportes tem aviso de cessão ou penhor do conhecimento, tem de depositar a mercadoria por conta e risco da pessoa a quem pertença. As mercadorias de valor menor do que a lei considera mínimo para negação da retirada, podem ser retiradas, inde-pendentemente do conhecimento, mediante as cautelas instituidas nas leis ou regulamentos em vigor. A estimativa desse valor, não tendo sido feita na ocasião do despacho, compete ao prudente arbítrio da empresa de transportes, no momento da entrega da mercadoria. As mercadorias de valor superior, que forem nominalmente consignadas a qualquer repartição federal, estadual ou municipal, podem ser entregues, no destino, independente do resgate do respectivo conhecimento original se a repartição consignatária oficialmente o pede à empresa transportadora, por escrito, e dá a essa recibo idôneo passado em forma regular. A empresa pode requerer o depósito por conta de quem pertencer a mercadoria não retirada em tempo, nos casos permitidos em lei ou regulamento, bem como no de entrega de outra via ou de certidão do conhecimento. Os gêneros alimenticios, destinados a consumo imediato, podem ser entregues ao destinatário, em falta de conhecimento, mediante as formalidades usuais. Há referência às mercadorias se houve perda ou extravio do conhecimento de transporte e aos casos em que apenas o portador do conhecimento de transporte não se apresentou. Temos, pois, de considerar aqui a primeira espécie. A segunda merece trato à parte.

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(b) Em caso de perda, destruição, furto, ou roubo, de conhecimento de frete não à ordem, a entrega da respectiva mercadoria faz-se ao destinatário por segunda via, ou certificado do despacho, de acordo com os regulamentos em vigor. Se, entretanto, a empresa de transporte tiver aviso de cessão, ou penhor, do conhecimento, depositará a mercadoria por conta e risco da pessoa a quem pertencer. Nos casos de perda ou extravio de conhecimento que tenha consignação nominal, desde que nenhuma reclamação haja sido apresentada à empresa de transporte, no lugar do destino, para retenção de mercadoria, o destinatário omente pode retirá-la mediante assinatura de termo de responsabilidade. s

Quando a empresa julgar conveniente à sua salvaguarda, pode, se assim o entender, exigir fiador idôneo. As leis especiais nada dizem sobre a ação do possuidor do titulo à ordem, ou ao portador, em caso de perda ou extravio. Nem sobre a ação dos outros interessados. Se ao portador, regem as regras jurídicas gerais. Se à ordem, a solução é a de atender-se à qualidade cambiariforme do endosso e invocar-se a lei cambiária. A necessidade de substituição dos conhecimentos de transporte é rara. O que mais importa é a retirada, dissemos; porém é de prever-se a hipótese da empresa de transportes que haja assumido a guarda durante tempo que justifique ter-se de substituir o título. § 81. Ação de amortização 1.Título ao portador de direito comum. A pessoa injustamente desapossada do título ao portador, para obter novo e impedir que a outrem sejam pagos o capital e os rendimentos, tem de declarar, na petição inicial, a quantidade, espécie, valor nominal dos títulos e série, se há, a época e o lugar em que os adquiriu e recebeu os últimos juros ou dividendos. Na conclusão tem de pedir: a) a citação do detentor e, por edital, de terceiros interessados para contestarem os pedidos; b) a intimação do devedor, para que deposite em juízo o capital, bem como juros ou dividendos vencidos ou vincendos; c) a intimação da Bolsa de Valores, para conhecimento de seus membros, a fim de que estes não negociem os títulos. 2. Direito cambiário e cambiariforme. As regras jurídicas de que cogitamos, dos arts. 907-913 do Código de Processo Civil, não se aplicam ao “extravio” (Tratado de Direito Cambiário, 1, 387-412; II, 199-206) de letras de câmbio, notas promissórias, cheques e quaisquer títulos que algum texto legal sujeite à lei cambiária. Nos dois textos, trata-se de pretensão a recuperar o título (amortização ou anulação, nossos Dos Títulos ao Portador, 2ª ed., II, 114-118, 235-250; Tratado de Direito Cambiário, 2ª ed., 408 s.; II, 268, s.; III, 308 s.; IV, 189 s.; Tratado de Direito Privado, XXXIII, §§ 3.775-3.778). Assim, o direito material e o processual da lei cambiária continuaram, conforme se passou em 1917, com o Código Civil, prevalecendo a nossa opinião (Dos Títulos ao Portador, 1ª ed., 475), contra, por exemplo, antes, a opinião de Rodrigo Otávio (Do Cheque, 160). 3. Amortização, em caso de perda e destruição. Não se há de falar somente da amortização em caso de perda e destruição do titulo ao portador, exatamente como ocorreu a alguns textos (Dos Títulos ao Portador, 2ª edil, 70-89). Tinha-se de pensar conforme os princípios e o suporte fático em sua integridade. Hoje, como antes, deve o autor propor a ação de amortização, se o título não for, pelo direito material, daqueles em que, perecendo a cártula, perece o direito; e o rito é o ordinário, com as intimações ao subscritor (ou emissor) do titulo, ao presidente da Bolsa de Valores e citação dos interessados. Se a lei especial não tiver fixado outro prazo, a amortização e a substituição dos títulos far-se-ão dentro do prazo que a sentença assinar. Nos casos de desapossamento injusto, a amortização ou substituição é conseqúente; nos de destruição, está no pedido, uma vez que se não pode reaver o título. O direito cambiário encambulha as duas pretensões e os dois processos, não sem inconvenientes Cá no Direito Cambiário, 1, 389; II, 200). O Código Civil alemão facultou-a, mas salvo cláusula contrária do título (§ 799), e não falou da substituição dos títulos a que se referiu o direito brasileiro. O Código Suíço das Obrigações, art. 849, também não anuiu na substituição de títulos de que a pessoa

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foi desapossada injustamente, mesclando esse princípio ao outro sobre substituição em caso de perda ou destruição. Ora, o legislador brasileiro, que acedeu na reivindicação do titulo ao portador, permitiu a amortizabilidade e a recuperação. 4. Pessoas injustamente desapossadas. Que são pessoas” injustamente desapossadas”? O conceito, de direito material, foi longamente estudado por nós ao comentarmos, há mais de meio século, o art. 1.509 do Código Civil (Dos Títulos ao Portador, 1ª ed., 481-485; 2ª ed., II, 234-239). A injustiça do desapossamento tem de ser apreciada do lado de quem perdeu, injustamente, a posse, e vai intentar a ação. Trata-se de qualquer desapossamento injusto, quer tenha havido violência, erro, dolo, quer tenha havido abuso da posse por parte de outrem, e.g abusou da representação. A abrangência é maior do que a ação de vindicação da posse. Para legitimar-se à ação de amortização de titulo, é preciso que o demandante alegue e prove ter tido posse (3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 30 de maio de 1944, JTA 25/89), ou ter estado na guarda da posse de outrem. A ação de indenização não é cumulável. 5.Pretensão a não serem pagos a outrem capital e interesse. A primeira pretensão é a de não se pagarem a outrem, que acaso apresente o titulo, o capital e os interesses; posteriormente — se não aparece o título, ou se aparece e o tenedor contesta e perde — a pretensão â substituição. A pretensão à substituição, amortizado o título, somente nasce se esses novos pressupostos se compõem. Temos, pois, que o processo começa por simples pedido de recuperação; ao contrário do que se passa com as ações de amortização por destruição e perda. Tal pretensão é apenas pretensão à segurança, e não a pretensão de direito material, que seja a res in indicium deducta. Hoje, a citação é para o depósito, desde logo. 6.Petição inicial. A petição inicial há de conter todos os requisitos que o direito processual civil exige e exposição dos fatos. Sobre ela, arts. 282-283. 7.Individuação do título. A individuação ou caracterização do título, para que se possa identificar, depende do modo pelo qual se concebe a sua feitura. A lei exige, em geral, três informes: quantidade, espécie, valor nominal. Os demais, como o número, são secundários e de indicação facultativa para a petição inicial; mas a falta do número, elemento de individuação, pode fazer caírem no vácuo as intimações do art. 908, 1 e 11, do Código de Processo Civil. Correria isso a risco do autor. De lege feren da, teria sido melhor dizer-se “e o número de ordem, se o tem”. 8.Tempo e lugar da aquisição e recebimento dos últimos interesses. Outro requisito é o da indicação da época e lugar em que o autor adquiriu o título e recebeu os últimos interesses (“juros ou dividendos”). Naturalmente, se o titulo tem cupões de interesses, há de o autor mencionar onde os apresentou e quando, ou se os passou, e quando, a outrem, e quantos restam. Porque o processo de recuperação e amortização, com a conseqUente substituição, se refere assim aos títulos como aos cupões. 9.Intimação quanto aos interesses. A intimação é para que o devedor deposite em juízo o capital, além dos juros, dividendos, bonificações e outros interesses; ou, se há cupões de interesses ou títulos-filhos a serem entregues ao apresentante do título-mãe (bonificações etc.), também esses. 10. Negociação dos títulos. Há intimação da Bolsa de Valores, para conhecimento, por seus membros, do que se passa, a fim de não se negociarem os títulos e os cupões. Também essa medida é ligada à pretensão à segurança; não é res in indicium deducta. Se os membros da Bolsa de Valores negociam os títulos ao portador, a respeito dos quais há ação de amortização, são responsáveis perante os adquirentes, porque negociaram com o que não podiam negociar. Nada influi isso na relação jurídica entre o autor da ação de amortização e o réu. O autor pediu a intimação e foi feita.

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11. Réu ou réus. O réu, na demanda de reivindicação ou de vindicação da posse, é o tenedor (portador); ou são réus, se é ele desconhecido, os terceiros interessados; não o subscritor ou emissor, dito, em geral, “devedor”. Pode dar-se oposição se dois ou mais de dois interessados comparecem, porque todos contestam e não ocorre litisconsórcio entre eles: se as suas pretensões se excluem, há unidade de autor e pluralidade de réus. O instituto da oposição, combinado com a do litisconsórcio passivo, é que rege a espécie. No Código de 1939, art. 337, § 1ª, só se exigia a citação edital dos terceiros interessados, se tal foi a citação do tenedor ou possuidor (ditos detentor), por ser desconhecido, incerto, ou se encontrasse em lugar não sabido e inacessível. No Código de 1973 não há referência a ligação: no art. 908, no caso de se pedir a amortização e substituição do título ao portador, qualquer que seja a espécie, a citação dos terceiros interessados é por edital. A exigência da citação edital atende á natureza circulatória do título ao portador. Como se há de construir a relação jurídica processual? Trata-se de citação de tenedor conhecido, ou de terceiros desconhecidos, ou, quanto a terceiros interessados, ou pessoas desconhecidas, de procedimento edital, chamamento público, citatório, com efeito de perda do direito que alguma ou algumas tenham, se não comparecem para tomar parte na relação jurídica processual. A cominação dos editais faz-se efetiva pela sentença de amortização (caducidade, exclusão). Os que comparecem são réus; os que vêm após a contestação, intervenientes do art. 50 e parágrafo único do Código de Processo Civil. Ainda sobre o direito material, nosso Dos Títulos ao Portador, 2ª ed., vols. 1 e II; Tratado de Direito Privado, Tomo XXXII. § 82. Procedimento 1.Justificação inicial do pedido. O processo começa pela justificação do pedido. Tal adiantamento de cognição consiste em exame perfunctório, superficial, da situação (injusto desapossamento), de modo que nenhuma providência judicial postulacional fundada nele se justifica. O adiantamento de cognição (justificação do pedido), estranho aos processos ordinários antes do advento da Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994, tem apenas o intuito de se não deferirem a citação e as intimações, perturbando-se a circulação do título, sem certa base. O Código de Minas Gerais, art. 928, o Anteprojeto de Pedro Batista Martins e, com eles, o Código de Processo Civil de 1939 estavam certos, e não o atingiram as críticas de Amorim Lima (Código, 11, 177, 178) e Luís Machado Guimarães (Comentários, IV, 420) sobre serem a citação e as notificações medidas favoráveis: a lei considera-as normais, não é a elas que se referia a parte entre vírgulas (“antes de qualquer providência favorável ao autor”); referia-se à possibilidade de serem requeridas medidas, pendente o processo, para que não se interpretasse a justificação como bastante — por exemplo — para busca e apreensão. Nem a crítica de J. M. de Carvalho Santos (Código, IV, 423) sobre ser supérflua a justificação. Interessado (Código de Processo Civil, art. 909, parágrafo único), aí, é qualquer pessoa que não foi citada pessoalmente, que possa ser parte na ação, ou possa ter interesse ou vir a ter interesse em adquirir o título ao portador, ou recebê-lo em garantia, ou mesmo crer que alguém o possui. 2. Tenedor desconhecido ou incerto, lugar ignorado ou inacessível. Aqui, o procedimento é edital, estabelecendo-se, com a citação, a relação jurídica processual em ângulo: uma linha até o juiz e a outra como a abrir-se em feixe de linhas por sobre todo o público. (A respeito, em 1927, o nosso livro Da Promessa de Recompensa, quanto a promessas de prêmios, concursos, anúncios etc.). Naturalmente, a ignorância é que não pode determinar o número de linhas: na realidade, são tantas quantas as pessoas que vão ser atingidas pela coisa julgada material da sentença de condenação e pela coisa julgada formal da sentença constitutiva. A contestação de quem não tem o título, recebível no prazo legal, ou de quem o tem sem se saber quem seja, estabelece novas hipóteses, mas a sentença continua de ser de condenação, se apresenta o título, ou de constituição, se o não apresenta, ou outrem não o apresentou. Para se saber se a ação e a sentença são constitutivas ou não, basta que se responda se o titulo não foi apresentado

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a juízo, ou se foi. Não importa o conhecer, ou não, o autor da ação quem é o possuidor ou tenedor. Em todo o caso, o unus ex publico, que não compareceu e foi culpado do desapossamento, tem contra si a eficácia de coisa julgada da sentença. 3. Citação do tenedor. Conhecido o tenedor do título, é ele que deve ser citado. Se entrega o título, lavra-se o termo da entrega. Se não o entrega e só o apresenta para ser junto ao processo, com a sua contestação, não há obrigatório procedimento edital; salvo se diz que achou o título e não pertence ao autor, porque ai a citação do unus ex publico é necessária, e tem de ser expedido o edital. Pode também dar-se que alguém compareça e alegue ter-lhe sido tirado, injustamente, o titulo, caso em que seria terceiro com legitimação de embargos de terceiro, e não de réu, salvo se nega que o autor tenha tido posse. Pode ele, aliás, propor a ação de entrega ou de amortização. 4.Terceiro que compareceu. Ou o terceiro comparece para contestar a posse do autor, de que foi, segundo diz, injustamente privado; ou comparece como possuidor ou tenedor, isto é, trazendo o titulo. No primeiro caso, o tenedor é outrem que também foi citado por edital e tem de embargar como terceiro; no segundo, a contestação tem de ser com o título reclamado, e se não contesta, o prazo dele expirou; aguardam-se os outros terceiros, se ainda há prazo. Quid iuris, se, citado o que tinha o título, lhe foi subtraido antes de comparecer? Tem de narrá-lo na ação, e opor, se prefere, embargos de terceiro. 5. Terceiro que se apresenta sem título e terceiro que se apresenta com título, Cada terceiro que se apresenta sem ter o titulo, somente pode ser embargante. O terceiro que se apresenta com o título (art. 907,1) pode contestar, porque está diante do autor que quer vindicação da posse ou reivindicação. (Advirtase que, diante da petição, que há de satisfazer os pressupostos legais que estão nos arts. 907 e 908, há o exame pelo juiz, de cognição incompleta, que leva à justificação bastante (justificado quanto baste o alegado), e só após se ordena a citação do réu e dos terceiros interessados). O réu somente pode defender-se se a contestação é acompanhada do título reclamado. 6. Rito ordinário. Recebida a contestação, prosseguirá o feito com o rito ordinário. Só se admite a contestação quando acompanhada do título reclamado. Sob o Código de 1939, art. 339, § 2ª, processava-se em apenso a contestação que versasse sobre parte dos títulos reclamados, e só em relação a esses havia de ser proferida a sentença. A regra jurídica não foi repetida no Código de 1973, art. 910, parágrafo único. 7.Contestação ou contestações. Recebida a contestação, ou recebidas as contestações, porque muitas pode ter havido no prazo legal, o processo tem o rito ordinário. Se não há contestação, tem o juiz de proferir a sentença. Havemos de entender que o contestante, que, necessariamente, fez acompanhar a sua defesa do título reclamado, pode ser condenado à entrega ou levantamento (se houve depósito), por ser inadequada, no caso, a substituição do titulo. Ao juiz éque cabe decidir, diante das circunstâncias. Há casos em que a lavratura e a substituição são indispensáveis, como se o titulo que acompanhou a contestação estivesse parcialmente destruído, o que se prevê no art. 912. Se a destruição foi tal que o título podia ser reconhecido, mas impróprio à circulação, trata-se a espécie como a de destruição parcial. 8. Tenedor com título e tenedor sem título Se o terceiro é tenedor — diga-se tenedor, porque pode ser proprietário, ou possuidor etc. — somente lhe é admitida a contestação se a acompanha o título, como é de se exigir a qualquer contestação. Se se defende sem ter titulo, e. g., se também se diz desapossado injustamente, claro que tem de ser recebida a sua defesa como opoente, ou como embargante. Daí não ser, sempre, ordem de substituição, nem sempre de entrega, a sentença que julga improcedente a contestação. 9. Pluralidade de objeto. Pode ocorrer pluralidade de objeto, de títulos ao portador. E interessante observar-se que pode ocorrer que se tenha de processar em apenso a contestação que verse sobre parte dos títulos reclamados. A apensação traz sempre consigo a noção de dependência, de acessoriedade, de incidente. Aí, quer-se apenas a facilitação processual. E possível mesmo que diferentes quantidades dos títulos apareçam e haja tantos processos quantos os comparecentes. Não se pode, todavia, estabelecer, a priori, que haja tantas relações jurídicas processuaís quantos os processos. Depende da ligação negativa ou positiva, entre os comparecentes.

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10. Leilão público ou bolsa. Comprado o título em leilão público, ou em bolsa, o dono, que pretende a restituição, paga ao possuidor o preço da compra, ressalvado o direito de reavê-lo do vendedor. Ao aparecer o Código Civil, dissemos então que, em atenção ao papel que desempenha, nos mercados, o título ao portador, regra jurídica, embora houvesse rejeitado o princípio franitês: En fait de meubles possession vaut titre, com o que se conservou fiel à tradição do nosso direito, salvaguardou (a) o direito do possuidor do título evicto contra quem, sem ser dono e sem poder dispor, lho transferiu, e (b) estatuiu em parágrafo único, que, sendo o objeto comprado em leilão, feira ou mercado, é obrigado o dono, que pretende a restituição, a prestar ao possuidor o preço por que o comprou. A regra jurídica teve os seus censores (e. g., Astolfo de Rezende, Manual, 7, 361 sj; e seus defensores (Clovis Bevilacqua, Código, 3 e 45 s.; largamente, nossos Dos Títulos ao Portador, 1ª ed., 199, 437 s.; 2ª ed., 1, 271; II, 181 s.; Tratado de Direito Privado, Tomo XXXIII). Presunção de boa-fé, segundo R. Troplong; razão que E. Laurent (Principes, 32, 604 s.) reputou insuficiente, parecendo-lhe melhor a da segurança do comércio. Interesse de todos in abstracto, sustentamos nós, o mesmo fundamento que fez vinculativa a promessa de recompensa. A regra jurídica a respeito dos títulos comprados em leilão público, ou bolsa, contêm exceção de direito material. 11. Heterotopia da regra de direito material? Os comentadores do Código de Processo Civil de 1939 (Jorge Americano, Comentários, II, 175; Luis Machado Guimarães, Comentários, IV, 427) entenderam que a regra jurídica, que estava no art. 340 e hoje está no art. 913, fora posta em lugar errado: deveria vir depois do art. 341, hoje art. 911. Não pensamos do mesmo modo. Se o portador do título comparece desde logo e prova que adquiriu em leilão público, ou em bolsa, a regra jurídica tem incidência, posto que o processo continue. Não é sempre a sentença do art. 911 do Código de 1973 que tem de condenar, condicionando a entrega do título ao ressarcimento do art. 913. Melhor fora, certamente, que o art. 913 viesse no fim do Capítulo III; não porque fosse o seu lugar, no Código Civil, sob o art 521, e sim porque também a ele se refere. Mas a lei, deslocando-o, tem o efeito benéfico de torná-lo atinente a outros casos de desapossamento do artigo 907, 1 (art. 521 do Código Civil). Aliás, o titular da pretensão do art. 913 não é sempre o único réu na ação. 12. Depósito da quantia apurada. Antes de ser proferida a sentença ou assinado o termo de entrega do título, deve o autor depositar a quantia; ou a sentença tem de ser concebida condcionalmente. 13.Inicio da demanda. Se, no prazo legal, não houve contestação, ou essa foi improcedente, pode o juiz, na sentença, declarar caducos os títulos, ordenando ao devedor que passe outros em substituição aos reclamados, dentro do prazo assinado. A demanda, a instncia, começa com a efetuação da citação do tenedor ou de todos os interessados, e do alter, por edital; não com a expiração do prazo para a contestação. Se houve procedimento edital, e decorreu o prazo legal sem ter havido contestação, o juiz julga amortizados os títulos, ordenando que outros sejam feitos para os substituir; se houve contestação, a sentença, que a julgar improcedente, ou entrega o titulo ao autor, ou, se o contestante está no caso de terceiro possuidor ou tenedor, decreta a amortização e ordena a substituição (recartulação da obrigação por declaração unilateral de vontade). 14. Morte do título. O titulo ao portador, a cártula, de que foi desapossado, sem justa causa, o autor, e não lhe foi restituído, morre; outro lhe vem fazer às vezes. A substituição não se confunde com a multiplicação (muitos exemplares do mesmo título, nosso Tratado de Direito Cambiário, 1, 266, 282; II, 69). No fundo, a preponderância da idéia sobre a matéria, bem nítida nos peripatéticos de Roma (Dos Títulos ao Portador, V ed., 1, 215; II, 76, 77) e no capitalismo financeiro. 15. Eficácia constitutiva negativa e positiva da sentença. A sentença, de que se fala, amortiza e engendra novo título. Esse novo título é idêntico ao amortizado, é o próprio título amortizado, com outro substrato, com outro corpo. A amortização mata; se alguém tinha o título e direito a tê-lo, nas mãos do terceiro, esse direito. O que fica na mão dele é a propriedade da cártula; não o direito de obrigação, não as pretensões. A propriedade e a posse nascem quanto à outra cártula (Dos Títulos ao Portador, 1, 280). Se alguém se apresenta alegando direito que não exclui o do autor, ressalva-se na sentença. A pluralidade de réus., se nenhum apresenta título, constrói-se como a de demanda em que o mesmo autor pleiteia contra diferentes rés sem solidariedade entre esses (pluralidade

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subjetiva passiva). A litisconsorcialidade depende da relação de direito material entre eles. O processo dos arts. 907-912 é Aufgebotsverfahren — tem a peculiaridade de se exercer contra réu desconhecido (Konrad Hellwig, Lehrbuch, 1, 53), ou contra tenedor e outros interessados. Se o título foi destruído totalmente, como se ocorreu in cêndio, tem-se como perdido, tal como aconteceria se o possuidor se achasse em navio ou avião e não o tivesse levado consigo. A ação de desapossamento de título ao portador para obter novo título é ação constitutiva. Tem 5 de constitutividade, 4 de declaratividade, 3 de executividade, 2 de mandamentalidade e 1 de condenatoriedade. Na sentença o juiz “ordena” que o devedor faça outro titulo. O devedor, que não atende, acarreta com as consequências da sentença na ação constitutiva, com eficácia declaratória imediata e executiva mediata. Assim, a coisa julgada material atinge-o, e contra ele se pode propor a ação executiva, uma vez que a sentença tem 3 de executivídade. O mandado do juiz (Código de Processo Civil, art. 911, verbis “ordenará ao devedor”) não faz mandamental, nem sequer, de condenação, a sentença: primeiro, porque a ordem, aí, tem cumprimento dependente da vontade do devedor, sujeito passivo na obrigação de fazer; segundo, porque não há condenação conº tra ele. A sentença é apenas constitutiva, — constitutiva de amortização (constituição negativa); com “declaração” da obrigação nova do subscritor. Se o subscritor não cumpre, a ordem do juiz somente tem a eficácia imediata declarativa, e a eficácia executiva mediata, devido à intimação do art. 908, II. O interessado pode ir contra o subscritor, com a ação para que recartule a sua declaração unilateral de vontade, ou indenize pela falta de atendimento. Expirado o prazo para comparecer algum interessado, pode ser que não se saiba quem é o réu ou quem são os réus; pois pode não ter comparecido, ou não terem comparecido, e a sentença, constitutiva (Adolf Wach, Handbuch, 1, 63) vai ter eficácia de constitutividade e de coisa julgada material contra ele ou contra eles. Aliás, também tem esse último efeito contra o subscritor (Konrad Hellwig, Wesen und subjektive Begrenzung der Rechtskraft, 307). Afasta-se a construção da sentença de amortização como só declarativa (erro de Otto Fischer, Recht und Rechtsschutz, 13). Não se pede ao juiz que declare, mas que condene e constitua. (Mesmo nos casos de processo de perda e destruição, como se dá com os títulos cambiários, o elemento de condenação quase desaparece; fica apenas, ressaltante, o de constituição.) O elemento declarativo é responsável pela eficácia de coisa julgada material contra o subscritor. 16. Não-cumprimento do mandado pelo subscritor ou emissor.Se o subscritor (ou emissor) não cumpre o mandado do juiz, tprocede-se à execução da sentença? Não. Mediante simples requerimento, em que exponha o fato da recusa, apode o autor obter carta de sentença em que se explicite o seu valor constitutivo, entendendo-se que tem a propriedade do titulo ao portador, a que substitui? Certo, basta à legitimação para recebimento de capital e interesses, efeito constitutivo, e outras consequências; não para a recartulação. Sobre letras de câmbio, notas promissórias e títulos cambiariformes, nossos Tratado de Direito Cambiário, 2ª ed., 1, 427 s.; II, 277 s.; III, 315 s.; IV, 191, e Tratado de Direito Privado, Tomos XXXV, §§ 3.938-3.3941, 4.007-4.009; XXXVI, §§ 4.030, 4.042, 4.073; e XXXVII, §§ 4.154 e 4155. A regra jurídica do art. 641 do Código de Processo Civil não tem aplicação a esses títulos, levantando questões relativas à extensão da constitutividade da sentença. A ação de recartulação é constitutiva e dotada de forte elemento declarativo (4) e executivo (3). Há peso (2) mandamental e, mínimo, (1), condenatório, óbice a que se cogite de executividade sentencial. 17. Natureza da sentença na ação de amortização. Qual a natureza da sentença na ação de amortização? A sentença faz caducos os títulos (e tais ações são de constituição) e ordena que o obrigado passe outros em substituição. Não há a executividade especial da sentença que se profere na ação de declaração de vontade, de modo que a sentença é da natureza das sentenças constitutivas; e não de simples condenação a prestação de ato. Se, hoje, — aliter, no direito anterior —, sentença que condena a prestação de declaração (obrigação de fazer) tem eficácia executiva — a da ação de amortização não é título executivo para a ação de execução, nem produz a eficácia da sentença na ação de prestação da declaração de vontade. A ação é ação constitutiva com a particularidade de ser pedida, como prestação final, pela sentença definitiva e após cognição completa, a declaração da obrigação de emitir. Em relação às vulgares obrigações de declarar, essa não é de emitir ou de reemitir a declaração, mas de fazer nova cártula (forma) do mesmo negócio jurídico.

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O juiz não manda expedir novo título (cártula), sem ter sido declarada a ineficácia do anterior. Se se expede a nova cártula, sem que sentencialmente se haja amortizado a que se alegou ter sido perdida, extraviada ou destruída, é ineficaz a nova cártula, ainda que a haja adquirido portador de boa-fé. Responde o Estado, conforme a Constituição da República. 18. Título da dívida pública ao portador. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 27 de dezembro de 1948, RF 125/470), entendia não ser aplicável à amortização de títulos da dívida pública ao portador o processo de substituição de cártulas, regulado pela lei processual. Sobreveio lei explícita, em que se disse que a recuperação dos títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal, emitidos ao portador, ou em branco, processar-se-á de conformidade com as regras jurídicas do direito processual civil comum. Rege, hoje, portanto, o que se estatui no Código de 1973, que substituiu o de 1939.

Capítulo XX VIII

Ação para nova cártula por direito do portador § 83. Novas cártulas aos portadores 1. Duplicatas ou exemplares a mais. O possuidor do título não tem nenhum direito especial a duplicatas ou exemplares a mais; incumbe-lhe alienar, depositar, empenhar, dispor do título, como lhe aprouver, ou apresentá-lo e obter o adimplemento da obrigação no dia do vencimento. Mas há espécies que conferem outros direitos, que não constituem, contudo, caracteres genéricos do título ao portador. Assim as ações inominadas. Outros há que expressamente permitem a obtenção de duplicata, ou exemplares a mais, quando gasto ou alterado o original. Outros ainda, o de se exigir nova prestação, depois de perfurada (picotée) a cártula ou bilhete, e. g., os cartões de passagem, jogo, ou entrada, que, ainda depois de carimbados ou perfurados, servem de novos títulos, com funções às vezes diversas. 2. Sistema jurídico brasileiro. A lei brasileira não cogitou, explicitamente, do direito de obter novo exemplar, se gasto, manchado ou desbotado o original. Mas, sempre que se trata de título destinado a ampla circulação, ou intensa negociabilidade, como se dá com as ações ao portador e as debêntures, está entendido que o subscritor deu ao portador o direito de exigir a substituição ou duplicata. Não se poderia estender a presunção aos bilhetes de loteria, que, se, em verdade, se transferem de mão em mão, não foram destinados à mesma circulabilidade que os títulos de crédito propriamente ditos. Como os bilhetes de loteria, muitos outros. Porém é preciso fixar-se um critério, sem o que, teríamos, no assunto, a arbitrariedade das opiniões ocorrentes a propósito de cada um dos casos concretos. 3.Técnica legislativa. O antigo Código Comercial italiano, art.56, pr., concedia ao portador, expressamente, o direito de trocar o título roto, sujo ou gasto, por outro equivalente, ou duplicata, se ainda reconhecível o original. No Código Civil italiano (vigente),o art. 2.005, tomou a mesma trilha: “II possessore di un titolo deteriorato che non sia piú idoneo alIa circolazione, ma sai tuttora sicuramente identificabile, ha diriff o di ottenere dall’emittente um titolo equivalente verso la restituzione deI primo e il rimborso delle spese”. O Código Civil alemão estatui, no § 798, que o portador de título, que se não presta mais a circulação, devido a se

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achar deteriorado ou danificado, pode, se ainda são reconhecíveis com certeza o seu conteúdo e seus sinais característicos, pedir ao subscritor novo título, em troca do impróprio ao mister; mas o apresentante tem de suportar e adiantar as despesas. Na França, como no Brasil, a lei não cogitou da hipótese. Na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, faz-se distinção entre a alteração voluntária e a alteração acidental: na primeira espécie, não tem o portador direito à troca; na segunda, não se perde o título ao portador e pode-se pretender outro. No Brasil, os princípios são os seguintes: a) serem exibidos para substituição os títulos ao portador; b) serem identificáveis c) não ter sido pré-excluída, em cláusula do próprio titulo, a substituibilidade. § 84. Pressupostos para exsurgimento da ação 1.Pressupostos para a substituição. Para que o portador possa intentar a substituição, faz-se preciso que o título ainda conserve os sinais distintivos: se numerado, ou em série, o número do exemplar e a ordem da série; a importância e outros sinais. Não se exige que sejam perfeitos os caracteres e as letras: basta que não estejam em situação tal que se possam suscitar dúvidas. Atende-se, exclusivamente, à identidade do titulo. As duplicatas ou exemplares para substituição são e devem ser encontrados em mãos do subscritor ou emissor. Porém nada obsta a que se declare, no mesmo título, que outrem se encarrega do serviço de troca de títulos deteriorados ou sujos (e.g., o Estado de São Paulo incumbia seus banqueiros franceses de procederem às substituições dos títulos). Os títulos devem ser destruidos, quando se der a retirada da circulação consequente ao pedido de outros, que os substituam. O modo de destruí-los é perfurá-los, ou riscá-los, e melhor é aquele processo do que esse. Se, perfeito, volta à circulação, o subscritor responde ao portador de boa-fé, e só mediante citação pode impedir que ao tenedor ou possuidor sem direito se faça o pagamento. Caso digno de todo o escrúpulo é o do título roto ou cortado. A regra jurídica formula-se nos termos seguintes: só se reputa identificado e suscetível de troca o exemplar que contém os sinais característicos e, ainda, que seja, evidentemente, mais da metade do título inteiro (se a metade bastasse, haveria dois títulos). Se é certo que a índole literal do título ao portador permite presumir-se, nos títulos de grande circulação, o direito de haver novo exemplar, também é certo que se não deve levar a concessão até onde constitua, não mais consequência da intensa negociabilidade, mas apenas verificável intuito do portador de destruir ou romper o título, a fim de obter a troca, que só impõe ao subscritor como consequência de ter criado, voluntariamente, título destinado a ampla negociabilidade. Não se poderiam conciliar os dois fins — obtenção de pagamento em dia determinado e circulação, às vezes intensa — com a insubstituibilidade do papel inominado que se desbotou, sujou ou se rompeu. 2. Substituição. Na ocasião de troca, o subscritor ou emissor recebe o título estragado ou seus fragmentos; carimba-o, rompe-o ou guarda-o, e entrega outro ao portador, com os mesmos caracteres, quer se trate de emissão singular, quer de títulos emitidos em massa, pois não se deve atribuir ao novo exemplar outra natureza que a do substituído. A fungibilidade, nos títulos, é a exceção; e no direito brasileiro, que permite a reivindicação dos títulos ao portador quando perdidos ou roubados, deve o subscritor ou emissor guardar o exemplar roto, deteriorado, ou apenas embotado, a fim de não desfazer a identidade do papel (desmaiado, talvez) e evitar pesquisas e indagações a respeito de sua origem. Mas isso somente se entende quando há neles notas ou sinais capazes de fixar a identidade, como, por exemplo, datas, nomes, carimbos. Não quer isso dizer, todavia, que a lei obrigue o subscritor ou emissor a tais precauções a favor de terceiros. Como por vezes ficou assente, só se lhe exige não pagar, nos casos de intimação prévia. Na substituição, não se trata de pagamento, mas sim de ato do subscritor, que se permeia na circulação do título. Se o terceiro prova a sua má-fé, responde o subscritor como de direito; ai, ineficaz foi a substituição e deve o subscritor entregar o título substituido ou ressarcir o prejuízo que sofreu o terceiro injustamente desapossado.

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Se o subscritor ou emissor substituiu titulo ao portador que não podia ser substituído e o exibidor, que obteve a substituição, furtara o titulo ao portador, ou achara o título perdido, não se livra da posição de devedor. Idem, se o substitui, mesmo se cabia a substituição, depois da citação para que não pague, ou de qualquer outra citação em que se lhe dê ciência do furto ou da perda. É recomendável que os possuidores de títulos ao portador, por esse e outros motivos, avisem logo o subscritor das perdas ou furtos que sofreram, não só judicialmente, para evitar o pagamento a tenedor ilegítimo, como para evitar a troca do achado ou do furto, o que se pode fazer sem a formalidade judicial e imediatamente, com as designações que individuem o título perdido, ou furtado, ou, ainda, esbulhado por algum possuidor ilegitimado. 3. Bilhetes de loteria. Os bilhetes de loteria são, em regra, insubstituíveis. A vida deles é curta. Procede-se à extração em breve tempo: se sorteado, o possuidor de título roto, estragado, ou sujo apresenta-o, a fim de haver o quanto, e a regra é que a empresa deve pagar, se contém os caracteres individuantes, conforme os princípios comuns, que podem ser restringidos ou ampliados por expressa declaração nos bilhetes. No caso de perda ou furto, o possuidor recorre ao juiz que, por mandado judicial, manda intimar a empresa a não pagar ao pretendido portador ilegítimo. Procede-se à vindicação da posse, mas não se substituem os bilhetes, por sobrevir extinção de prazo, porque o bilhete de loteria, por disposição de lei especial e por sua função, é insubstituível. Em todo o caso, pode, no próprio bilhete, ou em virtude de lei especial sobre determinada loteria, ser admitida a substituição, o que se justifica, por exemplo, nas extrações de longo prazo, ou quando o sorteio é acessório de empréstimo. No último caso, prevalece a lei do principal. 4.Cheques postais. Passemos aos cheques postais. Apresentado à repartição do Correio o cheque postal, deteriorado, em modo que se torne impossível a verificação do número de ordem, ou do valor, ou manchado, ou roto, de feição que não preste como documento apto para o efeito da contabilidade, o empregado, a que se exibiu, tem de retê-lo e, passado ao portador o recibo com minuciosas declarações do estado e caracteres perceptíveis do cheque, enviá-lo à repartição emissora. O portador é obrigado a fazer declaração de próprio punho que contenha: a) o nome e endereço da pessoa que lhe remete o cheque; 14 o estado em que lhe chegou às mãos; c) quem estragou ou alterou o cheque, se o sabe. Se o portador não sabe ler, ou não pode escrever, são redigidas por terceiro as declarações, perante duas testemunhas conhecidas do empregado, que atestem, assinando, a verdade do ato. Cheques e declarações devem ser remetidos, sem demora, sob registro de serviço, à repartição emissora, a fim de que essa autorize, ou não, o pagamento. Se o cheque, meio destruido ou danificado, foi encontrado nas malas, a repartição tem de chamar o destinatário, a fim de saber o nome e a residência do remetente, e oficiar, sob registro, à repartição, com as informações recebidas e as que concernirem ao estado do cheque, juntando-o, para que se decida de acordo com o regulamento. No caso de extravio de cheques postais nominais, podem ser fornecidas segundas vias deles aos remetentes, mediante requerimento e apresentação do recibo respectivo. Não se fazem nunca segundas vias de cheques ao portador. Cheque postal ao portador, uma vez destruído, é cheque morto. Nominais ou ao portador, os cheques postais não permitem reembolso: destruidos os nominativos, dão-se novas vias; os inominados falecem — a Unido ganhou o que recebeu para o emitir.

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Capítulo XXIX

Ação de nova cártula por destruição de título § 85. Destruição completa dos títulos ao portador 1. Posição do problema. Impõe-se-nos o estudo das hipóteses de destruição completa do título. Não mais se trata de papel estragado ou roto, com caracteres difícil ou perfeitamente legíveis; não mais se atende à existência de sinais distintivos, pelos quais se identifique o título e, em troca, se obtenha o outro, em operação material de troca. Vamos mais além: imaginamos que se queimasse completamente, que inteiro se deteriorasse, ou que se derretesse, no caso, por exemplo, de bilhetes de celulóide, o instrumento da divida. 2. Destruição completa e inexistência, O título destruído deixa de pertencer, materialmente, ao mundo fático, como papel. Não se pode querer, senão em casos especialíssimos de felicidade e de presteza em se chegar ao lugar onde se operou o desastre, ou o atentado, que as cinzas do documento conservem os caracteres distintivos da apólice, da letra de câmbio, ou do que for. Se o ensejo feliz se apresenta, de assim ainda se alcançar o papel queimado e de se lhe lerem, com exatidão, os dizeres essenciais, outro será o caminho que há de seguir o podador: não se terá de alegar destruição, mas deterioramento parcial. Provada, pelos sinais ainda visíveis, a identidade do título, terá o subscritor de fornecer substitutivo, de acordo com o que anteriormente dissemos. Se os fragmentos não permitem que se vejam ou se entendam os dizeres, de maneira que se assente a identidade do

papel, ou se os fragmentos não compõem mais de metade do título com os enunciados essenciais, ou se não os há, o portador não pode recorrer aos expedientes breves da substituição por troca de papel ou de outra cártula. Não pode ele apresentar o titulo; tem apenas, a se favor, a lembrança, ou nota dos sinais individuais do título destruído. Não se pode assimilar a situação dele à do portador que foi desapossado por esbulho, abuso de confiança ou perda. Porque, ai, o titulo sobrevive à posse direta do portador, ao passo que, na espécie, que ora versamos, a posse do portador sobrevive ao título. Mas, pergunta-se, a posse pode ultrapassar, no tempo, a existência da coisa possuida? Não será isso forte argumento contra as teorias que vêem na posse a fonte do direito do portador dos títulos? Se o título é substituível, ou se é amortizável, o que prevalece é o princípio da sobrevivência do título ao portador ao material. Trata-se a destruição completa como se trataria a perda ou o furto. Aliás, a perda pode ter sido seguida de destruição completa; bem assim, o furto. Seja como for, se a cártula não mais existe e pode ser entregue ao portador outro exemplar, o que se há de entender é que o direito de crédito subsiste e com ele o direito a cártula, bem incorpóreo consistente em direito a que se preste bem corpóreo. Durante todo o tempo em que se prepara a substituição, ou a amortização com a entrega de novo exemplar, o possuidor do titulo ao portador é possuidor da cártula a que tem direito, o que se torna fácil de conceber em sistema jurídico, como o brasileiro, em que, no tocante à posse, se abstrai do animus e do corpus. § 86. Pretensão, ação e exercício da ação 1.O problema e as atitudes da doutrina. Urge tomar-se o fio do problema e afastarem-se, uma por uma, as dúvidas e os embaraços que soem aparecer. Os que considerassem o título simples documento probatório não deparariam dificuldades: sempre é possível fornecer duas vias ou mais de um recibo ou de um contrato. Assim sucede quase sempre aos que se embandeiram nas teorias do simples documento. Salvo Ercole Vidari (Corso di Diritto commerciale, III, 19), cuja inconsequência foi verberada (Arnaldo Bruschettini, Trattato dei Titoli ai portatore, 519), e outros, poucos, porque são os que seguem doutrinas de absoluta ligação entre o direito e o papel, de modo que desapareça o crédito no instrumento, tiram a conclusão lógica da impossibilidade de se fornecerem novos títulos. Na Itália, antes do Código do Comércio de 1882, digladiavam-se as opiniões. De um lado, estavam os que levavam a compenetração indissolúvel do crédito no título à extrema consequência de importar extinção da dívida o fato de se ter destruído o titulo. O subscritor não poderia fornecer novo exemplar, ou duplicata, ou qualquer fórmula, que substituísse o papel extinto. Morto o corpo, cessava o espírito, e casum sentit dominus, ou res perit domino. Outra opinião pretendia justamente o contrário: a duplicata não devia, nem podia ser negada. A indissolu-

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bilidade assegurava a sobrevivência. Prosseguiu, por muito tempo, a primeira opinião, consectária da teoria prevalecente. Confundia-se, lamentavelmente, a destruição com os desapossamentos. Houve, porém, opiniões intermédias, que apenas restringiam as possibilidades de alcance de novo espécime, com o exigir-se prova rigorosa da pretendida destruição. Hoje, rege o art. 2.605 do Código Civil italiano: “II possessore di un titolo deteriorato che non sia piú idoneo alIa circolazione, ma sia tuttora sicuramente identificabile, ha diritto di ottenere dall’emittente un titolo equivalente verso la restituzione deI primo e il rimborso delle spese. Tal o direito do possuidor (e dizemos possuidor, porque éa posse de boa-fé perante o subscritor que interessa a esse), o que sustentamos, desenvolvidamente, em 1921, na V ed. da obra Dos Títulos ao portador (345-363) e, em 1933, na V ed. (II, 70-91). Aí não há solução ao problema da substituição do titulo ao portador completamente destruído. Se há a identificabilidade, o problema é fácil de resolver-se. Se a destruição é total, é outro o problema. Na espécie extrema, que é a destruição total, sem que se possa dizer qual o titulo ao podador que foi destruído, como se a emissão em massa não foi de títulos ao portador nomeados, ou numerados, têm-se de afastar substituição e amortização seguida da entrega de novas cártulas. Como seria possível levar-se ao conhecimento do público que o titulo ao podador foi destruído e que se vai favorecer novo exemplar? O juizo da amortização teria de acarretar com a responsabilidade de considerar feita a prova da destruição total do título ao portador inidentificável. Temos, assim, que é elemento essencial a identificabilidade do título ao portador. Convém que separemos, com precisão, os casos em que há elementos materiais que fiquem com o subscritor, ou o emissor, de modo que não possa haver dois pedidos de substituição do mesmo titulo ao portador, e os casos em que não há esses elementos, mas há a identificabilidade, de jeito que se tenha de lançar mão do procedimento edital. Aqui, amortiza-se o que acaso esteja a circular, para que, retirada a juridicidade do que se supõe destruido, ou está destruído, se entregue ao portador outro exemplar. 2.Exercício do pretensão a haver outra cártula. Já ficou assente que o direito sobrevive ao título, pois que lhe é possível readquirir a sua forma originária num título que lhe equivalha. Exigem-se, em todos os casos: a) A alegação e a prova da posse. Se há quem também se diga possuidor, o segundo reclamante deve suscitar, no juízo competente, a devida ação possessória. Não se poderiam atribuir ao subscritor a apreciação e o julgamento de situações contenciosas. Mas, se parece evidente a posse de um, em vez da de outro, e o subscritor julgar acertado entregar-lhe o novo exemplar, corre por sua conta e risco, embora obre, ou não, de má-fé. No direito italiano só se exigia a prova da posse imediata, que eles chamam “material”, porque se não deve exigir mais do que se requere para o pagamento (Arnaldo Bruschettini, Trattato dei Titoli ai portatore, 520; Cesare Vivante, Trattato di Diritto com merciale, III, 649). Outra não é a solução, no direito brasileiro, porque perante o subscritor não se cogita senão da posse que permita a apresentação. O interessado em que o subscritor, ou emissor, não entregue ao apresentante a duplicata ou exemplar tem de ingressar em juízo para que o subscritor, ou emissor, deposite a duplicata ou exemplar do titulo ao portador que vai substituir o que foi destruido. Não há outra solução, porque o problema quanto à propriedade ou à posse está posto e só a justiça o pode resolver. b) A alegação e a prova da destruição. A prova não é fácil fazer-se. Prova de fato, pode ser feita pelos meios legais de prova, quaisquer que sejam. As presunções, para que sejam bastantes, devem ser precisas e concordantes, de maneira que convençam ter sido o título ao portador realmente destruído. Por exemplo: os pedaços de papel queimado, que não seriam o suficiente à prova da identidade, a fim de se operar a troca, serviriam, aí, para a prova

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de se haver queimado algum título; a compra de um, ou muitos, dentre os quais falte o que se pretende queimado; a nota dos que possuia o reclamante. Haveria a presunção hominis. O que não permite de si só a entrega de novo título é a simples probabilidade, por mais notável que seja, da destruição do original. Se o subscritor o entrega, é por seu risco. (a) Em França, se um título foi deteriorado, em parte, pelo fogo, ou por água, ou por algum roedor, ou por outro qualquer motivo, o possuidor deve levar os fragmentos ao banco ou casa emissora. Se as partes essenciais do títulq não desapareceram e se se pode verificar a sua identidade, no ajustá-lo à fonte, nenhuma dificuldade faz o estabelecimento em fornecer duplicata ao portador, que paga as despesas. No caso de haverem desaparecido alguns cupões, ou um só, fica consignada a soma, que será entregue cinco anos após o vencimento, salvo se outrem os veio receber, o que destrói a presunção, ou simples suposição, de se terem queimado, ou, de qualquer outro modo destruído. Para evitar a perda possível, quiçá ignorada pela vitima da destruição, o possuidor pode usar da oposição. Na hipótese de haver dúvidas sobre a identificação do título parcialmente destruído, o possuidor tem de conformar-se com as regras jurídicas da Lei de 15 de junho de 1872, que a Lei de 8 de fevereiro de 1902 modificou isto é, ao processo do desapossamento. Quid luris, se o titulo foi destruído em incêndio, ou desapareceu em naufrágio, ou em enchente, ou no que for? A doutrina vacilou, em França. Alguns autores, a quem lembrou o art. 1.348 do Código Civil francês (“ElIes reçoivent encore exception toutes les fois qu’il n’a pas été possible au créancier de se procurer une preuve littérale de l’obligation quí a été contractée envers lui. Cette seconde exception sapplique, 4º Au cas oú le créancier a perdu le titre qui lui servait de preuve littérale, par suite d’un cas fortuit, imprévu et résultant d’une force majeure’), pensam que o estabelecimento deve conceder duplicata e, em caso de recusa, a justiça pode constrangê-lo a isso. Outros, porém, mais razoáveis (Gabriel Benezech, Cuide pratique en cas de Perte ou de Vol de Titres au porteur, 45, 46), com atenderem à impossibilidade ordinária da prova absoluta da destruição ou desaparecimento perpétuo do título, fazem aplicável à espécie a regra jurídica quanto à perda e ao furto, isto é, as regras jurídicas da Lei de 1872. Todavia, Théophile Huc (Commentaire théorique et pratique du Code Civil, 14, § 523, 662), que, no comentário ao art. 1.348, tocara o assunto, sem suficiente extensão e clareza, afirmou, sob o art. 2.279, que a Lei de 1872 não se aplicava aos casos de destruição dos titulos ao portador. (b) No direito alemão, o § 799, alínea 1ª, 1ª parte, do Código Civil alemão falou do titulo ao podador perdido (gekommene Schuldverschreibung) ou destruído (vernichtete Shuldverschreibung). Equiparou a destruição à perda. O que importa éque tenha deixado de ser apto à circulação. A Lei alemã de Bilhetes de Bancos, de 30 de agosto de 1924, fez pressuposto a apresentação de mais de metade, o que afasta a invocação da regra jurídica de direito comum. Tem-se de proceder à amortização. Aliás, o § 799, alínea 1ª, 1ª parte, também é invocável se a destruição parcial é tão grande que se há de equiparar àdestruição (Adelmann, Kraftloserklárung, 28). (c) No direito brasileiro, somente se tem de distinguir da substituição por troca a substituição por amortização. Se o que resta basta à identificação, sem possibilidade de dualidade de cártula, claro é que se pode dar a troca, que substitua a cádula. Se não há elemento suficiente à identificação, a dação de nova cártula somente pode ser mediante o procedimento edital, à semelhança do que se faz para a dação de novos títulos ao portador, em caso de desapossamento. Têm-se, assim, soluções precisas: a) Se o título ao podador, destruido, é inidentificável, mesmo mediante dados apontados pelo interessado, não há substituibilidade possível, nem, tampouco, amortizabílidade, com entrega de novo título. b) Se do titulo ao portador, destruído, há elementos identificativos que podem ser entregues ao subscritor, ou emissor, sem risco de que outrem se apresente com a mesma legitimação, o uso do tráfico, na ausência de lei, determina que o subscritor, ou emissor, proceda à substituição. c) Se o apresentante apenas pode comunicar os sinais identíficativos do título ao podador destruído, têm-se de pedir, com o procedimento edital, a amortização e a entrega de duplicata ou novo exemplar. 3. Apólices da dívida pública. As apólices da dívida pública, quando perdidas, podem substituir-se por outras de iguais números e valores. Trata-se, pois, de duplicata. É óbvio que, além do número de ordem, são de exigir-se a

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série, o ano da emissão e mais caracteres distintivos. Em todos esses casos de substituição, é essencial a identidade do título. Sem as notas individuantes, nada se pode fazer, porque seria embaraçar-se o curso de outras que não a determinada apólice, de que se quer duplicata, como também expor-se o subscritor, que, na hipótese, é a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município ou o Território, a pagar mais de uma vez, se a duplicata não excluir, pela identidade extrínseca, a apólice perdida. A Lei de 15 de novembro de 1827 estatuía, no art. 66: “Se o portador de uma apólice a perder, poderá haver da Caixa de Amortização, e suas Filiais, outra apólice de igual número e valor, justificando primeiramente a perda, e pagando, para as despesas da caixa, o mesmo que se acha disposto no art. 34”, isto é, 1/4 por cento do valor da apólice, depois elevado a 1/2 por cento. Pergunta-se: o art. 66 referia-se à perda, desapossamento involuntário e casual, ou a todos os modos de destituição injusta e cessação anormal da posse? Mais claramente: envolve só a obra do acaso, quando o título, sem cessar de existir, passa da mão do possuidor para lugar incerto, ou todas as demais hipóteses, como a da destruição total ou parcial? H. Inglês de Souza (Títulos ao portador, 230), sem maior exame, viu na palavra “perda”, não só o que, por definição, se lhe percebe, como a destruição do título e, firmando-se no art. 66, concluiu que, em caso de perda ou destruição, os possuidores têm direito ao pagamento do capital e ao recebimento de duplicata. A razão, não na disse. Em verdade, o art. 66 da Lei de 15 de novembro de 1827 apenas dizia ser possível a emissão em duplicata, porém sem entrar na enumeração dos pressupostos necessários. Aludiu somente à referência ao número e ao valor e ao quanto das despesas. Ora, o que rege é o direito comum. Não se compreenderia que, à simples informação do portador, se fornecesse a duplicata da apólice ao portador. Seria atribuir-se a órgão da administração poder que os órgãos judiciários não têm. Somente após a amortização se poderia pensar em dação da duplicata. 4.Cheques postais. Cheques postais, extraviados, ou destruidos, quando nominativos, permitem o pedido de segundas vias. Não assim, porém, os cheques postais ao portador: destruidos, perdeu-os irremediavelmente o portador; extraviados, pode a vitima da perda ou do furto recorrer aos processos legais de reaquisição de posse. Não, porém, à regra jurídica do prazo para a caducidade. A providência para que não pague torna-se ilusória pela possibilidade de ser recebido o cheque em quaisquer das repartições postais autorizadas a pagar e emitir. Quanto aos cheques postais semidestruídos, já dissemos. A vida assaz curta do cheque e o atabalhoado do serviço público legitimam a solução da extinção da dívida no caso de se destruir o cheque postal concebido ao portador. 5. Títulos ao portador sem dizeres. Há títulos ao podador nus de dizeres. Nenhuma declaração contêm. Nem, sequer, muita vez, simples traços, quadriculados ou desenhos concêntricos. São inteiramente lisos e de uma só cor, e. g., as fichas de alumínio usadas por algumas empresas e as de marfim ou matéria plástica por salões de conferências públicas. Segundo as circunstâncias da emissão, o programa, a natureza do titulo, podem elas ser ou não substituidas. E na verificação deve-se atender à vida, longa ou curta, do título. Nos dois exemplos citados fora sem grande alcance admitir-se a substituição compulsória — é tão breve a vida do cartão ou ficha de cinemas e teatros! é tão mais breve ainda a da ficha de conferência! O que pode dar-se — mas sem obrigatoriedade —é a substituição a líbito do emissor, que há de velar pela mantença da simpatia despertada pelo estabelecimento e querer que o ato de atender ao alegado cative a freguesia. Mas, aí, há emissão de outro título, manifestamente caracterizada pela voluntariedade do novo ato de emissão. Dois atos volitivos, dois fenômenos jurídicos. Nesses casos, ou não tem o portador de pagar despesas, ou o estipula o emissor no momento de aquiescer na entrega de novo exemplar. Ou, conforme as circunstâncias, mera substituição voluntária, se não figura em caixa o importe. 6.Terceiro e oposição a pagamento. A relação jurídica de crédito é somente entre o subscritor e o possuidor. Não importa se aquele não sabe quem seja o titular da posse. Conforme vimos, o direito vai ao ponto de permitir ao subscritor que pague sem investigar quanto à posse do apresentante e dê a quem pode apresentar a legitimação para fazer nascer a obrigação do subscritor, antes apenas devedor, e cobrar o pagamento. Todavia, pode alguém ter controvérsia com a pessoa que pode ou poderia apresentar, e o sistema jurídico seria

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falho se não desse ao terceiro o meio de evitar o pagamento a quem não tem o poder de dispor do titulo, ou por não ter posse de alter digno, ou por outro fundamento.

Capítulo XXX

Ações de tomada de dinheiro a risco e de venda de mercadorias de bordo § 87. Conceito 1. Dinheiro a risco. Ao capitão incumbe levar o navio aos portos de destino, dirigi-lo e conduzir-lhe a carga, evitando-lhe avarias e perdas. É de supor-se, hoje em dia, que não lhe faltem os recursos para isso, ou porque possa, nos portos, sacar contra a companhia, ou porque lhe seja fácil comunicar-se com ela, ou porque ao agente local caiba atender às suas necessidades de dinheiro. A correspondéncia rápida, aérea, telefônica, ou telegr~fica, talvez lhe baste em circunstâncias menos favoráveis. Marcada pela idade que tem, a velha regra do dinheiro a risco espontou no Código Comercial, arts. 515 e 516. Se, durante a viagem, lhe faltam fundos e não está presente algum dos proprietários da embarcação, mandatários, ou consignatários, ou, na falta deles, algum interessado na carga, ou, se, presentes, não providenciam, pode o capitão contrair dívidas, tomar dinheiro a risco sobre o casco e pertenças do navio e remanescentes dos fretes, depois de pagas as soldadas (privilégio, não garantia real). Até mesmo, na falta absoluta de outro recurso, vender mercadoria da carga (ou dar em garantia), entenda-se, sempre que tal dinheiro seja para reparo ou provisão da embarcação. Tem ele de explicitar nos “títulos das obrigações, que contraia, a razão por que as contrai’. Contudo, para assumir obrigações de tal guisa, o capitão precisa de justificação prévia. E de tal justificação que aqui se cogita. Não há gradação nas obrigações. Posto que os arts. 754 e 755 do Código de 1939 somente se refiram ao dinheiro a risco, abrange ele o dinheiro a risco e a venda de mercadorias. 2 Pretensão do capitão. Para que o capitão, à falta de outros meios, possa tomar dinheiro a risco sobre o casco e pertenças do navio e remanescentes dos fretes, ou vender mercadorias da carga, é indispensável: a) que prove o pagamento das soldadas; b) que prove absoluta falta de fundos em seu poder, pertencentes à embarcação; c) que não se ache presente o proprietário da embarcação, ou presentante, representante, ou consignatário, nem qualquer interessado na carga, ou que, presente qualquer deles, prove o capitão haver-lhe, sem resultado, pedido providên-cias; d) que seja a deliberação tomada de acordo com os oficiais, lavrando-se, no diário de navegação, termo de que conste a necessidade da medida (Código de Processo Civil de 1939, art. 754, 1 a IV). A obrigação não pode ser garantida por hipoteca do navio, por ser restrita ao proprietário ou ao seu representante com poderes especiais. Não vale o negócio jurídico contra as regras jurídicas dos arts. 515 e 516 do Código Comercial, porquanto são de direito cogente. 3.Prova das soldadas pagas. Tem-se de fazer prova das soldadas pagas. Essa é a inteligência da lei. Não de estar quite o navio. Atende-se, com essa exigência, à pretensão da tripulação à preferência (Código Comercial, art. 470, 5 e 6), em relação aos prestamistas e a outras dívidas do navio. 4.Prova da falta de fundos. A prova do segundo pressuposto é feita pela apresentação das vias de conhecimento (prova do recebimento da carga), ou pela prova de não ter recebido carga, ou pela prova de não ter o agente ou consignatário fornecido fundos, ou não ter sido atendido o pedido telegráfico ou postal, ou pela justificação da falta de fundos (e. g., furto ou roubo dos dinheiros a bordo).

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5. Prova do pressuposto de estar ausente o proprietário, presentante, representante, ou consignatário. A ausência ou recusa das pessoas mencionadas no art. 754, III, do Código de Processo Civil de 1939, ou se prova pelos meios de prova em geral, ou pela justificação. § 88. Justificação dos pressupostos e decisão 1. Competência judicial. A justificação dos pressupostos faz-se perante o juiz de direito do porto onde se toma o dinheiro a risco ou se vendem as mercadorias, e há de ser julgada procedente para que produza efeitos de direito (Código de Processo Civil de 1939, art. 755). O foro competente é o do porto onde se toma o dinheiro a risco ou se vendem as mercadorias. Nos países estrangeiros, a questão da competência obedece à lex fori. 2.Eficácia da decisão. Os efeitos são os do privilégio que se atribui a esses créditos (Código Comercial, art. 470, incisos 6 e 8) e a transferência das coisas vendidas, apesar de não pertencerem ao vendedor. O poder de disposição sai dos donos para o capitão, mas subordina-se à exigência da resolução judicial constitutiva integrativa do negócio juridico de empréstimo ou de venda. A preferência, em todo caso, à diferença da constituição do negócio jurídico, que só depende da resolução judicial integrativa do art. 755 do Código de Processo Civil de 1939, somente se estabelece depois das formalidades de autenticação e registro. Para a preferência, resolução judicial e averbação (e autenticação consular, se a divida foi contraída no estrangeiro) são condiciones iuris, elementos integrativos necessários: não há preferência se não houve justificação; ou se não houve avaliação; ou se, devendo haver, não houve autenticação consular. Se o capitão contrai divida abstrata, como se emite letra de câmbio (Supremo Tribunal Federal, 22 de janeiro de 1898, OD 75/542), ou nota promissória, sem se terem observado as exigências legais (Código Comercial, arts. 515 e 516), pode o dono do navio recusar-se a pagá-la, porque ou não consta do título o destino do dinheiro e o portador deveria ter exigido prova do negócio jurídico, subjacente, de que resultariam os poderes do capitão, ou não consta, sem que baste a documentação do negócio jurídico subjacente, e o responsável, nesse como naquele caso, seria o capitão. 3.Natureza da sentença. A ação de justificação é fundada na pretensão a produzir a prova; a sentença, constitutiva de prova. O recurso é o de apelação. Não se confunda a eficácia da justificação com a eficácia dos negócios jurídicos em que tomou parte, após ela, o capitão.

Capítulo XXXI

Ação de abertura de concurso de credores, inclusive falencial § 89. Conceito 1. Direito concursal. O sistema jurídico brasileiro mantém a dualidade de concursos de credores, o civil e o comercial, com o esgalhamento de um e de outro em processos de liquidação administrativa coativa. 2. Natureza do concurso de credores civil. Só o comerciante incorre em falência, de modo que concurso de credores civil étodo concurso de credores em que o devedor não é comerciante. Enquanto o concurso de credores comercial ou concurso falencial costuma estar prolixamente disciplinado na lei de falências, o concurso de credores civil apenas consta de dezoito artigos do Código Civil (arts. 1.554-1.571) e dos arts. 748-785 do Código de Processo Civil, que repetem, às vezes, alguns daqueles. Quanto à técnica legislativa, as omissões das regras jurídicas são evidentes. Mas, diante de leis omissas, principalmente em se tratando de procedimento, não pode o jurista satisfazer-se com a crítica da lei. A sua missão

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cresce de ponto: é a de revelar, com lealdade, o sistema juridico. Os meios mais eficientes para isso são os de ir-se resolvendo cada questão que surge ao ter-se de pedir a abertura do concurso de credores civil e cada questão que diga respeito à introdução dos credores não-estantes, isto é, à admissão deles ao concurso de credores civil. Comparando-se com a falência e as liquidações coativas, o concurso de credores civil apresenta pequenas diferenças, sendo uma delas, e hoje a principal, a vedação do comércio aos falidos e comerciantes atingidos pelas liquidações coativas. Outras diferenças há, como a do prazo em que se têm por ineficazes atos jurídicos e atos-fatos jurídicos praticados antes da falência, ou da liquidação coativa, sem se tratar de ação de anulação (ou de revocatória falencial). Temos de frisar, a cada momento, os pontos em que os dois institutos não são superponiveis, e aqueles em que, a despeito de faltar num deles alguma regra jurídica, havemos de entender que a regra jurídica do outro revela algo do sistema jurídico e só ocasionalmente se exprimiu como se fosse regra jurídica especial. 3. Insolvência civil, O instituto da falência civil, em toda a sua plenitude, não penetrou no direito brasileiro. Se não é o caso de concurso de preferências puro, o pressuposto de ser de supor-se insolvente o devedor é necessário. O art. 1.554 do Código Civil continuou a tradição (Ordenações Filipinas, Livro III, Titulo 91, pr., verbis “e o devedor não tiver outros bens). O concurso de credores do direito brasileiro não é, portanto, inexpansivo aos bens; se é, como se diz, concurso especial, que recai sobre os bens penhorados, ou nomeados pelo devedor, nem por isso deixam de ser apanháveis por ele, tanto quanto é expansiva a penhora, se os bens não bastam (Código de Processo Civil, art. 667, II), e os próprios oficiais de justiça (Código de Processo Civil, art. 659) recebem mandado para penhorar quantos bastem. Aliás, ao deixar-se aos interessados a afirmação e prova da existência de outros bens, que excluam a afirmação de insuficiência dos bens penhorados ou a enumeração pelo devedor em relatório, implicitamente reconhece que podem eles inquirir sobre a existência de outros bens e apontá-los, trazendo-os ao concurso. Porém não só. A extensão subjetiva depende de citações pessoais, ou por edital, e a essa extensão subjetiva pode corresponder — e é conveniente que corresponda — a extensão objetiva. O que então se passa em relação aos bens é o mesmo que ocorre em relação aos bens que a falência atinge. O devedor não os pode alienar; se os aliena, há a ineficácia relativa, no que concerne aos credores concursais. § 90. Figura do liquidante 1. Concurso de credores civil, Nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil de 1939 falavam de pessoa a quem incumbissem posse, administração e disposição do ativo da massa concursal, e liquidação do passivo. No art. 1.566, 1, o Código Civil alude apenas a custas e despesas com a arrecadação e liquidação. Não fala de liquidante. E sob o Código de 1939, art. 1.028, proferida a sentença que julgava as impugnações, o escrivão remetia os autos ao contador, a quem cabia organizar o plano de distribuição, no qual, deduzidas as custas, se tomavam por base as preferências disputadas e os créditos apresentados. O juiz não tinha, portanto, em contacto de parte de ofício, alguém que administrasse, dispusesse e liquidasse o passivo. Tudo lhe ficava atribuído, à diferença do que se passava e se passa no concurso de credores falencial. Porém a função de extra ção do valor dos bens da massa concursal seria extremamente pesada, em muitos casos, se toda coubesse ao juiz, ou tumultuada, se aos credores e ao devedor tocasse qualquer iniciativa. Na ausência de qualquer regra jurídica que se pudesse interpretar como imperativa da criação de síndico ou de liquidante, o caminho de lege ferenda que se podia tomar era o de pedirem os credores, ou o devedor, ou o orgão do Ministério Público, que o juiz, por analogia com o que se estatuía nos arts. 85 e 657 do Código de Processo Civil de 1939 e se estatui no art. 1.591 do Código Civil nomeasse liquidante. A melhor analogia seria com o que se estabelecia, a respeito das sociedades dissolvidas, no art. 657, § 1ª, do Código de 1939: o liquidante era, então, escolhido pelos interessados, por meio de votos entregues em cartório; a decisão tomava-se por maioria, computada pelo capital dos sócios que votavam. Mas como a função do liquidante podia ser necessária antes de serem admitidas os credores e, a fortiori, antes de qualquer julgamento das impugnações, o mais acertado era recorrer-se ao que se estatuía quanto à liquidação falencial (Decreto-Lei nº

7.661, de 21 de junho de 1945, art. 60 e seus parágrafos, e art. 61).

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Na sistemática do Código de 1973 passa-se diversamente. Não há mais a eventual figura do liquidante no concurso de credores civil, porquanto se editou a regra jurídica cogente segundo a qual na sentença, que declarar a insolvência, o juiz nomeará, dentre os maiores credores, um administrador da massa (Código de Processo Civil, art. 761, 1). Suas funções são a de representante da massa concursal, tanto assim que a representa ativa e passivamente, e pratica atos conservatórios de direitos, pretensões e ações. A massa dos bens do devedor insolvente fica no juízo concursal como se tivesse havido penhoramento: a arrecadação tem a mesma eficácia, desde o momento em que se têm os bens como juridicamente arrecadados. A custódia, como diz o art. 763 do Código de Processo Civil, e a responsabilidade ficam com o administrador, desde o momento em que assina o termo de compromisso e lhe são entregues os bens, de que passa a ter a posse imediata, ou, se outrem tem legalmente a posse imediata, a posse mediata. O administrador é possuidor e pode, em nome da massa, que ele representa, propor as ações possessórias. Mas também as outras ações, reais ou pessoais. O administrador exerce as suas funções “sob a direção e superintendência do juiz”. A despeito de ser pessoa estranha à Justiça, há função pública (Cf. Mano Vaseili, 1 Debi ti delia massa nel processo di failimento, 9), uma vez que o juiz dirige e superintende, o que é mais do que vigiar (é superentender). Surgem as questões de responsabilidade. Pode havê-la só da massa, uma vez que o administrador exerceu a sua função dentro dos poderes que tem, sem que se preexclua a sua responsabilidade perante a massa (entenda-se: perante os credores concorrentes) e o juiz, ou perante o devedor. Pode havê-la perante terceiros, se por culpa sua o administrador lhes causou danos. Pode havê-la com cumplicidade do juiz, ou por ser cúmplice do juiz o administrador. O administrador tem o dever de proceder à arrecadação de todos os bens do devedor, mesmo se não constam do pedido do credor, que promoveu a declaração de insolvência do devedor, ou da individuação dos bens, com estimativa do valor, ou do relatório do estado patrimonial do devedor, que pediu a declaração de insolvência. O que pode acontecer é que da arrecadação constem bens que o credor, autor da ação de declaração de insolvência, ignorava existissem ou omitiu, ou de que o devedor ignorasse a existência ou tivesse omitido. O juiz, atendendo ao que se alegou, pode oficiar para que se remeta ao concurso de credores os em pluralidade de penhoras pelos credores que as podiam pedir, individualmente. A arrecadação é somente dos bens penhoráveis. Para a arrecadação são necessárias as medidas judiciais, que se exigem para as penhoras. Quanto à representação da massa, pode ser figure como autora ou re. Para isso, ou ele, administrador, é advogado, ou precisa de advogado, que ele escolhe. Para a função advocaticia é de mister que se ajustem, previamente, os honorários e que se submeta ao juiz para aprovação o contrato em que se fixam os honorários. Se o advogado é o próprio administrador, os honorários têm de ser aprovados pelo juiz, independentemente da remuneração do administrador. O administrador, acerca dos atos conservativos de direitos, pretensões e ações da massa, tem dever e não mera faculdade. Assume ele a responsabilidade de tal função. Diga-se o mesmo quanto às dívidas ativas da massa. Se não protesta nas espécies em que o direito material o exige, ou se deixa que a divida preclua, ou a ação prescreva, a responsabilidade é do administrador. Por outro lado, tem de promover a alienação em praça ou em leilão dos bens da massa para que se chegue à determinação final do valor do ativo. Para isso, é essencial a autorização judicial. O juiz arbitra a remuneração do administrador, atendendo à diligência, ao trabalho, à responsabilidade da função e à importância da massa. Da decisão podem agravar de instrumento os credores, o devedor e terceiro interessado. 2. Síndico da falência. A figura do síndico algumas vezes nos referimos, mas o assunto é especial à legislação falencial. É órgão da execução forçada, adiantemos. A sua função é publicistica, e não privatística. Em relação ao juiz, é como sub-órgão, e não como serviçal ou servidor da posse. Sobre os próprios bens arrecadados, tem posse,

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o que melhor se explicará no lugar próprio. § 91. Eficácia da sentença que admite o concurso de credores 1. Eficácia da decisão decretativa do concurso de credores em relação às ações antes propostas. As leis não têm regra jurídica sobre a eficácia da sentença que decreta a abertura de concurso de credores. A regra jurídica sobre não estar a Fazenda Pública sujeita a concurso de credores, impõe-se a qualquer concurso de credores, seja civil, seja falencial, ou em liquidação coativa ou controlada. Há circunstâncias que exigem não se suspenderem as ações já pendentes. Não há no Código Civil e no Código Comercial regra jurídica sobre a própria suspensão. Dai dois problemas: a)O concurso de credores não-falencial e não regulado à semelhança do concurso de credores falencial suspende o processo das outras ações? b) j,Quais as ações cujo processo não se suspende? A decretação do concurso de credores acarreta o vencimento das dividas (Código Civil, art. 762,11; Código de Processo Civil, art. 751, 1) e podem os credores, alegando-o, cobrá-las desde logo (Código Civil, art. 954,1) e, quanto aos créditos do devedor, tem de ser consignado em pagamento o que lhe é devido (Código Civil, art. 973, VI, V parte). São repercussões exteriores consideráveis. Se, havendo, em diferentes juizos, mais de uma penhora contra o mesmo devedor, se abre o concurso de credores no juizo em que se fez a primeira penhora, é óbvio que nenhuma penhora pode ser feita e prosseguir-se na execução forçada singular se aberto foi o concurso de credores. O argumento o fortiori leva à afirmação de que o concurso de credores suspende todas as execuções forçadas contra o devedor e impede que outras se façam: fora do juízo do concurso de credores nenhuma execução forçada é eficaz. Salvo se execução real, que nada tenha com créditos. Mas, para assim raciocinarmos, partimos da suposição de se tratar de se tratar de concurso de credores objetivamente universal, ou de execução forçada sobre os mesmos bens antes penhorados, ou a fortiori, se o concurso de credores é subjetivamente universal, que, de regra, também é universal objetivamente. Resta o caso das ações não executivas: ações declarativas, ações constitutivas, ações condenatórias e ações mandamentais. Salvo se o concurso é universal indivíduo. Sempre que a matéria é de apreciar-se no juízo concursal, as ações antes propostas se suspendem. Se as ações que foram propostas não são executivas, o juízo do concurso de credores civil não tem a uis attractiua, porque a lei subordinou a admissão ao concurso de credores civil ao pressuposto da certeza e liquidez das dívidas, portanto à sua executabilidade forçada. Se não poderia o credor propor a ação direta, ou se não a propôs, não há razão para se reputar preventa a competência do juízo concursal. No art. 762, § 1ª, do Código de Processo Civil, diz-se: As execuções movidas por credores individuais serão remetidas ao juízo da insolvência. Pergunta-se: que se há de fazer com as outras ações pendentes? Temos de cogitar do assunto com todo o cuidado. Quem propusera, por exemplo, ação condenatória, deve declarar o seu crédito, acompanhado do respectivo título,mesmo que não seja título executivo extrajudicial: o juiz do concurso de credores pode satisfazer-se com o que disseram ou não disseram os outros credores, pois que foram intimados por edital para se manifestarem, ou entender que não é caso para ser posto no quadro geral dos credores. Nessa última hipótese, a sentença, noutro juízo, se não chega a tempo de ser atendida na sentença de que se fala nos arts. 771 e 772, § 2ª, do Código de Processo Civil, o credor, que teve a sentença favorável, é tido como retardatário. 2. Teorias o respeito da natureza e do eficácia da abertura do concurso de credores. Na doutrina, quis-se, a princípio, atribuir à falência e às suas consequências incapacitação do falido. Seria incapaz, em virtude da falência; dai o desapossamento e tudo mais que se passa a respeito do falido e de seus bens. Tal teor ia subjetiva da incapacidade foi posta de lado, mais acentuadamente onde não se põe o falido, de modo nenhum, no rol dos incapazes. A fortiori, é de repelir-se a absurda teoria da morte civil ou fictícia. Tampouco, é de admitir-se a teoria da constriçâo, como a do penhor do patrimônio, ou a da possagem da propriedade á pessoa jurídica da massa falida, teoria que parte do erro básico de atribuir personalidade à massa falida.

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De ordinário, são os credores que se apresentam, mas pode acontecer que tenham sido convocados nominalmente, no edital, pessoas que não são credores, ou não mais o são. Por exemplo: se o devedor entendeu suscitar a declaração de insolvência e a abertura do concurso de credores; e mencionou quem não era credor, ou não mais o era quando, tendo havido penhora e apresentação do relatório do devedor, haviam sido convocados os credores arrolados, em virtude de sentença do juiz. Se o bem está gravado de enfiteuse, ou de direito real de garantia, a favor de credor que não é o exeqúente, ou quando não foi incluído no rol, o nome do titular do direito de enfiteuse ou do direito real de garantia, há citação conforme os princípios, mas basta o edital de convocação. Se não há razão para as citações pessoais, mas sim para as editais, observa-se o direito processual civil. Para a teoria subjetiva da incapacidade, o falido é incapaz, e o síndico, espécie de curador ou tutor. Para tentar resistir às críticas, os adeptos da teoria chegaram ao expediente desesperado, tão vulgar nos casos de dificuldade de encaixe de conceitos, de considerar a pretensa incapacidade do falido incapacidade sui generis, ou especial. Dai a ter de transmudar-se em teoria da perda do poder de dispor seria apenas obra de mais alguns passos. No concurso de credores civil, se há universalidade objetiva, tudo se passa à semelhança do que ocorre no concurso de credores falencial, exceto quanto à vedação de exercício de profissão. Os negócios jurídicos e os atos jurídicos stricto sensu a respeito dos bens alcançados concursalmente não podem ser praticados eficazmente pelo devedor. § 92. Eficácia de atos do devedor e patrimônio 1. Patrimônio e ineficácia relativa. O fato de existir, no sistema jurídico, a regra jurídica, segundo a qual há atos do devedor que não têm eficácia contra os credores, determina a diferença de extensão entre o patrimônio do devedor, para ele, e o patrimônio do devedor, para os credores. Nos poderes de administração que tem o juiz concursal incluem-se os de determinar a administração da empresa comercial ou não comercial, ou do bem imóvel (cf. Renzo Provinciali, Sequestro d’azienda, 132 s. e 153 s.; Lamministrazione giudiziaria dell’immobile soggetto ad espropriazione, .Studi in onore di Enrico Redenti, II, 221). 2. Concurso de credores civil. Durante o concurso de credores civil, em que não há a figura do síndico, nem a do liquidante, mas há a do administrador, rege o princípio do art. 677 do Código de Processo Civil, segundo o qual, se a penhora recai em estabelecimento comercial ou industrial, ou em propriedade agrícola, semoventes ou plantações, ao juiz, salvo ajuste em contrário, cabe determinar a forma da administração, a fim de que nenhum dano resulte à produção ou ao comércio. Também incumbe ao juiz pedir contas ao administrador sempre que lhe pareça conveniente resolver sumariamente as queixas contra a administração, remover sumariamente o administrador e privá-lo de remuneração, em caso de negligência ou má-fé, sem prejuízo das sanções estabelecidas na lei penal. § 93. Concurso de credores e poder de disposição 1.Execução forçada subjetivamente singular e execução forçada coletiva. A execução forçada subjetivamente singular começa, de regra, com a penhora. A penhora torna sem efeito, em relação ao autor da ação, qualquer alienação ou gravame dos bens penhorados. No concurso de credores, desde a abertura e o começo da eficácia erga omnes da sentença, dá-se o mesmo: há ineficácia relativa de quaisquer atos de alienação e de gravame, mas é preciso que se tomem as providências de publicidade, quer para o atingimento subjetivo quer para o atingimento objetivo. 2.Poder de disposição processualmente limitado. Muito se falou de exclusão do poder de disposição, de abolição do poder de disposição. Em verdade, porém, o que se passa apenas se pode chamar enfraquecimento ou limitação judicial do poder de disposição. No plano do direito material, não se retira o poder de disposição. O efeito nasce

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no plano do direito processual, por ser efeito da penhora, ou de publicidade, ou de detracção subjetiva do poder de dispor. Tudo ocorre no plano da eficácia dos atos processuais ou quanto ao processo concursal. O adquirente do bem penhorado, sem ser adquirente em juízo, é adquirente de bem sujeito a constrição executiva, de modo que se expõe a pretensões do credor ou dos credores. Não se pode dizer que a penhora fere o direito do adquirente do bem; o seu direito somente se constituiu com essa limitação, anterior à alienação, portanto anterior a ele. E como se o terceiro houvesse adquirido bem gravado de hipoteca, penhor ou anticrese, ou cautelarmente constrito. Não há falar-se de responsabilidade por dívida de outrem. A execução forçada continua como se iniciou, indiferente ao que se passou com a alienação. O adquirente é proprietário de bem sujeito a extração do valor para satisfação dos credores; tal extração pode ser de parte, ou de todo o valor. Ai, a diferença entre a posição do adquirente do bem penhorado, ou empenhado, ou hipotecado, ou sujeito a anticrese, e a do adquirente do bem gravado de uso, ou de usufruto, ou de habitação. Parecença não há entre o que ocorre com o bem alienado após a penhora e o que concerne ao bem que foi alienado em fraude dos credores (Código Civil, arts. 106-113; Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, art. 53). A diferença está clara na retroeficácia da sentença que se profere, ao se desconstituir o negócio jurídico fraudulento. A exclusão da eficácia de alguns atos, de que trata o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, art. 52, é derivada da regra jurídica de ineficacização desde certo tempo, o que expõe o terceiro à eficácia da sentença, que é declarativa de ineficácia. A alienação dos bens penhorados não é nula, nem anulável; é ineficaz, em relação aos credores. A alienação é de eficácia subjetivamente restrita, porque não existe, em se tratando dos credores penhorantes, alienação ou eficácia (cf. RarI Peter, Die Móglichkeit mehrerer Grúnde derselben Rechtsfolge und mehrerer gleicher Rechtsfolgen, Archiv fúr die ciuilistische Praxis, 132, 63; Hubernagel, Doppelwirkungen und l≤onkurrenzen, Arch iv fúr die civilistische Praxis, 137, 218). Sempre que a publicidade da decretação do concurso basta, segundo a lei, para que essa ineficácia se estabeleça, tem-se a irradiação do ato de abertura do concurso de credores como se penhorados tivessem sido os bens. 3. Teoria subjetiva da perda do poder de dispor. A teoria subjetiva da perda do poder de dispor vê mais os efeitos da abertura do concurso de credores, quanto à pessoa do insolvente ou falido, do que quanto aos bens constantes do patrimônio atingido. Ora, a permanência do poder de disposição, por parte do insolvente ou do falido, a propósito de alguns bens, ou patrimônio, mostra que não se pode deixar de examinar o aspecto objetivo da indisponibilidade. 4. Teoria objetiva da perda do poder de dispor. A teoria objetiva da perda do poder de dispor abstraiu do que se passa quanto ao insolvente, ou falido, para levar em conta, pelo menos em primeira plana, o que a situação do patrimônio ou de parte dele determina, no tocante aos poderes de disposição e de administração. As divergências surgem, a propósito dessa perda objetiva do poder de dispor, quando se indaga qual a causa de tal eclipse. a) Em direito romano, a princípio somente se estabelecia o juízo se os interessados convinham. O iudicium priva tum prendia-se ao negócio jurídico de arbitragem. Quando se considerou indefensus o citado para comparecer, se não comparecia, sujeito à cominação, que se lhe fizera, de entrega dos bens ao demandante (missio in bona) e conseqúente venda deles, abriu-se caminho para o futuro juízo puramente estatal, sem se relegar o princípio da convencionabilidade dos juizes. Presentes os interessados, as partes, o demandante expunha o que tinha a alegar e a pedir (editio action is), embora já o tivesse feito antes, extrajudicialmente (exercício extrajudicial da pretensão). As questões de competência do juizo, de capacidade processual e de legitimidade das partes, haviam de ser resolvidas, porque da decisão resultava dar-se (dare actionem) ou denegar-se a ação (denegatio action is). O Pretor ou deferia a missio in bona ou a missio in possessionem, caso em que se nomeava curator bonorum, administrador da massa, pois a missio era meio, e não fim, devido à pluralidade de credores. A figura — para a doutrina romana — era a do pignus praetorium (Ulpiano, L. 26, pr., D., de pigneraticia actione vel contra, 13, 7: “Non est mirum, si ex quacumque causa magistratus in possessionem aliquem miserit, pignus constitui, cum testamento quoque pignus constitui posse imperator noster cum patre saepissime rescripsit”; § 1ª: “Sciendum est, ubi iussu magistratus pignus constituitur, non alias constitui, nisi ventum fuerit in possessionem”). Para os juristas romanos, a figura era, evidentemente, a do penhor pretório ou judicial: o Pretor constituía o penhor.

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Nos nossos dias, a teoria objetiva do penhor judicial corresponde à concepção romana, porém há variantes quanto àatribuição subjetiva do penhor judicial e quanto à sua incidência. Por exemplo: a) haveria o penhor judicial, como ato constitutivo do juiz, atendendo ao direito dos credores ao valor pecuniário dos bens (F. P. Bremer, Das Pfandrecht und die Pfandobjekte, 65 s.; Eugen Fuchs, Das Wesen der Dinglichkeit, 93; Josef Kohler, Pfandrechtliche Forschungen, 47); b) em vez de direito e pretensão do penhor judicial, ou já penhor imperfeito (gage imparfait), que se converteria em penhor perfeito, conforme E. Thaller-J. Percerou (Traitá élémentaire de Droit commercial, li, 1050 e 1104), artificialidade que se há de repelir, porque transforma em direito de penhor (imperfeito) o que seria pretensão à constituição de penhor; c) direito geral (?) de penhor, com a communio incidens pigneraticia entre os credores concursais (Alfredo Rocco, II Fallimento, 85 s.); d) penhora coletiva, com finalidade de liquidação e com a função do síndico que substitui e presenta o falido (‘sinstaíle à sa place’, “remplace et représent le failli; C. Lyon-Caen e L. Renault, Faillites, Banqueroutes et Liquidations judiciaires, 1, 229 s.; Georges Ripert, Traité élémentaire de Droit commercial, 3ª ed., 1.012 s.); e) sequestro (?) com fim de liquidação Salvatore Pugliatti, Esecuzione foi-zata e Diritto sostanziale, 155 s.); f expropriação do poder de dispor (Aurelio Candian, II Processo di Failimento, 128 e 347), expressão que mais põe a questão do que a resolve, pois que não se discute se há, ou não, retirada do poder de dispor. 5.Posição processual do síndico no concurso de credores falencial. Em relação ao falido, o síndico tem estado processual (Prozessatandschat, cf. Josef Kohler, Der Dispositionsniessbrauch, Jahrbíichet for die Dogmatik, 24, 319), e Josef Kohler o chamou substituto processual; tem a faculdade de incoação do processo e legitimação ad causam. Em relação aos credores, não os representa, nem representa o falido. Exatamente quanto àmassa falida, não a representa: exerce a função de parte de ofício (Partei kraft Amts). A posição processual do síndico é de órgão de execução forçada. A execução forçada incumbe ao Estado, devido ao monopólio da tutela juridica. O síndico é órgão a serviço do poder de prestar justiça, que está com o Estado. Os seus atos, ainda aqueles a que se permita maior arbítrio, são para a execução forçada. Porque o poder de dispor foi retirado ao falido e o tem o Estado, que organiza, como entende, a função de atendimento aos que exercem a pretensão à tutela juridica. Os atos do síndico são atos que têm por fim a prestação jurisdicional executiva pelo Estado. 6 Posição processual do liquidante nas liquidações coativas. Passa-se o mesmo que acima dissemos em se tratando de liquidante, no caso de liquidação coativa. Por vezes, junto à figura do liquidante, em conjunto, ou como órgão de controle, ou concursal, está delegado ou agente da repartição estatal ou paraestatal a que se subordina a empresa, e a sua função é — atendidas as diferenças — de órgão da execução forçada. 7. Eventual figura do liquidante no concurso de credores civil. A lei civil e a lei processual civil conceberam a ineficácia relativa dos atos de disposição por parte do devedor, na execução forçada coletiva, como compativel com a permanência da atividade do devedor desde onde não chegue a constrição executiva. Há a figura do depositário, que pode ser o próprio devedor ou a do administrador. Porém, conforme teremos de mostrar, é possivel que os credores e o devedor acordem em que seja nomeado o liquidante. Tal nomeação é feita pelo juiz, após a deliberação pelos interessados. A nomeação entende-se feita pelo juiz, mesmo se a decisão apenas diz que o juiz homologa a escolha feita. Algumas funções que cabem aos liquidantes, nas liquidações coativas e nas voluntárias, são exercidas pelos depositários, se a penhora ou consequente depósito apanha, por exemplo, bens e seus produtos e tem o depositário de solver dividas que se referem aos bens e seus produtos, como impostos e taxas. Há um problema no tocante á eficácia da sentença proferida na ação declarativa de insolvência, transita em julgado. De quando começa a detração do poder de dispor pelo devedor e da execução singular nos bens do devedor declarado insolvente? Seria a) do transito em julgado, ou b) da publicação do edital, ou c) somente do ato de arrecadação? A primeira solução seria um tanto apressada, porque não se exigiu o edital para a declaração de insolvência, quer pedida pelo credor, quer pelo devedor (se a lei permite, na espécie, declaração ex officio, o edital seria de exigir-se). A solução c) seria contrária à diferença entre a penhora, que é ato executivo, que não resultava de sentença (posto que o título executivo possa ter sido sentencial), e a arrecadação do art. 766, li, do Código de 1973, que já é um dos efeitos da sentença transita em julgado e já conhecida dos credores, em virtude do edital. Por isso, havemos de acolher a solução b).

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§ 94. Caracterização do estado de falência e decretação da falência 1. Concurso de credores especial. O sistema jurídico brasileiro nem estendeu o concurso de credores em geral aos comerciantes, de modo que a especialidade do direito falencial desaparecesse, nem generalizou o direito falencial, de jeito que se pudesse decretar a falência de qualquer devedor. 2.Comerciantes. Comerciante é quem faz da mercancia profissão habitual, em seu próprio nome. São mercantis os atos do comissário comerciante. A lei é que classifica os concursos de credores. A lei procura regularizar o exercicio da profissão de comercio, porque lhe atribui direitos e prerrogativas, isto é, direitos e prerrogativas que resultam da incidência de regras juridicas em cujo suporte fático está o elemento necessário da qualidade de comerciante. As formalidades exigidas (matricula, registro da firma ou razão social, arquivamento do instrumento do contrato ou dos estatutos no registro do comércio) não são pressupostos ne-cessários nem suficientes para a atribuição da qualidade de comerciante. Têm, apenas, o efeito de estabelecer presunção iuris tantum. Os atos de mercancia habitual praticados por proibidos de comerciar dá-lhes qualidade de comerciantes, a despeito da proibição. As sanções de nulidade e de ineficácia para os seus atos são as de direito comum. O negócio jurídico comercial em que foi figurante, como comerciante, menor de dezesseis anos é nulo; anulável, o em que foi figurante o menor entre dezesseis anos e vinte e um, se não ocorreu suplemento de idade. (A respeito não se pode admitir a tese da incapacidade indistinta, que invalidaria os negócios jurídicos, em qualquer das espécies; nem a antítese, da validade, sem se atender ao direito comum.) Se o negócio jurídico é nulo, não é possível pedir-se e obter-se a falência, porque do nulo não resultam efeitos, e crédito é efeito. Se o negócio jurídico é anulável, há efeitos enquanto não se lhe decreta a anulação. As autarquias, no sentido exato, que é de repartições ou corpos estatais a que se atribui governo próprio, arquia de si mesmos, posto que, in casu, pratiquem atos de comércio, não são comerciantes, conforme o conceito do direito comercial e, pois, falencial. São pessoas jurídicas de direito público, a que o Estado conferiu determinada função, ou determinadas funções, ou a missão de determinados serviços. Não estão, por isso, expostas a decretação de falência. Se o estivessem, a execução forçada coletiva iria introduzir-se em setores em que se chocaria com o próprio Estado, e haveria certa contradição em se decretar a falência de empresas de finalidades estatais ou de bem público. Não ocorre o mesmo com as sociedades de economia mista, em que a participação do Estado é capitalística e não há o elemento da estatalidade das funções. Quando há lacuna no direito processual falencial e é de mister revelar-se regra jurídica, preenche-se com a regra jurídica do direito processual comum, que não contrarie o sistema jurídico processual falencial. Se não há tal regra jurídica, tem-se de dar solução de acordo com os princípios de fontes e interpretação das leis. 3. Falência e execução forçada coletiva. Dizer-se que o devedor responde com a totalidade dos seus bens, presentes e futuros, e por isso há a execução forçada, é empregar-se proposição que não está à altura da ciência do direito processual. O Estado é que atende ao credor, porque lhe prometeu a tutela jurídica, O credor exerceu a sua pretensão, e o Estado tem de entregar-lhe a prestação jurisdicional, que ai consiste, exatamente, em transferir para o patrimônio do credor o que, tirado do patrimônio do devedor, possa satisfazer aquele, no todo, ou, em caso de insuficiência do patrimônio, em parte. Regras jurídicas como as do art. 2.740, alínea 1ª, do Código Civil italiano são regras jurídicas que destoam dos sistemas jurídicos e revelam proveniência que não mais se ajusta aos nossos tempos. O adimplemento é que é espontâneo, voluntário, ou forçado. Forçou, outrora, o próprio credor; força, hoje, o Estado, porque esse chamou a si o monopólio da justiça.

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As leis processuais dizem como se há de obter o adimplemento forçado. Ai estão a função jurisdicional e a função tegislativa do Estado. Mas a pretensão à tutela jurídica épré-processual. (a) A dupla universalidade da falência, a subjetiva e a objetiva, consuma-se pela chamada, admissão e satisfação de todos os credores e pela arrecadação dos bens do devedor falido e a extração do valor desses bens e pela incidência da eficácia da decretação da falência em quaisquer bens, ainda mesmo os não encontrados, os que se ignoram, os que têm grande expressão patrimonial e os que não a têm, os direitos formativos, os direitos expectativos e os próprios bens futuros. Liquida-se para que todos os credores sejam satisfeitos com todos os bens e para que se saiba o que restou de bens ou o que faltou para que a satisfação fosse completa. Parte-se do princípio da par condicio creditorum ou princípio do igual tratamento dos credores e somente se atendem as exceções que a lei crie a esse princípio. No que concerne aos direitos reais limitados, não há, verdadeiramente, exceção ao princípio: os direitos reais limitados não estão no patrimônio do devedor; no patrimônio do devedor há exatamente o que não se tirou, para se constituir o direito real limitado, do direito sobre o bem. O direito real limitado — inclusive o direito real de garantia — é o direito que se tira ao domínio, ou à enfiteuse, que já foi tirada. (b) A falência retira ao falido a disponibilidade e a administração do patrimônio, para que se possam satisfazer os créditos que forem declarados e admitidos e os que, a tempo, sejam objeto de ação. Como acontece com a execução forçada singular, têm-se de reduzir os bens do falido a dinheiro, para se atender à necessidade de redução, por meio de rateio. Exigem-se créditos, vendem-se bens, concluem-se transações, com o fito de se obter o meio fácil para os pagamentos, que é o dinheiro. As vendas têm de ser requeridas, porque se precisa do edital, com observância da lei. Idem, a venda por propostas. Os credores, que satisfizerem as exigências da lei, também requerem ao juiz a convocação das assembléias, para que deliberem sobre a realização do ativo, ou requerem a homologação. Vendas sem as formalidades da lei são nulas. O despacho do juiz integra a vontade do sindico ou dos credores. Somente se difere o início da extração do valor aos bens se ocorre pedido de continuação do negócio ou de concordata suspensiva. (c) A universalidade objetiva da falência faz ser o patrimônio, e não os bens considerados de per si, o que se vai reduzir a dinheiro, para se levar a seu termo a execução forçada. Tudo tem de ser liquidado, a tudo se há de extrair o valor, porque são valores que se têm de prestar. Com a abertura da falência, não se vai entregar aos credores concorrentes qualquer bem ou parte nos bem, que seja garantia dos credores, concepção desacertada que aparece em alguns sistemas jurídicos. O que se iniciou foi relação jurídica processual bilateral, em que o Estado está entre os credores e o devedor e vai tirar do patrimônio desse aquilo com que possa satisfazer, total ou parcialmente, os credores. Essa é a prestação jurisdicional, que ele, Estado, deve aos credores e ao devedor. No terreno da posse dos bens, tudo se passa como a respeito da posse dos bens na execução forçada singular. Os credores não têm qualquer posse; tem-na, mediata, o falido, e têm-na, imediata ou mediatizada, o Estado, pelos órgãos da execução forçada, o juiz e o síndico. A organização, que se imaginou para isso e se foi, através da História, transformando, conta com órgãos judiciários e com órgãos auxiliares. É inegável o que há de função administrativa na atividade do juiz da falência, porém não se hão de menosprezar, nem apenas eliminar, a judiciariedade dos procedimentos e a sua natureza, idêntica à das outras execuções forçadas, como fizeram por exemplo, Antonio Brunetti (Lezioni di Diritto con-corsuale, 3) e Antonio Cicu, na obra de E. Cuzzeri (Dei Faílimento, 5ª ed., 570). O Estado — atendendo à maior interação dos comerciantes com o público — apenas toma atitude mais enérgica, o que, a propósito de liquidações coativas, acontece por outras razões, como a importância da atividade das empresas. É preciso que se não deixem de ver as diferenças entre o concurso de credores falencial e os outros concursos de credores, mas também, que não se exagerem. 4. Procedimentos falenciais. O processo da falência não é numa só relação jurídica processual. a) Há a relação jurídica processual que se forma com a decretação da falência e acaba com o encerramento da falência, relação jurídica processual que é a estrada larga, que a universalidade subjetiva e objetiva da falência obrigou a abrir-se.

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Semelhante à estrada que se estende em toda relação jurídica processual de execução forçada, singular ou coletiva; porém mais larga, pela dupla universalidade que a caracteriza. b) Há as relações jurídicas processuais que caminham para ela, a começar pela relação jurídica processual da verificação de contas, que precede à relação jurídica processual da falência, e as relações jurídicas processuais, que partem de dentro da relação jurídica processual da falência. Os procedimentos para admissão dos credores são como portas que se recortam para que os credores fiquem, em suas classes e com as indicações das importâncias dos seus créditos, na estrada larga processual. Algumas relações jurídicas processuais que avançam de dentro da estrada larga descem, por bem dizer, ao passado, como a ação declarativa de ineficácia relativa e a ação revogatória falencial. A ação do credor retardatário colima entrar na estrada larga quando já percorrida pelos outros credores em grande extensão. A ação rescisória falencial tem por fito pôr fora da estrada larga algum credor, diminuir-lhe a bagagem, ou impor-lhe caminho diferente daquele que se lhe traçara e por onde ia. Juntem-se a todos esses procedimentos os procedimentos internos e os das concordatas preventivas, que são pontos de parada, e os das concordatas suspensivas, que podem fechar a estrada, ou ser apenas tentativas frustradas de fechamento. A universalidade subjetiva e objetiva da falência impõe que só exista uma estrada larga. A carga maior de interesse público é que sugere as regras jurídicas especiais à execução forçada coletiva. Quem deve a dois ou mais e não paga a todos, ou está insolvável, ou se há de ter por insolvável e ser tratado como insolvente até que se satisfaçam todos os credores, ou, pelo menos, se chegue à conclusão de que o ativo é maior do que o passivo. A técnica legislativa teve de atender a que a insolvabilidade é mais grave do que o inadim-plemento. Insolvência é sintoma de crise e causa de crises. O Estado tem o interesse estatal e o do público em que se dê solução ao estado anormal que se caracterizou. Se o devedor é comerciante, a lei retira-lhe o próprio poder de adimplir, porque se inclui no poder de dispor. No concurso de credores falencial, os credores são convidados à declaração dos seus créditos. E o mesmo se passa nos outros processos em que se tem de observar a lei de falências. No concurso de credores civil, se o pedido foi feito pelo devedor, nao: os credores têm a comunicação da decretação da abertura do concurso de credores e comparecem com o pedido de admissão, isto é, como titulares de pretensões executivas que se querem inserir na relação jurídica processual concursal. São autores. Os que contestarem os seus créditos ou os atacarem por invalidade são impugnantes. Só há um procedimento de falência, só há uma jurisdição um juiz competente). A finalidade do instituto está, pre-cisamente, na submissão a um mesmo regime de todos os interesses ligados à massa falida. Com isso, reduzem-se despesas, atenua-se a lentidão dos processos, evita-se que haja decisões em choque. Mediante a indivisibilidade (= unidade) e a universalidade, tenta-se obter, em tempo curto, o máximo de realização do ativo e de liquidação do passivo. A unidade impede que haja duas aberturas de falência. A universalidade exige que todos os credores se apresentem para que se satisfaçam em todos os bens. Qualquer outro julgamento de abertura de falência da pessoa a que foi decretada a abertura da falência é nulo, por incompetência do juízo, e ineficaz. A universalidade implica a lei única. Os efeitos das decisões do juízo falencial são erga omnes. Não importa onde se ache o credor, a eficácia da decretação da falência e dos outros julgados alcança-o. Quanta ao princípio da universalidade, em se tratando de liquidação coativa ou de administração controlada, tem-se de atender a que seria impraticável a liquidação sem a universalidade, no essencial. Temos de admitir a cognição pela autoridade administrativa, em quaisquer casos, salvo aqueles que a lei prevê quanto a bens já em praça, ou a ação e execuções que, antes da decretação da abertura da falência, hajam iniciado credores por títulos não sujeitos a rateio, ou que demandem por crédito ilíquido, ou coisa ceda, prestação ou abstenção de fato. Demais, há o princípio do controle judiciário.

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§ 95. Decretação de abertura da falência 1.Natureza da ação e da sentença de decretação da abertura da falência. A sentença que decreta a abertura da falência ésentença inicial, em relação ao processo falencial. A ação a que ela se refere, e o pedido, que ela defere, não são a ação, ou o pedido ou pedidos que se vão processar, a partir dela. De modo que é indispensável distinguirem-se a ação prê-falencial, que leva à sentença de decretação de falência, e a ação concursal falencial, propriamente dita Prius é aquela. O que vem depois é ação executiva coletiva, o concurso falencial de credores. Temos, primeiro, de indagar qual a natureza da ação e da sentença de decretação de falência. Qualquer confusão com o concurso falencial de credores seria nociva à investigação e, de regra, os juristas incidem nesse grave erro. Trazem ao pré-falencial o que é elemento característico de processo de falência propriamente dito. Dai pensar:se em ser executiva (Francesco Carnelutti, Lezioni di Diritto Processuale Civile, V, 32; Caratteri e limiti, Rivista di Diritto Processuale Civile, VI, Parte II, 234; Caratteri della sentenza di faílimento, VIII, Parte II, 159; Ancora suíla natura delia sentenza di faílimento, XIII, Parte 1, 260). Outros há que vêem na ação e na sentença ação cautelar e medida cautelar, com fim de execução (Marco Tuílio Zanzucchi, Diritto Processuale Civile, 1 2ª ed., 284 s.; Le Domande in separazione, 88 e 229 s.). Outros, simplesmente decisão cautelar (Aurelio Candian, II Pro-cesso di Faílimento, 58; Piero Calamandrei, Introduzione alio Studio sistema tico dei Provvedimenti cautelari, 113 s.). Outros: decisão de cognição sumária (Antonio Brunetti, Diritto fallimentare italiano, 155; mas em Lezioni di Diritto concorsuale, 41, presta atenção ao elemento constitutivo; Umberto Navarrini, Trattato, 1, 121); provimento de jurisdição voluntária, similar da pronúncia, em direito processual penal (Enrico Redenti, Corso di Procedura chile, 224 s.); provimento administrativo (Luigi Lordi, II Failimento, 118). O problema, em verdade, cifra-se em se assentar se a sentença é preponderantemente declarativa, ou constitutiva, ou executiva, pois dificilmente se poderia sustentar ser preponderantemente condenatória ou mandamental. Em todo o caso, faremos breve crítica às teorias, entre si tão discordantes. Como a respeito de qualquer categoria jurídica, que se quer classificar, dizer-se que a sentença de falência é sui generis nada adianta. Não passou daí, em verdade, Gustavo Bonelli (Dei Fallimento, 1, 109). A constitutividade da sentença da decretação da abertura de falência é preponderante. Após ela, há estado jurídico que antes não existia. E está aberta a estrada executiva, a estrada larga, a que aludimos. No direito brasileiro, há a) a abertura do concurso ou admissão do concurso de credores, b) a admissão do concurso de credores, c) a promoção do concurso de credores (instauração), que é o início do julgamento dos créditos concorrentes, pelo ato incoativo previsto na lei. Isso, no concurso de credores civil. No concurso de credores falencial, há a decretação da falência, que pode ser a pedido do próprio falido ou das pessoas mencionadas na lei. A legitimidade de quem pede nada tem com a admissão à falência. 2. Vantagem da precisão. Sabendo-se que a sentença decretativa de abertura da falência é constitutiva e tem eficácia executiva imediata, facilita-se o entendimento do instituto do concurso de credores, em todas as ações de que se compõe. Daí frisarmos, a cada momento, esses pontos. § 96. Pressupostos do pedido de decretação de abertura de falência 1. Legitimação ativa. No sistema jurídico brasileiro, têm legitimação ativa para a petição de decretação da abertura da falência: a) o credor; b) o devedor; c) o cônjuge sobrevivente do falido; d) o herdeiro do falido; e) o inventariante da herança do falido; fl o sócio ou acionista da sociedade falida. O comerciante deve declarar a sua falência (comunicação de conhecimento mais pedido de decretação da abertura da falência, implícito ou explícito). A impontualidade do devedor não precisa ser em relação ao credor que pede a decretação de abertura de falência. A sua significação é quanto ao estado falencial, sem ser preciso que tenha ocorrido a respeito de crédito da pessoa que pede a decretação. Por isso mesmo, não só o credor é legitimado ativo. São-no também o cônjuge sobrevivente, o herdeiro, o inventariante, o sócio ou o acionista. Pela mesma razão, tem a lei de considerar

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legitimado o próprio devedor. 2.Credores com direito real de garantia. O credor com penhor, hipoteca ou anticrese, pode renunciar ao direito real de garantia e pedir a decretação de abertura da falência. Pode pedi-la, mantendo o direito real de garantia, se alega e prova que o bem ou os bens dados em garantia não bastam para a solução do seu crédito. A legitimação, aí prevista, de modo nenhum concerne ao credor com direito pignoratício, hipotecário, ou anticrêtico, como credor que se apresenta. A renúncia é pressuposto para a legitimação a pedir a decretação de abertura da falência (sem razão, a 5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 19 de novembro de 1948, RT 178/283). § 97. Legitimação passiva 1.Legitimação passiva, na decretação de abertura de falência. Pode ser decretada a abertura da falência: a) do espólio do devedor comerciante; b) do menor relativamente incapaz se mantém estabelecimento comercial, com economia própria. 2. Comerciante. Somente ao comerciante pode ser decretada a abertura da falência. Escapam à decretação da falência as empresas a respeito das quais a legislação especial haja estabelecido o regime das liquidações coativas ou do concurso de credores civil. Durante o estado de guerra, as sociedades comerciais, cuja liquidação foi decretada por lei, para, com os seus acervos, se alimentar o fundo de indenização dos danos causados pelos Estados adversários, não podem ter decretada a abertura da falência (Supremo Tribunal Federal, 28 de junho de 1944, RT 153/300). Estão sob regime de liquidação coativa. Às sociedades cooperativas somente não pode ser decretada a abertura da falência se não são comerciais. Se praticam, habitualmente, atos de comércio, podem falir (4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 3 de janeiro de 1950, RDM 11/179). Sem razão a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 30 de novembro de 1948 (Ai 90/69), admitiu que o banco em liquidação administrativa pudesse pedir a decretação da própria falência. Os argumentos de que se lançou mão foram falsos: não se ter derrogado, para os bancos, a regra jurídica sobre pedido de decretação da falência, se feito pelo próprio devedor; infringir a regra jurídica constitucional sobre controle judicial a interpretação que afirmasse o contrário. Ora, o banco pode pedir a liquidação extrajudicial ou ser-lhe essa decretada. Não há margem para a decreta ção de abertura de falência dos bancos. O comerciante pessoa física, que deixa de comerciar, perde a qualidade de comerciante, mesmo se não registrada a sua declaração, e cancela-se-lhe a firma. O comerciante pessoa jurídica tem de fazer arquivar no registro do comércio o documento de extinção da sociedade, ou após a liquidação sem negócio jurídico de extinção. Todavia, dentro do prazo legal, e decretável a abertura da falência do comerciante, individual ou coletivo. Para isso, é de mister que se trate de dívida contraída ao tempo em que havia a qualidade de comerciante. Não se pode decretar a abertura de falência, depois do registro, embora dentro do prazo legal, por dívida oriunda do momento em que não tinha o devedor, pelo registro, a qualidade de comerciante. É a ligação temporal do ato. Se, no prazo legal, a pessoa, física ou jurídica (caso de pessoa jurídica que deixou de ser comerciante sem se extinguir, o que é excepcional), praticou atos de mercancia, o registro não prevalece contra a prova do exercício posterior ao ato registrado. A propósito das sociedades comerciais que funcionam irregularmente, cumpre advertir-se em que a decretação da abertura de falência pode ocorrer enquanto não se procede à liquidação e partilha do ativo. Qualquer dívida do tempo em que a sociedade existia pode dar ensejo à decretação da abertura da falência. Para se obviar a isso e se

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ter o prazo legal, os meios são a ação declarativa da dissolução (note-se: declarativa), a ação de dissolução (que é constitutiva negativa), ou o acordo de dissolução, para que se possa fazer o registro. A regularidade da constituição das sociedades não é pressuposto subjetivo para ser decretada a abertura da falência. Ãs próprias sociedades a que se proibe o comércio pode ser decretada a abertura da falência. Os sócios, qualquer que seja a espécie da sociedade irregular, são solidários e ilimitadamente responsáveis. Os credores do sócio, e não da sociedade, podem ir contra o que ao devedor toca nos bens sociais (ci. Francesco Ferrara Junior, 6h Imprenditori e le Societá, 91; Giovanni Brunetti, Tratatto del Diritto delle societá, I, 468 s.). Os sócios ocultos das sociedades regulares não são, sempre, responsáveis ilimitadamente; à ação ordinária é que toca dizer como se há de tratar o caso. O que se há de exigir para a decretação da abertura da falência da sociedade irregular é que exista o patrimônio separado, a autonomia patrimonial, em relação ao patrimônio dos sócios. O que falta a tais entidades fáticas é a personalidade jurídica. A sociedade por ações, antes do registro, não é decretável a falência. Só o é a dos primeiros diretores antes das formalidades da constituição. O registro não é elemento apenas para a personificação da sociedade por ações. Também o é para a sua constituição. No direito italiano, a divergência é grande: no sentido de não poder haver sociedade por ações irregular, Giovanni Brunetti (Trattato del Diritto delle Società, I, 155 e 189 s.), Francesco Ferrara Junior (Gli Imprenditori e le Societá, 160 s.), Giorgio de Semo (Diritto fallimentare, 422), Vittorio Salan-dra (Le Societá commerciahi secondo ii nuovo Codice, 140), e Gino Gorla (Le Societá secondo ii nuouo Codice, 15); contra, Aurelio Candian (Formazione di società per azioni senza scrittura, Diritto fahiimentare, 1946,11, is.) e Renzo Provinciali (Manuale di Diritto fahhimentare, 2ª ed., 610). A falência das sociedades em liquidação ou após a liquidação corresponde à falência do comerciante individual, dentro do prazo legal após o registro da cessação do exercício, e à responsabilidade solidária do sócio retirado antes da conclusão do prazo legal. Nada obsta a que se decrete a abertura da falência da sociedade em liquidação. O argumento de não mais existir, como pessoa, depois de feito o registro, é inoperante, porque a situação é semelhante à da falência do espólio. O sistema jurídico atende ao fato de que há, depois da extinção, pessoas responsáveis, posto que não possam ser consideradas “falidas”. Levou-se mais em conta a separação do patrimônio, a chamada autonomia patrimonial. Por outro lado, tem-se de atender a que o desaparecimento é da pessoa, e sociedades irregulares podem ter decretada a abertura da sua falência. Se a sociedade vem a ficar em mão de um só quotista, ou de um só acionista, ou em mãos de número inferior àquele que a lei exige para que a sociedade subsista como pessoa jurídica, não se pode decretar a abertura da falência do quotista único, ou do acionista, ou de acionistas açambarcantes; à sociedade é que se decreta a abertura da falência. O quotista ou acionista, ou os acionistas, são, ai, solidariamente responsáveis. O que é preciso sublinhar-se é que: o quotista único ou o acionista único não exerce o comércio e o exerce a sociedade; a responsabilidade ilimitada se restringe ao período em que ocorreu tal unicidade ou insuficiência de número. Em todo caso, pode dar-se que, aproveitando o controle, o quotista ou acionista único comece a exercer, por si só, o comércio, embora com os meios patrimoniais que eram da sociedade. Também os herdeiros podem transformar a communio incidens em comunhão comercial (atividade comercial, em comum, dos herdeiros), o que estabelece a sociedade entre eles, pelo animus de ineunda societate. O que importa saber-se é se: os herdeiros extinguiram, em verdade, a comunhão hereditária; se houve divisão entre eles, de modo que a mercancia é por atos de cada um; se sociedade sucedeu à comunhão. Muito importa a convicção dos terceiros, porque o trato com eles completa a estruturação interna, ou impõe que se tenha o que aparece como o que mais pesa nas relações de crédito. As vezes, ocorre que algum credor ou alguns credores tomam conta da massa ativa e passiva com o propósito de afastar a crise da empresa, ou outros propósitos menos admissíveis. O fato insere tal credor ou tais credores em sociedade irregular com o devedor e pode determinar a responsabilidade do credor ou dos credores como sócios. Trata-se, certamente, de quaestiones facti.

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No direito brasileiro, a falência da sociedade não se contagia aos sócios solidária e ilimitadamente responsáveis. Comerciante era a sociedade, e não eles. Se exercem funções na sociedade, são órgãos dela. Os patrimônios dos sócios e o patrimônio da sociedade são distintos, a despeito da solidariedade e da ilimitação. Se o patrimônio social não cobre as dividas da sociedade, por elas respondem os sócios, na proporção em que houverem de participar nas perdas sociais; por isso, os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dividas da sociedade, senão depois de executados todos os bens sociais. Respondem solidariamente e ilimitadamente, no que concerne as dividas da sociedade: todos os sócios da sociedade em nome coletivo; os sócios não comanditários; o sócio ou acionista gerente ou diretor, ou os sócios ou acionistas gerentes ou diretores, na sociedade em comandita por ações; o sócio capitalista, nas sociedades de capital e indústria; os sócios, nas sociedades irregulares e nas de fato. 3. Herança e falência. Se na lei há a expressão “espólio do devedor comerciante”, ou ‘herança do devedor comerciante”, mostra isso que se pretendeu abstrair da procedência do patrimônio, o que não era preciso, e se abstrai da atualidade subjetiva do patrimônio. Falido é sempre o devedor: morto o devedor antes da decretação da abertura da falência, nada muda, salvo o que haveria de responsabilidade do devedor que premorreu ou pós-morreu à decretação da abertura da falência. Os herdeiros não são comerciantes, ou, se o são, não no são no que diz respeito ao patrimônio falencial, porque a profissionalidade não se transmite. Os sujeitos passivos são os herdeiros, dentro das forças da herança, e o inventariante, a que cabe a administração. Não se podem eliminar os sujeitos passivos das relações jurídicas e tirar do fato da separação dos patrimônios ilações sobre a não-subjetividade da herança, falida ou não. Mors oninia solvit somente no que é eficácia falencial inseparável da pessoa do falido. Os herdeiros sucedem, no ativo e no passivo, mas — no sistema juridico brasileiro — somente respondem dentro das forças da herança: apenas têm o ônus da prova do excesso, o que fica sem alcance se os bens do falecido já foram inventariados. Os herdeiros não faliram — ficou insolvente o que, depois, faleceu, ou o patrimônio separado manifestou, após a morte da pessoa, a insolvência. Exclui-se a decretação da abertura da falência se já transcorreu o prazo legal após a morte do decujo. Então, o que se abre é o concurso de credores civil, posto que se mantenha separado o patrimônio. No caso de herança jacente, o procedimento continua com o curador, ou se abre com ele. Há incompatibilidade entre a qualidade de curador de falências, órgão do Ministério Público, e a de curador de heranças. Se o herdeiro ou os herdeiros se habilitam, entram na relação jurídica processual da falência, como sujeitos passivos, porque sucedem, in locum et ín ius, ao falido, ou ao curador que na ocasião vela pela massa hereditária. No caso de instituição sob condição suspensiva, tem-se, no direito brasileiro, de indagar a quem toca o direito aos bens. No caso de condição resolutiva, a quem fica no lugar do herdeiro que se retira toca a posição de sujeito passivo. Se, antes da decretação de abertura da falência, o devedor pedira concordata preventiva, tudo se passa segundo os princípios de sucessão nas relações de direito material e na relação juridica processual. O que acima se disse há de ser observado em caso de arrecadação de bens de ausente, inclusive de quinhão de herdeiro ausente. Primeiro, nomeia-se curador. Depois, defere-se o pedido de decretação de abertura da falência; se já transcorreu o prazo legal, continua decretável a abertura da falência, porque não se tem, na presunção de morte, a morte propriamente dita. Todavia, após a sucessão provisória, falido é o herdeiro, ou falidos são os herdeiros, que receberam a posse dos bens.

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Se quem estava ausente, tendo-se-lhe arrecadado os bens, aparece, e o prazo legal transcorreu sem que o falido exercesse o comércio, então não pode ser decretada a abertura da sua falência. Se a decretação de abertura da falência ocorreu dentro do prazo legal e dentro desse trato de tempo apareceu o devedor, assume ele a posição na relação jurídica processual da falência, sem que lhe caibam restituições de prazos, nem, a fortiori, apresentar defesa cujo prazo precluíra (certo, Renzo Provinciali, Monuale di Diritto fallimentare, 2ª ed., 171; cp. Giorgio de Semo, Diritto failimentare, 87 s.). Se não foram citados os herdeiros do comerciante, é nulo o processo de abertura da falência do falecido (2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 18 de novembro de 1949, RF 129/443); não basta a citação do inventariante. Se o cônjuge sobrevivente, não comerciante com o cônjuge falecido, é herdeiro, a citação dele é indispensável, ainda que tenha contraido outro casamento (Tribunal de Apelação de Santa Catarina, 9 de junho de 1925, RF 45/303). A decretação de abertura da falência pode ser por ato anterior ou por ato posterior ao falecimento. O prazo para a decretação da falência do devedor falecido é preclusivo. Nem se interrompe, nem se suspende. Se os herdeiros continuaram, depois do prazo legal, a explorar o negócio do falecido, tornaram-se comerciantes, e é decretável a abertura da falência deles, ou da sociedade regular, ou irregular, que resultou da atividade comercial comum. Tudo isso é qucestio facti. Somente se tem de excluir da falência, se é o caso de se decretar a falência dos herdeiros, o herdeiro absolutamente incapaz, ou a mulher casada que haja exercido o comércio, na qualidade de herdeira, fora do lar conjugal, por menos do prazo legal. Se, dentro do prazo legal, se partilhou a herança, transitando em julgado a sentença, não mais se pode decretar a chamada falência do espólio. O prazo para se decretar a abertura da falência do espólio prende-se ao interesse dos herdeiros e dos terceiros em que não fique, por muito tempo, a incerteza (Augustin-Charles Renouard, Traité des Faillites et Ban queroutes, 1, 250). 4. Menores relativamente incapazes. As pessoas relativamente incapazes podem exercer o comércio e pode ser-lhes decretada a abertura da falência. Se uma adquire a qualidade de comerciante, fez-se legitimado passivo ao processo falencial. Aliás, tal menor, uma vez que o patrimônio comercial, ex hypothesi, éseu, tornou-se capaz ao completar os dezoito anos, ou, se tinha dezoito anos, se tornou capaz ao exercer a profissão comercial, com economia própria. Não importa se os bens lhe advieram entre vivos ou a causa de morte. Se houve suplemento de idade, o menor é capaz, e não há questão quanto à decretabilidade da abertura da falência. Diz-se que, autorizado o menor a comerciar, pode o titular do pátrio poder revogar a autorização (Antonio Bento de Faria, Código Comercial, 1, 3ª ed., 19; Trajano de Miranda Valverde, Comentários â Lei de Falências, 1, 51). Sem razão. Se o menor tem economia própria, embora sócio do titular do pátrio poder em sociedade personificada ou não, torna-se legalmente capaz; se a autorização foi dada e o menor ainda não tem economia própria, a autorização é suplemento de idade, por parte do titular do pátrio poder. Não há revogabilidade da autorização (Dino Bueno, A autorização para comerciar dada ao filho pode ser revogada?, OD 25/537 s.; Salustiano Orlando de Araujo Costa, Código Comercial do Brasil, 1, T ed., 5; J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial, II, 31). 5. Mulher casada. As mulheres casadas não eram nem são incapazes. Mesmo quando a lei dizia, que precisavam da autorização marital para exercer profissão. Se não lha dava o marido, poderia supri-la o juiz. Exercendo por mais do tempo previsto em lei, fora do lar conjugal, a profissão comercial, tinha-se por autorizada a mulher. Por isso mesmo era possível a decretação de abertura da falência da mulher casada que, sem autorização do marido, exercesse o comércio, além do tempo fixado em lei, fora do lar conjugal. Tudo isso passou, com explicitude. 6. Interditos. Os interditos — loucos, pródigos e psicopatas sem administração dos bens, ou surdos-mudos — não podem comerciar; portanto, não lhes pode ser decretada a abertura da falência. Salvo se a incapacidade é superveniente à atividade comercial. É de permitir-se que o curador do interdito peça, como representante, a concordata preventiva.

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7. Nascituro. Enquanto não nasce, o ser humano não é tido, no sistema jurídico brasileiro, como pessoa. Dai o problema de se saber se, herdando, ou sendo-lhe doado o estabelecimento ou parte dele, à decretação da abertura da falência é ele o sujeito passivo da relação jurídica processual falencial ou se o é o curador ou a curadora. A segunda solução é a que se há de acolher no direito processual falencial com a particularidade de haver sujeito ativo e sujeito passivo das relações jurídicas, no direito material, que ainda não se sabe quem seja enquanto não se dá o nascimento com vida (Tratado de Direito Privado, Tomo 1, §§ 51 e 52). Se o nascituro nasce com vida, nenhuma questão surge. Se não nasce com vida, titular dos direitos compreendidos na massa ativa falencial e devedor quanto à massa passiva é a pessoa que ficou em alternativa com o conceptus sed non natus. Uma vez que, ex hypothesi, se nomeou curador ao nascituro, sujeito passivo processual foi o curador. Com o nascimento sem vida, não se pode permitir que o sujeito de direito material, que entra na relação jurídica processual, tenha restituição de prazos, ou possa, por exemplo, alegar contra o pedido (já deferido) de decretação de abertura da falência, ou recorrer, já expirado o prazo do recurso, ou já julgado o que o curador do nascituro interpusera. Em todo o caso, pode a pessoa em alternativa com o nascituro, ao ser nomeado o curador, apresentar-se como interveniente ou assistente, com legitimação à defesa, às impugnações e aos recursos, se não expirados os prazos. A herança transmite-se, ex lege, aos herdeiros legítimos e testamentários, por morte da pessoa. O patrimônio permanece separado enquanto não transita em julgado a sentença de partilha ou adjudicação. A decretação de abertura da falência não mais encontra o morto como titular; mas é inafastável que se lhe deparam os herdeiros, ou alguém, com o múnus da administração do patrimônio. Os herdeiros são os sujeitos passivos do concurso de credores falencial, posto que não lhes possa colar a qualidade de falidos. A expressão “falência do espólio”, ou “falência da herança , é mero subterfúgio. Nem se pode abstrair do quod plerurn que fit, que é o de existir titular dos direitos que se acham no patrimônio e sujeito passivo nas dívidas, obrigações, ações e exceções (= ser excepciçnal a situação de bem sem dono), nem se pode conceber relação jurídica processual sem sujeito ativo e sujeito passivo (autor, Estado; Estado, réu). Nunca se há de perder de vista que o sistema jurídico é sistema lógico. Os conceitos hão de ser precisos. 8.Atividade comercial dos proibidos de comerciar. E acertado permitir a lei a decretação da abertura da falência dos que, embora proibidos, exercem o comércio. A proibição pode resultar de serem incompativeis a profissão comercial e o exercício de funções ou prestação de serviços da pessoa. Se, a despeito das proibições, as pessoas fazem da mercancia profissão habitual, há a aquisição da qualidade de comerciante. Não se diga que, se praticarem a mercancia como profissão habitual, não se fazem comerciantes: disse-se que têm o dever de não comerciar. Sofrem e desfrutam as conseqUências de se tornarem comerciantes, ou de prosseguirem no exercício da profissão, incorrendo, apenas, nas sanções administrativas e penais que a lei haja estabelecido. Na interpretação das regras jurídicas das leis proibitivas da profissionalidade da mercancia, não se pode invocar analogia (J.X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial, II, 103, e VII, 172). A tradição do direito é no sentido de ser decretável a falência dos que, proibidos de exercer o comércio, o exercessem (e. g., 2e Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, 6 de agosto de 1907, RD, VI/190 5.; Gabriel de Resende, Curso de Falências, 24 s. 3. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial, VII/172). Os negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sensu praticados pelas pessoas a que se proibe comerciar, ditas incompativeis com a profissionalidade da mercancia, são válidos, salvo se, além da regra jurídica sobre incompatibilidade (regra jurídica do lado da outra profissão), há a regra jurídica de direito comercial sobre validade, ou se a profissão é comercial e o que se proibe é outra espécie de profissão comercial (não tinha razão Teixeira de Freitas, Aditamentos ao Código de Comércio, 310 s.; com toda a razão, Salustiano Orlando de Araújo Costa, Código Comercial do Brasil, 7ª ed., 18). Se o proibido de comerciar exerce a profissão através da atividade de outra pessoa, dita, essa, testa-de-ferro (Tratado de Direito Privado, Tomo IV, § 469, 4) ou presta-nome, pode-se abrir a falência dos dois ou do proibido e dos testas-de-ferro, se são dois ou mais. Todos são sujeitos às sanções legais.

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9. Sociedades por ações. Depois de liquidado e partilhado o seu ativo, não é decretável a abertura de falência de sociedade por ações. Encerrada a liquidação, o credor não satisfeito só tem direito de exigir dos acionistas, individualmente, o pagamento do seu crédito até o limite da soma por aqueles recebida e o de propor contra o liquidante, se for o caso, ação de perdas e danos. Pré-exclui-se a decretabilidade da abertura da falência após a liquidação e partilha do ativo. Não há óbice à decretação de abertura da falência se os herdeiros continuaram a comerciar, ou se terceiros continuaram a comerciar, e há os pressupostos para se considerarem falidos os herdeiros ou os terceiros (cf. 3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 4 de março de 1938, RT 113/75 s.). 10. Sôcios solidária e ilimitadamente responsáveis. Na técnica da lei, pode haver responsabilidade ilimitada sem haver falência. A cisão conceptual é a mesma que se opera a respeito dos que sucedem no patrimônio separado, sem que tenham responsabilidade ilimitada, como ocorre aos herdeiros. Decreta-se a abertura da falência, inicia-se, processa-se e ultima-se o concurso de credores falencial, sem que os titulares dos direitos e os devedores, por sucessão, sejam atingidos pelos efeitos da falência. Na falência da sociedade, há a personalidade jurídica; na herança, não. Todavia, a lei fez, ali, a cisão, e, aqui, a abstração. Decreta-se a falência como se o morto estivesse vivo; todavia, sem se decretar a falência do morto ou a dos herdeiros. Para se decretar a abertura da falência da sociedade, não é óbice ter falecido um dos sócios, ou alguns dos sócios, após o tempo fixado pela lei: a responsabilidade ilimitada cessou (cf. 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 25 de junho de 1951, RT 203/572, e RF 144/ 339). Se o sócio que se retirou, antes do prazo legal, não foi citado para a defesa contra o pedido de abertura da falência da sociedade, não se pode pretender a sua responsabilidade ilimitada. Todavia, a espécie não faz nulo o processo da falência, como pensou a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, a 25 de novembro de 1938 (RF 77/93), e sim ineficaz em sua inconsumada angularidade contra o sócio que se retirara. Esse é um ponto que merece toda a atenção na doutrina e na jurisprudência, que por vezes confunde os conceitos. A retirada só tem eficácia contra terceiro, se foi feito o registro (Tribunal de Justiça de São Paulo, 22 de julho de 1940, Ad 55/287; 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 24 de março de 1949, RF 125/ 530). Idem, o distrato; aLter, a dissolução judicial, pois há o transito em julgado da sentença (4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 16 de agosto de 1933, RT 88/159), após a publicação. Ai, a sentença é constitutiva negativa, com a eficácia do procedimento edital. A morte do sócio é de equiparar-se à retirada (cf. 6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 28 de março de 1952, RT 201/322). Também se equipara à retirada a passagem do sócio solidário, ilimitadamente responsável, a sócio comanditário (4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 15 de junho de 1948, AJ 88/460). Se a sociedade foi irregularmente inscrita (e. g., no Registro de Títulos e Documentos, 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 22 de agosto de 1949, RT 182/826 s), é sociedade irregular, e os sócios respondem ilimitadamente. Idem, se se venceu o prazo da sociedade por quotas, de responsabilidade limitada, continuando-se na atividade comercial (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 2 de maio de 1952, RT 202/303). Aí, o que importa é a atividade de comerciante. O sócio, que se despede antes de dissolvida a sociedade, fica responsável pelas obrigações contraídas e perdas havidas até o momento da despedida. Se há lucros a esse tempo, a sociedade pode reter os fundos e interesses do sócio que se despede, ou for despedido com cláusula justificada, até se liquidarem todas as negociações pendentes, que se tiverem intentado antes da despedida. O que com isso se colima é a proteção dos interesses dos credores da sociedade. Não importa distinguir-se se a retirada foi voluntária ou forçada, havendo fundamento legal. Se foi sem fundamento legal, na ação que tenha de propor o sócio expelido há de exigir prova do ativo e passivo da sociedade ao tempo exato em que a sociedade despediu o sócio. No direito falencial, há o prazo legal para que se possa pedir a aplicação do que acima dissemos. O prazo legal conta-se do dia em que se registrou a despedida. Se a despedida foi ilegal, da data em que se deu o protesto pelo sócio, ou a propositura da ação contra a sociedade.

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Só o consentimento de todos os credores pode eximir da responsabilidade o sócio solidária e ilimitadamente responsável. A novação posterior à retirada do sócio (não a anterior; sem razão, Trajano de Miranda Valverde, Comentários à Lei de Falências, 1, 70) e a continuação de negócio com a sociedade, tenha ou não mudado de firma, pré-excluem ao terceiro o direito de ser pago pelos bens do sócio que se retirou. O que se estabelece em relação ao sócio que se despediu, quanto ao prazo legal, entende-se também: a) com o herdeiro ou os herdeiros do sócio solidário que se retirou; b’) com o sócio de responsabilidade ilimitada que, por alteração do contrato social, passou a ser sócio de responsabilidade limitada, ou sócio comanditário; c) com o herdeiro ou herdeiros do sócio de que se fala em b), respeitado o princípio da inclusão na força da herança. Se um ou alguns sócios tomam a si receber os créditos e pagar as dividas da sociedade, dando ressalva ao sócio ou aos sócios que se retiram, seria de mister que todos os credores nisso conviessem para que se pudesse considerar exonerado, perante os terceiros, tal sócio, ou exonerados tais sócios, ou que sobre-viesse novação da divida, ou algum novo negócio jurídico com os sócios que ficaram. No direito falencial, há o prazo para a responsabilidade do sócio que se retira, voluntária ou forçadamente. Se, na sentença que decreta a abertura da falência da sociedade, se inclui, como sócio solidário, ou herdeiro do sócio solidário, o sócio que se retirou, ou seu herdeiro, cabe-lhe recurso, conforme a lei processual, pois, ex hypothesi, foi tido como devedor. Se a sentença não se referiu ao sócio que se retirara, ou seu herdeiro, pode recorrer o falido, ou o síndico, ou o credor. O que foi dito, quanto às sociedades, independe de serem regulares, ou irregulares ou de fato. Todavia, quanto a essas, se não houve, excepcionalmente, registro posterior, o prazo legal somente se inicia com o edital, ou a publicação pela imprensa, ou a comunicação judicial ou extrajudicial dos credores. Se termina o prazo da sociedade em comandita simples e continua a mercancia, sem ter havido prorrogação, que se registrasse, o sócio comanditário não o deixa de ser. Se houve prorrogação e não se registrou, idem. Ao crédito pelo qual o sócio que se retira tem responsabilidade solidária cabe a classificação que seria a sua se o sócio não se houvesse retirado. No caso de incorporação de sociedade, ou de fusão de sociedades, qualquer credor anterior da sociedade incorporadora ou da sociedade nova (fusionante ou fundente), ou da sociedade incorporada ou fundida, ou de uma das sociedades fundidas, pode pedir — no juízo da falência, se já foi feita a citação para a abertura da falência da sociedade incorporadora, ou da sociedade nova, ou de uma das sociedades fundidas — a separação dos patrimónios, a fim de se pagarem os créditos em cada massa. Se ainda não houve a citação, a ação de separação de patrimônios pode ser pedida, como ação declarativa, no juízo comum (cf. Tratado de Direito Privado, Tomo V, §§ 595-602). Há o princípio geral do interesse na declaração de separação de patrimônios. Os credores posteriores à incorporação ou fusão são credores da nova massa, sem que se possa pensar em separação de patrimônios, salvo para se atender ao que concerne, no passado, ao ativo e ao passivo de cada patrimônio. Nas sociedades em comandita simples, os sócios comanditários não têm ius gestion is, nem podem ser empregados nos negócios da sociedade, nem sequer como procuradores, nem podem figurar na firma social. Se algum pratica ato de gestão, ou se passa a ser empregado, ou pratica atos de empregado da sociedade, ou de delegado de algum dos sócios gerentes, ou figura na firma, a despeito de o contrato o tratar como sócio comanditário, fica solidariamente responsável, como os outros sócios. Os atos de deliberação da sociedade, em que há o seu voto, não lhe são proibidos, porque, aí, o que está em causa e a qualidade de sócio, e só isso. Nem os atos da fiscalização das operações e estado patrimonial e moral da sociedade. Com os atos proibidos, o sócio comanditário não se faz sócio solidário; apenas passa a responder, no tocante àqueles atos, solidariamente, mesmo no caso de inserção do seu nome na firma. 11.Diretores de sociedades por ações e gerentes de sociedades por quotas, de responsabilidade limitada. A responsabilidade solidária dos diretores das sociedades por ações e dos gerentes das sociedades por quotas, de

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responsabilidade limitada, estabelecida nas respectivas leis, a dos sócios comanditários e a do sócio oculto, são apuradas, e tornam-se efetivas, mediante processo ordinário, no juízo da falência. A responsabilidade dos diretores das sociedades por ações é determinada pelos danos ou prejuízos diretamente causados à sociedade. Se ainda não prescreveu, pode o síndico, ou qualquer credor, ou acionista propor a ação. A sociedade por ações não pode ser irregular ou de fato; a sociedade, que irregularmente ou faticamente se estabelece, é outra espécie de sociedade: falida é a sociedade que se compôs com os que figuravam como diretores, ou que seriam os únicos acionistas; ou falido é quem se dizia diretor, ou falidos os que se diziam diretores, e em verdade comerciavam sem ser em sociedade. Nas sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, os sócios gerentes respondem perante a sociedade e perante terceiros, solidária e ilimitadamente, pelo que exceder os seus poderes de órgão, conferidos pelo contrato ou pela lei. Se o contrato proibe a delegação de poderes e o sócio gerente infringe a cláusula contratual proibitiva, fica responsável pelas obrigações contraidas pelo substituto, sem que possa reclamar da sociedade mais do que a sua parte das vantagens auferidas no negócio. A ação da sociedade é a de indenização; a do síndico, ou do credor, também. Se algum sócio não gerente tem o uso da firma, há a mesma responsabilidade, e a ação é a mesma. Se os sócios comanditários praticam atos de gestão ou são empregados nos negócios da sociedade, mesmo como procuradores, ou deixam inserir o seu nome na firma social, respondem solidariamente (cf. Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 16 de maio de 1947, OD 54/384). Os sócios ocultos são pessoal e solidariamente responsáveis como se ostensivos fossem. Pode haver sociedade oculta, o que é mais, porém tem-se de alegar e provar, previamente, a existência da sociedade (cf. Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 10 de outubro de 1941, RI, 111/232; 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 27 de abril de 1951, RDM 11/649; 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 20 de março de 1952, RT 201/306). A responsabilidade dos sócios ocultos depende da qualidade de sócio que lhes corresponde. A responsabilidade dos sócios ocultos simétricos a sócios ostensivos solidários é solidária. A responsabilidade do sócio oculto, que participa da sociedade como comanditário, é a de comanditário. Cumpre ainda acentuar que não é sócio oculto quem contrata com o sócio quanto a lucros ou prejuízos como sócio, ou somente quanto a lucros, porque esse é apenas credor do sócio, ou sócio na quota ou na ação ou nas ações. A nenhum sócio élícito ceder a um terceiro, que não seja sócio, a parte que tiver na sociedade, nem fazer-se substituir no exercício das funções que nela exercer, sem expresso consentimento de todos os outros sócios; mas pode associá-lo à sua parte, sem que por este fato o associado fique considerado membro da sociedade. Para asso-ciar um estranho ao seu quinhão social, não necessita o sócio do concurso dos outros; mas não pode, sem aquiescência deles, associá-lo à sociedade. Também não são sócios ocultos as pessoas físicas ou as pessoas jurídicas que não aparecem nas sociedades em conta de participação, porque o sistema jurídico prevê a ostensividade do sócio comerciante ou dos sócios comerciantes ou dos sócios um dos quais pelo menos é comerciante. O sócio oculto responde conforme o contrato social. A respeito do sócio de indústria, esse, se contribuiu para o capital com quota em dinheiro, bens ou efeitos, ou for gerente da firma social, passou a ser sócio solidário, e não só sócio de indústria. O síndico pode pedir o seqOestro dos bens que bastem para a responsabilidade, O credor que haja apresentado a declaração de crédito pode ser assistente na ação, porém não se lhe pode negar legitimação ativa, pois tem o poder de promover no processo da falência o que for a bem dos interesses dos credores, isto é, da massa. § 98. Competência 1. Princípio geral. E competente para decretar a abertura da falência o juízo em cuja jurisdição o devedor tem o seu principal estabelecimento ou casa filial de outra situada fora do Brasil. Afasta-se qualquer possibilidade de se

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propor a ação de decretação de abertura de falência em jurisdição em que tenha sede a filial, ou a sucursal, se aí não é a sede do estabelecimento principal. Somente no caso de ser no estrangeiro a sede do estabelecimento principal é que se pode pensar em competência do juiz do lugar em que tenha sede a filial, ou a sucursal. Quanto à filial, é ela independente, e a regra jurídica tem alcance mais explícitante do que enunciativo. Por “estabelecimento principal” entenda-se “empresa-mãe”. Há, porém, o problema das sucursais e das agências, e a solução há de ser a da competência do foro do Brasil se o estabelecimento principal é no estrangeiro. A despeito de haver o principio da possível pluralidade de domicílios, em direito material e no próprio direito processual comum, o direito falencíal afasta-o: só há um domicílio em que se possa propor a ação de decretação da abertura da falência, e é o principal, a sede do estabelecimento principal. O princípio da universalidade, mesmo se não se exigisse, seria a solução mais cômoda. Não surgem, portanto, as questões de prevenção, posto que possam compor-se em caso de dúvida sobre a principalidade. Com o princípio da unicidade do domicílio e do foro, temos: a) Juízo competente é o da sede do estabelecimento principal, ou um dos juízos da sede do estabelecimento principal, conforme a lei de organização judiciária, com exclusão de qualquer outro juízo, inclusive de grau superior. Os tribunais somente conhecem da matéria falencial em via recursal. b) Foro competente é o da sede do estabelecimento principal, segundo registro, ou, em se tratando de sociedades irregulares ou de fato, conforme os dados que bastem à prova da principalidade do estabelecimento. Não importa se o comerciante é pessoa física ou jurídica. Se o comerciante tem duas firmas, com sedes diferentes de estabelecimento principal, o que importa é a ligação do negócio à firma. c) A principalidade do estabelecimento aprecia-se no momento em que se pede e se cita para a ação de decretação de abertura da falência. A mudança pode operar-se, eficazmente, entre o pedido e a citação. Se há artifício para se criar sede de estabelecimento principal onde não é principal o estabelecimento, ou não é, verdadeiramente, a sede, o que importa é o registro da empresa. Se não há registro, tem de ser alegado e provado onde é a sede do estabelecimento principal. Para a pessoa que cessou de ser comerciante, o juiz é o do lugar de sede do estabelecimento principal ao tempo da cessação do exercício do comércio. Se se ignora qual a sede, entende-se ser no lugar do domicílio do devedor. No direito brasileiro, não se pode fazer prova contra o registro, porque se tem o princípio da escolha do domicilio, salvo se o interessado propõe ação para retificação do registro, e há decisão transita em julgado e retificação antes de se pedir a decretação de abertura da falência. Principal estabelecimento é aquele em que está a sede administrativa dos negócios, o que leva à tautologia (sede do principal estabelecimento = sede do estabelecimento em que está a sede administrativa dos negócios = sede do principal estabelecimento em que está o centro dos negócios de toda a empresa, pessoa física ou jurídica). Cf. Supremo Tribunal Federal, 1ª de outubro de 1928 (AJ IX/1 12), e Corte de Apelação do Distrito Federal, 27 de dezembro de 1906 (RD 111/373). O principal estabelecimento é o em que se acha o centro da atividade da firma, individual ou coletiva. O maior depósito de mercadorias, ou os depósitos de mercadorias podem ser alhures; e alhures, os estabelecimentos em que maior número de operações ou a mais alta soma de operações se alcance. O que importa é que seja o estabelecimento aquele em que está o governo dos negócios do devedor” (Supremo Tribunal Federal, 8 de agosto de 1950, RDM 11/642). A doutrina que permite travar-se discussão, no momento do pedido de decretação de abertura da falência, sobre a competência, contra a indicação do registro, pode levar a dificuldades enormes; e. g., o juízo da cidade de São Paulo entende que lá está a sede do estabelecimento principal, enquanto o do Rio de Janeiro ou o de Belo Horizonte reputam principal o estabelecimento do Rio de Janeiro ou o de Belo Horizonte, ou cada um se julga o competente. Sem razão, por exemplo, as Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 28 de março de 1930 (RT 74/309 s.). Por outro lado, é preciso não se confundir com o domicílio da pessoa física a sede

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do estabelecimento principal. Se o comerciante, individual ou coletivo, tem dois ou mais estabelecimentos, sem se saber qual o principal, processa-se a ação de decretação da abertura da falência em qualquer deles, prevenindo-se a jurisdição (Supremo Tribunal Federal, 18 de maio de 1921 e 21 de outubro de 1929, RF 37/365, e Ad 13/16). d) Se há mudança da sede do estabelecimento principal, depois da citação, é inoperante. Todavia, há a vis attractiua do foro da decretação de abertura da falência da sociedade em relação às aberturas de falência dos sócios de responsabilidade ilimitada, de modo que se torna competente o juízo da sede do estabelecimento principal da sociedade, onde se há de pedir a decretação de abertura da falência do sócio ilimitadamente responsável, ou os autos de abertura da falência, que se decretou ou está para ser julgada, têm de ser remetidos ao juízo da decretação de abertura da falência da sociedade. Se o juízo em que se decretou a abertura da falência do sócio ilimitadamente responsável deixa de ser competente pela superveniência da decretação de abertura da falência da sociedade, não ficam nulos os atos praticados, por não se poder dizer que o juiz era incompetente, e, pois, ser de invocar-se a regra jurídica sobre somente serem nulos por incompetência do juiz os atos decisórios. Se o lugar do território em que está a sede do estabelecimento principal passa a ser parte de outra divisão territorial, de jurisdição diferente, há remoção do foro (3ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 31 de julho de 1946, RT 164/80 s.). A mudança de sede, sem a mudança do estabelecimento principal, no período suspeito da insolvabilidade, não desloca a jurisdição (1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, 31 de agosto de 1942, RT 140/82 s.). Aí houve fraude á lei. Porém do que se disse não se tire que não se possa mudar, em quaisquer casos, de sede, mesmo nas proximidades da decretação de abertura da falência (cf. Seção Criminal, 19 de novembro de 1940, RF 85/186), se não foi a crise sobrevinda que o determinou. e) Se a abertura da falência foi decretada por juiz absolutamente incompetente, a decisão é nula. Idem, se foi entendido ser caso de liquidação coativa ou de administração controlada. f Se o sócio da sociedade falida também incorre em impontualidade ou em alguma das situações previstas como fundamentos para a decretação da abertura da falência, é de se lhe decretar a abertura da falência, sendo competente para a decretar o mesmo juízo (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 1ª de fevereiro de 1952, RT 199/378), salvo se já aberta alhures a sua falência. 2. Liquidação coativa e administração controlada. A competência de que falamos para a decretação de abertura da falência é para todos os outros atos e ações do processo falencial. Também é o princípio que vige a respeito das liquidações coativas e controladas. Inclusive no tocante à vis attractiva. 3. Pessoas com domicílio incerto. Tem-se por domicilio da pessoa física que não tenha residência habitual, ou empregue a vida em viagens, sem ponto central de negócios, o lugar onde for encontrada. Exatamente se supõe não saber-se onde é; se foi dito onde se tem domicílio, não pode incidir a regra jurídica: falta o elemento mais relevante do suporte fático, que é o ignorar-se onde é o centro principal das ocupações habituais (Tratado de Direito Privado, Tomo 1, § 71). Assim, a abertura da falência dos comerciantes ambulantes e empresários de espetáculos públicos pode ser decretada pelo juiz do lugar onde sejam encontrados. Os vendedores de máquinas e aparelhos agrícolas que fazem exposições nas estações próprias de plantio ou de colheita incluem-se na classe de tais pessoas. Se há registro em que se diz qual a sede do principal estabelecimento, ou se os negócios em cada lugar são com a explícita declaração de ser alhures o centro de negócios, não se pode invocar a regra jurídica. Mesmo que se lhe do fundamento de proteção aos que tratam com o comerciante ambulante, ou com o de espetáculos públicos, ou outro, não se pode levar tal ratio legis da proteção dos fregueses a ponto de se tornar sem eficácia a publicidade registária ou a informação ao freguês. Se não foi possível citar-se o devedor numa das comarcas em que costuma achar-se, ou em que instalara, temporariamente, território nacional (Mano Giuliano, II Fallirnento nel diritto processuale ciui/e internazionale, 169 5.; Giorgio de Semo, Diritto Jailimentare, 131); os credores têm, em tal caso, o remédio da execução forçada

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singular ou o do concurso de credores civil. 6. Considerações finais. Só os credores singulares, e nao a massa falida no estrangeiro, pode apresentar-se à massa falida no Brasil. O estabelecimento sito no Brasil fica incólume aos débitos dos estabelecimentos estrangeiros, principais ou não principais; e os credores do estabelecimento do Brasil somente podem apresentar-se no juízo do Estado estrangeiro, se esse não tiver edictado regra jurídica que exclua a eficácia da sentença estrangeira quanto ao estabelecimento brasileiro nele situado. O Código de Direito Internacional Privado das Repúblicas Americanas, dito Código Bustamante, estatuiu no art. 415: “Se uma pessoa ou sociedade tiver em mais de um Estado contratante vários estabelecimentos mercantis, inteiramente separados economicamente, pode haver tantos juízos de processos preventivos e falências quantos estabelecimentos mercantis”. Têm-se os estabelecimentos como correspondentes a patrimônios separados. Somente dentro de cada um cabe o princípio da universalidade da falência. No plano interestatal, é o que, no plano intraestatal, resulta da legislação brasileira. As regras jurídicas de direito pré-processual e processual que se têm de aplicar no Brasil são as regras jurídicas brasileiras. O direito material que incidiu sobre cada crédito, suas pretensões, ações e exceções é o que, segundo as regras jurídicas do sobre-direito, haja de reger o negócio jurídico. O internacionalismo capitalistico exprobra a ofensa ao princípio da par condicio creditorum que há na solução da independência processual das falências da mesma pessoa, na ordem internacional. Mas as criticas deixam de atender a que: a)no mundo contemporâneo, em que há empresas estrangeiras com sede em Estados poderosos e filiais nos outros Estados, seria calamitoso que os credores dos Estados de menor importância econômica, que são aqueles onde se acham as filiais estrangeiras, tivessem de habilitar-se no estrangeiro, expostos a dificuldades e desvantagens notórias; b) dificilmente se permitiria no Estado da sede do estabelecimento principal a saída de divisas para pa-gamentos de credores de outros Estados; c) os Estados poderosos, que drenam recursos das filiais, preparariam as suas escritas para se furtarem à liquidação dos passivos das filiais. Se há no estrangeiro dois ou mais estabelecimentos, em Estados diferentes, e não foi no que está situado o estabelecimento principal que se decretou a abertura da falência, não se pode homologar a sentença estrangeira (Supremo Tribunal Federal, 25 de agosto de 1933, RF 62/377), salvo se entre os Estados interessados há tratado, que foi observado. Se no Brasil há duas ou mais filiais, o domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma delas, é o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponda. Não importa que se diga sucursal ou agência o estabelecimento sito no Brasil, ou que um se diga sucursal e outro, agência. Observe-se, porém, que se trata de ius dispositivurn. Pode-se ter registrado no Brasil, uma das agências, filiais ou sucursais, como estabelecimento principal no Brasil, Quanto à inabilitação comercial derivada da falência e à reabilitação comercial, são regidas pela lei do lugar em que se abriu a falência e em que se aplicou a sanção penal (cf. Convenção da Haia, de 17 de julho de 1905), posto que possa legislar, excepcionalmente, a respeito, como plus, o Estado da nacionalidade do falido. Trata-se de inabilitação ligada à lei processual falencial. § 99. Sentença de decretação de abertura da falência 1.Natureza das sentenças que decretam abertura de concurso de credores. Traço comum a todas elas é o início da execução coletiva. O Estado toma a atitude de abrir o concurso de credores, para que se possa extrair o valor aos bens do devedor e satisfazer, dentro do possível, os credores. A hora em que se profere éassaz importante, devido à constitutividade da sentença e a determinação de começarem desse momento, e não só do transito em julgado, os efeitos sentenciais.

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Aqueles juristas que estranham não se esperar o transito em julgado para se ter nesse dia o inicio da eficácia setencial deixaram de meditar a natureza da sentença de abertura de concurso de credores, civil ou falencial: a sentença tem força constitutiva e eficácia imediata executiva provisória. (Cumpre lembrar que, no concurso de credores falencial, já se começa com 4 de executividade, o que não se passa no concurso de credores civil universal indivíduo, em que a carga de executividade inicial é somente 3.) 2.Requisitos da sentença de decretação de falência. A sentença que decreta a abertura da falência há de conter: o nome do devedor, o lugar do seu principal estabelecimento e o gênero de comércio; os nomes dos sócios solidários e os seus domicílios; os nomes dos que são diretores, gerentes ou liquidantes das sociedades por ações ou por quotas de responsabilidade limitada. Bem assim há de: indicar a hora da declaração da falência, entendendo-se, em caso de omissão, que se deu ao meio-dia; fixar, se possível, o termo legal da falência, designando a data em que se tenha caracterizado esse estado, sem poder retrotrai-lo por mais do tempo fixado pela lei, contado do primeiro protesto por falta de pagamento, ou do despacho ao requerimento inicial da falência, ou da distribuição do pedido de concordata preventiva; nomear o síndico, conforme o que se estabelece na lei; marcar o prazo para os credores apresentarem as declarações e documentos justificativos dos seus créditos; providenciar quanto às diligências convenientes ao interesse da massa, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou dos representantes da sociedade falida, quando requerida com fundamento em provas que demonstrem a prática de crime. A lei fez diferentes o começo da eficácia da sentença e o início do prazo para os recursos. A eficácia sentencial irradia-se no momento mesmo em que se decreta a abertura do concurso de credores falencial, e esse momento há de constar da sentença, necessariamente o em que se ultima a prolação da sentença, ou, se da sentença não consta a hora, o meio-dia da data em que se proferiu. Não há possibilidade de prova em contrário: ou consta da sentença a hora, ou se entende ter sido ao meio-dia. Não importa saber-se que se haja iniciado depois do meio-dia a audiência. 3. Eficácia sentencial. A sentença de decretação de abertura da falência profere-se em processo em que alguém, ou o próprio devedor é o suscitante. As ações nem sempre são agressivas, como as ações de condenação e as de execução: o devedor que pede o depósito em consignação para pagamento não agride, e é autor; o credor que atende à invitação para declarar o seu crédito não agride, e a sentença que lhe dê ingresso por se não ter proposto ação de impugnação contra ele, não agrediu, e é tratado como se tivesse proposto a ação executiva. Compreende-se, pois, que o devedor possa iniciar o processo falencial com as declarações exigidas pela lei, cumprindo dever. Tem ele, como os credores, a pretensão à tutela jurídica. Porém tem mais: tem o dever de exercê-la, o dever de pedir a tutela jurídica. O procedimento, desde o pedido de decretação de abertura da falência até a sentença que o defere, não é em ação declarativa, nem em ação executiva; é em ação constitutiva. A sentença, que se profere, constitui e inicia a execução, com carga que não é a preponderante. Note-se a particularidade: não é o despacho inicial que inicia, como na ação de execução da sentença e na ação executiva de títulos extrajudiciais; é a sentença definitiva. O que exsurgiu foram o efeito constitutivo e o efeito executivo; não foi o adiantamento de execução, nem a execução após plena cognitio. Com a abertura do concurso de credores, civil ou falencial, é que se constitui e se inicia a execução. Dai em diante, a executividade se desenvolve. Porém não se pode pensar em força executiva da sentença de abertura. A constitutividade prima. O que se quer, no concurso de credores, é a execução coletiva. Tal o escopo desde que se pediu a abertura do concurso de credores, porém há degraus sentenciais até se chegar até lá. Não se pode pensar em executividade desde o pedido de abertura, porque ainda não se pediu qualquer execução: o que se pede é a sentença que abra o concurso de credores e que avance, com a executividade sentencial, até se chegar à meta das satisfações pelo menos conforme o ativo. Andaram bem perto de o ver Friedrich Hellmann (Lehrbuch des deustschen Konkursrechts, 383) e Lothar Seuffert (Deutsches Konkursprozessrecht 3), mas valorizaram demasiadamente a finalidade unitária. Quem vai atravessar o lago e, antes, tem de alugar o barco, não pode reduzir ao conceito de travessia o ato do aluguel. Elemento para a travessia, sim; porém ainda não a travessia. Quando já se tem o barco e se provocam os primeiros esfloramentos da água, então, sim, iniciou-se a travessia. Cresce de ponto a diferença se atendemos a que não é só o autor da ação que colima atingir a outra margem do lago: outras pessoas são invitadas para nele entrarem durante o percurso.

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A sentença de abertura da falência é tão constitutiva como o negócio jurídico do aluguel do barco. O locador, na imagem, é o Estado, que prometera aos credores em geral e aos próprios devedores a tutela jurídica. O Estado prometera a cada um, mas ocorre que o passivo supera, ou, pelo menos parece superar o eficácia e somente têm ação contra o escrivão, ou contra o síndico, ou contra os dois. A sentença de decretação da falência tem eficácia executiva provisória, como o tem o despacho de execução da sentença de condenação que ainda não transitou em julgado, se o recurso só tem efeito devolutivo. Note-se bem a semelhança, que há entre sentença e despacho. A cognição não é, portanto, completa; há a provisoriedade da execução, o que de modo nenhum se confunde com a cautelaridade da constrição, o que é erro vulgar entre juristas italianos (e. g., Renzo Provinciali, Manuale di Diritto fallimentare, 2ª ed., 183). Uma vez que se atribui à sentença de decretação de abertura do concurso falencial, dita, por elipse, sentença de abertura da falência, executividade provisória, compreende-se que se adotasse a técnica jurídica das impugnações a todos os créditos apresentados após convite dos credores ou de convocação dos credores. Só assim se pode obter o exame da legalidade da decisão e da sua justiça. Na ação de execução de sentença não transita em julgado, o autor da ação executiva é quem postula ter crédito com os requisitos para se iniciar a execução provisória, e o devedor vem com os seus embargos do executado. Na ação de abertura de concurso de credores, civil ou falencial, o autor — se é credor quem a intenta — quer execução provisória a seu favor e a favor de todos os credores. A sentença, na ação de abertura de concurso de credores, civil ou falencial, não é, portanto, a respeito do credito apresentado, sentença com plena cognitio. Se nenhum dos créditos vem a ser admitido, a sentença de decretação da abertura da falência perde toda a eficácia, mesmo se transitara em julgado. Se um só resiste, apaga-se-lhe o que a fazia sentença de abertura de concurso de credores, para somente persistir a executividade. A execução forçada coletiva transforma-se em execução forçada singular. Se foi credor penhorante que pediu a abertura do concurso de credores falencial, há os embargos do executado, que têm de ser julgados, porque antes da expansão da eficácia constritiva da decrelação da abertura do concurso de credores civil ou falencial, houve — para que pudesse ser expandida — a eficácia constritiva da penhora. 4.Pluralidade de expedientes divulgatiuos. O resumo da sem tença declarativa da falência há de ser, dentro do prazo legal, depois do recebimento dos autos em cartório, afixado à porta do estabelecimento do falido e remetido, pelo escrivão, por protocolo ou sob registro postal, com recibo de volta, ao membro do Ministério Público, ao registro do comércio e à Câmara Sindical de Corretores. A sentença de decretação da abertura de falência é constitutiva, como dissemos, com eficácia erga omnes, que lhe atribui a publicidade exigida por lei. Não se raciocine, e esse foi o erro maior, com a premissa de ser declarativa a sentença de decretação de abertura de falência. Tem ela eficácia declarativa, mas a força, a eficácia preponderante, é constitutiva. Certamente, na apreciação dos pressupostos, houve declaratividade. Mas tal declaratividade, eficácia mediata (3), apenas foi degrau para se constituir e se conferir executividade à relação jurídica processual. As exigências legais de publicação por edital têm por fito a maior publicidade possível à sentença constitutiva, para que não sejam surpresa para os que não foram partes na ação a força da sentença e toda a irradiação da sua eficácia. A publicação é da integra da sentença, e não de resumo. A ciência do falido dá-se com a afixação do edital, que contém o resumo da sentença. Bem assim, a das pessoas que entrem em relações com as que estão no estabelecimento do falido. Se na residência do falido não há negócios comerciais, não se deve afixar na porta o edital. Seria inútil e indelicado. O órgão do Ministério Público, ao receber o resumo da sentença, inteira-se do ocorrido e fica ciente do início, mesmo da sua função no procedimento falencial, em seu novo período. A comunicação à Câmara Sindical dos Corretores tem por fito saberem os corretores que o comerciante está falido

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e dar ensejo à Câmara Sindical de Corretores a tomar as providências necessárias, a respeito de títulos de bolsa e operações de corretores, Câmara Sindical ou outro estabelecimento que a lei crie. A correspondência do falido, no que concerne aos negócios, inclusive a que se endereça à residência dele, tem de ser entregue ao síndico. 5. Função e responsabilidade do escrivão. O escrivão tem de certificar nos autos da ação de decretação de abertura da falência o cumprimento das regras jurídicas sobre publicidade. Se, por exemplo, deixa o escrivão de enviar aos correios a comunicação às estações telegráficas e postais, e correspondência, com ou sem cheques, é entregue ao falido, que os recebe, o escrivão responde pelo dano que causou à massa. Se o escrivão deixa de providenciar quanto à afixação do resumo da sentença na poda do estabelecimento do falido, e esse recebe quantias ou mercadorias ou pratica outro ato que lese a massa falida, responde pelos danos o escrivão. A publicação da sentença, por edital, no órgão oficial é da função e da responsabilidade do escrivão. Noutro jornal de grande circulação, incumbe ao síndico, que é responsável pelos danos que de sua falta ou negligência possam resultar. A apreciação sobre se a massa falida comporta, ou não, a despesa, é in concreto, de modo que se trata de resolução do acordo com o ativo da massa falida, e não a líbito do síndico. Chegando-se a esse ponto e analisando-se os atos de publicidade, que a lei fez imediatos, devemos frisar que eles contêm: intimação da sentença; invitação dos credores; e provocationes ad agendum aos credores para que, se querem, impugnem os créditos dos demais, pois não há outras citações. 6.Proteção recursal do devedor. Se foi o devedor quem pediu a decretação de abertura da falência, pode, a todo tempo antes de transitar em julgado a decisão, pedir que o juiz reforme o despacho, por terem mudado as circunstâncias (e. g., tendo recebido quantia com que não contava, desapareceu o estado falencial; herdou o falido quantia ou bens que cobrem o passivo). Não é propriamente retratação de confissão, nem revogação de pedido; pois o que ocorre é mudança de circunstâncias. Se a decisão já passou em julgado, o que pode fazer o devedor é pedir concordata suspensiva. O devedor pode recorrer por entender que não foi justa a decisão, por exemplo, na fixação do termo legal da falência, ou quanto à ordem de prisão preventiva (cf. Spencer Vampré, Tratado elementar de Direito Comercial, III, 257). O que se disse a respeito do falido é invocável quanto ao inventariante da herança do falido (Corte de Apelação do Distrito Federal, 15 de janeiro de 1937, RF 69/511) e ao liquidante da sociedade cuja falência se decretou (5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 30 de novembro de 1948, Ad 90/69). Também pode recorrer, além do credor que pediu a decretação da abertura da falência, o credor, civil ou comercial, que alegue e prove ter interesse na reforma da sentença que decretou a abertura da falência. O credor que pediu a decretação de abertura da falência pode, por exemplo, se o devedor, no prazo para a defesa, fez o depósito da quantia devida, para evitar a decretação de abertura da falência, agravar de instrumento, uma vez que é mais de seu interesse levantar o que foi depositado do que se expor ao concurso de credores (sem razão, por negar, a priori, a legitimidade recursal do credor que pediu a decretação de abertura da falência, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 6 de março de 1926, 1, ff 46/492). Quanto aos terceiros, a sentença de decretação da abertura da falência pode, frequentemente, atingir os seus interesses, ferindo-os. O sócio, não solidário, da sociedade cuja falência foi aberta é terceiro prejudicado, sem que precise ter intervindo no processo como assistente ou opoente. O órgão do Ministério Público pode ser interessado contra a decisão que decreta a abertura da falência. A pré-exclusão, a priori, da sua legitimidade recursal ativa é absurda (e. g., Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 29 de março de 1949, 1, ff 127/483). O terceiro adquirente do estabelecimento do falido é terceiro interessado (5ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 13 de abril de 1951, RT 192/294).

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É preciso atender-se a que o recurso, ou é total ou é parcial. Se total, toda a matéria concernente à decisão agravada fica sob a cognição do grau de jurisdição superior. Se parcial, somente quanto à parte a respeito da qual se recorreu. Se o juiz reforma a decisão, no todo ou em parte, o recorrido, pode requerer, dentro do prazo legal, a remessa imediata dos autos ao segundo grau de jurisdição. Enquanto pende o recurso, o síndico somente não pode alienar os bens da massa, salvo se há algum dos pressupostos. Todos mais atos ele pode praticar. Se os aliena, responde por seus atos. § 100. Eficácia em geral da sentença de decretação de abertura da falência 1.Princípios fundamentais. (1) A opinião mais vulgar é a que tem a sentença de decretação da falência como declarativa. Para isso concorreram, enormemente, dois equívocos o de verse na expressão falência, ou na expressão sentença de falência, ou sentença de decretação de falência, alusão ao estado de insolvência, ao estar facticamente falido o devedor, de modo que se declararia esse fato; o de se usar, de ordinário, para se nomear tal sentença, a expressão sentença declarativa de falência, sem se haver excogitado quanto ao conteúdo da expressão, isto é, sem se atender a que declaração ora significa tornar clara qualquer situação jurídica ou qualquer relação jurídica, ora declarar a existência ou inexistência de relação jurídica, sentido que é o da expressão sentença declarativa, em se tratando de classificação de sentenças (declarativas, constitutivas, condenatórias mandamentais, executivas). A par desses dois equívocos, apontar-se a sentença de falência como declarativa é partir-se de outras premissas falsas e deixar-se de atender à análise científica da sentença. (2) A afirmação de ser força constitutiva (= de eficácia preponderantemente constitutiva) a sentença de falência aparece em Antonio Segni (Lintervento adesivo, 235), já em 1919. Posteriormente, em Francesco lnvrea (La Natura giurídica della sentenza che dichiara il faílimento, Rivista deI Diritto Comnierciale, 28, 541), em Salvatore Satta (Istituzione di Diritto faílimentare, 56) e em nossos Comentários ao Código de Processo Civil (VI, 454 s.). O próprio penhoramento geral dos bens do falido é efeito constitutivo da sentença, sem necessidade do mandado para a penhora, que se supôe nos textos legais sobre execução de sentença (execução singular). O elemento declarativo,concernente aos pressupostos da ação, inclusive quanto ao estado de insolvência, é secundário, corresponde ao que há, de regra, nas sentenças constitutivas. A sentença aplica a lei, mas cria situação nova (o só declarar nada cria); e tal situação nova permite que outras regras jurídicas incidam. (3) A opinião que põe à frente dos outros elementos o elemento condenatório, ou definitivo, ou cautelar, ou em summaria cognitio, exagera, a olhos vistos, o efeito de admissão do crédito ao concurso, que tem a sentença de abertura de falência, após o exame do título com que se pede a decretação, se não foi o próprio devedor que a pediu. Certamente, a cognição a respeito da admissão do crédito de que é titular o credor, que pediu a decretação da abertura da falência, é non plena cognitio: o síndico, o devedor, o órgão do Ministério Público e os outros credores podem impugná-lo, e vir a ser tal crédito julgado inábil. Mas a abertura do concurso de credores e a admissão do credor ao concurso de credores mesmo aí são inconfundíveis. A decisão sobre a abertura do concurso de credores, civil ou falencial, não é em non plena cognitio. (4) Atribuir-se à sentença de falência natureza mandamental seria confundi-la com efeitos mínimos que ela tem; mas, no fundo, foi isso que levou alguns a falar de natureza administrativa, ou de provimento de jurisdição voluntária. Mais tais classificações quanto à jurisdição nada têm com a natureza da ação e da sentença. (5) O processo falencial é executivo e a ele tende a sentença, porque a ação de decretação de falência e a sentença que a decreta não são executivas, como a ação e a sentença de liquidação das dívidas ilíquidas não são executivas. A sentença de decretação de falência não executa — abre as portas à execução que vem, sendo de discutir-se, apenas, se ela tem carga 4, ou carga 3 de executividade. Preponderantemente executiva ela não é. Mas, no concurso de credores falencial, é imediatamente executiva. Os credores são invitados à entrada na larga estrada que a universalidade subjetiva e objetiva abriu. Os credores, ao chegarem, integram-se nessa faixa de processualidade, a que eles, em feixe, acorrem.

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2.Crítica e classificação da sentença. Tem razão a afirmativa (2). A força da sentença de decretação de falência é constitutivo. A declaração de insolvência é enunciado de fato, em que se baseia a decisão constitutiva. Todos os efeitos quanto à pessoa do falido, quanto aos bens do falido e de relações sociais são constitutivos; só a decisão os produz, mesmo se ex tunc tais efeitos. O que se produz não existia antes da sentença e só existe porque sobreveio a sentença. São efeitos próprios da sentença e, por sua preponderância, caracterizam-na. Reduzi-los a efeitos reflexos, como alguns aventuraram (e. g., Giovanni Cristofolini, La Dichiarazione deI proprio dissesto, Rivista di Di ritto Processuale Civile, VIII, Parte 1, 326), seria absurdo. São efeitos próprios e preponderantes. Ao fixar o termo legal da falência, a sentença constitui, não declara preponderantemente; o elemento declarativo entra aqui como fundamento da decisão, não é a decisão. A sentença muda o mundo jurídico, no que concerne ao trato da pessoa e interesses do devedor e dos credores, bem como em relação a terceiros. Tornar relativamente ineficazes atos jurídicos que antes se praticaram, é efeito da constitutividade da sentença. Não se declarou apenas o que ocorreu, para que daí se pudessem invocar regras jurídicas que aludem a eventus damni aos credores; dispôs-se que são ineficazes, porque a sentença decretou a falência. 3.Carga de eficácia. A sentença que abre a falência é de cognição definitiva, e não incompleta. Se o devedor opõe embargos, esses embargos supõem ainda não ter transitado em julgado a sentença — daí terem de ser apresentados no prazo legal. Há outros recursos, o que aqui não nos interessa. Os escritores que vêem na sentença de falência cognição incompleta, confundem impugnabilidade, antes do transito em julgado, e cognição incompleta. Há a contraditoriedade, durante a ação de decretação, antes da sentença ou após sentença, em recurso. Temos, portanto, para a sentença que decreta a falência: A executividade é imediata, porque, com o transito em julgado da sentença, já os bens do falido passam a ser bens penhorados em geral, bens constritos para a execução concursal; daí a indisponibilidade pelo falido, que é como a indisponibilidade pelos que, na execução singular, sofrem penhora nos bens, ou em algum ou alguns bens. Penhora sem mandamento. Penhora por eficácia imediata, executiva, da sentença. A ineficácia dos atos de disposição é relativa, como a respeito de quaisquer bens constritos (penhorados, arrestados, sequestrados); se, por alguma razão, vem a cessar a força constitutiva da sentença, aos atos de disposição se lhes vê a eficácia. (Não há suspensão de eficácia, conceito inexato de alguns, e. g., Renzo Provinciali, Manuale di Diritto fallimentare, 178; há ineficácia relativa.) A imediatidade da eficácia executiva explica que não se precisa de ação iudicati, nem, sequer, de mandado de penhora, dentro do processo. Nem se diga que a sentença representa, aí, o feixe de todos os títulos executivos, atuais e a serem apontados (vindouros), dos credores concursais. A executividade imediata prescinde de título. A sentença que só tivesse carga mediata de eficácia executiva, essa, sim, seria título executivo: com ela, qualquer credor iniciaria a execução coletiva, ou singular. Não se precisa da ficção da síntese dos títulos executivos individuais; nem da ficção do aglomerado de títulos executivos; nem do conceito de “título executivo em branco” (Josef Kôhler, Lehrbuch des Konkursrechts, 530). A sentença decretatória da falência, decisão de abertura de concurso de credores, que sentença é, abre as portas à execução sem ser título executivo. Certamente, cada credor pode ter ações executivas, por ter título executivo, inclusive sentenças, e outros, em virtude da força constitutiva da sentença, se tornam titulares da pretensão executiva, mas isso é outra matéria. A executividade coletiva é eficácia sentencial que pode ter precedido ao exercício da ação executiva dos credores, mas, de qualquer modo, independe de ter existido, antes, essa ação executiva. Foi o interesse público que levou a técnica jurídica a essa concepção da sentença de força constitutiva e carga forte de executividade (eficácia executiva imediata), expediente que não é estranho a outros ramos do direito. Em virtude de tal eficácia, credores que não tenham título executivo tornam-se legitimados à execução coletiva. Outra consequência de ser imediata, e não mediata, a eficácia executiva da sentença que abre o concurso de credores, ou que decreta a falência, é a de não nascer ação executiva. A sentença nas ações de condenação, de regra, engendram ação executiva (= tem carga 3 de executividade); não, a sentença de decretação da abertura de concurso de credores, ou a de decretação de falência: essa tem carga de eficácia imediata (4). Não viu isso a finura de Antonio Segni (Appunti suNa sentenza dichiarativa di failimento, 9). Nem há ação que totalize as ações individuais, nem há outra ação. A legitimação do síndico não é porque lhe caiba tal ação, nova; resulta da sua função de orgão de execução da massa. Não há ação nova, há eficácia sentencial imediata; quando se pediu a abertura do concurso, ou da falência, já se exerceu pretensão à execução coletiva: essa pretensão preexistiu, pois, à sentença, não pode preexistir a ela e ser efeito dela; a ação de decretação de concurso de credores, ou de falência, teve sua satisfação na sentença, por isso

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mesmo é dotada de eficácia executiva imediata, sendo, porém, de força constitutiva. Para a execução coletiva, a sentença de falência é prius. Sem ela, não há cogitar-se de execução falencial. Nem há execução coletiva regida pelo direito civil, sem que haja a abertura do concurso de credores. Não há concurso de credores sem decretação de concurso; nem há falência sem decretação de falência. (“Engendram”, dissemos acima. A sentença de decretação da abertura de concurso de credores não contém carga mediata de executividade, para ser empregada como ação iudicati. No concurso de credores universal individuo, a que todas as ações contra o falido vão, a carga é mediata, mas inclusa. A particularidade explica-se pelo fato de que, seja imediata, seja mediata a carga de executividade, há sempre, na sentença de decretação da abertura do concurso de credores, adiantamento de execução. Note-se, portanto: a) na ação de execução de sentença, a carga de executividade mediata, 3, é que inicia a ação, mas essa carga é de sentença que se proferiu noutra ação; b) na ação executiva de títulos extrajudiciais, a lei conferiu aos títulos essa eficácia, e tudo se passa como se houvesse precedido sentença em ação condenatória, razão por que se atenua a solução com a non plena cognitio; c) nas ações de concurso de credores, a sentença não é noutra ação, de modo que se pudesse empregar para a ação posterior a carga de eficácia de sentença em ação anterior a sentença mesma, em que a carga se produz, obre o concurso de credores, cria a relação jurídica processual. Não há executividade anterior, ligada a sentença ou a título; há executividade da sentença mesma que inicia a ação de concurso de credores. Não é executividade vinda de sentença de ontem, nem é executividade de sentença fritura; e sim executividade de sentença de agora). § 101. Capacidade processual do falido 1.Conceito. Enquanto a capacidade de ser parte se prende à titularidade da pretensão à tutela juridica, a capacidade processual ou de estar em juízo diz respeito à prática e à recepção eficazes de atos processuais, a começar pela petição e a citação, isto é, ao pedir e ao ser citado. É a capacidade de exercício, para que orais. Os atos processuais escritos não se prejudicam com o transtorno mental passageiro. O mesmo havemos de entender, respectivamente, quanto às recepções de manifestações orais e de manifestações escritas. Os relativamente incapazes segundo o direito material são processualmente incapazes, relativamente. Não se tem no direito processual brasileiro incapacidade processual parcial, que não corresponda à do direito material. É incapacidade processual parcial a do pródigo interdito, em se tratando de ação concernente a atos jurídicos que não poderia praticar, como ato de transação, ou de hipoteca; mas a lei estendeu a incapacidade processual, ativa e passiva, a quaisquer demandas, de jeito que o pródigo é —no sistema jurídico brasileiro — processualmente incapaz. Os relativamente incapazes por idade, são assistidos pelos pais, tutores ou curadores, salvo perante a Justiça do Trabalho. A indeterminação do demandado (e. g., herdeiro desconhecido, devedor incerto na execução forçada, proprietário incerto nas ações reais e de desapropriação) pode dar ensejo a representação do sujeito passivo, raramente do sujeito ativo, no processo, de modo que não há incapacitação processual (sem razão, Leo Rosenberg, Lehrbuch, 5ª ed.), mas sim defesa protectiva acidental, que dura enquanto é de mister a representação, e somente conceme à demanda de que se trata. O revel também não é incapaz processualmente pelo fato da revelia. O curador especial tem função acidental, protectiva. Tampouco é processualmente incapaz o preso, ou o ausente. Se houve declaração de ausência, há incapacidade de direito material e de direito processual. Tanto a respeito da parte incerta quanto da parte revel, ou do preso, não é possivel pensar-se em incapacidade: nada falta à parte; o que ocorre, devido às circunstâncias, apenas dá ensejo a proteção. Nem todos os protegidos pela lei, em justiça, são incapazes, O erro dos que aí vêem incapacidade é o de crerem sempre coincidentes representação oriunda de regra legal e incapacidade, ou de admitirem como verdadeira em todos os casos a proposição “protegido = incapaz.”

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3.Falido. O falido não é incapaz, em direito material. Resta saber-se se o é em direito processual. A respeito dos bens que pertencem à massa, não tem legitimação ad causam: o direito material retirou-lhe a administração e disposição de tais bens e qualquer ação quanto a eles. Por isso, e não por outra razão, foi que a 2ª Câmara da Corte de Apelação do Distrito Federal, a 13 de agosto de 1909 (RD 14/332 s.), não julgou legitimado a demandar sobre contrato social e distrato, e o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 4 de maio de 1904, (São Paulo JV, 53 sj, concedeu habeas corpus por ter o falido requerido prisão de devedor da massa; mas o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 24 de março de 1913 (São Paulo J 31/203), julgou procedente a ação de despejo que contra o falido foi proposta. Certo, se não estava na massa o contrato. § 102. Encerramento da falência 1.Terminação da liquidação e julgamento das contas do síndico. A liquidação termina com a liquidação do ativo e a subsequente prestação do produto aos credores, ou, se há sobra, ao falido, ou aos sócios solidários. Dentro do tempo fixado pela lei após a terminação da liquidação, é dever do síndico prestar as contas. Julgadas boas e bem prestadas, tem o síndico o prazo legal para apresentar o relatório final da falência. Tal relatório é junto ao processo da falência. O relatório final refere-se ao passado e ao presente. Ao passado, quanto à liquidação do ativo e aos pagamentos feitos; ao presente, quanto ao que o falido continua a dever. Se a falência foi de sociedade, tem o síndico de miudear o que toca, nas dívidas, a cada sócio solidário. Relatório final da falência éa peça ou o conjunto de peças que perfazem o instrumento de que cogita a lei. O juiz pode determinar a audiência dos interessados, dentro do prazo que ele marcará. 2.Suspensão e encerramento do processo da falência. Com a concordata suspensiva (o nome bem o diz), suspende-se o processo da falência. Não se encerra, suspende-se. A relação jurídica processual que se estabelecera continua, em estado de suspensão. Resolvida a concordata, a eficácia de suspensividade cessa. Prossegue o processo da falência. Se a concordata suspensiva foi julgada cumprida, com o transito em julgado da decisão encerra-se o processo da falência (= extingue-se a relação jurídica processual). Assim, extingue-se a relação jurídica processual da falência (= encerra-se o processo da falência) se a) não há bens a serem arrecadados, ou se os bens que foram arrecadados não bastam para se atenderem as despesas do processo, ou se b), por sentença transita em julgado, se julgam extintas as dívidas do falido, ou se c), por sentença transita em julgado, se julgou cumprida a concordata suspensiva, ou se d) ocorre o julgado de encerramento da falência, ou se e) nenhum credor se apresenta. Decretada a abertura da falência, têm-se de verificar os créditos para se saber se algo que ocorreu depois da decretação elimina o estado de insolvência. Não se reforma a sentença somente por isso. E matéria para encerramento do processo falencial (com razão, Salvatore Saifa, Istituzioni di Diritto failirnentare, 60, e Renzo Provinciali, Monuale di diritto fallimentare 2 ed., 187, acordes com Cuzzeri-Cicu, DeI Failimento, 85, e Agostino Ramella, Trattato dei Faílimento, 1, Z ed., 253; sem razão: Gustavo Bonelli, Dei Faílimento, 1, 351; Umberto Navarrini, Trattato di Diritto failirnentare, 1, 122; Antonio Brunetti, Diritto faIIin-ientare italiano, 163; Giorgio de Semo, Diritto failimentare, 146 s.). 3.Encerramento por sentença. O encerramento do processo da falência após o relatório final tem de ser por sentença transita em julgado. A sentença, de que se trata, não tem de apreciar o relatório final, posto que possa apreciar, para as repelir, argUições contra o relatório final. Tais argUições, acolhidas, impediriam o encerramento imediato, pois que se teria de esperar o relatório completado, ou o relatório final feito pelo órgão do Ministério Público. A sentença de encerramento tem forte carga de eficácia declarativa, mas é constitutiva negativa. Declara-se que tudo foi feito conforme a lei, inclusive que se apresentou o relatório final e desconstitui-se a relação júrídica

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processual. A lei, em vez de atribuir eficácia constitutiva negativa imediata à decisão dita de encerramento, que então seria declarativa, fé-la de eficácia declarativa imediata e de força constitutiva negativa. 4. Prazo para o encerramento. Salvo caso de força maior, devidamente provado, o processo de falência deve estar encerrado no prazo legal. A regra jurídica não é de prazo preclusivo, que automaticamente encerrasse as falências transcorrido o prazo legal. Nem concerne a dever do juiz, depois de julgadas as contas do síndico: tal dever existe, mas é o de imediatamente após a apresentação do relatório final proferir a decisão de encerramento; ou, se o relatório final não foi apresentado, o de providenciar para que o seja, e logo após proferir a decisão de encer-ramento. Tem-se dito que após o prazo referido começa de correr a prescrição das ações penais. Nesse sentido, a 6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 26 de janeiro de 1951 (RT 191/797), a 1ª Câmara Civil, a 26 de junho de 1947 (169/ 727) e noutros julgados. Sem razão, Ad 59/48 e 167; 60/340; e 62/99. Não é possível ligar-se ao prazo para encerramento o prazo prescripcional. O prazo de prescrição, no tocante aos crimes falenciais, somente começa de correr com o transito em julgado da sentença que encerra a falência.

Capítulo XXXII

Ações de concordata § 103. Conceito e origem das concordatas 1. Direito antigo. O direito antigo não conheceu a concordata. Surgiu, sem as caracteristicas de hoje, na Idade Média. No direito justinianeu, há textos que se referem a instituto parecido com o da concordata falencial (digamos assim, para evitarmos confusão com os acordos ou concordatas do direito civil); não o instituto da concordata falencial, que é o que aqui nos interessa. Temos de tratar das concordatas, tal como a concebe o direito brasileiro, aproveitando o que a ciência do direito, aqui e alhures, assentou, ou descobriu, mas evitando, atentamente, o que provenha de sistemas jurídicos diferentes. O pactum quo minus solvatur, pelo qual os credores acordavam com os herdeiros só exigirem os seus créditos dentro das forças da herança, não era a concordata falencial ou concordata coativa, nem, sequer, a gerou. Tanto mais quanto, no direito justinianeu, com a introdução do benefício de inventário, o pacto se tornou, de regra, supérfluo. A equiparação do devedor foragido ao devedor defunto é estranha ao direito português; e devemos evitar, para a interpretação do direito luso-brasileiro, a consulta aos estatutos italianos. A fortiori, repelir o que escreveram juristas preocupados com as fontes do direito dos seus países. No direito luso-brasileiro, não houve qualquer extensão do pactum quo minas solvatur à sucessão de pessoa viva. As Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 121, § 2ª, tinham o pacto de non petendo in tempus, que era diferente. No pactum quo minas solvatur, os herdeiros acordavam com credores que se lhes pagasse menos., e valia tal pacto (L. 7, § 17, D., de pactis, 2/14: “Si ante aditam hereditatem paciscatur quis cum creditoribus ut minus solvatur, pactum valiturum est”). No caso de dissenso entre os credores, era necessarlo decreto do Pretor que fizesse seguir-se a vontade da maioria (L. 7, § 19: “..si vero dissentiant, tunc praetoris partes necessariae sunt, qui decreto suo sequetur maioris partes voluntatem”). Na L. 8, pôs-se claro que por parte maior se entendia a parte maior em relação às dívidas, e não ao número das pessoas (“Maiorem esse partem pro modo debiti, non pro numero personaram pIacuit”), salvo se iguais, caso em que se atenderia ao número dos credores (“quod si aequales sint in cumulo debiti, tunc plurium creditorum praeferendus est)”. Se igual o número de credores, então o Pretor preferiria o de mais alta dignidade (“in numero autem pari creditorum auctoritatem eius sequetur Praetor, qui dignitate inter eos praecellit)”. Em caso de igualdade dos pressupostos, a decisão teria de ser a mais humana (“sin

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autem omnia undique in anam aequalitatem concurrant, humanior sententia a Praetore eligenda est”). Desde o quod si houve interpolação. Tinha-se, portanto, a prevalência da parte maior em relação às dívidas; se iguais, o atendimento ao número de credores; se ainda ocorria equivalência, a prevalência de dignidade do credor, elemento personalíssimo; se não havia por onde se julgar mais digno um do que o outro ou os outros, segundo o que mais humano parecesse. Em verdade, só existia, antes da interpolação, a prevalência da parte maior. O decreto do Pretor — decretam praetoris ou decretam praesidiis — atendia à eventualidade de não poderem estar presentes in iure todos os credores. Se dentro do termo marcado não compareciam, a resposta à interrogatio hereditária tinha-se como negativa (A. Guarino, Notazioni romanistiche, VI. Ancora sul “pactum quo minus solvatur”. Ann. Sem. Giur. Catania, IV, 197 s.). 2. Pacto de solver com menos. A ligação que alguns juristas tentaram ver entre a concordata dos comerciantes insolventes, ou insolváveis, e o pactum ut minas solvatur, pelo qual os credores da herança acordavam receber menos, e assim evitavam a infamia do defunto, é mera fantasia. Não há prova de tal relação, tanto mais quanto, desde Justiniano, o beneficio de inventário tornou supérfluo o pacto. Certamente, há traços comuns, porém esses traços são os de qualquer pacto de receber menos. A. praxe luso-brasileira chamou concordata ao acordo com os credores que fazia o comerciante, premido pelas circunstâncias, a “fazer ponto “ isto é , a parar os negocios, por não poder adimplir as obrigações. A concordata só vinculava os credores quanto ao tempo, não quanto ao importe da dívida. Era a espera, o respiro, o espaço, como se dizia. Tratava-se de indúcias creditórias. Indúcios, ou induças, são tréguas. Em latim, otium também significava trégua, armistício; e é provável que se haja composto como in otio (antes, endo otio). A expressão” indúcias” foi muito usada pelos juristas portugueses, era termo forense, e lá está nas Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 20, § 4º, quer por parte do credor quer do devedor (“sem avendo inducias, ou outros termos pera deliberar em essas cousas suso ditas”). Na terminologia luso-brasileira e na brasileira, a concordata aludia ao acordo (hoje, só o nome alude), era da classe das indúcias creditórias. Moratória só se dizia (e convém que só se diga) o prazo provindo de lei (e. g., José da Silva Lisboa, Princípios de Direito mercantil, II, 6ª ed., 869: “Dizem-se propriamente moratórias quando tais indúcias e prazos se concedem por imediata graça do Soberano”). A declaração de vontade de non petendo in tempus, que tenha a eficácia de não poder o credor cobrar, eficazmente, a divida, se o devedor se recusa a solvê-la no vencimento, pode ser em ato jurídico unilateral, ou em ato jurídico bilateral, ou plurilateral. O ato jurídico unilateral tem inconvenientes, um dos quais é o não bastar à interrupção da prescrição, por não poder conter o reconhecimento pelo devedor, nem à renúncia, expressa ou tácita, à exceção de prescrição: a declaração unilateral de vontade só é feita pelo credor. A outorga de espera, a promessa de não exercer a pretensão à condenação ou à execução, dita indúcias, havia de partir do credor, mas as próprias Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 20, § 4º, recomendavam cautela aos credores, “ante que comece o feito”, prestar atenção às indúcias, a favor do devedor ou dele (“sem avendo inducias, ou outros termos para deliberar em essas cousas suso ditas”,”porque ao autor nam dam inducias para deliberar’). A manifestação de vontade do devedor bilateralizaria o ato jurídico de espera e provavelmente, também conteria reconhecimento da divida, dando indúcias ao próprio credor, que, se não estaria exposto, por exemplo, ao curso da prescriçâo, teria a seu favor o ato interruptivo. O acordo de espera, esse, por sua bilateralidade, razão para se chamar pactam de non petendo in tem pus, quase sempre contém o reconhecimento, porém não necessariamente (Tratado de Direito Privado, Tomos V, § 551/3; e VI, §§ 662/9, e 677/ 1/5). Tanto a outorga unilateralmente concluída como a outorga bilateralmente ou plurilateralmente concluída são negócios jurídicos: ali, declaração unilateral de vontade; aqui, acordo, pacto. Convém atender-se a esses conceitos e a essas considerações, pois teremos de responder a questão de grande interesse teórico e prático: A concordata é apenas geradora de exceção ou atinge o direito e a pretensão? 1E espera

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ou é adiamento? As Ordenações Afonsinas, Livro III, Titulo 121, § 2ª, cogitaram de negócio jurídico unilateral de espera; não de concordata, nem de acordo de adiamento. Conforme já dissemos, a concordata, no direito brasileiro de hoje, nenhum acordo supõe, de modo que o conceito se distanciou, enormemente, do étimo, o nome “concordata” se esvaziou de qualquer manifestação bilateral ou plurilateral de vontade, e se encheu de direito subjetivo, de pretensão do devedor. A fonte de tal direito deixou de ser negócio jurídico bilateral, acordo, com ou sem homologação judicial, para ser direito imediatamente derivado de lei. Dois conceitos vão ser expostos em conjunto e separadamente; e deles temos de falar, antes, para meras referências históricas: o conceito de concordata preventiva, que é a concordata com que se evita, se previne, a decretação da abertura da falência; o conceito de concordata suspensiva, que é a concordata que se instala quando em processo a falência. 3. Origem do instituto da concordata. O instituto da concordata preventiva já corresponde a séculos em que mais se atendeu a que os atos humanos têm determinismo físico e social, que é ineliminável, e em que se reduziu, de muito, a significação da responsabilização individual. Não só se deixa de pagar quando se quer deixar de pagar. Pode não ter havido qualquer ato de desleixo, de imprevisão, ou de erro, por parte do devedor, e, não obstante isso, a empresa ter de suspender adimplementos. Posto que a mentalidade dos legisladores, principalmente latinos, não tenha permitido que se limpasse de resquícios de nota de infamiai a decretação da falência e se uniformizasse o direito concursal, com as sós exceções, reduzíveis também elas, das liquidações administrativas coativas, algo se introduziu que abrandou a rijeza da ação de falência e do processo concursal falencial. No fundo, as tramas e as chicanas, os expedientes reprováveis e as fraudes, com que se processam as falências, As Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 121, § 2ª, cogitaram de negócio jurídico unilateral de espera; não de concordata, nem de acordo de adiamento. Conforme já dissemos, a concordata, no direito brasileiro de hoje, nenhum acordo supõe, de modo que o conceito se distanciou, enormemente, do étimo, o nome “concordata” se esvaziou de qualquer manifestação bilateral ou plurilateral de vontade, e se encheu de direito subjetivo, de pretensão do devedor. A fonte de tal direito deixou de ser negócio juridico bilateral, acordo, com ou sem homologação judicial, para ser direito imediatamente derivado de lei. Dois conceitos vão ser expostos em conjunto e separada-mente; e deles temos de falar, antes, para meras referências históricas: o conceito de concordata preventiva, que é a concordata com que se evita, se previne, a decretação da abertura da falência; o conceito de concordata suspensiva, que é a concordata que se instala quando em processo a falência. 3.Origem do instituto da concordata. O instituto da concordata preventiva já corresponde a séculos em que mais se atendeu a que os atos humanos têm determinismo físico e social, que é ineliminável, e em que se reduziu, de muito, a significação da responsabilização individual. Não só se deixa de pagar quando se quer deixar de pagar. Pode não ter havido qualquer ato de desleixo, de imprevisão, ou de erro, por parte do devedor, e, não obstante isso, a empresa ter de suspender adimplementos. Posto que a mentalidade dos legisladores, principalmente latinos, não tenha permitido que se limpasse de resquicios de nota de infamia a decretação da falência e se uniformizasse o direito concursal, com as sós exceções, reduziveis também elas, das liquidações administrativas coativas, algo se introduziu que abrandou a rijeza da ação de falência e do processo concursal falencial. No fundo, as tramas e as chicanas, os expedientes reprováveis e as fraudes, com que se processam as falências,são, em parte, reações individuais á estrutura retrógrada do concurso de credores falencial. Uma das atenuações ao rigor e à infamação da falência foi, no plano legislativo, a reintrodução do instituto da concordata preventiva. As injustiças que advinham de não se poder prevenir a falência ressaltavam. Ainda quando a crise na empresa resultava de crise geral (oriunda, e. g., de guerra, revolução, inundações, secas), o remédio legislativo das leis de

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moratória podia tardar, ou não vir. As chamadas leis de reajustamento económico são, de regra, concebidas sobre bases empiricas, expõem as empresas aos agentes dos governos desonestos, que mais vendem a proteção do que a distribuem. Não se diga, porém, que a concordata preventiva data do fim do século passado. Não é verdade que a concordata preventiva seja instituto do século XIX. No Assento de 11 de janeiro de 1653, a Casa da Suplicação teve de interpretar as Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 74, § 3º, e Livro III,Título 78, § 8ª. O primeiro texto (Livro IV, Titulo 74, § 3ª): “E sendo muitos credores, e querendo uns dar o dito espaço ao devedor — referia-se ao prazo para pagar — “e os outros não, mas que todavia dê logo lugar aos bens, ou seja preso, estará a julgador por aquela parte, a que mais for devido, e essa confirmará. E ainda que de uma parte seja um só credor e de outra sejam muitos, se àqueles só for mais devido que a todos os outros, esse só prevalecerá sobre os outros todos, de maneira que se não tenha respeito ao número de credores, mas somente à suma e quantidade da dívida. Porém sendo o número dos credores, e a suma e quantidade das dívidas toda igual, prevalecerá a parte, que outorga ser dado o espaço de cinco anos, por ser mais piedosa. Se porém a menor parte dos credores sentir que a concórdia da maior parte é fundada em algum evidente engano, ou malícia, poderá protestar, e se guardará o que dissemos no Livro III, Titulo 78, Quando poderão apelar dos autos, que se fazem fora do Juízo”. O segundo texto (Livro III, Titulo 78, § 89 é aquele em que se dava a apelação extrajudicial (= apelação de “autos extrajudiciais”), fonte de algumas ações e embargos, como do contemporâneo mandado de segurança (cf. Livro III, Titulo 78, pr. e § 1ª), a ação de preceito cominatório (§ 59 e a dos embargos à decisão que defere a concordata. A Casa da Suplicação (Coleção cronológica dos Assentos das Casas da Suplicação e do Cível, 89), a 11 de janeiro de 1653, firmou a indispensabilidade das citações, para que se pudessem manifestar os de menor quantia: “... se assentou pelos Desembargadores dos Agravos abaixo-assinados que, para haver lugar a disposição das ditas Ordenações, era necessário que todos os credores da maior ou menor quantia, ainda que tivessem sentenças a seu favor, fossem citados e sabedores do dito compromisso, para haverem de estar e seguir o que os de maior quantia assentassem; porque as Ordenações não tiram aquela obrigação, que havia de Direito, de serem citados todos aqueles, a que a negócio toca, e antes o permitia; pois dá lugar a que os de menor quantia possam opor e protestar com razões contra o dito devedor comum, por lhe não ser concedida a espera; o que não teria lugar, se eles não fossem citados.” Assinada a declaração de vontade de non petendo in tem-pus, com feição de concordata, pois que se impunha à minoria, era eficaz (cf. Decreto de 4 de abril de 1774; Resolução de 23 de maio de 1801), se feita por escritura (Assento de 5 de dezembro de 1770), exceto quanto ao rebate (Decreto de 31 de maio de 1776; Alvará de 14 de março de 1780; Assento de 15 de fevereiro de 1791). Note-se que mais se considerava o montante da dívida, o quantum, do que o tempo. Assim, o rebate era dependente da unanimidade. Todavia, as Ordenações Filipinas, segundo a interpretação da Casa da Suplicação, permitiam a citação de todos os credores, a fim de se tomarem, por maioria, a vontade de adiamento e a de rebate. A Junta do Comércio recebeu a incumbência de prover à execução das concordatas preventivas e suspensivas, se satisfeitos os pressupostos legais, por meio de provisões endereçadas aos juizes perante os quais corriam as ações (Decreto de 3 de junho de 1801). Ai, a técnica legislativa extrajudicializou a tomada dos votos, a deliberação, em ato judicialiforme. Os juizes passaram a receber o resultado do que a maioria, ouvidos, necessariamente, ou, pelo menos, chamados, todos os credores, resolvera. José Homem Correia Teles (Doutrina das Ações, ed. de PONTES DE MIRANDA, 298) escreveu: “Assim a concordata feita pelos credores de maior quantia sobre o rebate, que se há de fazer ao devedor comum, não obriga o credor, que a não assinou, Alvará de 14 de março de 1780. Contudo, este mesmo credor é obrigado às indúcias, concordatas pelos credores de maiores quantias, porque o cit. Alvará não revogou a Ord. do L. 4, T. 74, § 3ª, nem

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legislou sobre elas, Assento de 15 de fevereiro de 1791”. No mesmo sentido, José da Silva Lisboa (Princípios de Direito mercantil, 11, 393) e outros (cf. Cândido Mendes de Almeida, Código Filipino, 14ª ed., 889 s.). Portanto: ou a) a deliberação por todos os credores convocados, unânime ou por maioria, ou b) a deliberação da maioria quanto ao adiamento, ou c) o acordo de todos sem convocação. .4. Ordenações Afonsinas. A origem dos textos reinicolas era remota. Nas Ordenações Afonsinas, Livro 111, Título 121, § 2ª, permitia-se a declaração unilateral de vontade de non petendo in tem pus. No § 3º, enfrentou-se o problema do prazo outorgado ao devedor, “espaço para pagar”, em sendo muitos os credores: “E sendo muitos credores, e uns lhe queirão dar o dito espaço, e outros não, mas que todavia dê loguo luguar aos beens esse devedor, ou seja prezo, em tal caso deve o julgador estar por aquella parte, a que mais for devido, e aquella confirmar. E ainda que huuma parte fosse huum soo credor, e da outra fossem muitos, se áquelle huum soo fosse mais devido, que a todolos outros, aquelle soo prevaleceria sobre todolos outros, em tal guisa que se não esguarda acerqua desto o conto dos credores, mas somente a soma e quantidade da divida, como dito he. Pero sendo o conto dos credores, e a forma, e quantidade das dividas toda igual, em tal caso prevalecerá aquella parte, que assy outorgua que seja dado o dito espaço de cinquo anos, como dito he, por ser essa parte mais benina, e mais favorável.” Cf. Ordenações Manuelinas, Livro III, Título 89, §§ 3º e 4º. É de perguntar-se se a declaração unilateral de vontade, de que cogitavam as Ordenações Afonsinas, Livro 111, Titulo 121 §§ 2ª e 3º, gerava alteração do direito, protraindo o nascimento da pretensão (se anterior a ele), ou deslocando-a no tempo (se já havia nascido, e é o caso dos textos afonsinos), ou apenas exceção. A resposta é no sentido de se tratar de prazo prudendal, de espera; portanto, de exceção, salvo havendo rebate. Com a evolução do instituto da concordata, que deixou de ser, no Brasil, totalmente, negocial, os elementos históricos, que aqui se apontam, são imprestáveis para se responder, hoje, à pergunta sobre haver direito ou exceção. Adiantemos que à com cordata de hoje se raspou — digamos assim — qualquer resquício de negocialidade, e já antes o efeito, a favor do concordatário era direito, e não exceção. Apenas, há o direito à concordata, a pretensão à concordata, a ação de concordata, que precedem à decretação da concordata (são direito, pretensão e ação à decretação da concordata), e o efeito limitativo de todos os créditos quirografários. Tais são os pontos de maior valor teórico e prático para se expor o direito brasileiro de hoje sobre concordatas. 5.Suspensividade e preventividade. Ao tempo das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Pilipinas, a concordata tanto podia ser suspensiva como preventiva. Nada obstava a que fosse antes de qualquer abertura de concurso de credores. A citação, se a concordata era preventiva, não significava mais do que comunicação de conhecimento. Os credores notificados ficavam cientes do prazo que se concedera. Não se tratava de pactum de non petendo in tem pus entre credores e devedor, pois ligados ficavam ao espaçamento da exigibilidade os credores em minoria e não se exigia consentimento do devedor. Por onde se vê não ser verdade ter sido o Código Comercial de 1850 a primeira legislação luso-brasileira sobre concordata, nem ser a concordata preventiva desconhecida até o Decreto nº 917, de 24 de outubro de 1890. Apenas a concordata seria a bilateralização da outorga de espera, ao jeito reinicola. A espera, as indúcias ou induças (expressão que A. A. Cortesão, Subsídios, 1, preferia), o espaço, soja ser unilateral, embora outorgado por muitos credores. 6.Análise de decisões. No Assento de 11 de janeiro de 1653, disse-se que “veio em dúvida se quando os credores de maior quantia concedem esperas ao devedor principal na forma” das Ordenações, ficavam obrigados ao que acordaram os de maior quantia os credores de menor quantia, “ainda que tenham sentença e começado a fazer execução por ela com penhora nos bens do devedor comum”. A resposta foi afirmativa, pois que todos foram citados. Quando se haviam de citar os que não tomaram parte no acordo não se discutiu. Conforme o Assento de 5 de dezembro de 1770, não se precisava da citação de todos os credores: bastava dar-se a oportunidade aos não citados para se oporem, tendo justo motivo segundo o Assento de 11 de janeiro de 1653. José da Silva Lisboa (Princípios de Direito mercantil, 11, 6ª ed, 497) entendia que a concordata se perfazia com o acordo dos credores, e a sentença do juiz provinha do costume, “para dar-lhe caráter e autoridade de ato judicial”. Mas o próprio comercialista admitia que pudesse examinar a boa ou má-fé e a diligência do devedor, e recusar a aprovação. Se assim era, o costume desqualificara o simples acordo e atribuira eficácia, se não necessária, atributiva de judicialidade, não só, portanto, integrativa de forma.

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As discussões em torno da necessidade da citação dos credores de menor quantia eram fruto de desentendimento no pôr-se a questão. A “citação” para se opor ou se havia de considerar intimação, ou notificação, ou citação. Ainda hoje a terminologia é vacilante. O Assento de 5 de dezembro de 1770, interpretando o Assento de 11 de janeiro de 1653, frisou que a citação que se há de fazer a todos os credores “não é preciso seja feita nos de menor quantia, para obrigar a assentir na concordata e espaço concebido pelos de quantia maior, antes da sentença”. E acrescentou: “bastará que seja posterior: no que, não se lhes negando audiência, nem meios para se oporem à dita sentença pelos seus prejuízos se evita o embaraço, que lhes podiam fazer antes”. De jeito que devia o juiz “antes sentenciar a dita concordata” e “mandar continuar a citação pelos que faltam, como louvavelmente se pratica”. (Já aí se percebe a preforma, com que se elaborou a evolução posterior, o começo da desnegocializaçõo da concordata. O acordo entre os credores da maior quantia passava a ser pressuposto para a decretação da concordata. As divergências, por parte dos credores não acordantes, podiam ser articuladas depois da sentença, no que se vê, com toda caracterização, a crisálida da embargabilidade do despacho de processamento, que se profere. A técnica foi-se aperfeiçoando, e o ponto a que chegou a concepção brasileira do direito à concordata nenhum outro sistema jurídico atingiu. Razão suficiente para que o “colonialismo” de algumas regiões do pais não conspurque o que éfruto de tradição, de experiência e de meditação de séculos.) O Assento de 23 de julho de 1811 veio por claro que, não tendo citado algum credor, podia o devedor opor embargos à execução, porém não sem dar segurança do juízo. A caução resguardava a possibilidade de vir a ser inadmitida pelo juiz a eficácia contra o credor que não fora citado. Note-se aí, que se inseria na contestação aos embargos do devedor executado a oposição á concordata ( = embargos á concordata insertos na contestação aos embargos do devedor executado, concordatário com os outros credores). Não se vinculavam os credores dissidentes à remissão da dívida ou quitação de todo, ou do restante. Em dezembro de 1677, a Casa de Suplicação julgou: “ainda que os credores de menor quantia eram obrigados a estar pela espera, que fizessem os de maior quantia, não era assim a respeito da quitação e remissão da parte das dividas”. 7. Eficácia da concordata. A tradição é no sentido de só se cogitar de eficácia da concordata entre credores quirografários. Nem cabe pensar-se em titulares de direito de hipoteca uno eodem que tem pore, questão que M. Berlichius versou, mas hoje é sem qualquer pertinência, devido a textos legais e ao próprio conceito de direito real. O arresto não estabelece, quanto à concordata, situação especial para o credor arrestante; nem a estabelece a penhora, salvo se o devedor incorre na falta por não ter pedido a decretação de falência e ai a penhora seria elemento do suporte fático para o credor pedir a decretação da abertura da falência (cf. Silvestre Comes de Morais, Tractatus de Executionibus, 1, 94). O direito sobre tais concordatas era o mesmo para os nacionais e os estrangeiros (Assento de 15 de fevereiro de 1791). A primeira lei contemporânea sobre concordata preventiva foi a Lei belga de 20 de junho de 1883, modificada depois (Lei belga de 29 de junho de 1887; cf. Lei belga de 10 de outubro de 1946 e Decreto belga de 12 de dezembro de 1925). Atentemos, porque tais precisões muito nos podem clarear o caminho que havemos de percorrer, no trato do instituto que aqui nos interessa: (a) As Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas, nos textos citados, não disciplinaram o acordo de espera, o pacto de non petendo in tem pus. O que elas regularam foi o negócio jurídico unilateral, se um só o credor ou se muitos os credores. Isso não quer dizer que se não pudesse bilateralizar o negócio jurídico. Cumpre, porém, observar-se que na interpretação dos textos, diante dos fatos da vida, já estava a surgir a transformação do acordo em pressuposto para o exercício da pretensão á sentença, posto que do lado dos credores,

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e não do devedor. Seja como for, nem esses elementos históricos, nem as concepções européias e americanas da concordata são de invocar-se para a exegese do direito brasileiro, em que se superou toda a negocíalidade, e os credores, que, ao tempo das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, eram os titulares da ação e, depois, passaram a ser figurantes de negócio jurídico bilateral com o devedor, foram postos de parte, só admitidos como embargantes. (b) O prazo outorgado era de espera, e não de adiamento. Portanto, só entendia com a eficácia da pretensão, não era mudança temporal na pretensão. A prática de o devedor pedir a outorga de espaço ou indúcías foi causadora do emprego do conceito de acordo, em vez do emprego do conceito de promessa unilateral. § 104. Política legislativa e concordata 1. Dados do problema. A concordata, em qualquer das suas concepções, teve e tem por fito tratar como passageiras e remediáveis as crises que o são, ou, pelo menos, pelas circunstâncias, parece que o são. A crise pode ser a mesma e agravar-se, tornando sem contornabilidade possível o seu impacto. Enquanto, porém, tal agravação não se dá, ou não mostra ter tais consequências de impedir solução razoável das dívidas, a política legislativa há de velar pela tentativa de afastamento das consequências destruidoras do crédito. 2. Soluções. Compreende-se que .as primeiras leis cogitassem do acordo, ou da declaração unilateral de vontade dos credores; a princípio, com a exigência da unanimidade, depois, com a da simples maioria dos valores dos créditos. Por outro lado, a função do juiz variou e tinha de variar: ou seria integrativa de forma, ou examinaria pressupostos, ou, o que foi o mais alto grau, prestaria ao devedor a “ concordata ”, que o Estado prometeu. 3.Evitamento, intervalo ou encerramento. Quanto ao procedimento falencial, ou a concordata o evita, ou é intervalo, pela recontinuação do procedimento falencial, ou, após o cumprimento, o processo falencial se encerra, tendo sido desconstitutiva dele a concordata. Só então a concordata “encerra a falência”. § 105. Concordatas concursais e falenciais 1.Direito comercial e direito não-comercial. No direito público e no direito privado não-comercial, o acordo de tipo con cordat (cio pode existir. O que lhes falta é a pretensão à concordata, que o direito brasileiro somente criou no direito comercial. Não apenas no direito falencial: nas liquidações regidas pelo direito das falências, em virtude de remissão que lhe fazem as leges speciales, há a pretensão á concordata, ou, melhor, sem a elipse, a pretensão à decretação da concordata. Se a lei alude à nova çáo de crédito para se extinguirem as obrigações do falido, ainda que se conclua negócio jurídico de novação de todos os créditos habilitados, não há, aí, concordata negocial, nem, a fortiori, judicial. O que se torna possível é o encerramento da falência. Nenhum dos efeitos da concordata é efeito novativo. As dívidas do falido são as mesmas, se decretada a concordata. Nenhum dos casos exsurge com a decretação da concordata. As discussões, que se travaram, pecavam por falta de noção precisa dos dois institutos. A concordata, conforme a concepção do direito brasileiro provém de limitação ao direito dos credores. Mediante as regras jurídicas que criaram o direito, a pretensão e a ação de concordata, a esfera jurídica dos credores sofre a alteração nos créditos quirografários, que resulta do exercício bem sucedido da pretensão ã concordata.

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2. Eficácia vinculativa. A eficácia vinculativa que tem a sentença de decretação da concordata, preventiva ou suspensiva, é resultante da natureza da sentença, que é constitutiva. Não se pense em eficácia negocial, unilateral ou contratual, porque de modo nenhum há negotium. O devedor comum, a favor de quem o sistema jurídico criara direito, pretensão e ação de concordata, exerce a pretensão à tutela juridica, invocando esse direito à concordata, exigindo-a em juízo. O Estado entrega-lhe a prestação jurisdicional, que consiste, em caso de procedência de ação, em estabelecer-se o estado de concordata. A vinculação dos credores do mesmo devedor resulta de haver, na esfera jurídica de cada um, limitação do direito de crédito, o que permite ao Estado constituir a concordata. Passa-se algo de semelhante ao que ocorreria se o Estado exercesse a pretensão à desapropriação: lá está, na esfera jurídica de cada proprietário, ou titular de direito, a limitação, que é como franja em que aquela pretensão pode ser exercida. Conjuntamente, há quatro momentos principais: a) O momento em que a legislação sobre nascimento do direito, da pretensão à concordata, incide, com a ação que da pretensão resulta. 1) O momento em que o titular da ação de concordata a exerce. c) O momento em que o juiz, em non plena cognitio, despacha a petição, para processamento do pedido de concordata (despacho de processamento). d) O momento em que o juiz, entregando a prestação jurisdicional favorável, defere o pedido de decretação da concordata. Nenhuma valia têm para o sistema jurídico brasileiro as elucubrações de 1 Percerou, Alfredo Rocco, Anton Rintelen, Agostino Ramella e tantos outros. Não há, na concordata, nem negócio jurídico, qualquer que seja, nem o contrato processual a que aludem outros, teoria que pode ser simpática a outros sistemas jurídicos, porém de modo nenhum ao sistema jurídico brasileiro. O que se há, sempre, de sublinhar é que a transformação do instituto, no sentido de esvaziamento do elemento negocial, a favor do elemento sentencial, reflete a crescente introdução do acatamento do interesse público em relação aos interesses privados mais ou menos em luta. No sistema jurídico brasileiro, esse esvaziamento foi completo, e o próprio nome tem hoje conteúdo que não é o seu. Nenhum acordo há na concordata de hoje, conforme o sistema jurídico brasileiro; nem a sua constituição e a sua eficácia dependem de acordo, unãnime ou por maioria, ou de assentimento. A concordata é meio para se atingir a extinção das obrigações. Não é, como vulgarmente se diz, modo de extinção. O que dela resulta é status, durante o qual se colima cumprir o que o devedor prometera, ainda que se trate de cumprimento imediato à decretação da concordata. Ou a concordata apenas prorroga prazo (adia o pagamento, dilata o tempo para a satisfação) ou apenas diminui o quanto das soluções, ou nela se empregam os dois expedientes. E raro mas às vezes exsurge, o caso de pagamento à vista da percentagem fixada; mais raro ainda o de pagamento integral das dividas, mesmo com prazo. (Quando se diz, em concordata, “pagamento à vista”, por isso se entende a prestação do quanto prometido desde o momento imediato ao transito em julgado da decisão que decreta a concordata até o prazo legal.) 3.Liquidações administrativas e concordatas. Nas liquidações administrativas coativas, como nas voluntárias, as concordatas regem-se pelo direito falencial, salvo onde alguma regra jurídica afasta a incidência. 4.Crise e concordatas. A crise que determina as concordatas preventivas não são, sempre, crises insanáveis, que sacrificam os credores. Sem razão, Angelo de Martini (II Potrimonio dei debitore nelle procedure concorsuali, 55), em considerar pressuposto necessário das concordatas preventivas a insolvência insanável. A concordata preventiva, se é possível e cumprível, supõe a sanabilidade da crise. Substitui-se a liquidação pela gestão que permita a solução das dívidas durante ela.

§ 106. Natureza da concordata 1. Dados do problema. Preliminarmente, é de advertir-se que a concordata de hoje, de concordata só tem o nome.

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Em vez do negócio juridico unilateral das indúcias creditórias e do acordo extrajudicial, ou judicial, com maior ou menor função do juiz, e da moratória por ato de graça do Príncipe, tem-se, hoje, a concordata ou — melhor — a dilação, que é prestação jurisdicional, pois o Estado atribuiu, em certas circunstâncias, ao devedor, a concordata preventiva ou suspensiva, e ao mesmo tempo assegurou a tutela jurídica. A justiça, diante do pedido de concordata, presta o que o Estado fizera direito do devedor; e presta-o, porque o Estado também prometera ao devedor a tutela jurídica.

O devedor exerce a pretensão à tutela jurídica; como res in iudiciu deducta, alega que satisfaz os requisitos para que se lhe defira o pedido. A Justiça, com a prestação jurisdicional, cumpre, pelo Estado, o que esse prê-processualmente prometera.

Ao tempo em que se exigia a maioria dos credores por seus créditos (numerus maior creditorum paciscentium; pars maior non tam ex numero personarum quam quantitate debitorum), a alguns juristas parecia chocante que a minoria, pelos créditos, ficasse subordinada à deliberação da maioria.

Desde que se atribuiu ao juiz a função integrativa, não só de exame formal, os argumentos contrários perderam valor. Tratava-se apenas de um dos elementos do suporte fático da regra jurídica sobre concordata. Afastou-se a eficácia expansiva do acordo extrajudicial: o pacto havia de ser “coniunctim ac iudicialiter”. O acordo extrajudicial somente poderia ter eficácia entre os figurantes, entre os que pactassem.

Mas tudo isso não pode influir na inteligência das regras jurídicas escritas do direito brasileiro de hoje, a respeito de concordata. A superação foi profunda e havemos de precatar-nos quanto a vacilações que teriam razão de ser noutros sistemas jurídicos, e não no sistema jurídico brasileiro. 2. Distinções com função de direito processual e de direito material. O procedimento falencial pode ser evitado, ou suspender-se, talvez mesmo acabar, pela concordata, dita, ali, preventiva (“prevenir” tem, então, o sentido de chegar a tempo de obstar), e, aqui, suspensiva. A distinção entre concordata amigável e concordata judicial está, hoje, superada. (Certamente, o acordo entre todos os credores tem de ser atendido, se, a respeito de cada um deles, era possível o pacto de non petendo in tem pus, ou a dilatação do prazo sem ser em simples pacto criador de exceção, ou o rebate. Ainda há o problema do vencimento antecipado se ocorre, a pedido de outro credor, não figurante, ou do próprio devedor, decretação de falência.) Assim, as discussões, em literatura estrangeira de hoje, ou no direito brasileiro anterior, sobre o contrato coletivo, ou o contrato de adesão, ou que jandas figuras, a propósito da concordata de hoje, são sem qualquer pertinência. O pedido de concordata pode ser deferido mesmo se todos os credores não a querem. Foi pré-eliminado, conseguintemente, todo elemento de negocialidade. Os que ainda hoje trazem à baila analogia, ou, apenas, parecenças com os contratos tarifários de trabalho, caem em imperdoável anacronismo. O que é importante pôr-se em relevo é que a evolução se fez como que em saltos, que iam secundarizando o elemento de negocialidade, até que o pôde dispensar de todo.

A concordata — quer preventiva quer suspensiva — não é, hoje, negócio jurídico, como ocorre com as

concordatas nãofalenciais, meros acordos unãnimes entre credores, mesmo quando se consente em que uns recebam menos do que outros. Tampouco se pode dizer que a concordata falencial, seja preventiva seja suspensiva, resulta de acordo entre alguns credores, O direito brasileiro abstrai de qualquer consentimento ou assentimento dos credores. A concordata, quer preventiva quer suspensiva, é prestação jurisdicional do Estado.

O direito material falencial estabelece que o devedor comum, sujeito à decretação de abertura de falência, pode evitá-la, ou obter a suspensão do procedimento falencial, se satisfaz os pressupostos necessários e suficientes, que a lei apontou. Note-se bem: a pretensão à (decretação da) concordata nasce no plano do direito material, porque a lei, podendo limitar, no interesse público, no quanto e no tempo, os créditos, prometeu fazê-lo quando cedas circunstâncias ocorressem (= quando o devedor satisfizesse certos pressupostos).

O falido exerce a pretensão à tutela jurídica (pretensão pré-processual>, fazendo res in iudiciurn a pretensão à constituição da concordata, O Estado, através do juiz, presta a tutela jurídica, constituindo o estado de concordata,

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O estado de concordata evita que se estabeleça, com a decretação da abertura da falência, o estado de falência, ou desconstitui, suspensivamente (= desconstitui desde agora e sob condição), a eficácia do estado processual falencial.

É bom frisar-se que a concordata suspensiva somente encobre o estado falencial; encobrindo-o, o procedimento não tem curso, até que, com o fracasso do devedor, durante o processamento, ou depois de obtida a concordata, se retome.

Conforme detidamente teremos de mostrar, a concordata suspensiva absolutamente não encerra a falência. O devedor que obtém decretação de concordata suspensiva é um falido, que no tempo para a cumprir está fora do procedimento de execução forçada coletiva. Prometeu executar, voluntariamente, e tem de cumpri-lo, ou sofrer que o procedimento falencial retome o seu curso.

Um dos pressupostos exigidos para o exercício da pretensão à concordata é a promessa de pagamentos, nos termos da lei. Quem pode fazer essa promessa já tem direito e pretensão à concordata. Quem a faz e entrega a petição já a exerce, propondo a ação. Supõe, entenda-se, que tenha os pressupostos de legitimação. 3.Promessa do devedor. A promessa tem de ser feita pelo devedor que exerce a ação de concordata: é unilateral. Não a têm de aceitar, ou recusar, os credores. Por outro lado, não pode o devedor fazê-la dependente de assunção de contra-obrigação por parte dos credores, de alguns ou de algum deles. Nem a cláusula de cessão da empresa aos credores, que a receberiam em sociedade, pela transformação dos seus créditos em quotas sociais, seria — como promessa — de admitir-se. (Nos acordos e concordatas extrajudiciais, sim.). A percentagem, os termos e garantias têm de ser iguais para todos os credores. Porém, não destoa da concordata preventiva que se preste garantia de satisfação dos credores nas datas que seriam as dos vencimentos dos seus créditos, desde que todos sejam pagos dentro do prazo para cumprimento integral, ou se apenas se consideram pagáveis no fim do prazo os créditos que venceriam depois dele. O despacho de processamento da concordata faz vencerem-se as dívidas. Todos os créditos teriam de ser satisfeitos, de conformidade com a promessa, nas mesmas datas, porém pode ocorrer que se dê garantia suficiente para a solução dos créditos que, sem a incidência de tal regra jurídica, ainda não estariam vencidos. O que é preciso é que tais garantias não sejam com os bens que constituem o ativo destinado ao pagamento dos credores quirografários, se, com isso, se ofende a por condicio creditorum. Um dos pressupostos exigidos para o exercício da pretensão à concordata é a promessa de pagamentos, nos termos da lei. Quem pode fazer essa promessa já tem direito e pretensão à concordata. Quem a faz e entrega a petição já a exerce, propondo a ação. Supõe, entenda-se, que tenha os pressupostos de legitimação. 3. Promessa do devedor. A promessa tem de ser feita pelo devedor que exerce a ação de concordata: é unilateral. Não a têm de aceitar, ou recusar, os credores. Por outro lado, não pode o devedor fazê-la dependente de assunção de contra-obrigação por parte dos credores, de alguns ou de algum deles. Nem a cláusula de cessão da empresa aos credores, que a receberiam em sociedade, pela transformação dos seus créditos em quotas sociais, seria — como promessa — de admitir-se. (Nos acordos e concordatas extrajudiciais, sim.). A percentagem, os termos e garantias têm de ser iguais para todos os credores. Porém, não destoa da concordata preventiva que se preste garantia de satisfação dos credores nas datas que seriam as dos vencimentos dos seus créditos, desde que todos sejam pagos dentro do prazo para cumprimento integral, ou se apenas se consideram pagáveis no fim do prazo os créditos que venceriam depois dele. O despacho de processamento da concordata faz vencerem-se as dívidas. Todos os créditos teriam de ser satisfeitos, de conformidade com a promessa, nas mesmas datas, porém pode ocorrer que se dê garantia suficiente para a solução dos créditos que, sem a incidência de tal regra jurídica, ainda não estariam vencidos, O que é preciso é que tais garantias não sejam com os bens que constituem o ativo destinado ao pagamento dos credores quirografários, se, com isso, se ofende a par condicio creditorum. O devedor pode evitar ou suspender o procedimento falencial, sendo de entender-se que o evitamento somente pode ocorrer se ainda não foi decretada a abertura da falência. É preciso que se não confunda o instituto da concordata, como hoje é, com a chamada concordata amigável, em que o juiz apenas teria função de integração de forma e exame da legitimidade, uma vez que se supunha o

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unânime consenso dos credores. Os inconvenientes eram muitos, por não poder o juiz entrar na apreciação dos créditos, o que permitia a inserção de credores ficticios e de credores, sem respeito da par condicio creditorum (cf. Alfredo Rocco, IL Concordato nel fallimento e prima del fallimento, 333 5.; Augusto Nati, Dei Concordato, nº 49 5.; Leone Bolaffio, II Concordato preventivo secondo le sue tre Ieggi disciplinatrici, 12). A concordata, é de supor-se, porque a experiência o tem mostrado, traz vantagens aos credores e ao devedor. As despesas e os desgastes, que as falências acarretam, são grandes. A demora com a liquidação do ativo e do passivo traz inconveniências que não são apenas as de adiar-se o pagamento. Por outro lado, aumentam as probabilidades de o devedor superar a crise em que se encontra. Exige-se que o devedor, ao pedir a concordata preventiva, instrua a petição com a lista nominativa de todos os credores e a natureza e importância dos respectivos créditos. Todos os credores, e não só os credores quirografários, têm de constar da lista. É elemento necessário de instrução da petição o que é indispensável ao conhecimento do ativo. Quanto à concordata suspensiva, somente se pode obter depois de ser entregue em cartório o relatório do síndico. Numa e noutra espécie, é necessário saber-se qual o estado ativo e qual o estado passivo do devedor. No caso de concordata preventiva, tem-se de verificar o passivo; no de concordata suspensiva, a verificação já ocorreu. As vantagens são para o devedor em crise e para os credores. Aquele dá-se o ensejo de vencer as dificuldades, que ele conhece e pensa poder afastar. Esses, recebem, desde logo, algo, que, na pior das hipóteses, é mais do que lhes poderia prestar a massa falida. Por outro lado, a concordata preventiva pode permitir a alienação da empresa, com a prestação integral a todos os credores. Os credores podem, antes da decretação de abertura da falência e a qualquer momento, dar quitação de todas as dividas e prestar o necessário ao pagamento de encargos da massa e dividas da massa. Tal atitude pode ser com ou sem a substituição subjetiva do falido no negócio. De qualquer maneira, não há concordata. Antes da decretação de abertura da falência, torna-se impossível, porque se pré-eliminaram quaisquer pressupostos para a decretação de abertura da falência. Depois da decretação de abertura da falência, é atitude que leva ao encerramento da falên-cia, e não à concordata suspensiva. O sistema jurídico brasileiro não tem a cessão de bens divestitiva, segundo a qual o devedor, cedendo aos credores os bens, se libera das dívidas (em direito aglo-saxônico, discharge). A cessão de todos os bens, ou dos bens que bastem, ou com que os credores acordem em liberar o devedor, é possível no direito brasileiro, negocialmente. Não há qualquer direito, pretensão e ação para ele ceder os bens e liberar-se. No direito falencial brasileiro, não pode ser atendido o pedido de concordata falencial feito pelos credores. O que eles apresentarem, sob tal forma ou pretexto, apenas se pode considerar sugestão ao falido para que exerça pretensão à decretação da concordata. (O acordo entre credores e devedor, para dilatação de prazos, ou para rebate, ou outra alteração no negócio jurídico, ou no crédito, tanto pode ser oferta do devedor como dos credores, inclusive um ou alguns desses podem fazer oferta dependente da adesão dos restantes e aceitação do devedor. Mas isso nada tem com a concordata.) 4.Concepção do direito falencial brasileiro. O nome “concordata” esvaziou-se do seu conteúdo, que era o acordo. Hoje, no sistema jurídico brasileiro e noutros sistemas jurídicos, abstrai-se de qualquer concordância, ou acordância. Os credores quirografários são sujeitos passivos na ação de decretação de concordata, ou, simplesmente, ação de concordata. Os credores quirografários, mesmo os que não se apresentaram e mesmo os que não foram admitidos, estão subordinados à eficácia sentencial. Residam, ou não, no pais, hajam ou não embargado, tenham sido, ou não, mencionados na relação de credores. O pedido de concordata preventiva tem de ser julgado antes de se julgar o pedido de decretação de abertura da falência, mesmo porque a decretação de abertura da falência a qualquer momento do processo, ou se dá porque o devedor pediu, depois, a decretação de abertura de falência, o que implica pedido de retirada do pedido de decretação da concordata, ou contém, como solução de questão prévia, a afirmação de que falta algum dos pressupostos subjetivos, ou de pressuposto subjetivo, ou de pressuposto objetivo.

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A técnica legislativa concebeu a concordata como direito, pretensão e ação, oriundos no direito falencial material. Indo a juízo, porque a prestação é constituída pelo juiz, o devedor exerce a pretensão à tutela jurídica. A concordata supõe, em direito material, a pretensão à concordata, de que deriva a ação de concordata (só exercível judicialmente), e a pretensão à tutela jurídica, que se exerce pela propositura da ‘ação” (demanda) de concordata. O Estado estabeleceu, legalmente, a pretensão à concordata, que se exerce segundo a lei, com particularidades que se têm de pôr em relevo. A ação só é exercível perante a Justiça, com a privativa competência do juiz que seria competente para a falência, se preventiva a concordata, ou do juiz que decretou e perante o qual está a correr a falência, em se tratando de concordata suspensiva. a) Se a concordata é preventiva, isto é, se, com a sua obtenção, se quer evitar a decretação da abertura da falência, há a petição do devedor, que passa por exame do juiz em non plena cognitio. O despacho de processamento contém adiantamento de eficácia. b) Se suspensiva a concordata, há exame da petição e — a despeito da obscuridade da lei — suspensão do processo da falência, preliminarmente, devido à non plena cognitio, com que o juiz defere o pedido de processamento. Somente assim se justifica o nome de embargos dos credores, em vez de contestação ou impugnaçâo. 1-lá dois problemas técnicos, uma vez que está prestes a decretação de abertura de falência, ou já se decretou tal abertura: o primeiro é o de como se há de evitar, ou suspender o procedimento falencial; o segundo é o de se determinar qual a eficácia do despacho favorável ao processamento do pedido de concordata. Convém que se leiam os trechos do Tratado de Direito Privado, Tomos VI, § 649, 6, XXVII, § 3.215, 1, 2 e 3, XXVIII, §§ 3.285, 4, 3.291, 4, 3.311, 7, e XXIX, §§ 3.375, 21, e 3.392, 5. a) Se a concordata é preventiva, isto é, se, com a sua obtenção, se quer evitar a decretação da abertura da falência, há a petição do devedor, que passa por exame do juiz em non plena cognitio. O despacho de processamento contém adiantamento de eficacia. b) Se suspensiva a concordata, há exame da petição e — a despeito da obscuridade da lei — suspensão do processo da falência, preliminarmente, devido à non plena cognitio, com que o juiz defere o pedido de processamento. Somente assim se justifica o nome de embargos dos credores, em vez de contestação ou impugnação. Há dois problemas técnicos, uma vez que está prestes a decretação de abertura de falência, ou já se decretou tal abertura: o primeiro é o de como se há de evitar, ou suspender o procedimento falencial; o segundo é o de se determinar qual a eficácia do despacho favorável ao processamento do pedido de concordata. Convém que se leiam os trechos do Tratado de Direito Privado, Tomos VI, § 649, 6, XXVII, § 3.215, 1, 2 e 3, XXVIII, §§ 3.285, 4, 3.291, 4, 3.311, 7, e XXIX, §§ 3.375, 21, e 3.392, 5. 5.Críticas das teorias e das soluções legislativas. Na doutrina dos séculos passados, a concordata era tida como contrato entre credores e devedor, eventualmente os fiadores ou os titulares de direito sobre bens gravados em garantia. Ora se pensava em contrato de direito privado, ora em contrato de direito público, com as variantes intercalares que explicassem não se exigir a unanimidade dos credores, ora se cogitava de negócio jurídico unilateral, e daí se prosseguia até a concepção de August 5. Schultze (Das deutsche Konkursrecht, 114-135, que foi seguida, no essencial, por G. von Wiímowski (Deu tsche Reichs-Ronkursordnung erlãutert, 5ª ed., antes do § 160), Max Ernst Eccius (Theorie und Praxis des heutigen gemeinen preussischen Privatrechts, 1, § 120) e O. von Võlderndorff (Konkursordnung,V ed., II, 256 s., que todavia aquiescia em que a lei concursal alemã dela se afastava).

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A teoria de August 5. Schultze tem grande importância para o direito brasileiro, porque se estatuiu como se o legislador tivesse tido o propósito de eliminar todos os pressupostos que poderiam ser argumentos contrários a ela. No sistema jurídico brasileiro, não há margem para se supor qualquer negócio jurídico de concordata. O termo esvaziou-se de todo o seu conteúdo negocial. A concepção de August 5. Schultze tinha de explicar a vontade da maioria dos credores como elemento para a for mação da pretensão do devedor à concordata, como pressuposto para ela, como material da causae cognitio, e não como vontade contratual. Mas, no sistema jurídico brasileiro, pré-excluiu-se esse próprio pressuposto, como se, com isso, se quisesse afastar, previamente, qualquer dúvida sobre a construção. Se consideramos a solução brasileira como teoria, a que a lei corresponde, podemos dizer que a teoria brasileira da concordata, é o ponto extremo da teoria de August 5. Schultze. Levamos a cabo o que não alcançaram os outros povos e mostramos com isso, como a outros respeitos (e. g., a propósito da teoria da posse), que o grau a que ascendemos, na técnica legislativa, ultrapassou o de muitos povos. A construção de F.Oetker (Konkursrechtlíche Fragen, Festgabe der Rostocker Juristenfacultat, 30; Konkursrechtliche Gru ndbegriffe, 1, 223) — proposta (Vorschlag) do devedor comum, deliberação assentinte dos credores, decreto aprovativo do juiz concursal, como elementos do suporte fático — também seria imprestável para o sistema jurídico brasileiro. Foi apenas a variante contratualística menos radical e conseguiu, na Alemanha, grande acolhida (e. g., J. Petersen-G. Kleinfeller, Konkursordnung, 3ª ed., 488 s.; von Sarwey-Bossert, Die Konkursordnung 2e ed., 767 s., W. Stieglitz, Die Ronkursordnung 616; O. Meves, Die Konkursordnung 170; W. Endemann, Das deutscheKon kursuerfahren, 585 e 593; Hermann Fitting, Das ReichsKonkursrecht und - Konkurzverfahen, § 45, 6; O. Fuchs, Der deutsche Concursprocess, 143; Josef Kohler, Lehrbuch des Konkursrechts, 453 s.; Adolf Wach, Handbuch des deutschen Ziuilprozessrechts, 1, § 6ª, nº 29; B. Windscheid, Lehrbuch, II, 9 ed., 528; no mesmo sentido, St. Ciuntu e F. Wach). Entre os seguidores sempre existiram divergências (representação de todos os credores pela maioria, sociedade coativa ou comunhão coativa entre credores, exercício da pretensão formativa do contrato com todos por ato de alguns). A polêmica de St. Ciuntu (Der Zwangsvergleich im Konkurs, 45 s.) e outros, contra August 5. Schultze, mostrou, sem que o esperassem, como o problema de iure condendo estava posto e como a evolução se tinha de operar, até que se chegasse à solução pura que o Brasil lhe deu. Os que, como E. Wach (Der Zwangsvergleich, 78) e Lothar Seuffert (Deutsches Konkursprozessrecht, 409), supunham comunhão organizada entre os credores, de modo que passaria a ser órgão de tal comunhão, para admitir, ou não, a concordata, a assembléia de credores, também se apegavam a elemento de fato, que se exigia, no direito anterior, para composição do suporte-fático, e já hoje é totalmente estranho ao sistema jurídico brasileiro. Por outro lado, é de notar-se que os contratualistas tiveram de advertir que, a despeito de se tratar de contrato (como eles supunham), nem todas as regras jurídicas gerais sobre contrato poderiam ser invocadas. Tentou-se, e tenta-se, ainda hoje, explicar a eficácia da concordata preventiva e da concordata suspensiva como negocia1 (e. g., acordo com caráter colegial, Salvatore Satta, Istituzioni di Diritto failimentare, 269, o que não teria qualquer base jurídica no sistema jurídico brasileiro, que de modo nenhum alude a deliberação ou acordo). São de repelir-se as construções que, como a de Antonio Brunetti (Leziorul di Diritto concorsuale, 208 e 210), reduzem a concordata a acordo de natureza plu rilateral, ou que não atendem à transformação que se operou no direito italiano (Tribunal de Apelação de Milão, 7 de março de 1950, e Tribunal de Nápoles, 14 de agosto de 1950). Também são inadmissíveis as concepções de Luigi Lordi (II Fallimento e le altre procedure concorsuali, 235) e Giorgio de Semo (Diritto Jallimentare, 397).

Em todo o caso, a construção italiana é flácida, ondulante, e — diante do que estabelece a lei brasileira — antiquada. Em geral, a própria literatura italiana sobre concordata de muito pouco nos serve. Nem há sistematização que valha, no tocante ao direito brasileiro anterior, a que se extrai do que escreveu J.X. Carvalho de Mendonça (Tratado de Direito Comercial, VIII, 490-538, 320-417).

Outra explicação existe, que devemos refugar: a de que a concordata, preventiva ou suspensiva, expropria o direito de crédito, de modo que o credor tem de sofrer a sua observância (e. g., Francesco Carnelutti, que escreveu sobre “espropriazione del creditore”. Não há expropriação do direito e da pretensão do credor. Ou já foi decretada abertura da falência, ou não no foi. Se o foi, os credores quirografários estão sujeitos à finalidade mesma do procedimento falencial, que é solver, no que seja possível, com o ativo do momento e o que se juntar a esse, até se

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encerrar a falência, os créditos quirografários. A concordata não altera isso; apenas abrevia e evita despesas. Se o não foi, os credores deixam de ficar expostos aos dispêndios e às incertezas da realização do ativo e da liquidação do ativo. Não há expropriação do direito dos credores: há solução, com o ativo de agora, como se daria, na melhor das hipóteses, se não houvesse concordata.

É preciso que os juristas tenham sempre presentes os conceitos de direito de propriedade (loto sensu) e de limitações ao direito de propriedade (Tratado de Direito Privado, Tomo II, § 186, 6; XIII, §§ 1.431, 1.538-1.566, XIV, §§ 1.583, 5, e 1.629; XVIII, §§ 2.203, 4 e 2.212, 2.217 e 2.240, 2; XIX, § 2.251; V, §§ 566, 1 e 589, 2). As regras jurídicas que estabelecem o direito, a pretensão e a ação de concordata são regras jurídicas que limitam o direito de propriedade (lato sensu). As próprias regras jurídicas que permitem ao Estado a desapropriação, qualquer que seja o fundamento, criam direito, pretensão e ação do Estado à desapropriação. Não desapropriam. O direito de propriedade está limitado, porque houve limitação legal consistente em se darem ao Estado tal direito, tal pretensão e tal ação. E preciso que se não traga à baila haver relação entre o devedor e os credores e intrometer-se o Estado. O Estado prometeu a tutela jurídica executiva. Dada a pluralidade de credores, viu-se ele na contingência de admitir o concurso de credores, com o principio da par condicio creditorum, a fim de todos sofrerem, sem desigualdade, o fato da insuficiência do ativo. O devedor é interessado, e também a ele foi prometida a tutela jurídica: a concordata, nos termos em que a concebe o Estado, pode ser benéfica para o devedor e para os credores. A técnica legislativa, após exame dos problemas, chegou à determinação dos pressupostos que foram reputados necessários à ratio iuris do instituto. A convicção de que havia alcançado fixá-los a contento levou o Estado à construção da ação de decretação da concordata, promovível pelo devedor. Nos sistemas jurídicos em que se exige declaração da maioria dos credores, as teorias ou vêem na declaração manifestação de vontade com que se forma o negócio jurídico da concordata, o acordo, ou a reduzem a pressuposto para o pedido. (Em verdade, o Estado — digamos, o Poder Legislativo —entendeu que podia, por si só, sem a técnica da leis sobre negócios jurídicos, limitar os direitos dos credores. Se o podia fazer, ou se o nao podia, é problema diferente, de direito constitucional, a que se há de dar resposta afirmativa. Para a limitação exigiu pressupostos que em sua pessoa e em seus atos ou patrimônio de ser satisfeitos pelo devedor. Porém fez a limitação consistir em direito à concordata, pretensão à concordata e ação de concordata, só exercivel perante a Justiça.) Pelas mesmas razões, havemos de repudiar as teorias que na concordata vêem novação, remissão, transação, pactum de non petenda. Nada se nova — promete-se solver em parte, em prazos determinados, ou à vista, para se evitar a decretação da abertura da falência, ou para se suspender o procedimento falencial. Nada se remite — o credor continua a dever tudo, se não cumpre o prometido. Nem há transação. Nem se faz pacto de non petendo. A eficácia da decretação de abertura da falência ou já existia, ou iria existir. Também é de artificialidade surpreendente a teoria da substituição do negócio jurídico de direito material por outro negócio jurídico de direito processual, como o é a teoria da absorção do negócio jurídico de direito material pela sentença. Aliás, as teorias elaboradas na Itália e noutros países não servem ao direito brasileiro, porque, no direito falencial brasileiro vigente, não há, sequer, o pressuposto do assentimento da maioria dos credores. Afastado que se trate de negócio jurídico, tem-se de indagar qual o papel do ato judicial que defere o pedido feito pelo devedor. Com a concordata, fica o devedor na situação de poder solver conforme o que ficou assente, com a entrega da prestação jurisdicional (decisão favorável ao pedido de decretação de concordata). O devedor está habilitado a pagar conforme os créditos quirografários após a concretização que a eles se fez. 6.Direito brasileiro e precisão conceptual. Não há por onde se possa ver na concordata qualquer das figuras com que o contratualismo tentava explicar a concordata (novação, remissão de dívida, transação, pactum de non

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petendo, avaliação e liquidação antecipadas, negócio jurídico plurilateral, negócio jurídico unilateral, contrato bilateral entre pessoas não presentes, contrato sui generis). A propósito, convém, aqui como em tantas outras ocasiões, forrarmo-nos à influência de leituras de livros estrangeiros, em cuja legislação e em cuja doutrina não se alcançou o grau técnico do direito brasileiro. Nem se tragam à doutrina brasileira extravagâncias como a de inserção de negócio de direito material em negócio de direito processual, que seria a sentença do juiz (9, ou de absorção do contrato na sentença. O sistema jurídico criou o direito, a pretensão e a ação dos devedores à concordata. Se satisfazem os pressupostos do direito à concordata — direito que modifica a pretensão à execução forçada concursal dos credores — podem exercer a pretensão àconcordata forçada, ao Zwangsr.’ergleich. No sistema jurídico brasileiro, nenhuma referência se faz à vontade dos credores; portanto, no definir-se a pretensão à concordata, não se há de aludir a qualquer maioria de credores, nem a consentimento tácito ou assentimento tácito. O que importa é a prestação percentual, oferecida em petição com os requisitos que a lei exige. A técnica legislativa esvaziou de qualquer elemento negocial a concordata, razão por que por vezes frisamos tratar-se de termo que mudou de conteúdo. Na concordata de hoje, tal como a concebe o direito brasileiro, não há mais qualquer resquício de concordância, de acordo. O Estado cumpre a promessa de tutela jurídica, constitu indo o estado de concordata, a que o devedor tem direito. Se preventiva, fica isento da decretação de abertura da falência. Se suspensiva, param-se os efeitos do procedimento falencial. O procedimento falencial estaca, até que se cumpra a concordata suspensiva, ou se retome o procedimento falencial. Se se cumpre a concordata suspensiva, encerra-se a falência (= acaba a relação juridica processual falencial). 7.Natureza da sentença de deferimento, O ato judicial é constitutivo – não de simples homologação, ou de integração do negocio jurídico, como apareceu a Antonio Brunetti ( Lezioni di Diritto concorsuale, 210). A sentença constitui a concordata, seja preventiva seja suspensiva, pois o falido apenas a pedira. A constitutividade é, ai, quanto à concordata mesma concordata não existia, passa a existir), e não quanto à eficácia, confusão que se há de afastar, energicamente. A concordata de hoje só tem de concordata o nome e a eficácia, de modo que o Estado faz o que, no passado, credores e devedor fariam. Em consequência do que dizemos, temos de repelir que se veja ‘oferta” de contrato no que o devedor ‘oferece”. O devedor declara poder pagar, no mínimo, os 40% à vista, ou os 60% a prazo, ou poder pagar, no mínimo, 35% à vista, ou 50%, a prazo; e promete pagar. Dai falar-se em cumprimento da concordata. Porém a declaração e a promessa não são feitas aos credores: o devedor declara e promete ao Estado pagar aos credores; não promete aos credores. Não há oferta contratual, há declaração de aptidão econômica e promessa ao Estado, a que se prevê seja pedida a execução forçada coletiva, ou a que já fora pedida e deferida a decretação de abertura da falência. Hoje, não há falar-se, de maneira alguma, de homologação de concordata. O juiz julga o pedido de decretação de concordata preventiva ou suspensiva: defere-o, ou não o defere. De jeito nenhum homologa. É tão independente da vontade dos credores o deferimento do pedido de concordata, que os credores — uma vez que a eficácia preventiva é adiantada e também o é a eficácia suspensiva — podem embargar. Há o edital de que constam o pedido e o despacho, suspendem-se as ações e execuções contra o devedor, em se tratando de concordata preventiva, ou o edital e a intimação dos credores, se suspensiva a concordata. Há os embargos à concordata opostos pelos credores, porque eficácia adiantada já houve. Aqui, é de conveniência frisarmos que os embargos, por abreviação chamados embargos à concordata, são embargos ao despacho de processamento da concordata e de oposição a que se defira a concordata, seja preventiva seja suspensiva. Os credores não são chamados ou invitados a manifestar vontade: podem opor embargos ao despacho no pedido de concordata. Tudo que eles podem alegar é comunicação de conhecimento. Se alegam “sacrifício dos credores maior do que a liquidação na falência”, fazem comunicação de conhecimento. Idem, se alegam “impossibilidade evidente de ser cumprida a concordata”. Se alegam “inexatidão do relatório”, do “laudo” ou “das informações” do síndico, ou do comissário, fazem comunicação de conhecimento. Mesmo se alegam “ato de fraude” contra os credores, ou “de má-fé que influa na formação da concordata”, é de comunicação de conhecimento que se trata. Se

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a concordata é preventiva, a ocorrência de fato que caracterize crime falencial pode ser objeto de comunicação de conhecimento, contida nos embargos. O Estado reputou de interesse público, e não só particular (do devedor e dos credores), o evitamento ou a suspensão do procedimento falencial. Dai ter atribuído ao devedor, que satisfez os pressupostos legais, o direito, a pretensão e a ação de decretação de concordata. O Estado — diante do pedido que o devedor lhe faz, satisfeitas as exigências legais — tem de constituir o estado de concordata, que se inicia com a chamada “concessão de con-cordata”, que é, em verdade, decretação de concordata preventiva ou suspensiva. Foi eliminado, pela lei, todo resquicio de negocialidade entre falido e credores, ou maioria de credores. A sentença do juiz de modo nenhum é sentença homologatória. Trata-se de sentença preponderantemente constitutiva (= de força constitutiva). A eficácia imediata é declarativa, porque o devedor fica adstrito aos pagamentos e o falido está adstrito a solver de acordo com os termos da concordata as dividas mencionadas. A eficácia executiva é mediata, por que apenas se ressalva a abertura da falência, se não cabe ou se não se cumpre a concordata preventiva, ou a continuação do procedimento falencial se não se cumpre concordata suspensiva. Quanto à executividade, é eficácia mediata (3), porque apenas se confere eficácia de título executivo a qualquer dos títulos de créditos quirografários, que são os únicos atingidos pela concordata (créditos concordatícios). Temos, portanto, a força constitutiva, que estabelece o estado concordatício, a declaratividade, que é de grande importância devido a ter a sentença a eficácia de declarar o que disse dever o autor da ação de concordata, e a eficácia mediata executiva, que apenas confere eficácia de título executivo extrajudicial ao que se reconheceu como crédito, ao mesmo tempo que atribui à sentença a executividade para fundar outro pedido, o pedido de execução do prometido. § 107. Pretensão à concordata 1.Transformações da dilatação do tempo quanto às dívidas.Preliminarmente, tem-se de pôr de parte o negócio jurídico ou a regra legal que adie o vencimento: ali, faz-se nascer, negocialmente, mais tarde, a pretensão; aqui, tal efeito é da lei. Numa e noutra espécie, a dívida sofre, quanto à pretensão, alteração quanto ao tempo. Nos séculos anteriores ao século XIX, o direito luso-brasileiro não teve o rebate coativo, nem o rebate por maioria. A primeira concepção da alteração no tempo foi quanto à eficácia da pretensão, e não quanto à própria pretensão. Tratava-se de negócio jurídico unilateral, mediante o qual o credor ou os credores, por maioria, outorgavam ao devedor o espaço, as indúcias creditórias. Nem se fazia nascer mais tarde a pretensão, nem se tinha como vencida mais tarde a pretensão que já nascera. Apenas se dava prazo prudencial para que o devedor, já obrigado, pagasse. Por esse tempo também era possível o acordo, o pacto de non peten do, porém não era a ele que se referiam os textos reinícolas. Depois, como que se soldou ao ato jurídico unilateral o consentimento do devedor, para que cumprisse o que se concluiu entre os credores. Essa bilateralização foi responsável pela referência à concordata. A exigência de garantia ao adimplemento, prestada pelo devedor, veio acentuar a bilateralização. No estado último do direito brasileiro, tudo já é diferente. Se ocorrem a, b e e, pressupostos positivos, e não é caso de d, e e f, pressupostos negativos, o devedor tem direito, pretensão e ação para obter concordata. O nome, como pele de conceito ficou, sem que perdurasse o conceito. Assim como, ao tempo dos textos reinícolas, era indiferente se o devedor aceitava, ou não, o que declaravam, como vontade, os credores por maioria, ou o credor, é indiferente se o credor ou os credores, hoje, aceitam, ou não, o que o devedor pede ao Estado. Há, portanto, direito à concordata, pretensão à concordata e ação de concordata.

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A concordata, no sistema jurídico brasileiro, não é contrato, nem se cogita de maioria dos credores, ou da manifestação de vontade de qualquer credor. Trata-se de direito, pretensão e ação do devedor — de prestação jurisdicional do Estado, para que se evite a execução forçada coletiva ou para que se suspenda tal execução. 2. Concordata preventiva. A concordata preventiva modifica as dívidas passivas, precipita o resultado concursal para evitar o normal desenvolvimento do concurso. E abreviação, com margem para o devedor salvar o patrimônio. Não perde ele a gestão, embora a gestão, que lhe fica, seja dentro de moldes que o plano da concordata lhe impôe. É de notar-se que, com a concordata, o ativo permanece imodificado, como se fosse separado, em destino, do passivo; o passivo, sim, sofre a modificação que a concordata determinou. Há antecipação do resultado do concurso sem se percorrer o caminho normal para o concurso. Não se liquida o patrimônio; liquida-se o passivo, para se chegar à percentualidade dos adimplementos. Se, para a satisfação dos credores, é de mister liquidar-se o patrimônio, a concordata preventiva só afastou a liquidação normal, e abriu-se mão da gestão. A concordata preventiva estabelece limites à gestão pelo devedor, porque lhe incumbe cumpri-la, e não praticar qualquer ato que torne menos provável o cumprimento. Toda a liberdade, que tinha, o devedor a conserva, mas respeitado o que se firmou em relação a todos os credores. A concordata preventiva antecipa o concurso; daí, o seu caráter tipicamente concursal. Relação jurídica processual concursal, sem que haja execução forçada. A expressão “concurso de credores” lembra sempre a concorrência na execução forçada, é mesmo a execução forçada coletiva. A concordata contém a concursalidade sem a executividade forçada. E o concurso de credores quirografários em execução voluntária. 3. Concordata suspensiva. Se a concordata é suspensiva, pode-se dizer que é fase pré-elidente no procedimento falencial. Se é preventiva, não. Fase é parte; parte não previne, parte está integrada ou se integra. Na concordata preventiva, o devedor está no ponto a e teme que no ponto e ocorra a decretação de abertura da sua falência. Então, pede ele que no momento b se decrete a concordata preventiva, que lhe permitirá seguir por outro caminho, de modo que no momento c não se lhe decrete a abertura da falência. No direito brasileiro, a demanda é para se obter o que o Estado prometeu, não o que prometeram os credores quirografários. Esses nada prometeram. Esses sofrem a incidência da lei que estabeleceu os pressupostos para que nascessem o direito, a pretensão e a ação do devedor contra o Estado. Em verdade, ai, a relação jurídica processual só se poderia conceber como angular se se considerasse demandado o Estado. Porém, diz-se, não se precisa de tal concepção, devido à natureza do direito, da pretensão e da ação. Alguns juristas entendem que a demanda se dirige contra o juízo falencial, o que se há de repelir. O juízo falencial exerce a sua jurisdição, em tais circunstâncias, como em quaisquer outras. E órgão do Estado, órgão do Poder Judiciário. Não é parte. Parte seria o Estado que prometeu a decretação da concordata se perfeitos os pressupostos necessários apontados pela lei. O Estado é juiz e é demandado. Fora disso, a única construção seria a de relação jurídica processual unilineal: devedor, Estado (juiz). A última é a melhor concepção, porque a relação jurídica processual não se angularizou. Não são partes contrárias os credores, ou o credor, porque a lei fez qualquer atitude dos credores ação de embargos contra o ato decretativo de processamento e contra a eventual decretação da concordata. Pré-excluiu pensar-se em angularização da relação jurídica processual com os credores. Não tem dever de direito material privado o Estado, porque o Estado está apenas no dever pré-processual e processual de aplicar a lei (= de prestar a decretação da concordata). 4. Concordata diminutiva, concordata dilatória e concordata mista. A concordata pode ser diminutiva, ou dilatória, ou mista. Se diminutiva (evitemos dizê-la remissória, pois, na concepção atual da concordata, credores não declaram vontade, menos ainda redimem), o devedor promete menos do que deve, porque somente diz pagar a percentagem. Não é incompatível com o conceito de concordata a promessa de pagar o total de cada crédito.

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A crise pode ser passageira, sem deficiência de ativo. Então, o devedor apenas pede que se lhe defira a concordata dilatória. Possivel é imaginar-se que lhe baste a eficácia adiantada, que se atribui ao despacho de processamento. Então, ele se prontifica a solver no prazo legal que se confere ao devedor nas concordatas à vista os créditos quirografários. Se dilatória, há necessariamente protraimento das datas dos pagamentos, quanto a algum dos créditos, ou quanto a alguns, ou quanto a todos eles. Qualquer das duas formas puras é possível. Repila-se a afirmação de Antonio Brunetti (Lezioni di Diritto concorsuale, 2! ed., 209) e de Giorgio de Semo (Diritto Jailimentare, 395) de que não seria de conceber-se concordata somente dilatória. Talvez a só dilatação dos prazos para pagamento baste ao devedor. A crise pode ser de tal transitoriedade que em pouco tempo esteja apto o devedor a solver integralmente e com os juros todas as dívidas quírografárías. As concordatas mistas, que são as mais frequentes, dilatam os prazos de pagamento e diminuem o quanto de cada crédito, proporcionalmente. O princípio de igual tratamento é inafastável, porém não o viola — se há garantia de todos os pagamentos de créditos que não estavam vencidos — o prometer-se solução a cada vencimento, desde que se não exceda o máximo legal de tempo para a satisfação de todos os credores. (Pusemos aspas em “vencimento”, porque o deferimento do processamento da concordata preventiva determina o vencimento antecipado de todos os créditos sujeitos aos efeitos da concordata, com a regra jurídica sobre juros. De modo que alusão feita pelo devedor a vencimentos, na sua promessa para instrução do pedido de concordata preventiva, ou mesmo suspensíva, somente se pode entender aos dias em que se venceriam os créditos, se não tivesse havido a antecipação de vencimentos.) Não há concordata sem a par condicio creditorum dos credores quirografários. § 108. Tempo e pretensão 1.Preclusão do prazo paro pedido de concordata. O devedor comerciante que, sem relevante razão de direito, não paga no vencimento obrigação certa e líquida, está diante do dilema: ou pede a decretação de abertura da falência, ou pede a concordata preventiva. Se pede a decretação de abertura da falência, pode vir a ser legitimado à decretação da concordata suspensiva. Se deixa de pedir, no prazo legal, a decretação de abertura da falência, incorre na sanção: nenhuma pretensão à concordata lhe pode nascer. Se pede a concordata preventiva, tem de fazê-lo no prazo legal. Não há possibilidade de decretação de concordata preventiva, se o devedor — que a podia pedir dentro do prazo em que teria de pedir a decretação de abertura de falência — não a pede. O prazo para pedir a decretação da abertura da falência funciona como prazo para pedir a decretação da abertura da falência ou para pedir a decretação da concordata. 2. Processo da concordata. O processo da concordata é cheio de prazos pré-sentenciais e pós-sentenciais. Os prazos para os embargos à concordata são comuns às concordatas preventivas e às suspensivas. Na concordata preventiva, os prazos pré-sentenciais mais relevantes são o prazo mínimo que é o da entrega dos livros obrigatórios ao escrivão, o prazo para as declarações de créditos, os prazos que tem o comissário, o prazo, concernente ao escrivão, o prazo para cumprimento se à vista a concordata e o de cumprimento da concordata a prazo. Na concordata suspensiva, há o prazo para dentro dele se fazer o pedido de decretação da concordata, para que o despacho de processamento haja os efeitos que o pedido extemporâneo não tem, o prazo para os embargos dos

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credores à concordata, o prazo para que o devedor cumpra a promessa de garantia, o prazo para satisfazer o que se lhe exige se a concordata foi à vista, e o prazo para cumprimento da concordata a prazo. § 109. Exercicio da pretensão à concordata 1.Início do exercício da pretensão â concordata. Quando o devedor se acha com todos os pressupostos para exercer eficazmente a pretensão à concordata, tal pretensão nasceu. O exercício da pretensão à concordata é por meio de ação constitutiva, porque a pretensão é exatamente a que se constitua a concordata, seja preventiva, seja suspensiva. Tem ele de formular o pedido de concordata preventiva. Uma vez que o devedor expôs, minuciosamente, o seu estado econômico e as razões, que tem, para pedir a decretação da concordata, sabe-se qual o seu ativo e qual o seu passivo. Passivo quirografário é todo passivo que não tem garantia real, nem a lei lhe deferiu privilégio especial ou geral. Os direitos reais limitados são direitos que não estão no patrimônio do devedor, são direitos de outrem. Para se definir passivo como a soma dos débitos quirografários e dos débitos garantidos por direito real, ter-se-ia de abstrair da cisão que no bem, isto é, no seu valor, fazem os direitos reais de garantia. Em matéria de concordata, quer preventiva quer suspensiva, tem-se de abstrair dos créditos garantidos com direito real e dos créditos privilegiados, especial ou geralmente. Credores da concordata são apenas os credores quirografários. Assim, mais uma vez frisemos: a) os direitos reais limitados cortam algo ao bem, de modo que o que se detracta não está no patrimônio do devedor, titular do direito sobre o bem gravado, mesmo em se tratando de créditos com garantia real; b) o que é crédito com privilégio especial, há algum bem sobre que privilegiadamente incide; c) o que é crédito com privilégio geral tem o patrimônio como objeto da execução enquanto esse permite que com ele se satisfaçam os créditos com privilégio especial e os créditos com privilégio geral. A concordata supõe que todos esses créditos extraconcordaticios fiquem satisfeitos. 2. Competência judicial. O foro competente para a ação de concordata preventiva é o do lugar em que teria de ser pedida a decretação de abertura da falência; portanto, aquele em que o devedor tem o seu principal estabelecimento. Se, na mesma jurisdição, há mais de um juízo competente, a propositura da ação em um deles previne a jurisdição. Quanto à concordata suspensiva, só se poderia pensar num juízo competente: aquele em que foi aberta a falência. Em vez do juízo que seria o competente para conhecer e julgar o pedido de decretação de abertura da falência, o juízo em que está o processo da falência. A constitutividade da decisão que decreta a concordata atinge o estado falencial: no futuro, se preventiva a concordata, de modo que o efeito é pré-excludente, impede a abertura da falência; no presente, se suspensiva a concordata, de jeito que o efeito é de certo modo excludente. Mas, conforme melhor mostraremos, o estado falencial só é atingido no que concerne ao procedimento falencial, donde dizermos que a concordata suspensiva não suspende a falência, ou o estado falencial, apenas o encobre, por ficar suspenso (excluído) o procedimento falencial. O concordatário, na concordata suspensiva, não é não-falido; éfalido que obteve a concordata suspensiva. 3. Petição na ação de concordata. A ação de concordata preventiva, em relação à ação de concordata suspensiva, tem as particularidades que resultam de seu fim, que é evitar a decretação de abertura da falência. Na exposição sobre o estado econômico, tem o devedor de dizer qual a causa ou quais as causas da sua situação de crise e descrever ou referir os índices do momento. No tratar das razões que justificam o pedido, necessariamente se há de referir à de impossibilidade ou extrema dificuldade de solver, pontual e totalmente, as dívidas vencidas e as que se vão vencer. De passagem, advirta-se que não é preciso já haver divida vencida, nem ser difícil ou impossível a solução da divida ou das dividas vencidas ou próximas. Tal petição, instruida com os documentos exigidos, é levada a despacho, após a distribuição. Em relação à concordata suspensiva, o que se tem de observar é que nada mais se exige para se instruir a petição

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do que a prova de que o devedor não se acha na situação obstativa. § 110. Tempo para se pedir a decretação da concordata 1. Concordata preventiva. A decretação da concordata preventiva isenta da decretação da falência. O problema de técnica legislativa havia de consistir em se dizer até quando se pode pedir tal isenção. Nunca seria possível admitir-se o pedido simultâneo à decretação de abertura da falência: seria pedido de concordata suspensiva da eficácia da decretação de abertura da falência, que é imediata. Supõe-se, portanto, que ainda não se haja decretado a abertura da falência. Cumpre advertir-se que o pedido de decretação de abertura da falência tem de ser levado ao distribuidor. Ao distribuidor incumbe entregá-lo, imediatamente, ao escrivão. Nada obsta a que o devedor ingresse com o seu pedido de concordata preventiva momentos antes de se levar ao distribuidor o pedido de decretação de abertura da falência. Nem mesmo a que ingresse com o pedido a tempo de subirem os dois pedidos ao juiz. A distribuição dá ao distribuidor o dever de entrega ao escrivão, o escrivão tem o dever de conclusão ao juiz. A exigência da lei consiste em serem imediatos os cumprimentos dos dois deveres. A infração do dever, por parte do distribuidor, ou do escrivão, não há de prejudicar o devedor. Caberia a esse a ação de indenização. Recebendo os dois pedidos, o de decretação de concordata e o de decretação de falência, ainda que não simultâneos mas dentro das horas em que há de decretar a abertura da falência, ou o juiz defere o pedido de processamento da concordata preventiva, com o que faz temporariamente prejudicado o pedido de decretação de abertura da falência, ou decreta a abertura da falência e despacha o pedido de concordata preventiva no sentido de ser-lhe concluso, como pedido de concordata suspensiva, no momento oportuno, que é bem mais tarde, ou indefere o pedido de processamento da concordata preventiva. 2. Concordata suspensiva temporánea. A concordata suspensiva, para que o despacho que defere o processamento da ação tenha efeito suspensivo da realização do ativo e do pagamento das dívidas, tem de ser pedida no prazo legal. Trata-se de ação, oriunda do direito à constituição da concordata, que a lei atribui, com pretensão, aos devedores. Supõe-se decretada a abertura da falência. Já existe procedimento falencial. O relatório do síndico há de ser entregue em cartório após a decisão do juiz no inquérito judicial, se foi aberto. Se houve, o juiz recebe, ou não, a denúncia ou a queixa apresentada. O recebimento obsta à concordata suspensiva, até que se dê a sentença penal definitiva. Se foi rejeitada a denúncia, ou a queixa, pelo juiz do inquérito, que é o da falência, pode ser promovida a ação penal, mas o recebimento da denúncia, ou da queixa, pelo juiz penal não obsta à decretação da concordata. Assim, se tais obstáculos não ocorrem, pode-se pedir e obter a decretação da concordata suspensiva. Se não houve abertura de inquérito judicial e se não houve condenação em juízo penal, o falido pode pedir decretação de concordata no prazo legal após o prazo em que síndico teria de apresentar o relatório. O que depende de ter havido, ou não, abertura de inquérito, ou de apenas se haver publicado o quadro geral de credores, é o inicio do prazo para o sindico. Tratemos agora do pedido extemporâneo. 3.Concordata suspensivo extemporânea. A lei permite que se peça a decretação da concordata depois de expirado o prazo anterior ao inicio da realização do ativo e do pagamento do passivo. O pedido, enquanto não se encerra a falência, é extemporâneo, porém não intempestivo. Não houve preclusão da pretensão à concordata. A diferença somente concerne à eficácia adiantada, que, ali, se temporâneo o pedido, existe, e, aqui, por ser extemporâneo o pedido, não existe. Se o juiz, desatendendo à lei, atribui ao seu despacho de processamento a eficácia adiantada, à semelhança do que lhe incumbe determinar se temporâneo o pedido, o síndico tem de ir contra a decisão do juiz, que é ilegal, e cumprir tal determinação não pré-excluiria a responsabilidade do síndico. Permite-se o pedido extemporâneo. O despacho de processamento não suspende o procedimento falencial: realiza-se o ativo e paga-se o passivo, nos momentos em que tudo isso teria de ocorrer, como se nenhum pedido de

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decretação de concordata suspensiva, ou, sequer, despacho de processamento se houvesse dado. Porém isso não se refere à decretação da concordata suspensiva. Essa suspende o procedimento falencial. Os bens é que somente são entregues ao concordatário após o transito em julgado. Também a livre disposição dos bens por ele depende da coisa julgada formal. § 111. Despacho inicial 1.Eficácia do despacho inicial. A ação do devedor, que pede a concordata, é exercício de pretensão constitutiva negativa, pois que se pede a concordata preventiva ou a suspensiva. Não se trata de pretensão que dependa dos credores. Há ou não há direito, pretensão e ação do devedor à concordata, e a eles atende o juiz, em sendo o caso, qualquer que seja a atitude dos credores. A lei concebeu a ação de concordata preventiva como ação exercivel com adiantamento de eficácia. Suspendem-se ações e execuções; não o protesto e medidas semelhantes. Não se pode dizer que o despacho de processamento da concordata suspensiva não tenha eficácia adiantada. Está-se dentro da relação jurídica processual falencial. A realização do ativo e liquidação do passivo têm de suspender-se para que a final se decida sobre a concordata suspensiva. É inegável, portanto, tal efeito da non plena cognitio. A concordata suspensiva extemporânea, essa, sim, não impede que se prossiga na realização do ativo e na liquidação do passivo. 2.Concordata preventiva. Atendamos a) a que se adianta eficácia do direito à concordata, eficácia de pretensão constitutiva modificativa, a que corresponde a ação de concordata, b) a que se submete a atividade do autor da ação de concordata à fiscalização pelo comissário, c) a que se exige ao devedor prestar a garantia que ofereceu. Devido a esse adiantamento de eficácia, a lei chamou embargos à defesa dos credores. A decretação da concordata preventiva retira ao comissário as funções que se lhe haviam atribuído durante o processamento do pedido. O concordatário não mais precisa, para os seus atos, da fiscalização do comissário, salvo em se tratando de alienação de imóveis ou de constituição de garantias reais, casos em que tem o juiz de dar, ou não, autorização, ouvido o comissário. 3. Concordata suspensiva. A concordata suspensiva, essa, tem o adiantamento de eficácia, que, nas circunstâncias em que se acha o procedimento falencial, seja de admitir-se. O sindico tem de apresentar o relatório no prazo legal, e o devedor tem o prazo para o pedido, após a entrega (e. g.: o pedido de concordata suspensiva será feito dentro dos cinco dias seguintes ao do vencimento do prazo para a entrega, em cartório, do relatório do síndico). Se houve o despacho de processamento da concordata, não se inicia a liquidação. A eficácia, aí, é impeditiva, em relação à realização do ativo e à liquidação do passivo, mas, uma vez que já se está em procedimento falencial, o termo “suspensiva” não é impróprio. Quanto à concordata suspensiva extemporânea, isto é, que não foi pedida no prazo legal, não obsta à continuação da realização do ativo e ao pagamento do passivo. 4. Declaração de conhecimento do estado de insolvabilidade. O pedido de decretação de concordata preventiva contém, implícita ou explícita, declaração de conhecimento, que é a de estar o devedor em situação de não poder pontualmente adimplir as suas obrigações. Se a promessa é de pagamento integral, somente adiado conforme a lei permite, esse é o efeito que se quer. Todavia, pode bem ser que os efeitos esperados sejam em maior número, inclusive os efeitos máximos (e. g., 60% a prazo de dois anos, pagos dois quintos no primeiro ano). O fato de haver comunicação de conhecimento de tal dificuldade tem a conseqúência de havê-la de considerar ver-dadeira o juiz, ou para decretar, desde logo, a abertura da falência, se verifica que algum dos pressupostos de pré-exclusão ocorreu, ou se nao há os pressupostos de aquisição do direito de que fala a lei, ou falsidade ou deficiência dos documentos por ela mencionados. Todavia, não se tome muito à letra o texto da lei. Em princípio, o pedido de decretação da concordata preventiva tem em si a comunicação de que o devedor atravessa momento de crise, que pode levar à decretação de abertura

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da falência. Daí ter-se na lei apontado o caminho: decretação de abertura da falência ou decretação da concordata. Mas as circunstâncias podem convencer o juiz de que ainda não é o momento ou não é o caso para a decretação de abertura da falência, se não decreta a concordata. O próprio devedor pode requerer ao juiz a juntada de documento pelo qual se prova que a crise foi debelada, ou cortada pelo cerne (e. g., o maior credor remitiu a dívida, o devedor recebeu quantia suficiente que não esperava receber, ou temia que a tempo não recebesse). § 112. Sentença concernente à concordata 1.Posição do problema. Nas concordatas concursais, não nas falenciais, a unanimidade dos que são credores é necessária; há negócio juridico entre o devedor e os credores, que a decisão judicial homologa. Nas concordatas falenciais, a lei criou a pretensão à concordata preventiva ou à suspensiva, de modo que o devedor exerce a pretensão à tutela jurídica constitutiva. De passagem, observemos que, a propósito da sentença sobre o pedido de decretação de concordata, Trajano de Miranda Valverde (Comentários à Lei de Falências, II, 235) fala de declaração de vontade. De modo nenhum. Sentença não é”declaração de vontade”. Os devedores, que pedem a decretação da concordata, exercem pretensão à tutela jurídica. O Estado prometeu-lhes a aplicação da lei, isto é, das regras jurídicas, onde se atribuiu aos devedores, com os pressupostos previstos, ou aos falidos, com os pressupostos previstos, a pretensão à decretação da concordata preventiva ou suspensiva. O juiz, órgão do Estado, entrega a prestação jurisdicional, que é a sentença. Tal prestação e, ai, de constituição da concordata que foi pedida. Não há declaração de vontade. Nem há declaração de vontade nos embargos à concordata preventiva ou à suspensiva. Os embargantes fazem afirmações, statements of facts, comunicações de conhecimento (e. q., há sacrifício dos credores, ou há impossibilidade evidente de cumprimento, ou há inexatidão do relatório, ou houve ato de fraude ou de má-fé que influi na formação da concordata, ou há crime falencial). Nem há acordo entre devedor e credores, nem, a fortiori, entre devedor e juiz; nem seria de admitir-se que a evolução técnica se tenha operado no sentido de se substituir o Estado aos credores, o que seria absurda sub-rogação pessoal, digamos assim, do Estado, através do seu órgão, que é o juiz, aos credores. A construção revelaria intolerável reminiscência da teoria contratualística da concordata. No direito brasileiro, a concordata, o status de concordata, é prestação que o Estado prometeu aos que estejam nas situações jurídicas que a lei prevê e a peçam (= exerçam a pretensão à tutela jurídica, ai constitutiva). O direito brasileiro levou à mais pura concepção a teoria de August S. Schultze, livrando-se, assim, da própria teoria dominante na Alemanha, que é a da concordata-contrato (e. g., Friedrich Lent, Zwangsvollstreckungs- und Konkursrecht, § 57, VI; A. BôhIe-Stamschrãder, Konkursordnung, 2ª ed., 263; Max Pagenstecher, Der Konkurs, 2ª cd., 121; sobre a semelhança com a transação judicial, Gila Warneyer, Di e Rechtsprechung des Reichsgerichts, 11, 353). Nos sistemas jurídicos que não chegaram à precisão do direito brasileiro, em que se afastou qualquer pressuposto de manifestação de vontade dos credores, pode-se defender, com ou sem razão, a teoria contratualística da concordata, ou qualquer teoria que especialize o elemento negocial (e. g., a teoria da representação de todos os credores pelo maioria, ou a teoria do contrato coletivo). No sistema juridico brasileiro, de modo nenhum. Com a teoria da representação forçada dos credores, Frieddrich Hellmann (Lehrbuch des deu tschen Konkursrechts, 634; cp. 643). Com a teoria do contrato processual específico, Th. 6. Petimesas (Der Zwcinqsvergleich unter besonderer Berúcksichtigung des griechischen konkursrechts, 50). 2. Eficácia das decisões nas concordatos. Na concordata preventiva, a constitutividade do despacho inicial e a da decisão ressaltam. Entre a decisão que defere o pedido de concordata preventiva e a que a julga cumprida, os atos de execução são atos de execução voluntária, e não forçada. A sentença que a julga cumprida não é executiva, nem constitutiva, é declarativa. Por ela, decide-se que o devedor cumpriu aquilo a que se obrigara, isto é, declara-se que ele voluntariamente exequiu. Na concordata suspensiva, também são evidentes a constitutividade do despacho inicial e a da decisão que defere.

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Entre essa decisão e aquela que a julga cumprida, apenas suspenso o procedimento, o devedor pratica os atos de execução voluntária. A decisão que a julga cumprida é declarativa, com a forte eficácia constitutiva negativa de dar por encerrada a própria falência. Conforme mais de espaço teremos de expor, a decretação da concordata suspensiva de modo nenhum encerra a falência. A erronia estala, lamentavelmente, em livros de juristas nacionais e estrangeiros, que não aprofundaram o estudo do assunto. É sempre preciso atender-se a que os eleitos jurídicos não se passam num só plano. O estado falencial — elipticamente, a falência (estado de falência) — não desaparece, não se extingue. Não deixa de existir a relação jurídica processual falencial. A concordata suspensiva apenas estende, a partir do despacho e, mais intenso, a partir da decretação e do transito em julgado, por sobre o estado falencial, o estado de concordata. O que se suspende é o procedimento falencial, em três graus diferentes. § 113. Conceito e natureza de concordata preventiva 1. Preventividade e pressupostos da concordata preventiva. Para que se trate de concordata preventiva, o que é preciso é que com a decretação se previna a falência. Como, porém, a concepção das concordatas esteja longe de se poder considerar a mesma para todos os sistemas jurídicos, o conceito de concordata preventiva é comum, bem que, para um sistema jurídico, a função do juiz seja simplesmente homologatória e, para outro, não haja acordo ou, sequer, aprovação ou assentimento dos credores. Conforme antes expusemos, no sistema jurídico brasileiro, a concordata nada tem de negocial; em verdade, o nome esvaziou-se de qualquer concordância, de qualquer concordare, de qualquer concordatum. O que se pode precisar, quando se trata do conceito de concordata preventiva, é a sua natureza, em cada sistema jurídico, de modo que se possa falar de concordata preventiva segundo o sistema jurídico A, ou segundo o sistema jurídico B. Sabido, porém, o que é que se entende como concordata, o que distingue as espécies é ainda não haver e, pois, poder ser afastada, ou já haver falência. O simples decurso do prazo para pagamento, ou ter-se vencido o título, não determina que ao devedor falte legitimação para pedir a decretação da concordata (Supremo Tribunal Federal, 10 de outubro de 1949, 155/148/492; 2ª Turma, 21 de novembro de 1950, 140/121; P Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, 20 de maio de 1947, RT 168/571, e RF 115/147; Tribunal de Apelação de São Paulo, 15 de maio de 1945, RT 157/149, e RF 103/293). Não basta o ter sido levado a protesto processual, ao passo que de direito processual a regra jurídica sobre embargos com a alegação de crime falimentar, que só se refere a alegação dos embargantes, excluida a apreciação de oficio pelo juiz. Não se pode invocar, hoje, o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 11 de março de 1903 (São Paulo J 1/378 s.), nem dissertações ligadas a outros sistemas jurídicos. § 114. Natureza da concordata preventiva 1. Mudança de natureza. A concordata preventiva pode ser concebida como negócio jurídico dependente de homologação, ou como negócio jurídico que se haja de juntar aos autos, para que não se abra concurso de credores, ou como prestação que o Estado há de fazer a quem exerça a pretensão à tutela jurídica, invocando a pretensão à concordata. O problema de iure condito, precisa não ser confundido com o problema de iure condendo, tanto mais quanto há outras variantes para as soluções de iure condendo. A velha doutrina sustentava a priori ser de natureza contratual a concordata preventiva (e. g., Alfredo Rocco, II Concordato, 92 s. e 149 5.; Salvatore Satta, Istituzioni di Diritto faIiimentare, 242 5.; Luigi Lordi, II Faliimento e (e altre procedure concorsuali, 235; Giorgio de Semo, Dirittofallimentare, 397; Josef Kohler, Leitfaden des deutschen konkursrechts, 270; Gustavo Bonelli, DeI Faílimento, III, IA ed., 29; Agostino Ramella, Trattato dei Failimento, II, 772; Ernst Jãger, Kommentar zur Konkursordnung, II, 6ª-4ª ed., 664, e Lehrbuch des deu tschen

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Konkursrechts, 232). Tampouco se pode dizer, a priori, de natureza só processualística a concordata (e. g., Renzo Porvinciali, Manuale di Diritto fallimentare, li, V ed., 661 s., 34 ed., 871). Na discussão sobre ser instituto de direito material, ou instituto de direito processual, a concordata preventiva, o que mais se observa é o esquecimento — por um lado — de que acordo entre credores e devedor ou cessão de bens aos credores não é concordata preventiva, não tem a eficácia que nas leis processuais se atribui às concordatas preventivas, e — por outro — de que não só o direito processual regula as concordatas. Não há concordata antes de ser homologada, ou decretada. A homologação é, nos sistemas juridicos que a têm como negocial, elemento necessário à entrada da concordata preventiva no mundo jurídico; daí a revogabilidade das declarações de vontade pelo devedor até o momento da conclusão, ao juiz, para homologação. Se abstraiu de toda negocialidade, não há pensar-se em homologação. (O ato jurídico entre o devedor e os credores, se houve, seria elemento de instrução do pedido, e não teria a natureza do contrato, nem, sequer, de negócio jurídico; apenas no documento se contém comunicações de conhecimento dos credores sobre não terem, até o momento em que as fazem, embargos a opor ao pedido. Ora, no sistema jurídico brasileiro, o que se há de assentar é que: a) a lei de direito material preestabeleceu quais os pressupostos para se poderem ter o direito à concordata, à pretensão à concordata e a ação de concordata; b) a lei de direito material disse quando surgem o direito à concordata, a pretensão à concordata e a ação de concordata; c) o Estado prometeu a tutela jurídica; d) a lei processual determinou como se há de pedir a decretação da concordata e como se há de processar tal pedido, inclusive qual a eficácia do despacho de processamento e qual a eficácia da decisão que decrete a concordata. 2.Direito brasileiro. A concordata preventiva é objeto da prestação jurisdicional, que, em virtude da tutela jurídica, o Estado faz àquele que, por ter satisfeito as exigências da lei, exerceu pretensão à tutela jurídica, apresentando, como res in iudiciurn deducta, a sua pretensão à concordata. A relação jurídica que se estabelece, com a sentença favorável, entre o devedor e os credores, não é oriunda de negócio jurídico, mas de sentença: a sentença é que cria, entre eles, a relação jurídica, parecida com as relações jurídicas derivadas dos contratos, porém não negocial. Tem-se de indagar-se, no sistema jurídico de que se trata, há: a) contrato típico de concordata preventiva; ou se esse contrato é de direito privado; ou c) de direito público; ou se não há contrato típico, mas sim d) contrato atípico; ou se e) tudo se passa no direito processual; ou se o contrato é feito no direito material e levado ao direito processual para integração da conclusão; ou g) para eficácia especifica; ou h) se apenas há elemento oriundo do direito material, mas constante de pretensão à concordata, e o processo resulta de se ter exercido a pretensão à tutela jurídica. No direito brasileiro, a solução certa é h). Nos demais sistemas jurídicos, não se pode afirmar, cientificamente, qual a solução sem se ter respondido, negativamente, às outras. Para afirmamos h), temos de assentar: que não há contrato típico de concordata, ainda onde a lei permita concordata preventiva, pois que não se tomam declarações de vontade dos credores, com que se concluísse, com a declaração de vontade do devedor, o contrato; que, não havendo contrato típico, não cabe perguntar-se se é de direito privado ou de direito público, e o mesmo se passa se não há contrato atípico; que não há contrato atípico de concordata; que o direito processual é forma, e o juiz atende ao que lhe pede o devedor, por haver regras jurídicas de que lhe provém pretensão à concordata preventiva; que, para obter a concordata preventiva, é preciso que o devedor exija do Estado (do juiz) a aplicação da lei, isto é, que exerça a pretensão à tutela jurídica e peça que a sentença atenda à sua pretensão à concordata preventiva. Quando o devedor promete aos credores quirografários o pagamento mínimo, que a lei fixa, alega que tem direito à concordata, pedindo ao juiz que lhe reconheça a pretensão à concordata e estabeleça a concordata. Para isso, promete aos credores quirografários, para satisfação dos seus créditos, pelo menos, o que a lei exige à vista, ou a prazo. O direito à concordata nasce ao devedor desde que ele, se não há regra jurídica que lho impeça, pode fazer a promessa em petição inicial; com a apresentação da petição, adquire a pretensão processual à concordata. Tal

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pretensão se exerce contra o Estado, não contra os credores; o Estado atende ao devedor prestando-lhe a situação jurídica de devedor concordatício, de que lhe nascem direitos, pretensões, ações e exceções, deveres e obrigações. 3. Referência histórica. A concordata preventiva segundo as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Pilipinas era negocial, mas unilateral, embora bilateralizável. Cada credor declarava vontade, como se votasse em assembléia. A deliberação era ato coletivo (Gesamtakt), criativo, bastando a maioria por valor dos créditos, ainda que de um só dos credores o crédito que perfizesse a maioria, ou ser o crédito igual à soma dos outros, ou ser a soma dos créditos concordantes igual à soma dos outros ou ao outro crédito. Voto vencedor = vontade expressa (cf. Tratado de Direito Privado, Tomo 1, § 90). (É interessante lembrar-se que houve os Decretos de 31 de maio de 1776 e de 4 de abril de 1777, em que a eficácia das concordatas, quanto ao rebate, contra os credores de menores quantias, era legal e obrigava à própria assinatura dos instrumentos feitos com os maiores credores. O Alvará de 14 de março de 1780 revogou-os, por ser tal solução violenta “imprópria do direito natural que cada um tem para não ser constrangido a ceder parte da ação, que lhe compete, por um voluntário de terceiro”.) 4. Direito brasileiro de hoje. No direito brasileiro de hoje, não há convocação dos credores para que se pronunciem, em manifestações de vontade, sobre o pedido de concordata, ditas, por juristas de outros sistemas jurídicos, ofertas concordatícias, propostas concordatícias, proposições concordatícias. Não há votos deliberativos, nem, sequer, assembléia de credores. No direito belga (Lei belga de 29 de junho de 1887, art. 2ª), por exemplo, só se estabelece a concordata se a maioria dos credores, com três quartos de todas as somas devidas, aderem expressamente à demanda (“ont adhêré à la demande”; segundo o Decreto belga de 12 de dezembro de 1925, art. 13, dois terços para o direito colonial). No direito brasileiro, não há a concordata preventiva com entrega do ativo, de modo que se tenha de nomear liquidante. (Tratar-se-ia de liquidação voluntária, estranha ao direito falencial, e subordinada aos princípios do acordo com todos os credores ou da cessão de bens aos credores.) 5. Credores sujeitos à exigência da declaração de crédito. A técnica legislativa procurou fazer célere o processo da concordata preventiva. Por outro lado, teve de cuidar de problema de economia processual, que foi o de — em caso de se negar a concordata, ou de ser decretada a sua resolução — salvar-se o mais possível do procedimento concordatício. A celeridade impôs que se dispensassem as declarações de crédito pelos credores não atingidos pela concordata. Esses, que tem de constar da lista nominativa de todos os credores, hão de ser avisados conforme a lei. O que a lei dispensa é a declaração dos créditos, por parte deles. O juiz, no despacho de processamento, marca prazo para que os credores sujeitos aos efeitos da concordata preventiva que não constarem, por qualquer motivo, da lista a que se referem os incs. V e VI do parágrafo único do art. 159 da lei falencial (Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, art. 160, III), apresentem as declarações e documentos justificativos dos seus créditos. Aos credores concordaticios, que são os credores quirografários, o devedor há de pagar a percentagem, porém o ativo de que se há de tirar é o ativo da massa menos o que dê para a satisfação dos credores com garantia real e dos credores com privilégio. § 115. Natureza da sentença que decreta a concordata preventiva 1. Força sentencial. A sentença que decreta a concordata preventiva é preponderantemente constitutiva: não porque integre negócio jurídico constitutivo ou acordo pré-excludente da falência, mas sim porque constitui e leva à execução. A pré-exclusão é tipicamente efeito do que se constituíra; há o afastamento da decretação da falência, se vem a ser cumprido o que se prometeu. O patrimônio, inidôneo para a satisfação de todos os credores, pelo menos imediatamente, passa a responder, conforme as cláusulas, de modo que se livre das consequências da imediata decretação do concurso de credores.

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Os embargos à concordata fazem-na contenciosa, mas a distinção entre jurisdição voluntária e jurisdição contenciosa também é, aqui, sem alcance, porque a eventualidade da contenciosidade nada acrescenta à natureza de pedido de constituição, nem o fato de não se suscitar disputa lha retira. Decretada a concordata preventiva, tendo, ou não, havido embargos, a situação processual é a mesma. A eficácia é a mesma, ainda no que concerne à paralisação do poder de dispor. 2. Concordatas extrafalenciais. No plano que está fora da falência e das liquidações forçados, plano em que se admitem acordos similares às concordatas preventivas ou suspensivas, isto é, onde a lei não preestabeleceu direito à concordata e pretensão à concordata, o devedor pode obter acordos novos ou de adiamento, pelos quais se livre da abertura imediata do concurso civil de credores, ou ceder bens aos credores. Tais acordos não são concord atas, por lhes faltar a constitutividade erga omnes, quer dizer — mesmo a respeito de credores que não opuseram embargos. Os credores somente se submetem a tais acordos, como pacto de non petendo in tempus. § 116. Exercício da pretensão à concordata preventiva 1. Titular da pretensão à concordata. Titular da pretensão à concordata preventiva, como da concordata suspensiva, é o devedor. Ele é que tem interesse em que se lhe evite a decretação de abertura da falência. O terceiro pode, em contacto com ele, conforme o negócio jurídico unilateral ou bilateral, que exista, ou se conclua, fornecer-lhe meios para levar por diante o pedido e o cumprimento da concordata. Tal negócio jurídico de modo nenhum o insere no pedido de concordata, como parte. Pode ser fiador, dador de garantia real e, até, assuntor de dívida alheia, sem liberação do devedor; não, parte. 2. Eficácia da sentença que decreta concordata preventiva. A concordata preventiva isenta, se e enquanto, da decretação de abertura da falência. A técnica legislativa considerou de interesse público que, dadas certas circunstâncias, nasça aos devedores comerciantes a pretensão à concordata. Ainda quando a lei pré-exclui, a respeito de tais devedores comerciantes, a decretabilidade de abertura da falência e prefira, em conseqUência, a abertura da liquidação coativa, há, em princípio, a pretensão à concordata. Onde não pode haver abertura de falência, nem de liquidação coativa, não há pensar-se em concordata preventiva. Com essa, o que se evita é a drasticidade do concurso de credores falencial ou em liquidação coativa. Mediante a decretação da concordata preventiva, tenta-se a continuação do negócio, o superamento da crise remediável ou simplesmente transitória, O que se tem em mira é evitar-se a execução forçada. Posto que, nas regras jurídicas sobre a concordata, se fale de verificação de créditos e de prazo para cumprimento, a execução é voluntária, e não coativa ou forçada. Quem executa é o próprio devedor, cumprindo a concordata que fora, a seu pedido, decretada. O que se tem por fito com a concordata preventiva é abrir-se caminho, apontado pela lei, para se escapar à executividade da abertura de concurso de credores falencial, ou parafalencial. A decretação de abertura de falência teria, ao lado da força constitutiva da sentença, a eficácia executiva 4, A decisão de decretação da concordata preventiva, que também é de força constitutiva, não tem isso: tem 4 de declaratividade e 3 de executividade. Constitui-se o estado de concordata. Declaram-se créditos, pois, a respeito dos pedidos de admissão à concordata preventiva, que são as declarações dos credores, além da comunicação de conhecimento, inicial, do devedor, há o deferimento do pedido de concordata. A ação do credor quirografário a quem o concordatário recusou cumprir a concordata, é ação à parte, como eficácia do título, não da sentença que decretou a concordata preventiva. Se sobrevém resolução da concordata ou abertura da falência por pedido de credor posterior, então sim a executividade passa à frente, como efeito mediato da sentença desconstitutiva proferida na ação de resolução, ou como eficácia da sentença de abertura da falência. A técnica legislativa foi que ligou a abertura da falência à sentença de resolução da concordata. Na sentença, que julgar resolvida a concordata preventiva, o juiz decretará a abertura. A iniciativa é somente do devedor, e de modo nenhum ele pede a execução forçada: apenas promete e vincula-se, conseqúentemente, pelo que promete. A execução será voluntária, se a execução se der; o juiz examina todos os pressupostos pré-processuais, processuais e de direito material, porque a sua função de maneira nenhuma se limita a decidir em jurisdição voluntária. O fato de o impulso inicial de qualquer processo somente competir ao

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sujeito passivo de relação jurídica de direito material, ou de relações jurídicas de direito material, não basta para que se classifique o processo como de jurisdição voluntária. Por outro lado, a res iudicium deducta não consiste nas dividas, e sim no direito, pretensão e ação para haver a concordata preventiva. Tampouco se pode dizer que a concordata pre Por outro lado, a res ludicium deducta não consiste nas dívidas, e sim no direito, pretensão e ação para haver a concordata preventiva. Tampouco se pode dizer que a concordata preventiva já seja processo concursal: os credores não atingidos pela decretação da concordata preventiva são satisfeitos, como se não concorressem; os atingidos por ela, sofrem todos — porém sem concorrerem a eficácia da concordata. Também havemos de afastar a afirmação de que não possa haver concordata preventiva se um só o credor atingível por ela. O devedor comerciante, com os pressupostos exigidos para a decretação judicial da concordata, pode dever a uma só pessoa, e estar em crise passageira. Se não obtém a decretação da concordata, incorre em falência; não se lhe pode negar a legitimação a pedir a decretação. Se admitíssemos que a pluralidade de credores fosse indispensável, os credores poderiam ceder a um só os créditos e elidir o direito do devedor à decretação da concordata. Para o devedor, a que nasce a pretensão à concordata, há crise, que ele espera seja passageira, ou que ele, com a oportunidade mesma que lhe dá a concordata, possa vencer. Há sacrificio, por minimo que seja, dos credores, mas a técnica legislativa pôs o problema com o propósito de atender aos dois pólos das relações jurídicas: o devedor comum e os credores. Daí as regras jurídicas pré-processuais, processuais e de direito material, que têm de ser satisfeitas pelo devedor, com o máximo de sacrifício do credor, legalmente tolerável. Se levamos em conta que se quer evitar a abertura da falência e que a falência seria geradora de despesas e de eventuais prejuízos para os credores, além da incerteza dos resultados, compreende-se que os credores têm interesse, também eles, em que o devedor peça e obtenha concordata preventiva. O acordo extrajudicial por vezes consegue o mesmo, mas é mais difícil alcançar-se a unanimidade dos credores. Exatamente, a propósito da própria concordata, houve a evolução entre a concepção que exigia negocialidade — a maioria, pela quantidade — e a concepção da concordata esvaziada de qualquer elemento negocial. Quem quer que compare a concepção do direito brasileiro com as demais percebe que aquela superou as antiqualhas da decisão da maioria e outras sobrevivências dos velhos acordos entre credores e devedor. O fim último da abertura da falência e o da decretação da concordata preventiva são o mesmo; porém as técnicas são diferentes: ali, toma-se, logo, a via da execução forçada; aqui, não. Não se pode dizer que sejam comuns o princípio da par condicio creditorum e o da executividade do processo (sem razão, Aurelio Candian, II Processo di Concordato preventivo, 13; II Concordato preventivo come processo di esecuzione forzata, Rivista dei Diritto Commerciole, 34,1, 39; Giovanni Cristofolini, La Dichiarazione deI proprio dissesto nel processo di faílimento, Rivista di Diritto Processuale Civile, VIII, 334, nota 1; Tulio Ascarelli, Suíla natura dell’attività deI giudice nell’omologazione deI concordato, Rivista di Diritto Processuole Civile, V, II, 223; Francesco Carnelutti, Sui poteri dei tribunale in sede di omologazione deI concordato preventivo, Rivista di Diritto Processuale Civile, 1, Parte II, 61 s., que foi o responsável pelos erros dos que o seguiram). Tuílio Ascarelli (V, Parte II, 228) viu na decisão “un effetto costitutivo”, porém não se libertara da concepção da concordata preventiva como executiva, nem prestou atenção à classificação das sentenças por sua carga de eficácia. Contra atribuir-se eficácia executiva (relevante, digamos nós), e pois contra Aurelio Candian (13 s.), Edoardo Garbagnati (La funzione de processo di limitazione deI debito dell’armatore, Ri vista di Diritto Processuale, 1, 27, nota 3), porém em rápidas linhas. Insiste em falar de processo executivo concursal Renzo Provinciali (Manuale di Diritto foilirnentore, 2ª ed., 662). O procedimento para a concordata preventiva, no sistema jurídico brasileiro, no que concerne ao despacho de processamento, é inaudita altero parte, e não se pode dizer, sequer, que o órgão do Ministério Público é parte de ofício, ou representa a coletividade ou os credores, porque a lei não exigiu a sua audiência. O problema técnico que se apresentava ao legislador era o de: a) estabelecer a angularidade da relação jurídica processual desde o início; ou b) admitir efeitos do despacho de processamento, inaudito altera parte e não ouvido, também, o orgão do Ministério Público; ou c) admitir tais efeitos do processamento somente ouvido o órgão do Ministério Público. A solução que se preferiu foi a solução b), como decisão judicial de non plena cognitio. Daí falar-se de embargos dos credores, que em verdade não são à decisão decretativa da concordata, mas sim à decisão de processamento da concordata. Não se trata de decisão de jurisdição administrativa, erro em que incidiram Leone Bolaffio (DeI

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Concordato preventivo, II Codice di Com mercio Italiano, 2ª ed., 58 s.), Francesco Carnelutti (Sui poteri dei tribunale in sede di omologazione deI concordato preventivo, Rivista di Diritto Processuale Civile, 1, Parte II, 61 s.) e Tuílio Ascarelli (Suíla natura dell’attività deI giudice nelIomologazione deI concordato, Rivista di Diritto Processuole Civile, V, Parte II, 227 s.). A execução é que é voluntária; não a jurisdição. A falta de pressuposto de contraditoriedade não faz necessariamente voluntária a jurisdição, confusão de graves conseqúências na doutrina. De passagem, também se repilam as afirmações daqueles que absurdamente vêem provisionalidade ou cautelaridade no despacho de processamento, confusão entre julgamento mediante non pleno cognitio e julgamento em processo cautelar ou provisional. Tampouco o que a lei fez foi separar com desusada caracterização o julgamento da admissibilidade da ação e o julgamento do mérito; há, inicialmente, non pleno cognitio. Os embargos ficam entre os dois momentos, em vez de virem depois do segundo. A discussão em torno de ser contencioso, ou não, o processo derivou de se não haver atendido a que a lei fez imbargável o despacho de processamento, e não a decisão final sobre a concordata. Embargos, de regra, são à decisão de pleno cognitio, mas há, e sempre houve, embargos a decisões em que o juiz ainda não conhece plenamente da admissibilidade e do mérito. O despacho de processamento só passa em julgado com a preclusão do prazo para os embargos, ou com o julgamento desses sem interposição de recurso, ou com o julgamento dos recursos. É falso o argumento de que, na concordata preventiva, o juiz se substitui, no todo ou em parte, ao devedor, porque, se esse não cumpre a concordata, se lhe abre a falência. As declarações do devedor, as suas comunicações de conhecimento sobre o seu estado econômico, e a falta de algum pressuposto, ou a resolução da concordata, com a falta de cumprimento, éque perfazem os pressupostos para se decretar a abertura da falência. O juiz fez a prestação jurisdicional, mas o seu ato não ficou imune a circunstâncias ulteriores de resolução. 5. Estrutura do procedimento do concordata preventivo. A estrutura do procedimento da concordata preventiva é parecida, porém não igual ao da falência. Não se há de dizer, sequer, que o despacho de processamento seja inteiramente simétrico ao da abertura da falência, nem que o seja o da decretação da concordata preventiva. A verificação de crédito é similar. Há os pedidos de restituição e os embargos de terceiro, como os há na falência. Há o julgamento conclusivo, mas seria errôneo ter-se como da mesma natureza que o julgamento do encerramento da falência o julgamento do cumprimento da concordata: ali, o síndico cumpriu o que lhe incumbia; aqui, o devedor solveu, com extinção das dívidas. O comissário não é síndico, não tem a função de órgão de execução forçada. Por outro lado, a verificação de créditos, na falência, é verificação de créditos em processo de execução forçada, ao passo que, para a concordata preventiva, ainda não há tal relação jurídica processual. Ainda não há execução forçada, a que se destine a admissão dos créditos. 6. Autor do ação de concordata preventiva. O devedor é autor, não só em sentido formal. Compete-lhe a propositura da demanda, porque é o titular do direito materialístico à concordata preventiva. Já lhe analisamos a pretensão à concordata. A essa pretensão corresponde ação. A ação é exercício com a propositura da “ação” (em sentido, portanto, processualístico) para obter a decretação. Não é, de modo nenhum, sujeito passivo. Sujeito passivo, ele o é noutras relações jurídicas de direito material, naquelas em que é devedor e os sujeitos ativos são os credores. O seu direito é à restrição dos créditos em algum elemento, talvez só no tempo para as prestações. É de todo interesse científico que não se confunda a relação jurídica que corresponde ao direito à concordata, à prestação à concordata, de que se irradia a ação respectiva, com qualquer das relações jurídicas entre os credores e o devedor. No sistema jurídico brasileiro, cresce de ponto a importância dessas precisões, porque os credores, antes do despacho de processamento, não declaram vontade, nem, sequer, são ouvidos. Os credores embargam o despacho de cognição não plena, com o que se caracteriza a eliminação de toda negocialidade a que chegou a técnica jurídica. Os credores não concordatícios, isto é, os credores não quirografários, esses têm de ser satisfeitos integralmente, como ocorre aos credores posteriores à abertura do procedimento. Se a empresa passou a novo dono, esse é que pode pedir a decretação da concordata. O pedido por ele e pelos antecessores é absurdo (sem razão, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 30 de novembro de 1948, AJ 90/146). A lei nada diz sobre o cônjuge do devedor. Se está ausente o cônjuge comerciante, entendeu a 4ª Câmara da Corte de Apelação de São Paulo, a 28 de outubro de 1936 (RT 106/160) que tem legitimação ativa, embora não haja sido nomeado curador. A ausência ou dá ensejo à interdição ou à nomeação de curador, ou é sem efeito de legitimação

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do cônjuge a pedir decretação de concordata. O que o cônjuge pode fazer, na ausência do outro, é obter acordo unânime dos credores, ou de algum ou de alguns deles, porém isso nada tem com o exercicio da pretensão à concordata preventiva. Salvo propositura com caução de rato. 7. Poder do juiz. O poder do juiz, no tocante à decretação da concordata e no que lhe cabe apreciar para deferir o pedido de processamento, de modo nenhum é de arbítrio, nem vai além do exame dos pressupostos pré-processuais, processuais e de direito material. Tem-se de repelir a opinião dos que lhe atribuem examinar a conveniência (e. g., Superior Tribunal do Amazonas, 2 de setembro de 1922, RF 66/103; J. X. Carvalho de Men-donça, Tratado de Direito Comercial, VII, 384): o que ele pode fazer é verificar se há ou não estado econômico que justifique o pedido de concordata. Se nenhuma crise existe, o juiz deve indeferir o pedido de processamento, sem que tenha de decretar a falência, em virtude do falso dilema a que aludiremos, porque haveria contradição entre o fundamento e a conclusão do despacho. Se a tal convicção chegou após o despacho de processamento, a mesma há de ser a sua atitude. Aí, as alegações do devedor foram, ex hypothesi, falsas. § 117. Eficácia da concordata preventiva 1. Efeitos pré-concordotícios. A lei atribui efeitos constitutivos ao despacho de processamento, a despeito de se tratar de non pleno cognitio. Os credores atingidos são os credores quirografários cujos créditos existem no momento da ingressão do pedido de decretação da concordata. Os credores posteriores são estranhos ao procedimento. O distribuidor entregou, imediatamente, ao escrivão a petição inicial, e o escrivão, que do devedor recebe os livros obrigatórios, lhes lavra termo de encerramento, que o juiz há de assinar, e a quantia a que a lei se refira, imediatamente os faz conclusos ao juiz, que no prazo legal tem de dar o despacho. Se algum crédito exsurge nesse curto período contra o devedor, a referência a ele — em requerimento do devedor — é aditamento à lista nominativa, e somente pode ser feito antes da conclusão, ou, se entender o juiz, com baixa dos autos imediata e imediata subida, nunca, porém, sem tempo para que o juiz fique dentro do prazo que se lhe dá para despacho. 2. Pedido de concordata preventivo e pedido de decretação de falência. Se foi pedida a concordata, somente o despacho do juiz a que foi pedida pode ensejar a decretação da falência. Nenhum credor pode pedi-la, fora dos embargos ou de alegação perante o juiz para que a aprecie no despacho (5ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 17 de junho de 1947, RF 116/489). 3. Sociedade concordatário e sócios solidários ou não. Em principio, as sociedades comerciais estão sujeitas à decretação de abertura da falência e, portanto, têm direito à decretação da concordata preventiva. Algumas sociedades, por ponderada razão de interesse público, escapam à decretação de abertura da falência e são expostas, apenas, à decretação de liquidação coativa, ou, primeiro, à decretação de liquidação coativa. A liquidação coativa foi estabelecida como solução, em vez da falência, e tanto pode haver interesse da sociedade em evitar essa como em evitar aquela. Também há direito, pretensão e ação para a decretação da concordata, por parte das sociedades cuja abertura de falência pode ser decretada como por parte das que apenas, ou primeiro se expõem à decretação da abertura da administração coativa. A lei também pode conceber essa liquidação administrativa como sucedâneo da concordata, e então há identificação dos dois conceitos (administração pedido e administração não pedido). O pedido de concordata preventiva da sociedade não produz quaisquer alterações nas relações dos sócios, ainda que solidários, com os seus credores particulares. Os sócios não podem pretender extensão da concordata preventiva, que a sociedade pediu, a eles (Tribunal de Justiça de São Paulo, 1ª de abril de 1932, RT 82/234 s.). Os credores particulares dos sócios podem ir contra esses com quaisquer ações (5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 25 de setembro de 1951, RF 143/ 276). 4. Vencimento de todos os créditos concordatícios. Na concordata preventiva, o despacho que manda processar a concordata determina o vencimento antecipado de todos os créditos sujeitos aos seus efeitos, calculando-se os juros a uma taxa de até doze por cento ao ano, a critério do juiz, a partir do ajuizamento do pedido com relação às

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dívidas vencidas. Na concordata suspensiva, todos os créditos já estão vencidos, ou porque lhes chegou o dia do vencimento, ou porque foi antecipado em virtude de incidência de alguma regra jurídica, ou porque foi antecipado pela abertura do concurso de credores falencial. 5. Ações contra o devedor. A suspensão das ações e execuções contra o devedor somente se entende com os créditos sujeitos aos efeitos da concordata, atendidas as exceções a tal suspensão. A razão está em que o devedor prometeu, em juízo, satisfazer todos esses créditos, concordaticiamente. Não se pode dizer que há execução forçada concursal e essa afasta as ações, inclusive executivas, contra o devedor, como fazem tantos juristas. Nem que ocorre falta de legitimação passiva por parte do devedor (e. g.. Renzo Provinciali, Monuole di Diritto falílimentare, 684 . O que fundamenta a medida da suspensão é a promessa do devedor feita ao juiz, ao Estado. A suspensão das “ações e execuções” é de todas as ações que digam respeito a créditos atingidos pela promessa do devedor. Não importa qual a classe da ação que se pretende propor, ou que se propôs. Suspendem-se ações declarativas, constitutivas condenatórias, mandamentais e executivas, desde que relativas a créditos sujeitos aos efeitos da concordata preventiva. Não estão fora da regra jurídica da suspensão as ações preventivas ou cautelares. Os credores com direito real de garantia e os credores com privilégio especial podem continuar em suas ações e podem propô-las, mesmo se executivas. Os próprios credores com privilégio geral têm de ser satisfeitos sem eficácia da concordata, de jeito que lhes cabe continuar com as sua ações, ou propô-las. Se certo e líquido o crédito, apresentam-se no juízo da concordata, não para serem contemplados como credores com direito ao percentual, mas sim para serem satisfeitos integralmente. Se por alguma razão o juízo da concordata não os atende, e decreta a concordata preventiva, isso não os impede de propor ação fora do juízo da concordata, inclusive a ação executiva. 6. Credores com direito real de garan tia e credores privilegiados. Se da lista nominativa dos credores não constam o nome e o crédito de algum titular de direito real de garantia ou de crédito privilegiado, pode ele reclamar, e o juiz, de ofício, denega a concordata, uma vez que houve inexatidão na lista de credores. Para isso e para a decretação da falência, a prova da inexatidão é elemento suficiente, “em qualquer momento do processo A eficácia de suspensão das ações de modo nenhum apanha os credores com direito real de garantia e os credores privilegiados. Não há, no direito brasileiro, a regra jurídica do Decreto real italiano de 16 de março de 1941, art. 168, alínea 1ª, verbis....i creditori per titolo o causa anteriore aí decreto”. O credor privilegiado que pretende receber a percentagem entende-se ter renunciado ao privilégio; e o mesmo ocorre em relação aos credores com direito real de garantia. Salvo se o credor com direito real de garantia, ou com privilégio especial, alega e prova que o valor extraível ou extraído do bem gravado ou atingido pela privilegiação não basta para se pagar a dívida. Ai não se pode considerar ter havido renúncia. As ações irradiadas dos direitos reais e das pretensões reais, inclusive se os direitos são direitos reais de garantia, correm fora do juízo da concordata. Não há prevenção de jurisdição (cf. 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 7 de junho de 1950, RF 141/277). Todavia, são oponíveis, conforme já dissemos, pelos interessados, embargos de terceiro. 7. Prescrição e preclusão. A lei brasileira não fala da eficácia do despacho de processamento da concordata, no tocante a prazos prescripcionais e a prazos preclusivos. a) Quanto aos prazos prescripcionais, a inserção do nome do credor na lista nominativa de credores Cato inequívoco” do reconhecimento do direito pelo devedor. Se não houve a inserção, tem o credor de praticar algum dos atos interrompentes. A oposição de embargos à concordata também interrompe a prescrição, porque se trata de ação, em que o devedor contesta ou não. b) Quanto aos prazos preclusivos, que se não interrompem, o fato de ser admitido o crédito mencionado na lista nominativa de credores faz não precluir o crédito, ou não precluir qualquer pretensão ou ação. Se o crédito não foi incluído, dá-se a preclusão se por algum meio não a evita o credor. O meio é, de regra, a propositura de ação, inclusive a de embargos à concordata, que sejam procedentes.

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8. Conseqiiências do início da ação com despacho de “non plena cognitio”. A eficácia da concordata é antecipada pela atribuição de alguns efeitos ao despacho de processamento. Há o estado pré-concordatício ou pré-concordacional, de que falamos, e o estado concordaticio ou concordacional propriamente dito. A estrutura do procedimento da concordata preventiva parece-se com a da falência. Mas a falência, execução forçada, põe sob a jurisdição toda a atividade referente ou pertinente ao negócio, ao passo que a concordata preventiva pré-exclui essa ingerência do juiz, que apenas autoriza alguns atos, como acontece a certos atos que interessam o patrimônio dos incapazes. Os juristas têm exagerado o paralelismo e a complementariedade do procedimento das concordatas em relação ao procedimento falencial. Primeiramente, não é verdade que a decretação da concordata preventiva, a fortiori o despacho de processamento, determine espécie de desapossamento atenuado, ou administração controlada. Durante o processo da concordata preventiva, o devedor conserva a administração dos seus bens e continua com o seu negócio, sob fiscalização do comissário. Porém não pode alienar imóveis, ou constituir garantias reais, salvo evidente utilidade, reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o comissário. O comissário, como vemos, fiscaliza, vela, não se ingere na administração, não é órgão de gerência, como o síndico. Os pressupostos e a finalidade dos dois institutos, falência e concordata preventiva, são diferentes. As semelhanças resultam exatamente de ter a concordata preventiva a função de evitar a falência. O que mais as distingue está na falta do elemento “execução forçada”, no que tange com as concordatas, mesmo com a concordata suspensiva. O comissário não dirige o negócio; nem nele se ingere; somente fiscaliza, vela. Não intervém. E órgão do juízo para velamento. Não se elimina a atividade do devedor, nem, sequer, se limita, mesmo quando ele necessita de autorização do juiz para alienação ou gravame de bens. Tal autorização constitui limitação ao poder de dispor, não ao poder de gestão dos negócios da empresa. O juízo da concordata não tem posse mediata dos bens, nem na tem o comissário, como o fiscal do governo que inspeciona os serviços sanitários da casa não tem posse. Os próprios livros obrigatórios, embora encerrados com assinatura do juiz, somente ficam sob a posse do juízo (posse imediata do escrivão e mediata do juiz, sendo essa inferior à posse mediata do devedor) enquanto não são entregues ao devedor. O devedor conserva a legitimação processual, ativa e passiva, à diferença do que ocorre com o falido. A administração não se pode dizer controlada; apenas é fiscalizada. Está sob os olhos do comissário, não em suas mãos, ou sob suas mãos. 9. Velamento. A atividade do comissário só se permite enquanto não se decreta a concordata preventiva. Então, é permitida e necessária. E preciso que ele preste informações aos interessados, que expeça circulares, que prepare a verificação dos créditos, que investigue quanto a falta de pressupostos pré-processuais, processuais e de direito material concernentes à decretação da concordata, que fiscalize a atividade do devedor na pendência da ação de concordata, que examine livros e papéis, que se informe quanto aos créditos, que emita parecer e assim por diante. Mas tudo isso não pode prejudicar a administração dos bens pelo devedor, nem a continuação do negócio. Apenas tem de ser ouvido, pelo juiz, que é quem decide, se algum imóvel tem de ser alienado ou de ser gravado algum bem. 10.Eficácia do cumprimento da concordata preventiva. Cumprimento da concordata preventiva é o adimplemento de todas as promessas que o devedor fez na petição inicial. 11. Pagamento dos credores concordatícios. O devedor em concordata não pode pagar aos credores diferentemente do que foi estabelecido na concordata. Seria violar o princípio da par condicio creditorum

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(Salvatore Satta, Istituzioni di Diritto foilimentare, 373). O efeito “moratório” da concordata impede a diminuição das situações respectivas dos credores, ainda por ato judicial (Leone Bolaffio, Ii Concordato preventivo, 72). Por isso mesmo, não pode o devedor solver dívidas anteriores à concordata (Aurelio Candian, II Processo di Concordato preventivo, 121; Virgilio Andrioli, nota 4) a Gustavo Bonelli, De) Fallimento, III, 502). O pagamento integral de créditos anteriores é, para o devedor, renúncia ao pactum de non petendo, se houve acordo com negócio jurídico homologado, ou ao direito que a sentença lhe reconheceu a não prestar o excedente à percentagem da concordata, se a concordata foi falencia] ou falencialiforme. Para os outros credores, violação da concordata. No direito brasileiro, em que a concordata nada mais tem de acordo, de negocialidade, a exigência da par condicio creditorum, mesmo em se tratando de percentagem, é inafastável. Tratar a um dos credores concordaticios, ou a alguns dos credores concordaticios, melhor do que a outro, ou a outros, mancha a atividade do devedor. Nem se poderia admitir promessa de tal jaez, nem se ajustaria ao prometido o que o devedor fizesse. Em todo o caso, satisfeitos todos os credores concordatícios, pode o devedor prestar a algum deles, ou a alguns deles, algo acima da percentagem, ou a diferença entre o crédito tal qual fora e a percentagem. Mas tal entrega seria doação, seria prestação a título gratuito. E aí está a diferença entre a situação dos ex-credores na concordata cumprida e a dos credores na falência encerrada. O pagamento integral à vista extingue as dívidas, sem concordata, mas seria preciso que se pagassem, também, as custas e despesas já feitas. Pode o devedor comum que sabe estar prestes a incorrer em decretação de abertura de falência pagar a cada credor ou depositar em consignação todo o importe do passivo, para que seja levantado por seus credores, conforme a petição. Isso não é concordata. Porém nada obsta a que, para evitar que algum dos credores com títulos exigíveis peça a decretação de abertura da falência, o devedor comum, que vai ter, dentro de pouco, o dinheiro suficiente para a integral solução dos créditos, proponha a ação de decretação da concordata pre-ventiva, com pagamento imediato ao proferimento da sentença. “Á vista”, aí está em lugar de “imediatamente após a decretação da concordata”. 12. Credores e cumprimento da concordata preventiva. Cumprida a concordata preventiva, nenhuma obrigação natural existe, nenhum dever moral. A desendividação foi completa. Não houve extinção do jurídico, permanecendo o ético. Se apenas se diminuiu o crédito, ou se lhe protraiu o pagamento, ou se um e outro efeito ocorreram, não foi com encobrimento da pretensão e da ação; foi com a desaparição de qualquer relação jurídica, uma vez cumprido o prometido. O Estado fez nascer o direito à concordata e prestou a decretação da concordata, com o mesmo poder com que proibe o plantio de árvores daninhas, ou a cria de animais perigosos, ou com que desapropriar por necessidade, ou utilidade pública, ou por interesse social. O interesse público esteve em causa quando o Estado legislou a respeito dos pressupostos necessários e suficientes para que o direito, a pretensão e a ação nascessem. 13. Garantias de cumprimento da concordata. As garantias de cumprimento da concordata, fidejussórias ou reais, não são pressuposto necessário, mas as circunstâncias podem indicá-las, e o próprio estado economico do devedor pode impô-las para que o juiz não afaste a decretação da concordata como inútil ou ilusória. A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 25 de setembro de 1951 (RF 143/276), disse que o simples ato de prometer bens em garantia do cumprimento da concordata preventiva não os grava, enquanto não se decreta a concordata preventiva. Não os grava, sim. Mas ao comissário incumbe promover o depósito ou outra medida de garantia. Ou o devedor promete a garantia fidejussória ou real, ou desde logo a presta. A promessa é vinculativa. É digno de observar-se que, aí, a promessa de garantia é negócio jurídico unilateral. A própria dação o é. Em vez de contrato de constituição de direito pessoal ou real de garantia, ou do acordo de constituição de direito real de garantia, há a promessa unilateral de vontade de dar fiança ou de dar garantia real. Se o devedor entende dar garantia, ou prometê-la, seja ele ou outrem quem presta a garantia real, o seu ato jurídico é necessariamente unilateral, porque antecede a qualquer contacto com o Estado. A distribuição da petição corresponde à emissão, sendo a própria escritura pública da promessa ou da prestação em garantia como o endosso ou o aval que ainda se pode riscar, ou a subscrição do título ao portador que se guarda na gaveta ou no cofre, ou a promessa de recompensa que se pode retirar do jornal antes da publicação. Uma das consequências do que

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dissemos é que, mesmo se o devedor que fez a promessa ou o gravame e o levou a registro, pode pedir o cancelamento, com a certidão negativa de não ter distribuído até esse momento a petição da ação de concordata preventiva, ou de tê-la distribuído sem a promessa ou a referência à dação de garantia. O devedor pode prometer em instrumento particular a garantia real dependente de escritura pública. Nem a promessa unilateral de garantir com direito real, nem a promessa bilateral disso estão sujeitas às regras jurídicas sobre a forma do ato prometido (Tratado de Direito Privado, Tomos XIII, §§ 1.432, 4 e 5, 1.435, 1.474, 1.475 e 1.514, 2; XV, § 1.809; XIX, § 2.342; XX, § 2.447, 2; e XXVI, § 3.170, 3). Se a garantia não foi constituída antes de ser feito o pedido de decretação da concordata, tem de ser bilateral o acordo de constituição (contrato de fiança, ou acordo de constituição de direito real). O comissário e o órgão do Ministério Público funcionam como órgão do Estado, órgão do juízo e orgão do Poder Executivo, com caráter de fiscalização: sujeito outorgante é quem presta a garantia, outorgado é o Estado, porque foi esse que prometeu a prestação jurisdicional constante do estado de concordata. A fiança há de atender aos princípios e regras jurídicas do direito civil, ou comercial, ou público, conforme a espécie. § 118. Decisões sobre os créditos e sua eficácia 1. Natureza das decisões. A respeito dos créditos atingidos pela concordata preventiva, as decisões ou são de admissão no todo ou em parte, ou são de não-admissão. Tudo se passa como a respeito da verificação de créditos na falência, mas há diferença fundamental devida à própria diferença entre a relação jurídica processual falencial, que é em ação executiva (processo de execução forçada), e a relação jurídica processual da ação de decretaçáo de concordata, que é ação constitutiva, de algum modo diminutiva do crédito, no quanto ou no tempo, ou em ambos. A eficácia de evitar a falência é eficácia que se adianta, com o despacho de processamento, e que definitivamente se irradia, com a esperança de ser cumprido o que se prometeu e se integrar na prestação jurisdicional. Cumprir a concordata significa desincumbir-se da satisfação concordatícia dos credores, tal como se assentou na sentença que atendeu ao pedido, devida-mente instruído com a promessa. O devedor pediu que se lhe desse o ensejo, a que disse ter direito, de executar voluntariamente, para se forrar à execução forçada coletiva, que temia. Enquanto há tempo para ser cumprida a concordata, não há execução forçada. Nada se força. O devedor está livre, como estaria livre quem quer que houvesse assumido obrigação: se falha, incorre em inadimplemento. A execução forçada pode, então, sobrevir. 2. Carga de eficácia. Daí as cargas de eficácia da sentença favorável ao declarante do crédito, na falência e na concordata preventiva, serem inconfundíveis. Não se executa, estabelece-se a condenação à execução voluntária, porque se declarou o crédito, e manda-se que voluntariamente se execute. Se o devedor concordatício não cumpre a concordata — aliás, qualquer ponto da concordata — pode sofrer a resolução da concordata, ou a decretação de abertura da falência, porque isso estava contido no mandamento (3). § 119. Conceito e natureza da concordata suspensiva 1.Conceito. A concordata suspensiva ocorre quando já estabelecido o estado falencial. O que ela suspende é a eficácia da decretação da falência. A expressão “suspensão da falência”, por ser elíptica, é inexata. O que se suspende é a realização do ativo e pagamento do passivo, e ocorre a reaquisição pelo devedor do seu poder de disposição, com as limitações legais. Fala-se, às vezes, se a concordata não se cumpre, em “reabertura da falên-cia”. O que em verdade se dá é o prosseguimento do processo.

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Para empregarmos a terminologia do direito processual civil, há suspensão da instância, como se morre algum dos litigantes, no juízo comum, ou há força maior, ou morte do procurador de alguma das partes. As Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 83, pr., considerando o caso do falecimento, em que os herdeiros entram na relação jurídica processual, mas o procedimento estaca, diziam “... passará a instancia do feito a seus herdeiros naquelle ponto, e estado, em que fosse achado ao tempo de seu falecimento: pero nom poderaõ mais poío feito endiante, até que sejaõ chamados os herdeiros do finado, se elie era Reo; e se era Autor, seus herdeiros devem citar a parte principal pera irem per o feito em diante, e fazerem a cada hum seu direito”. A suspensão da instância, por convenção das partes, é negocial. A suspensão por força maior, por morte do litigante ou do procurador de qualquer das partes, não no é: decorre de lei. Assim acontece com a suspensividade que caracteriza a concordata já decretada durante a falência. A relação jurídica processual da falência continua; o que ocorre é a suspensão do procedimento, devido à eficácia da decretação da concordata suspensiva. Concordata suspensiva é a prestação devida ao falido que satisfez os pressupostos pré-processuais, processuais e de direito material para isso, e consistente em suspensão do procedimento falencial. No direito brasileiro, permitia-se a concordata suspensiva, “quando o falido a propusesse, ou se formasse o contrato de união”; mas havia de ser por “número tal de credores que representasse pelo menos a maioria destes em número e dois terços no valor de todos os créditos sujeitos aos efeitos da concordata”. Tratava-se, na verdade, de concordata, porque tinha eficácia extensiva a todos os credores, exceto os de domínio, os titulares de direito real e os privilegiados. A convocação dos credores para a deliberação sobre a concordata mostrava que a concepção era a da concordata negócio jurídico, tal como ao tempo da Ordenações Filipinas. Havia a cominação de serem tidos como aderentes a concordata oferecida os não-comparecentes. Atendendo à crise na praça do Rio de Janeiro, permitiu-se em 1864 bastarem dois terços do valor dos créditos, porém o prazo não podia exceder de três anos, devendo haver homologação. A jurisprudência permitia o acordo preventivo, não a concordata preventiva, isto é, sem ter havido decretação da falência (“declaração de quebra”): “contrato admissível no comércio, e não proibido pelas leis comerciais”, “que, uma vez assinado pelas partes contratantes, se torna completo e obrigatório para as mesmas partes, sem precisar para sua validade a homologação de autoridade pública”; “logo que assinou esse contrato particular com os demais credores, não lhe é lícito eximir-se da obrigação contraída, e pode ser compelido judicialmente a receber a quantia convencionada, porquanto o Código do Comércio não faz vigorar somente a concordata judicial”, “o que seria contrário ao livre arbítrio, que tem o comerciante de dispor de seus títulos de dividas, e de concluir seus negócios e contratos sobre eles” (Relação do Ceará, 30 de junho de 1874). 2. Natureza da concordata suspensiua. A decretação da concordata suspensiaa de modo nenhum encerra a falência (= deixa de haver relação jurídica falencial). Apenas suspende a instância, o procedimento falencial. Tanto esse é o efeito global da concordata suspensiva, que a sentença que der por cumprida a concordata suspensiva encerra a falência e é comunicada aos funcionários e entidades nela avisados. Assim, evidente está que a sentença de decretação da concordata não encerra a falência; o que encerra a falência (= o que faz cessar a relação jurídica processual falencial) é a sentença que julga cumprida a concordata suspensiva. Não se pode dizer que no processo da concordata suspensiva são partes o falido e os credores. Ressalta aí, a confusão entre figurantes das relações jurídicas de direito material, que são o devedor e os credores, e os figurantes do processo. O sistema jurídico brasileiro não concebeu a oportunidade de impugnação, pelos credores, como contestação, ou como impugnação (senso estrito), mas sim como embargos, para que ficasse patente que os credores se opõem por fora da relação jurídica processual, que o pedido de decretação da concordata iniciara. A força da sentença de decretação da concordata suspensiva é constitutiva negativa. No direito brasileiro, a ação de decretação de concordata suspensiva é assim como os embargos do executado. Apenas ela se propõe, não se opõe. O devedor coletivamente executado não exerce pretensão contra, exerce

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pretensão a que se constitua a concordata. Processualmente, o trato também é semelhante. Não há distribuição. O juízo é o juízo da execução forçada, ali singular, aqui, coletiva 3. Dilatoriedade e extintividade parcial (diminutividade). A concordata suspensiva ou é temporalmente dilatória (dilata prazos, protrai, adia) ou é objetivamente diminutivo (dita remissória; melhor, parcialmente satisfativa); ou é mista. Os casos mais vulgares são de concordatas mistas: dilatam prazos e parcialmente satisfazem. De regra, promete-se menos do que é devido. Em relação à concordata preventiva, há diferenças quanto aos pressupostos. Na concordata preventiva, ou na concordata suspensiva, o devedor tem de oferecer aos credores quirografários, por saldo dos seus créditos, o pagamento mínimo que a lei fixa, sem prazo ou dentro do prazo legal máximo. Tem-se chamado às concordatas extintivas concordatas “remissórias, mas a confusão com o instituto da remissão de dívida bastaria para se ter de evitar o adjetivo. A remissão de dívida distingue-se da doação de crédito em ser sem causa aquela e haver, nessa, a causa donandi. A abstração é essencial à remissão de dívida, que, no sistema jurídico brasileiro, pode ser unilateral, ou bilateral, ponto em que foram superadas a doutrina francesa e a alemã (Tratado de Direito Privado, Tomo XXV, §§ 3.010 3.017). 4. Preventividade e suspensividade. Os acordos extra-falenciais também podem ser preventivos ou suspensivos de execuções forçadas coletivas. Todavia, o acordo extrajudicial não obsta à decretação de abertura da falência, como não obstaria a qualquer decretação de abertura de concurso de credores, se os pressupostos para a abertura da falência, ou de outro concurso de credores se perfazem e alguém, legitimado a isso, pede a decretação. De regra, os acordos apenas adiam vencimentos, ou permitem prazo de espera, assunto de que noutro lugar se tratou. § 120. Pretensão à concordata suspensiva 1. Titular da pretensão à concordata suspensivo. Desde que o falido está em estado de poder satisfazer os pressupostos préprocessuais, processuais e de direito material para obter a concordata preventiva, nascem-lhe o direito e a pretensão a que lhe seja decretada. Nem todos os falidos podem pedir a decretação da concordata. Se a falência foi decretada sem que o devedor fosse comerciante, ou, sendo comerciante, a lei o exime de incorrer em decretação de falência, também não se pode reconhecer pretensão à concordata, mas, ai, tem-se de primeiro decidir sobre aquele ponto, se ainda é possível, e, aqui, de consultar a lei especial. Para que alguém represente o falido, no pedido de decretação da concordata suspensiva, é de mister que tenha poderes especiais. Em se tratando de sociedade, hão de exercer por ela a pretensão os órgãos ou o órgão a que incumba. Em todo caso, tem a lei regras jurídicas explícitas. 2. Precisões. Na concordata preventiva, o devedor inicia o processo sem que esse se tenha de ligar a outro processo. Na concordata suspensiva, supõe-se estar aberta a falência do devedor e pretender esse que a concordata suspensiva faça parar, sem se extinguir, o procedimento falencial. A relação juridica processual da falência lá está, e persiste até que, cumprida a concordata, cesse. Então, a parada final é da relação jurídica processual da falência, e não só do procedimento. Também o processo da concordata suspensiva foi concebido como relação jurídica processual entre o devedor e o Estado, apenas admitidos embargos ao despacho de processamento. O momento em que o pedido se faz justifica que se elimine a função de alguém que vele pelos interesses coletivos durante o procedimento: já o síndico entregara o relatório. O despacho de processamento na ação de concordata suspensiva proposta no prazo legal tem adiantamento de eficácia: nem se realiza o ativo, nem se solve o passivo. Aliter, o despacho de processamento na ação de concordata suspensiva fora desse prazo legal.

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3. Execução voluntária, e não execução forçada. A concordata suspensiva advém quando em trâmite o processo falencial, que é de execução forçada coletiva. Mas ela teve por fito e leva a cabo exatamente a substituição da execução forçada pela execução voluntária: o devedor exerceu a pretensão à concordata para sair da linha de eficácia da execução forçada. E um falido em concordata, excepcionalmente — portanto, com o prazo para executar voluntariamente. É interessante observar-se que na concordata extemporânea, o pedido e o respectivo processo não interrompem a realização do ativo e o pagamento do passivo, isto é, não há adiantamento de eficácia. A execução forçada só é substituida com o transito em julgado da decisão que decreta a concordata. 4. Autor da ação de concordata suspensiva. Autor da ação de concordata suspensiva é o titular da pretensão à concordata suspensiva; titular da pretensão à concordata suspensiva é o falido, e só o falido. O acordo ou a promessa unilateral de vontade em que outrem se obrigue a pagar as dividas do falido, dentro de cedo prazo, ou com abatimento, ou com abatimento e a prazo, não é concordata suspensiva. Se há contraprestação, consistente, por exemplo, em adquirir o solvente o estabelecimento, ou algum bem ou alguns bens da massa falencial, trata-se de venda e compra ou de pré-contrato de venda e compra do estabelecimento, ou do bem ou dos bens mencionados. Tampouco é concordata o contrato entre outrem, o falido e todos os credores para que o terceiro continue no negócio até que se paguem as dívidas. Tal contrato encerra a falência. Nem é concordata o contrato pelo qual os credores passam a ser sócios por quotas, de responsabilidade limitada, encerrando-se a falência. § 121. Pedido de decretação da concordata suspensiva 1. Petição. No processo falencial, depois da publicação do quadro geral de credores e do despacho que decide o inquérito judicial, tem o síndico o dever de apresentar o relatório. Após isso, no prazo legal, é que pode ser pedida a decretação da concordata suspensiva. O falido, que não tenha pedido concordata na oportunidade que a lei prevê, pode fazê-lo a qualquer tempo, mas o seu pedido e respectivo processo não interrompem, de modo algum, a realização do ativo e o pagamento do passivo. A petição é levada ao próprio juiz, à diferença da petição de decretação de concordata preventiva, que é obrigatoriamente distribuída e (frise-se) pelo próprio distribuidor entregue ao escrivão. O juiz tem de despachar a petição com toda presteza, porque cabe ao escrivão publicar o aviso aos credores sobre o inicio da realização do ativo e do pagamento do passivo. O despacho de processamento da concordata é que tem o efeito —adiantado — de suspender a prática de tais atos processuais falenciais. E de toda a conveniência que o juiz despache a petição no prazo legal. 2. Garantias fidejussórias e garantias reais. Para garantir o cumprimento da concordata, pode o falido constituir ou prometer constituir fiança ou direito real de garantia. O fiador responsabiliza-se pelos pagamentos concordatícios nos prazos ajustados. O fiador não se exonera se a concordata suspensiva vem a ser resolvida. As garantias reais persistem a despeito da resolução da concordata. 3. Despacho de processamento. Verificando que o pedido está formulado nos termos da lei, o juiz manda publicá-lo por edital que o transcreva, e são intimados os credores que no prazo legal podem opor embargos à concordata. Se o devedor tiver oferecido garantia para assegurar o cumprimento da concordata, o juiz, no despacho, marca prazo para que a garantia se efetive. O despacho de processamento, muito embora se trate de concordata suspen-siva, tem grande relevância. A lei atribuiu-lhe pela non plena cognitio, que o determina, eficácia adiantada. Tal eficácia é a de suspender a realização do ativo e o pagamento do passivo.

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O juiz da falência, para ordenar que se publique o edital com o pedido de concordata suspensiva, examina (non plena cognitio!) se o autor do pedido satisfaz os pressupostos pré-processuais, processuais e de direito material. Contra essa cognição não plena é que se podem opor os embargos à concordata. O devedor tem de depositar em mão do escrivão, que lhe há de dar recibo, a quantia necessária para as custas e despesas. Se o falido prometeu garantia pessoal ou real ao cumprimento da concordata suspensiva, tem o juiz o dever de marcar prazo, se a promessa não o contém, para que seja prestada a garantia. Se o falido já constituiu a garantia, ou se outrem por ele o fez (garantia pessoal, ou garantia real prestada por outrem), o juiz apenas examina se falta alguma formalidade de registro ou de outra espécie. A Turma Julgadora da Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Ceará, a 8 de outubro de 1951 (JD IV, 88), disse não ser de negar-se, liminarmente, a decretação de concordata suspensiva, se há matéria por examinar, que mais esclarecida poderia ser, quando os credores opusessem embargos à concordata. Está cedo. Mas apenas se supõe haver dúvida. 4. Embargos à concordata suspensiva. Publicado o edital, que transcreva o pedido de concordata suspensiva, corre o prazo para os credores oporem os embargos à concordata. O prazo inicia-se no dia da primeira publicação no orgão oficial

§ 122. Decretação da concordata 1. Juízo falencial e concordata suspensiva. O juízo da concordata suspensiva é o juízo em que corre o processo de falência, como juízo da concordata preventiva é o juízo em que correria o processo da falência do devedor. Mas há, nas duas espécies, duas ações, a de decretação de abertura da falência e a de decretação da concordata. Naquela espécie, a ação de decretação da falência foi antes e a de decretação da concordata, encontrando-a, apenas pode suspender-lhe o procedimento. Nessa espécie, a concordata é preventiva e tem por finalidade evitar que se proponha a outra ação. 2. Poder do juiz. O juiz não tem arbítrio. Se o pedido está completo e nenhum pressuposto falta ao falido, o despacho de processamento impõe-se. Depois, a decisão de decretação da concordata. Há, para os credores, a oportunidade dos embargos à concordata. Se os credores, no prazo, não opõem os embargos à concordata, os autos são imediatamente conclusos ao juiz que profere a sentença. A respeito da concordata suspensiva não se redigiu o que se fez, para a concordata preventiva, que aliás só ai se justificaria, por se tratar de referência à decretabilidade da falência. Todavia, poder-se-ia perguntar se a descoberta de falta de algum dos pressupostos permite a denegação da concordata suspensiva, se não foi alegada em embargos. A resposta tem de ser afirmativa. O devedor que deixou de arquivar, registrar ou inscrever no Registro do Comércio os documentos e livros indis-pensáveis ao exercício legal do comércio não tem pretensão à concordata. Nem na tem o devedor que deixou de pedir a decretação de abertura de falência no prazo legal. Nem o que foi condenado por crime falencial, furto, roubo, apropriação indébita, estelionato e outras fraudes, concorrência desleal, falsidade, peculato, contrabando, crime contra o privilégio de invenção ou marcas de indústria e comércio e crime contra a economia popular. Nem o devedor que há menos do tempo fixado em lei pediu concordata, ou não cumpriu concordata há mais tempo requerida. Quem pediu decretação de concordata preventiva e não teve despacho de processamento, ou quem, antes da decisão final, tivera decretada a abertura da falência, ou na decisão final o teve, não está inibido, durante o processo falencial, de pedir concordata suspensiva (certa, a Turma Julgadora da Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Ceará, 8 de outubro de 1951, JD IV, 88). Subentende-se que o fundamento para se indeferir o pedido de processamento da concordata preventiva não é, também, suficiente para se indeferir o pedido de processamento da concordata suspensiva. Se o é, o juiz, que tenha a mesma convicção, há de indeferir esse pedido; porém não o faz por ter sido indeferido o pedido de processamento da concordata preventiva. Odespacho de processamento é em não plena cognição, de jeito que antes da decisão final ou na decisão final pode

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o juiz, de oficio, atender a que falta qualquer pressuposto. § 123. Eficácia da concordata suspensiva 1.Efeitos pré-concordatícios. Com o despacho de processamento suspendem-se a realização do ativo e os pagamentos das dividas. Suspende-se, portanto, a prática de atos processuais. Salvo se a concordata foi extemporânea, porque o despacho de processamento nessa ação de decretação de concordata, proposta depois de se escoar o prazo legal, não tem a eficácia adiantada: só a sentença que decrete a concordata suspensiva é que suspende a realização do ativo e os pagamentos das dívidas. Despachada a petição com o “processe-se”, o adiantamento de eficácia é imediato. Tem-se de encarecer o valor desse expediente técnico do adiantamento de eficácia, que é semelhante, embora com sinal contrário, ao do adiantamento de execução forçada. Ao relator do acórdão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 23 de julho de 1948 (RF 122/439), escaparam duas impropriedades gritantes: falou de “homologação” de concordata; atribuiu à decisão decretativa da concordata o efeito de encerrar a falência. Nenhuma eficácia tem, quanto às ações penais, o despacho de processamento da concordata suspensiva, nem a sentença de decretação da concordata (Corte Suprema, 12 de novembro de 1934, RF 66/139; Supremo Tribunal Federal, 10 de dezembro de 1947, RT 191/921; RF 118/529), nem, sequer, a de estar cumprida a concordata. 2.Continuaçôo do procedimento falencial, apenas suspenso. A decisão que decreta a concordata de modo nenhum encerra a falência. Já foi exposto isso e está claríssimo no acórdão do Supremo Tribunal Federal, a 10 de dezembro de 1947 (RT 191/921; RF 118/539), posto que, às vezes, devido à má terminologia de alguns relatores, se fale de cessação do processo da falência (e. q., V Turma, 17 de junho de 1943, RT 156/835; 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 26 de agosto de 1949, Ai 94/ 114). Certas, a mesma 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 23 de abril de 1947 (RF 118/155), e a 44 Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 8 de abril de 1948 (RT 174/806). § 124. Entrega dos bens 1.Eficácia sentencial. Um dos efeitos da sentença, transita em julgado, que decretou a concordata suspensiva, efeito que o despacho de processamento não tem, é o de serem entregues ao concordatário todos os bens da massa, exceto os que ficarem em garantia que ele constituiu. Sobre os bens da massa, que lhe são entregues, tem o concordatário poder de dispor, salvo em se tratando de incidência de regra jurídica sobre autorização judicial ou consentimento dos credores. Passada em julgado a sentença que concedeu a concordata, os bens arrecadados são entregues ao concordatário, que readquire direito à livre disposição, conforme a lei. Com a interposição do recurso extraordinário, paira a dúvida quanto ao transito em julgado da sentença. É surpreendente que em cátedras e em tribunais se diga que a interposição do recurso extraordinário não obsta ao trânsito em julgado. Basta pensar-se em que o transito em julgado é a coisa julgada formal e se acolheria contradição gritante em se admitir reforma de decisão, em via recursal, a despeito da coisa julgada formal. O que acontece é que, ao se interpor o recurso extraordinário, não se sabe se o corpo julgador do recurso vai dele conhecer, ou não. Se dele conhece, não houve coisa julgada formal, não houve transito em julgado. Se dele não se conhece, houve, porque o recurso extraordinário supõe que a decisão seja de única ou última instância (Constituição de 1988, art. 105,111). Só há duas possibilidades de não haver transitado em julgado a decisão de que se interpôs recurso de revista ou recurso extraordinário, e dele não se conheceu: a) se o não-conhecimento foi por ser recorrível, ordinariamente, a decisão e ainda pode ser interposto o recurso ordinário, o que é difícil de ocorrer; b) se há outro recurso extraordinário, que se interpusera, não fora julgado e dele se vem a conhecer.

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2.Falência de sociedade e concordata. Se na falência de sociedade foram arrecadados bens de sócio não comerciante, a esse hão de ser entregues. Se o sócio é comerciante, há duas concordatas, porque o pedido da sociedade há de ser acompanhado do pedido de concordata por parte do sócio: os bens serão entregues à sociedade e aos sócios, conforme a procedência. 3.Limitação ao poder de dispor. O concordatário readquire o poder de dispor dos bens, que lhe são entregues; porém, para alienar imóveis, ou alienar outros bens sujeitos a cláusulas da concordata, precisa de autorização do juiz, ouvido o órgão do Ministério Público. Tal limitação acaba com o transito em julgado da decisão que julgue cumprida a concordata suspensiva. A limitação, em se tratando de sócio solidário, só apanha os bens sujeitos a cláusulas da concordata suspensiva. No tocante aos bens estranhos à concordata, inclusive bens imóveis gravados, tem o concordatário o poder de dispor. Nem sempre, porém, os bens gravados estão incólumes à eficácia da concordata, porque, no que o seu valor excede a importância garantida, têm de ficar sujeitos ao pagamento dos credores concordaticios. Depende, portanto, do que se considerou bem sujeito à concordata e bem não sujeito à concordata. Passa-se o mesmo em caso de privilégio especial, se algum bem foi atribuido ao pagamento. § 125. Tempo pós-sentencial 1. Sentença de decretação de concordata suspensiva. A sentença que decreta a concordata suspensiva é constitutiva, como o é a de decretação de concordata preventiva. Ambas afastam, uma, no presente e no futuro, outra, somente no futuro, a execução forçada falencial. O devedor está em situação de pessoa a que foi declarado o passivo concordaticio. Têm-se de satisfazer os créditos com garantia real e os créditos com privilégios e o concordatário solve, conforme a sua promessa, as dividas quirografárias. 2. Credores com garantia real e credores com privilégio especial. Na concordata suspensiva, o pedido de decretação é posterior aos julgamentos dos créditos, à publicação do quadro geral de credores e à apresentação do relatório. Há coisa julgada sobre os créditos e o seu quanto. Trata-se, portanto, de títulos certos e líquidos. Durante o cumprimento da concordata, os titulares dos créditos com direito real de garantia podem pedir a execução real; e os credores com privilégio especial têm a ação executiva, com a penhora dos bens que foram separados para o seu pagamento. A executividade desses créditos não advém de ser processo declarativo o de admissão dos credores privilegiados, ou não, mas sim de estarem escapos à eficácia da concordata suspensiva e ser a sentença de admissão sentença com a carga seguinte: declaratividade, 3; constitutividade, 2; condenatoriedade, 4; mandamentalidade, 1; executividade, 5 (Tratado de Direito Privado, XXIX, §§ 3.400 e 3.403, 2). 3.Credores da massa e credores com privilégio geral. Também os credores com privilégio geral não são atingidos pela concordata suspensiva. Mas, pelo fato de não haver bem sobre que especialmente incida, tem-se de prever a situação, devido ao risco de alienação rápida dos bens entregues. O prazo para o cumprimento da concordata inicia-se na data em que passa em julgado a mesma sentença, devendo o concordatário, dentro do prazo legal e sob pena de reabertura da falência: a) pagar os encargos e dívidas da massa e os créditos com privilégio geral; b) exibir a prova das quitações exigidas pela lei; c) pagar a percentagem devida aos credores quirografários, se a concordata foi à vista. 4.Credores retardatários. No processo falencial, o credor que se não habilita, no prazo determinado pelo juiz, ainda pode declarar o seu crédito por petição com os pressupostos. No processo da concordata suspensiva, credores concordatícios são os credores que foram admitidos à falência. Não há, propriamente, credores retardatários no processo da concordata, há credores que, muito embora quirografários, ficaram fora da concordata suspensiva. Retarda quem, no tempo, vem depois, e não quem está alhures, no espaço. Acertadamente julgou que a regra jurídica sobre credores retardatários nada tem com o processo da concordata suspensiva, a 2ª Câmara Cível da Corte de Apelação do Distrito Federal, a 28 de outubro de 1913 (RD 32/175 sã e a 3 de agosto de 1915 (38/606). Destoante foi, lamentavelmente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a 29 de maio de 1916 (RT

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18/68), contra o qual, com toda a lucidez, argumentou J. X. Carvalho de Mendonça (Tratado de Direito Comercial, VIII, 395 s.). O que os credores que se não apresentaram à falência, no devido tempo podem fazer, é propor as suas ações, sem que isso possa lesar os credores admitidos. O que só eles tinham de receber vão receber, concordaticiamente, e os momentos posteriores mio importam, porque se suspendeu o procedimento falencial e se tomou o prometido pelo concordatário como precipuo. A concordata atinge a todos os credores quirografários, admitidos, ou não, residentes no Brasil ou alhures, ausentes ou embargantes. Assim, o credor quirografário que propõe ação depois do prazo legal só tem direito á percentagem, se a concordata suspensiva que se decretou foi diminutiva. Se a concordata suspensiva foi a prazo, o crédito do credor retardatário tem de ser satisfeito dentro dele, se o concordatário o reconhecer, ou se houve sentença transita em julgado. Mas sempre depois de pagas todas as percentagens correspondentes aos credores admitidos. 5.Desistência. Problema que se assemelha, porém não se identifica, certamente, com o da revogabilidade da concordata, depois de ser aprovada pelos credores, nos sistemas jurídicos que têm tal aprovação e a homologação pelo juiz, é o da desistência do pedido de concordata, depois de dado o despacho de processamento. Até esse despacho pode o devedor falido desistir, e a respeito não há dúvida. Depois? Depois, também, porque ainda não foi decretada a concordata, e as circunstâncias podem ter mudado. Depois da decretação da concordata, não há desistência - haveria renúncia e declaração de inadimplibilidade. Mas essa renúncia ao direito adquirido, que seria concebível, importaria pedido de retomar-se o procedimento falencial. § 126. Sentença de cumprimento da concordata suspensiva 1. Natureza da sentença que julga cumprida a concordata suspensiva. A sentença que julga cumprida a concordata suspensiva é sentença declarativa, como a que julga cumprida a concordata preventiva. O concordatário cumpriu o que prometera e por isso se liberou. 2. Comparação com a sentença que julga cumprida a concordata preventiva. A sentença que julga cumprida a concordata preventiva afastou as consequências que poderia ter tido a existência das dívidas anteriores à concordata. A sentença que julga a concordata suspensiva, essa, por se tratar de concordata durante a falência, que apenas havido suspendido o procedimento falencial, isto é, havia afastado a execução forçada, extingue as dividas e ao mesmo tempo encerra a falência. 3. Possível cumprimento fora do prazo. Se o cumprimento foi fora do prazo, mas houve plena satisfação dos credores, sem que tenha sido pedida resolução da concordata, deve o juiz julgá-la cumprida, declarando-se a extinção das dividas e o encerramento da falência. Aqui, o que cessa não é o procedimento falencial, é a própria relação jurídica processual. Não há mais falência, nem falido. § 127. Resolução da concordata suspensiva 1.Conceitos. A concordata suspensiva apenas faz parar o procedimento da falência. Se há resolução, o procedimento continua. Volve-se à execução forçada coletiva. Esse é um ponto da mais alta relevância, na teoria e na prática: a concordata substitui — e até adianta substituição o despacho de processamento — à execução forçada coletiva a execução voluntária. Se por alguma causa a decisão é desconstituida, há o retomo à via executiva forçada, que se deixara de trilhar. 2. Resolução pedida e resolução “ipso iure”. Se o concordatário não faz os pagamentos a que se refere a lei, há

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resolução ipso iure da concordata suspensiva, resolução que se não confunde com a resolução pedida. É em virtude de pena legalmente prevista em regra juridica cogente. Não é preciso que se proponha a ação de resolução da concordata. Se a concordata não foi à vista, a resolução ipso iure somente se dá se ocorre não-pagamento dos encargos e dividas da massa ou de crédito com privilégio geral. Basta que nenhum dos pagamentos seja à vista, para que só se possa dar a resolução por inadimplemento de prestação. Por vezes, em livros e em jurisprudência, deixa-se de prestar atenção à diferença entre a resolução que só se opera com o exercício da ação de resolução da concordata e a resolução ipso iure, que se consuma sem ser preciso que se proponha ação de resolução. A ratio leqis está em que, sendo à vista a concordata suspensiva, não se justificaria que infração tão grave e facilmente verificada tivesse de ser examinada em ação que se haveria de propor. Há, então, a continuação do procedimento, que fora suspenso.

Capítulo XXXIII

Ação de sub-rogação de bens § 128. Conceito, natureza e eficácia 1. Conceito e natureza. A ação de sub-rogação de bens é ação constitutiva. Contenciosa a jurisdição, ainda que não se trave discussão. A operação, que se desenvolve, é a de substituição de uma res por outra res, na mesma relação jurídica: atinge-se ao máximo de identificação entre dois momentos da duração da relação jurídica, a despeito de não ser a mesma coisa; quer dizer— abstrai-se da troca das coisas, a ponto de se terem duas coisas como o objeto da mesma relação jurídica. 2. Eficácia. Não há, ai, relevante eficácia de declaratividade: nenhuma pergunta se faz sobre existir, ou não, a relação jurídica. Não há, aí, relevância da condenatoriedade: nenhuma resposta se dá a pergunta sobre culpa de alguém. Não há executividade: nenhuma prestação, que devia ser feita pelo réu, passa a ser feita pelo Estado. Não há força mandamental: porque o mandamento do juiz é somente para que se constitua a troca de coisas, a subrogatio. Portanto, a ação é de força constitutiva, com forte efeito mandamental. Há mais executividade do que declaratividade. Ponto relevante, porque exclui a coisa julgada material. A argumentação a favor de ser mandamental a ação tem contra si o elemento constitutivo que se inicia com a petição e se integra com a sentença de autorização. Em tal sentença, o ato do juiz é incluso, e não imediato. O ato judicial da sub-rogação produz-se todo, juridicamente, na autorização; e o próprio alvará é mais alvará do que mandado, mais provimento regaliano, estatal, do que mandamento a outro órgão do Estado. (O alvará é a ordem judicial nas ações constitutivas que dela precisam. Não se pode dizer alvará em vez de mandado, ou vice-versa, salvo aproximativamente.) § 129. Construções de “lege ferenda” 1. Exames das construções. A construção, como ação mandamental, seria, de iure condendo, fácil; como constitutiva também. a) Para que ainda mais se caracterizasse a constitutividade bastaria que se proferisse a sentença — não no momento da autorização (o que gera a dúvida), porém, depois, ao se aprovarem as contas da venda ou da troca e se considerar cumprido o mandado, então simples ato processual anterior à sentença. Observemos, contudo, que em parte essa sentença seria supérflua: primeiro, porque a sub-rogação se opera, havendo a venda do bem gravado e a compra de outro, com o preço (“pretium in loco rei”), e, depois, com a coisa (“res in locum pretii’9; segundo,

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feita a aquisição da nova res, a escritura pública já incluiu a cláusula do alvará, diligência a que o fiscal está atento, como instrumento do juiz, e não como outro órgão do Estado terceiro, essa sentença faria em duas fases o processo, uma até a autorização e outra até a sentença. b) À construção da ação de sub-rogação como ação mandamental seria preciso que a sentença de autorização se dirigisse a outro juiz, ou ao escrivão, ou ao corretor de imóveis, com o mandado. Então, sendo o pedido para a venda do prédio A e compra do prédio B, sub-rogação somente haveria no momento de se registrar a escritura de compra do prédio B. Ora, sub-rogação há, com toda a eficácia de sentença (força formal de coisa julgada, força constitutiva e os mais efeitos), desde que transitou em julgado a “sentença’ de autorização — apenas ainda não se aplicara a eficácia. A importáncia do momento da eficácia como elemento classificatório das sentenças já outras vezes sublinhamos (inclusividade, imediatidade, mediatidade do ato do juiz). A expressão “alvará” que persiste é a que aparecia a respeito de outras ações em que havia “licença” (d’El-Rei ou do juiz), ou algo de incluso em sentença anterior, como o alvará de busca (não mandado) de presos fugidos, ou incluso na sentença mesma (alvará de vênia, alvará de fiança), inconfundidos com os mandados para prender (Ordenações Filipinas, Livro V, Titulo 119, § 2ª), ou os mandados de solvendo (Livro 111, Titulo 66, § 92) etc. 2. Dados históricos. Nas Ordenações Filipinas, Livro III, Título 30, § 12, quando se tratou das causas especiais de menos de mil réis, tornaram-se elas de cognição completa na sentença final, como a sentença dos processos executivos de títulos extrajudiciais, porém sem adiantamento de execução; e para isso se disse que alvará, e não sentença, nem mandado, se tiraria de processo nas causas que passassem de mil réis. Fez-se de força executiva a sentença, em vez de se fazer de força condenatória e efeito executivo (mandado executivo). É verdade que o Repertório das Ordenações do Reino (III, 210) substituiu “alvará”, que é o que se lê, tanto na Ordenação do Livro 1, Título 65, § 72, quanto na Ordenação do Livro III, Título 30, § 1ª, por mandado”; mas sem razão, abusivamente, revelando não ter o compilador a finura dos redatores das Ordenações Filipinas: e do que nisso mandarem”, disseram elas, “mandarão fazer execução por um Alvará . O pensamento vinha das Ordenações Afonsinas do Livro 1, Títulos 25 e 26, em processos “sem tardança”, e do Livro III, Titulo 24, sobre encurtamento de processos. Já as Ordenações Manuelinas (Livro 111, Título 19, § 1ª) eram claras: “... e da sentença, que o juiz em tal caso der, o Tabeliam, ou Escrivam non tirará sentença do processo, somente um Alvará assinado pelo Julgador, para ser por elIe fazer execução”. Daí veio o texto filipino. A legislação brasileira do Império não se interessou pela ação de sub-rogação. Na Consolidação das Leis do Processo Civil, de Antônio Joaquim Ribas, o art. 9º, § 12, nº 3, apenas a mencionou; e o comentário do consolidador limitou-se à referência à necessidade de licença, à prova por testemunhas, à avaliação judicial e à legislação fiscal. A estrutura da ação de sub-rogação, sob a vigência do Código de 1939, proviera de Códigos de Processo Civil estaduais, atentos ao alvará de autorização, ao tempo da pluralidade de legislações processuais. Segundo o art. 632, concedida essa autorização e efetuada a venda, competia ao juiz nomear o fiscal que receberia o preço e procederia à compra dos bens aos quais se transferia o ônus. O fiscal que recebia esse preço e comprava os bens era instrumento do juiz, salvo quando se tratasse de troca de bem do que pediu a sub-rogação por algum bem que lhe pertencia. Por isso mesmo, estava certa, ao tempo do Código de 1939 e das legislações processuais estaduais, a decisão do Conselho Supremo da Corte de Apelação do Distrito Federal, a 12 de setembro de 1928 (RD 91/331), que permitiu não se nomear fiscal se se tratasse de permuta de bens do mesmo interessado. Se a ação fosse mandamental, a permissão para outorga de escritura em caso de permuta, ou de gravação, seria injustificável. Não há mandamento a particular, mesmo ainda à parte do feito, salvo se esse particular exerce função confiada pelo Estado. A ação de sub-rogação é ação constitutiva integrativa. Em vez de a integração ser posterior, como ocorre com as homologações, é prévia, inversão típica das autorizações. Quem homologa não precisa de expedir alvará, nem mandado. Quem autoriza expede alvará ou coisa que o valha.

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O Código de 1973, nos arts. 1.104-1.111, não repetiu as regras jurídicas do Código de 1939, art. 632, acerca da sub-rogação dos bens de disponibilidade restrita, por negócio jurídico, ou limitada, por lei. Assim, no que respeita aos bens sub-rogado e sub-rogante, não há nomeação necessária de alguém que receba o preço do bem alienado e providencie à compra do bem adveniente, a que se sub-rogue o vínculo. Advirta-se, porém, que $o art. 1.107, segunda parte, permite-se ao juiz investigar livremente os fatos e ordenar, de ofício, a realização de quaisquer provas e, no art. 1.109, última parte, adotar a solução que lhe parecer mais adequada.

Capítulo XXXIV

Homologação de sentença estrangeira § 130. Considerações preliminares 1. Sentença estrangeira e homologação. A homologação de sentença estrangeira assenta na cooperação interestatal da justiça. Não mais podendo os Estados negar toda eficácia aos julgados das justiças estrangeiras, surgiu o problema técnico de como se tratar a radiação internacional dos atos judiciais, principalmente das sentenças. Esse problema se divide em problema do reconhecimento da decisão estrangeira e problema da execução da decisão estrangeira. No conceito de execução compreende-se, seguindo noção que já nos é assente, o de força executiva e o de efeito executivo. Mas, ao lado dessa força e desse efeito, que são o elemento executivo das ações e sentenças, há o elemento da coisa julgada material (força e efeito), a força e o efeito de criar situação ou relação jurídica (elemento constitutivo), o elemento mandamental (força e efeito), o elemento condenatório. Quando os textos das leis falam de não serem “exeqUíveis” no Brasil, sem prévia homologação, as sentenças estrangeiras, a primeira questão, que surge, é a do conteúdo desse conceito: ~exeqUíveis’ refere-se ao só elemento executivo (força e efeito) ou a esse e a outro, ou a outros elementos? Da resposta a essa pergunta é que tem de partir toda exposição metódica, nessa parte do direito processual. Infe-lizmente, tardou essa pesquisa científica. Na expressão “sentenças estrangeiras” compreendem-se todas as decisões judiciais que precisam ter eficácia alhures, desde Na expressão “sentenças estrangeiras” compreendem-se todas as decisões judiciais que precisam ter eficácia alhures, desde que decisão cível, ou com eficácia de decisão cível. Incluem-se as decisões arbitrais e as de autoridades administrativas, se têm eficácia cível. Se acaso o território estava sob jurisdição brasileira, quando se proferiu a sentença, a decisão só é estrangeira se não havia recurso para a justiça brasileira. (a) Tem-se de saber qual o Estado competente para conhecer e julgar das ações que foram propostas — questão de jurisdição, que é preliminar, pois, se o Estado não tem jurisdição, não se levanta a questão de poder determinar a vocatio in ius, b) Após isso, é de indagar-se como o Estado competente pode fazer citar o demandado, isto é, determinar a vocatio in ius, se esse está presente ou se não está. Apontou O. C. Cheshire (Priva te International Law, 50) dois princípios fundamentais de pressupostos da jurisdição: o princípio da efetividade (principIe of effectiveness) e o princípio da submissão. O “principio da efetividade” — a que melhor chamaríamos “principio da eficácia” — diz-nos que nenhum juiz tem direito de proferir julgamento se não pode fazer cumpri-lo dentro do seu território (The principIe of effectiveness means that a judge has no right to pronounce a jugdment if he cannot enforce it within own territory). Há alusão àquele “poder físico”, a que se referia Holmes (Inc Donald versus Mabee, 1917, 37 Sup. Ct. 343, Ernest O. Lorenzen, Cases on the Conflict ol Law, 2ª ed., 134): “the foundation of jurisdiction is physical power”. Por isso mesmo, o juiz do Estado B pode ir até a condenação, se não tem de executar, mas a ação executiva fica dependente da homologação da sua sentença no Estado A ou C. Essa distinção é possível pela separabilidade natural entre a eficácia condenatória e a eficácia executiva, em outra ação. Se o juiz não poderia, por si só, “efetivar” o seu julgamento, incompetente é. A máxima Actor sequitur fortim rei tem aí significação lata. Nenhum Estado pode decretar a nulidade de hipotecas feitas no Brasil, sobre imóveis sitos no Brasil, nem a de marca de indústria ou de comércio registrada no Brasil. Extra territorium ius dicenti, impune non paretur.

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O princípio básico do direito inglês sobre jurisdição, disse Lorde Haldane (John Russeil & Co. Ltd. versus Cayzer Irvine & Co, Ltd. 1916, 2ª. C. 298/302), é o de que os juizes se põem no lugar do Soberano em nome de quem administram justiça. Os tribunais de qualquer Estado, dizia A. V. Dicey (A Digest of the Lato of England with reference to the Conflict of Laws, 5! ed., 30 sã, têm jurisdição em todas as matérias em que possam proferir julgamento que eles possam cumprir ou fazer cumprir : “The Courts of any country have jurisdiction over (i, e., have a right to adjudicate upon) anv matter with regard to which they can give an effective judgement”; e não tem jurisdição sobre qualquer matéria a propósito da qual não possa proferir julgamento efetivo”: “and have no jurisdiction over (i. e., have no right to adjudicate upon) any matter with regard to which they cannot give an effective judgment”. Os tribunais não podem interferir na autoridade de qualquer Estado estrangeiro, dentro do território desse. Á diferença de que ocorre com as ações in personam, os juizes ingleses não precisam da presença do réu para proferirem sentenças sobre a propriedade imóvel ou móvel, desde que não saiam da questão sobre o bem; posto que a lei escocesa permita, aí, passar-se a questões conexas (sem eficácia na Inglaterra; as decisões dos casos Schigaby versus Westenholz, 1870, L. R. 6 K.B. 155/163, e Emanuel versus Symon, 1908, 1 K.B. 302, parecem reputar nulo, não-válido, o julgamento; salvo submissão, Voinet versus Benett, 1885, 55 LI., Q.B. 39). Os Estados podem deslocar, convencionalmente, em atos interestatais, os limites da sua competência judiciária. Se esses atos interestatais não existem, regem os princípios do direito das gentes, e só eles. A competência para conhecer das causas de direito administrativo brasileiro é exclusiva do Brasil. “Posto que a competência ou foro geral em matéria de obrigação pessoal seja o do domicílio do réu, é sabido que esta máxima sofre diversas exceções, pois que são também legítimos os foros da submissão voluntária, do contrato, da administração, da conexão da causa, e da prorrogação da jurisdição, além do foro da situação em relação às ações reais” (3. A. Pimenta Bueno, Direito internacional privado, 131). Se o estrangeiro é domiciliado no estrangeiro, ainda assim pode ser demandado no Brasil, em qualquer desses casos, porque o foro, que prevalece, é o do Brasil. As vezes, por se tratar de submissão da empresa, que veio obter titularidade de direitos no sistema jurídico brasileiro, e por se tratar de direito administrativo no Brasil, em cujos registros públicos se pede e espera que se operem as eficácias declarativa, constitutiva negativa, ou mandamento) da sentença nas ações propostas. A jurisdição para expungir do registro marca de fábrica ou de comércio pode exercer-se, ainda que o titular da marca registrada não esteja na jurisdição e não possa a relação jurídica processual ser angularizada, fora, com a citação, posto que possa ser, como ocorre no direito inglês, “informal notice”. Foi isso o que se decidiu, na Inglaterra, com o caso King & Cos Trade Mark, In re, (1892), 2 Ch. (CA.) 462. Lê-se em A. V. Dicey (A Diqest ol the Lato o! England with reference to the Conflict of Latos, 5! ed. por A. Berriedale Keith, 225): “Jurisdiction to expunge a trade mark from the register may be executed though the registred owner is not within the lurisdictiori and cannot be served abroad with notice of motion, though informal notice should be given him”. Em seguimento, observa-se que hoje épossível ser feita a citação fora, mas a jurisdição não depende da citação, e sim da situação do móvel (marca da fábrica ou de comércio): “... notice ol motion in such cases can now be served abroad, but the jurisdiction does not depend on service, but on the situation of the movable”. Desde que a Justiça da Inglaterra — ou do Brasil — é a competente, exerce-se ela, ainda que não obtenha que a propositura da ação seja levada ao conhecimento de quem está fora do território: “As a general principIe when jurisdiction is being exercised over anº property it is proper and legitimate, without obtaining leave under Ord. Xl or otherwise to give notice of the proceedings to any persons interested outside England”. A jurisprudência britânica a respeito é copiosa. O velho direito português, de que herdamos os princípios, era direito de povo que, já nos séculos XIV a XVII, tratava com o mundo. A nossa noção de jurisdição é a de Estado que supõe conhecidos os princípios de direito das gentes que distribuem a competência jurisdicional e, dentro deles, coopera com os Estados que o rogam para os atos citatórios e a importação da eficácia dos julgamentos estrangeiros. Os próprios juristas ingleses confessam que só no século XIX as Cortes inglesas puderam admitir a ação contra o ausente. 2. Ação de homologação de sentença estrangeira. A homologação de sentença estrangeira é o conteúdo de ação de homologação, que se funda na pretensão, regida pelo direito interno, mas de base interestatal ou supraestatal, a conseguir que a sentença estrangeira seja reconhecida (existência) e tenha eficácia (força e efeito) noutro país que aquele de cuja justiça emana. Existência e eficácia.

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Se a ação é de recognição sumária, ou declarativa, condenatória, ou constitutiva, muito importa, e não só teoricamente, à construção. 1) Se de recognição, pelo menos até certo ponto se pode reexaminar o conteúdo da outra sentença, reduzida, até aí, à classe da sentença de cognição incompleta. 2) Se declarativa, o que vem da sentença estrangeira é tudo, inclusive os elementos executivos e mandamentais. Nada se acrescenta, só se declara. 3) Se constitutiva, a eficácia depende da segunda sentença, que homologa — e não da primeira. Foi isso o que sustentou, já em 1908, Dionisio Anzilotti (II riconoscimento, Atti Accademia Bologna, 11), quando afirmou não haver, do ponto de vista formal, uma sentença só, mas duas, cada uma delas eficaz no âmbito da soberania de que provém, posto que de conteúdo idêntico, porque ambas repousam na mesma atividade lógica. Mas, ainda ai, há duas concepções: a) a segunda sentença, constitutiva (Giuseppe Chiovenda, Principii, 306-307; Caetano Moreíli, Giudizio di delibazione, Rivista di Diritto Internazionale, 1924, 396 s.), faz conteúdo seu a sentença estrangeira; 14 diferente é a opinião dos que a consideram constitutiva integrativa da eficácia do julgado estrangeiro: a sentença estrangeira é “reconhecida”, e tem-se no Estado de importação a eficácia (ainda nebuloso, Dionisio Anzilotti, II riconoscimento, Atti Accademia Bologna, 13). Porém não se cria a eficácia, recebe-se, abrem-se-lhes portas. Reconhecer sentença, porém não criar eficácia. A não-homologação é negação de eficácia na ordem interna. Para a negação da sentença, a ação teria de ser perante juizes supraestatais. A verdadeira concepção é a que mais se ajusta ao estado presente do direito interestatal e ao supraestataí. Nenhuma delas é a verdadeira para todos os tempos. Trata-se de proposições cuja verdade tem de ser apurada dentro do sistema lógico das relações entre os Estados, e sobre os Estados, no momento em que se enunciam. Não há, a respeito, verdade a priori para todos os tempos. No estado presente, e, no Brasil, desde 1878, pelo menos, a concepção 3), b), é a verdadeira. Com ela, portanto, é que devem raciocinar os juizes. A concepção 3), a), tem contra si o ser possível ao acolhimento de conteúdo da sentença estrangeira contrário ao que se julgaria no Estado de importação. A concepção 2) corresponde à doutrina do direito só estatal e restrito a cada Estado, sem comunicação entre esses tanques de sistemas jurídicos (com itas gentium). Na linha de evolução juridica, a ordem das concepções é a seguinte: 1); 2); 3), a); 3), b). A teoria materialística da coisa julgada, hoje posta de lado, teve a conseqúência (Ernst Zitelmann, In ternationales Pri vatrech t, II, 269 s.) de levar a crer-se que a concepção 1) fosse a verdadeira. A correção naquela importou repelir-se a adoção dessa, pelo menos com esse fundamento. Nem, sequer, a sentença é lex specialis, de modo que pudesse ser tratada como as leis estrangeiras (sem razão, Ludwig von Bar, Theori e und Praxis, 11, 413). Aliás, a verdade das proposições, de que tratamos, não se apura no direito interno, porque é indiferente se é a lei interna ou se é a atividade delibadora ou homologatória do juiz que marca os limites da importação (por isso, sem razão a crítica de Enrico Tuílio Liebman, LAzione per la delibazione, Rivista di Diritto Processuale Civile, IV, Parte 1, 291, nota 3, a Konrad Hellwig, An-spruch und Klagrecht, 175). No plano interestatal e supraestatal, o que é cedo, pelas fontes de tais ordens jurídicas, é que todo exame de hoje supõe a sentença estrangeira como sentença, como prestação jurisdicional. Nessa qualidade, ela se projeta, radia; e a ação de homologação tem por fito integrá-la, para que a sua força e os seus efeitos se introduzam na ordem jurídica do país de importação. Não só a força executiva, nem só a mandamental; nem só os efeitos executivos e mandamentais. Também a força e os efeitos da coisa julgada material, uma vez que se pôs em relevo ser de origem processual (teoria processualística da coisa julgada). Também a força e os efeitos constitutivos, quando tenham de operar, ex novo, no Estado de importação; e. g., quando se tenha de dar baixa em registros em virtude de sentença constitutiva estrangeira. A sentença estrangeira, no juízo da homologação, não é somente fato jurídico, ou ato jurídico, ou negócio juridico; é prestação jurisdicional “estrangeira”. A pretensão a homologar nasce de haver essa sentença, de ter o seu titular, a seu favor, ou contra si o julgado estrangeiro. A ação de homologação é exercício dessa pretensão, que nada tem com a pretensão de direito material de que nasceu a ação exercida perante o tribunal estrangeiro. Que é que a ação segunda colima obter? A introdução da eficácia da sentença estrangeira dentro do país. Tal ação é, portanto, constitutiva integrativa. Não é declarativa. O elemento declarativo está em questão prejudicial: Houve sentença estrangeira? A resposta afirmativa não basta; é apenas degrau que se sobe. Homologativa, ou delibativa, a nova sentença faz mais do que declarar. Porque a importação da eficácia depende de ato integrativo, que é a homologação da sentença estrangeira. O ato integrativo pode ser total (para importação de toda a eficácia setencial), ou parcial (para algum ou alguns dos efeitos sentenciais). Enrico Tuilio Liebman, que concorreu para certos esclarecimentos precisos, ali por volta de 1927 (LAzione per la

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delibazione, 292), por haver permanecido na distinção anzilottiana de conteúdo e sanção, não pôde analisar a delibação quanto a cada um dos cinco elementos, apesar de ser um dos mais preparados para isso, pelo menos quanto aos três elementos com que trabalhou a processualística italiana, isto é, com a classificação tripartida das ações. A noção demasiado abstrata, vaga, complexa, de sanção, obstou-lho. Tem-se de abstrair da “sanção”, noção perturbadora. Não é possível resposta global, a priori, pela diversidade mesma das eficácias sentenciais. Entre Giuseppe Chiovenda, Gaetano Morelli e Enrico Tuílio Liebman, que consideram a sentença de delibação sentença constitutiva, há diferença de conceitos: o primeiro fala de constituição de vontade do Estado, de conteúdo conforme a sentença estrangeira; o segundo, de constitutividade da eficácia (força e efeitos), tal como se concede no estrangeiro; o terceiro, de eficácia, sendo o mesmo, sempre, o seu conteúdo, porque se abstrai do próprio conteúdo da sentença estrangeira. Esse ponto, para nós, possui valor acima do direito positivo interno: ~O direito processual do Estado de recebimento “importa” a eficácia da sentença estrangeira, tal como o direito estrangeiro a concebeu; ou a re-produz, uma vez que faz a sentença estrangeira hábil à força e aos efeitos do direito processual do juiz homologante? Caetano Morelli é quem tem mais razão, e o seu artigo de 1924 representou contribuição notável à investigação científica da natureza da ação de delibação ou de homologação de sentença estrangeira. Faltou a Caetano Morelli frisar que a sentença era constitutiva integrativa da sentença estrangeira, de modo que, ao se ter de executar como sentença de condenação, ou como sentença executiva, ou mandamental, ou respeitar-se como sentença declarativa, é ilusão pensar-se que se está a executar ou respeitar a sentença da homologação — o que se executa é a respeitar a sentença integrada. Essa ilusão também vitimou Francesco Carnelutti, quando sustentou ser constitutiva a sentença de delibação para a eficácia executiva e declarativa para a força material de coisa julgada (Lezioni, 1V, 368 s.). influência do direito positivo “expresso” alemão (Ordenação Processual Civil alemã, § 328); mas a solução da questão independe do direito interno positivo.Estamos nós a construir no direito supraestatal, ou pelo menos interestatal. Nesses, a exigência da sentença e ‘homologação e a dispensa, sendo oriundas de atos legislativos internos, supõe que o Estado pudesse não dispensar nunca a homologação. Se a sentença estrangeira possui força ou efeito que o direito do Estado a que pertence o juiz homologante não tem — essa força, esse efeito, não se pode produzir; mas a eficácia da sentença estrangeira integrada é sempre a da sentença estrangeira, antes da integração. Ora, se o Estado da importação confere outra força ou outro efeito, é força ou efeito seu, que nada tem com a homologação, força ou efeitos que ele cola à sentença estrangeira como fato jurídico, ato jurídico, negócio juridico, ou o que quer que seja, e não força ou efeito do julgado estrangeiro integrado em sua eficácia. Alguns efeitos anexos podem ocorrer. (a) A Lei ne 2.615, de 4 de agosto de 1875, art. 6ª, §2ª, autorizou a regulamentação da execução das sentenças es-trangeiras; e foi elaborado por Lafaiete Rodrigues Pereira o Decreto nº 6.982, de 27 de julho de 1878, que adotou o critério da reciprocidade. Depois foi criado o exequatur para a falta de reciprocidade (Decreto nº 7.777, de 27 de julho de 1880). A república acabou com o exequatur por falta de reciprocidade e instituiu a homologação, quer dizer desfez a limitação da ação de cumpra-se e da ação de execução de sentença, aliás limitação artificial, fictícia, em muitos casos. A Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, art. 12, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para ho-mologar as sentenças dos tribunais estrangeiros, como parte integrante da competência (Constituição de 1891, art. 59, 1, d) para julgar reclamações entre Estados estrangeiros e o Brasil (fricção interestatal). Pedro Lessa (Do Poder Judiciário, 74-78) não dissera palavra sobre os elementos da sentença. João Mendes de Almeida, que vira (Direito Judiciário Brasileiro, 524) diferença entre força executiva e efeito executivo e quase isolara a ação mandamental (543), não descera à questão de definir “exequivel” (Lei nº 221, art. 12, § 4v), tratando-se de sentença estrangeira. (b) a) Quanto ao efeito executivo da sentença de condenação, é ele o quod plerumque fit e fora de dúvida. b) Quanto ao elemento mandamental, nunca se admitiu que a força ou efeito da sentença estrangeira de mandamento se operasse no Brasil, sem homologação ou sem rogação. A parte a questão interestatal da competência, o arresto e o sequestro, como a caução e o depósito, teriam de ser pedidos por meio de cartas rogatórias, e não por meio de homologações de sentença.

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c) Quanto ao elemento executivo, ou se trata de adiantamento da execução, tal como se dá nas ações executivas de títulos extrajudiciais, ou se trata de sentença com eficácia de execução (provavelmente mandamental), ou como efeito executivo (execução de sentença), a jurisprudência foi acorde em exigir a homologação. Temos, pois, desde já, que a palavra “exequíveis” alude a’ “execução” de quaisquer sentenças em ações de condenação, ou em ações mandamentais. Restam os casos do elemento declarativo, do elemento condenatório e do elemento constitutivo. O adiantamento é possível, desde que caiba segundo o direito processual brasileiro. d) Quanto ao elemento declarativo, aí o problema assume aspectos, teórico e prático, mais graves, a) Teórico, porque põe sobre o tablado questão precisa — a de ser “exequibilidade”, no sentido de que antes falamos, posto em texto legal, além da exequibilidade da sentença executiva, ou da sentença condenatória, ou da sentença mandamental, a da sentença declarativa. Propôs A contra B, em Londres, ação declarativa e obteve sentença favorável em que se declarou existente (ou inexistente) relação jurídica entre as partes. A deseja exercer no Brasil a ação de cominação, ou a de condenação, que resulta da sentença favorável na ação declarativa típica. Se a homologação é necessária às sentenças declarativas, precisa ele de fazer homologar a carta de sentença antes de ação cominatória, ou a de condenação. b) Prático, porque o Supremo Tribunal Federal baralhou, por muito tempo, e ainda hoje, os conceitos de declaração e constitutividade, chamando declarativas a algumas sentenças constitutivas. E de assentar-se que as sentenças nas ações declarativas precisam de homologação sempre que se lhes pretende a força comum a todas elas — a de coisa julgada material, e sempre que se lhe queira algum outro efeito. e) O mesmo havemos de entender quanto às sentenças nas ações de condenação. J) Quanto ao elemento constitutivo, sem conhecimento das classes das ações, o Supremo Tribunal Federal e as justiças locais exigiram a homologação às sentenças sobre estado e capacidade (Supremo Tribunal Federal, 21 de setembro de 1899, D 81/58; 1º de agosto de 1916, Ri, V/120; 29 de agosto de 1917, RT 11/297; 27 de maio de 1922, RD 65/544; 9 de janeiro de 1924, R.STF 65/103; Corte de Apelação do Distrito Federal, 27 de maio de 1921, RD 65/544); sendo de notar-se que a antiga Corte de Apelação do Distrito Federal por vezes tentou limitar o sentido de “exequíveis” às sentenças de condenação, entendendo que as sentenças estrangeiras sobre estado e capacidade independiam de homologação (18 de janeiro de 1929, RD 93/313; 12 de novembro de 1923 e 15 de abril de 1926 81/174; 25 de outubro de 1927, 86/386). Nenhum apoio em lei tinha isso. g) O problema está todo nas sentenças constitutivas. A discriminação liminar é que havemos de dever o melhor meio metódico de o resolvermos. Referimo-nos à noção de força e efeitos operados no país da sentença e para todo o mundo e força e efeitos importados. Aqueles são como os corpos dos viajantes: não passam pelas alfândegas. Passam esses, e têm de ser verificados. A homologação e o despacho fiscal têm as suas parecenças. Na doutrina, Samuel Martins (Execução das Sentenças estrangeiras no Brasil, 104) estava à procura de distinção quando recomendava conhecer-se, previamente, se o julgado sobre o estado e a capacidade tinha efeitos patrimoniais. Exemplificava: arrecadação, modificação ou extinção de obrigações. Aí, exigia a homologação. Era a busca do que ele não sabia bem o que seria, o elemento executivo, não-preponderante, da ação constitutiva, erradamente classificada por ele e por Lafaiete Rodrigues Pereira (Decreto nº 6.982, art. 11) como “declarativa”. Contra essa atitude de Samuel Martins esteve Oscar da Cunha (A Homologação da Sentença Estrangeira, 77 s.): qualquer sentença precisa ser homologada. A verdade dava a mão a um e a outro. Todas as sentença estrangeiras precisam de homologação, está certo; alguns efeitos se operam independentemente da homologação, também está certo. Mas jque efeitos são esses? Não os efeitos anexos também ditos próximos, ao lado, vizinhos, os Nebenwirkungen, ainda se a favor e contra todo o mundo, inclusive para as autoridades. Mas há força constitutiva e efeito constitutivo que se operam erga omnes, sem dependência de lugar. Em qualquer caso, é o direito estrangeiro que responde se a sua sentença tem força formal de coisa julgada e qual a força além dessa, e os efeitos que tem. Nunca o direito brasileiro pode dar mais força material de coisa julgada ou mais efeito à sentença estrangeira do que ela tem. Se isso parece ocorrer, é consequência de corte por invocação de ordem pública (aplicação da lei de direito material, e não da lei de direito formal). Os efeitos anexos dependem das regras de direito internacional privado. A Corte de Apelação do Distrito Federal tentou distinguir a sentença em sua força e em seus efeitos e a sentença no que somente atesta situação de fato (9 de novembro de 1915, RD 40/164); mas englobou força e efeitos sentenciais já consumados, que não vêm mais com a sentença, e

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sim com a pessoa, e efeitos que se hão de produzir no Brasil. (c) A verdadeira solução, no estado atual do nosso direito processual, é a seguinte: a) Ao Supremo Tribunal Federal, diante de algum pedido de homologação de sentença estrangeira, não cabe dizer que tal sentença, por sua natureza, não precisa de homologação. Atitude diferente, na falta de regras jurídicas de exceção, como foram as dos arts. 10, 11 e 13 do Decreto nº 6.982, seria extremamente perigosa, pelas razões seguintes: a) todas as sentenças, ainda as declarativas, têm certo elemento embora ínfimo, de executividade, ou de mandamento; b) para se adotar critério fixo, ter-se-ia de marcar certo grau de intensidade desses elementos nas sentenças constitutivas e declarativas, o que exigiria estudo de cada uma das ações declarativas e constitutivas dos diferentes sistemas jurídicos, de modo a serem discriminadas as que exigiriam e as que não exigiriam homologação, e isso a ciência ainda não fez; c) não seria de vantagem a marcação da letra b), por existirem diferenças entre os interesses atingidos pelos elementos executivos e mandamental, criando outro problema — o do escalonamento desses interesses. b) O problema aparece quando se apresenta a carta de sentença ou certidão autenticada, como ato estrangeiro, quer ao Supremo Tribunal Federal, quer às outras justiças, e se pretende que lhe seja dispensável a homologação. Aqui, tem de ser apreciada a sentença como ato jurídico, talvez mesmo como fato jurídico; porém levanta-se a questão de se saber qual a projeção da sentença somente como ato jurídico e onde começam os efeitos e força que são da sentença. Naturalmente, o juiz logo repeliria qualquer efeito executivo e talvez pensasse que aí estaca a exigência da homologação. Houve certa tendência dos escritores e juizes brasileiros para tal atitude, que também prevaleceu, até certo tempo, noutros países: e. g., na Itália, com G. Fusinato (Esecuzione delie sentenze straniere, 121 s.) e Enrico La Loggia (La Esecuzione delie sentenze straniere, 271 s.). Neste século, os juristas tatearam, porque lhes pareceu que não só o elemento executivo era relevante para o país de importação mas faltavam-lhes meios de estudo técnico da força e efeitos da sentença. Na própria Itália, haviam Pasquale Piore e Dionisio Anzilotti (1901) começado a demolir a velha teoria e a construir a da necessidade, sempre, da delibação. O último pretendia que a distinção entre conteúdo e entre sanção bastasse como chave do problema. Puro engano; e os resultados, a olhos vistos, foram nenhuns, c) Quanto à coisa julgada material, o argumento para se reputar eficácia dependente de homologação é o de não ser força ou efeito comum aos títulos; é específico da sentença como vontade do Estado. Não há dúvida que o argumento pesa. A força material da coisa julgada atinge a própria atividade processual do outro Estado, como objeto de exceção ou de base para outra ação (a de condenação, por exemplo). A força e o efeito de coisa julgada material têm de depender da homologação; ou se haveria de reconhecer à sentença estrangeira a atuação na ordem processual do outro país. Estranhamos não termos encontrado essa razão, tão forte como é apontada nos tratados e monografias. A preclusão e a força material nasceram fora. A palavra “exequíveis’ empregada em dois sentidos nos sistemas jurídicos processuais de alguns países e no Brasil, obrigou os juristas, a respeito do conteúdo, a distinguir da eficácia executiva em senso próprio a eficácia executiva em senso impróprio. Com isso, apenas se aludia ao desconhecimento das eficácias de declaração, de constituição, de condenação, ou de mandamento, que acaso exigissem o exame pelo país de importação. Na falta de pesquisa científica, deixou-se que os casos forenses, através dos julgados, fossem elaborando a doutrina (casuistica jurídica, pluralismo na revelação da regra jurídica). Verdade é, porém, que o direito processual desses países ainda não havia explorado suficientemente o terreno dos efeitos não-executivos, e da dose executiva nas sentenças não-executivas, para que se pudesse compor a solução satisfatória. Deixamos de lado, no assunto, as telas de peneira que os legisladores de outros povos interpuseram às sentenças estrangeiras, para dizerem, de antemão, com critério teoricamente arbitrário de determinação, quais os efeitos que precisam da homologação da sentença. No Brasil, também, os juizes não conseguiram reduzir a enunciados claros os casos de sentença estrangeira que não precisavam de homologação; e o art. 15, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, veio, ainda mais, turvar o assunto. Mas sempre se julga bem compreendendo-se o fio histórico e atendendo-se à posição sistemática de cada instituto. Toda força e todo efeito que o título estrangeiro possa ter, dentro do seu pais, a sentença estrangeira tem. Ela é título: e um plus. A esse plus é que se exige o exame, para eficácia dentro do país de importação. O único efeito que tem a sentença estrangeira, como sentença, é o de produzir nos países que não são aquele em que ela foi proferida, a favor de quem dela precisa e a pode invocar, a pretensão á homologação. A essa pretensão corresponde a ação de homologação. Os próprios prazos extintivos — da pretensão de direito material, que serviu

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de base àsentença, da pretensão à homologação e da pretensão à actio iudicati, ou outra de produção de eficácia da sentença, ou do simples cumprimento do mandado — são diferentes. A ação que emana da pretensão à homologação não é a ação da causa em que se proferiu a sentença homologanda. E a ação fundada em documento, com o fito de conferir a esse título a produção de eficácia de sentença dentro do pais. A maior parte dos requisitos são pressupostos processuais, porque se prescinde de qualquer indagação do mérito da ação primitiva. As sentenças favoráveis, proferidas em ações de separação judicial, divórcio, nulidade e anulação de casamento são constitutivas. Precisam de homologação (Supremo Tribunal Federal, 5 de junho de 1946, RJB 79/132, e 14 de outubro de 1948, AJ 90/375; Conselho de Justiça do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 13 de fevereiro de 1947, RF 113/132; absurdo, nos conceitos a respeito de eficácia das sentenças e homologação, o acórdão da 6ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 3 de dezembro de 1948, RT 178/197, RF 125/513). Sempre que, com a sentença declarativa, se quer eficácia constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva, portanto por ter a decisão qualquer dessas eficácias imediata (4) ou mediatamente (3), é de mister a homologação. Idem, quanto à força mesma. A eficácia que se pretende é a eficácia importada; portanto, é preciso que se alegue e prove ter carga suficiente de eficácia, segundo o direito que foi aplicado, a sentença estrangeira (cf. Supremo Tribunal Federal, 19 de agosto de 1948, RT 121/396). O que interessa, para se firmar que a sentença sobre estado das pessoas precisa ser homologada no Brasil, é saber-se se se quer algum efeito no Brasil. Efeito a que se alude sem ser efeito que venha alterar a juridicidade no Brasil é efeito que concerne à pessoa e só atinge a pessoa e o que se passou no sistema jurídico estrangeiro. Se a sentença é sobre desapropriação de bem sito no estrangeiro, ou sobre negócio jurídico voluntário ou compulsório de bem subordinado à lex rei sitae estrangeira, não é sentença que se haja de homologar se, por exemplo, tem de ser inserta nos autos de ação de partilha de herança para se computar no cálculo o valor da prestação recebida ou a ser recebida. Se a sentença estrangeira é sobre filiação de pessoa, estrangeira, que se diz ser filho, ou que a pessoa estrangeira diz ser seu filho, não precisa de homologação; salvo se a pessoa fora considerada no Brasil — por ato judicial, ou negocial, ou conforme registro — filha de outrem, porque então o efeito teria de ser importado para atingir situação existente no Brasil. Se a sentença estrangeira é de divórcio e o casamento foi feito no Brasil, ou se há filhos brasileiros, ou domiciliados no Brasil, a que a sentença se refira, ou se um dos cônjuges é de nacionalidade brasileira, a sentença há de ser homologada para que o juiz brasileiro possa, por exemplo, atender quanto aos poderes paternos e maternos. Se a sentença é sobre nulidade ou anulação de casamento e o casamento foi celebrado no Brasil, ou um dos cônjuges é domiciliado no Brasil, ou tem filho domiciliado no Brasil, a homologação é necessária para que se proceda a qualquer ato no Brasil, e. g., ato de registro de imóvel, ou direito de uma das partes a tomar parte, como cônjuge, em sessões de sociedade, ou em clubes. Se nenhum efeito da sentença é importado, como se os conjuges, estrangeiros e domiciliados no estrangeiro, se divorciaram, e volveram solteiros, ou casados em novas núpcias no estrangeiro, a homologação seria de manifesta superfluidade. Estrangeiros que alhures se divorciaram e não estavam sujeitos àlei brasileira ao se divorciarem, podem vir (ou tornar) ao Brasil e aqui permanecerem solteiros, ou casarem-se no Brasil ou no estrangeiro. Tudo se passa sem qualquer repercussão na ordem jurídica brasileira. 3. Homologação de sentença estrangeira e rescisão de sentença. A homologação de sentença e a ação rescisória tém de comum serem exames de sentenças; mas, enquanto essa pode, em certos casos, invadir o julgado, aquela se mantém por fora. Não se diga que a não-produção de eficácia devido ã ordem pública e aos bons costumes é invasão; de modo nenhum: é mérito da ação de homologação, que repele essa eficácia como qualquer juiz repeliria a produção de efeitos da lei estrangeira. Alias, esse corte de eficácia, ainda quanto a leis estrangeiras, é sempre possível, qualquer que seja a ação. Não só esse corte: o corte, por infração de regras de direito interestatal e, a fortiori, de regras de direito das gentes. Em ambos os casos, falta ao magistrado estrangeiro autoridade para o título mesmo. Foi Caetano Morelli (Giudizio di delibazione, Rivista di Diritto Internazionale, 1924, 395-404), que viu, senão primeiro, pelo menos de modo claro e definitivo, a autonomia material e processual da ação de homologação, tentando, já àquele tempo, classificá-la como ação constitutiva, de sentença igualmente constitutiva. Apenas não distinguia da ação constitutiva pura a constitutiva integrativa, a simplesmente integrativa. Por seus argumentos, é

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de crer-se que pensava ele em constitutiva pura. Já se sabe mais do que isso hoje em dia. A homologação reconhece à sentença estrangeira toda a eficácia (força e efeitos), que a sentença estrangeira teria no seu país, salvo se a ordem pública e os bons costumes se opõem (outra questão) ou não se podem produzir no pais de importação (nosso Tratado de Direito Internacional Privado, 1, 255-292); e habilita-a àquela que a lei brasileira lhe cole, a mais. Esse elemento declarativo (“reconhece”, “habilita-a”, dizemos) é superado pelo elemento constitutivo, porque a produção do elemento que se esperava à sentença estrangeira cessou à fronteira do país de exportação. Ora, se essa produção já se tivesse realizado de todo, a homologação seria supérflua. Há, certos, casos dessa natureza. E aí está o problema. Daremos em resumo as nossas pesquisas de longos anos, nesse terreno. A sentença constitutiva integrativa da ação de homologação integra o ato estrangeiro, fazendo-o, aqui, eficaz; integra-o, não constitui eficácia (força e efeitos). Não produz, abre a porta à produção de eficácia — de (a) eficácia que tenha de ser no país e seja (b) eficácia de direito processual. Ficam fora, portanto (c), os efeitos anexos de direito material e os (d) efeitos que se tenham produzido fora. Donde: a) O juiz somente se deve preocupar, para exigir a homologação, com força e efeitos que tenham de ser produzidos dentro do país: a execução forçada (executiva); a coisa julgada material (força e efeito declarativos); a atuação nos registros públicos ou em órgãos instrumentais de execução (força e efeito mandamentais); a nulidade de ato que esteja a produzir efeitos positivos no pais (força e efeito constitutivos), e. g., se o casamento foi realizado no Brasil ou um dos cônjuges é domiciliado no Brasil; a legitimação à execução ou outro efeito em virtude de sentença condenatória (força e efeito de condenação). b) O juiz, para saber se determinada sentença precisa de homologação, somente deve cogitar de verificar se a força ou o efeito, que se lhe pede, é processual. A coisa julgada material é força ou efeito de direito processual. A atuação em registros públicos, levantamento de quantias, ou de medidas decretadas por autoridades (não só judiciárias) do país etc., é de direito processual. A força ou efeito da sentença de nulidade do casamento ou de qualquer negócio jurídico é de direito processual. A força da sentença executiva é de direito processual. Os efeitos de coisa julgada material e executiva da sentença de condenação são efeitos de direito processual. Aliás, antes, logicamente, disso, está a preclusão, e toda preclusão quanto a resoluções judiciais é processual. c) O juiz nunca se pode prestar a reconhecer força ou efeito executivo, no Brasil, da sentença estrangeira: portanto, já se exclui dispensa de homologação para qualquer força ou efeito executivo, qualquer que seja a sentença. Assim, a) a qualquer sentença executiva, de cognição completa, ou incompleta, com adiantamento, ou não, da execução, b) a qualquer sentença, ordinariamente a de condenação, que tenha efeito executivo. O Supremo Tribunal Federal nunca pensou de outro modo, quer quanto à força executiva (14 de outubro de 1925, RD 78/11), ainda que provisória a execução (26 de junho e 29 de dezembro de 1915, RJ, II, 473), quer quanto ao efeito executivo. As sentenças de partilha, pelo elemento executivo, têm de ser homologadas no Brasil (Supremo Tribunal Federal, 9 de janeiro de 1924, RSTF 65/103; 14 de outubro de 1925, RD 78/11). As vezes, os juizes invocam o elemento declarativo (e. g., haver herdeiros brasileiros, porém não haver bens no Brasil), mas isso deforma a ação de partilha e entra no mérito da sentença estrangeira, em matéria que não diz respeito ao Brasil. Tem-se de examinar a competência, legislativa e jurisdicional, do país estrangeiro; não o que foi julgado. Em tais circunstâncias, cabe ao Tribunal apontar a força ou o efeito que se pretende no Brasil. A eficácia fora do .Brosii somente se leva em conta se atinge a eficácia que há de ter no Brasil. E. g., se o que resta de bens não basta ao pagamento. d) O juiz nunca se pode prestar a reconhecer força ou efeito mandamental, no Brasil, da sentença estrangeira. Estão, pois, excluídas da dispensa de homologação todas as sentenças mandamentais e todas as sentenças cujo efeito mandamental se pretenda no Brasil. A jurisprudência é assaz escassa. Em todo o caso, o Supremo Tribunal Federal negou homologação a sentença estrangeira porque a avaliação dos bens não foi feita, como deveria ser, no Brasil (25 de agosto de 1923, RSTF 57/135; e 28 de junho de 1924, RD 75/256; 80/100), posto que haja errado no mês seguinte (19 de julho de 1924, RSTF 77/143). Nenhum “mandado” estrangeiro se cumpre no Brasil; ou se confere à sentença, mediante homologação, a força ou efeito mandamental. E. g., a 27 de abril de 1927 (RD 85/460). O Supremo Tribunal Federal teve de enfrentar caso típico: a nomeação do regulador da avaria grossa por tribunal estrangeiro. O caso não depende de princípios a priori. A qualificação do ato de nomeação do regulador é dada pela legislação do Estado a que incumbe a regulação da avaria grossa. Pode não ser ato processual; nem, ainda mesmo, sentença. Se é ato de resolução do juiz, precisa de homologação: o elemento mandamental é

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evidente; o ajustador é perito do juiz, ainda que descesse à descategorização de fazê-lo da livre escolha do armador (sem razão, quanto a essa descategorização, Hugo Simas, Comentários, VIII, 457), pois os seus atos ficam sujeitos à finalidade dos atos concernentes à repartição das avarias. A descategorização seria quanto à fonte da nomeação, e não quanto à função. Assim, a proposição do acórdão de 1927, que, de modo geral, estatui não precisar de homologação o ato de nomeação do regulador da avaria grossa, pecou em dois pontos: a) não atendeu à qualificação do próprio Estado do juiz nomeante, ao mesmo tempo que desatendeu à qualificação do Brasil; b) não particularizou qual a força ou efeito que se pretendia no Brasil. Se o ato é judicial, a homologação é de mister; se não é, qualquer força ou efeito do titulo depende de ser reconhecido pelos juizes em geral como produtor dessa força ou desse efeito no Brasil. A distinção é de grande valor prático. Desloca-se o problema. e) O juiz nunca se pode prestar a reconhecer no Brasil a força ou o efeito de condenação, sem homologação prévia, porque toda condenação é a pagar, a restituir, à prisão, a fazer, a não fazer, a declarar, a não declarar. E o tipo da sentença, a que os efeitos complementam. Depois dela, há algo de muito importante, de que se precisa. Não é golpe já deferido, nem simples ameaça da espada de Dâmocles; é a certeza de que a espada tem de cair. Essa certeza condana. O golpe já é inevitável, tanto que só sentença desconstitutiva (e. g., a do juízo rescindente) poderia suspender a mão que condenou. Essa mão levantada não baixa ao sair do seu país, porque baixar é força e efeito, fora; nem, sequer, ela se retira: continua como está, parada, pela impossibilidade de movimento do juiz do Estado A no Estado 8, e não entra no Estado 8. Entra o título, não a força ou o efeito; entra (para aproveitarmos a imagem) a cártula, o diploma, a carta, em que se descreveu o gesto — não a mão, o imperium. Portanto, não entra o efeito executivo da sentença de condenação, conforme foi dito à letra c); nem, a fortiori, a força da condenação, especifica da sentença mesma. Nem se podem produzir, antes da homologação no Brasil, os efeitos anexos da sentença condenatória; e. g., hipoteca judiciária. fi O juiz nunca se pode prestar a reconhecer a força ou o efeito da declaração, no Brasil, da sentença estrangeira, sem homologação prévia; porque a declaração tem de partir de quem possa declarar e o reconhecimento da força ou do efeito declarativo estabeleceria a permissão de se apresentar a sentença para a ação de preceitação ou para outra ação posterior. Tanto mais quanto a ação declarativa pode declarar, implicitamente, a pretensão executiva, ou a de condenação, ou a mandamental, ou a constitutiva — razão por que erraram todos os que entendiam fundar a distinção entre a ação declarativa e as outras (principalmente a de condenação) na diversidade da pretensão de direito material (a declaração pode versar sobre a “obrigação”, tal como a condenação, cp., a respeito, Alfredo Rocco, La Sentenza civile, 140 5.; Piero Calamandrei, Studi sul processo civile, 1, 180 s). g) Finalmente, o juiz não pode reconhecer a força ou o efeito constitutivo da sentença estrangeira, dentro do Brasil, sem prévia homologação. Aqui, o Supremo Tribunal Federal tateou anos a fio, muitas vezes em desesperado lutar com a deficiência da cultura jurídica processual. Afastemos, desde logo, a invocação de ordem pública e dos bons costumes, ou a de não haver, no país, a força ou o efeito; porque esse problema é outro problema, concernente à importação da lei estrangeira (nosso Tratado de Direito Internacional Privado, 1, 255-292). A antiga Corte de Apelação do Distrito Federal, a 27 de maio de 1921 (RD 65/544), feriu um dos pontos quando disse que a sentença sobre estado e capacidade das pessoas precisa de homologação para ter efeitos no Brasil. Efeitos (e força), claro, que se introduzam no Brasil, ou que introduzam negação de força ou efeitos pro-duzidos no Brasil. Assim se definem efeitos (e força) no Brasil. O Supremo Tribunal Federal, a 1ª de agosto de 1916 (RF 5/120), enunciou que da homologação precisa a sentença de interdição, proferida no estrangeiro, para produzir força ou efeitos no Brasil. Entendamos: se o curador do incapaz quer pedir autorização para venda de bens, ou para que se reconheça em juízo, ou em qualquer ato que dependa do incapaz, a sentença estrangeira de interdição. Outrossim, se se pretendem força ou efeitos no Brasil de sentença de investigação da paternidade (cf. Supremo Tribunal Federal, 29 de agosto de 1917, RF 11/297). Os suplementos de idade e emancipações, em virtude de resolução judicial, ainda homologatória, precisam de homologação para efeitos no Brasil (Supremo Tribunal Federal, 5 de setembro de 1914, DO de 24 de outubro). Até para as averbações ou os cancelamentos de averbações em papéis de crédito, têm de ser homologadas as sentenças estrangeiras (23 de dezembro de 1914, DO de 9 de maio de 1915). Trata-se de efeitos mandamentais ou dependentes de força constitutiva ou de efeito constitutivo. Não se produzem no Brasil, também, antes da homologação, os efeitos anexos, posto que só os relativos a regras jurídicas do Brasil. Decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a 6 de novembro de 1943 (DJ de 2 de maio de 1944, 1822), que a adoção “ratificada” (?) por tribunal estrangeiro (in casu, alemão) foi objeto de sentença homologatória e, pois, não precisa ser homologada no Brasil. O acórdão partiu de generalização desabusada do conceito de sentença homologatória, como se todas as sentenças homologatórias fossem de uma só classe e não-sentenças (9. Além

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disso, invocou, sem razão de ser, regras juridicas sobre homologação de “sentença” estrangeira, como se se apli-cassem aos processos estrangeiros, uma vez que o processo da adoção, segundo o direito alemão, tende a exame judicial, que não é só integrativo da forma. Nem cabe pensar-se em “ratificação” (7), nem em mero arbítrio, ou graça. Além de integrativa, a Bestâtigung do Código Civil alemão, § 1.754, concerne àeficácia e firma a presunção da validade da relação jurídica que o negócio jurídico criou (Franz Schlegelberger, Die Gesetze Ober die Angelegenheiten der freiwilligen Gerichtsbarkeit, 1, 528); donde certa eficácia quanto ao ônus da prova (Georg Kuttner, Rechtsvermutungen aus Akten der Fg., iherings iahrbúcher, 61, 177). Tratar-se tal decisão como integrativa de documento (negócio jurídico), não entrando no plano das sentenças constitutivas integrativas, seria menos certo, porém não absurdo. Mas reduzir a tal categoria todas as sentenças homologatórias — inclusive as homologatórias de sentença estrangeira, portanto — é aplainar o inaplainável. Ora, a Bestàtiqung é sentença; e sentenças estrangeiras precisam de homologação. Aliás, a homologação judicial é, de regra, sentença constitutiva integrativa. O problema 1) da homologação das sentenças estrangeiras supõe resolvidos os A) problemas da eficácia das sentenças estrangeiras no espaço (interestatalmente); e fica em frente aos problemas B) similares, de eficácia das sentenças brasileiras no estrangeiro, que nos escapam, pois que estamos a tratar do direito processual brasileiro, e não da eficácia das sentenças brasileiras no estrangeiro, e diante do problema 2) dos respectivos pressupostos para exportações da sua eficácia. Até onde poderiam ir na determinação dos pressupostos de A) e de 1), o legislador brasileiro, e, na determinação dos pressupostos de 8) e de 2), o legislador estrangeiro, depende das regras supraestatais, portanto do direito das gentes, ou do direito negocial interestatal. § 131. Imprescindibilidade da homologação 1. Eficácia de sentenças estrangeiras. Cartas de sentença, dizia-se, e não certidões (Supremo Tribunal Federal, 23 de dezembro de 1914, DO de 9 maio de 1915, 5189, e farta jurisprudência posterior); posto que, a 16 de setembro de 1927 (RD 89/556), 17 de julho de 1925 (RD 77/256) e 23 de setembro de 1929 (Aí 13/17), se tenham admitido certidão e peças autenticadas equivalentes à carta de sentença. Se tal é a qualificação estrangeira, não há outro caminho; aliter, se o direito estrangeiro tem carta de sentença (a coisa, não o nome). a) Antes de homologada, a sentença estrangeira não tem aqui, eficácia de sentença. Falta-lhe, dentro do nosso ambiente jurídico, qualquer força ou efeito de ato jurisdicional (em contraposição a ato estatal não-jurisdicional). Falta-lhe, pois, eficácia declarativa, ainda que seja sentença declarativa; eficácia constitutiva, ainda que seja sentença constitutiva (os que casaram no Brasil, ainda casados são, a despeito da decretação da nulidade alhures); eficácia condenatória, ainda que seja ela sentença de condenação; eficácia mandamental, posto que seja sentença de mandamento (a penhora no Brasil continua, e só se levanta depois de homologada a sentença do juiz estrangeiro que a rogou); eficácia executiva, ainda que se trate de sentença executiva (a sentença em ação de execução de declaração de vontade depende da homologação, como as demais sentenças). O que se tem, com a sentença estrangeira, é título estrangeiro ainda desprovido de qualquer eficácia de ato jurisdicional; e tal inidoneidade somente cessa quando passe em julgado a sentença proferida na ação de homologação. E então que aquela entra na classe das sentenças eficazes na ambiência nacional, à custa da sentença nacional que a reveste, que a homologa. b) O valor de documento, a sentença estrangeira possui-o; mas é preciso não se sair da linha — verdadeiramente sutil — que separa a eficácia da sentença estrangeira, como ato jurisdicional e a eficácia puramente documental. Porque ela ainda não tem aquela, não se pode falar de eficácia de coisa julgada material ope actionis ou ope exception is; nem mesmo de obstáculo a que se discuta, no juízo brasileiro, a questão. A eficácia puramente documental não vai além de elemento com que o documento — que também é sentença — concorre para o livre convencimento do juiz. Falta-lhe aquela obrigatoriedade, que é própria da coisa julgada material, muito embora a eficácia documental se tenha de circunscrever aos limites subjetivos e objetivos dessa. O exemplo mais conspícuo é o da sentença estrangeira, condenatória ou declarativa, a favor de credor, na qual se precise o quanto devido (“dívida certa e líquida”). Tal documento de “dívida certa e líquida” satisfaz o outro requisito da ação executiva de título em instrumento público. A cognição incompleta, que aí está, basta ao exercício da ação executiva. Mas, apresentada contestação, não está o juiz obrigado à coisa julgada material da sentença estrangeira: é-lhe permitido, no seu livre convencimento, atender a outras provas, podendo completar a cognição — ou pela negação da incompleta cognição anterior (+ ½ — ½ = O) ou pela confirmação (÷ ½ + 1/2 = 1). Nunca lhe seria dado fazer

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isso, se homologada estivesse a sentença. Na audiência de instrução e julgamento, até se encerrar o debate, a exceção de coisa julgada material, fundada na sentença estrangeira recentemente homologada, é oponível. Nada obsta a que se oponha no intervalo entre a audiência de instrução e a de publicação da sentença, ou a que se oponha no recurso, para que o mesmo juiz recorrido, se for o caso disso, ou o juízo ad quem, atenda, como deve, à coisa julgada material. c) Transita em coisa julgada a sentença que somente atribuiu à sentença estrangeira a eficácia documental, antes da homologação dessa — a homologação posterior não perfaz o pressuposto de ofensa à coisa julgada, para a ação de rescisão da sentença. Porque ainda não havia a eficácia de sentença; portanto, não houve duas sentenças, sem o que seria absurdo pensar-se em infração. Infração cometeu o juiz homologante ao conferir eficácia, na ambiência nacional, à sentença estrangeira, depois de haver transitado em julgado sentença de juiz nacional. Rescindível é a sentença homologante, e não a outra. d) Quando a sentença estrangeira é constitutiva (nela, o valor probatório é precípuo), precisa de homologação, porque, se assim não fosse, vincularia, sem a sentença homologatória, o juiz nacional. Aqui, surge a diferença entre eficácia documental ou eficácia probatória e a eficácia constitutiva. Os juristas e juizes costumam confundi-las, com extremo prejuízo para os julgamentos. A sentença da interdição e a de falência, por exemplo, precisam de homologação, porque são constitutivas. A eficácia constitutiva é eficácia da “sentença” como ato jurísdicional. e) Os atos de jurisdição voluntária são atos que permaneceram com os juizes quando se verificou que o seu conteúdo contencioso era mínimo, ou raro, porém convinha retê-los com os juizes. Ficou o elemento competencial, dito formal, a despeito das sugestões de passagem a outras autoridades, ou à elaboração livre, privada, devido ao seu elemento material. Desde que o Estado estrangeiro não permitiu que se dispensasse a intervenção do juiz, “qualificou” a sua resolução como resolução judicial, em forma de sentença; e como tal deve ser tratada. Nela, há aplicação de lei, após pedido ao juiz, e função judiciária. Se tem, ou não, a sentença, que então se profere, força de coisa julgada material, não importa para se decidir a presente questão, que é a de ser preciso, ou não, que se homologue a sentença estrangeira de jurisdição voluntária. Porque a eficácia de coisa julgada material não é a única eficácia das sentenças, ainda na jurisdição tipicamente contenciosa. Quando, falando de atos no juízo contencioso, pensamos em força de coisa julgada material, apenas acentuamos id quod plerum que occidit. Demais, os atos chamados de jurisdição voluntária não são, sempre, atos desprovidos de judicialidade material (contenção, no sentido em que se emprega a palavra “contenciosidade”) e alguns são atos de contenciosidade eventual, se não mesmo de contraditório eventual, tanto quanto há processos contenciosos que perderam a angularidade — os processos inaudita altera parte, em que, no entanto, seria possível, se não de lege ferenda aconselhável, o contraditório. 2. Qualifica çáo das decisões estrangeiras. Ainda que administrativos os tribunais, se resolvem questões jurídicas que possam ter atuação no Brasil, sejam eles de jurisdição dita contenciosa sejam de jurisdição dita voluntária (Supremo Tribunal Federal, 31 de janeiro de 1933, Ai 29/248), a decisão deles precisa de homologação. A qualificação pelo Brasil basta, como basta a qualificação pela lei estrangeira. 3.Dados históricos. A competência do Supremo Tribunal Federal foi reconhecida pela Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, que criou a homologação, depois do exequatur do Decreto nº 7.777, de 27 de julho de 1880, e do cumpra-se do Decreto nº 6.982, de 27 de julho de 1878. No fundo, o que se operou foi a captação pelo pensamento nacional da ação de reconhecimento e integração da sentença estrangeira, a nossa ação de homo-logação, que somente uns trinta anos depois a ciência européia submeteu a pesquisas e foi tida como ação autõnoma, inconfundível, de um lado, com a ação primitiva e, por outro, com a ação de execução da sentença (misto das duas sentenças). A actio iudicati, executiva, pode suceder a ela, ou não, conforme tem efeito executivo, ou não no tem, a sentença homologada. Mas a competência do Supremo Tribunal Federal, reconhecida pela Lei nº

221, não foi admitida pelos juizes sem dificuldades e discussões. A primeira questão surgida foi a de poder a lei ordinária atribuir ao Supremo Tribunal Federal competência que a Constituição de 1891 não lhe dera. Uns entendiam (Amaro Cavalcanti à frente) que apenas se explicitara o art. 59, 1, d), da Constituição de 1891; outros, que a lei ordinária criara, portanto exorbitara. Por um momento, o Supremo Tribunal Federal vacilou sobre a sua própria competência. Depois, não se discutiu mais. Compreendeu-se que a lei não é só a sua letra. Houve explicitude nas Constituições posteriores, inclusive a de 1988, art. 102, 1, II).

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Infringe a Constituição federal (e, pois, é causa para interposição de recurso extraordinário), a “execução” de sentença estrangeira sem homologação pelo Supremo Tribunal Federal (54 Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 24 de agosto de 1943, DJ de 3 de novembro, 4251). 4.Audiência das partes. As partes, que têm de ser ouvidas, são as partes contrárias na ação primitiva, segundo o conceito da legislação estrangeira, e aquelas que o sejam pelo pedido da ação de homologação segundo o direito brasileiro. Se há litisconsôrcio passivo unitário, quer segundo a lei estrangeira, quer segundo a lei brasileira (quando interesse ao Brasil a posição do litisconsorte), o Tribunal deve ordenar que se integre a contestação. Se a parte interessada não promove a citação, dá-se a extinção do processo sem julgamento do mérito. Todas as partes que têm de ser ouvidas são citadas; os litisconsortes ativos, intimados. Legitimado ativo, na ação de homologação de sentença estrangeira, é o que foi parte na ação em que se proferiu a sentença, ou seu sucessor. No caso de cessão, é o cessionário. Enquanto não se produz o instrumento da cessão, o cedente; mas, em verdade, a questão não foi convenientemente destrinçada pelos juristas: o que foi parte, ou a que interessa a eficácia da sentença estrangeira, e seria, antes da cessão, legitimado, continua com a pretensão à homologação, pretensão à tutela jurídica, desde que ainda pode ser prejudicado pela não-homologação, inclusive a ser chamado à autoria. Não se confundam a pretensão à homologação e o interesse pessoal e direto, que constitui matéria de mérito e, assim, vem depois da questão de ter, ou não, o cedente a pretensão à tutela juridica e o interesse de agir. Cumpre, portanto, separar a legitimação do cedente para a ação de homologação e a sua legitimação para a eficácia, inclusive execução, stricto sensu. O filho é pessoa legítima para se opor à homologação da sentença estrangeira de nulidade do casamento dos pais, ou à sentença estrangeira declarativa da inexistência do casamento. 5. Procurador-geral da República. A posição do Procurador-Geral da República, nos processos de homologação de sentença estrangeira, não é de parte; mas a de quem auxilia o juiz, como órgão do Estado. Por isso mesmo, oficia; não contesta. Em todo o caso, se a União é parte, ou se ocorre algum dos casos em que seria, normalmente, parte, parte é, e é, nessa condição, representada pela Advocacia Geral da União. § 132. Julgado estrangeiro, em caso de falência 1. Falência de comerciante brasileiro, domiciliado no Brasil. A fonte da regra jurídica que pré-exclui a eficácia da decretação de falência em sentença estrangeira é o direito falencial brasileiro, nas suas regras de direito processual internacional. Dominam o instituto da falência os princípios do unidade e universalidade da falência: una, em sua decretação, no processo da verificação e classificação dos créditos, na realização do ativo, na liquidação do passivo e na solução; universal, por abranger todos os bens do devedor falido e no estender-se a todos os credores. Inter-põem-se, porém, contrastando com esse propósito unificador e universalizante, os princípios da ligação da pessoa à sua lei nacional, ou à lei-conteúdo, e o da ligação dos bens ao Estado em que estão situados (forum rei sitae). Aliás, não só esses princípios; todos, ou quase todos os princípios e regras de direito internacional privado e algumas de direito internacional público (no sentido técnico, que não é o de direito das gentes). Certa doutrina estatutária tentara tudo resolver pela ligação ao estatuto pessoal, abstraindo da ligação à situação dos bens, à economia dos países. Ainda em autores do século XIX essa convicção a priori preponderava. Outra, só prendia a falência ao país da situação dos bens. Essa oposição produzia a incompatibilidade das soluções puras, e surgiam os problemas de ajustamentos (nosso Tratado de Direito Internacional Privado, 1, 209-244), semelhantes aos que se observam em todo o domínio do direito. A solução que distinguia bens móveis e bens imóveis pouco adiantou. Somente no século XX foi que se viu bem a legitimidade dos dois princípios, o reconhecimento deles como fundamentais e a necessidade de soluções técnicas. Raros foram os que perceberam que a introdução do conceito de unidade e universalidade, de direito interno, somente poderia conter solução se o conceito se interestatalizasse (tratados, convenções) ou supraestatalizasse (lei, direito das gentes). Fora dai, era perder tempo em imaginar composições sem qualquer apoio na realidade. Por outro lado, se, aqui e ali, os atos interestatais e certas revelações embaçadas de normas supraestatais contribuiam para se crer na ligação à lei pessoal (ou à lei-conteúdo), a evolução econômica no sentido da auto-suficiência industrial e agrícola dos grandes Estados avivava e continuava de avivar a atuação da lex rei sitae, como lei própria da economia mais ou menos estatalizada.

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As discussões de Giuseppe Carle (La Dottrina giuridica deI Faílimento nel diritto privato internazionale, 37-43), em 1872, e de D. J. Jitta (Levolution du droit international de la faillite, Crotius Annuaire, 1924) ainda se mantiveram em plano especulativo, porém elas e as observações de Ludwig von Bar (Theorie und Praxis, II, 553 sã e Friedrich Meili (Lehrbuch des internationalen Konkursrechts, 49-63) e outras vieram mostrar que o dado da nacionalidade do devedor era compatível com a unidade e universalidade, porém o princípio da territorialidade necessariamente o cortava, se o não destruia. Daí a simpatia por aquele, no Congresso Internacional de Turim, em 1880, no Instituto de Direito Internacional, em 1902, e no Projeto da Haia, em 1904. Observe-se, todavia, que não se formulara princípio supraestatal, nem, sequer interestatal, e sim apenas regra convencional entre Estados (cp. Gustav Walker, Internationales Privatrecht, II, 441). Na verdade, os Estados continuavam aferrados ao princípio territorial, embora contraditoriamente convictos do princípio da unidade e universalidade da falência. A despeito de tantos esforços nos congressos e institutos, o problema não amadureceu, politicamente, para a interestatalidade, ou, a fortiori, para a supraestatalidade. 2. Alcance da regra jurídica. A regra jurídica que pré-excluiu a eficácia da decretação de falência de Brasileiro, domiciliado no Brasil, dirige-se ao juízo coletivo da homologação das sentenças estrangeiras e a quaisquer juizes, que tenham de apreciar sentenças estrangeiras fora da ação de homologação. A sentença, em tal situação, é ineficaz; não é suscetível de qualquer força ou quaisquer efeitos no Brasil, ainda aqueles efeitos que prescindiriam de homologação da sentença estrangeira. Se o devedor é cidadão brasileiro (ou se é apátride, que perdeu a nacionalidade brasileira como a única ou última que teve), e é domiciliado no Brasil, a falência somente pode ser-lhe decretada pelo juiz brasileiro. As leis de alguns Estados adotaram o principio territorialista exatamente para reter os bens do devedor e garantir a economia nacional (República Argentina, Código Comercial, art. 1.383, e República do Uruguai, Código Comercial, art. 1.551, países que deram lições de defesa da sua economia). O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros havia aconselhado a ligação ao foro do domicilio do devedor; com razão, porque se trata de problema de direito processual internacional (competência), e não de direito internacional privado (OD 82/326; 85/161; e folheto de Solidônio Leite, Unidade e Universalidade da Falência, Porto, 1906). O princípio da unidade e universalidade prevaleceria no foro do principal estabelecimento e onde se reconhecesse, noutros países, a competência brasileira A. J X. Carvalho de Mendonça (Tratado, VIII, 459) criticou a indistinção entre Brasileiros e estrangeiros, porque incorrera no erro de crer que o problema era de direito internacional privado, mas confessou a sua simpatia pela lei territorial. Cientificamente, o problema é diferente — lex fori ou não Iex fori? Ora, a falência é ligada à pretensão a executar. Primeiro tem-se de discutir a competência jurisdicional para a abertura da falência; os outros problemas são problemas de direito internacional privado. Se não se toma essa trilha, difícil será compor-se essa música do futuro”, de J. D. Jitta. O Estado do foro, dizendo-se competente quanto aos bens sitos no Brasil ou quando o devedor for domiciliado no Brasil ou quando bens no Brasil não cubram as dívidas a pessoas domiciliadas no Brasil ou a Brasileiros, procede dentro dos princípios e em defesa dos seus interesses. Fora daí, prossegue (ou cai) na legislação dos países semicoloniais. Sobre o assunto, convém meditar a literatura argentina — desde Ernesto Quesada (Estudios sobre Quiebras, Buenos Aires, 1882) e L. Segovia (El Derecho internacional privado y eI Congreso sud-americano, Buenos Aires, 1889, 153 s.). 3. Direito concursal internacional. O Decreto nº 6.982, de 27 de julho de 1878, arts. 14-22, tratou, pela primeira vez, no Brasil, dos problemas de direito falencial internacional, e a exposição de motivos de Lafaiete Rodrigues Pereira mostrou que preocupava o governo o princípio da unidade e universalidade; mas o jurista, de espírito estendido no plano supraestatal, falava como se estivesse a redigir lei interestatal ou supraestatal. Salvou-o, porém, a educação patriótica dos homens do Império, principalmente dos juristas, dentre os quais se buscavam os diplomatas. Assim, ainda nos casos de falência decretada no estrangeiro e exequível no Brasil, a sentença estrangeira — estatuiu-se que (1) aos credores brasileiros, com garantias em móveis do falido sitos no Brasil, se permitia executarem os mesmos móveis e pagarem-se pelo produto, reunindo-se à massa somente as sobras (2) não se suspenderiam pela superveniência da sentença estrangeira de decretação de falência as ações contra o devedor, ajuizadas antes da publicação do cumpra-se ao decreto judicial, (3) seria à parte o tratamento do estabelecimento distinto e separado no Brasil, (4) nas moratórias e concordatas concedidas e homologadas nos tribunais estrangeiros (declarações de vontade!) tinham de ser citados os credores “brasileiros” (domiciliados no Brasil, entenda-se), para se obrigarem. A finura das providências ressalta ao mais leve confronto com os textos da

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legislação da República. O Decreto nº 917, de 24 de outubro de 1890, arts. 91-106, reproduziu os princípios do Decreto nº 6.982, mas aboliu o pressuposto da reciprocidade, em que se baseava a legislação imperial, e abriu a brecha para homologação da sentença do devedor estrangeiro domiciliado no Brasil, quebrando o princípio da ligação do foro do domicílio, a favor dos interesses estrangeiros, a que serviam certos “republicanos” latifundiários do sul do país. Seguiram-lhe as pegadas a Lei nº 859 e a Lei nº 2.024, de 17 de dezembro de 1908 (aliter, a Lei nº 5.746, de 9 de dezembro de 1929, art. 164), e o Código de Processo Civil, arts. 786-789. Procurou-se tirar nada menos que a dispensa da homologação se se tratava de sociedade com sede no estrangeiro, o que, antes, fora repelido e suscitara a regra expressa do art. 161 da Lei nº 2.024, que não precisava fazê-lo. O foro do Brasil éque é competente para a decretação da falência do devedor que tem o seu principal estabelecimento no Brasil ou casa filial de outra situada fora do Brasil (Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, art. 79). As sentenças estrangeiras, que abrirem falência a comerciantes domiciliados no país onde foram proferidas, produzem no Brasil, depois de homologadas, os efeitos inerentes às sentenças de decretação de falência, salvo as seguintes limitações: a) independentemente de homologação e à vista da sentença e do ato de nomeação em forma autêntica, os síndicos, administradores, curadores ou representantes legais da massa podem requerer diligências que lhes assegurem os direitos, cobrar dívidas e intentar ações, sem obrigação de prestar fiança às custas; 14 os atos que importem execução de sentença, tais como a arrecadação e arrematação dos bens do falido, somente se praticam depois de homologada a sentença e mediante autorização do juiz, respeitadas as fórmulas do direito brasileiro; c) embora homologada a sentença estrangeira de abertura de falência, aos credores domiciliados no Brasil, que tiverem, na data da homologação, ações ajuizadas contra os falidos, é permitido prosseguir nos termos do processo e executar os bens do falido situados no território nacional. 4. Dispensa de homologação. A dispensa da homologação para que se operem os efeitos, a que se refere a letra a), vem-nos do Decreto nº 6.982, e não do art. 45 do Tratado de Montevidéu, como se tem sugerido. Essa dispensa supõe que o Estado que decretou a falência seja competente, segundo as suas regras de direito processual internacional e não se haja infringido a regra jurídica sobre competência dos juizes brasileiros para todas as falências de comerciantes brasileiros domiciliados no Brasil, nem a competência dos juizes brasileiros (prevenção!) para decretar a falência dos comerciantes estrangeiros domiciliados no Brasil. Ainda que se trate de filial de estabelecimento sito no estrangeiro. 5.Concordatas. As concordatas homologadas por tribunais estrangeiros ficam sujeitas a homologação, e somente obrigam a credores residentes no Brasil, quando citados. § 133. Pressupostos da homologação 1.Regras de direito interestatal. Ressalve-se a existência de regras de direito interestatal, ou seja em tratado, ou seja em convenção. Tais regras — existindo, e não sendo inconstitucionais — passam à frente das regras jurídicas internas, mesmo porque o direito especial corta o geral, no âmbito da sua especialidade. Na dúvida, os textos do direito especial devem ser interpretados como acordes com as regras jurídicas gerais. Por outro lado, só afastam o direito geral na estrita extensão de cada regra de direito interestatal. 2.Direito das gentes. Quanto ao direito das gentes, que ésupraestatal, o respeito independe da existência de regra receptiva do direito interno. 3. Regras jurídicas processuais. As sentenças estrangeiras são homologáveis se não ofendem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, e se nelas concorrerem os seguintes requisitos: a) terem sido proferidas por juiz competente, b) terem sido citadas as partes ou verificada a sua revelia, c) terem passado em julgado e estarem

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revestidas das formalidades necessárias à sua execução, segundo a legislação do respectivo Estado; d) estarem autenticadas pelo cônsul brasileiro; e) estarem acompanhadas de tradução oficial. 4. Forma da sentença estrangeira. A forma que se exige às sentenças estrangeiras é a da lei do juiz que a proferiu. Nos casos de impossibilidade cognoscitiva (e. g., se a letra é ilegivel), pode o Tribunal exigir que se faça a prova do elemento indispensável a ser entendida. As questões de direito intertemporal sobre a lei estrangeira, regedora da forma, são resolvidas pelo direito estrangeiro, bem assim a interpretação de uma e de outra regra. A apreciação judicial é inquisitiva. A prova da sentença rege-se pela lei estrangeira, de modo que era absurdo, hoje afastado, o exigir-se, sempre, a carta de sentença. 5.Competência do juiz estrangeiro. A competência é assim a competência do Estado estrangeiro (distribuição supraestatal ou interestatal das jurisdições, 6. Supremo Tribunal Federal, 27 de maio de 1939, RF 81/387; 9 de maio de 1940, RF 84/355; e 10 de dezembro de 1941, RF 91/396), como a competência intraestatal. No último caso, o Supremo Tribunal Federal tem de verificar se a sentença existe segundo o direito processual do Estado estrangeiro e se não é nula ipso iure segundo esse direito. Fora dai, não lhe cabe pronunciar-se sobre a validade da sentença estrangeira. Se a sentença, segundo a lei estrangeira, é eivada de nulidade só decretável em ação própria, ou se só é rescindível, nada pode fazer o Supremo Tribunal Federal: está diante de sentença, e não é nula ipso iure. Se a justiça que proferiu a sentença homologanda não era competente, não se homologa tal sentença (Supremo Tribunal Federal, 16 de julho de 1940, AJ 57/298). Note-se que esse pressuposto processual da ação cuja sentença é objeto mesmo do pedido de homologação passa a ser matéria de mérito no processo da ação de homologação da sentença. (A competência, de que se trata, é assim a determinada supraestatal ou interestatalmente como a competência intraestatal do Estado estrangeiro, se a lei desse tem a infração como causa de nulidade ipso iure.) A questão da jurisdição, perante o direito das gentes, ou perante direito interestatal do Estado em que se proferiu a sentença homologanda, pode ser levantada pelo demandado. Bem assim, a da competência do juiz ou tribunal de que emanou a decisão, conforme o direito interno do Estado a que pertence o juiz ou tribunal, se tal questão poderia ser suscitada, naquele Estado, a despeito do transito em julgado da sentença, sem ser em ação rescisória, ou em ação de nulidade de sentença com rito especial. Não se pode tratar a decisão homologanda, transita em julgado, sem ser com atenção à sua eficácia segundo o direito processual do Estado em que se proferiu. Seria absurdo que algum Estado permitisse o exame da decisão oriunda da justiça brasileira, em ação de homologação, se, perante o direito brasileiro, tal decisão é apenas rescindível. Igual situação é a que se compõe se a decisão é estrangeira, somente rescindível, e se trata de homologação no Brasil. Não pode o juiz ou tribunal brasileiro, se a decisão cabia na jurisdição do Estado estrangeiro, segundo os princípios de direito das gentes, ou de direito interestatal (e. g., tratados), apurar se o juiz ou tribunal estrangeiro, que proferiu a sentença, era, ou não, competente segundo o direito interno estrangeiro (Erwin Riezler, Zur sachlichen internationalen Unzustándigkeit, Festgabe for Leo Rosenberg, 199 s.). Salvo se, conforme esse direito, juizes ou tribunais do Estado estrangeiro, fora de ação rescisória contra a decisão, poderiam apreciar a questão da incompetência, a despeito do transito em julgado. Ai, a distinção entre sentença nula e sentença rescindível é de toda a relevância. Se, na matéria, também seria competente a justiça brasileira, não há razão para, somente por isso, se deixar de ho-mologar a sentença estrangeira. Idem, se também outro Estado estrangeiro seria competente. Se a ação foi proposta no estrangeiro, depois de aforada no Brasil a mesma ação, ou se no Brasil fora aforada antes de transitar em julgado a decisão estrangeira, a exceção de litispendência é contra a ação homologatória, ainda que o transito em julgado venha a ser antes de decisão no Brasil sujeita a recurso. Se, no intervalo entre o transito em julgado da decisão estrangeira e a propositura da ação de homologação, houve coisa julgada da decisão brasileira, não há pensar-se em homologação da sentença estrangeira. O momento decisivo é o em que a sentença estrangeira transita em julgado, ainda que, no momento da homologação, se haja tornado competente o tribunal brasileiro (Robert Neuner, Internationale Zustàndigkeit, 52 s.). Não basta o ter-se proferido a sentença estrangeira (sem razão, Leo Rosenberg, Lehrbuch, 5ª ed., 685 s.).

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Se a sentença estrangeira foi proferida sem que se tivesse incluido na relação jurídica processual a pessoa contra quem se quer, no Brasil, a eficácia da sentença estrangeira (e. g., não foi citada, ou foi nula a citação, tendo corrido à revelia o processo), ofende princípio de ordem pública a homologação de tal decisão, ainda que o direito estrangeiro não a considere nula. (Note-se a diferença entre a consulta ao direito estrangeiro sobre a distinção entre a nulidade e a rescisão e a aplicação de principio de ordem pública.) 6. Citação e revelia. A citação e a revelia são, aí, conceitos do direito do país em que se proferiu a sentença. Bem assim a sua validade. Se houve citação e se não é nula ipso iure, responde o direito estrangeiro. Se houve e é anulável, dependendo de ação, o Supremo Tribunal Federal não pode decretar-lhe a nulidadle, porque anularia a sentença estrangeira; nem pode negar a homologação até que se pronuncie a justiça estrangeira. Se, in casu, a falta evidente da citação, ou a lei mesma sobre a revelia, escandaliza, o que lhe cabe é invocar a ordem pública do Brasil. Cumpre advertir em que o nosso direito possui processos judiciários non audita altera parte, de modo que, na maioria dos casos, a alegação de se haver, na lei estrangeira, eliminado a angularidade não bastaria em quase todos os casos normais. 7.Coisa julgada formal. É preciso que a sentença tenha passado em julgado (coisa julgada formal). Constitui isso pressuposto necessário e suficiente. Necessário, nenhuma sentença, de que cabe recurso no estrangeiro, pode pretender ser homologada: não se reconhece força ou efeito de cumprimento provisório a sentenças estrangeiras. Suficiente, a existência de ação rescisória ou de ação de nulidade da sentença, no direito estrangeiro, não é óbice à homologação. Não há execução interestatal provisória de sentenças; portanto, não há homologação de sentenças de que se possa interpor algum recurso, ou opor embargos, ou outro meio jurídico tido como recurso. (Não se confundam execução provisória e sentença em ação de segurança, como arresto e seqúestro.) A coisa julgada formal é suficiente, e necessária. As impugnativas que sejam ação, essas, sim, não obstam à homologação, porque e quando supõem ataque à coisa julgada formal. Se há sentença, junta aos autos, por certidão, ou conforme a lei do juiz que a proferiu, porém não consta que passou formalmente em julgado, não pode ser homologada (cf. Supremo Tribunal Federal, 26 de dezembro de 1900, OD 84/528; 23 de Junho de 1923, RSTF 59/107; 3 de junho de 1927, RD 84/505; sem razão, a 15 de dezembro de 1902, OD 91/528, satisfez-se com a certidão). A questão merece ser posta em devidos termos: a)Trata-se de provar a sentença estrangeira, e não de exibi-Ia no original. b) E a lei do juiz, que a proferiu, a única que pode dizer como se prova a sentença estrangeira: o Brasil nada tem com isso. c)Ainda que o direito do juiz estrangeiro possua o conceito de “carta de sentença”, o conteúdo desse conceito é dado pelo direito estrangeiro, e não pelo direito brasileiro. d) Se o direito estrangeiro exige mais do que o direito brasileiro, tem de ser satisfeita a sua exigência. Por exemplo: se quer que as certidões sejam registradas. e As proposições “a certidão basta”, “peças que valham o mesmo”, só são verdadeiras se postas dentro do direito estrangeiro, que regeu a sentença, pelo principio interestatal de que o Estado, cuja lei rege a forma, edicto a lei que reja a prova. A certidão do transito em julgado é indispensável. Para se saber se houve coisa julgada formal, tem-se de indagar se ainda há impugnativa da sentença, (recurso ou outro remédio jurídico processual). A respeito da coisa julgada formal, como requisito, alguns juristas italianos e brasileiros (e. g., Gaetano Morelli, II Diritto Processuale Civile Internazionale, 290 s; Pedro Batista Martins, Recursos e Processos da competência originária dos tribunais, 26 s.) confundiram com a coisa julgada formal a coisa julgada material. Levantaram, por exemplo, como argumento contra a afirmação de fazer coisa julgada (ai material) a decisão estrangeira, o de não se poder homologar a decisão se corre no país de importação ação que tem o mesmo objeto. Primeiro, a exceção de litispendência é exceção no juízo da ação homologatória; segundo, não temos a regra jurídica que pré-exclui a homologação da sentença estrangeira, em todos os casos, se há lide, com o mesmo objeto, pendente no foro brasileiro. Em tudo isso há confusão entre eficácia da sentença estrangeira e importação dessa eficácia. O que se importa já existe. A homologação da sentença estrangeira supõe que, segundo os princípios da legislação do juiz que a proferiu, haja a sentença transitado, formalmente, em julgado. Mas, pergunta-se, se a decisão ainda depende de recurso a que

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aquela legislação nega efeito suspensivo e confere executoriedade ao que se julgou, tal como ocorre no direito brasileiro, apode a justiça brasileira deferir a execução provisória? Não seria de aconselhar-se, de iure condendo, a resposta negativa; mas, de iure condito, há regra de lei que impõe, em quaisquer casos, o requisito da coisa julgada formal. O legislador, na sua atitude de política jurídica, preferiu evitar idas e voltas em assuntos tão delicados. 8. Autenticação da sentença. A certidão ou a carta da sentença homologanda deve estar autenticada pelo cônsul brasileiro no estrangeiro. O pressuposto é necessário e suficiente. Não é dispensado se o pedido vem por via diplomática; nem se o governo do Brasil o dispensou. 9. Tradução. A tradução é feita pelo oficial público. Podem as partes fazer prova contra a exatidão da tradução. Tradutor oficial do Brasil, e não o de outro Estado (Supremo Tribunal Federal, 21 de julho de 1950, DJ de 24 de abril de 1952). 10. Sentenças. No Código de 1973, art. 483, falou-se de “sentença”, não mais de “carta de sentença”, para que se empregasse expressão genérica. Muito se discutiu, no direito anterior, o assunto, durante longo tempo, no Supremo Tribunal Federal (e. g., exigindo “carta de sentença , 31 de janeiro de 1910, 14 de agosto e 18 de setembro de 1912, 2 de maio de 1913, 5 de setembro de 1914, 26 de maio de 1915, 18 de novembro de 1916; dispensando a “carta sentença”, 14 de setembro de 1928, AJ, VIII/308; 4 de novembro de 1927, V, 495; 16 de setembro de 1927, RD 89/556; 15 de maio de 1935, AJ 36/342; 12 de julho de 1933, 32/232). No art. 484 há referência à “carta de sentença”, mas aí, apenas se cogita do ato judicial da homologação, com o seu conteúdo. 11.Registro da sentença no registro de títulos e documentos. São sujeitos a registro, para eficácia contra terceiros, todos os documentos de procedência estrangeira, acompanhados das respectivas traduções; e. g., para efeitos em repartições da União, dos Estados e dos Municípios, ou em qualquer instância, juízo ou tribunal. O Supremo Tribunal Federal, a 17 de outubro de 1951 (DJ de 23 de novembro de 1953), entendeu que não se estendia às sentenças de divórcio ainda não homologadas. A 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 28 de janeiro de 1949 (RF 127/464), achou que não é homologável, sem o registro da certidão de casamento, a sentença de separação consensual. Devemos interpretar que as sentenças que precisam de homologação não precisam do registro, porque o registro não lhes daria a eficácia que se lhe procura e só a homologação lhas pode dar. 12.Apreciação judicial de ofício quanto aos pressupostos. Os pressupostos da homologação da sentença estrangeira hão de ser apreciados de ofício. Têm de existir em sua totalidade. Se falta qualquer um deles, deve ser indeferido o pedido de homologação. O negócio jurídico das partes em sentido contrário, isto é, para que se dispense algum deles, e se homologue a decisão, é inoperante (Leo Rosenberg, Lehrbuch, 5ª ed., 687). Nem cabe invocar-se princípio de equidade para se dar por homologável o que não é. O que acima se disse não pré-exclui que tal sentença, a que falta algum dos requisitos necessários à homologação, sirva de meio de prova. É admissível ação declarativa, positiva ou negativa, a respeito de existência de sentença estrangeira, ou de ter eficácia alhures. § 134. Pré-exclusão da homologação 1. Produção internacional de eficácia.. A ação de homologação dá ensejo a ser apreciada a produção internacional de eficácia. Não há nenhuma particularidade em se vedar homologação a decisão contrária à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes. Os juizes que vão homologar, como qualquer juiz que aprecie atos estrangeiros, ou leis estrangeiras, corta efeitos das leis ou atos estrangeiros, ou porque sejam hostis à ordem pública e aos bons costumes, ou porque não se possam produzir no país, ou porque destoem das regras de direito

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das gentes. Não há, assim, exceção ao princípio de que a homologação não vai ao mérito da ação primitiva. Há, apenas, corte ou non possumus do Estado de importação. Note-se que juizes homologantes não descem ao mérito; de regra, vêem-no, e nada podem dizer, mas a sensibilidade nacional reage onde a intensidade da eficácia a fere. 2. Regras jurídicas de ordem pública e ofensa aos bons costumes. a) No corpo da leis, há três graus de força de aplicação: regras impeditivas, no Estado do foro, da própria aplicação das leis estrangeiras, que, na matéria sujeita, seriam as competentes (ordem pública); regras que, sendo competentes para reger a matéria, não podem ser evitadas na sua aplicação às pessoas ou coisas, lus necessarium; e as que constituem aplicação da lei escolhida como conteúdo da declaração de vontade, assunto de que tratamos, longamente, a propósito da chamada teoria da autonomia da vontade (Tratado de Direito Internacional Privado, II, 171, 271, 526 e 541 s). Não basta que uma lei seja de interesse público para ser lei de ordem pública. A regra jurídica que fixa a idade nupcial é exemplo disso: de interesse público, porém não de ordem pública. Ao contrário, a escravidão, a bigamia, a representabilidade para testar, são contra a ordem pública de quase todos os Estados. De considerações similares às que fizemos, tem-se procurado concluir que a invocação de ordem pública não é excepcional, que resulta de competência própria do direito nacional e constitui o que há de mais normal. Porém tal conclusão não é verdadeira. Há (e ninguém o nega, tanto assim que pode e deve, o mais possível, parcialmente atender-se) lei competente, lei que pode mesmo já ter sido aplicada e necessariamente já regeu: o princípio da não-produção só se aplica, normalmente, à eficácia contrária à ordem pública, de modo que a lei competente não deixa de o ser, e a lex fori só lhe corta, excepcionalmente, a eficácia. O raciocínio, que combatemos, ainda se ressente, a olhos vistos, da comitas gentium. Ainda antes da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, a sentença que decretava o divórcio de estrangeiros era homologável no Brasil, sem restrições (Supremo Tribunal Federal, 13 de agosto de 1964, DJ de 24 dezembro). b) A primeira análise de noção de ordem pública deveu-se a E. von Savigny. Seriam dois os grupos de tais regras: um, constituído de leis de caráter estritamente coercitivo, e que seriam impróprias à aplicação extraterritorial; outro, de instituições do Estado estrangeiro desconhecidas do direito nacional do juiz e, por isso, não suscetíveis de serem defendidas por ele. Exemplos do primeiro grupo: a lei que permite a poligamia, a que interdiz aos Judeus a aquisição de bens imóveis. Exemplos do segundo grupo: a morte civil, a escravidão. Tudo se abreviaria se falássemos de eficácia negativa e de eficácia positiva. Mas a distinção nada esclarece ao que se pretende saber. A única coisa que se aproveita de F. von Savigny é a sua caracterização de tais regras como excludentes, contrárias à aplicação normal das leis estrangeiras. c) Depois, a Escola italiana, com o só princípio fundamental da personalidade das leis, tornou excepcional, e, pois, de ordem pública, tudo que o juiz aplica aos estrangeiros sem ser a lei nacional deles. Logo se lhe percebe a confusão entre a noção de ordem pública e a de leis territoriais. A crítica, que veio após, dissociou a noção global, que a Escola italiana, artificialmente, conseguira. A doutrina, diante da definição mais estreita, desesperadamente se empregou na pesquisa do conteúdo concreto da ordem pública. Seria fastidioso, e sem alcance, mostrar as ten-tativas que foram feitas. Aliás, em 1862, Ludwig von Bar abriu fresta assaz útil. A ele devemos o ter demonstrado que só importava examinar a possibilidade do concurso do juiz para que a lei estrangeira se cumpra no seu Estado. Em vez de se estar, a priori, a verificar conteúdo de leis estrangeiras, o que se tem de fazer é conferi-Ias com a ambiência jurídica nacional. É justo mencionarem-se os grandes argumentos que Ernst Zitelmann e Franz Kahn trouxeram à teoria, no sentido da excepcionalidade da invocação de ordem pública. Levamos, em 1932, às suas mais nítidas conseqúências, mas já de acordo com os dados científicos de hoje, o ensinamento dos três sábios alemães. No curso da Haia expusemos a matéria, apontando o princípio extraido e já agora nitidamente enunciado como tal. d) As diferenças de expressão nas regras relativas a ordem pública são sem importância. Poderia o mesmo pais adotar fórmulas diversas nas leis e nos tratados; o que é essencial é que se refira à ordem pública. Os sinais que foram usados não vêm ao caso: o que se faz mister é que contenham a cláusula de reserva (Vorbehaltsklausel), como lhe chamava Emst Zitelmann. Aliás, pelo princípio de não-produção de eficácia por invocação de ordem pública, nada obsta a que o juiz a corte sem que exista texto. e) ~A ordem pública é exceção à regra de serem aplicáveis normalmente as leis pessoais, e não a lei territorial? Seria o que pretendeu a Escola italiana e o que sustentara A. Pillet. Mais tarde, mudou esse de opinião (A. Pillet, De I’Ordre publíc en Droit international priué, 469; Traitê pratique de Droit international pri vê, 1, 117). De dois argumentos resultará a convicção da imprestabilidade daquela concepção: a) a territorialidade apanha todas as leis

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internas, não sendo admissível exceção mais vasta que a regra, ou, pelo menos, de igual extensão; b) há invocação de ordem pública contra leis territoriais. Mais compreensiva seria a noção savignyana de E. Bartin: o direito internacional supõe certa comunidade jurídica que suscite e estimule a aplicação das leis de um Estado noutros Estados; a ordem pública resulta de defeito em tal comunidade (E. Bartin, Êtudes de Droit intenational prívé, 190). Certo, mas insuficiente: a falta de semelhança, a discordância grave entre os sistemas jurídicos provoca os fatos da invocação de ordem pública, porém não é a comunidade jurídica, no sentido que se adotou, causa da inaplicação: a extra-territorialidade não se explicaria, nem histórica, nem teoricamente, pela comunidade dos sistemas; nasceu da diversidade deles, e por outros motivos de ordem político-jurídica. A ordem pública, como fundamento principal do direito internacional, refletiria particularismo, mais grave, pois, do que a ordem pública exceção “generalizada”, da Escola italiana. Seria, quando muito, a interpretação do caso especial dos Estados Unidos da América (Thomas H. Healy, Théorie générale de l’Ordre public, Recueil des Cours, IX, 476). f) O que caracteriza a noção de ordem pública é a sua essencial plasticidade. Plástica, porém não tênue (“souple’): muda-se-lhe o conteúdo em cada Estado, mas, em cada Estado, o que a caracteriza é a rigidez: peneira as leis e os julgados estrangeiros. Seleção negativa, essa, que — para o sociólogo —funciona como aparelho de verificação das discordância de grau evolutivo na vida dos povos contemporâneos. Ou por ser concepção muito avançada para o século mental do país, ou por ser longínqua no passado. Quem diz ordem pública refere-se a algum Estado. A cada Estado, a sua noção de ordem pública; donde, como esse conteúdo é mutável, ter de ser vaga, imprecisa, a noção geral. E apenas alusão a poder da lex fori. Funciona nas circunstâncias fortuitas de ir aos tribunais de um Estado o fato regido pela lei do outro. Aos nossos olhos, assaz se explica procedimento de não produção. Basta que não vejamos nele negação do direito internacional privado. Nem, sequer, ameaça. E uma espécie de pudor das judicaturas. A lei incidiu; seria de aplicar-se: não se aplica, porque o Estado de importação reage; se já foi aplicada, nega-se à sentença a importação da eficácia. g) Diante das dificuldades de definir e precisar os casos de ordem pública, os escritores foram até o desespero de considerar inconsistente a noção em cujo estudo haviam fracassado. E de vê-los criticarem-lhe a oca sonoridade, dizer um deles que continuam tais palavras harmoniosas em estado de invólucro vazio, e afirmar que a noção se funde, ou quase isso, nas palavras que a exprimem (François Gény, Science et Téchnique, III, 482). Tal a corrente que atacamos. Devemos ter por impróprio dos propósitos científicos essa solução de atribuir ao nome (pois a coisa, essa, existe) defeito que, em verdade, depende da nossa inaptidão atual, que vemos diminuir, para apanhar e avivar os traços distintivos do conteúdo da noção. Nada mais reprovável seria do que renunciar-se à pesquisa dos fatos da vida — e ninguém nega que eles existam, porquanto pululam pelos repertórios de julgados e nos livros de doutrina — com a impossível taxação dos “casos -O recurso à taxatividade seria ilusório. Porque o assunto consulta a interesses assaz profundos dos sistemas jurídicos, interesses no domínio dos quais todo critério de limitação seria iniciativa legal que as circunstâncias se encarregariam de ultrapassar. Ao assunto repugna a taxação — é da natureza da ordem pública a própria intervenção elidente, esporádica, concertada pela intercessão de duas ordens jurídicas e pela urdidura ocasional de fatos que tocam a princípios superiores aos órgãos de verificação. A cada mentalidade a sua reação. É impossível saber-se, permanentemente, quais os casos de ordem pública. Dependem dos contactos entre dois sistemas de direito, duas variáveis, porque cada um se altera a breves intervalos. Demais, sendo muitas as ordens jurídicas do mundo, os casos somente poderiam ser apontados para cada grupo de duas, combínatoriamente, e para cada momento, ou, ainda mais imperfeitamente, pela necessária eliminação dos casos só relativos a menor número de países, para grupos de Estados em congresso ou em conferência. Da última possibilidade, tivemos o exemplo da Convenção da Haia de 1902, que previu cinco casos de interdição do casamento de estrangeiros pela lei do lugar da celebração: 1ª, graus de parentesco ou de afinidade, para os quais haja proibição absoluta; 2ª, proibição absoluta de se casarem, edictada contra os culpados do adultério, devido ao qual o casamento de um deles foi dissolvido; 3ª, proibição absoluta de se casarem, edictada contra pessoas condenadas por haverem atentado, de concerto, contra a vida do cônjuge de uma delas; os obstáculos oriundos da existência de casamento anterior; os obstáculos de ordem religiosa. Seguiam tal artigo o Código Civil venezuelano (1922), arts. 132 e 133; a Lei polonesa de 2 de agosto de 1926, art. 12, e a Lei sueca de 21 de novembro de 1915, que completou a Lei de 8 de junho de 1904, Cap. 1,§ 2ª.

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Se atendermos a que o casamento é apenas um Capítulo do direito civil e imaginarmos todo o corpo do direito privado, poderemos avaliar a quantidade enorme de casos que, pelo mesmo método, apontaríamos. Necessariamente, acrescente-se, subordinados à suposição de permanência das legislações com os mesmos caracteres que tinham ao tempo da confrontação discriminativa. Nos sistemas antigos, territoriais, explica-se não ter havido a invocação de ordem pública. Ocorria isso, porque a interpretação era menor e raros os casos, e não pelo motivo, que dá Jules Valéry (Manuel, 571) e Thomas H. Healy (Recueil des Cours, IX, 463) aceita, de ser o próprio sistema territorial baseado na ordem pública: nem na ordem pública se funda tal sistema, nem são noções superponíveis e coincidentes territorialidade e ordem pública. Nada lustifeca que 3. Aubry (De ia Notfon de Territorialité, Journal du Droit international, 1900-1902) tratasse da ordem pública sob a rubrica da noção de territorialidade no direito internacional privado; e não escusa, sequer, a distinção entre lex loci e lex lori. Também não é certo que a ordem pública seja medida nacional aplicável a todas as pessoas e a todas as coisas que se acham no território da nação interessada. Não tem razão Eugêne Audinet (Principes, 221) e Thomas H. Healy (Recueil des Cours, IX, 471), nem a tinha A. Pillet (De l’Ordre public, 67): não se concederia homologação a sentença de divórcio de Brasileiro domiciliado em Paris. Posto que, uma vez que sentença de divórcio contém separação judicial mais dissolução do vínculo, só se deva negar homologação nesse ponto. (A respeito, advirtamos em que o vínculo conjugal indissolúvel é, hoje, apenas assunto para invocação de ordem pública: concerne só à eficácia.) No sistema de nacionalidade, afirmou F. Despagnet, são escassos os casos de ordem pública. Ora, a verdade é toda outra: a caracterização, a extração sutil da noção de ordem pública, separando-a de noções que nada têm com ela, como a territorialidade, a imperatividade, o direito público, data de pouco tempo. Somente nos últimos anos foi que os juristas conseguiram isolar, digamos assim, esse fato anormal de sensibilidade nacional a que a negligência e as visões superficiais deram o nome mais impróprio que poderiam dar: ordem pública internacional; quando, claramente, é exclusiva, isto é, puramente nacional — a única porção, o único princípio estrita e rigorosamente nacional do direito internacional privado. A ordem pública é interna; contrapõe-se à importação internacional de eficácia. A. Pillet, a quem se deveu estudo original sobre a ordem pública e que procurou enumerar os casos, incluindo Códigos Penais e Códigos de Processo (De l’ordre public, 18), acabou por se retratar, e ver toda a distinção entre leis territoriais e de ordem pública. Pretendeu mostrar na teoria da ordem pública regra cujo efeito é tão completo, tão pleno, como as outras do direito internacional privado; a soberania territorial, tão legitima, tão regular, quanto a pessoal. Isso não explicaria; se fosse questão das duas soberanias, lógico seria que a territorial não cedesse nunca, ou cedesse sempre; um dos dois princípios — o da personalidade, ou a da territorialidade — excluiria o outro. Ora, o que se vê é a coexistência dos dois, com delimitações conhecidas, e mais um, que é o da ordem pública. O estatuto territorial rege os bens situados no país; o pessoal rege as pessoas e certas relações pessoais; a intervenção do critério da ordem pública constitui outro principio, cujo fundamento não é o da territorialidade, tanto assim que não só as regras territoriais contêm regras de ordem pública; o direito regularmente nascido subsiste e tem efeitos em todos os outros lugares em que a ordem pública dos Estados não Ihos tolha: porque, rigorosamente, ele subsiste — são os efeitos que se não produzem. Vulgarmente, os internacionalistas dizem que, em tais casos de ordem pública, a comunidade jurídica é insuficiente para que os direitos constituídos subsistam. O que se dá não é isso; e tanto temos razão, que a mesma sentença de divórcio, a que se negou, parcialmente, homologação, por ter o Estado a indissolubilidade do matrimônio e considerá-la matéria de ordem pública, depois servirá, quando mudar a ordem pública desse Estado, para o pedido de homologação de sentença. A ordem pública supõe exista diferença fundamental entre o direito substancial da Iex for) e o da lei competente. Tem-se por legitima a aplicação da lei estrangeira; vale dizer: as regras de sobredireito não estão em causa. O choque só se dá entre as regras de direito substancial. Essas é que são diferentes e a sensibilidade da lex fori — função do lugar e do tempo —invoca esse choque, lapso entre as concepções dos dois povos em contacto jurídico, para recusar efeitos à lei estrangeira. É como se dissesse: “Sois competentes para dizer qual a lei que deve reger; mas essa eficácia, que pretendeis, não se pode produzir no ambiente da vida jurídica do meu circulo social”. Tal

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impossibilidade de introdução só depende do próprio ambiente: donde ser essencialmente nacional a noção do que é e do que não é de ordem pública, e poder variar com as variações do ambiente. Impossibilidade ligada ao sistema de cada país, em cada instante (espaço-tempo); portanto, relativa. E o que ocorria, por exemplo, quando o Brasil se recusava a homologar, no todo, sentença de divórcio. Estava em causa o tempo social. Por isso mesmo, enumerar os casos, metê-los em Códigos ou tratados, é ilusório; seria preciso que se tratasse de choque entre regras de direito internacional privado. Ora, tudo se passa entre regras de direito substancial, e para que os casos permanecessem taxativos fora de mister que o direito substancial não mudasse. O direito substancial muda. Bastaria tal possibilidade para nos mostrar que enumerar os casos de ordem pública em Códigos ou tratados internacionais orça pela tentativa de parar a evolução dos direitos internos substanciais. Mal percebem os negociadores que, no momento de taxá-los, impõem direito substancial uno, porque só o direito substancial pode decidir do que é e do que não é de ordem pública. O principio da não-introdução de efeitos em virtude da invocação de ordem pública é que pertence ao direito internacional privado; a noção concreta de ordem pública é inerente ao direito substancial —e só dele depende. Por isso mesmo, é assaz delicada a situação do juiz brasileiro no caso de se alegar contravir a ordem pública conceito ou instituição que não está nos casos que taxou o Código da Havana, mas evidente e principalmente fere o direito substancial do Brasil, a ponto de constituir aplicação pelas justiças, federal e local, do principio de não-introdução de efeitos das leis; ou vice-versa. O princípio de ordem pública somente pode ser invocado pela lex fori. No direito internacional privado, tem a ordem pública o seu campo especifico; só no penal e no processual internacionais é que a lex fori volverá a ter o mesmo domínio, mas já então como lei competente, e não pelo corte de efeitos das leis competentes. (Cumpre não confundir o principio de ordem pública com o de lei territorial, erro em que incorreu a Escola italiana e, agravado depois, o Código da Havana. Muito há nas leis territoriais ou gerais que não é de ordem pública, e muito há de ordem pública em leis que não são leis territoriais, e sim extraterritoriais.) Aliás, podemos ser bem mais precisos: a ordem pública só verifica efeitos, e verifica-os, corta-os, assim as leis territoriais como as leis extraterritoriais estrangeiras, e por sensibilidade de conceitos e instituições de um ou de outro direito nacional. A ordem pública não cancela existência, nem cria nulidade, nem destrói validade, apenas corta eficácia. 3. Precisões sobre o conceito de ordem pública. Assentes as idéias que aí ficaram, ainda nos cumpre precisar os mesmos pontos e alguns outros. (a) A noção de ordem pública nada tem com a de territorialidade: pertence ao conjunto do sistema de direito. A sua função e o seu próprio caráter não se assemelham aos das leis territoriais, inclusive das de direito público. Enquanto essas atuam de modo positivo, aquela é, por sua natureza, negativa, ainda que possa ter resultados positivos. Nada tem, além disso, com a de extraterritorialidade. De ordem pública são as regras, consignadas, ou não, em lei (a lei não é a única fonte de direito), que, no Estado, obstam à aplicação das leis estrangeiras, nos casos em que essas, normalmente, teriam de reger as relações jurídicas de que se trata. Se tais relações jurídicas se devem regular pela lei brasileira, não há cogitar-se de ordem pública: a lei brasileira, para os tribunais brasileiros, predomina; sob pena de ferir a soberania do Brasil, não cede ao impulso de aplicação que advém da lei estrangeira. Para haver “questão de ordem pública”, o primeiro pressuposto é que seja normalmente de aplicar-se a lei estrangeira: a ordem pública obsta, por sua natureza, a isso. Não é uma aplicação da lei “brasileira”, mas uma brecha na aplicação da lei estrangeira. Pelo contacto com a Justiça brasileira, a aplicação falseia, deixa de ser, rompe-se. Ainda que já outro Estado a tenha aplicado. Competente o outro Estado, ou o Estado invocador da ordem pública deixa de aplicar a lei incidente, ou não importa a aplicação feita. (b) O direito público exclui o direito estrangeiro, nas matérias da competência do Estado territorial, isto é, no que regula organização, interesses e serviços públicos do Estado, como o direito público de outro Estado exclui, no Estado territorial, o direito público desse, nas matérias da competência do Estado não-territorial. Tudo se passa como a respeito das leis de direito privado: a competência é que decide; por definição, exclui a dos outros Estados (ainda que seja a do Estado territorial), no que se contém nos seus limites. Bem diferente é o que se passa com as leis de ordem pública: cortam efeitos das leis competentes, sejam quais forem. O efeito limitado das leis de direito público é normal; o das leis de ordem pública, de modo nenhum. Ali, duas ordens de direito se tocam, se delimitam uma à outra; aqui, uma apara a outra. Os fatos, ainda reduzidos a figuras geométricas, são diferentes:

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ali, há justaposição; aqui, superposição e, pois, apenas recorte, pelas bordas. A lei de ordem pública só e excepcionalmente se aplica aos casos para os quais se invoca; é essencialmente contingente, na espécie, porque supõe a oportunidade para exorbitar da sua esfera de competência e invadir a de outra, a que aparou efeitos, a que se superpõe nas orlas. A lei de direito público aplica-se normalmente, por emanar de Estado, nos estritos termos da sua competência legislativa. Pode ser territorial; e pode ser extrater-ritorial. A concepção que ainda as define como territoriais, que faz depender de tratados derrogativos a sua extraterritorialidade, ignora a natureza do direito público, é vítima de um dos preconceitos mais pertinazes, o de territorialidade, com que a meia ciência se complica, se enreda, e confunde as coisas. No século XIX, compreendia-se que ainda se misturassem ordem pública e direito público, sobretudo depois da mais grave confusão, com a escola de Mancini (contra, aliás, a legislação italiana do Código Civil), e que o próprio Instituto de Direito Internacional não se tenha livrado do ambiente (Resoluções, art. 8ª “En aucum cas, les bis d’un État ne pourront obtenir reconnaissance et effet dans le territoire dun autre État, si elles v sont en opposition avec le droit public ou avec l’ordre public”; oposição de tais leis de outro Estado somente poderia existir quando invadissem o direito público do Estado de importação). Hoje, já se não compreende. Os arts. 49 e 59 do Código da Havana (certa, a regra de corte, como está no direito brasileiro) constituem sinal de espíritos nãotécnicos. Diz o art. 4ª: “Os preceitos constitucionais são de ordem pública internacional”. O art. 5ª: “Todas as regras de proteção individual e coletiva, estabelecidas pelo direito público e pelo administrativo, são também de ordem pública internacional, salvo o caso de que nelas expressamente se disponha o contrário”. Tais regras correspondem às dos mesmos números, no Projeto original (A. S. de Bustamante Y Sirven, Propecto, 70). Ora, ao traçar linhas de competência, projeto e texto criam estar a ressalvar ordem pública internacional (!). A noção de regras de ordem pública também não se explica pelas mesmas razões com que se justifica a territorialidade: a situação dos bens impõe, como dado imediato, a lex situs; há a feitura de ato jurídico e há o prejuízo sofrido pelo delito —aquela permite e esse exige que se atenda à lex loci, que pode ser ou não ser, nesses, como no primeiro caso, a do juiz. No princípio de não-introdução por motivo de ordem pública, a lei que se pretende aplicada é necessariamente estrangeira, e a ordem jurídica predominante, excepcionalmente, é, necessariamente, a lex fori. Como os desenhos de picos de montanha acima de certo número de metros, a linha da ordem pública aparece como série de saíjências, de exceções. As vezes, a melhor imagem para traduzi-la é a de tão afiada laminação de certos princípios essenciais às instituições da ordem jurídica nacional que, ao entrarem as leis estrangeiras, alguns dos efeitos caiam, cortados por eles. Corte de efeitos; e isso sugere que só se aparam, só se cortam, enquanto, ao tempo do julgado, vigem os princípios, com o seu fio excepcional. A ação da ordem pública consiste em corte de efeitos; a sua consequência não é, sempre, a territorialidade dos efeitos. É de toda a importância frisar-se: a regra pode permanecer no sistema jurídico e perder a saliência, o gume. Reconhece-se-lhe a incidência; nega-se-lhe, porém, aplicação ou importação de eficácia. Portanto, é de corte que se trata. (c) A lex situs e a lex loci têm a sua ação na normal aplicabilidade ao bem e ao delito civil (ainda como lei-conteúdo). A consequência é o respeito internacional dos seus efeitos. O Brasileiro divorciou-se na Alemanha, onde a dissolubidade do casamento foi (imaginamo-nos em 1903, para compor o exempío, com o Reichsgericht, 12 de outubro de 1903, pois tal opinião, de um momento, fora afastada) de ordem pública; no Brasil, só se separou judicialmente; na França, também, porque, para o juiz francês, o estatuto pessoal não sofre corte de efeitos nesse ponto. A eficácia de tal divórcio foi fenômeno só perceptível na Alemanha, porque só existiu devido à sua noção de ordem pública. Corte de efeitos da lei brasileira e consequente localização de efeitos do divórcio. Não é bem a aplicação da lei territorial; os efeitos, limitados à ordem jurídica da Alemanha, éque são intraestatais. Somente nisso, que se não podia produzir na Alemanha (a vedação de divórcio), não se atendeu à lei brasileira. Tudo nos mostra quanto é diferente a aplicação de leis territoriais e locais: normalmente aplicáveis, prendem a si mesmas as relações jurídicas, os bens, o delito civil; mas os seus efeitos são possivelmente universais. Enquanto o Brasil não adotara o divórcio, o juiz brasileiro daria homologação à sentença alemã, para que se respeitasse a ordem pública definida pela Alemanha, ou só a reconheceria como de separação judicial? Cedo, as regras de ordem pública são somente as do momento da sentença ou da homologação; mas, na sentença alemã, só houve efeitos internos, e o juiz brasileiro terá de exigir que os interessados pratiquem os atos processuais ou

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extraprocessuais, que o direito intertemporal do Brasil tenha por necessários à transformação das separações judiciais anteriores em divórcio. Os efeitos a mais, que o juiz alemão citou, não bastam, salvo se a regra intertemporal conferir aos efeitos internos estrangeiros, em tais casos, efeitos de estatuto pessoal, isto é, ubíquos. Seria isso nova lei, nova ordem ao juiz. Se os efeitos tivessem sido a menos —separação judicial de Alemães no Brasil — o raciocínio seria semelhante: a ordem pública do Brasil teria cortado a lei alemã, porém posteriormente se atenderão aos efeitos normais, extraterritoriais, da lei alemã. (O Brasil, em 1942, sofreu profunda transformação no seu sistema jurídico: um dos países lideres do princípio da nacionalidade como dado determinador da competência legislativa passou-se para os seus opositores, a despeito de solenes comunicações em congressos interestatais; de modo que reconheceu a competência do Estado do domicílio. Consequência: os casamentos de Brasileiros divorciados no estrangeiro existem e valem; apenas não tinham eficácia no Brasil, antes da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. O Brasil renunciou à lei nacional. De modo que, aplicada a lei do domicílio pelo juiz estrangeiro, divórcio e casamento havia e valiam; apenas nao se lhe importavam os efeitos no Brasil.) O ser ius cogens a regra jurídica de que se trata, por ser da sua aplicação que se querem os efeitos, através da homologação de sentença, não importa. A lei competente, e não a lei do Estado importador dos efeitos, é que discrimina o que é ius cogens, o que é ius dispositivum e o que é bis intrepretativum. Tando pode ser contra a ordem pública o efeito da regra jurídica cogente estrangeira como o da regra jurídica dispositiva ou interpretativa estrangeira, que, in casu, foi atendida. (Firmada em opinião nossa, a decisão do Supremo Tribunal Federal, a 7 de dezembro de 1948, DJ de 27 de outubro de 1950.) (d) Que os Estados não respeitem a competência legislativa dos outros quanto ao que seja estatuto da pessoa e dos bens situados no seu território, coisa é que se deve lamentar e exprobrar. Mas que se tirem pessimismo e se exagerem os inconvenientes de cada Estado ter a sua noção de ordem pública, não se justifica; não é só um ‘mal necessário” (Giulio Diena, Principi di Diritto internazionale privato, 2ª ed., Parte 2º, 60), um “defeito” da comunidade jurídica (E. Bartin, Etudes de Droit intenational privá, 217 5.); é o resultado inevitável da existência de ambiências, que, em instantes do espaço e do tempo, não podem importar os efeitos que as leis competentes querem. Ora, para que isso desaparecesse, ou para que seja conceituado, hoje, como o defeito, ou o mal, seria preciso que fosse certa a unidade de concepção futura do direito de todo o mundo. Pura hipótese, que não justifica outra atitude que não seja a de se olharem os fatos como fatos, todos, com o mesmo título —naturais. O que podemos é prever a diminuição crescente das aplicações da ordem pública, por tenderem os povos a maior simetria de costumes e de moral; e isso depende também de serem crescentes os fatores que hoje determinam tal evolução integrativa. Se, da vida social, hão de sair ordem nova e novas formas político-sociais, a uniformidade não se ultimará, porque os Estados de Constituições avançadas provocarão, neles e nos outros, novas invocações de ordem pública. É o que ocorre com a Rússia e os outros povos. Deve evitar-se julgamento sobre o princípio da não-importação de efeitos segundo critério de uma ordem futura simétrica imaginária, de um direito único e uniformemente transformado ou intransformável, que excluiria a própria existência — necessariamente intraestatal ou interestatal — do direito internacional privado. O princípio de ordem pública, com o seu efeito, a que já se chamou dissolvente, resulta da profunda desigualdade, em certos pontos, das legislações substanciais. Reconhece-se a competência legislativa dos outros Estados, reconhecem-se os efeitos dos fatos ou atos regidos pela lei que as regras de sobredireito, ditadas pelos outros Estados, digam serem as aplicáveis; mas onde a diferença das concepções jurídicas entre a lei aplicável e a lex fori se torna demasiado sensível, o juiz do Estado conferidor abstém-se de sancionar o que chocaria, nos princípios mais rijos, o direito nacional. O direito nacional recobre as bordas (efeitos) do direito estrangeiro, que não deixa de ser tido, ainda nos efeitos, como o direito, “competente”. Por isso mesmo, quanto mais parecidos os sistemas de direito, menos funciona o principio da ordem pública, posto que a parecença e até a igualdade formal não bastem: a mesma regra, em duas ordens jurídicas, muda de intensidade. No direito francês, a supressão de toda distinção entre os herdeiros, pelas idades ou sexos, constitui um dos princípios fundamentais em matéria de sucessões. Devido às origens do princípio e ao seu caráter político, que o torna ponto capital da concepção juridico-social da França, a jurisprudência e a doutrina querem que se trate de uma regra de ordem pública. Assim, não se aplicará na França qualquer texto de lei estrangeira que estabeleça vantagens aos filhos mais velhos, ou ao primogênito, aos varões, ou a qualquer outra categoria de herdeiros. No Brasil, levanta-se a questão com outro aspecto. Se écerto que a lei civil brasileira adota aquele princípio de partilha, não se pode dizer que, na mentalidade dos legisladores brasileiros, tenha havido aquela concatenação de

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convicções político-jurídicas que houve no direito francês. Copiou-se o princípio, mas sem se herdar o intuito de polftico social extremista, que justificasse, sem maior exame, a elevação da regra a princípio de ordem pública. Por isso mesmo, o juiz brasileiro não vacila em observar a lei de progenitura do país estrangeiro, como também aplica a de liberdade de testar. Está claro que a questão já assaz se simplificara no direito brasileiro com a legislação de 1916: se um dos herdeiros do estrangeiro fosse Brasileiro, a sua lei pessoal seria a do Brasil. Não é que não existissem casos de ordem pública, derivados do choque com o sistema sucessoral do Brasil. Exemplo temos na distinção relativa a herdeiros legítimos que se hajam naturalizado em outro país ou adotado diferente religião. No fundo, nenhum interesse tinha o Brasil em cortar a aplicação do texto estrangeiro, se dele somente resultasse diminuição ou exclusão patrimonial de alguns descendentes ou parentes. No caso de filhos que ficarão sem alimentos, a questão muda de aspecto, e mais: desloca-se; não é no direito das sucessões que se dá o choque com a ordem pública e os bons costumes do Brasil, e sim no terreno do Direito de família. A Constituição de 1934 deu melhor solução (art. 134): ‘A vocação para suceder em bens de estrangeiro existentes no Brasil será regulada pela lei brasileira e em benefício do cônjuge ou de filhos, sempre que lhes seja mais favorável a lei nacional do de cuius”. Regra de lex rei sitae. O Brasil era competente para edictá-la; e edictou-a. Idem, a de 1937, art. 152. A Constituição de 1946 acrescentou “brasileiros a filhos’, o que passou à de 1967, art. 150, § 33, à Emenda de 1969, art. 153, § 33, e à Constituição de 1988, art. 52, XXXI. (e) A jurisprudência brasileira já considerou de ordem pública a vedação aos seus juizes da decretação do divórcio (Supremo Tribunal Federal, 18 de setembro de 1920). Outrossim, depois de recusar homologação a sentenças estrangeiras que o decretaram (1ª de outubro de 1913), homologou-as para os sós efeitos patrimoniais (26 de agosto de 1914, 9 de novembro de 1916), e ficara entendido que a lei nacional do Brasileiro ou da Brasileira lhe vedaria as novas núpcias. Não se precisou da noção de ordem pública, posto que, para isso e volvendo à verdade, o Tribunal a cada momento entendesse voltar à velharia e ilegalidade da lei do marido, do estatuto da Brasileira casada com estrangeiro. Se os conjuges são estrangeiros e a lei ou as leis pessoais deles admitem o divórcio, homologa-se a sentença para todos os efeitos (7 de outubro de 1925, 14 de janeiro de 1914, 13 de setembro de 1922, 3 de novembro de 1926, 26 de outubro de 1928, 7 de junho de 1932), ainda que efetuado no Brasil o casamento (17 de agosto de 1928) e por mútuo consentimento o divórcio (23 de dezembro de 1925) ou decreto de lei (31 de janeiro de 1933). Se só uma lei pessoal o admite e nenhuma delas é brasileira, o Tribunal negou a homologação quanto ao vínculo se a lei do marido não o permite (22 de julho de 1925). Será certo, quando o Estado, a que pertença a mulher, adotar, para ela, a lei pessoal do marido. Fora daí, está errado. Quanto aos Brasileiros, o Brasil admitiu, em 1942, a lei do domicílio para eles, de modo que têm os juizes de invocar a ordem pública se querem não admitir, no Brasil, a eficácia da sentença estrangeira. A separação consensual não é, no Brasil, de ordem pública, razão por que, se a lei pessoal não conhece tal causa, o juiz brasileiro indefere o pedido (Tribunal de Justiça de São Paulo, 14 de agosto de 1931 e 22 de março de 1932; Supremo Tribunal Federal, 15 de junho de 1932). Ainda a 30 de setembro de 1942 (RD 145/243), o Supremo Tribunal Federal decidiu que se não homologava sentença de divórcio de estrangeiro se esse estivesse “residindo” no Brasil. Sem razão. Ou não homologava quaisquer sentenças de divórcio de estrangeiro, “residissem”, ou não, no Brasil; ou homologava todas, exceto quando se tratasse de estrangeiro, inclusive apátride, que estivesse submetido à lei brasileira. O que não se pode éfazer depender da residência, ou não-residência, a invocação de ordem pública. (f)Vale o ato praticado no Brasil pelo estrangeiro incapaz, se ele, pela lei brasileira, seria capaz? a) A resposta afirmativa ora é constituída como regra do Estado do negócio, e tal o caso da Alemanha, art. T, alínea 3ª, da Suiça, art. 7Q, b), do Japão, art. 3º, e da Polônia, arts. 2º e 3º, em negócios que não sejam de Direito de família e de sucessões, ora como caso de não-importação de efeitos por motivos de ordem pública (F. Wharton, ATreatise on the Conflict ol Laws or Private Internacional Law, 3ª ed., 1, 263; André Weiss, Manuel de Droit international privé, 9 ed., 454; Thomas H. Healy, Recuei 1 des Cours, IX, 511; A. PilIet e J. P. Niboyet, Manuel de Droit international priué, 524; F. Surville, De la validité des contrats passés en France par un étranger incapable d’aprês la loi française, Journal de Droit international pri vê, 1909, 625, s.), ora em virtude de uma teoria do interesse nacional, segundo a qual o prejuízo de um nacional justifica desatender-se à lei estrangeira. b) A resposta negativa tem por fundamento a aplicação normal do estatuto pessoal, para cujo corte não admite a ligação usurpante contida nas leis alemã, suíça e japonesa, nem, sequer, a oportunidade de ser invocado o princípio de não-importação de efeitos em virtude de ordem pública (cf. J. Proudhon, Traité sur l’Etat des

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personnes, 3ª ed., 1, 85, 98; C. Demolombe, Cours de Code Napoléon, 2ª ed., 1, 120 e 121; C. Demangeat, Histoire de la Condition des Etrangers en France, 373; Aubry et Rau, Cours de Droit civil Jrançais, 1, 147 s., adotaram a jurisprudência francesa mas J. Aubry et Rau supõem não ter havido, no caso julgado, imprudência do Francês). A primeira solução tem por si o exemplo alemão-suíço: não leva em consideração a boa ou má-fé do estrangeiro (propositadamente o fez Gebhard, para evitar dificuldade); e quer apenas impor, no foro, uma solução de proteção aos nacionais. Pressupõe: a) a presença corporal das partes na Alemanha (Vicomte Poullet, Manuel de Droit international priué belge, 317; contra, com razão, E. Frankenstein, Internationales Privatrecht, 1, 417, e parece-nos que a não-presença dos estrangeiros, sendo a Alemanha o lugar da conclusão do contrato, bastaria, com mais forte motivo). b) Que se trate de negócio jurídico (RechtsgeschàJt), e não pertença ao Direito de familia, nem ao de sucessões. Rege a capacidade a lei alemã. Certamente, nem o Estado da lei pessoal respeitará tal capitis derninutio parcial (Th. Niemeyer, Das internotionale Priuatrech t des Búrgerlichen Gesetzbuches, 126), nem os terceiros. Do outro lado, há os que alegam contra isso: o dever de um homem zeloso dos seus negócios é o de se esclarecer sobre a situação jurídica daqueles com quem contrata. Se não toma tal precaução, a culpa é sua. Se foi ele mal informado e contratou, ainda é sua a culpa. O que o interesse geral reclama é apenas o rigoroso reconhecimento do estatuto pessoal. A teoria do interesse nacional é inadmissível. A da ordem pública não pode ser analisada: é matéria que depende da sensibilidade de cada Estado. No Brasil, a regra jurídica sobre a responsabilidade dos menores relativamente incapazes pelos atos ilícitos é de ordem pública; porém não se lhe poderia tirar a regra alemã ou suíça, demasiado cortante, nem a francesa, para a qual as incapacidades derivadas de lei estrangeira não podem ser opostas ao Francês que, tendo tratado na França com um estrangeiro, agiu de boa-fé, sem precipitação, nem imprudência, crendo que era um Francês, ou, pelo menos, regido por legislação semelhante. Assim, a doutrina francesa, a que se chamou do “interesse” nacional”, submete o estrangeiro à lei francesa quando a lei nacional do estrangeiro prejudica o interesse de um Francês. A lei polonesa de 2 de agosto de 1926, art. 39, estatuiu: “Quando um estrangeiro, incapaz segundo a sua lei pessoal (art. 1ª), pratica, na Polônia, ato jurídico (art. 99), destinado a aí (aqui) produzir efeitos, a capacidade do estrangeiro, quando a segurança de comércio honesto o exige, regula-se pela lei em vigor na Polônia”. É evidente a invocação de ordem pública. Discutimos, alhures, o que se levantou, a respeito desse ponto, no Instituto de Direito Internacional. Posteriormente, sob o aguilhão das criticas, a jurisprudência francesa lançou mão de outros motivos: enriquecimento sem causa (Req., 16 de janeiro de 1861; Cass., 23 de fevereiro de 1891); Iex loci delicti. (g) A prova da confusão e dos erros, em que se enredavam as jurisprudências e doutrinas dos diversos Estados europeus e americanos a respeito de ordem pública, tivemo-la por ocasião das questões suscitadas com os bens socializados pelo governo soviético. Assistiu-se à aplicação de tal noção onde nada tinha a fazer, e a discussões supérfluas onde a noção, só por si, resolveria. Certamente, a ordem pública dos outros Estados opor-se-ia a que os seus juizes aplicassem a lei do confisco aos móveis escapos à Iex rei si tae; porém, quanto aos outros móveis e aos imóveis fora da Rússia, a lex rei sitae, como principio fundamental, bastaria para afastar a expropriação soviética. Revela escassa cultura jurídica o jurista ou juiz que, não sendo competente a lei aplicada, invoca a ordem pública. Assim, no caso Estado russo versus Ropit, o governo russo reclamou a restituição dos navios da Sociedade Russa de Navegação e de Comércio, que se achavam em Marselha, vindos de Odessa, antes da ocupação da cidade pelo poder soviético. Nas três instâncias, foi denegado o pedido, com invocação da ordem pública francesa (Cass., 5 de março de 1928). Jeria sido preciso invocar a ordem pública? É a opinião corrente. Cumpre distinguir: se, ao tempo da ação, eram regidos pela lei russa se eram russos, digamos — os navios, — a incidência da lei impõe-se, salvo a invocação de ordem pública; se, a tal momento, já os navios não eram russos devido a atos juridicos ou fatos que os tivessem separado do domínio da lei russa, cessara a incidência do estatuto russo e era desnecessária a alegação de ordem pública. É de mister não nos esquecermos de que, para ser francês, o navio teria de satisfazer condições rigorosas, e aos navios franceses é que se aplica a lei francesa. Argumento de que se não usou seria o de terem perdido a nacionalidade, algo de semelhante à apatria das pessoas. Interessante, mas sem provável bom êxito.

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Questões entre novos proprietários, após o confisco russo e os antigos apareceram nos tribunais europeus. No julgado da High Court of Appel, caso Luther versus Sagor, Lord Justice Scrutton disse: “Seria ofender à cortesia internacional, em relação a Estado reconhecido como soberano independente, declarar a sua legislação contrária aos princípios essenciais da justiça e da moral”. Na Alemanha, os tribunais também foram favoráveis aos novos proprietários, ainda antes do Tratado de Rapalo, de 16 de abril de 1922, entre a Rússia e a Alemanha (Landsgerícht de Lípsia, 25 de março de 1922). Em França, aplicou-se, sem qualquer razão (ordem pública, ou não-reconhecimento do governo), o direito francês, nas espécies evidentemente intruso (Tribunal do Sena, 12 de dezembro de 1923). A maioria dos julgados pecou pela falta de ordem nas questões discutidas. Alguns julgados alemães traziam à baila o Tratado de Rapalo: se a Alemanha renunciara a reclamações contra a aplicação a cidadãos alemães das leis e medidas administrativas do governo soviético, não poderiam os seus juizes ir contra medidas análogas aplicadas a outros, autores privados. Supérfluo o raciocínio, porque a mesma devia ser a solução se não tivesse existido o Tratado. Também na Itália, a Corte de Cassação anulou um julgamento, invocando o art. 10 da Convenção Preliminar de 26 de dezembro de 1921 entre a Itália e a Rússia, que previu a pretensão dos antigos proprietários de coisas nacionalizadas pela Rússia soviética e trazidas à Itália (Corte de Cassação, 25 de abril de 1925). Aqui, de certo, se compreende a citação de texto explícito; nos julgados alemães, ressalta a superfluidade do argumento a fortiori. A transferência deu-se na Rússia, sob o império da Iex situs. Era a Rússia o Estado competente para legislar quanto ao sobre-direito e quanto ao direito substancial. A invocação de ordem pública seria descabida e contra a distribuição internacional das competências legislativas dos Estados, sendo a eficácia na Rússia e não alhures. Houve Estado que se recusou a reconhecer os casamentos contratados no território russo, segundo o direito soviético, como procedera, e. g., a Corte Suprema romena (Corte Suprema romena, 28 de fevereiro de 1926). Tal julgado refugou como contrário à ordem pública todo o direito matrimonial soviético. Não podia fazê-lo, nem serviu, com isso, à própria família. Podia, e devia, cortar efeitos à lei soviética que suprimia a obrigação do domicílio conjugal comum (Reischsgericht, 6 de outubro de 1927), ou que permitia a investigação da paternidade por parte de pessoa cuja mãe, no momento do nascimento do autor da ação, estava casada validamente (Oberlandesgericht Frankfurt, 3-17 de dezembro de 1925). Também tribunal inglês (Nachinson versus Nachinson, Prob. Divorce and Adm. Prov., 17 de dezembro de 1929) violou a distribuição internacional das competências, o principio de importação internacional de efeitos. Aliás, no julgado britânico, a forma é que é má: o que é contrário ao public policy é a dissolução do casamento por simples consentimento unilateral de um dos cônjuges; o casamento, em si, vale. No Brasil, a jurisprudência andou acertadamente. A 6ª Câmara Cível de Agravos do Distrito Federal, no Acórdão de 10 de junho de 1932, -reformou o despacho do juiz do primeiro grau de jurisdição, que negara validade ao casamento realizado na Rússia soviética. No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a sentença do juiz que, em ação de separação judicial, se conformou com a prova do casamento segundo a legislação soviética, que se satisfaz com qualquer documento que revele a existência do casamento, inclusive a posse do estado de casados (4ª Câmara Cível, Acórdão de 18 de maio de 1932). Vê-se bem que o tribunal brasileiro se manteve no plano da eficácia. 4. Ordem pública e justiça interestatal. Nos Arrêts nº 14 e 15 da Corte Permanente de Justiça Internacional, acha-se reconhecido o principio da não-importação de efeitos em virtude de invocação da ordem pública. Eis os trechos principais: 1. “Avant de procéder à ladite détermination, il y a cependant lieu de rappeler quil se peut que la loi qui pourroit être jugée, par la Cour, opplicoble aux obligations de lespêce, soit, sur un territoire déterminé, tenue en êchec par une loi nationale de ce territoire, loi d’ordre public et d’application inéluctable bien que le contrat ait été conclusous le régime d’une loi étrangêre. II. La Cour, amenée en ceife occurrence à se prononcer sur le sens et la portêe d’une loi nationale, fait observer ce qui suit: II ne serait pas conforme à la tache pour laquelle elIe a êté établie, et il ne corresponderait pas non plus aux principes gouvernant sa composition, quelIe dflt se livrer elIe-même a une interpretation personnelle d’un droit national, sans tenir compte de la jurisprudence, en courant ainsi le risque de se mettre en contradiction avec l’interpretation qui la plus haute jurisdiction nationale aurait sanc-tionnée, et que, dans ses résultats, lui paraitratt raisonnable. II serait particuliêrement délicat de le faire lá oú il s’agit d’ordre public — notion dont la définition dons un pays déterminé dépend dons une lorge mesure de l’opinion que préuaut áchoque mornent dons ce pays même — et quand les textes ne se prononcent pas directement sur la question dont il s’agit”.

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A decisão foi perfeita. Como tribunal de jurisdição inter-estatal, a Corte Permanente de Justiça Internacional reconheceu a existência do princípio (de direito das gentes, necessariamente), segundo o qual o Estado, em cuja ambiência juridica vai produzir efeitos a lei estrangeira competente (“qui pourrait être jugée, parla Cour, applicable”), pode cortá-los por motivo de ordem pública. Tal Estado é que pode dizer o que é, para ele, de ordem pública; e os seus juizes são os mais autorizados para a fixação de tal matéria de direito interno. Se eles ultrapassam os limites de competência, como se cortam efeitos a leis que não pretendem atuar na ambiência jurídica deles, então, sim, cabe à Corte reduzir ao que deve ser a interpretação dos tribunais dos Estados — àinterpretação que, “dans ses résultats”, lhes deveria parecer a razoável. A interpretação dos Estados não pode ir além do que lhes fixa a competência mesma para a invocação da ordem pública. A ordem pública corta efeitos na ambiência jurídica do país que a invoca, e não foro. A ordem pública não autoriza o juiz a criticar moralmente a lei estrangeira. Pode cortar efeitos à regra de ordem pública de outro Estado que haja cortado ou atribuido novos efeitos à regra da lei aplicável: foi concedido o divórcio, em certo país, de indivíduo cuja lei pessoal não o permitia; o Brasil, conhecendo efeitos da lei estrangeira de ordem pública, corta, por sua vez, tais efeitos. Ou, melhor: não os vê, porque são interiores ao país da decretação. Aí, o corte ao que se aditara restaura a lei competente. A infração do direito das gentes por parte de outro Estado, quer no seu direito substancial, quer no sobredireito (direito internacional privado, direito intertemporal, método de interpretação e fontes), não justifica que se lhe não aplique o texto edictado, sob a alegação de ser contra a ordem pública. Já Ernst Zitelmann (Internationoles Priuatrecht, 1, 378) cogitara disso, e posteriormente, durante e após a Primeira Guerra Mundial, houve julgados nesse sentido. Todos, porém, sem razão. Não menos sem razão o parecer de Leo Raape (Internationales Privatrecht, 1 u. Stoudingers Komrnentar, 9~ ed., VI, 822), para quem fora de mister que a infração ofendesse os bons costumes ou o fim de uma lei alemã. A atitude do juiz não pode ser, juridicamente, senão a de verificar a competência legislativa do Estado estrangeiro, porque, se, por ato de legislação, infringiu o direito, das gentes, ultrapassou as raias de sua competência. Toda invocação de ordem pública, em casos tais, sobre ser errada, é supérflua: não se precisa cortar eficácia à lei que se pode afastar por ser, na espécie, incompetente (não-incidência). Os tratados podem pré-excluir a invocação de ordem pública. Não se presume que o tenham feito, salvo onde tal reserva contradiria o conteúdo mesmo do tratado. 5. Bons costumes. A referência a “bons costumes” é a conceito interior ao de “ordem pública”. A ordem pública, no que é o mínimo ético tolerável pela ambiência jurídica do pais, tal o conceito — menor — de “bons costumes”. É alusão a ordem pública ético, especificamente. Quando a ordem pública se liga à moral dos atos da vida individual defende os bons costumes. 6. Soberania nacional. A expressão “soberania nacional” foi a de que se valeu Lafaiete Rodrigues Pereira, autor do Decreto n0 6.982, de 27 de julho de 1878 (art. 2ª, § 1ª), para aludir às regras jurídicas de distribuição da competência jurisdicional, pertencentes ao direito das gentes. Para ele, já então, embora obscuramente (ver, para o estado atual da técnica, nosso Trotado de Direito Internacional Privado, 1, 89-116, 39-393; II, 49 s.), infração de regras jurídicas supraestatais de competência e choque com a ordem pública e os bons costumes do pais não são a mesma coisa. O Decreto nº 6.982, na linha da boa tradição reinicola de dar exemplo para se apanhar o conteúdo dos conceitos, acrescentava: “como se, por exemplo (as ditas sentenças), subtraissem algum Brasileiro à competência dos tribunais do Império”. Quer dizer: se infringissem regras jurídicas de distribuição das competências. 7. Fraude à lei e simulação. O juiz da homologação tem de atender à regra jurídica que lhe dá o dever de afastar o que foi ato simulado ou em fraude à lei. A homologação de sentença é conteúdo de ação; durante o seu processo, a posição do juiz é igual à que tem em qualquer outro. Cedo, se a fraude à lei, que é um dos casos de infração, se deu, aí, na ação primitiva, pode não acontecer na ação de homologação; mas exatamente a sentença, na ação primitiva, é que é objeto da ação de homologação de sentença estrangeira- A fraude à lei é, pois, invocável como impedimento, tanto mais quanto o princípio é de ordem pública. Faça-se o mesmo raciocínio quanto à simulação. 8. Erros de conceituação. A ordem pública tem de ser apreciada conforme a importação da eficácia da sentença. A

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respeito de divórcio, ou o Estado de importação não pode admiti-lo, ou só o admite quando no negócio não haja elemento regido pelo direito nacional. No Brasil, a justiça confundiu ordem público e localização da pessoa, no que teve de cair em contradições flagrantes: homologar o divórcio de A e B, salvo se A ou B éresidente no Brasil (Supremo Tribunal Federal, 30 de setembro de 1942, RT 148/771)- Outras vezes, partindo de que a sentença de divórcio é declarativa de estado (?), dispensou a homologação (3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 29 de outubro de 1943, DJ 18 de fevereiro de 1944, 1.096). Ora, a sentença de divórcio é constitutiva negativa, e não declarativa. E, por outro lado, o tipo da sentença que, para produzir efeitos no Brasil, precisa de homologação. O que é urgente é fixar-se o que o Supremo Tribunal Federal considera, ou não, de ordem pública, na legislação brasileira. Não pode usar de dois pesos e de duas medidas. Deve-se ter atenção em que o corte na eficácia da decisão, por ser contrária à soberania nacional, à ordem pública, ou aos bons costumes, pode ser esvaziante ou substituinte. No primeiro caso, nada fica no lugar em que estava a decisão, ou a parte da decisão cuja eficácia se cortou; no segundo, o lugar que lhe tocava é ocupado pela regra jurídica brasileira correspondente ao que se lhe retirou. A garantia de reciprocidade não é de exigir-se, no direito brasileiro, a propósito de homologação de sentenças. Os juristas têm tal pressuposto, encontradiço nos sistemas estrangeiros, como retrógrado (Ludwig von Bar, TI-ieorie und Proxis des internotionalen Privatrechts, 1, 2ª ed., 286 S.; Theodor Súss, Die Anerkennung auslàndischer Urteile, Festgabe Júr Leo Rosenberg, 232 5.; cf. Erwin Riezler, Internationoles Zivilprozessrecht, 553). Quanto às cartas rogatórias, é assente à exigência da reciprocidade: se ao Estado rogante se nega, em principio, ainda em que em certa matéria, cumprimento de cartas rogatórias, é justo que ao outro Estado se negue, na mesma medida. § 135. Procedimento na ação homologatória 1. Processo de homologação de sentença estrangeiro. O processo da ação de homoloqoção do sentença estrangeira começa pela distribuição, em virtude de despacho, e a citação do réu —evitemos o ambíguo ‘executado”, porque pode tratar-se de força e efeito, não executivos, no sentido exato. Na legislação do Império do Brasil, dizia-se que o processo de execução de sentença estrangeira e seus diversos modos e incidentes seriam “regulados pelas leis, estilos e práticas que vigoram no Império para a execução das sentenças nacionais da mesma natureza”. Era aquele tempo do direito brasileiro em que, sendo um só o juiz da ação de homologação ou de exequártur ou de cumpra-se e o da execução da sentença homologada, executória ou a cumprir-se, o processo constitutivo integrativo era de plano, e logo se iniciava a execução da sentença. Desde que, na República, se acabou com essa cumulação objetiva necessária, não há nenhuma ação executiva na ação de homologação das sentenças estrangeiras. Talvez tenha sido. essa sequência (sentença na ação estrangeira como objeto, ação de homologação da sentença, ação de execução da sentença), que haja levado (James Goldschmidt a tê-la considerado ação de condenação (!). Sem razão, advirta-se; a ação de homologação (símile com o que se passa com a ação declarativa típica e com a ação executiva de títulos extra judiciais) não é de modo nenhum ação de condenação. A cumulação era artificial, ou, pelo menos, não realizável em todos os casos, e. g., não haveria ação de execução de sentença cumulável com a homologação de sentença constitutiva. E nesse caso a semelhança com a sentença de condenação seria nenhuma. 2. Pedido de homologação e prazo para apresentação de resposta impugnativa. Pedido a homologação, é a esse pedido que se responde, por se tratar de ação de cognição, e não de ação de execução de sentença. A sentença é analisada como objeto. A impugnação ou contestação, além do que se prevê no art. 301 do Código de 1973, somente pode versar sobre um, pelo menos, dos seguintes pressupostos: a) falta de autenticidade do documento, caso em que a defesa é bem

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oposição ou contra-ação declarativa negativa, semelhante à ação declarativa de falsidade de documento — específica e prejudicial; b) a indevida inteligência da sentença, portanto negação das afirmações exegéticas explícita ou implicitamente feitas pelo autor, de modo que o tribunal homologante, ao integrar a eficácia da sentença, lhe declara o conteúdo (elemento declarativo que não atua para fixar a natureza da ação, pois se trata de declaração do objeto material, e não de relação jurídica, simples apreciação inquisitiva da prova documental); c) defeito ou vício de forma segundo a lei do juiz prolator da sentença homologanda, defesa semelhante a da letra o); d) falta de um dos pressupostos subjetivos; e) falta da coisa julgada formal; fl falta de tradução oficial; g) infração de regra de direito das gentes que entenda com o Brasil; h) choque com a ordem pública ou os bons costumes do Brasil. Em qualquer dos casos, prevalece o princípio inquisitivo, e não o dispositivo. O tribunal pode negar a homologação, ainda que não-impugnado o pedido e sem precisar de invocar o dolo bilateral. O Supremo Tribunal Federal, a 23 de maio de 1930 (RD 99/99), permitiu a renúncia à jurisdição brasileira, grave confusão com a prorrogação da competência no direito interno. Mas foi julgado esporádico. Seria renúncia à soberania! Grande fonte de erros, na justiça, é a falta de ordem nas preliminares processuais e nas questões prejudiciais. As regras jurídicas de capacidade de ser parte, de capacidade processual e de capacidade postulacional são aplicáveis à ação de homologação da sentença estrangeira. Os poderes do procurador judicial têm de ser especiais (Supremo Tribunal Federal, 16 de setembro de 1927, AJ, IV, 400). Diz o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, art. 221, § 1ª ‘Revel ou incapaz o requerido, dar-se-lhe-á curador especial que será pessoalmente notificado”. Havemos de entender que tal nomeação só é imprescindível se o incapaz não está representado, conforme a lei. 3. Prazo para ímpugnação e prazo para contestá-lo. Feita a citação, corre o prazo de quinze dias para a impugnação. Após isso, tem o autor da ação de homologação da sentença estrangeira o prazo de cinco dias para a réplica. 4.Procurador-Geral do República. A audiência do Procurador-Geral da República é essencial. A sua função é, de regra, a de fiscal; mas pode assumir a de parte, segundo os princípios, satisfeitos, naturalmente, os pressupostos para isso, sendo-lhe vedada, no entanto, a representação judicial de entidade pública (Constituição de 1988, art. 129, IX). Se não foi ouvido o órgão do Ministério Público, há nulidade processual, não-cominada. E preciso atender-se a que o órgão do Ministério, posto que não seja parte na ação de cuja sentença se quer a homologação, éo mais imediato interessado em que se observem as regras jurídicas especiais. 5. Carta de sentença homologatário. A carta de sentença homologatória compõe-se da combinação das duas sentenças — a sentença estrangeira e a de constituição integrativa. Nem a sentença estrangeira se nacionaliza, nem a sentença nacional é absorvida pela outra — posto que insinuem (James Goldschmidt e outros que, uma vez homologada a sentença estrangeira, a ação de homologação se eclipse. A transparência não chega a tal ponto. A “execução no juízo” competente é a ação de execução de sentença, octio iudicati, quando é preciso que se mova, por ser de condenação a sentença ou ter eficácia executiva. Aliás, os efeitos mediatos (carga 3) são sempre por meio dessa ação, ainda que não executivos sthcto sensu. Escreveu-se que, homologada a sentença estrangeira, não é ela, propriamente, que se cumpre, mas a decisão homologatória. Porque, acrescentou-se, essa é que cria a prestação jurisdicional do Estado. De modo nenhum: a homologação é ato transparente; através dela passam e entram no território nacional as irradiações de eficácia da decisão estrangeira. A sentença que homologa a decisão estrangeira constitui a importação do eficácia; não a eficácia mesma. A eficácia sentencial da decisão homologada é a mesma, ou menos; não pode ser mais do que a que se atribuiu, no direito estrangeiro, à decisão homologada. Há transparência da sentença homologatória. Não há absorção da eficácia do julgado estrangeiro: há, apenas, como um “pode passar”, mais do que simples “visto”, dito à entrada na esfera jurídica do Estado importador da eficácia. O Código de 1939, no art. 793,1V, falava de confirmação da sentença estrangeira. No § 328 da Ordenação Processual Civil alemã, de reconhecimento (Anerkennung; sobre isso, Franz Raílmann, Anerkennung tind Voflstreckung ouslándischer Zivilurteile, 1 s.; Erwin Riezler, Internationoles Zivilprozessrecht, 509 sj. A terminologia italiana prefere “delibazione” ou “accertamento”. É lamentável que, em vez de ter eficácia, se diga e repita “valer”, “fazer valer”.

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A eficácia da sentença estrangeira é importada, em seus pesos de declaratividade, constitutividade, condenatoriedade, mandamentalidade e executividade, e em sua extensão e limites subjetivos, de acordo com o direito estrangeiro. Mas a importação pode ser em menos, se só em parte ofende a soberania nacional, a ordem pública, ou os bons costumes; ou não se dar. Não há o dilema “ou tudo ou nada”. Se a sentença homologatória importa menos, é porque somente até aí constituiu o “pode entrar”. Não há diferença entre a sentença homologatória que importa toda a eficácia (e) e a que somente importa (e) — 1, ou (e) — ou (e) — 3. 6. Requisição de homologação, por via diplomático. Se a homologação da sentença estrangeira é requisitada por via diplomática, não é visível o autor da ação, é um ausente, a demandar; e o seu Estado introduz a demanda, sem ser figura processual, mesmo porque são os dois Estados que se põem em contacto. Nomeia-se-lhe curador, que, ai, ou faz as vezes do procurador judicial, e não do advogado, ou cumula os dois papéis (e é conveniente que isso se dê). Tal curador continua em suas funções, depois da homologação da sentença estrangeira, ou para atos que digam respeito a sua execução (sentido estrito de actio iudícati), ou qualquer das diligências necessárias. A atuação do autor pode ter efeito imediato da cessação delas, e. g., pela juntada de procuração a outrem. A juntada de procuração ao curador conserva-lhe a mesma situação processual, posto que mude a relação de direito material entre o autor e o curador. Essa relação é de representação, e não de mandato. Não se presume gratuita. O curador nomeado, além de poder dar redação mais explícita ao pedido, pode contestar as alegações do demandado. Se o autor, além de não se achar presente, por ter vindo por via diplomática o pedido, é menor ou interdito, o curador éo mesmo. 7.Não comparência e incapacidade. Se o réu ou algum dos réus, inclusive o litisconsorte necessário, não comparece, está ausente, ou é incapaz, nomeia-se o curador, ao qual se aplica o que antes foi dito. Quando colidirem os interesses do curador legal e os do incapaz, há de ser removido. 8.Sentença desfavorável e sentença favorável. A sentença negativa de homologação da sentença estrangeira não faz, sempre, coisa julgada formal. O Supremo Tribunal Federal, a 26 de agosto de 1924 (RF 103/303), afirmou que transita em julgado e tem força de coisa julgada material. Portanto, não poderia ser feito novo pedido. Só a ação rescisória seria a impugnativa contra a sentença que negou a homologação. Cumpre distinguir: o) Se a não homologação foi devida a insuficiência da instrução, e. g., não se reputou bastante a prova de ter passado em julgado a sentença homologanda — a prova ainda é possível, por se tratar de ação constitutiva integrativa e não haver coisa julgada material de sentença em tais ações, salvo excepcionalmente. b) Se foi discutido algum ponto de direito, como, por exemplo, se o acórdão decide que o juiz era incompetente, então o elemento declarativo é bastante para produzir a coisa julgada material. O Supremo Tribunal Federal não advertiu em que o trânsito em julgado (coisa julgada formal) não impede outro pedido — impede a impugnação perante o mesmo juiz, ou por meio de recurso; a coisa julgada material é que impede, mas só onde ela existe: onde ela não está, nada pode impedir. Assim, se o Supremo Tribunal Federal decide que a sentença homologanda não passou em julgado, o que cabe ao interessado é fazê-la transitar em julgado e renovar-se o pedido de homologação (outro ação, inclusive quanto à causa!). Se decidiu que faltava a autenticação consular, outro pedido, com que se satisfaça a exigência legal, não poderia, juridicamente, ser repelido. Também se a tradução não foi feita, ou não satisfez. A sentença positiva de homologação faz coisa julgada material, porque contém declaração negativa geral de faltar qualquer requisito. Se existe como sentença e não é nula ipso iure, só a ação rescisória pode intervir. Em nenhum desses casos se ofende a eficácia formal de coisa julgada, que tem os acórdãos do Supremo Tribunal Federal, pois a eficácia formal obsta à impugnação, não à discussão do conteúdo da resolução. Quanto à eficácia material, que impediria essa discussão, só existe nos pontos em que houve declaração. 9. Processo de cumprimento. O processo de cumprimento da sentença estrangeira e o de seus incidentes é o processo para o cumprimento, inclusive execução, das sentenças brasileiras.

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10. Interpretação da sentença estrangeira. A interpretação da sentença estrangeira é a que resulta do método de interpretação das sentenças do direito processual do juiz prolator (lex fori). A interpretação dos seus efeitos processuais, também. Não assim a das regras jurídicas que ela aplica. As regras jurídicas são interpretadas pela sentença; na falta de tal interpretação, é a que resulta do método de interpretação das leis (sobredireito) a que pertence cada regra jurídica aludida. 11. Natureza das sentenças homologadas. Já vimos que a força e os efeitos da sentença podem não ser de condenação, de modo que a sentença estrangeira, declarativa, constitutiva mandamental, ou executiva, se cumpre como se cumpriria a sentença nacional da mesma natureza. Se é preciso proceder-se a algum ato de cancelamento, averbação, ou arresto, ou sequestro, ou outro qualquer, seguem-se as regras respectiuas do direito brasileiro. Se a sentença tem força executiva (e. g., antes se procedeu à penhora dos bens sitos no Brasil, em virtude de cumprimento de rogatória), ou se tem apenas efeito executivo, aplica-se o direito brasileiro sobre execução de sentenças. Se a sentença é declarativa típica, há o efeito de preceito. Se a sentença é da natureza da sentença em ação de emissão de declaração de vontade, tem-se como enunciada a declaração, e a tal regra jurídica é que se obedece. 12. Sentença de homologação. A sentença, na ação de homologação, integra a sentença (estrangeira), de modo que a projeção ou irradiação dessa se possa produzir no direito nacional. Não a produz ela mesma, tanto que se têm de propor outras ações (a de execução de sentença, a de pedido de averbação, a de cancelamento etc.); nem, a fortiori, faz a sentença estrangeira reproduzi-la, tanto que há reconhecimento e produção de certa eficácia, ex tunc, e não raro a sentença estrangeira não homologável, ou a que se negou homologação, tem eficácia: a eficácia que independe da homologação. Homologada a sentença estrangeira, não se faz brasileira; a sentença brasileira é noutra ação, como a sentença que julga improcedente a ação rescisória é outra sentença, proferida noutra ação. São pontos relevantes de diferença. (a) A pretensão à homologação da sentença estrangeira nasce a quem tenha interesse na produção de eficácia de tal sentença no Brasil. A ela corresponde a ação de homologação. Nem aquela depende da pretensão de direito material, talvez privado, que se invocou por ocasião na dedução in iudicium, nem essa da ação que foi, então, exercida. A propósito de homologação de sentença estrangeira, cumpre advertir-se que, se era de repelir-se ter-se a sentença como resultado de contrato (e. g, G. Massé, Le Droit commerclal dans ses rapports auec le Droit des gens et le Droit civil, II, 66; André Weiss, Traité théorique et pratique de Droit international pri vê, VI, 8), é inegável que se trata de prestação jurisdicional, que o Estado, monopolizando a justiça, prometera. Outra prestação jurisdicional é a decisão que a homologa, ou lhe nega homologação. O que se tem de examinar, para homologação, o que se tem de examinar, para que haja o exequártur, é a sentença estrangeira. Há de tratar-se de sentença e há de ser estrangeira. Prove-se a isso em regras jurídicas gerais, ou em tratados, sem que se possa estender o instituto às decisões extrajudiciais que não tenham eficácia de sentença. A decisão arbitral está incluída, quer a legislação, que a rege, exija a homologação judicial, ou qualquer outro meio de cognição judicial (e. g., o recurso obrigatório), quer lhe atribua eficácia de decisão judicial; porque o que importa é haver eficácia de decisão de que se pretenda, noutro Estado, a importação, como sentença estrangeira. Quanto às decisões de outro poder que o Judiciário, dotado de eficácia sentencial, como a decisão constitutiva negativa de autoridade administrativa, e. g., Chefe de Estado, a que se atribui tal eficácia, não é possível falar-se de importação de eficácia sem se homologar a sentença. O que se há de levar em conta é a decisão conforme a concepção do Estado de importação, e não conforme a do Estado de produção da decisão. Esse, indubitavelmente, diz se foi atribuida a eficácia que se quer exportar; mas aquele éque discrimina o que precisa e o que não precisa de homologação. Se atendemos a que há decisões “judiciais” do Poder Legislativo e do Poder Executivo, não se pode, a priori, enunciar que somente as decisões do Poder Judiciário são suscetíveis de homologação e precisam de homologação. Quanto ao requisito da homologação, não concerne ele à produção de eficácia da decisão estrangeira, mas só à sua importação. Nem se há de pensar em que a eficácia, por ser de decisão estrangeira, não se produziu; produziu-se, sim, porém, ainda não foi importada. Nem, com a exigência da homologação, se reduz a sentença estrangeira a

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julgamento lógico, algo de ajurídico, como queria Dionisio Anzilotti (nota a sentença, Rivista di Diritto Internazionale, 1907, 354; cf. Esecuzione delle sentenze straniere, Rivista di Diritto Internazionale, 1910, 137), nem seria de admitir-se a concepção de que a sentença homologatória destrói a sentença estrangeira e de que se põe no lugar dessa a sentença que homologou (G. Fusinato, Esecuzione delie sentenze straniere, 54). O Estado de importação é que tem de dizer se a eficácia é sentencial e se é de mister a homologação. Não vem ao caso discutir-se se o Estado a que pertence a decisão atribui ao Poder Judiciário, ou ao Poder Legislativo, ou ao Poder Executivo, a competência para decidir; porque o que se está a verificar é a legitimidade, ou não, da importação da eficácia. Assim, para o Brasil, foi sentencial a decisão do rei da Dinamarca que desconstituiu casamento, e era de exigir-se a homologação (cedo, Haroldo Vailadão, Homologação de sentença estrangeira, 14 s.; sem razão, Clovis Bevilacqua, Código Civil Comentado, III, 145, e, na critica a Haroldo Valíadão, Santiago Sentis Melendo, La Sentencia Extranjera, 38 s.). É preciso que se não confundam com os pressupostos da homologação os pressupostos da sentença estrangeira. O problema torna-se gritante a propósito de eficácia sentencial conferida, no estrangeiro, a decisões de outros poderes que o Poder Judiciário e de eficácia sentencial conferida, no estrangeiro, a laudos arbitrais independentemente de exame, homologatório ou recursal, pelos juizes. Ao Estado de importação o que interessa é a eficácia sentencial, que se quer importar, sem que o seu direito sobre laudos arbitrais possa ser imposto à decisão do Estado estrangeiro de que procede o laudo (sem razão, entre outros, Paul Brachet, De l’Exécution internationale des sentences arbitrales, 5). Se o laudo produz eficácia sentencial é o Estado competente para o processo arbitral que pode dizer: foi ele que, competente para a distribuição da justiça, permitiu o julgamento por árbitro, com os pressupostos que a sua legislação estabelece. Se a eficácia sentencial — e aqui o Estado da importação é dado verificar a sentencialidade da eficácia — pode ser importada, é o Estado da importação que há de decidir. As decisões em jurisdição voluntária estão sujeitas, aos mesmos princípios. Se o Estado de importação considera sentencial a eficácia que o Estado de produção confere à decisão, a homologação da decisão estrangeira é de mister. Com isso, tornam-se sem interesse as discussões em torno do conceito de jurisdição voluntária. Qual a eficácia que a decisão em jurisdição voluntária tem, di-lo o Estado de produção da eficácia; e não se pode generalizar a outros Estados o que o jurista sabe sobre o seu sistema jurídico. Daí não se poder, no Estado de importação, enunciar-se que a homologação ou exequatur não é de mister para decisões em jurisdição voluntária (e. g., E. Bartin, Principes de Droit international pri vê, 473; Charles Lachau, Obseruations sur l’Exécution des jugements étrangers en France, II, 5). Se partimos do que acima se disse, não cairemos nas perplexidades ou contradições de tantos juristas, nem nas generalizações contra a importabilidade, ou porque se negue, a priori, a eficácia sentencial (e. g., Lodovico Mortara, Commentario,V, 76) ou a priori se lhe atribua eficácia sentencial, ou na interpretação literal de Alberto M. Rodriguez (Comentarios ai Código de procedimiento civil, II, 584: não se distinguiu, na lei; portanto, não se há de distinguir). Desde o momento em que, noutro Estado, se entregou prestação jurisdicional, com eficácia sentencial, e se quer a importação, porque dela se precisa, tem-se de atender à legislação do Estado de importação. O Estado de produção tem a lurisdictio e a distribui, conforme os seus princípios constitucionais e legais; ao Estado de importação somente cabe reconhecer, ou não, aquela lurisdictio, sem indagar se a repartição que o Estado de produção fez coincide, ou não, com a sua. O Estado de importação é que há de dizer se é preciso haver a homologação, para que se importe; e, pois, se é importável a eficácia sentencial que se produziu lá fora. Entre a sentença na ação de homologação de sentença estrangeira e a sentença na ação rescisória há de comum terem ambas por objeto exame de sentença: a res iudicium deducta é sobre sentença. Aquela lhe confere eficácia no país em que se importa a sentença; essa lhe tira existência, pois que a rescinde. Na ação de homologação, a sentença homologada é prius; a sentença homologação, posterius. Na ação rescisória, a sentença rescindenda é prius; a sentença do juízo rescindente, posterius. Pode o juízo rescisório restaurar a relação jurídica processual, de modo que a sentença, então proferida, é sucedânea da primeira. A sentença na ação de homologação e a do juízo rescidente têm carga de eficácia que se não confunde com a carga de eficácia da sentença homologanda e a da sentença no juízo rescisono. (b) A sentença na ação de homologação é constitutiva de eficácia, portanto integrativa, ainda que a sentença homologada seja declarativa, condenatória, mandamental, ou executiva — o que se opera pela retirada de algum elemento para se perfazer a carga de eficácia constitutiva. Salvo algumas variantes, o que se passa pode ser posto na tabela seguinte:

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Tabela II (c) A invocabilidade da ordem pública, para corte de eficácia das leis estrangeiras, resulta de diferença de tempo social entre as legislações, isto é, entre a legislação aplicada, que não énecessariamente a legislação do Estado da produção de eficácia (Estado aplicador da lei) e a legislação do Estado de importação da eficácia. Se esse Estado corta a eficácia da legislação estrangeira é porque a regra jurídica, na escala da evolução social, está muito abaixo, ou muito acima do grau de evolução da legislação do Estado a que se pede a homologação ou exequátur. (d) A eficácia das sentenças nunca é uma só. Temos frisado que há a eficácia preponderante, dita força, que serve à classificação quinária das sentenças, e as demais eficácias, cuja soma é constante. Não há ações puras, nem sentenças puras. Referiu-se Henry De Cock (Effets et exécution des jugements étrangers, Recueil des Cours de (‘Académie de Droit Internotional de la Hape, 10, 437) a algo como os raios do espectro solar, mas a imagem é inadequada, porque as cargas variam e os cinco elementos se distribuem sem ser em espectração. A homologação pode importar a irradiação da sentença com todas as suas cargas de eficácia, ou somente importar algumas, ou alguma delas. De jeito que a seleção negativa se pode fazer, reduzindo-se a eficácia importada a menos do que era —e é, no Estado da produção — a eficácia da sentença. As teorias que só exigiam a homologação para a eficácia executiva (5, 4, 3) eram apegadas a certa assimilação da importação à permissão da constrição executiva. As imagens, que empregavam, refletiam o medievalismo do “braço armado” (cf. por exemplo: Pietro Cogliolo, Se la sentenza straniera per avere in Italia l’autorità di cosa giudicata debba essere sottoposta ad un giudizio di delibazione, Lo Legge, 1883, 1, 538; L. Mattirolo, Trattato di Diritto Giudiziario Civile Italiano, VI, 636 e 653). a) A eficácia declarativa é que dá ensejo à exceção de coisa julgada material. A declaração pode ser de se ter constituído, ou de ter desconstituído a relação jurídica, ou de se haver infringido obrigação, ou de se não haver infringido; pode mesmo ser de ter havido, ou não, relação jurídica, que dê base à execução. 2Como seria possível deixar-se de exigir a homologação de tal sentença? Tinham razão, de sobra, os que lutaram contra a atitude de só se atender à necessidade de homologação em se tratando de eficácia executiva e foram explícitos em exigi-la, a propósito da eficácia declarativa (Giuseppe Saredo, em 1874; C. F. Gabba, em 1875; Pasquale Fiori, Questioni di diritto su casi controversi, 436; Dionisio Anzilotti, desde 1901; A. Diana, La Sentenza straniera e ii giudizio di delibazione, Rivista di Diritto Internazionale, 1908, 72 e 85; Julio Julianez Islas, Procedimientos civiles y comerciales, 45; Carlos Dose, Sentencia, Fuero extraterritorial en ei derecho privado, 35 5.; Alberto A. Day, Efectos internacionales de Ias sentencias civiles y comerciales, 70). Não importa se é em exceção que se alega ter havido sentença declarativa, ou com eficácia declarativa imediata ou mediata (sem razão, Hugo Alsina, Tratado teórico pró ctico de Derecho procesal civil v comercial, III, 126). Atender-se a exceção é atender-se a eficácia. A produção da sentença como elemento de prova é produção de meio de prova, e não importação de eficácia sentencial, mesmo declarativa. O que se quer, então, é provar fato, e o juiz aprecia, com o princípio do livre convencimento, a prova que se produziu. Não se importa eficácia sentencial; a sentença éapresentada como fato. Por exemplo: se a dívida foi cobrada no estrangeiro a 1º de janeiro e houve sentença, não se pode admitir que tenha havido falsificação do documento em março, se o conteúdo atual e o daquele momento coincidem; se houve pedido de suplemento de idade e se produziu, no estrangeiro, prova de economia própria, o juiz do Estado em que se produz prova, com a sentença estrangeira, pode atribuir valor probatório a esses dados produzidos alhures. 14 A eficácia constitutiva só se importa mediante a homologação da sentença estrangeira. Se negativa a constitutividade, ou a) algo há, no Estado em que se alega a desconstituição, que ainda não foi desconstituído, ou ainda não foi retirado por mandamento, ou b) o Estado, em que se argúi a inexistência (o desconstituído não é), é estranho ao que se passou. Assim, tem ele de ignorar o casamento que se fez alhures, sem que o regesse a sua lei, se transitou em julgado sentença estrangeira desconstitutiva (de nulidade, de anulação, ou de dissolução). Se a sentença constituiu fora e se alega tal constituição, e. g., ter sido interditada a pessoa, é de mister a homologação, pois o que se quer é importação de eficácia sentencial. c) A eficácia condenatório não pode ser importada sem homologação da sentença estrangeira. O que se disse, a respeito da eficácia declarativa, a fortiori há de pesar quanto à eficácia condenatória, pois condenatoriedade é plus.

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d) Tampouco se pode pensar que a eficácia mandamen tal se importe sem que tenha havido homologação ou dação de exequátur. Quer se trate de constrição, quer não se trate de constrição; porque o mando estrangeiro, de si só, ofenderia a soberania. e) Não há execução no Estado de importação se não houve homologação ou dação de exequátur. Porque seria ofensivo àsoberania a constrição no interior do Estado em que se não produziu a eficácia executiva. (e) No art. 15, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, foi dito: ‘Não dependem de homologação as sentenças meramente declarativas do estado das pessoas”. As sentenças meramente declarativas do estado das pessoas são raríssimas. Se alguém quer provar que nasceu no dia 13, e não no dia 2, a declaração opera-se no Estado em que se dá a sentença, e envolve o mandamento de retificação se houve registro no Estado da produção da eficácia. Mas, se o registro foi alhures, não; porque o Estado em que se fez o registro estaria a importar eficácia mandamental de sentença estrangeira. No fundo, só se dispensa a homologação se não se precisa de importar eficácia sentencial, por todos os elementos terem ocorridos alhures e apenas se atender ao que consta dos documentos sobre a pessoa. Responsável pela afirmação — errada — de que as sentenças sobre o estado e capacidade são “meramente declarativas” foi Clovis Bevilacqua (Princípios elementares de Direito internacional privado, 446), que, em verdade, nunca se interessara pelo assunto, árduo, da classificação das ações e das sentenças. Ora, ações sobre estado e capacidade rarissimamente são declarativas. Quem interdita não só declara. Quem suplementa idade faz mais do que declarar. Quem decreta separação judicial ou dissolução de casamento desconstitui. (f) Quando aparece, em lei processual, regra jurídica se repele a importação de sentença estrangeira que decretou falência de comerciante brasileiro, domiciliado no Brasil, a referência éà nacionalidade da pessoa jurídica, ou da empresa, ainda individual, registrada no Brasil. Ao estrangeiro, que é comerciante no Brasil e no Brasil está domiciliado, é comerciante brasileiro para que se lhe não possa decretar falência no estrangeiro, com importação da eficácia sentencial pelo Brasil. Nem a sentença de sua falência, decretada no estrangeiro, pode ser homologada no Brasil, e os seus efeitos importados apenas não atingem o estabelecimento que o mesmo tenha no Brasil. Se o comerciante é estrangeiro e domiciliado no estrangeiro, há homologabilidade; mas, antes de homologada a decisão estrangeira, podem os síndicos, administrador, curadores ou representantes legais da massa requerer diligências cautelares, exercer ações de cobrança e outras, sem que se lhes possa exigir caução às custas; a seu turno, os credores domiciliados no Brasil, que antes da homologação intentaram ações, podem prosseguir e executar — sem concurso — os bens do falido situados no Brasil. Se tem estabelecimento no Brasil, a homologação não pode atingir o estabelecimento situado no Brasil. (g) A hipoteca judiciária somente pode fazer-se no Brasil depois de homologada a sentença estrangeira. Trata-se de efeito anexo, constitutivo (é absurdo considerá-lo declarativo, como Enrico La Loggia, La Esecuzione delle sentenze straniere, 21). (h) A ação de homologação de sentença estrangeira é em exercício da pretensão à homologação. Não é continuação da ação exercida no estrangeiro; é outro ação. O direito do Estado de importação é que permite que se importem eficácias sentenciais e promete a tutela juridica. Os pressupostos para homologação, fixa-os o direito processual do Estado de importação. É preciso que haja a necessidade do tutela jurídica, o interesse de agir. O próprio vencido na ação que se julgou no estrangeiro pode ter interesse em que se homologue a sentença estrangeira; não só o vencedor (certos, E. Bartin, Principes de Droit international priué, 486; Santiago Sentis Melendo, La Sentencia extranjera, 154). O Estado de importação exerce o seu poder de distribuir justiça; não é parte. Não está em causa soberania, posto que tenha de examinar se é legal a importação de eficácia sentencial (sem razão, G. Fusinato, Delibazione, Giudizio di, Enciclopedia Giuridica Italiana, IV, 618). A ação não é de direito público; mas sim de direito privado, ou, se a eficácia que se importa éde direito público, de direito público é a ação de homologação. A sentença homologatória da sentença estrangeira é sentença: importa eficácia sentencial; o momento b, posterior àhomologação, é diferente do momento a, anterior a ela. Sentença, portanto, constitutiva. Não se pode dizer que se trate de simples “visto”, porque isso reduziria a homologação a puro ato administrativo, reminiscência da

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atribuição de homologar, de dar exequátur, que tinha o Poder Executivo, mas, ainda para esse tempo, não seria adequada a redução em todos os sistemas jurídicos. Alguns autores tinham a sentença homologatória como declarativa, porque entendiam que a eficácia sentencial já estava no Estado homologante e a sentença apenas declarada essa importação automática; outros, porque não sabiam bem qual a diferença entre a declaratividade e a constitutividade. Outros confundiam o exame da sentença estrangeira, que é objeto do processo homologatório, com a eficácia da sentença de homologação, que importa a eficácia da outra sentença (e. g, G. Fusinato,Delibazione, Giudizio di, Enciclopedio Giuridica Italiana, IV, 919). Certos, Giuseppe Chiovenda (Princippii, 306) e Caetano Morelli (II Diritto Processuale Chile Internazionale, 289 s.). A retroeficácia é segundo os princípios: o que se constitui é a importação; de modo que se importa, de regra, ex tunc. Se a eficácia sentencial importada é no futuro (condicional ou a termo), só se importa com tal protraimento.

Capítulo XXXV

Cartas rogatórias § 136. Conceito e dados históricos 1. Conceito de carta rogatória. Carta rogatória é o ato de solicitação do juiz de um Estado à justiça do outro, para que tenha efeitos no território estrangeiro algum ato seu, ou que algum ato se pratique, como parte da sequência de atos que é o processo. A citação, por exemplo, faz-se no Estado estrangeiro, em virtude do poder público do Estado estrangeiro, mediante acolhida legislativa ou judicial do Estado estrangeiro; mas para figurar no processo como ato do juiz do Estado que rogou fosse feita. A regra é que o juiz de um Estado não pode, de modo nenhum, citar no Estado estrangeiro. A citação supõe jurisdição, que lhe falta. Quando o Estado estrangeiro ordena a citação, coopera, sem que a citação constitua ato do Estado rogante. A intromissão do oficial de justiça do Estado rogante significaria invasão. 2. Natureza da rogação. O rogatório é limitado a atos pendente a lide. Refere-se a atos que são de comunicação ou de produção de prova, de instrução; e não a resolução judicial. Todas as resoluções judiciais para serem cumpridas precisam de homologação: transcendem à simples missão citatória, intimatória ou inquisitória do juiz. O assunto delas não é coisa que se peça, ou rogue; ainda quando enviado por via diplomática, é do interesse da parte, e não do Estado. Ato de Estado, que pede a Estado, que vai atender — o elemento “mandamental’ dele, por ser pendente o processo, é importado, através do exequátur do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Esse exequátur “nacionaliza”, ao contrário do que se passa com a homologação, e a finura dos juristas do Império do Brasil, pelo Aviso de 1ª de outubro de 1847, fé-las (“as cartas”, com o placet, hoje dito exequátur) embargáveis. Perfeitamente certo. Quem concede exequátur põe-se no mesmo plano do juiz que julga acuo iudica ti; não apenas no plano do juiz que homologa a sentença estrangeira. 3. Dados históricos. A matéria das cartas rogatórias somente pode ser a de que falou o Aviso de 1ª de outubro de 1847, onde se lhes exigiu: “1) que sejam simplesmente precatórias ou rogatórias, expedidas pelas Autoridades Judiciárias para simples citação ou inquirição de testemunhas; sendo repelidas quaisquer executórias, tragam ou não insertas as sentenças; 2) que as ditas cartas precatórias ou rogatórias sejam concebidas em termos civis e deprecativos, sem forma ou expressão de ordem imperativa, sendo exceptuadas, expressamente, as citatórias que versarem sobre objetos criminais; 3) que as ditas cartas sejam legalizadas pelos Cônsules Brasileiros respectivos, pela forma prescrita no seu Regulamento; 4) que às tais cartas sempre serão admitidos os embargos das partes, que forem atendíveis em Direito, e serão estes processados nos termos regulares para serem julgados defininvamente, como lorde Justiça”. A CircuJarde 14 de novembro de 1865 referiu-se a essas proposições e acrescentou que “as diligências cíveis”, que podiam ser cumpridas, não seriam “somente as citações e inquirições, mas também, e por identidade de razões, as vistorias, exames de livros, avaliações, interrogatórios, juramentos, exibição, cópia, verificação ou remessa de documentos O Aviso nº 33, de 12 de junho de 1882, diante da referência da Circular de 1865 a “avaliações”, explicitou que não

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podiam ser promovidas por via rogatória as avaliações para partilhas, porquanto, não sendo licito aos juizes de um dos países (Brasil e República Oriental do Uruguai), à vista da legislação e ajustes internacionais em vigor, inventariar e partilhar bens de qualidade alguma situados no outro, salvo o caso de acordo especial, cabia ao juiz consultante inventariar e partilhar os bens existentes no seu termo e mandar que os interessados constituissem “procurador para requerer a avaliação e partilha dos bens situados no país estrangeiro”. (Note-se que aí estava em questão rogatória estrangeira, o que desloca o problema, que passou a ser, sem que o Ministério das Relações Exteriores atentasse na espécie, de direito processual internacional uruguaio, e não de direito processual internacional brasileiro.) A Circular do Ministério da Justiça, de 7 de janeiro de 1888, e o Aviso de 5 de dezembro de 1892, aludiram à nulidade das cartas rogatórias executórias. Até 1847, as cartas rogatórias, inclusive executórias, eram cumpridas pelos juizes, sem qualquer formalidade processual, recebendo-as diretamente das partes. Regime de clandestinidade, posto que limitado às cartas rogatórias de Portugal. Excluídas as cartas rogatórias citatórias, a prática do Ministério da Justiça foi no sentido de se compreenderem na proibição as cartas citatórias e intimatórias em execução de sentença, como as para pagar custas judiciais ou nomear à penhora bens situados no Brasil (Aviso de 26 de fevereiro de 1910, que disse: “não se tratando de simples diligência no interesse do processo, e sim de sentença dependente de homologação, os interessados, por si ou por procurador, deviam requerer perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 12, § 49, da Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, o que fosse a bem do seu interesse”). Se, porém, a rogatória só se refere a simples citação no interesse de sentença que depois se tenha de homologar, deve ser cumprida, pois que não é, não obstante o parecer do Conselho de Estado (Nota de 20 de fevereiro de 1872), executória. (Após a troca de Avisos do Ministério da Justiça, nº 2.153, de 27 de dezembro de 1911, e nº 115, de 18 de março de 1912, foi abandonada a atitude de 1872, e o Ministério das Relações Exteriores comunicou “a nova interpretação liberal”, para que haja perfeita reciprocidade no cumprimento das que forem expedidas em tais condições pelas Justiças brasileiras.) Quando há adiantamento — como, por exemplo, nos casos de direito processual estrangeiro correspondente às regras jurídicas brasileiras sobre ações executivas de titulo extrajudicial — é de homologação que se há de tratar, e não de exequátur. Dá-se o mesmo com as medidas cautelares, quando se pretende que tenham eficácia no Brasil. 4. Pressupostos de fundo e de forma. A carta rogatória estrangeira tem de obedecer às leis de fundo e de forma do Estado do juiz rogante, não devendo, porém, devido à sua remessa direta de Estado a Estado, ser submetida às indagações a que estão sujeitas as sentenças estrangeiras pelo tribunal homologante. § 137. Procedimento da rogação 1.Competência e distribuição supraestatal. A distribuição supraestatal das competências jurisdicionais separa os povos da Terra em esferas de atuação, a que chamamos Estados. Os Estados, por sua vez, repartem os seus poderes de atuação em províncias ou Estados, ou outras unidades internas, conforme a maior ou menor carga que cabe ao todo estatal e às partes. Essa repartição não os separa tanto quanto a distribuição supraestatal aviva a linha discriminadora de competência entre os Estados. A diferença de nome entre o ato dos juizes que determina o ato de outros juizes do mesmo país, ou dentro da jurisdição deles, e o ato dos mesmos juizes que suscita o ato de outros juizes de pais diferente, dentro da jurisdição deles, é assaz expressiva:. precatório, rogatório. O que, em lei processual civil, algum país exige às cartas rogatórias é o que deve ser observado pelos que litigam ou procedem judicialmente dentro do seu território, se o que eles entendem satisfaz o direito das gentes. Naturalmente, o outro Estado, aquele em que se querem efeitos dos atos do juiz, para ele estrangeiro, tem suas exigências, dentro daqueles principios de direito supraestatal, mas concebidas, in concreto, por seus legisladores. 2. Pressupostos formais das cartas rogatórias. Os requisitos ou pressupostos formais das cartas rogatórias são, no sistema jurídico, os mesmos das cartas precatórias. As vezes, o Estado estrangeiro exige mais do que isso, razão por que é toda conveniência consultar-se, antes, a legislação do Estado rogado. 3. Eficácia do exequátur. Antes do Aviso de 1847, o juiz do lugar da diligência examinava a rogatória, e cumpria-a, se de Estado de relações frequentes. Depois, interveio entre Portugal e Brasil o Aviso de 1847 que se estendeu aos outros paises.

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O Aviso do Ministério da Justiça ao dos Estrangeiros, a 8 de julho de 1863, reputou inconveniente o exame pelos juizes: Considerou-se quanto era perigoso confiar de um tribunal local, muitas vezes servido por pessoa ignorante (!), graves e ponderosas questões de direito civil internacional. Refletiu-se nas sérias complicações que poderiam resultar, com a quebra da soberania nacional, pela execução dada às cartas não simplesmente citatórias, mas executórias. O fato é que os Ministérios dos Negócios da Justiça e de Estrangeiros do Brasil, abandonando a regra de apresentação direta permitida nos Avisos de 1ª de outubro de 1847 e 20 de abril de 1849, estabeleceram a nova regra jurídica da transmissão, cumprimento e devolução oficial das cartas rogatórias”. A Circular de 14 de novembro de 1865 não firmou o trânsito diplomático, como fora de mister: porém quando o Estado deprecante o estipule, há de ser entendido que o exija o Brasil. Fora daí, enquanto a lei não precisar o meio de transmissão das rogatórias até serem apresentadas ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, pode apresentá-las a parte ou remetê-las o próprio juiz deprecante. As obtenções de exequátur, bem como as denegações, não fazem coisa julgada formal. Os pedidos podem ser renovados. O Presidente do Supremo Tribunal Federal ou o Supremo Tribunal Federal pode mesmo revogá-lo (a expressão revogar está no sentido próprio, de retirar a voz dada). Exemplo: se se descobre que somente competente para a ação é a justiça brasileira (Supremo Tribunal Federal, 8 de agosto de 1940, RCJB 49/37). 4. Itinerário das cartas rogatórias. O trajeto das cartas rogatórias, da justiça ao Ministério da Justiça e desse ao Ministério das Relações Exteriores, é, fora de dúvida, o que mais atende ao duplo interesse interno e interestatal das cartas rogatórias: aquele Ministério pode, ainda que não entre em apreciações do conteúdo contencioso ou administrativo do documento rogatório, verificar se é curial; o segundo, de posse de mais diretos informes de ordem interestatal, encaminhá-lo-á, segundo as regras jurídicas internas e externas, ao Estado estrangeiro. Se, conforme a legislação do Estado estrangeiro, pode ou há de receber as rogatórias o agente diplomático ou o cônsul, ou se assim se estabelece em tratado entre o Brasil e o Estado estrangeiro, é ao agente diplomático ou ao cônsul do Estado, a que pertence a justiça rogada, que o Ministério das Relações Exteriores há de remeter a carta rogatória. Se a lei do Estado estrangeiro, ou tratado, prevê que se entregue às autoridades administrativas ou judiciárias dd Estado estrangeiro, o Ministério das Relações Exteriores, por intermédio do agente diplomático ou do cônsul brasileiro, há de satisfazer a exigência. Se nada se edicta a respeito na legislação estrangeira, a solução é a entrega às autoridades administrativas de relações exteriores do Estado estrangeiro, por intermédio do agente diplomático do Brasil. Os atos de execução no Brasil dependem de homologação da sentença estrangeira. Os atos de execução no estrangeiro dependem da legislação do Estado estrangeiro.

Capítulo XXXVI

Ação de restauração de autos § 138. Conceito 1. Autos e restaurabilidade. Os autos são a concretização gráfica do processo. O processo existe ainda que os autos não existam, a despeito de todo o elemento de sequência formal de atos e termos, que é o processo. O direito conhece negócios jurídicos, que dependem da forma (negócios formais), alguns dos quais desaparecem, se a forma, a cártula, se extingue. Os bilhetes de loteria são insubstituíveis, por sua natureza. Não lhes são aplicáveis as regras relativas à deterioração, ou destruição completa do titulo; nem se reconhece ao portador pretensão a novos bilhetes, que façam as vezes dos primeiros, em caso de perda, furto ou roubo. Somente valem enquanto contém sinais comuns, e de individuação, suficientes para se lhes afirmarem a autenticidade e a individualidade objetiva. De regra, há insubstituibilidade. Se não resulta da lei, deriva ela da natureza do título, ou do programa público de emissão (Dos Titulos ao Portador, V ed., II, 113, 65-86). Na substituição dos títulos dos negócios jurídicos, ou dos autos dos processos, há a preponderância da idéia sobre o corpo, a coisa: enquanto esse pode ser restaurado, aquela persiste. Alguns juristas, J. E. Kuntze à frente, frisaram não se tratar de outra coisa que da transição do negócio jurídico, ou do processo, de um papel, ou maço de papéis, para outro. O negócio ou o processo continua

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intacto, sem qualquer vislumbre de novação do negócio ou dos atos jurídicos contidos no processo. Fato puramente material, e não jurídico. O molde jurídico dele estaria na L. 20, § 2ª, D., de seruitutibus praediorum ur banorum, 8, 2, onde se fala da sub-rogação real do prédio destruído, na servidão de estilicídio, o que seria confusão lamentável entre a substituição cartular e a sub-rogação. O molde filosófico foi peripatético, vindo de Labeão, uma vez, para ele, não a tangibilidade, mas o conceito, denota a existência. Os autos do processo são, em princípio, substituíveis. Quer dizer; a desaparição ou destruição dos autos não é irremediável. Juridicamente, põe-se, como enunciado de ciência, que o processo é, existe, ainda sem autos. A primeira limitação (não restrição) a essa regra é a de existirem os autos suplementares. O Código de 1939 usou dos termos reforma e restauração, ora como sinônimos, ora como gênero aquele e como espécie esse (arts. 776, 777, parágrafo único, in fine, e 781). O Código de 1973 fala de restauração de autos no Capitulo XII e nos arts. 1.063, 1.064, 1.065, § 12, 1.067, § 1ª, 1.068, § 1ª Note-se bem: restaura-se, não se inova, nem se reforma; instaurou-se, desapareceu, restaura-se. O que desapareceu foram os autos, o corpo do processo e é isso que se restaura. E possível que se tenham produzido dois corpos, o dos autos e o dos chamados autos suplementares. 2.Autos extraviados ou destruidos. Todos os autos extraviados ou destruidos são reformáveis, ou restauráveis. A exceção, que a antiga Corte de Apelação do Distrito Federal pretendia abrir para os processos de inventário e partilha (27 de agosto de 1914, RD 35/217), era de todo inaceitável. 3.Ação de restauração de autos. A ação de reforma ou restauração de autos vem dos textos reinícolas (Ordenações Filipinas, Livro 1, Titulo 24, §§ 24-26), só relativos aos casos em que era responsável o escrivão, mas lidos como caso da espécie “perda ou deterioração de autos’. O processo é extensivo às perdas e extravios de autos extrajudiciais, mas regidos pelo direito judiciário, e. g., as escrituras públicas (livros dos tabeliàes); outrora, segundo as Ordenações Filipinas, Livro III, Titulo 60, § 6ª, e hoje, por interpretação dos arts. 1.063-1.069 do Código de 1973. Nas Ordenações Filipinas, Livro III, Título 60, § 6ª, 2! parte, dizia-se “.1 se acontecer que a dita Nota seja perdida, e quiser o autor provar por testemunhas, como o instrumento foi notado, e a dita Nota e instrumento perdidos, será recebido e ouvido, com a parte, a que pertencer”. Aliás, já assim era nas Ordenações Afonsinas, Livro III, Título 65, § 52, 2! parte, e bem assim nas Ordenações Manuelinas, Livro III, Título 46, § 6ª, 2! parte. Cumpre, porém, distinguir-se do processo da restauração ou reforma a instrução de algum processo em que se postulou ter sido perdida ou destruída a Nota, isto é, o livro de notas ou alguma nota do livro. Ali, o processo é autônomo. 4. Autos suplementares. Se existem autos suplementares, a falta dos auto originais ainda não constitui pressuposto para a pretensão à restauração dos autos. Os autos originais e os suplementares igualmente encorpam o processo, de modo que a perda daqueles não põe o processo em situação de sequência de pensamentos sem escrita. Como a reprodução dos autos é fato material, qualquer pessoa, que tenha interesse, pode pedir certidão de todo um processo (reprodução-multiplicação dos autos). Tal certidão se distingue dos autos originais e dos autos reformados ou restaurados em que o seu momento é somente à data em que o escrivão terminou a última página da certidão completa dos autos até ah, portando-o por fé e assinando-a. Se algum ato sobrevém, tem de ser certificado à parte, e entende-se que é à parte, ainda que o escrivão dê a certidão em seguimento à outra e se refira à ligação sem intervalo, entre as duas. As certidões, em tais casos, falta impulso vital, dinamismo. Distinguem-se dos autos suplementares ainda quando seguidas e feitas na medida que os autos originais crescem, porque, nos autos suplementares, a reprodução se processa mecanicamente, ao passo que a cada certidão dos autos, para a reprodução material por certidão, intervém com unicação de fatos, e tudo se passa como superposição temporal de certidões, entremeada de comunicações de vontade. Se os autos estão findos e o interessado pede certidão do todo, não há aquela superposição e se parecem, enormemente, a certidão do todo e os autos suplementares. Mas, ainda aí, os autos suplementares e a certidão são inconfundíveis: aqueles têm história; essa, não tem; aqueles, na falta dos outros, vão servir a pedidos de certidão, essa somente a públicas-formas; aqueles são “autos”, para qualquer ato ou diligência de ação posterior (e. g., ação rescisória ou de abuso do direito processual), essa é apenas “certidão do inteiro teor”. Para se transformar tal certidão em corpo do processo, em ‘autos”, é preciso que se proponha a ação de restauração de autos, com sentença que tome tal certidão como afirmação e prova, ou somente como afirmação e parte da prova, devendo-se

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apurar se havia algo mais. A sentença é que faria autos o que era certidão, prova testemunhal, cópia, perícia etc. 5.Aparição dos autos antigos. Os autos “restaurados” substituem os perdidos ou destruidos se e enquanto os originais (ou suplementares) não aparecem. Se esses aparecerem, a continuação nos que apareceram depende de resolução do juiz que mande certificar o que foi produzido depois da reforma. As diferenças entre depoimentos e perícias tem de ser apreciadas como se no mesmo processo tivessem ocorrido duas vezes, em dois momentos. O juiz deve preferir julgar no processo antigo, porque essa é a tradição do nosso direito (Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana, II, 42 e 43). Nada obsta a que se utilize, nos motivos, de dados do segundo. Porém sem desprezar os dados do primeiro e sem os contradizer. § 139. Procedimento 1. Petição inicial. Trata-se de ação de restauração de autos, que há de começar por petição, e o sistema jurídico tem-na como processo acessório ao da ação do processo perdido ou destruido — acessório re-gerador. No velho direito, pouco mais se possuía sobre tal ação e processo que algumas linhas de Manuel Mendes de Castro (Practica Lusitana, 1, 42 e 43), os arts. 810 e 811 da Consolidação de Antônio Joaquim Ribas e algumas regras juridicas dos Códigos de Processo Civil locais, de que vieram os arts. 777-781 do Código de 1939, hoje os arts. 1.063-1.069 do Código de 1973. O Assento de 23 de maio de 1758, supondo, aliás, a prática de tais ações, distinguiu o caso da reforma antes de haver sentença definitiva, devendo haver apelação, e o de não a ter havido, sendo de agravo o recurso, Hoje, a distinção é posta de lado; mas há outras questões. 2. Elementos documentais. Além das certidões dos atos constantes do protocolo das audiências do cartório, por onde haja corrido o processo, pode a parte oferecer, desde logo, quaisquer outros documentos que facilitem a restauração. No caso de certidões de todo o processado até então, a sua afirmação e prova ganham em valor e extensão. 3. “Status causae”. A parte tem de comunicar qual a data última em que se produziu ato do processo, o que se não confunde com a data em que foi destruído ou se perderam os autos. A indicação da data última em que produziu algum ato processual, qualquer que seja, e a narração do que ocorreu até então, de modo a caracterizar em que ponto se achava o processo, são a comunicação do “estado da causa”. Comunicação, essa de conhecimento. Status causae. 4. Citação. A citação obedece aos princípios gerais e faz-se conforme as circunstâncias do momento, e não do tempo em que foram citadas as partes do processo desaparecido ou destruído. É possível mesmo que não as tenha havido, se o autor da ação de reforma ou de restauração de autos foi réu na outra. 5. Negação pelo réu. O caso vulgar, o quod plerum que fit, éo de ter sido o processo instruído com as sós certidões dos termos e notas, constantes do protocolo das audiências e dos livros do registro do cartório, mais as afirmações do autor. Naturalmente, aquelas certidões prescindem da “concordância” (aliás não-impugnação, não-negação) do réu. O que dela precisa é a comunicação de conhecimento, abrangente de tudo que seria o processo, além do que consta das certidões juntas. Se o autor não fez qualquer comunicação de conhecimento, que fosse a mais do que consta das certidões, a negação do réu teria de ser contra essas certidões, segundo os princípios, e o processo de restauração de autos é lugar impróprio para essa questão prejudicial sobre a falsidade do documento. Processar-se-á o incidente de falsidade. Vencido o réu, a reforma tem de ser julgada, porque a negação caiu no vácuo. 6. Contestação parcial, efeito da negação. Fora da hipótese acima, se há contestação, ainda que parcial, a negação tem o seu efeito específico quanto à prova, e a lei só admite a restauração dos autos, quer dizer — a re-produçdo dos atos processuais. Na ação de restauração, não se pode discutir qualquer ponto de direito, ou de fato, da causa principal (Corte de Apelação do Distrito Federal, 22 de agosto de 1918 e 23 de outubro de 1919, RD 56/397), ainda onde se estiver repetindo ato de postulação escrita, ou de debate oral. A irrestaurabilidade ou irrestauração de parte que não é essencial ao processo não obsta à sentença de reforma ou restauração (Supremo Tribunal Federal, 21 de dezembro

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de 1921, RD 68/526). A ação de restauração de autos não depende de ser julgada causa prejudicial de natureza criminal (Câmaras Civeis Reunidas do Tribunal de Apelação do Rio de Janeiro, 21 de março de 1945), posto que essa possa atingir aquela, conforme os principios. 7. Reprodução de provas. Se não há certidão de peças da instrução, têm as provas de ser reproduzidas. As mesmas testemunhas têm de ser reinquiridas; e repetidos, pelos mesmos peritos, se possivel, os exames periciais, se não existem cópias, extratos ou públicas-formas. Se faleceu depoente, ou se tornou incapaz, tem de ser inquirida outra testemunha. 8. Depoimentos dos que serviram no processo. Como se trata de recompor o processo em que os oficiais de justiça, peritos e depositários tomaram parte, ou assistiram, eles, atores no processo, depõem, como espectadores, na restauração dos autos —pela circunstância de se ter tornado passado o próprio ato. As suas comunicações de conhecimento são, nesse caso, comunicações de conhecimento sobre a citação, a notificação, a intimação, a perícia, e não comunicações de conhecimento constantes e formadoras do laudo. Não há, a fortiori, declaração de vontade do depositário ou comunicações do depósito, e sim comunicação sobre se ter decretado ou ter sido feito o depósito. Aliás, o depoimento dessas pessoas pode não ser sobre o fato próprio —ser sobre o que assistiram. Nesse caso, são testemunhas sobre o processo cujos autos foram destruidos ou desaparecidos, testemunhas do processo da restauração, que não foram testemunhas do processo cujos autos se restauram. 9. Cópia da sentença. A cópia da sentença, que o juiz possui, há de ser junta aos autos e tem a mesma força e efeitos. Ela é junta para “prova”. Todavia, prevalece a sentença original, se os autos ou parte dos autos, em que ela está, aparecem. 10.Espécies em que tinha havido recurso. No caso de ainda ter de haver recurso, a regra é sem dificuldades; no de ter havido recurso, que reformou totalmente a sentença, o valor prático da sentença é apenas histórico; no de ter sido confirmada, as questões surgem. a) A sentença do segundo grau de jurisdição confirmou-a, reproduzindo-a na decisão (mérito): a autoridade da sentença do primeiro grau de jurisdição, se o juiz tem cópia e é diferente, cedem ante o texto da instância superior, ainda que outra cópia, pois “juiz” é qualquer juiz, singular ou coletivo (desde que a cópia seja assinada pelos que constam da publicação ou outra prova dos votantes no julgamento). b) A sentença de superior instância reformou-a em parte: tem de ceder em tudo que a sentença da superior instância lhe atribua. A presunção derivada da eficácia da cópia que tem o juiz não é absoluta, embora legal. É possível prova contrária. Enquanto não se faz essa prova, a sentença é suscetivel de força e efeitos. Por exemplo, invocando-a, pode ser pedida a execução provisória, ainda que pendente a restauração dos autos. Se há prova de ter passado em julgado, tem força de coisa julgada formal. Se sentença mandamental cujo mandado se cumpre a despeito de recurso, cumpre-se por sua força. A cópia pode ser fornecida pelo juiz que passou a certo juizo, instância ou tribunal, ou pela pessoa que deixou de ser juiz, salvo se incurso em incapacidade física ou moral para volver a sê-lo. Se a sentença é de tribunal coletivo, a cópia, que tem o relator, pode ter a autoridade que se lhe confere; mas, se algum dos votantes impugna a cópia, tudo se passa como a respeito das presunções de direito que admitem prova em contrário. Depois da sentença de restauração trânsita em julgado, essa discussão não é mais possivel. Em todo o caso, pode ocorrer ação rescisória da sentença na ação de restauração de autos. § 140. Restauração de autos, no segundo grau de jurisdição 1. Competência judicial se os autos se achavam no segundo grau de jurisdição. Se o processo ainda não terminou

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e se acha no segundo grau de jurisdição, a petição é apresentada ao presidente do tribunal e distribuída, sempre que possível (isto é, se ainda está no tribunal), ao relator. Se, sem serem mais juizes, estiverem vivas as pessoas que proferiram a sentença do primeiro grau de jurisdição, ou de outro grau, depõem como testemunhas desse processo. Se ainda são juizes, ou se passaram a outros juízos, ou se deixaram de ser juizes, podem fornecer a cópia da sentença, e prestar esclarecimentos sobre o primeiro grau de jurisdição. Esses esclarecimentos são comunicações de conhecimento, que não estão sujeitas às exigências de forma referentes aos depoimentos de testemunhas. Podem ser, como os depoimentos das testemunhas, atacados. 2. Funções distintas dos juizes. Cumpre distinguir do funcionamento como juiz processante, por ter sido relator do feito, o que depende de ainda ser o juiz membro do tribunal (não precisa ser da câmara, ou turma), a contribuição probatória do juiz com esclarecimentos por escrito, que independe disso. Também a cópia, a que se refere o art. 1.066, § 5ª, do Código de 1973, atende apenas ao passado. 3. Nulidade não-cominada. E causa de nulidade não-cominada o dirigir-se a petição ao relator, e não ao presidente do tribunal. A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal (9 de julho de 1943, DJ de 30) entendeu que seria caso de mera irregularidade. Ora, a lei dava a função ao presidente, Código de 1939, art. 779, para que ele conhecesse, desde logo, do grave acontecimento. Tratava-se de regra juridica de competência. No Código de 1973, não se fala de ser apresentada ao Presidente do Tribunal a petição de ação de restauração de autos. Mas as ações não se propõem perante o relator. A distribuição é que é ao relator. O julgamento é pelo Tribunal, ou pela Turma ou Câmara: o que importa é saber-se qual o corpo que proferiu o despacho, decisão ou acórdão. Não se precisa de princípio a priori, porque os autos podem ter desaparecido: a) depois do acórdão; b) depois de iniciado o julgamento pela Turma, ou Câmaras, ou pelo Tribunal pleno; c) depois de ter havido algum ato coletivo; d) depois de ser designado o relator. Na espécie d), o que tem de fazer o relator é submeter o caso ao corpo coletivo, que há de, pelo Presidente, fazer baixarem os autos ao primeiro grau de jurisdição, de que vieram. Lá é que pode o juiz tomar as providências e julgar a ação de restauração dos autos. Aliás, em qualquer espécie, a prova testemunhal ou principal, que fora feita no primeiro grau de jurisdição, é nele que se há de proceder às inquirições (repetição de provas, art. 1.066 e §§ lª, 2ª e 4ª. 4. Responsabilidade pelo extravio ou destruição. Se houve culpa de alguma das partes no extravio dos autos, responde ela pelas custas da reforma ou da restauração dos autos; a fortiori, se foi culpada da destruição total ou parcial. Em ambos os casos, a responsabilidade pelas custas é independente da responsabilidade criminal e da responsabilidade civil pelo ato ilícito. Custas e mais despesas. Quid iuris, se a causa não subira, mas apenas os autos? O exemplo mais frequente é o dos autos que foram enviados por ordem da instância superior, para simples inspeção, ou conferência de documento ou certidão. A melhor solução é ser dirigida a petição ao Presidente do Tribunal que, verificada qual a espécie, fará descer ao juiz ou corpo de juizes a cuja cognição estavam destinados os autos, ou em cujo cartório estavam arquivados. A culpa, ai, é objetiva. 5. Natureza da sentença e recurso. A sentença de reforma ou restauração de autos é sentença constitutiva em ação constitutiva. Julgada a ação, se o processo não estava terminado, no próprio processo de reforma ou restauração é que se prossegue, depois do trânsito em julgado da sentença. Nessa sentença, não se pode dar qualquer decisão ou simples despacho da causa principal (Supremo Tribunal Federal, 27 de junho de 1914, RD 35/457). Há recurso, quer a sentença restaure, total ou parcialmente, perfeita ou imperfeitamente, os autos, quer julgue improcedente, ou sem prova suficiente, a ação. No direito anterior, com o Assento de 23 de maio de 1758, distinguia-se a sentença apelável, se já tinha havido sentença nos autos reformados, e a simplesmente agravável, se ainda se não sentenciara o feito. A decisão fora por maioria (Coleção cronolóqica dos Assentos das Casas, 271), tendo havido quem só quisesse o agravo e quem só admitisse a apelação, e teve-se por fundamento único o “esperar-se, ainda, sentença definitiva no ponto principal, em que podia atender-se a algum defeito na reforma, e também não ser justo houvesse nos ditos autos duas sentenças definitivas, uma na reforma, e outra sobre o ponto principal e no segundo caso, por se não esperar, depois da sentença de reforma, outra definitiva Como se vê, os juizes vencedores não atenderam a que se tratava de dois processos diferentes, com duas diferentes res in iudicium deductae. Erro evidente.

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Absurda a decisão da 1ª Câmara Civil do Tribunal de Apelação de São Paulo, a 27 de março de 1951 (RT 192/298), reputando irrecorrível a sentença que julga a reforma ou a restauração de autos. Julgada a restauração e trânsita em julgado a sentença do art. 1.067 do Código de 1973, precisa-se (a) de nova citação, ou (b) se há de entender que a sentença de restauração produz o efeito, transitando em julgado, de suprir a falta dos autos como se nada tivesse ocorrido? No sentido 14, a 8ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a 18 de junho de 1947 (RF 115/111). Deve-se entender que se dispensa nova citação. Tratando-se de autos em cuja sentença havida carga 3 de executividade, tendo sido perdidos, ou destruidos, ou tendo desapare-cido antes de iniciada a execução, é indiscutível que se tem de citar o executado, tal como se daria se autos houvesse, isto é, não tivessem sido restaurados ou reformados. Se os autos que desapareceram, se perderam ou se destruíram foram os da execução, a restauração ou reforma é até onde desapareceram, se perderam ou destruíram. 6. Prosseguimento do processo. O prosseguimento do processo, se ainda não foi terminado, é desde o ponto em que parara. Se estava em grau de recurso, ou no início de algum termo, ou se faltava um dia, ou mais dias faltavam para se encerrar o termo, corre de novo. Quando se restauram os autos até a conclusio in causa, julgam-se, no tribunal, na mesma assentada, a restauração e a causa (Supremo Tribunal Federal, 23 de outubro de 1944, RF 102/473). Mas, se o tribunal competente para a restauração, não no é para a causa, julga aquela, e dá seguimento ao processo, segundo os princípios. 7.Aparição dos autos originais. Se aparecem os autos originais, quatro são as espécies: a) a restauração foi completa e perfeita; b) a restauração foi completa, porém não perfeita; c) a restauração foi incompleta mas perfeita nas partes reformadas ou restauradas; d) a restauração nem foi completa nem perfeita. Ainda há, quanto ao tempo, dois casos: (1) a aparição dos autos antigos deu-se antes de serem praticados atos processuais e lavrados termos; (2) a aparição dos autos antigos deu-se depois de qualquer prosseguimento, inclusive por se tratar de feitos terminados. Na espécie (1), a substituição dos antigos aos novos faz-se facilmente, mediante simples despacho do juiz com que estiverem os autos ou do relator do feito ou do Presidente do Tribunal, tratando-se de autos terminados. Na espécie (2), os autos antigos podem não ser completos, e os novos têm atos e termos que precisam ser trasladados aos antigos, ou serem os autos mesmos considerados “continuação”, a partir do momento em que os outros apareceram. Na espécie a), que é a de ter havido reforma ou restauração completa e perfeita, nenhuma questão surge. Não assim nas espécies b), c) e d), porque em tudo em que os autos antigos obrigariam a seguimento ou efeito que não foi dado, ou excluiriam seguimento, ou efeito, que foi reconhecido, ou conferido, vige apenas o que está de acordo com os autos antigos. O principio é o de que é eficaz todo o processado posterior que não seria se os autos antigos estivessem à mão. Exemplo: se não havia expirado o prazo para certo recurso; ou se foi tomado o recurso, e o prazo precluíra. As não-negações do réu não fazem os autos novos, ainda na parte continuativa, retificações do antigo. Toda reforma ou restauração de autos é constituição de forma com reserva da aparição dos autos antigos: se os autos reaparecem, super jilis iudicare debet, non super secundis” (Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana, II, 43). Naturalmente, se os autos, que apareceram, são completos até o momento c), a substituição é fácil; porém não no é onde há parte incompleta, ou foi praticado ato processual nos autos novos, que não coincide com o que consta dos autos velhos, ou não poderia, segundo esses, ser praticado. O trabalho dos juizes, nessa senda de atos, prazos e termos velhos e novos, torna-se sutil e penoso. 8. Desaparição dos autos do recurso. Se o que desapareceu foram os autos do recurso, e, g., agravo de instrumento, o tribunal pode, se não há contraindicação, satisfazer-se com a requisição dos autos originais. No acórdão hão de constar o ocorrido e a aplicação do princípio de economia, porém não há julgamento de restauração se não se observaram as exigências processuais (em caso de recurso extraordinário, Supremo Tribunal Federal, 21 de setembro de 1943, DJ de 1ª de abril de 1944).

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9. Livros de tabeliães, oficiais de registro, escrivães e outros. A forma da ação é aplicável à propositura, processo e julgamento das ações de reformatione instrumenti deperditi, especialmente livros de cartórios e de tabeliães. É preciso, porém, que a lei, na espécie, não o proiba (Antônio de Sousa de Macedo, Decisiones, 172). O que primeiro se há de provar é o fato mesmo da celebração da escritura (Álvaro Valasco, Quaestionum luris emphyteutici, q. 7, nº 38). Depois, que se perdeu o livro ou folha, ou se perderam folhas ou as folhas (Antônio de Sousa de Macedo, Decisiones, 172 s.). Os depoimentos hão de ser sobre o teor ou sobre que é essencial (testes debent specifice declarare tenorem instrumenti, ceteraque substantialia). Cf. caso do morgado de Soalhães (Antônio de Sousa de Macedo, Decisiones, 57 e 174). As presunções são contra o notário, ou escrivão, ou oficial do registro (Francisco Antônio Xavier de Almeida, em nota a Antônio de Sousa de Macedo, Decisiones, 174). A escritura, com a restauração, tem a eficácia (inclusive de execução aparelhada), que a outra tinha. Se a parte tem a escritura e o tabelião perdeu a nota, ou o livro, pode ser compelido a propor a ação de restauração, sob pena de pagar perdas e danos, além da cominação e do processo criminal. Pode ser usada a ação cominatória, construindo-se a prestação de propor a ação de restauração à semelhança do que se passa com a cominação do fiador para que o credor acione o devedor. O tabelião não é como os outros funcionários públicos, que dêem certidão ou certificados do que consta dos livros do Estado, livros sem qualquer ligação direta a eles. As tábuas eram enceradas ou engessadas, e nelas o tabelhom escrevia com ponteiro de ferro. Ele mesmo as guardava. Depois, chamaram-se tábuas quaisquer placas de metal, pedra, ferro, papiro, pergaminho, pano, ou junco, ou outro material, em que se escrevessem instrumentos de atos juridicos, em que se fizessem escrituras. Tabelião continuou de ser, sempre, que as lançava nas tábuas e as guardava. Em Leges et Consuetudines (Port. Monum. Hist.), 219, nos anos de 1270 e 1272, está “tabellião” (“E mando que todo-os Tabellioens do meu Regno”; Eu Martin GilI pubrico tabellion). Mas aparecia também “tabelião”. O notário, antes “notairo” (Leqes et Consuetudines, 415 e 481), como o escrivão (antes, em 1188 e 1230, escribano, “scribano”, Leges et Consuetudines, 829), integrava-se no corpo judiciário, eclesiástico ou civil. O termo “escrivão” ficou com o sentido preciso de oficial de justiça, que dela faz parte, com os seus escreventes e mais servidores. O elemento comum estabelece tratamento igual. Mas há o elemento diferencial. O termo, que o escrivão lança, é como escritura pública, que o tabelião faz, mas o juiz o assina, se a espécie não é de simples nota, termos de juntada e outros semelhantes, relativos ao andamento do feito. A ligação às tabu Me e às notae diferencia dos outros funcionários públicos os tabeliães e os escrivães. A concepção da função de serventuário de oficio de justiça, por suas fontes históricas e por sua evolução sem mudança essencial, atribui ao serventuário de ofício de justiça deveres que ultrapassam os dos outros funcionários públicos. Não é o Estado — isto é, a entidade federal ou estadual — que prevê ao alojamento, à instalação e às despesas de serviços; por outro lado, a responsabilidade dos serventuários de ofícios de justiça pelos atos dos seus auxiliares, escreventes ou não, é diferente da responsabilidade de qualquer chefe de serviço administrativo e dos funcionários públicos que estão sob a sua direção, em virtude de atos estatais em que se abstrai da pessoa do dirigente. Há, por isso, o dever de diligência nas escolhas; em consequência, a responsabilidade in eligendo. Tem-se de frisar que o Estado não é responsável pelos atos ilícitos que cometa o escrevente, para cuja investidura teve de haver candidatura apresentada pelo serventuário de ofício de justiça. A responsabilidade civil, que possa ter a União, ou o Estado, não é a responsabilidade, mesmo sem culpa, que tem pelos atos dos seus funcionários.